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Memória e novos patrimônios

Cécile Tardy et Vera Dodebei (dir.)

Éditeur : OpenEdition Press

Lieu d'édition : Marseille

Année d'édition : 2015

Date de mise en ligne : 12 Fevereiro 2015

Collection : Brésil / France | Brasil / França

ISBN électronique : 9782821853539

http://books.openedition.org

Édition impriméeISBN : 9782821853522

Nombre de pages : 236

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Marseille Université

Référence électroniqueTARDY, Cécile (dir.) ; DODEBEI, Vera (dir.). Memória e novos patrimônios. Nouvelle édition [en ligne].

Marseille : OpenEdition Press, 2015 (généré le 12 février 2015). Disponible sur Internet : <http://

books.openedition.org/oep/417>.

Ce document est un fac-similé de l'édition imprimée.

© OpenEdition Press, 2015

Conditions d’utilisation :

http://www.openedition.org/6540

BRÉSIL / FRANCE | BRASIL / FRANÇA Saberes cruzados em ciências sociais e humanas

A coleção do programa Saint-Hilaire

Memória e novos patrimônios

Coordoneção cientifica de Cécile Tardy e Vera Dodebei

BRÉSIL / FRANCE | BRASIL / FRANÇA Saberes cruzados em ciências sociais e humanas

A coleção do programa Saint-Hilaire

Criação gráfica: Massimo MiolaIlustração da capa: Strezhnev Pavel

Coordenação da tradução: Sabine GorovitzRevisora dos textos: Regina Maria Nogueira, Maria Haddock Lobo

Diagramação: OpenEdition Press

Coleção Brésil / France | Brasil / França, 2015[Online] http://books.openedition.org/oep/417

Esta obra encontra-se online em acesso livre Texto: Licença Creative Commons

Atribuição – Uso Não - Comercial - Proibição de Realização de Obras Derivadashttp://creativecommons.pt/cms/view/id/28/

Todas as ilustrações estão sujeitas ao direito de autor.

ISBN papel: 978-2-8218-5352-2ISBN eletrónica: 978-2-8218-5353-9

Em 1816, o botânico e naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire não mediu esforços para participar da missão do Conde de Luxemburgo que

rumava para o Brasil. Acabaria passando seis anos no país, percorrendo mais de 16.500 km pelas suas terras mais afastadas e realizando pesquisas pioneiras sobre a fauna e a flora locais. Fino observador, Saint-Hilaire desenvolveu métodos científicos rigorosos, que se tornariam mais tarde um modelo do gênero. Seu herbário foi logo incorporado ao Museu de História Natural de Paris. Além de suas atividades científicas, Saint-Hilaire era também um humanista e um filantropo que não cessava de maravilhar-se com as potencialidades do Brasil. A coleção de publicações científicas Saint-Hilaire presta, portanto, uma homenagem a este grande “viajante científico”, que se tornaria um verdadeiro embaixador do Brasil ao retornar à França – e isto, ao longo de toda sua vida.

Prefácio à coleção

As publicações da coleção Saint-Hilaire resultam de uma cooperação entre a Capes (Coordenação de aperfeiçoamento do pessoal de nível superior), a agência federal brasileira do Ministério da Educação e a Embaixada da França no Brasil. Estas obras têm por intuito promover pesquisas conjuntas em ciências humanas e sociais, relativas ao Brasil contemporâneo. Sendo assim, universitários e equipes de alto padrão científico trabalharam juntos sobre temas que interessam tanto à França quanto ao Brasil, visando produzir conhecimentos transversais, pertinentes e inovadores.

A coleção Saint-Hilaire está disponível a todos, sendo publicada na Internet através da plataforma OpenEdition Books. Ao apoiar a edição e a divulgação de conteúdo científico em ciências humanas e sociais, esperamos poder perpetuar a tradição de intercâmbio intelectual que une a França e o Brasil, à maneira de Auguste de Saint-Hilaire.

Denis!Pietton Jorge Almeida!Guimarães

Comitê científico do programa Saint Hilaire

Eckert, Cornelia(co-presidente) - (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Théry, Hervé(co-president) - (CNRS)

Barreira, César(Universidade Federal do Ceara)

Couffignal, Georges(université Sorbonne Nouvelle - Paris 3)

Jaisson, Pierre(université Paris XVIII)

Trein, Franklin(Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Velut, Sébastien(université Sorbonne Nouvelle - Paris 3)

Zilberman, Regina (Pontificia Universidade Catolica do Rio Grande do Sul)

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Introdução

Cécile Tardy e Vera Dodebei Traduzido do francês por Germana!Henriques!Pereira!de!Sousa

Uma anterioridade científica franco-brasileira

Esta obra apresenta um trabalho de cooperação iniciado previamente entre diferen-tes membros de duas equipes de pesquisa, uma francesa e outra brasileira: a equipe Culture & Comunication, do Centre Norbert Elias, na França, sediada na Universdade de Avignon et des Pays de Vaucluse,1 e o Programa de Pós-Graduação Memória Social no Brasil, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.2 Os pesqui-sadores estão empenhados em estudar a questão da memória social e da patrimo-nialização e se interessam, no contexto desta obra, pelas transformações suscitadas pela articulação dessas duas problemáticas.

O diálogo franco-brasileiro entre essas duas equipes foi tecido ao longo de diferentes projetos científicos3 que permitiram debater abordagens francesas e brasileiras em termos de museologia, de mediação dos saberes e do patrimônio. Foi também a existência de uma literatura científica que circula entre os dois países que favoreceu essa aproximação, a saber, a tradição francesa das discussões teóricas acerca da

1. O Centre Norbert Elias é uma unidade mista de pesquisa do Centro National da Pesquisa Cien-tífica (Centre national de la recherche scientifique - CNRS). Cinco pesquisadores da equipe Cultura & Comunicação colaboram nesta obra: Jessica Cendoya-Lafleur, Émilie Flon, Jean Davallon, Marie Lavorel e Cécile Tardy.2. Oito pesquisadores brasileiros desse centro de pesquisa contribuem nesta obra: Regina Abreu, Leila Beatriz Ribeiro, Renata Daflon Leite, Sabrina Dinola, Vera Dodebei, Amir Geiger, Evelyn Orrico e José Ribamar Bessa Freire.3. Destacamos, entre eles: 1. Participação conjunta na rede MUSSI (Rede franco-brasileira de pes-quisadores em mediações e usos sociais de saberes e informação), rede científica criada pela inicia-tiva de pesquisadores em ciências da informação-documentação do Brasil e da França. O projeto de pesquisa tem por objetivo desenvolver e compartilhar pesquisas conduzidas nos dois países acerca das mediações e usos sociais dos saberes e da informação. Iniciado em 2004, a proposta permite reforçar e ampliar as colaborações (publicações, colóquios, cursos, visitas, conferências, etc.); 2. A colaboração de Vera Dodebei no programa de pesquisa sobre as Mediações Fotográficas do Patrimô-nio (2009-2011), financiado pela Agência Nacional da Pesquisa na França (Agence Nationale de la Recherche - ANR), coordenado por Cécile Tardy com a participação de Émilie Flon. 3. Encontro das equipes no âmbito de colóquios internacionais: Museus e Comunicação, as exposições como objetos de estudo (Rio, 2009), Edição das publicações científicas nas ciências humanas e sociais (Avignon, 2010), Mediações e hibridações: construção social dos saberes e da informação (Toulouse, 2011).

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

temática da memória e do patrimônio (Halbwachs, Bergson, Ricœur, Choay) e as abordagens metodológicas da análise de discurso, da análise documentária e da aná-lise da imagem (Pêcheux, Gardin, Joly, Aumont), aliadas à inovação dos estudos que emergem no domínio cultural da pesquisa em ciências sociais no Brasil. Os traba-lhos conduzidos no seio das duas equipes nutriram particularmente a temática desta obra, uma que vez que o conjunto dos pesquisadores engajados nesta pesquisa se interessa fortemente há mais de uma década por três processos: a patrimonializa-ção, a memória social e a mediação:

• A análise do processo de patrimonialização permitiu estudar a produção do estatuto patrimonial dos objetos culturais, ou seja, aprofundar o conhecimento das modalidades por meio das quais os objetos materiais ou imateriais tornam-se patrimônios.

• A memória social não é abordada como um simples fato social, mas como um processo que se analisa a partir da relação da sociedade com o tempo, o espaço, a linguagem e a criação. Essa abordagem originou a terminologia brasileira de memoração, que em francês poderia ser traduzida por “mémoration”.4

• A categoria de análise da mediação permitiu o avanço na abordagem comunicacional da memória e do patrimônio, prevendo relações que se tecem entre públicos, dispositivos (tais como a exposição, o texto, a mídia digital), objetos patrimoniais e culturais, instituições, assim como permitiu a evolução das condições de circulação dos saberes.

Se a pluralidade das disciplinas científicas (antropologia, informação e comuni-cação, linguística, história) representadas nesta obra já contribui para esclarecer amplamente esses processos, desejamos também dar a palavra a uma disciplina conexa, a geografia. Seu interesse pelo patrimônio natural participa hoje da reno-vação da concepção mais tradicional do patrimônio, considerando-o menos como um resto a preservar da perda e mais como um patrimônio em processo ancorado no desenvolvimento territorial, portador de representações sociais diversificadas segundo os atores e as situações. Decidimos, portanto, convidar duas geógrafas para debater5 e apresentar seus pontos de vista acerca de nossas pesquisas no posfácio a esta obra.

4. 1o Seminário Internacional em Memória Social: memoração, patrimonialização e imagens docu-mentárias, realizado de 13 a 15 de março de 2012 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. 5. Christine Bouisset e Isabelle Dégremont, geógrafas da Universidade de Pau, foram convidados como debatedores da nossa investigação durante o seminário realizado de 21 a 25 de novembro de 2011 na Universidade de Avignon et des Pays de Vaucluse.

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INTRODUÇÃO

Este livro inscreve-se, pois, no desejo de consolidação das relações franco-brasileiras preexistentes. Visa ainda o avanço mútuo para tornar visível um campo de pesquisa transversal (a problemática conjunta da memoração e patrimonialização), desta-cando tanto o que aproxima quanto o que afasta as duas abordagens das sociedades estudadas.

Abordagens e desafios da articulação entre memória e patrimonialização

O projeto teórico que foi pouco a pouco sendo construído em torno desse posicio-namento institucional, e que ora aprofundamos e investigamos, é o de articular uma reflexão acerca das relações entre a memória social e a patrimonialização. A atuali-dade desta obra baseia-se, sobretudo, na emergência contemporânea, no Brasil e na França, de atores sociais e discursos que visam reforçar um espaço de decisão sobre o que deve ser patrimonializado e segundo quais modalidades.

A reflexão em torno dessa temática foi conduzida ao longo das nove contribuições apresentadas nesta obra, realizada por treze pesquisadores reunidos pela diversi-dade de suas competências, abrangendo do estudo da memória social ao da patrimo-nialização e da mediação dos saberes. Trata-se do acúmulo crítico desses diferentes campos que se entrecruzam a partir de um exame mais atento da relação entre memória e patrimônio. A respeito dessa questão específica, a obra busca esclarecer dois movimentos: de um lado, como a memória pode se tornar um patrimônio, ou seja, qual é o lugar da memória na patrimonialização; de outro, como o patrimônio necessita de uma memoração para existir e ser transmitido.

O primeiro questionamento sobre o devir patrimonial da memória baseia-se nas pesquisas em torno dos museus e exposições que se interessam pela reconstrução patrimonial da memória social. Como a memória é geralmente pensada como um processo contínuo exercido por um grupo social, nossa proposta é propor um outro modo de enfrentar esse processo, examinando o que garante sua continuidade, por exemplo, no contexto da entrada da memória no espaço museal. Pensamos que tal abordagem da memória renova a questão da patrimonialização sob dois ângulos. Em primeiro lugar, examina-se o estatuto dos objetos e os rastros da memória que não relevam apenas saberes dos especialistas do patrimônio, mas também das comu-nidades sociais. Em seguida, examina-se a criação de formas de representação da memória que permitem sua recomposição para torná-la visível, tanto para as pessoas mais próximas ao campo interdisciplinar quanto para aquelas que se encontram nas fronteiras disciplinares a essa memória social.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

O segundo grande questionamento que fazemos nesta obra ressalta o desafio da memoração do patrimônio. Do ponto de vista da patrimonialização, todo patrimônio deve sua existência a um processo de construção social. Esse processo de cons-trução social não é isento de tensões e requer a identificação dos tipos de discurso patrimoniais e dos jogos complexos e dinâmicos pelos quais se define a legitimidade dos enunciados. No Brasil, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1988, novos temas sobre direitos coletivos têm emergido e ocasionado discursos singula-res sobre a patrimonialização. Se esse processo já foi, em sua globalidade, objeto de pesquisas, trata-se, hoje, de se desenvolver conhecimentos aprofundados sobre momentos específicos.

Esta obra objetiva, principalmente, atualizar a análise do papel das mediações docu-mentais na patrimonialização. A documentação responde à necessidade de conhe-cimentos relacionados aos objetos do patrimônio, bem como à preocupação pela preservação e transmissão ao longo do tempo. Mas leva também a construir repre-sentações distintas dos patrimônios que têm sua própria autonomia em termos de circulação social. Trata-se aqui de propormos uma reflexão sobre os representantes – ou os substitutos – documentais dos patrimônios e sobre sua capacidade de infor-mar sobre o objeto original, permitindo-lhes novas formas de interpretação, mani-pulação e qualificação. A memória será levada em conta em suas dimensões, tanto técnicas (ferramentas de estocagem e de reserva) como documentária (constituição de uma documentação estruturada) e social (práticas e usos sociais).

Esses dois movimentos constituem dois modos de abordar numa mesma pesquisa a relação entre memória social e patrimônio. Nenhum desses dois termos (patrimônio e memória) será tomado isoladamente; a questão patrimonial será examinada do ponto de vista da memória, e a questão da memória será enfrentada sob o ângulo de seu devir patrimonial. Assim, o fio condutor que estrutura o conjunto da obra é o exame da construção simultânea entre a memória social e a patrimonialização.

Pode-se falar de novos patrimônios?

A expressão “novos patrimônios”, evocada no título desta obra, designa habitual-mente patrimônios emergentes na sociedade; a categoria pode se manter mesmo que o interesse por eles tenha se perdido há vários anos. Em nossa opinião, a expres-são tem o mérito de chamar a atenção para dois fatos. O primeiro é que ela designa geralmente patrimônios (o patrimônio etnológico, o patrimônio vivo ou, ainda, o patrimônio imaterial) a partir dos quais os pesquisadores em ciências sociais mos-traram que a concepção do patrimônio não correspondia a um patrimônio herdado,

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INTRODUÇÃO

l egitimado por saberes principalmente históricos, conservados e transmitidos apenas pelas estruturas museais e patrimoniais. O segundo fato refere-se aos patrimônios chamados de novos e que permitiram renovar o olhar sobre todos os patrimônios – quer sejam os patrimônios genéticos, arqueológicos, vivos, antropológicos, naturais, paisagísticos, materiais, imateriais, digitais –, em vista de se refletir sobre a memória social e sobre como ela deve fazer evoluir a concepção mesma da patrimonialização. Está em jogo aí a redefinição das relações do patrimônio ao tempo, às práticas e aos sujeitos sociais. Multiplas fronteiras, – geralmente estabelecidas entre especialistas e públicos, conservação e transformação, preservação do passado e antecipação do futuro, continuidade e recontextualização, identidade e apropriação – misturam-se e convidam os pesquisadores a colocar os termos do alcance da memória social para esses patrimônios.

Três tipos de patrimônios – imateriais, digitais, paisagísticos – atravessam em níveis diversos as análises expostas ao longo desta obra. A especificidade de cada um deles é a de terem servido de ponto de partida para a construção de nossa pesquisa sobre a articulação entre memoração e patrimonialização.

O patrimônio imaterial (música, canto, dança, savoir-faire) suscita a questão da mate-rialidade e dos saberes que permitirão assegurar sua continuidade caso esteja amea-çado de desaparecimento ou de fragilização, seja para garantir sua maior visibilidade, em escala nacional e internacional, seja para afirmar o reconhecimento cultural de grupos sociais. A obra mostra essa variedade de desafios que acompanha a inclusão do patrimônio imaterial. O contexto de uma preservação que poderia ser qualificada como urgente, quando o passado ainda não desapareceu mas está ameaçado de sê-lo, indaga o modo de construir um conhecimento distanciado sobre uma memória que é próxima de nós (como uma guerra civil) e, sobretudo, o lugar do testemunho na construção dessa representação ainda recente da memória. A preservação de um savoir-faire que desapareceu definitivamente, como a arqueologia, por exemplo, exige reencontrar a memória dos gestos passados e reconstituí-la por meio das instruções posteriores com relação às quais os conhecimentos científicos inscrevem-se na pers-pectiva de uma narração atual. Destacamos também a questão do reconhecimento dos direitos coletivos de diferentes grupos sociais no Brasil quando falamos de patri-mônio imaterial, já que este é caracterizado por sua forte ancoragem na vida social. Atualmente, uma instituição cultural internacional como a UNESCO se debruça sobre a elaboração de guias de boas práticas para a preservação do patrimônio imaterial. Estas consistem em identificar modelos de preservação duráveis e organizar sua transmissão aos diferentes atores envolvidos. Na qualidade de pesquisadores, propo-mos, de forma mais ampla, analisar a forma de implementar práticas para reconstruir, perpetuar, mediar a memória social relacionada ao patrimônio imaterial.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

O patrimônio digital e o patrimônio digitalizado não devem ser confundidos. O patri-mônio digital é tanto um objeto digital quanto uma ferramenta, que serve para fazê-lo funcionar. Patrimonializar sítios eletrônicos significa construir, de algum modo, uma metarepresentação digital. O patrimônio digitalizado remete à existência de um objeto original que existe numa materialidade diferente e cuja digitalização per-mite conservar uma imagem. Portanto, ambos põem em jogo a questão do uso da memória social na qualificação do patrimônio e o próprio estatuto daquilo que se faz patrimônio. No caso de coleção de objetos patrimoniais digitalizados, a mediação documentária, que consiste em elaborar uma documentação digitalizada da cole-ção, questiona as modalidades de apropriação dos patrimônios sob a forma digi-tal. Colocá-los virtualmente na página eletrônica de museus promove a mudança da linha divisória entre as memórias legítimas (cientificamente) dos especialistas, que os tinham qualificado até então, e as memórias sociais que foram ativadas por essas modalidades digitalizadas de representação do patrimônio. No caso do patrimônio digital, trata-se menos da questão dos usos de um patrimônio reconhecido como tal do que da questão do estatuto do patrimônio alocado a objetos recentemente produzidos e em quantidade industrial. A memória social deve hoje enfrentar o que a memória informática permitiu fabricar estatuindo sobre o que deve ser conservado e as modalidades de reserva dos objetos informáticos e de seus usos. Pode-se indagar sobre como as escolhas técnicas e semióticas podem modificar nosso olhar sobre a memória dos patrimônios e informar nossas relações com estes últimos.

O patrimônio paisagístico distingue-se pelo caráter vivo e evolutivo. Não se apre-ende como um patrimônio passado a ser conservado da perda, mas como um patri-mônio a ser administrado pelas gerações atuais e futuras. Ninguém pode dizer o que ele é nem o que será, pois se caracteriza por uma transformação permanente. Sua patrimonialização necessita antes recorrer a modalidades de vigilância e acom-panhamento de mutações do que de manutenção de elementos imóveis. Não se trata, nesse caso, de memorizar objetos do passado, mas de colocar em prática um método de memoração que permita, de um lado, tornar visíveis patrimônios que se tornaram invisíveis por sua inserção no contexto da vida, e, de outro, tornar inteligí-veis os desafios de sua gestão para o futuro. Esse processo de memoração que dá suporte à visibilidade do patrimônio e a antecipação possível de uma ação de pre-servação introduz, segundo nosso ponto de vista, um outro modo de abordar o duplo questionamento daquilo que a memória faz ao patrimônio e daquilo que o patrimônio faz à memória. Com o patrimônio paisagístico, estamos no caso extremo de uma patrimonialização que não pode existir sem um trabalho de memória social. Trata-se de capturar, para se analisar, esse papel específico da memória na fabricação de um patrimônio irremediavelmente incorporado – sem a possibilidade de descolamento físico – na vida social.

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INTRODUÇÃO

A obra não foi organizada segundo os diferentes tipos de patrimônios, o que não faria sentido diante da diversidade dos contextos franceses e brasileiros, nem, sobre-tudo, diante de nossa abordagem do patrimônio de acordo com os processos que o constituem. Propõe, ao contrário, observar situações, práticas, instituições, atores, processos e dispositivos de mediação, nos quais a questão da memória social e da patrimonialização é colocada de diversas maneiras. A obra dedica-se, assim, ao exame do modo como a memória social ocorre nas sociedades francesa e brasileira para construir patrimônios frequentemente singularizados por seu caráter ao mesmo tempo evolutivo, invisível e próximo.

O desafio de uma obra franco-brasileira, teórica e prática

Este livro ambiciona atingir, ao mesmo tempo, o público específico das ciências humanas e sociais (pesquisadores, professores e estudantes), interessados na pro-blemática da memória social e da patrimonialização, e os profissionais que traba-lham no campo da valorização do patrimônio e da memória. Os autores propuseram, igualmente, articular estreitamente as abordagens francesas e brasileiras, a fim de colocar em evidência tanto as semelhanças quanto as diferenças existentes entre elas. Esperamos que essa hibridação na organização dos textos possa fomentar a reflexão em nossos leitores, como também proporcionar a composição, a seu modo, das relações entre memória e patrimônio.

A primeira parte da obra, com enfoque teórico, apresenta três contribuições, uma francesa e duas brasileiras, abordando pontos de vista de renomados pesquisadores acerca da questão. Eles confrontam suas abordagens sobre a temática da relação entre memória social e patrimonialização e proporcionam a descoberta de sínteses teóricas que trazem uma visão panorâmica sobre a questão.

A obra começa pela síntese teórica de uma importante literatura científica, feita por Vera Dodebei, a partir da qual ela depreende três processos de transmissão da memória. Ela exporá, assim, alternadamente: o modo de transmissão por dis-solução das memórias numa única memória segundo um processo de integração e transformação no âmbito de um grupo social; a seguir discute a acumulação das memórias fundamentada na técnica da escrita e dos suportes analógicos; e por fim o modo híbrido que mistura os dois anteriores acionando a contribuição da memória eletrônica que dilui as lembranças – por reformatação e produção coletiva –, ao mesmo tempo em que autoriza sua acumulação por meio da reprodução da infor-mação. Para a autora, vivemos em dois mundos, no mínimo, simultaneamente: um

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

mundo analógico e um outro digital. Em ambos os casos, as memórias e seus valores enquanto documentos e patrimônios são construídos, circulam deixando rastros e se dissolvem. A ideia de patrimônio institucional é recente e sua representação e registro documental apresentam conflitos em relação à natureza da memória, que é totalmente virtual.

O exercício teórico realizado por Jean Davallon (2006) consiste em interrogar a evo-lução de seu modelo da patrimonialização, elaborado a partir do caso do patrimô-nio material quando deslocado para patrimônio imaterial. O desafio da abordagem é colocar em discussão a etapa da ruptura entre o mundo da origem dos objetos patrimoniais e o mundo presente. Essa ruptura era vista como necessária à produção patrimonial, ainda que aparentasse não ser mais efetiva com o patrimônio imaterial que garantiria uma continuidade entre os dois mundos. Porém, no caso de uma tal continuidade, pergunta-nos o autor, “que diferença haveria entre as definições cultu-ral e jurídica do patrimônio?” Esse capítulo permite analisar o processo de transmis-são do patrimônio imaterial, observando habilmente como se dá a passagem de uma transmissão na sociedade para uma transmissão sobre a sociedade. Os desafios teóricos em torno desses modos de existência do patrimônio imaterial na sociedade são explicitados por meio do exemplo simples e eficaz dos cantos tradicionais da Córsega, com várias vozes, inscritos na lista da UNESCO de preservação de urgência do patrimônio cultural imaterial.

A parte teórica deste livro é concluída com a contribuição de Regina Abreu, que erige um panorama histórico e analítico dos processos de patrimonialização em torno de três momentos. O primeiro: do século XIX à primeira metade do século XX, em que os processos de patrimonialização baseiam-se na reconstrução do passado (História) ou na busca e valorização de uma arte nacional. O segundo situa-se nos anos 1940, com a criação da UNESCO: nesse, os processos de patrimonialização integram uma nova e importante variável relativa ao conceito antropológico de cultura que deveria facilitar uma compreensão entre os seres humanos. E, enfim, o terceiro: no início dos anos 1980, quando instaurou-se, segundo a autora, a “patrimonialização das diferenças”, devido às recomendações emitidas, sobretudo, pela UNESCO no que concerne à preservação das singularidades ou especificidades locais para além do movimento de homogeneização que está se desenvolvendo no mundo. A autora se interessa particularmente por esse terceiro momento ao sublinhar as diferentes ten-dências: instauração de listas de salvaguarda dos patrimônios imateriais em perigo, mundial, oral, etc., conflitos e tensões entre os organismos governamentais e não governamentais e desafios sobre a visibilidade pela corrida aos selos patrimoniais e a midiatização de sítios eletrônicos das instituições reconhecida s no campo patri-monial.

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INTRODUÇÃO

A segunda parte desta obra articula-se em torno de uma série de estudos de caso. O princípio é mostrar, a partir de casos concretos, como a relação entre memória e patrimônio é estudada nas sociedades brasileira e francesa, uma vez que a questão memorial e patrimonial é uma realidade inscrita nas instituições culturais e patri-moniais e nas práticas sociais. Esta segunda parte não é uma mera ilustração da primeira parte teórica. De fato, são desenvolvidas aí análises concretas que trazem à tona o que ocorre nos campos estudados e o modo como os pesquisadores obser-vam e compreendem aquilo que se tece entre os processos de patrimonialização da memória e de memoração do patrimônio.

O estudo de caso que abre esta segunda parte da coletânea, apresentado por Evelyn Orrico, Amir Geiger e Sabrina Dinola, debruça-se sobre o modo como documentários resgataram do esquecimento a música popular brasileira e como esse tipo de filme participa, por intermédio do discurso que veiculam, da patrimonialização. O patrimô-nio é considerado como uma construção simbólica que necessita de um processo de mediação não apenas técnico, mas expressivo, que mobiliza a lógica e a magia do que retrata. O filme documentário é, assim, um instrumento de mediação que torna possível a memorização da música e a construção social de uma memória da música popular brasileira a partir da seleção de certos artistas em lugar de outros. Por meio da análise e da construção do discurso dos filmes documentários, os auto-res exploram a tensão entre reconhecimentos sociais e esquecimentos que marcam a trajetória musical, especialmente de quatro artistas brasileiros.

Por meio da análise do blog Índios On-line, José Ribamar Bessa Freire e Renata Daflon Leite abordam o papel das tecnologias digitais da informação e da comunicação na construção do patrimônio e da identidade indígenas. Questionam a concepção clás-sica de uma memória constituída a partir do passado para outra que, ainda que pos-suindo caráter processual, mostra-se efetivamente mais colaborativa. Para os índios da etnia Guarani, o passado não se coloca antes do presente, mas no presente. As mídias digitais, ao reforçarem o reencontro entre as culturas indígenas tradicionais e as culturais da sociedade industrial, favorecem um movimento memorial incessante e contínuo. A análise do blog interétnico Índios On-line mostra que o patrimônio em rede é mais uma prática social viva do que uma herança a ser fixada para sua con-servação. Os autores evidenciam, por meio dos estudos das práticas desse tipo de blog, os modos de subjetivação, tais como o estatuto – variável – dos autores e as diferentes posições dos sujeitos na mobilização interétnica para garantir os direitos indígenas e a reconstrução patrimonial.

Urbano, o Aposentado, personagem da tira em quadrinhos de mesmo nome, publi-cado num jornal carioca, coleciona objetos inúteis. Por meio do exemplo dessa

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

coleção de inutilidades, Leila Beatriz Ribeiro reflete sobre a lógica extrema da memó-ria e da patrimonialização, que consistiria em testemunhar a história da materialidade das coisas a partir daquilo que o homem rejeita. “Tudo guardar, nada descartar”: a tarefa de Urbano é transmitir, através desses objetos acumulados, a história de uma sociedade de consumo, uma sociedade de desestruturação, uma sociedade do desperdício. A autora mostra que essa coleção foi feita de modo a se colecionar a si próprio. Urbano, o Aposentado, coleciona-se a si mesmo, ou seja, o antigo. Essa categoria social tem sua importância numa sociedade, tal como a sociedade brasi-leira, que contém um número cada vez maior de idosos. Assim, pergunta a autora: qual seria o sistema de valores da nossa sociedade em relação aos representantes humanos e materiais de uma cultura industrializada?

A partir do caso do aplicativo Musée Urbain MTL, para download no Iphone, produzido pelo Museu McCord, de Montréal, Cécile Tardy investiga os riscos da transformação digital nas coleções patrimoniais enfrentados hoje por várias instituições museais mundo afora, desde o momento em que se investe em programas de digitalização. A partir dos substitutos digitais de suas coleções, o museu está apto a reinventar a relação que liga a sociedade aos objetos do passado e à própria instituição museal. O Museu pode voltar-se para formas de representação da memória social de nosso passado, não mais a partir de objetos patrimoniais, mas de suas imagens em inúme-ros dispositivos com tela que se prestam a sua projeção nas mais diversas situações. A autora busca compreender os mecanismos de transferência da garantia de auten-ticidade ligados à instituição museal para outros espaços socioeconômicos, como o turismo urbano. Os substitutos são daí em diante investidos em diferentes lógicas de uso e de representação, entre conservação, mediação e marca.

A propósito das ilustrações em arqueologia, Émilie Flon ultrapassa– e dá conta – os debates sobre a avaliação da veracidade das informações que são supostamente expostas, enquanto documentos de conhecimento, ao abordar as ilustrações em termos de testemunho. À posição social do ilustrador junta-se o testemunho: ele é convidado a certificar a realidade que ele representa, dando-lhe a oportunidade de interpretar. Seu trabalho é feito a partir do conhecimento arqueológico, e também das culturas visuais e sociais dos arqueólogos e artistas. A vantagem dessa aborda-gem pelo testemunho, desenvolvida pelo autor para compreender o estatuto das ilus-trações em arqueologia, é, de um lado, analisar as ilustrações como uma mediação no espaço público da memória social de um passado arqueológico inacessível, e, de outro, reconhecer o papel das ilustrações para a patrimonialização, na qualidade de uma construção social de um passado comum.

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INTRODUÇÃO

Por fim, esta coletânea aborda o caso do tratamento dado pelos museus às memó-rias conflituosas e traumáticas por meio de dois exemplos: o primeiro é o das exposições do quadro de Picasso, Guernica, produzido no contexto da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) – atualmente exposto no Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia –, e o segundo é o da representação da deportação durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) no Museu da Resistência e da Deportação, em Grenoble (Isère), na França. Jessica Cendoya-Lafleur, Marie Lavorel e Jean Davallon confrontam esses dois casos para analisar a patrimonialização da memória no contexto museal. Retomando o modelo do processo de patrimonialização definido por Jean Davallon (2006), os autores analisam duas etapas particularmente delicadas no caso dessas memórias que poderíamos qualificar como sensíveis: a da passagem das memórias do Guernica a uma história oficial e a da construção de uma representação nego-ciada do evento traumático da deportação entre a memória do testemunho e os conhecimentos do historiador.

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Primeira parte. Abordagens teóricas

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Memoração e patrimonialização em três tempos: mito, razão e interação digital

Vera Dodebei

Os tempos da memória

Memória e patrimônio são dois temas que vêm ganhando presença cada vez mais intensa nos meios de comunicação contemporâneos. Dos livros e artigos científicos veiculados em mídias tradicionais aos blogues construídos no espaço ubíquo da web, estudos sobre memórias on-line e patrimônio digital ganham destaque. No entanto, pouco tem sido investigado empiricamente sobre criação, manutenção e dissolução de registros de memórias e de bens patrimoniais na web. Mais escassas ainda são as elaborações teóricas que tratem especificamente das relações entre as práticas memorialistas e patrimoniais e as mídias eletrônicas.

De acordo com a proposta geral desta obra, o objetivo deste capítulo é colocar em diálogo conceitos já consolidados nos campos da memória e do patrimônio com aqueles inerentes aos campos da computação, informação e comunicação. Dito

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

de outro modo, a intenção é a de verificar como conceitos criados em ambiente analógico se comportam, se adaptam e se transformam quando transpostos para o ambiente virtual. É importante ressaltar que o ambiente virtual opera apenas com números; portanto, quando os registros memoriais e patrimoniais deixam o mundo analógico das sensibilidades corporais transformam-se em representações numéri-cas que potencialmente possuem significado.

Memória e patrimônio constituídos no ambiente virtual são sempre mediados por objetos informacionais. Esses objetos ou códigos numéricos se metamorfoseiam em imagens que são seus substitutos. Todo este processo de “vestimenta” dos códigos é feito por programas computacionais, construídos em sua maioria para permitir que as pessoas se comuniquem. A vestimenta dos códigos numéricos funciona como nossa pele que nos confere identidade. Quer seja por símbolos visuais criados para a escrita textual ou figurativa, quer seja por símbolos sonoros, nos comunicamos eletronicamente por números. Nossa epígrafe é uma equação fractal que nos serve como exemplo da estrutura matemática da informação1.

Durante quase vinte séculos, a cultura ocidental considerou as dimensões tempo e espaço como atributos independentes e, portanto, nos habituamos a pensar que os espaços são fixos e que o tempo é linear, caracterizando o passado, o presente e o futuro (Dodebei, 2000). Com a ciência contemporânea, fomos obrigados a repensar esse estatuto do tempo e do espaço e instados a buscar outras explicações que des-sem conta dessa nova “desordem” característica do ambiente caótico no qual esta-mos imersos ao considerar o mundo informacional em que vivemos. Identificamos que o conceito de “acontecimento” desenvolvido pelos estoicos e exemplificado por Deleuze (1974, p. 6) pode nos ser útil para compreender a circularidade do tempo, como a seguir: “Só o presente existe no tempo e reúne, absorve o passado e o futuro, mas só o passado e o futuro insistem no tempo e dividem ao infinito cada presente. Não três dimensões sucessivas, mas duas leituras simultâneas do tempo”.

Essa concepção sobre o tempo e suas consequências para o estatuto da memória eclode com o advento das redes eletrônicas e do fenômeno da globalização, que vêm atualizar o discurso sobre a circularidade do tempo e a virtualidade do espaço, ao destacar o presente como única possibilidade temporal, da mesma forma que pensado pelos estoicos. O espaço virtual e o tempo real passam a fazer parte da vida

1. Curva de Koch: se considerarmos cada passo, notamos que, para passar de uma linha para a seguinte, substituímos três segmentos por quatro de igual comprimento, ou seja, o comprimento total é multiplicado por 4/3. O limite da sucessão geométrica de razão 4/3 é o infinito, o que significa que a figura final (ou para a qual tende esta sucessão) terá um comprimento infinito (designado por Mandelbrot como “infinito interno”), disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Curva_de_Koch, consultado em 8 de novembro de 2014.

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cotidiana das pessoas, evidenciando a função da técnica midiática em nos manter no tempo presente e no espaço ubíquo.

No entanto, a sensação de que estamos presos ao tempo presente pode também ser ilusória, quer dizer, imaginamos viver apenas o presente, mas, de fato, ele está sem-pre nos escapando. As relações sociais representadas por redes que se conectam a uma velocidade só possível pelo avanço da tecnologia da comunicação e informa-ção vêm nos revelando que os tempos clássicos que configuravam a memória (pas-sado-presente-futuro) estão sendo percebidos de maneira peculiar na atualidade. Ao contrário da presentificação do tempo, podemos ter a sensação – como já nos indi-cava Walter Benjamin (1985) sobre a perda da experiência com o advento da infor-mação – de que não interessa vivenciar o presente em sua intensidade. Pois, hoje, mais vale registrar, “clicar” o momento presente para comunicá-lo e socializá-lo nas redes, resguardando assim o que já passou, do que imergir na ação da qual se está participando e retê-la na memória individual. Todos se registram por suas câmeras fotográficas em tempo integral e compartilham essas imagens com seus “amigos” e “seguidores”. Quer parecer-nos, então, que a preocupação de uma grande parcela das sociedades contemporâneas se encontre mais fortemente ancorada no binômio passado-futuro ao evitar a experiência do presente.

Não é por outra razão que a fotografia, por exemplo, é um dos principais artefatos que têm um elevado poder de evocação de lembranças. A técnica ou reprodutibili-dade técnica (analógica e digital) coloca, em frações de segundos, a mesma imagem na caixa digital de centenas de milhares de pessoas que estão conectadas em rede de comunicação eletrônica. A tecnologia nos permite, assim, perceber o tempo e o espaço de maneiras singulares. Pensamos que o que acontece com a memória é algo semelhante à percepção que temos do tempo. Se guardamos uma experiência vivida em nossa memória pessoal, esta experiência é sempre da ordem do presente, porque o estado ou a qualidade da memória é o movimento, a constante atualização de informações/lembranças. A virtualidade da memória, conforme nos indica Berg-son (1999), impõe-nos sempre o presente e nos impossibilita identificar o passado. Quando registros técnicos – representações de memórias interiores/naturais – são criados, suas existências são possibilitadas pela tecnologia disponível em determi-nado tempo e espaço. Nesse sentido, as memórias externas, artificiais, auxiliares ou exomemórias formadas por esses registros podem ser consideradas materiais do passado.

Os registros técnicos, restos, rastros, traços ou vestígios memoriais (designações que variam conforme o ponto de vista teórico empregado) constituem, em sentido amplo, os arquivos. Neste momento, importa compreender a influência da técnica

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midiática na constituição das exomemórias, além de compreender como essa influ-ência transforma a própria construção da memória. Deste ponto em diante, podemos distinguir memória, sempre virtual, de registros memoriais, que habitam as memó-rias externas/artificiais.

Os objetos, considerados como informações individuais, podem ser representados por fotografias pessoais, filmes, peças arqueológicas, museológicas, bibliográficas, arquivísticas, ou mesmo peças imaginárias. As narrativas, compreendidas sob uma perspectiva plural ou coletiva, seriam representadas por exposições, mostras, textos literários, entrevistas. Objetos e narrativas não são mutuamente excludentes, o que poderá gerar o conflito já amplamente discutido no campo da memória sobre sua condição de subjetividade e coletividade. Quando o conceito de lembrança é trans-posto do nível individual para o coletivo, a operação feita é de natureza metafórica: memória nacional, memória religiosa, memória literária. A memória pode ser estu-dada então do ponto de vista individual, o que é objeto principal das neurociências, e pode ser compreendida do ponto de vista de uma construção social em que grupos sociais criam um passado compartilhado com a ajuda do contexto social, das mídias.

Os diferentes modos de “lembrar” correspondem a uma grande disputa de opiniões no campo dos estudos sobre a memória. Maurice Halbwachs (2004), ao opor história e memória, leva-nos a compreender que a primeira diz respeito apenas ao passado (morto) e a segunda reflete um presente (vivo). Essa polaridade faz com que Pierre Nora apresente “os lugares de memória” como uma possibilidade (inter) mediada entre a história e a memória. Podemos considerar que existem diferentes modos de lembrar a partir das diversas culturas. Esse enfoque parte do pressuposto de que o passado não está dado, mas, ao contrário, deve ser continuamente construído e apresentado2.

Com certeza, o legado de Maurice Halbwachs é indiscutível, inicialmente por ter cunhado a expressão “memória coletiva”, mas também por ter iniciado as discussões dos “quadros sociais da memória” (1925) em que os conceitos de memória individual e memória coletiva se apresentam em disputa. Com seus estudos sobre as memó-rias familiares, Halbwachs (2008) alimenta as posteriores discussões sobre a história oral; com sua pesquisa sobre a memória de comunidades religiosas, ele acentua os aspectos topográficos da memória, antecipando, assim, a noção de “lugares de memória”. (Nora, 1993)

2. A expressão usada por muitos autores é reconstruir e reapresentar. Eu prefiro retirar a partícula “re”, que denota a ideia de repetição, uma vez que a memória possibilita sempre uma (nova) criação e não uma repetição de algo já dado.

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Paul Ricoeur afirma que o objeto da memória é, certamente, a lembrança (mnme = que); que a recordação (anamnesis = como) é o processo de busca dessa lembrança; e que o importante não é quem se lembra, mas o que é lembrado. Ao suavizar o quem das preocupações com o estatuto da memória, Ricoeur nos livra da tensão perma-nente entre memória individual e memória coletiva. Vale ressaltar que não é intenção do autor eliminar uma ou outra memória, vinculada ou ao indivíduo, ou ao coletivo. Está claro, na introdução de sua obra, que o caminho a percorrer vai do “o quê?” ao “quem?” passando pelo “como?”, isto é, da lembrança à memória refletida, passando pela reminiscência. (Ricoeur, 2007, p. 24)

A memória pode ser também compreendida sob uma dimensão cultural, o que a aproxima do contexto digital contemporâneo, ao abarcar fronteiras de outras discipli-nas que têm o passado como material de estudo, como a história, a arqueologia, as ciências da informação. Astrid Erll apresenta uma genealogia e as ramificações dos estudos sobre memória cultural que, na verdade, compõem a obra organizada por ela e por Ansgar Nünning. Essa genealogia representa o domínio dos estudos sobre a memória que, embora remontem a Platão e Aristóteles, têm seu desenvolvimento pleno no século XIX, alcançando o boom (Huyssen, 2000), ou a boulemie mémorielle (Nora, 1997) nas últimas décadas do século XX. O conceito de Pierre Nora (1993, p. 1-78) dos “lugares de memória”, por exemplo, muito ajudou a consolidar a metáfora de uma memória coletiva, assim como o conceito de memória cultural (kulturelles Gedächtnis) defendido por Jan e Aleida Assman (2008), que enfatizam a contribuição de Halbwachs sobre seus estudos de comunidades cujas memórias pudessem alcan-çar centenas de anos, o que representa uma forte ligação com a cultura.

Sob a perspectiva da mediação memorial e patrimonial de objetos/narrativas exis-tentes em ambiente virtual, não podemos deixar de considerar a ideia de “memória mediada” proposta por Jose van Dijk (2007). O conceito procura entrelaçar o social e o individual e enfrentar as modalidades contemporâneas de estabelecimento de vínculos entre o passado e o presente. O pressuposto de Dijk é que os artefatos individuais estão inseridos em modos (compartilhados socialmente) de registrar e rememorar o passado. Tais modos estão, por sua vez, estreitamente relacionados às mídias utilizadas. Fotografias ou imagens em movimento do núcleo familiar evi-denciam uma prática compartilhada de viver o presente. Essa autora reconhece a importância de Halbwachs para a fundamentação de um campo de saber sobre a memória, porém propõe um modelo teórico que transcende o pai fundador da socio-logia da memória. As obras de Henri Bergson e Gilles Deleuze (1999, 1988 e 1999) constituem-se em pontos importantes de sua abordagem, que procura estabelecer relações com o campo da psicologia cognitiva. A partir deste diálogo teórico emerge um modelo que trata também da possibilidade criativa nos registros da memória,

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mas que se propõe a uma investigação de caráter cultural, ampliando as premissas de Bergson e Deleuze. (Dijk, 2007, p. 127-129)

Para incluir todos os adjetivos impostos à memória, entendemos que seu campo de estudos pode ser nomeado “memória social”. Mas entendemos também que a memória (quer seja coletiva, cultural ou social, mediada ou virtual) é uma abstra-ção do pensamento e uma metáfora da suposição que fazemos de nossa memória individual. No máximo, poderíamos afirmar que essas memórias são uma extensão imaginada de nossa memória individual. (Dodebei, 2005, p. 27-39)

Posta essa questão, levantamos a seguinte hipótese: se os modos de transmissão do saber estão atrelados às condições tecnológicas da sociedade, a produção de memó-rias se daria a partir de três processos memoriais ou de memoração. O primeiro está diretamente ligado à ideia de dissolução de memórias, que pode ser explicitado pela transmissão oral do conhecimento que não gera registros memoriais. Neste modo, as memórias são de natureza processual, não cumulativa e se dissolvem quando o grupo social as incorpora e as transforma, cedendo espaço para a criação de novas memórias. Assim, não há acúmulo, repetição, origem ou autoria memorial, pois a memória é sempre um único produto, como o exemplo da memória virtual de Henri Bergson (1999). O segundo modo de produção de memórias é da ordem da soma, da adição, o que significa que a ideia de acumulação faz parte de sua memoração. E, como é de todo impossível possuir a totalidade de lembranças em nossa memória individual, a sociedade cria, com a ajuda da técnica da escrita e dos suportes ana-lógicos, as memórias artificiais que são os objetos auxiliares da memória individual. Deste conceito de acumulação nascem as angústias da perda, da falta, do erro e as consequentes ações de proteção “patrimonial” de lembranças. O terceiro modo de produção de memórias pauta-se por uma hibridação dos anteriores, quer dizer, um misto de dissolução e acumulação, que arriscaríamos denominar provisoriamente de interação. Seguimos, neste caso, a ideia de metamorfose da interatividade de Kaplan (2009) em que os objetos memoriais são interfaces privilegiadas de um universo digital. Este modo de produção de memória requer a interação homem-máquina e incorpora às memórias artificiais a chamada memória eletrônica. No ambiente on-line (virtual eletrônico), as lembranças depositadas ou comunicadas se, por um lado, se dissolvem nos processos de reformatação e autoria coletiva, por outro lado, podem ainda gerar acúmulo, pois as tecnologias atuais possibilitam a reprodução da informação em várias mídias, garantindo a existência de registros tanto analógicos quanto digitais.

Para demonstrar nossa hipótese, traçaremos uma síntese do pensamento de autores que, direta ou indiretamente, utilizam essa argumentação, ao analisar a criação e a

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circulação de registros memoriais. Os meios de memória são considerados discursos de natureza espaço-temporal já clássicos na literatura historiográfica e das ciências sociais, como indicado nas obras de Leroi-Gourhan (arqueólogo) e Jack Goody (antro-pólogo social), citados por Jacques Le Goff (historiador medievalista) em História e memória (Le Goff, 2003), especialmente aqueles relacionados com a oralidade e a escrita. Mas são ainda pouco discutidos no que se refere ao estágio contemporâ-neo dos registros memoriais em ambiente on-line, exceção feita para as análises de Pierre Lévy (1993, 1998, 2003, 2005, 2007) e para alguns teóricos (Lemos, 2007; Manovich, 2001, 2003, 2008; Kaplan, 2009) que pesquisam os espaços híbridos que combinam ambientes analógico e digital, ou as chamadas interfaces.

Segundo Le Goff, da Pré-História à Antiguidade, surge a ideia de que a memória, no âmbito da cultura oral, é eminentemente coletiva. A sociedade memorial é repre-sentada por homens-memória que têm por função transmitir os conhecimentos práticos, técnicos, de saber profissional. A memória é narrativa, criativa e pauta-se pelos interesses de uma construção generativa dos mitos de origem e dos saberes técnico e mágico-religioso. Com o desenvolvimento da técnica, a memória medieval encontra-se em equilíbrio entre o oral e o escrito. A ideia de reprodução mnemônica e de memória repetitiva se faz presente com a criação de comemorações, monu-mentos e documentos. O modo de pensar é alterado por esta tecnologia midiática – a escrita – em que nomear é conhecer, gerando nas sociedades novas aptidões intelectuais. Intensifica-se, assim, a consciência do esquecimento e, com ela, a ins-tituição de meios de memória representados por um aumento considerável na cria-ção de arquivos, bibliotecas e museus. Nesta fase, a memória está em expansão; o sentido de acumulação é preponderante ao da dissolução. A era da escrita faz sur-gir as memórias artificiais, auxiliares, já que é impossível ter homens-memória que absorvam individualmente toda a produção do conhecimento registrado. A memória na idade contemporânea é pouco discutida por Le Goff, que apenas indica ser ela a mais complexa, por acomodar, de certo modo, as características das anteriores com a estrutura dos bancos de dados e da memória eletrônica (dos computadores).

Para Jack Goody, as principais mudanças na estrutura social surgem a partir de três fatores principais. O primeiro foi o desenvolvimento de formas intensivas de agricul-tura que permitiram a acumulação de superávit – o superávit explicava muitos aspec-tos da prática cultural, do casamento aos funerais, assim como a grande divisão entre as sociedades africanas e europeias. Segundo, as mudanças sociais podem ser explicadas em termos da urbanização e do crescimento das instituições burocráticas que modificaram ou eliminaram formas tradicionais de organização social, como a família ou a tribo, passando-se a identificar civilização com “cultura da cidade”. E, em terceiro lugar, Goody atribuiu grande peso às tecnologias da comunicação como

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sendo instrumentos de mudança psicológica e social. Ele associou a era da escrita com a tarefa de gerenciamento do superávit. Em um importante artigo com Ian Watt (Goody e Watt, 1963), o antropólogo social defende a tese de que o desenvolvimento da ciência e da filosofia na Grécia clássica foi fortemente influenciado pela invenção de um sistema eficiente de escrita, ou seja, do alfabeto3.

Pode-se, assim, inferir que o sentido de acumulação de qualquer tipo de bem social inicia-se com o seu excesso, em termos econômicos, com o superávit. A represen-tação desses bens propiciada pelo sistema de escrita faz com que tenhamos a sen-sação de poder acumular tudo que produzimos, deixando-nos com a impressão de que aquilo que nos escapa é esquecido ou perdido, o que aponta para uma falha ou, no mínimo, uma situação indesejável. Somos educados para não esquecer, o que é contrário ao funcionamento de nossa memória individual, por exemplo. O escritor Jorge Luís Borges (2000) e Viktor Mayer-Schönberger (2007) nos dão bons exemplos dessa falácia de tudo lembrar.

Borges, no conto Funes, o memorioso, nos indica que lembrar todos os segundos de uma existência é impedir a própria condição de existir, como observado por Irineu Funes, “[...] o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido [...] minha memó-ria, senhor, é como o despejadouro de lixos”. Mayer-Schönberger, ao discutir sobre a arte de esquecer na era da computação ubíqua em seu preprint do repositório da Harvard University, diz:

Como seres humanos, temos a capacidade de lembrar e de esquecer. Durante milênios, esquecer foi fácil e lembrar foi difícil. Em princípio, esqueceríamos. A tecnologia digital inverteu essa condição. Hoje, com espaço de armazenamento economicamente acessível, recuperação fácil e acesso global, o ato de lembrar se tornou o padrão, quer seja para o indivíduo, quer seja para a sociedade. Armazenamos nossas fotografias digitais sejam elas boas ou ruins – porque até escolher quais eliminar demanda tempo demais, e mantemos versões diferentes dos documentos em que trabalhamos, para o caso de necessitarmos de uma delas. A Google salva cada busca realizada e milhares de câmeras de vigilância registram nossos movimentos. (Tradução livre da autora)

3. Inspirados na obra de Jack Goody, antropólogo social especializado no estudo da estrutura e de mudanças sociais, Olson e Cole, além do prefácio “Tecnology and social change” dedicado a Goody, reúnem, em Technology, literacy, and the evolution of society, diversas perspectivas de vinte reno-mados historiadores, antropólogos, psicólogos e educadores sobre a influência das tecnologias na estabilidade e na mudança em sociedades tradicionais e modernas. Neste texto, de caráter inter-disciplinar, acadêmicos examinam como línguas locais e tradições culturais, modos de produção e comunicação, padrões de conhecimento e autoridade locais afetam o modo como as pessoas e as culturas resistem ou se acomodam a essas mudanças. Cf. OLSON David R., COLE Michael (org.), 2006.

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A obra de Pierre Lévy (2005, p. 123) sobre a cultura digital nos apresenta também a mesma estrutura de pensamento encontrada nos autores da história e da antropo-logia, ao considerar que à dimensão do espaço/tempo soma-se a dimensão da téc-nica. E que ambas podem ser compreendidas, tal como o continuum de Halbwachs4, em três polos do espírito: o da oralidade primária (mito), o da escrita (teoria), e o da informática-mediática (simulação). Esses polos não se configuram em eras porque transitam e acontecem ao mesmo tempo, em graus diversos de intensidade e de manifestação explícita.

Lévy, no quadro comparativo que traça para os três polos, usa os atributos tempo, pragmática da comunicação, memória social e formas de conhecimento. Mas, em nenhum momento, o autor pressupõe o domínio de um polo sobre o outro. Ao con-trário, indica que o uso de determinado tipo de tecnologia intelectual, seja o mito, a teoria ou a simulação, coloca ênfase particular em certos valores, certas dimensões da atividade cognitiva ou da imagem social do tempo, que se tornam mais explicita-mente tematizadas e ao redor das quais se cristalizam formas culturais particulares. Ernst Cassirer (2000, p. 19), por sua vez, ao analisar as conexões entre língua e mito, considera também o espaço mítico não como uma era, mas como um modo de ver, uma forma simbólica que, embora irrompa com maior força nos tempos mais antigos da história do pensamento, nunca desaparece por inteiro. É esta a nossa intenção ao referirmo-nos ao quadro de Lévy.

Resta, nesta introdução, enfatizar que a questão patrimonial – valor patrimonial atri-buído a lembranças – é discutida considerando-se cada um dos tempos memoriais propostos por nossa hipótese. Nossa intenção é a de compreender as relações entre memória e patrimônio, principalmente em dois processos interligados: a memória em seu vir-a-ser patrimônio e a memoração necessária a um patrimônio instituído. Vale ressaltar que a periodização dos tempos da memória é feita apenas para fins de análise do fenômeno, pois compreendemos, assim como os autores citados anterior-mente, que os meios de memória ou técnicas midiáticas que favorecem sua trans-missão, manutenção e dissolução podem ser concomitantes aos espaços-temporais considerados, além de existirem em graus variáveis de persistência.

4. Halbwachs, ao discorrer sobre a oposição entre memória coletiva e história, usa menos o argu-mento da cientificidade e mais o conceito de continuidade espaço-temporal para estabelecer uma diferença. De fato, o interesse da memória social sobre os acontecimentos do passado reside exa-tamente na percepção de que esses acontecimentos continuam a existir no presente, ou seja, per-tencem a um continuum, alterado pelos esquecimentos ocorridos no percurso e acrescido de outras lembranças. Cf. HALBWACHS Maurice, 2004, p. 80.

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Oralidade mítica e dissolução da memória: patrimônio como herança

Vernant (2000) nos explica que um mito, pontualmente um mito grego, é um relato. A maneira pela qual esses relatos se constituíram, se transmitiram e se atualizam na memória social pode ser compreendida pelos textos que só chegaram a nós disper-sos e fragmentados, à exceção das obras literárias como a Ilíada e a Odisseia. À reu-nião dessas tradições múltiplas deu-se o nome de mitologia grega. A diferença entre o relato mítico e outros tipos de relatos, por exemplo, o literário, o histórico, pode ser evidenciada sob alguns aspectos. O primeiro deles diz respeito à autoria. Segundo Vernant, o relato mítico não resulta da invenção individual nem da fantasia criadora, mas da transmissão da memória. Assim, o mito só vive se for contado, de geração em geração, na vida cotidiana, e as condições de sua sobrevivência são, exatamente, a memória, a oralidade, a tradição. O segundo aspecto é relativo a sua integridade informacional ou unicidade. O mito não está fixado numa forma definitiva. Esta vai variar, sempre, em decorrência do agente – o “contador de estórias”, o aedo – ou do processo – a transmissão – a qual incorpora novas analogias e abandona outras, tecendo-se, assim, um continuum formado por lembranças e esquecimentos sempre atualizado na memória coletiva. O mito sempre comporta variantes, versões múlti-plas que o narrador tem a sua disposição, e que escolhe em função das circunstân-cias, de seu público, de suas preferências, podendo cortar, acrescentar e modificar o que lhe parecer conveniente.

A terceira diferença do mito com relação a outros relatos pode ser vista a partir da perspectiva do espaço/tempo. As musas, filhas de Mnemosyne (memória), têm por tarefa a apresentação da criação do mundo desde que ao Kháos (Caos) se contrapôs Gaia. Gaia, ou a Terra, é nítida, firme e estável, significando o oposto do Caos, embora tenha emergido dele. E é nela que os deuses, os homens e os bichos podem viver com segurança, iniciando-se, assim, a estória das origens. No entanto, a origem do cosmos relatada pela mitologia5 não deve ser vista em um quadro de sucessão no tempo, como diz Vernant (1973, p. 71-112): “esta gênese do mundo, cujo decurso narram as Musas, comporta o que vem antes e depois, mas não se estende por uma duração homogênea, por um tempo único. Ritmando este passado, não há uma ‘crono logia’, mas ‘genealogia’”.

Quanto à experiência do que é espacial, a mitologia a representa, além do próprio mito de origem (Caos – instável, infinito, espaço em queda, e Gaia – estável, definida e fixa), pela figura do casal Héstia, simbolizando o centro, e Hermes, contrapondo

5. Cf. em Vernant (2000, p. 19) o nascimento de Chronus, filho de Gaia e Urano, que instaura o tempo na Terra.

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esse centro com o movimento. Esses polos, mais dinâmicos que opostos, ultrapas-sam em muito a noção ordinária de espaço e movimento e exprimem o que Vernant denomina de tensão que se observava na representação arcaica do espaço: o espaço exige um centro, um ponto fixo, com valor privilegiado, a partir do qual se possam definir direções, todas diferentes qualitativamente; o espaço, porém, se apresenta ao mesmo tempo como lugar do movimento, o que implica uma possibilidade de transi-ção e de passagem de qualquer ponto a outro.

A união de centro e movimento aliada à circularidade temporal conduz à ideia de um só conceito: espaço/tempo. E, tal como na mitologia, ele pode ser imaginado como uma dimensão na qual, a partir da leitura do presente, celebram-se os acon-tecimentos que transitam no passado e no futuro. A função criativa do mito reside, exatamente, no fato de que este pode ser interpretado à luz do quadro conceitual do presente e, embora a oralidade mítica tenha cedido espaço ao polo da escrita, suas características de relato singular (autoria, forma e espaço/tempo) podem ser encontradas na transmissão do conhecimento na atualidade e, consequentemente, na configuração, também atual, da memória social.

Se nos é fácil compreender a memória como um estado sempre virtual, o mesmo não acontece com a noção de patrimônio, que implica atributos de valor e a preservação desses. No entanto, também é difícil desarticular a noção de patrimônio de outras categorias de pensamento como as de “cultura”, “tradição” e “herança”, como nos apresenta a antropóloga Regina Abreu em seu artigo sobre a emergência do patri-mônio genético (2003, p. 30-45). Por essa razão, a contribuição da antropologia é fundamental para a reflexão da evolução ou das perspectivas de conceituação de patrimônio tomado na distância espaço-temporal, conforme a estrutura do discurso apresentado anteriormente sobre os polos da transmissão do saber. Como funciona-ria a ideia de patrimônio no polo da oralidade mítica, mantendo-se os seus atributos essenciais de perigo de desaparecimento do bem valorizado e, portanto, de sua sal-vaguarda para o futuro?

José Reginaldo Santos Gonçalves (2003, p. 21-29) nos diz que a noção de patrimônio, do ponto de vista antropológico, é milenar, que ela está presente nas sociedades tribais, no mundo clássico e na Idade Média, embora a sistematização dos estudos sobre o tema tenha se constituído em fins do século XVIII com a formação dos esta-dos nacionais. O autor mostra que, se o atributo de acumulação for desatrelado do conceito de patrimônio, pode-se entender o patrimônio livre do sentido de razão, o que nos permitiria transitar com essa categoria em outros contextos socioculturais. Segundo o antropólogo, existem muitas sociedades que absorvem o conceito de patrimônio como herança de saberes, mas que não veem na acumulação um sentido

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de evocação de memória. Os objetos acumulados são de natureza utilitária e, muitas vezes, quando há acumulação, esta é temporária e visa à distribuição, ou mesmo à posterior destruição. Em algumas sociedades, os objetos materiais não são clas-sificados separados de seus proprietários, pois são simultaneamente de natureza econômica, jurídica, moral, mágica, estética, psicológica, sendo, portanto, insepará-veis de totalidades sociais e cósmicas que transcendem a condição do indivíduo. A acumulação parece ser um atributo que, nas sociedades de tradição oral, pode não pertencer ao conceito de patrimônio.

Se não há acumulação de bens, não há perigo de perda, e não há também neces-sidade de proteção ou de salvaguarda. Diz ainda o antropólogo que, a exemplo do “mana melanésio”, discute-se a presença ou a ausência do patrimônio, a necessi-dade ou não de preservá-lo, porém não se discute a sua existência. Esta categoria é um dado de nossa consciência e de nossa linguagem; um pressuposto que dirige nossos julgamentos e raciocínios. O patrimônio, tomado como categoria de pensa-mento, coloca sua existência na relação exercida pelo outro e, como seu conceito está atrelado aos conceitos de cultura, a ideia de patrimônio pode, no pensar antro-pológico, assumir diversos contornos semânticos no tempo e no espaço. Isto nos facilita pensar também o patrimônio como pertinente ao mundo virtual, ao menos no sentido da transmissão digitalizada, que é mais compartilhada e não visa, prioritaria-mente, à acumulação, mas à socialização da informação.

Escrita, razão e expansão memorial: patrimônio como documento

A característica dominante deste polo de tecnologia de transmissão do saber é a linearidade, considerando a figura temporal em que a circularidade está para a orali-dade e os segmentos/pontos configuram, no dizer de Lévy, a era informática-medi-ática. As fronteiras mais tênues, do ponto de vista do distanciamento temporal em que nos encontramos entre a escrita e a imagética, dificultam nosso pensar sobre uma era que abre mão da história na perspectiva de uma realização, dos vestígios e da acumulação de registros. O retardo, o ato de diferir e a inscrição no tempo se contrapõem ao imediato da transmissão oral e ao tempo real da rede informática-mediática. Mesmo considerando o processo de comunicação nos três polos como sendo hipertextual, a distância entre os hipertextos do autor e do leitor é maior no polo da escrita, o que vai exigir do autor maior objetividade e do leitor maior capa-cidade interpretativa. Para Lévy, muda também a configuração da memória. Se nos polos da oralidade e da simulação ela só pode ser entendida como construção pro-cessual, portanto em movimento constante, na tecnologia da escrita, seu conceito é

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dependente da possibilidade de crítica ligada a uma separação parcial do indivíduo e do saber, com ênfase no estatuto de verdade.

Com relação às formas canônicas do saber, o polo da escrita se fundamenta na construção teórica (explicação, exposição, sistemática) e na interpretação, ao passo que a oralidade tem o rito e a narrativa como instâncias do saber; já a informática-mediática se vale da modelização operacional e da simulação. Assim, permanência e significação colorem a transmissão oral do saber; a verdade (crítica, objetividade, universalidade) é dominante no polo da escrita; e a eficácia, pertinência local e mudança, ou novidade, são os atributos do polo da informática-mediática.

Se a narrativa é a forma dominante de transmissão do saber no polo da oralidade mítica, o documento, com seu estatuto de prova e verdade, é a instituição predo-minante do saber científico no polo da escrita/razão/teoria. A memória documen-tada, quer dizer, acumulada em arquivos, bibliotecas, museus, garante a relação de dependência entre documento e memória, mesmo ao considerar que o conceito de documento (Dodebei, 2001, p. 59-66) se fundamenta na existência de valores cir-cunstanciais e temporários atribuídos aos objetos.

No mundo materializado das representações ou dos registros de memória, a era da tecnologia da escrita identifica-se com a atribuição de valores patrimoniais aos objetos textuais, imagéticos, monumentais, às coleções materiais e simbólicas que Nora nomeou de “lugares de memória”. O desejo de perpetuar a memória, acrescido da reprodutibilidade técnica com a consequente criação dos acervos, fez com que a sociedade produzisse próteses de suas memórias individuais, verdadeiras memórias auxiliares, cada vez mais extensas, diversificadas e até mesmo duplicadas, a exemplo das bibliotecas, dos museus, dos arquivos, dos monumentos históricos, gerando uma ampliação descomunal da capacidade de memória do mundo.

Segundo Choay (2001), a noção de patrimônio estava, na origem, ligada às estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo. Hoje, requalificada por diversos atributos, como se pode acompanhar pela trajetória dos registros do conhecimento sobre esse tema, ela admite uma plu-ralidade de adjetivos (histórico, artístico, cultural, material, intangível, virtual, digital) fazendo do termo um conceito “nômade”. A instituição patrimonial seria uma invenção moderna, porquanto essa preocupação com a salvaguarda de edifícios e monumentos só é sistematizada em 1837, na França, com a criação da Comissão dos Monumentos Históricos. A manutenção dos estados nacionais nos séculos XIX e XX desencadeou o processo de patrimonialização dos bens arquitetônicos, por razões que variavam entre a proteção da arte e a manutenção do poder econômico e simbólico das instituições.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

O processo de institucionalização do patrimônio toma contornos mais expansionis-tas, do ponto de vista conceitual, após a Primeira Guerra Mundial. Com o intuito de estabelecer uma cooperação cultural entre os povos, a Sociedade das Nações (Berg-son, 1919) cria, no ano de 1922, a Comissão Internacional de Cooperação Intelectual (Bergson, 1922), que se reúne pela primeira vez em Genebra, sob a presidência de Henri Bergson. Esta comissão de intelectuais, formada por onze membros titulares e seis assistentes, reunia à época nomes de peso entre filósofos e cientistas: Bonnevie (zoóloga), Curie (física), Bannerjea (economista político), Bergson (filósofo), Castro (médico brasileiro), Destrée (escritor), Murray (filólogo), Reynold (escritor), Ruffini (jurista), Torres-Quevedo (engenheiro eletromecânico) e Einstein (que não compare-ceu por estar em missão científica no Japão) (Mossé Bastide, 1959). O objetivo da comissão era o de efetuar uma pesquisa sobre as condições do trabalho intelectual em cada um dos países-membros da Sociedade das Nações. O interesse da comis-são se estendia à organização internacional da documentação científica (bibliografia corrente e retrospectiva), ao avanço da pesquisa científica, à cooperação interna-cional na educação, com destaque para as ciências humanas, tidas como pouco articuladas no que concerne à transferência da informação. E, para que se iniciasse uma cooperação internacional, era necessário conhecer o estado da arte da produ-ção cultural dos países. Iniciava-se a era dos inventários da produção intelectual, da criação dos centros internacionais de documentação, da propriedade intelectual e científica em geral, e da proteção dos bens culturais em particular. Parece que Henri Bergson teve grande participação na criação da noção de patrimônio cultural, quando presidiu, entre 1° e 6 de agosto de 1922, a Commission Internationale de la Coopération Intellectuelle, instituição precursora da UNESCO, criada em 1945, logo após a Segunda Guerra Mundial.

De acordo com Choay, somente após a Segunda Guerra Mundial, na década de cin-quenta do século XX, é que serão acrescentados às categorias definidas na Comissão dos Monumentos Históricos outros objetos ainda considerados de valor menor, mas já indicando uma ampliação da noção de patrimônio institucional para a sociedade. Aos edifícios religiosos e palacianos acrescem-se fábricas, usinas, teatros, compre-endendo os aglomerados de edificações da malha urbana: casas, bairros, aldeias, cidades inteiras e mesmo conjuntos de cidades, agora tomados como coleções de bens patrimoniais.

Em 1997, a UNESCO cria uma nova distinção internacional, intitulada obra-prima do patrimônio oral e imaterial da humanidade6, concedida a espaços ou locais onde são regularmente produzidas expressões culturais e manifestações da cultura tradicional e popular. A criação do título foi a forma de alertar a comunidade internacional para a

6. Cf. o website da UNESCO http://www.unesco.org.br/, consultado em 8 de novembro de 2011.

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importância dessas manifestações e a necessidade de sua salvaguarda, uma vez que compõem o “diversificado tesouro cultural do mundo”. A proclamação das obras-primas do patrimônio oral e imaterial da humanidade acontece de dois em dois anos, com a escolha das candidaturas oferecidas pelos países, a cargo de um júri interna-cional. A primeira, ocorrida em 2001, selecionou dezenove bens. Em 2003, mais vinte e oito itens foram acrescentados à lista das obras-primas da humanidade, entre eles a arte Kusiwa – pintura corporal e a arte gráfica Wajãpi, candidatura preparada pelo Museu do Índio, que retrata a cosmologia e a linguagem gráfica dos índios Wajãpi do Amapá, Brasil. A terceira proclamação ocorreu em novembro de 2005, com mais quarenta e três integrantes da lista do patrimônio oral e imaterial. Mais uma vez o Brasil foi contemplado, com a inclusão do samba de roda do Recôncavo baiano. Em 2011, Yaokwa, o ritual para a manutenção da ordem cósmica e social do povo Ena-wene Nawe, na Amazônia, Brasil, foi inscrito na lista do patrimônio cultural intangível que necessita salvaguarda urgente.

No Brasil, as políticas patrimoniais, representadas pelo Instituto do Patrimônio His-tórico e Artístico Nacional – Iphan7, criado em 1937, consideram um universo diver-sificado de bens culturais, classificados segundo sua natureza nos quatro livros do Tombo: Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo His-tórico; Livro do Tombo das Belas Artes; e Livro do Tombo das Artes Aplicadas. Suas ações, voltadas à identificação, documentação, restauração, conservação, preser-vação, fiscalização e difusão, estão previstas em legislações específicas sobre cada um dos temas pertinentes ao seu universo de atuação, sejam bens imóveis (núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos, bens individuais) ou bens móveis (cole-ções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, arquivísticos, bibliográfi-cos, videográficos, fotográficos e cinematográficos). O Decreto n° 3.551, de 4 de agosto de 2000, instituiu o registro, que é o instrumento legal para reconhecimento e valorização do patrimônio cultural imaterial brasileiro. Os bens registrados são inscri-tos em quatro livros: Registro dos Saberes, das Celebrações, das Formas de Expres-são e dos Lugares. Os saberes ou modos de fazer são atividades desenvolvidas por atores sociais conhecedores de técnicas e de matérias-primas que identificam um grupo social ou uma localidade. As celebrações são ritos e festividades associados à religiosidade, à civilidade e aos ciclos do calendário, que participam fortemente da produção de sentidos específicos de lugar e de território. As formas de expressão são formas não-linguísticas de comunicação associadas a determinado grupo social ou região, traduzidas em manifestações musicais, cênicas, plásticas, lúdicas ou literá-rias. Lugares são espaços onde ocorrem práticas e atividades de naturezas variadas, tanto cotidianas quanto excepcionais, que constituem referência para a população.

7. Cf. o website do Iphan: http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaInicial.do, consultado em 8 de novembro de 2011.

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O valor patrimonial é atribuído a objetos que estão sendo criados no presente e que são frutos de manifestações culturais, em sua maioria de natureza artística e cole-tiva como as artes populares, indígenas, urbanas, das periferias, de comunidades de baixa renda, entre outros. Ou ainda, seguindo o movimento ecológico, o patri-mônio conviria também aos espaços naturais como bosques, florestas, fauna, lagos e praias. Essa extensão conceitual fará surgir o patrimônio paisagístico, o genético, o medicinal, entre tantos outros adjetivos que reforçam mais a preocupação com o perigo de perda para a sobrevivência atual da humanidade do que com a herança para gerações futuras.

A criação do patrimônio denominado imaterial, por conta de sua institucionalização, transformou os objetos memoriais característicos da era mítica, da oralidade, em documentos. Registrar o mito, mantendo-se sua natureza processual transformadora, é uma tarefa, senão impossível, permanentemente inacabada. Se, por um lado, o regis-tro patrimonial garante direitos de autoria, por exemplo, por outro lado, exige constante atualização de registro para a manutenção fidedigna da prática cultural representada.

O patrimônio do polo da escrita, do documento, caracteriza-se, assim, por uma natu-reza representacional. O conhecimento é apresentado por seu substituto representa-cional que, na feição pública, significa conhecimento publicado, disponível para uso – intencionalmente acumulado. Os estoques de informação/memória são o conjunto dessas representações do conhecimento que precisam ser organizados por meio das memórias documentárias. Essas memórias são, por sua vez, construções simbóli-cas do conhecimento que reúnem cadeias de representações presentes na dinâmica social, desde a produção do conhecimento até sua assimilação, mediadas por uma forma artificial de comunicação.

Antonio Garcia Gutiérrez alerta para uma das questões mais complexas da formação e manutenção das memórias artificiais que nomeia de “exomemórias” – registros da memória – ao considerar que a intermediação necessária entre os documentos e seus leitores deve pautar-se por uma ética espaço-temporal. O mundo contemporâ-neo exige, por exemplo, atenção aos princípios da transculturalidade e do reconhe-cimento das redes de sensibilidade e interpretação transversal que constituem a realidade, a memória e seus mediadores. Como consequência de uma herança positivista (um lugar para cada coisa e uma coisa para cada lugar), a tendência nos processos de representação documentária é a de buscarem-se apenas os significa-dos relevantes, deixando de lado os aspectos menores ou distintos: “temos que nos prover de uma ética sensorial, de equilíbrio e transculturalmente aceitável, que não esqueça as partes da racionalidade e sensibilidade que devem estar presentes na construção da memória registrada”. (Garcia Gutiérrez, 204, p. 31) Suas observações

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

podem ser estendidas ao processo de patrimonialização de objetos, no sentido de que estes devem ser fruto de uma valorização ético-memorial.

Interatividade memorial: patrimônio como informação

Dizíamos na introdução deste texto que os objetos digitais são essencialmente núme-ros e, desta forma, não importa se o objeto patrimoniado, por exemplo, é de natureza material ou imaterial, pois no ambiente eletrônico ele é representado em bits (0/1). A vantagem que podemos observar deste processo de digitalização de objetos nasci-dos em meio analógico (por exemplo, o plano piloto da cidade de Brasília, capital do Brasil) e daqueles já nascidos em meio digital (o registro das práticas Yaokwa, ritual para a manutenção da ordem cósmica e social do povo Enawene Nawe, na Amazônia, Brasil; a arte fractal) é a de que eles se metamorfoseiam em unidades memoriais digi-tais que podem ser combinadas e recombinadas, possibilitando a criação de novos objetos. Como, por exemplo, a coleção digital da UNESCO denominada Memória do mundo, cuja existência é possível apenas por seu caráter virtual.

Constituída de bens patrimoniais de natureza material e imaterial, de todas as par-tes do nosso planeta, essa coleção pretende representar uma síntese dos feitos da humanidade e está disponível na rede mundial de computadores. Uma primeira lei-tura dos critérios estabelecidos para a seleção dos bens que integram a Memória do mundo nos indica a presença forte do conceito clássico de coleção, pelos adjetivos: raros, excepcionais, geniais, únicos, memoráveis, importantes, significantes, autên-ticos. Observando os objetos, percebemos que o desejo de colecionar abarca seres humanos, animais, plantas, paisagens, construções. Fazem parte também da cole-ção fenômenos, propriedades, valores, criações artísticas, históricas e tecnológicas, tradições, crenças e ideias. Várias questões poderiam ser colocadas em relação a esses critérios de seleção. De que se compõe, afinal, a memória do mundo? Quem seleciona os objetos que, isolados, deverão representar a totalidade de sua classe conceitual? Por que um feito, uma paisagem, uma comunidade, uma música, um livro é mais significativo para representar todos os outros de sua categoria?

Fato é que o processo de digitalização desses patrimônios oferece à humanidade a oportunidade de mapear conceitos materiais e imateriais e de transferi-los para o espaço virtual, onde a memória do mundo é construída já como uma coleção deli-mitada conceitualmente. Textos, imagens, sons, organizados como em um recorte enciclopédico, podem ser acessados em tempo real por um número cada vez mais amplo de internautas que se apropriam, reformatam e devolvem ao ciberespaço novas informações.

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Mas a natureza do ciberespaço é também caótica por sua constituição ser infor-macional. Assim, a comunicação pessoa/pessoa (sistema aberto) no espaço virtual sofre os ruídos naturais do mundo analógico e daqueles criados pela interopera-bilidade digital – pessoa/computador/pessoa (sistema fechado). O que se deseja enfatizar aqui é que grande parte da comunicação efetuada entre as pessoas, a partir da década de noventa do século XX, depende da interação com o computador. Essa mediação eletrônica nos obriga a dominar a técnica, por um lado, e, por outro lado, nos oferece um universo mítico de experiências simuladas que, de certa forma, com-pensam a aridez característica dos sistemas fechados.

Para muitos pensadores do contemporâneo não há memória no ambiente virtual, o que nos apontaria para um futuro insípido e cruel. Hervé Fischer (2008, p. 351-352), em ensaio sobre a arte, afirma que “é preciso escapar da efemeridade fatal da cultura digital que não tem memória. As artes digitais se dissolvem, mal aparecem. Quanto mais sofisticada é uma tecnologia, mais rápido ela envelhece, mais rápido se apaga”. É preciso compreender que o ambiente virtual polvilhado de memórias digitais, mesmo que efêmeras, possibilita a interação com um número expressivo de internautas que podem fruir a obra de arte, interagir com ela, apropriar-se dela e transformá-la, criando, desta forma, uma cadeia de sentidos que se torna indepen-dente do objeto original. Se os objetos se fundem em artefatos interativos e, cada vez mais, os objetos eletrônicos se reduzem a interfaces, cabe à sociedade desenvolver meios de disseminação de sentidos.

Nesse sentido, Pierre Lévy (2007) vem trabalhando no desenvolvimento da memó-ria virtual da inteligência coletiva que diz respeito à construção de uma linguagem artificial denominada IEML (Information Economy MetaLanguage), linguagem em sis-tema aberto de comunicação no ciberespaço, com o objetivo de facilitar o acesso ao que ele denomina de memória virtual eletrônica. O projeto analisa a arquitetura da memória virtual e considera quatro planos para representar a evolução das tecnolo-gias da informação e comunicação.

O primeiro plano é denominado de “camada de endereçamento dos bits”, ou inter-conexão de transistores, e refere-se aos computadores que compõem os pontos de ligação no ciberespaço. É a memória dos computadores ou endereços dos bits, que compreende os sistemas operacionais e os aplicativos, de natureza lógica e aritmé-tica, que tem a década de 1950 como a data de seu nascimento. A segunda camada, “endereçamento dos servidores” ou interconexão entre computadores, é repre-sentada pelo protocolo de internet que liga computadores pessoais, comunidades virtuais e proporciona a convergência de mídias digitalizadas. Esta fase é datada em 1980. A terceira camada, “endereçamento das páginas” ou interconexão entre

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

documento s, compreende a esfera pública mundial hipertextual multimídia, signifi-cando a criação da world wide web com as ferramentas de pesquisa, navegadores e endereços (URLs – Uniform Resource Locator) e links (HTTP – HyperText Transfer Protocol). A popularização da web é datada em 1995. Além destas três camadas, com as quais já estamos familiarizados, Lévy nos apresenta a “noosfera”, que corres-ponde à quarta camada adicional da memória virtual e que tem por base a linguagem IEML. A noosfera, no esquema geral da arquitetura da memória virtual, está prevista para funcionar plenamente em 2015, e representa endereços de conceitos (semio-graphs), conexão entre significados e gerenciamento do conhecimento.

A memória virtual da inteligência coletiva, projeto internacional coordenado por Lévy junto à Universidade de Ottawa no Canadá, pode ser considerada, de certo modo, a atualização para o ciberespaço do conceito de memória coletiva desenvolvido por Maurice Halbwachs e do conceito de memória pura ou virtual de Henri Bergson. Há, entre os três autores, um interessante diálogo sobre os conceitos de memória e uma curiosidade em relação ao patrimônio cultural. Bergson não só inspirou Halbwachs e Lévy, como foi o filósofo que lançou, como vimos, a noção de patrimônio cultural.

As unidades memoriais digitais permitem também a possibilidade de criar uma histó-ria para os objetos, segundo o que Frédéric Kaplan8 (2009, p. 13) denominou de les métamorphoses de la valeur. Para compreender a dinâmica da evolução tecnológica, o autor afirma que é necessário construir não apenas a história dos objetos, mas principalmente sua genealogia, e é essa ação memorial que atribui valor aos objetos. Baudrillard (2009), em sua obra Le système des objets escrita em 1968, diz também que a tecnologia conta a história rigorosa dos objetos e que, de cada transição de um sistema a outro melhor integrado e de cada síntese de funções, surge um sentido independente àquele atribuído aos objetos por quem os criou.

A constituição de uma história dos objetos (métamorphoses de la valeur) em Kaplan, de seu sentido independente (technèmes) em Baudrillard e de endereços de con-ceitos (semiographs) em Lévy leva à possibilidade de dissociação do objeto de sua memória, o que vai favorecer a atribuição de valor não ao objeto, mas tão-somente ao seu sentido. Nesse caso, todos os objetos digitalizados e postos em interação com o público permitem não só a apreensão de seu sentido, história ou memória, como também são passíveis de serem reproduzidos em meios analógicos. Esta seria a condição híbrida de produção de memória que requer a interação homem-máquina em ambiente virtual eletrônico, em que as lembranças depositadas ou comunicadas

8. Frédéric Kaplan é engenheiro, especialista em inteligência artificial e novas interfaces e designer de objetos eletrônicos. Sua obra A metamorfose dos objetos é quase uma autobiografia, pois narra sua experiência pessoal, familiar e empresarial sobre a criação de objetos/interfaces.

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se dissolvem nos processos de reformatação e autoria coletiva e, ao mesmo tempo, podem gerar acúmulo, pois, como vimos, o meio possibilita ainda a existência de registros tanto analógicos quanto digitais.

Para Virilio (1994, p. 9), o tempo da interatividade memorial substitui os símbolos da linguagem escrita pelos símbolos visuais. Esta ideografia pode ser compreendida pelo que o autor nomeia de lógica da imagem, ou imagética. A imagética habita um espaço-tempo, acrescido de outra dimensão, a velocidade, e pode ser caracterizada por três fases: a era da lógica formal (pintura, gravura e arquitetura), que se conclui no século XVIII; a era da lógica dialética (a fotografia, a cinematografia), no século XIX; e a era da lógica paradoxal, que se inicia com a videografia, holografia, infografia (informação digitalizada).

Dentre os tipos de tecnologias de transmissão do conhecimento citados por Virilio, a infografia pode ser considerada como uma espécie de evolução da escrita. Os exemplos são muitos e basta citar o prefixo e- (que significa eletrônico) para encontrarmos e-books, e-musics, e-jogos, e-etc., serviços e produtos culturais disponíveis na maior rede de comunicação da atualidade, a world wide web. Aliada aos demais signos imagéticos, a infografia, ainda que constituída pela língua natural, ultrapassa a escrita convencional (que, por sua vez, dominou o espaço da transmissão do conhecimento em contraponto com a oralidade), e se constitui na forma do relato da atualidade. Temos, assim, um quadro de memórias, parafraseando Halbwachs, composto por matizes de textos, imagens e sons, conformando uma nova linguagem que Lévy (2003) denominou de linguagem lúdica, tal é a sua forma de interação comunicacional.

Ainda em Lévy (2003), dos tempos da memória – oralidade primária (mito), escrita (teoria), e informática-mediática (simulação) –, este último (informático-mediático) está em permanente transformação, tal como na oralidade, e encontra-se quase que totalmente objetivado em dispositivos técnicos. Os atores da comunicação dividem cada vez mais o mesmo hipertexto e as mensagens são cada vez menos feitas para durarem, configurando-se o modelo de conhecimento por simulação, em contraposi-ção ao modelo interpretativo do polo da escrita, no qual a memória é objetivada no texto finito, o que vai exigir a identificação do indivíduo, portanto, a autoria. Mesmo se considerarmos, como em Foucault (1986), que o livro é um paralelepípedo que não se encerra no ponto final, por conta das ilações inesgotáveis proporcionadas pela rede de citações, estas ainda resguardam a integridade das autorias.

O sentido de hibridação entre o analógico e o digital pode também ser observado por algumas tentativas mediadoras ou de fronteiras que surgem no cenário empírico dos

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campos da memória e do patrimônio. É no âmbito do processo de patrimonialização do presente que se estabelece a categoria de bem intangível ou imaterial, separada do patrimônio material. Se, por um lado, essa separação demonstra a importância do contexto de criação do patrimônio material ao lhe atribuir sentido cultural, por outro lado, a proteção do fazer cultural deve ser considerada como um ato de preservação dos produtos e do ambiente no qual este fazer se produz, e não como outra categoria de patrimônio. Compreende-se que esta questão surge a partir da preocupação de não apenas salvaguardar os vestígios do passado, como também de incluir nesse processo as ações desencadeadas no tempo presente. Os bens de natureza imaterial são classificados na ordem dos saberes, dos fazeres, das comemorações, da tradi-ção oral, quer seja a música, a dança, a literatura, a língua. São circunstanciais, vivos e se preservam por tradição. Depreende-se daí que a falta aparente de um corpo material na condição efêmera de produção não exclui a materialidade do imaterial, nem a imaterialidade do material. Preservar uma construção religiosa sem a liturgia, ou uma língua sem o falante, é observar uma única face ou natureza do objeto. E, mesmo com a criação de leis, normas e procedimentos para a proteção dos bens patrimoniais de natureza intangível ou imaterial, é necessário compreender o caráter de virtualidade desses bens e a impossibilidade prática de separar o bem material daquele imaterial. (Dodebei, 2007)

Mário Chagas (2003, p. 95-110) concorda com essa impropriedade de separar os bens tangíveis dos intangíveis. Diz o autor que a preservação dos bens tangíveis busca e assenta a sua justificativa não na materialidade do objeto e, sim, nos sabe-res, nas técnicas, nos valores, nas funções e nos significados que esses bens repre-sentam e ocupam na vida social. O patrimônio cultural é, então, criado a partir de valores imateriais ou intangíveis, valores que representam objetos materiais ou sabe-res, fazeres e significados presentes na vida social.

Aqui fica a ideia de que é possível preservar significados, independentemente da proteção aos objetos materiais que são sua referência. Do ponto de vista patrimonial, talvez tenha sido necessário criar o conceito de bem imaterial para que pudéssemos pensar em preservação para além do referente material. As políticas patrimoniais separam os registros em livros distintos para os bens tangíveis (materiais) e os intan-gíveis (imateriais), mas o processo de representação do bem patrimonial na contem-poraneidade é o mesmo, quer dizer, o registro digital transforma o bem, “material ou imaterial”, em informação. A invenção ou a reinvenção do patrimônio imaterial, a partir da mudança da tecnologia da escrita para a tecnologia da interação, nos aproxima do tempo memorial mítico; e aproxima também a narrativa da informação. (Dodebei e Gouveia, 2007, p. 293-307)

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Se, no passado, a afirmativa de que ao relato escrito deviam-se créditos de repro-dutibilidade e de prova, neste momento, tais atributos não lhe são convenientes. A primeira grande ruptura na estabilidade da escrita é, tal como no relato mítico, a pos-sibilidade de múltipla autoria. Recortes e recomposição da informação/memória são processos incentivados pelo livre acesso aos estoques de conhecimento do espaço virtual, a despeito de todas as tentativas de preservação dos direitos autorais. Pesqui-sas têm sido desenvolvidas para atribuir, ainda numa visão autoral da comunicação e numa perspectiva cumulativo-repetitiva dos objetos memorais, a responsabilidade pela preservação da memória na world wide web. (Sayão, 1996) Essa preocupação, marcada pelo espírito de cientificidade na busca de consistência teórico-metodo-lógica, é desencadeada exatamente pela inconsistência, inconstância, mutação e obsolescência das informações lançadas na rede mundial de comunicação. Essa é a forma paradoxal da memória na atualidade: ao mesmo tempo plural como processo em permanente construção passível de múltiplas interferências, e singular como um único conjunto – forma do hipertexto.

Para finalizar, trazemos a discussão sobre este tempo da interação memorial e do patrimônio como informação, ainda tão contemporâneo a este relato, um objeto empírico que pode abordar as possibilidades de memoração on-line. Trata-se do pro-jeto Memoryshare, coordenado pela BBC de Londres, que nos mostra a fragmen-tação dos temas e a ausência de qualquer esforço reflexivo sobre as memórias ali registradas e nos coloca diante daquilo que Beatriz Sarlo (2007, p. 9-22) chamou de “uma cultura de memória ausente de pensamento sobre a memória”. Por outro lado, a proposta de criar uma “história dos cidadãos” mostra alguns dos objetivos do pro-jeto, como podemos ler no trecho abaixo, retirado do editorial do site:

No Memoryshare você coloca suas memórias on-line para que se possa cons-truir um retrato da vida nas Ilhas Britânicas desde 1900. É um projeto único, para construir um retrato de nossa história a partir dos cidadãos britânicos. Qualquer pessoa que viva, estude, trabalhe ou se divirta neste país pode con-tribuir para registrar como era viver a vida no século XX e como é no século XXI. (What is memoryshare, 2009)

De alguma forma, esta passagem nos revela um “desejo de memória” associado a um projeto nacional que se quer perpetuar para as futuras gerações. Como entender tal projeto amalgamado em uma plataforma de visualização tão fragmentária? Como pensar a possibilidade de unidade de tais registros compostos a partir de computa-dores pessoais espalhados pelo mundo? Como pensar a construção de identidade a partir de registros anônimos? Eis algumas questões colocadas por este artefato cultural do ciberespaço, o portal Memoryshare. (Dantas e Dodebei, 2012)

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O exemplo do portal Memoryshare nos serve para aproximar a dinâmica do tempo da oralidade mítica ao tempo da interação, sem abdicar da escrita, uma vez que os posts ainda são digitados. E como se configurava o imaginário social da oralidade, muito mais criativo do que objetivo, o espaço-tempo da interação memorial é h abitado-vivenciado por uma memória dinâmica, interativa e em tempo real. O que é fundamental, na atualidade, como nos mostrou Virilio, é a velocidade com que as ações sociais são mediatizadas pela dimensão da técnica.

Dissolução e acumulação de memórias: uma proposta para pensar o patrimônio digital

Em um primeiro momento, representado pela transmissão oral do saber, discutimos mito e herança como discursos basilares para a construção dos conceitos de memó-ria e de patrimônio. Nesse quadro de análise sobre a configuração da narrativa como forma de transmissão de informações, o conceito de dissolução é apreendido como uma possibilidade de construção da memória individual. A transmissão da memória ou a herança memorial, em sua forma narrativa, proporciona o sentido da experiên-cia do presente, como discutida por Walter Benjamin, e incorpora as duas leituras possíveis do tempo estoico: o presente e a insistência, no tempo, do passado e do futuro. Nessa configuração memorial não há risco de perda de lembranças e, por-tanto, não há necessidade de desenvolver ações de salvaguarda da memória. Se pensarmos bem, não há muitos objetos criados para auxiliar a memória e nem para representá-la. A memória é intrinsecamente pessoal e virtual.

O segundo momento, dedicado ao espaço-tempo da razão, das técnicas da escrita, nos faz pensar nos excessos e transbordamentos da memória, que têm no documento a explicação para a existência das memórias artificiais, auxiliares, memórias exteriores ou “exomemórias”. O conceito de acumulação de lembranças surge em oposição ao da dissolução ocorrida no espaço-tempo processual, típico da oralidade. A era da razão, da prova, da autoria/autoridade, da garantia de bens patrimoniais, do acúmulo ou superá-vit cria na sociedade um sentimento de apego aos objetos. Podemos dizer que esta é a era das coleções, da constituição dos acervos, dos lugares de memória discutidos por Pierre Nora. O fetiche do objeto como prova de posse do conhecimento leva a socie-dade a acumular bens e a sofrer as consequências de sua perda. Guardar, proteger, recuperar são ações típicas do espaço-tempo da razão, proporcionadas pela técnica da escrita. E é justamente no final do século XX que a sociedade se dá conta de que a diminuição dos objetos criados, ou o que denominamos de convergência das mídias proporcionada pela comunicação eletrônica, pode dar fim aos registros de memória ou memórias auxiliares da memória individual. O fim dos objetos já é anunciado nas

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mídias comunicativas, o que vem gerando o excessivo desejo de tudo salvar. Neste contexto, a memória individual se complementa com os registros memoriais.

O terceiro momento é caracterizado pela interatividade memorial, em que informação e eletrônica criam interfaces que mediam os processos de comunicação de lembran-ças. O conceito de interação é construído para a análise desse fenômeno, em que o ambiente é de natureza virtual e que podemos nomear de ciberespaço, por exemplo, e os objetos são digitais, isto é, são números com aparência de coisas. Já em meados do século XX, quando a sociedade passa a privilegiar a informação em detrimento do objeto no âmbito da pesquisa científica, podíamos já vislumbrar um horizonte da supremacia do reino da informação sobre aquele dos objetos, coisas, artefatos. Paula-tinamente, as coleções vão sendo digitalizadas, passando assim a habitar o ambiente virtual. A corrida para a digitalização do passado representa aquilo que dizíamos sobre a suposta perda da memória do mundo. De qual memória estaríamos falando? Natu-ralmente não da memória individual, virtual, mas daquela relativa aos registros de memória. A transmissão da informação/memória continua a existir, como no tempo da oralidade mítica, acrescida das novas lembranças depositadas no ciberespaço, para as quais não sabemos ainda se haverá, no futuro, condição de reprodutibilidade analógica. O sentido de hibridação na produção de lembranças também é o de justa-mente convivermos com meios de memória oral, documental/digital.

Como comentários finais, vale intensificar o diálogo com alguns conceitos apresentados no texto. Sobre o digital/virtual, ressaltamos que digitalizar compreende o processo de representar um objeto concreto, ou analógico, em bits, que poderão ser interpretados por programas de computador. Por exemplo, a partir dos bits, um programa apropriado gerará um conjunto de pixels, que será compreendido pelo olho humano como uma imagem. A diferença entre digital e virtual está diretamente vinculada ao processo, no caso do atributo digital, e no meio ou ambiente, no caso do virtual. Podem existir, desta forma, objetos digitalizados que habitam tanto o mundo concreto quanto o mundo virtual, mas o mundo virtual é habitado apenas por objetos digitais.

Quanto à patrimonialização da memória, a seleção do que patrimonializar deve ser o processo principal de nossa atenção, do contrário vamos igualar o mapa ao território; ou, como menciona Choay, o patrimônio pode ser decifrado como uma alegoria dos humanos na aurora do século XXI. Não sabemos ainda se a memória virtual eletrônica nos dará garantias de acumulação e de integridade de dados como é a característica principal de uma coleção documentária ou patrimonial. A representação da memória por redes de conceitos, em sistema aberto de comunicação, sugere que a constante reformatação da informação, a exemplo do jogo da memória e do esquecimento, parece ser o atributo essencial dessa memória virtual.

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

Quanto aos valores memoriais do patrimônio, entendemos que, se a sociedade deseja preservar bens patrimoniais para as gerações futuras, é necessário considerar que os objetos do cotidiano são, em ritmo exponencial, produzidos em meio digital. No entanto, o valor patrimonial atribuído aos objetos digitalizados ou criados digi-talmente deverá ser considerado sempre temporário e circunstancial, assim como o valor documental. Documento e patrimônio são valores e, portanto, devem ser compreendidos como construções virtuais. Essa parece ser a única maneira, no momento, de garantir a existência desses valores entre as fronteiras do analógico/digital. A corrida patrimonial parece desacelerar no século XXI, não apenas por desa-pego da sociedade aos bens materiais, o que já é praticado por diversas culturas, mas por uma real impossibilidade tecnológica de tudo guardar. A memória, como aquela arte pensada na sociedade oral, aliada à estrutura da memória virtual defen-dida por Henri Bergson, parece ser retomada com a ajuda de programas informáticos que organizam os lugares e as imagens no ciberespaço.

Finalmente, podemos afirmar que vivemos ao mesmo tempo em, no mínimo, dois mundos: um analógico e outro digital. Em ambos, as memórias e seus valores docu-mentais e patrimoniais são construídos, transitam, deixam rastros e se dissolvem. A ideia de patrimônio institucional é recente e, por seu caráter representacional, gera conflitos com a natureza da memória, que é absolutamente virtual. Nossa dis-cussão sobre a memória vir a ser patrimônio e o patrimônio necessitar do processo memorial para se sustentar no tempo nos levou a analisar teórica e empiricamente o campo de estudos denominado memória social, do qual os estudos documentais e patrimoniais fazem parte. Além disso, tentamos visualizar como se comportam as produções de subjetividade e objetividade em um espaço-tempo mantido por redes eletrônicas de comunicação. A questão da memória ainda não está em jogo, por ser de natureza virtual. Ao contrário da noção de patrimônio que, por ser de natureza representacional, está atrelada ao documento e à sua reprodutibilidade.

Melhor do que a criatura, fez o criador a criação. A criatura é limitada. O tempo, o espaço, normas e costumes. Erros e acertos. A criação é ilimitada. Excede o tempo e o meio. Projeta-se no Cosmos Cora Coralina

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Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização

Jean DavallonTraduzido do francês por Germana!Henriques!Pereira!de!Sousa

A abordagem comunicacional da patrimonialização que expus em Le Don du patri-moine (Davallon, 2006) foi elaborada essencialmente a partir do patrimônio material. A questão que se coloca daqui para frente é a seguinte: como esse modelo que des-creve a patrimonialização aplica-se ao caso do patrimônio imaterial ou ao da coleta de objetos contemporâneos feita pelos museus? Nesses dois últimos casos, há, de fato, uma continuidade entre o universo de origem desses objetos e a sociedade na qual constituem um patrimônio, e, particularmente, com as enquetes de memó-ria oral. A ruptura entre os dois universos, colocada como sendo uma das carac-terísticas da patrimonialização de objetos materiais, portanto, não existiria. Essa ausência de ruptura viria, assim, questionar diretamente a distinção entre memória – termo aqui compreendido no sentido de “memória coletiva”, conforme Halbwach s (1997) – e patrimônio, distinção feita no próprio princípio da patrimonialização. Uma das respostas sugeridas por diversas críticas feitas ao modelo dos processos de patrimonialização, e, para alguns, à concepção que sustenta a existência de uma obri-gação de guardar fundamentada no sentimento de dívida perante àqueles que pro-duziram esses objetos, seria aquela em que talvez estejamos assistindo hoje a uma diluição do estatuto patrimonial – tradicional, europeu e fundamentado no patrimônio material – para dar lugar a uma concepção de patrimônio definido como tal pelo grupo ou comunidade (ou seja, o coletivo) que dele reivindica a propriedade contínua desde o passado. Não há, portanto, nenhuma ruptura entre o mundo de origem do patrimônio e o mundo presente. Pelo contrário, é a continuidade entre os dois mundos que garante o fato de que realmente se trata de patrimônio coletivo: seria considerado patrimônio tudo aquilo que o coletivo considera como seu. No fundo, voltaríamos, assim, a uma assimilação da definição cultural e da definição jurídica do patrimônio, a primeira alinhando-se à segunda. De acordo com meu ponto de vista, tal assimilação ques-tionaria a dimensão simbólica do patrimônio cultural e, portanto, requer um exame, mesmo que não possamos negar o fato de que surgiram novas formas de patrimônio.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

Retomemos os termos da oposição entre a memória coletiva e o patrimônio. Do ponto de vista da abordagem comunicacional da patrimonialização, ou seja, da abordagem da construção de uma relação dos homens do presente com os homens do pas-sado, assegurando uma continuidade cultural da sociedade, quando há continuidade na transmissão de saberes (compreendidos no sentido amplo de representações, testemunhos, mitos, crenças, técnicas, conhecimentos técnicos, etc.), estaríamos falando de memória coletiva, para retomar a definição de Halbwachs, para quem ela continua a existir enquanto houver membros vivos do grupo que, portanto, podem transmiti-la. Ela se apoia na memória individual dos fatos, das práticas e dos saberes. Foi a partir dessa concepção da memória que me pareceu, em contraponto, que o patrimônio poderia ser considerado como um estatuto reconhecido pelas pessoas que, por razões diversas, pensam ser as depositárias de objetos que não produzi-ram e aos quais conferem tal interesse que estimam conveniente conservá-los para transmiti-los, embora tenha havido uma ruptura, real ou simbólica, na transmissão. A patrimonialização é, então, um processo pelo qual um novo laço vai ser construído entre o presente e o passado. Isto significa dizer que duas condições são necessárias ao comprometimento da patrimonialização: a existência de um interesse social pelo objeto imaterial e a possibilidade de um conhecimento desse objeto e de seu mundo de origem. O ponto de vista comunicacional apoia-se, assim, sobre dois postulados:

• A memória coletiva constitui um conjunto de saberes que é transmitido no seio do grupo social pelos próprios membros do grupo;

• Um objeto não pode adquirir o estatuto de patrimônio sem que haja interesse suficiente por parte dos membros do grupo (senão, é esquecido ou destruído) e sem a possibilidade de se estabelecer sua origem (do contrário, qualquer coisa poderia ser considerada como patrimônio).

Nesse contexto, a patrimonialização necessitará produzir um saber sobre o objeto e estabelecer de onde ele vem, antes de lhe atribuir o estatuto de objeto a ser con-servado e transmitido. Trata-se de um saber que é reconstruído por aqueles que “encontraram” o objeto, e não de um saber recebido daqueles que o possuíam. O interesse dessa oposição entre memória coletiva e patrimônio é permitir que se produza um modelo da construção do estatuto simbólico conferido a objetos, justi-ficando não apenas sua conservação imediata, mas, para além disso, sua circulação no tempo, do passado ao presente e ao futuro. O que é mostrado no presente e transmitido a gerações futuras não é somente o objeto conservado, e o estatuto que lhe conferiram aqueles que o “encontraram”, mas também o saber que serviu para conhecê-lo e estabelecer de onde ele vem. Diferentemente da memória coletiva, que

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

é uma transmissão direta entre indivíduos, amplamente oral, o patrimônio é funda-mentado em saberes produzidos e transmitidos por meio da escrita.Os principais elementos que entram em jogo na patrimonialização são os seguintes:

• A transmissão, ao longo do tempo, de objetos, ou seja, das realidades materiais ou imateriais;

• A transmissão ou a produção de saberes com relação a esses objetos;

• Reconhecimento ou a construção do estatuto desses objetos utilizando-se esses saberes.

Acrescentemos que a transmissão deve não apenas ser pensada no tempo dentro de um grupo social, o que é, obviamente, fundamental aqui, mas também entre grupos sociais de culturas diferentes.

Gostaria de reexaminar essa linha divisória entre a memória e o patrimônio, especial-mente à luz de algumas diferenças entre o patrimônio material e o imaterial.

A abordagem comunicacional da patrimonialização

As características comunicacionais da patrimonialização

Comecemos por determinar o contexto no qual se apoia a abordagem comunicacio-nal da patrimonialização, o qual evocarei em linhas gerais.

O primeiro esclarecimento diz respeito à distinção entre as noções de patrimônio e memória. Se a oposição com relação a esses dois termos é feita, em geral, por comodidade de linguagem, na realidade, ela deve ser feita entre a memoração e a patrimonialização. É nessa condição que podemos abordar a questão da trans-missão. Falar de memória e de patrimônio equivale a opor saberes (sobre eventos, situações, estatutos, pessoas, práticas, técnicas, etc.) e objetos. Ora, a memória também deve ser entendida como um processo de produção e de transmissão particular desses saberes pelos próprios membros do grupo. Nesse sentido, é a patrimonialização que é o equivalente simétrico da memória, da memoração, pode-ríamos dizer, e não o patrimônio, propriamente dito; a patrimonialização é um modo de produção e transmissão, implicando, ao mesmo tempo, realidades materiais ou imateriais (aquilo que chamamos precisamente de patrimônio) e saberes relativos a esses objetos. Isso não resolve, certamente, o problema da natureza do patrimônio

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

imaterial, mas determina pelo menos o contexto a partir do qual se pode pensar as semelhanças e as diferenças.

Tendo feito a primeira especificação, podemos introduzir uma segunda. Do ponto de vista comunicacional, o ponto comum entre memoração (mise en mémoire) e patrimonialização (mise en patrimoine) é que tanto uma como outra necessitam da produção e da transmissão da significação no tempo. Se seguirmos a hipótese ini-cial proposta por Maurice Godelier no L’Énigme du don (segundo a qual não pode haver sociedade que perdure sem realidades subtraídas às trocas que servem de ponto de referência), o desafio reside, como afirmei acima, não apenas no fato de se transmitir tais realidades (objetos materiais), mas também no fato de se transmitir os significados que lhes são agregados. Não sei se esse postulado é válido para as outras sociedades, mas é de grande importância para a nossa sociedade, na qual a circulação dos significados é um fator determinante da representação que ela produz sobre si mesma (Jeanneret, 2008). Por exemplo, não basta que objetos do passado estejam hoje presentes, que práticas continuem a existir, é preciso ainda que sua significação seja transmitida e aceita. Assim, a memoração e a patrimonialização devem ser consideradas como uma operação de produção de acontecimentos, práti-cas ou dispositivos culturais singulares, permitindo a transmissão ao longo do tempo de objetos e/ou de práticas acompanhadas de suas significações sociais, ou seja, de saberes, de experiências e de valores. Tais práticas ou tais dispositivos são forçosa-mente híbridos, estratificados e autorreferenciais (no sentido em que eles significam as operações que efetuam).

Esses dois primeiros pontos nos levam a especificar, em terceiro lugar, as operações em que se baseia a eficiência social – melhor dizendo, a operacionalidade simbólica – dos acontecimentos, práticas ou dispositivos culturais suscetíveis de produzir sig-nificado transmissível ao longo do tempo. São quatro operações:

1. Esses acontecimentos, práticas ou dispositivos culturais representam um referente. Trata-se da operação de base inerente a toda significação: um signo (ou, no sentido amplo, um conjunto significativo) está por definição no lugar daquilo que ele representa, segundo uma relação com esse referente, que, após Pierce (1978), sabemos que é ora icônica, ora indicial, ora simbólica.1

1. Por exemplo, um retrato pintado representa o modelo segundo um modo icônico (o laço entre o significante e o referente será baseado na semelhança), um retrato fotográfico será baseado numa relação indicial devido à reprodução do modelo permitida pela máquina fotográfica, enquanto um diagrama será de natureza simbólica, uma vez que traduz o fenômeno representado por um cálculo.

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

2. Esses acontecimentos, práticas ou dispositivos culturais produzem uma nova significação por meio de uma contextualização dessa representação: como esta última não pode existir fora de um suporte, o conjunto assim constituído (representação do referente e campo no qual ela está inscrita) forma a nova unidade de significação.

3. A nova unidade de significação assim produzida não existe fora de uma situação social: ela só existe para um destinatário que pode interpretá-la. Essa interpretação depende, no final do processo, da prática na qual está engajado esse destinatário. Mas ela pode ser também influenciada, orientada, previamente, por uma produção da representação e da contextualização. Uma relação de comunicação encontra-se objetivamente aberta entre aquele que opera inicialmente e o destinatário que intervém posteriormente.

4. A transmissão de um saber lateral, que se refere ao mesmo tempo à relação com o referente, ao contexto deste, assim como às operações de memoração ou de patrimonialização, é indispensável. Assim, como já expus acima, a simples representação de uma realidade não permite que ela, sozinha, reconstitua o contexto dessa realidade, seu mundo de origem, por exemplo. Pior ainda, sua contextualização, ao integrá-la numa nova unidade de significação, corre o risco de ocultar definitivamente esse mundo de origem. Imaginemos um objeto arqueológico (mas poderíamos fazer a mesma constatação com relação a um segmento de memória) sobre o qual não sabemos nada, nem acerca de sua sociedade ou do seu universo de origem, nem sobre o contexto de sua descoberta: seria impossível reconstituir esses dois contextos, a não ser que, precisamente, o contexto no qual o objeto se encontra hoje (por exemplo, sua colocação em exposição) pudesse fornecer um saber sobre eles.

O regime autográfico dos objetos patrimoniais materiais

Voltemos à oposição entre memória e patrimônio, quando este é constituído de obje-tos materiais, à luz das especificações precedentes. Em primeiro lugar, essa oposi-ção se fundamenta no fato de que, no caso da memória, a significação é produzida anteriormente, e, no caso do patrimônio, posteriormente. Na transmissão da sig-nificação sob forma de memória, o saber e o objeto ao qual essa significação diz respeito (o acontecimento, por exemplo), assim como o suporte da transmissão (o testemunho, por exemplo), são produzidos por aquele que tem a intenção de trans-mitir esse saber: ele é o destinatário emissor. No caso do patrimônio, ao contrário, se o objeto material tem uma origem num mundo anterior ao mundo no qual se encontra aquele que o descobre, a produção do saber é incumbida a este último, que

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se encontra, portanto, na posição de emissor do saber. Existe uma dissociação entre o lugar de origem do objeto material e o lugar de origem do saber e, por conseguinte, da significação. A produção desta última, que é própria da patrimonialização, pode ser chamada de “atencional” (attentionnelle) e não “intencional”, para empregarmos a distinção introduzida por Jean-Marie Schaeffer (1996). Os objetos patrimoniais do patrimônio material têm, pois, uma origem dupla: a produção do objeto e a patrimo-nialização produtora do saber. Os objetos patrimoniais que são conservados pelas instituições, expostos e transmitidos, não estão reduzidos, como se pensa frequen-temente, apenas à realidade material dos objetos materiais vindos do passado; mas trata-se de dispositivos culturais, conjuntos significantes compostos de realidades heterogêneas: objetos materiais, certamente, mas também fichas descritivas, regis-tros, relatórios de pesquisa, catálogos, livros, etc. Como os outros objetos culturais, os objetos patrimoniais não existem, portanto, fora das instituições que os produ-zem como objetos significantes. Se, por enquanto, estamos nos referindo somente ao patrimônio cultural material, os objetos patrimoniais, como dispositivos culturais constituídos de objetos materiais e do saber documentário relativo a eles, possuem várias especificidades.

Primeira constatação importante: a existência de objetos materiais vindos do pas-sado atribui um peso singular à referência (a relação entre o signo e aquilo que repre-senta) - o objeto do passado está presente no presente enquanto signo dele próprio. É por isso que a questão da autenticidade dos objetos é tão importante no mundo do patrimônio imaterial: o desafio é a garantia da natureza semiótica daquilo que está diante de nós,2 homens do presente. A saber, uma garantia de seu estatuto indicial segundo o qual o objeto que toco ou que vejo esteve de fato em relação física com o mundo de origem, e não icônica (de uma cópia) ou simbólica (no sentido de Pierce, ou seja, de algo que é signo por convenção).

Ora, todo o saber produzido sobre esse objeto servirá primeiro para estabelecer esse estatuto, constituindo, sobretudo, características e reconstruindo seu contexto de origem em suas dimensões técnicas, artísticas, históricas, sociais, societais, etc. Dito de outro modo, uma das funções principais do saber é reconstruir, reconstituir a memória perdida do objeto e de seu mundo de origem, de seu contexto de produção, isto é, a transmissão memorial que está ausente. A pesquisa científica irá, assim, suprir um saber lateral sobre o objeto que não foi transmitido. Porém, quando se cria uma representação do contexto de origem do objeto, esta produzirá, simultane-amente, um contexto atual que dá sentido ao objeto, ou seja, que o define a partir

2. “L’archive et l’objet de musée, comme la relique sacrée, sont des pièces à conviction.” (Dulong, 1998, p. 181) [“O arquivo e objeto de museu, como a relíquia sagrada, são provas documentais.”] [Nossa tradução]

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da análise de suas características e faz dele um “semióforo”.3 O objeto não é apenas uma matéria formatada, nem a pesquisa é externa a ele: como dizia acima, é o con-junto do objeto e de todo o aparelho que o documenta, que traz o conhecimento sobre ele e o mundo de onde vem, que constitui o objeto patrimonial, ou aquilo que comumente chamamos de patrimônio.

O resultado dessa inseparabilidade do objeto material e do saber que lhe atribui sua significação é que a materialidade do objeto será daí por diante portadora da signifi-cação: é essa materialidade que parece ter originado a significação. Do mesmo modo como um quadro, por exemplo, é portador, na sua materialidade mesma, da significa-ção que produz, ainda que o saber sobre ele contribua para isso e para o efeito que pode ter sobre quem o observa. Certamente, o quadro foi produzido para ser visto, enquanto o saber é produzido para dar ao objeto material patrimonial sua significa-ção; porém, o fato de que este se apoia na dimensão indicial transportada pela mate-rialidade mesma do objeto irá conferir a este último uma potência simbólica que não se reduz apenas à dimensão cognitiva da significação. Como se constata, o objeto é intrinsecamente portador de sentido, literalmente semióforo. Apesar da diferença entre um objeto de patrimônio e a obra de arte que é o quadro, proponho retomar o termo empregado por Goodman e reutilizado por Genette (1994) para designar esse modo de existência particular no qual o caráter da obra de arte é indissociável de sua materialidade: o modo de existência autográfico. Porém, como acabei de dizer, faço a ressalva de que o sistema autográfico4 dos objetos patrimoniais depende finalmente do saber.

A dimensão comemorativa inerente a todo objeto patrimonial vem daí. Isso pode certamente suscitar precauções no historiador, tendo em vista as regras da pesquisa científica,5 mas consiste naquilo que confere ao objeto seu poder semiótico e social, ou seja, sua operacionalidade simbólica no sentido antropológico do termo. O objeto patrimonial é, de fato, como Janus, bifacial: de um lado, é saber, um saber presente ao mesmo tempo nos documentos anexos e no próprio objeto oriundo do passado (mais exatamente, a interpretação dessas características como indícios); porém, de outro, é também um objeto material, concreto, sensível, que coloca quem está em contato com ele em relação com um universo do qual, ao mesmo tempo, é o elemento e o representante; de fato, um universo inacessível, intangível sem ele. Elemento do passado no presente, o objeto patrimonial é também um signo cujo referente, em virtude do saber construído, é um indício de seu contexto passado. É desse modo que podemos afirmar que o objeto é um testemunho do mundo de o rigem e que pode

3. Retomo o termo de Krzysztof Pomian (1978, 1987, 1996), determinando sua natureza semiótica.4. Para considerar aqui apenas a dimensão patrimonial desses objetos e não sua dimensão artística. 5. Por exemplo, Lowenthal (1998).

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suscitar, naquele que o contempla ou toca, o sentimento de “sublime do passado” de que fala Dulong (1998, p. 180-184).

Quanto ao destinatário, ou seja, aquele que está em contato com esse objeto patri-monial, o duplo caráter do objeto patrimonial serve de base para o que podemos chamar de uma adesão patrimonial. Esta vai além do simples interesse pelo conheci-mento sem por isso ficar reduzida ao prazer da exploração de um mundo imaginário ou ainda apenas ao prazer da relação estética. É exatamente a conjunção do sensível e do inteligível que serve de base para a experiência tanto do descobridor como do visitante. A dimensão testemunhal do objeto, a operacionalidade da presença, quando é sentida pelo homem do presente, pode colorir o saber e atribuir-lhe um caráter de anamnese, o que pode, por exemplo, conferir à visita de uma exposição ou de um sítio visual (ou a qualquer forma de mediação) um caráter comemorativo. O saber atrelado ao objeto material pode, assim, despertar o interesse do grupo e circular novamente na memória social.

Mas para que isso aconteça, é indispensável suscitar um interesse inicial pelo objeto material ou pelo saber a ele atrelado, um processo de empatia, de identificação, para encetar uma apropriação pelos indivíduos e pelo grupo que responde ao “desejo de se transplantar no passado”6, como afirma Dulong7. Esse interesse continua a ser uma das chaves do conhecimento do estatuto patrimonial dos objetos vindos do passado. Sem isso, na melhor das hipóteses, podem recair no esquecimento, na pior, serem destruídos.

O regime de patrimonialização dos objetos imateriais

A patrimonialização do patrimônio imaterial

O advento da categoria do patrimônio cultural imaterial levanta a questão de saber se se trata simplesmente de uma nova categoria de patrimônio ou de um regime de patrimonialização diferente, ou seja, um modo específico de produzir patrimônio. Tendo mais para a segunda hipótese pelas razões que tentarei apresentar adiante, baseando-me em pesquisas científicas, textos profissionais, administrativos e jurídi-cos, e ainda baseando-me na observação de situações concretas.

6. “vœu de se transplanter dans le passé” [Nossa tradução]7. “Le désir d’histoire a le pouvoir de remonter le fil du temps en utilisant tout ce qui fait lien.” (Dulong, 1998, p. 194) [O desejo de história tem o poder de refazer a linha do tempo utilizando o que favorece a ligação.] [Nossa tradução]

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

O patrimônio cultural imaterial é caracterizado, como seu nome indica, pelo fato de que nenhum objeto material torna-se patrimônio enquanto tal. O que faz patrimônio situa-se em outro lugar, nos elementos que são unicamente inteligíveis, perceptíveis, tangíveis através dos suportes que o tornam manifestos. Sem isso, ele só teria exis-tência no espírito, como “idealidade” (Genette, 1994) postulada (postula-se que esse elemento existe como patrimônio) ou construída (como resultado de um trabalho de análise). Um tal objeto imaterial, sendo um objeto ideal, mesmo que venha do pas-sado, não poderia tornar presente o passado como pode fazê-lo o objeto material. Uma das questões a ser examinada será, portanto, a de saber se o suporte, ou melhor dizendo, a manifestação do objeto ideal, pode assegurar uma tal presentificação.

Uma das particularidades do patrimônio imaterial é, sem dúvida, que ele foi formali-zado e definido por uma das instâncias jurídico-administrativas. A definição de refe-rência é a feita pela UNESCO.8 Ainda que esse tipo de patrimônio tenha se beneficiado de uma verdadeira paixão, as pesquisas e os exemplos de situações empíricas não são suficientemente numerosos para que se possa extrair daí regularidades estáveis.

Então podemos dizer que a definição da UNESCO é bastante interessante, não com relação ao conteúdo (evasiva sobre o que pode ser patrimônio), mas porque foi cons-truída em relação direta com situações de patrimonialização para definir a maneira como certos elementos de cultura podem se tornar patrimônio. Podem ser conside-rados patrimônio imaterial “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas, assim como instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhes são associados”. Qualquer um que tenha se interessado pela questão sabe que fica postulado que esse patrimônio pode se recriar continuamente em razão da natu-reza e das contingências dos grupos.9 Mas há um pressuposto segundo o qual o dito patrimônio continuará sempre sendo ele próprio, ou seja, um patrimônio; sem isso, seria difícil ver como ele poderia continuar sendo reconhecido pelo grupo. Um mínimo de características permanentes parece, portanto, necessário para que seja reconhecido como tal. Assim formulada, uma tal definição coloca um problema de lógica, que é resolvido ao menos em teoria, pelo fato de que é o grupo (a comunidade

8. Lembro aqui a definição de patrimônio imaterial na Convenção: “Entende-se por ‘patrimônio cul-tural imaterial’ as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cul-tural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e de continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana” (Convenção sobre o patrimônio imaterial, UNESCO, 2003).9. Emprego o termo “grupo” para designar as comunidades, grupos, e, quando necessário, os indiví-duos apresentados como os atores desse patrimônio. Quanto à natureza e às contigências, trata-se de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

ou suas variantes) que reconhece os elementos que fazem parte do seu patrimô-nio. Se mantivermos essa definição, trata-se, portanto, de uma patrimonialização por reconhecimento. Que esse reconhecimento seja, em seguida, objeto de declarações emitidas pelos Estados e sobretudo pelos especialistas da UNESCO, isto não altera nada o fato de que o reconhecimento é o ato primeiro pelo qual alguma coisa adquire estatuto de patrimônio. Esse reconhecimento é o único gerador de patrimonialização explícito, o único referente posto como capaz de dar ao processo sua razão de ser e sua coerência.

Na realidade, como veremos, as coisas são um pouco mais complexas. Em que bases esta patrimonialização está ancorada? A resposta dada pela UNESCO resulta de três operações: uma transmissão geracional do elemento a patrimonializar; um interesse do grupo por esse elemento que se pode supor estar ligado ao sentimento de identidade e de continuidade; e uma declaração desse reconhecimento, sem a qual ninguém saberia que se trata de um patrimônio. À primeira vista, temos, assim como para o patrimônio material, uma construção patrimonial por homens do pre-sente que consideram que tal elemento constitui seu patrimônio. Porém, é melhor não se iludir. Diferentemente do que acontece com o patrimônio material (a saber, a construção de um conhecimento sobre o objeto e seu modo de origem servindo a estabelecer um estatuto patrimonial do objeto) aqui é postulado que basta uma simples constatação (o reconhecimento) de um estatuto patrimonial preexistente para que este seja aceito, declarado e continuado. Portanto, trata-se de um legado ao mesmo tempo recebido e perseguido. Exceto que nem o reconhecimento como simples constatação daquilo que faz patrimônio, nem a declaração como simples escrita da constatação, nem a continuidade como retomada de um legado são óbvios. E isso é válido para o ponto de vista da lógica e para o ponto de vista da prática.

Do ponto de vista da lógica, fica claro que uma definição como essa coloca um problema duplo. O primeiro tem a ver com a maneira como aquilo que muda pode ser reconhecido como o mesmo. Pode-se objetar que, na prática, pouco importa se há uma mudança, se há recriação permanente ou não. Porém, isso só será pos-sível segundo uma única condição, e é aí que o problema ressurge, qual seja, que não se tente especificar com precisão o que pode ser patrimônio… O segundo pro-blema é que são formas de continuidade muito diferentes, como a continuidade por transmissão de geração em geração e a continuidade iniciada pelo reconhecimento explícito e pela declaração por uma geração do caráter patrimonial dessas práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas do que lhes é associado. A segunda forma de continuidade viria simplesmente depois da primeira, quando na verdade não são de mesma natureza.

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

Na prática da patrimonialização, procedimentos permitem escapar daquilo que poderia se tornar uma tautologia, segundo a qual é patrimônio o que é (reconhecido como) patrimônio. Mas esses procedimentos levantam toda uma série de questões. Segundo quais modalidades o grupo (a imprecisão das formas de grupos já é, em si mesma, reveladora do problema) pode estabelecer o reconhecimento de um patri-mônio? E quem pode fazê-lo em seu nome? Na verdade, a análise do que já existe mostra que sempre se recorre, de um modo ou de outro, a um cientista, muitas vezes um etnólogo,10 para acompanhar um grupo (ou sua minoria ativa…) no seu reconhe-cimento daquilo que é e faz patrimônio. Como acontece com o patrimônio material, vemos novamente o lugar decisivo que a produção do saber ocupa na patrimoniali-zação para determinar o que faz patrimônio, em que e por que ele o faz. Mas o uso do saber não é exatamente o mesmo: concentra-se principalmente no modo como podemos compreender esse elemento como patrimônio e cujo fundamento evidente é a manifestação ou o traço desse patrimônio. É isso que proponho examinar a partir de um exemplo.

O exemplo de um objeto patrimonial imaterial

Para examinar com mais acuidade a questão do regime de patrimonialização dos objetos imateriais e a relação desse regime com a memória, parece-me útil resumir o que caracteriza esses objetos como objetos de patrimônio indo um pouco mais longe do que a definição da UNESCO.

Como vimos, os objetos imateriais (enquanto objetos ideais), para constituírem patri-mônio, devem satisfazer algumas condições. Devem pertencer ao patrimônio cultural do grupo, possuírem uma singularidade que faz deles algo exemplar do ponto de vista da cultura11 e se manifestarem numa materialidade. Em outras palavras, pertencerem simultaneamente a uma classe, possuírem uma individualidade e ser objeto de mani-festação. Desse ponto de vista, seu modo de existência assemelha-se ao das obras de arte, como os textos literários como o Dom Quixote, que pertence a um gênero cultural (o romance), possui uma singularidade que o define como obra, o distingue como obra e o distingue dos outros romances, e que deve ser manifestada, para que se possa aceder a ele, sob forma de cópias impressas, por exemplo. Para qualificar o modo de existência dos objetos imateriais, em seu regime de patrimonialização, tomarei emprestado a categoria que, para Goodman e Genette (1994), equivale ao modo de existência autográfico: o modo, ou regime alográfico.

10. Salvo se o político que propõe a declaração toma a decisão com base em razões outras que as científicas.11. Deixo de lado a representatividade da diversidade cultural e da criatividade humana, que é um dos critérios justificando a inscrição nas listas da UNESCO, uma vez que não intervêm na definição do caráter patrimonial propriamente dito.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

Vale precisar que a manifestação desses objetos ideais que são os objetos imate-riais pode tomar duas formas: a de uma “execução” (um evento, uma prática, uma performance, uma realização, etc.) ou a de uma transcrição, de um relatório, uma descrição, etc., ou seja, de uma “denotação”.12 Sem uma ou outra dessas formas de manifestação, ele continua uma idealidade, uma representação mental. Como vere-mos, esta precisão terá sua importância.

Tomemos como exemplo, ao mesmo tempo simples e suficientemente complexo, os cantos tradicionais com várias vozes, oriundos da Córsega, e que estão inscritos na lista da UNESCO de salvaguarda de urgência13 do patrimônio cultural imaterial da humanidade. Esses cantos, por exemplo, a Messe des vivants de Sermanu (can-tada nas festas de padroeiros), fazem parte da classe dos cantos chamados cantu in paghjella. Trata-se de um conjunto mais ou menos evolutivo de peças tendo essas características, usos, formas mais ou menos similares. É esse conjunto, essa classe, que constitui patrimônio. Estabelecer esse pertencimento (segundo, claro, o grau de expertise musical) fica, aliás, mais ou menos evidente para os membros do grupo para o qual esse conjunto se constitui como patrimônio. Esse pertencimento será facilmente reconhecido pelos membros da comunidade corsa como fazendo parte do patrimônio corsa, tendo em vista as especificidades dessa forma de canto com relação às outras formas, que, embora muito próximas, não serão consideradas parte desse conjunto. Porém, esse reconhecimento supõe que a missa em questão seja executada, cantada, objeto de performance, se é que podemos usar esse anglicismo, por um grupo e que seja transmitida.

Tabela 1: Regime de patrimonialização do Cantu in paghjellaObjeto Objeto genérico Objeto individual

Ideal Cantu in paghjella Versi

RealExecução e denotação (missa, concerto aprendizagem, etc.)

Quando não houver mais traços desses cantos pertencendo a esse patrimônio, este deixará de existir, até mesmo enquanto patrimônio. Daí a importância de duas for-mas de manifestação, que são a execução (uma performance no contexto de uma situação social tal como uma missa, uma festa, um concerto, etc.) e a manifestação da memória por ocasião, sobretudo, da transmissão ou de uma pesquisa de memó-ria. É o caso dessa forma de transmissão por eventos que é a aprendizagem do canto,

12. Os conceitos de execução e de notação – ou (de)notação – foram emprestados de Genette (1994) [exécution, notation, (dé)notation].13. Conferir o sítio da coletividade territorial da Córsega http://www.corse.fr/Cantu-in-paghjella_a2491.html, consultado em 8 de novembro de 2011.

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

e que não passa de uma forma de inscrição das modalidades de performance na memória dos indivíduos sociais para produzir a memória coletiva. A memória indivi-dual e/ou coletiva é a base da denotação, e por conseguinte, base do saber sobre o que caracteriza a obra como pertencendo à classe dos cantu in paghjella. Essa denotação é o equivalente da partitura, dos comentários musicológicos ou das indi-cações cênicas. Mas, diferentemente da partitura (ou de outras formas de denotação escrita), que faz forçosamente uma redução do canto, a transmissão por aprendiza-gem transmite não apenas as notas e os comentários, mas também a capacidade de reproduzir o modo de manifestar o canto na execução (para produzir uma réplica da obra). De fato, a execução deve ser feita segundo as modalidades que garantem a manifestação efetiva da dimensão patrimonial, tal como a escolha das peças de acordo com a situação, composição do grupo (distribuição das vozes), escolha das circunstâncias, etc.14 Todas essas são condições para o sucesso de um reconheci-mento do caráter patrimonial.

Diferentemente do modo autográfico do patrimônio material, em que o caráter patri-monial é atrelado ao objeto (modificar o objeto ou mudá-lo fará desaparecer o caráter patrimonial), o estatuto do patrimônio imaterial existe anteriormente a suas manifes-tações, ainda que a existência mesma desse patrimônio seja questionada se essas manifestações vierem a desaparecer, sobretudo, ponto essencial, a memória, que permite que elas aconteçam. Esta seria provavelmente a razão de se recorrer à grava-ção, para que a memória seja fixada, uma vez que essas manifestações são na maior parte do tempo efêmeras. Nessas condições, compreende-se por que o desafio não repousa sobre a validade semiótica da relação do objeto com seu mundo de origem (sua autenticidade), como no caso do patrimônio material. Essa relação recai sobre a validade das manifestações e traços do que faz patrimônio, de sua conformidade e de seu respeito ao objeto ideal (é o caso da Messe des vivants de Sermanu, por exemplo), e do pertencimento deste à classe que constitui patrimônio (o cantu in paghjella, para reforçar o mesmo exemplo). Esse desafio é ainda maior quando só podemos apreender o que faz patrimônio através de uma peça executada, através de suas manifestações.15 Os saberes não servem, portanto, para reconstituir a memória perdida dos objetos a fim de atestar sua autenticidade, mas, antes, servem para validar as modalidades de existência físicas das idealidades patrimoniais, suas mani-festações, e até mesmo o registro delas.

14. Essas últimas indicações são precisamente exemplos de notações transmitidas pela memória do grupo, mesmo junto aos não cantores.15. Isso aparece muito bem no fato de que é a autenticidade da experiência do visitante ou do espec-tador que deve ser garantida. Ainda mais em razão da performance enquanto obra autográfica, cujo registro produz cópias (alográficas). Somos aqui confrontados a uma hermenêutica prática do traço.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

Não é espantoso, portanto, que os saberes sejam mobilizados para garantirem a validade das relações entre os registros e a manifestação (aqui a execução dos can-tos); entre a manifestação e o que faz patrimônio (os cantos reconhecidos como patrimônio); entre esses objetos e a classe à que pertencem e que faz patrimônio (no caso presente, o cantu in paghjella); entre essa classe de cantos e a cultura à que ela mesma pertence (a cultura corsa). Em cada ocasião, esses saberes são híbridos de memória e de conhecimentos construídos. Se os membros do grupo sabem o que obedece ao caráter patrimonial e o que não obedece, é por terem visto, ouvido, aprendido. Observamos que isso não dispensa, muito pelo contrário, o estabeleci-mento de uma descrição pensada e de um estudo científico durante o processo de patrimonialização.16 Essa descrição e esse estudo vêm registrar, completar, traduzir sob forma de conhecimentos, os saberes transmitidos implicitamente (durante as execuções) ou explicitamente (por aprendizagem).

Permanecem abertas duas questões principais. A primeira é a de saber a partir de que momento as mudanças nas manifestações vão abalar o caráter patrimonial do objeto ideal (a Messe des vivants, nesse caso), e até mesmo a partir de que momento esse objeto pode perder seu caráter patrimonial. De aparência algo teórica, para não dizer casuística, essa questão compromete de fato as possibilidades de evolução das manifestações e da permanência do que as torna singulares e manifestações do patrimônio de uma cultura. Ainda sobre esse ponto, não é garantido que o princípio que consiste em devolver a pergunta à comunidade seja tão simples a ser executado quanto parece à primeira vista.

A segunda questão diz respeito à maneira como é possível compartilhar o que cons-titui patrimônio (o cantu in paghjella, para retomar nosso exemplo) e suas manifesta-ções (execuções ou saber). Diferentemente, portanto, dos membros da comunidade, que, pelo menos em princípio, podem determinar o que constitui patrimônio e o que não constitui, as pessoas externas ao grupo entram unicamente para assistir às manifestações. Isso coloca um duplo desafio. Em primeiro lugar, o da abertura ou não desse patrimônio aos outros (por meio de sua instalação e circulação no espaço público sob forma de concertos ou programas de rádio e televisão, por exemplo). E, em segundo lugar, o modo como essa instalação e essa circulação vão permitir ace-der, refazer, digamos assim, o caminho das manifestações à dimensão patrimonial e de se ir além da mera performance musical, por exemplo. Retornarei a esses dois desafios mais adiante.

16. Salini Dominique, Musique traditionnelles de Corse, A Messagera/Squadra di u Finusellu, Avril 1996. Pérès Marcel, Le Chant religieux corse!: État, comparaisons, perspectives. Federazione d’Associ Linguistichi Culturali è Economichi, éd. Créaphis 1996 (coll. Les cahiers du CERIMM).

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

Da memória coletiva à memória social

O caráter efêmero da memória coletiva

De acordo com a definição de memória coletiva que Maurice Halbwachs propõe, os indivíduos do grupo são os portadores da memória e são eles que a manifestam. A continuidade entre o passado e o presente é assegurada por intermédio dos próprios indivíduos; são eles que servem de ligação entre os dois. Para que a transmissão aconteça é, todavia, necessário que ela seja executada, ou seja, enunciada, seja pela verbalização, seja por meio de uma prática. Uma das formas exemplares da manifes-tação da memória coletiva é o testemunho, mas também é preciso mencionar todas as formas de transmissão oral e prática, técnicas e saberes através de situações socialmente definidas, como um ritual, um relato, um espetáculo, uma intervenção, uma discussão, um encontro, uma aprendizagem, a realização prática de uma téc-nica, etc. Circulando, assim, no grupo, a memória coletiva pode, em razão disso, produzir correntes de pensamento que atravessam a sociedade. De qualquer forma, entendida em sentido estrito, a memória coletiva permanece viva enquanto houver membros do grupo para sustentá-la , mas ela desaparece com eles.

Comentando Halbwachs, Gérard Namer (1987, 1997) mostrou que a memória cole-tiva poderia momentaneamente se tornar memória social, ou seja, ser conservada sob forma de traços, lugares, materializações rituais, textos – e, hoje, gravações –, para ser em seguida reativada. Dois casos se apresentam: ou não houve realmente ruptura, pois esses a quem a memória escrita se dirige viveram ou conheceram os acontecimentos (a recepção assume, então, a forma de uma recordação dentro da própria memória coletiva, a forma de uma evocação da lembrança); ou houve ruptura entre os acontecimentos e aqueles a quem se dirige a memória social e, nesse caso, o suporte, os traços, a escrita ou o registro gravado da memória servem para reativar uma memória social no interior de um grupo social, que, embora não seja o grupo de origem, faz parte do mesmo conjunto desse grupo ou tem ligação com ele, na medida em que é, por exemplo, constituído por seus descendentes ou porque pertence à mesma cultura (Rautenberg, 2003, p. 47). Estes suportes servem, então, para asse-gurar uma continuidade da memória, para restaurar esse tempo que, como explica Namer (1987, p. 113), “é o contexto social da memória coletiva na medida em que é o presente imutável do hábito de pensamento de si feito pelo grupo”.17 É a continuidade de um hábito de pensamento que é mantido ou restabelecido.

17. “est le cadre social de la mémoire collective dans la mesure où il est le présent immuable de l’habitude de pensée de soi du groupe” [Nossa tradução]

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

A memoração social

Se admitimos a distinção proposta por Halbwachs entre memória e história, a memó-ria social – chamada também de memória cultural – pertence, evidentemente, ao registro da memória, no sentido em que ela tem a capacidade de dar continuidade à transmissão no seio de um grupo. Em oposição, sabemos que a reconstrução his-tórica ou patrimonial é feita a partir do tempo presente e pressupõe a mediação dos documentos (o arquivo), e não a dos testemunhos ou documentos produzidos para fins de transmissão. A diferença fica evidente com a história, que, segundo afirma Halbwachs, “é necessariamente um atalho e é por isso que comprime e concentra, em alguns momentos, evoluções que se estendem ao longo de períodos inteiros: é nesse sentido que ela extrai as mudanças da duração”18 (Halbwachs, [1950] 1997, p. 165). Autores como Raphael Samuel (1994, p.!ix-x) contestaram essa oposição entre história e memória, que é, talvez, segundo ele, um legado do romantismo. Ampliando a noção de história a uma forma social de conhecimento, ele considera a memória segundo o modo da etnografia contemporânea: não como um banco de imagens do passado, mas como uma força ativa, construtiva, dinâmica, que contribui para fazer esquecer tanto como para fazer lembrar. Mas o que resta é precisamente o caráter de fluxo da memória, a dimensão humana da palavra (a encarnação do enunciador); em suma, a importância dos aspectos sociais, afetivos, sensíveis, e não apenas cog-nitivos.

Se a passagem da memória coletiva à memória social preserva a origem do saber transmitido, ou seja, a posição do destinatário, ela interrompe, contudo, o fluxo, fixa os saberes, corre o risco de fazer desaparecer a dimensão incarnada da fala, de apa-gar o contexto social de enunciação na medida em que esses saberes e essa palavra serão daí por diante fixados, porque inscritos num suporte. Trata-se, portanto, de um estado da memória que é estabelecido, transcrito, porém, a recriação contínua fica interrompida.

Na qualidade de memória, ela deve ser executada, manifestada para existir. Mas, enquanto memória social, devem ficar, forçosamente, traços dessa execução, dessa performance. A forma mais simples e mais antiga apela para a transcrição, a descri-ção, o relato, etc.; em outras palavras, apela para a escrita. Além da dificuldade de sua realização quando se trata de performances um tanto quanto complexas, o inconve-niente dessa forma é a importante redução que ela opera. Ora, sabe-se que há a possi-bilidade de registro do som, da imagem fixa e animada, o que permite conservar traços

18. “est nécessairement un raccourci et c’est pourquoi elle resserre et concentre en quelques moments des évolutions qui s’étendent sur des périodes entières!: c’est en ce sens qu’elle extrait les changements de la durée” [Nossa tradução]

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

não apenas daquilo que se diz, mas também da situação de enunciação, das práticas, expressões, das relações e dos corpos. Fica evidente, porém, que o mesmo registro, por mais completo que seja, opera sempre uma redução. De onde a necessidade de uma verdadeira escrita, na forma da escolha do que é gravado, do ponto de vista e da montagem, criando, assim, um contexto destinado a dar conta do contexto de origem do elemento gravado, como nos ensinou a antropologia visual. Teremos, desse modo, a criação de um olhar sobre a memória gravada, que a formata, editora de um certo modo, lançando mão, para isso, do conhecimento científico, geralmente, do saber da etnologia. A criação desse olhar introduz um compartilhamento entre, de um lado, a memória e o mundo de onde ela vem e de outro o mundo que operou o registro; seja entre um mundo de origem que enuncia a memória e um mundo da recepção que a põe em forma e a conserva. O tratamento da memória social se aproxima, então, da história e, em todo caso, engaja, de facto, um processo de patrimonialização.

O registro, e a fortiori a escrita, das manifestações da memória acarreta uma profunda modificação no modo de existência social da memória. A mudança mais importante é certamente a possibilidade de não apenas voltar sobre manifestações anteriores da memória dentro do grupo (Goody, 1977), mas ainda de torná-la pública, ou seja, de ser, de dá-las a conhecer e fazê-las circular fora do grupo, num outro espaço social. Mede-se a extensão dessa mudança pelo fato de que o objeto suporte desse registro pode se tornar totalmente autônomo. O contexto social da produção da memória ou até mesmo de sua manifestação, que era próprio ao grupo, pode vir a desaparecer ou, no mínimo, não mais constituir a situação que dá sentido à memória.

Entretanto, a transformação da memória coletiva em patrimônio não é a patrimoniali-zação dos objetos imateriais. Gostaria, portanto, de voltar, como forma de conclusão, a falar sobre ao lugar que ocupa a produção da memória social na patrimonialização dos objetos imateriais como meio de produzir o saber.

Memória social e regime de patrimonialização dos objetos imateriais

Parece-me, de fato, que o lugar do tratamento da memória seja determinante nas diferenças existentes entre o regime de patrimonialização dos objetos imateriais e o regime dos objetos materiais. Se, de um lado, a inscrição e o registro da memória num suporte material faz com seja possível conservar e expor a memória, de modo que ela seja assim patrimonializada, de outro, a memória constitui o saber lateral que permite dar aos objetos imateriais seu estatuto de patrimônio.19 O registro e o

19. Observa-se o mesmo fenômeno com os objetos contemporâneos oriundos do mesmo regime de patrimonialização.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

tratamento da memória coletiva, destinados a produzir um saber servindo à patrimo-nialização, vão transformá-la numa memória social, escrita, documentada, estocada. É assim que ela adquire o estatuto de saber legítimo garantindo a existência e a natureza desse objeto ideal que é o objeto imaterial.

A análise do exemplo do cantu in paghjella – mas seria necessário verificar se acon-tece a mesma coisa nos outros casos – permite apreender como essa memória social pode servir para definir a classe de pertencimento dos objetos imateriais. Esta, de fato, é constituída apenas dos objetos imateriais que as manifestações permiti-ram identificar e reconstituir. É dessa forma que a patrimonialização pode constituir uma idealidade genérica (o cantu in paghjella) a partir das manifestações dos indi-víduos que a compõem (a saber, os diversos cantos coletados nos documentos). Compreende-se por que a ausência de manifestações possíveis conduz irremediavel-mente à constatação de um patrimônio perdido, seja porque se tornou inacessível, seja porque jamais existiu. Inversamente, a existência de uma memória e de sua coleta, colocada em perspectiva com conhecimentos etnológicos e musicológicos, vai permitir coletar, e, às vezes, até mesmo restituir, o que constitui patrimônio (a idealidade genérica do cantu in paghjella), sem que possamos, contudo, saber se o conjunto coletado ou restituído corresponde à totalidade dos elementos (dos cantos) que outrora puderam existir. Mas pouco importa. Podemos afirmar que o essencial reside na coerência do conjunto que pode ainda ser manifestado hoje.20

O saber constituído por meio da escrita da memória coletiva em memória social pos-sui, assim, um lugar determinante no processo de patrimonialização, e isso, de dois modos. Em primeiro lugar, ele é um elemento do próprio objeto patrimonial. Como no caso do patrimônio material, o saber é o que dá suporte ao objeto. Ele garante que o objeto material presente pertence a seu mundo de origem e tem, portanto, o estatuto de patrimônio. Já no caso do patrimônio imaterial, o saber garante que a manifestação é realmente a de um objeto ideal, fazendo parte de um patrimônio pelo duplo jogo do reconhecimento das características patrimoniais na manifesta-ção e da existência efetiva de um patrimônio constituída pelo conjunto dos objetos imateriais (como objetos ideais). Podemos dizer que o objeto patrimonial imaterial é um dispositivo constituído pelo objeto ideal (como exemplo do conjunto, da idea-lidade, genérica), pelo saber constituído e pelas manifestações, que podem, ainda, ser gravadas como traços da existência do objeto ideal; e isso, salvaguardados pelo saber, garantindo que as ditas manifestações são verídicas e não puras invenções. Em seguida, devido à escrita da memória coletiva em memória social, a constituição do saber produz um hiato temporal entre um antes (em que o saber intervém dentro

20. Refiro-me ao sítio onde consta o relato da patrimonialização. Disponível em: http://www.cantu-in-paghjella.com/, consultado em 8 de novembro de 2011.

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

das situações de transmissão) e um depois, cujo saber existe de modo relativamente autônomo sob forma de documentário.

A escrita da memória afasta o esquecimento, mas, ao mesmo tempo, a memória coletiva é remetida ao passado (aquele de antes de sua escrita). Já falamos desse fenômeno. Porém, com o fato de que esse saber sob forma documental serve à patri-monialização – ao mesmo tempo, para a constituição dos objetos patrimoniais e para transmiti-los e torná-los públicos –, esse hiato temporal é acompanhado por um pro-cesso de reflexão, uma vez que esse saber documental fornece um olhar e um conhe-cimento sobre a sociedade e sua cultura pelos próprios membros do grupo. Quanto à produção, a posição daqueles que patrimonializam (a posição do destinatário) é, de certa forma, clivada entre a participação na prática (sob forma de performance e de transmissão tradicional) e a enunciação de um saber sobre essa prática por meio da escrita e de sua memória. Quanto à recepção, a patrimonialização tem por efeito per-mitir a existência de duas posições de destinatários, de definir duas posições para aqueles que assistem às performances (manifestação por execução) e/ou tomam conhecimento dos saberes (manifestação por denotação):

• Em uma dada cultura, a posição das pessoas que possuem ao menos em parte uma memória lateral sobre o objeto imaterial e o patrimônio ao qual pertence, ao lado dos saberes constituídos sob forma documental e que podem, por essa razão, e pelo menos parcialmente, apreciar a dimensão patrimonial da manifestação;

• A posição das pessoas externas àquela, que não possuem essa memória lateral e acedem ao objeto imaterial pela manifestação e/ou pelos saberes constituídos. Para essas, o risco (de um ponto de vista patrimonial) é de que a manifestação funcione como uma performance cultural, como uma obra autônoma, desconectada da idealidade, ou seja, daquilo que faz patrimônio.21

Essa clivagem das posições comunicacionais de emissor e destinatário tem por efeito produzir uma cultura comum entre os membros do grupo e as pessoas externas a ele. Essa cultura comum remete forçosamente a um alhures, no passado, a perfor-mances e a uma transmissão que se faziam segundo o regime da memória coletiva. O hiato temporal pode então eventualmente assumir a forma de uma ruptura.

21. Nesse caso, a manifestação funciona como uma obra tendo um modo de existência autográfica. A criação substitui a dimensão patrimonial por um enfoque maior na parte da criação do que na execução. No outro caso, eles vão buscar uma autenticidade da experiência patrimonial.

MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

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Em última análise, se o problema ao qual o regime de patrimonialização dos objetos materiais é confrontado é a dificuldade de revitalizar na memória coletiva o saber construído cientificamente (ou seja, produzir empatia), e de superar uma relação unicamente estética ao objeto a fim de garantir uma continuidade entre o coletivo presente e o grupo imaginário dos homens do mundo de origem dos objetos, a difi-culdade do patrimônio imaterial reside paradoxalmente no risco de distanciamento de sua própria cultura por causa da reflexividade, e também nas modalidades a colo-car em prática para se manter o laço entre a manifestação presente e o que constitui patrimônio na cultura.

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Patrimonialização das diferenças e os novos sujeitos de direito coletivo no Brasil

Regina Abreu

Dedico este capítulo à memória de Gilberto Velho que me despertou para as dimensões práticas e reflexivas de uma

antropologia da patrimonialização das culturas. (Velho, 2007)

A configuração contemporânea dos processos de patrimonialização

Na formação das nações modernas, a noção de patrimônio associou-se à ideia de bem coletivo e público expressando um tipo de sociedade como coletivo de indiví-duos e indivíduo coletivo. Num primeiro movimento, bens considerados privados e restritos a grupos de elites, notadamente históricos e artísticos, ganharam o estatuto de “bens nacionais” ou seja, legados de uma coletividade. Processos de patrimoniali-zação tornaram-se objetos de políticas públicas com agências voltadas para este fim. Patrimonializar passou a significar um processo de escolha de determinados bens ou artefatos capazes de simbolizar ou de representar metaforicamente a ideia abstrata de nação e seus corolários, como a ideia de humanidade. Krzysztof Pomian (1997, p. 51-87), em seu verbete sobre “coleção”, insiste sobre esta mudança de estatuto do objeto após passar pelo movimento da patrimonialização. Ao integrar uma coleção museológica, o artefato perde seu valor de uso e adquire um valor simbólico. Uma xícara integrada ao acervo de um museu deixou de ser um objeto utilitário para se tornar um objeto que representa ideias abstratas como estilo de fabricação, país, região, uma época e assim por diante. Novos significados são justapostos e integra-dos a um bem que, na esfera mercantil, era apenas mais um objeto a ser consumido, utilizado, descartado. A patrimonialização concede a este artefato uma nova vida e um novo valor. A partir da patrimonialização, ele deve ser preservado e exposto ao olhar do público, ou seja, ele se torna bem público e legado de um coletivo de

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

i ndivíduos. Esta é uma operação complexa que envolve diversos agentes especial-mente treinados com a finalidade de uma construção especial de valor.

Os bens patrimonializados são considerados sagrados para uma cultura ou um grupo social organizado. Richard Handler descreve a força da patrimonialização no Oci-dente moderno para tornar palpáveis e materializáveis ideias muito abstratas, de difícil assimilação, como a ideia de nação. Referindo-se ao caso do Quebec, Handler usa a expressão “fetichismo da cultura material” para aludir ao patrimônio como identificador de coletivos de indivíduos como “culturas”, “nações” e “humanidade”. Neste contexto, “ter” um patrimônio passou a significar uma certificação cultural ou uma certificação nacional.

Eu procuro explicar o que poderia ser chamado de fetichismo da cultura mate-rial que tanto anima os governantes, cidadãos e curadores de museus em seu afã de preservar seus “patrimônios”. Qual patrimônio uma coleção particular representa é frequentemente uma questão em aberto; mas a ideia de que um objeto ou uma cultura material podem sintetizar uma identidade coletiva – e a sintetizando, serem considerados como propriedade de uma coletividade – raramente é colocada em questão. [...] em Quebec o patrimônio é um termo comum de uso popular e central no discurso nacionalista. Falar de patrimô-nio é visualizar uma cultura nacional como propriedade, e a nação como uma propriedade pertencente a um indivíduo coletivo, para usar a terminologia de Dumont [...]1.

Handler refere-se criticamente a este processo mencionando um excesso de “objeti-ficação” das culturas que os museus, notadamente os museus etnográficos, acaba-ram promovendo. Exibindo artefatos culturais, os museus acabaram criando a ilusão de que, ao vermos estes objetos, estaríamos vendoz as culturas neles representadas. O comentário de Handler é interessante também para percebermos o sentido e o alcance dos patrimônios no Ocidente moderno. Num mundo organizado em estados-nações, patrimônios servem para identificar e expressar tanto as singularidades de cada um como para marcar as diferenças entre eles. Dois conceitos são decisivos nesta configuração: originalidade e autenticidade.

1. “I seek to explicate what might be called the fetichism of material culture that animates govern-ments, citizens, anda museums curators alike in their zeal to preserve their ‘heritage’. Whose heritage a particular collection represents is often open to question; but the idea that objects, or material culture, can epitomize collective identity - and, epitomizing it, be considered as the property of the collectivity - is rarely disputed. (…) In Quebec, le patrimoine is a term common in popular usage and central in nationalist discourse. To speak of the patrimoine is to envision national culture as property, and the nation as property-owning ‘collective-individual’, to use Dumont’s term (1971) […].” (Handler, 1985, p. 192-218) [tradução livre da autora]

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

Podemos, pois, falar em processos de patrimonialização como um movimento pró-prio do Ocidente moderno, com a criação de agências nacionais e internacionais, a formação de agentes, a definição de políticas públicas. Trata-se de um campo com muitas disputas e um circuito próprio de circulação de ideias, práticas, artefatos, profissionais. Fazendo um esforço de síntese, podemos apresentar a trajetória dos processos de patrimonialização em três grandes momentos. No primeiro, que vai do século! XIX à primeira metade do século! XX, os processos de patrimonialização fundamentavam-se na reconstrução do passado (história) ou na busca e valorização de uma arte nacional. No segundo, cujo marco fundamental foi a criação da UNESCO nos anos 1940, uma nova e importante variável é absorvida pelos processos de patri-monialização: o conceito antropológico de cultura. É importante ressaltar que o pro-jeto de criação desta agência internacional esteve ligado diretamente à busca da paz entre as nações após duas guerras mundiais. A noção de que os homens eram seres biologicamente semelhantes e que poderiam marcar suas diferenças pela cultura foi apropriada como um dos fundamentos da UNESCO em que a meta seria a troca e o intercâmbio entre as culturas para uma maior aproximação e, consequentemente, um maior entendimento entre os seres humanos. O terceiro momento tem início no final dos anos 1980, particularmente com o lançamento pela UNESCO da Reco-mendação de Salvaguarda das Culturas Tradicionais e Populares em 1989, quando as políticas preservacionistas passam a ser normatizadas por fóruns internacionais, com a predominância da UNESCO, estimulando uma dinâmica globalizada de iden-tificação, proteção, difusão e circulação de valores e signos patrimoniais. É neste período que se implanta o que estou chamando de tendência à “patrimonialização das diferenças”, em que a palavra de ordem, capitaneada sobretudo pela UNESCO, é que, “num mundo com tendência crescente à homogeneização” protagonizada pelo capitalismo globalizado e neoliberal, é preciso preservar, ou seja: conceder especial atenção à noção de singularidade ou de especificidade local.

O tema do patrimônio imaterial ou intangível emerge com especial destaque e mui-tos dos estados-membros colocarão em prática políticas públicas especialmente vol-tadas para esta modalidade de patrimonialização. Mas a grande novidade advinda neste período é que o campo da patrimonialização abarcará diálogos em rede entre representantes de novos organismos – agências locais, nacionais e internacionais e, sobretudo, movimentos sociais, organizações não-governamentais, coletivos de indivíduos oriundos de camadas populares e um sem número de sujeitos coletivos – favorecidos pelas novas tecnologias, trazendo um novo elemento como contra-ponto para a quase exclusividade das instituições estatais neste domínio até então. É preciso sublinhar que estes novos agentes foram tomando a cena pública, expres-sando interesses variados e às vezes muito específicos. A partir dos anos oitenta do século!XX, podemos falar na “era das organizações não-governamentais”, cujas repre-

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

sentações foram legitimadas, e mesmo desejadas, pelos fóruns internacionais, como os fóruns promovidos pela UNESCO e pelos governos democráticos em diversos paí-ses. O campo da patrimonialização adquiriu novo dinamismo e a política passou a se fazer no corpo a corpo das agências. E é neste contexto que muitas novidades virão, entre elas, a entrada na cena pública de segmentos sociais antes invisíveis, oriundos das camadas populares e de sociedades tradicionais.

A nova dinâmica da patrimonialização das diferenças vai estimular um amplo sistema de informações numa esfera global. Inventários, bancos de dados, listas interminá-veis de bens preservados ou passíveis de preservação passaram a ser elencados por um contingente crescente de profissionais especialmente formados para traba-lhar em processos de patrimonialização. As universidades e os centros de formação ampliaram os cursos e as especializações para qualificar novos agentes do patri-mônio, dos museus, da memória. Registramos uma demanda crescente das insti-tuições e agências por profissionais neste setor e também um mercado cada vez mais atraente para jovens em início de carreira. Podemos dizer que, numa esfera global, o campo do patrimônio vem se profissionalizando e inovando de maneira sur-preendente. Especialmente as políticas públicas voltadas para patrimonialização de aspectos culturais imateriais ou intangíveis vêm absorvendo profissionais das áreas de ciências humanas, especialmente jovens antropólogos recém-saídos dos cursos de graduação ou pós-graduação para a preparação de dossiês, projetos de inventário e registro de manifestações culturais específicas e singulares.

Registramos também uma tendência crescente de dissertações e teses de mestrado e doutorado focalizando temas relacionados à patrimonialização em programas de pós-graduação na área de ciências humanas, especialmente antropologia social e história cultural, ou em programas interdisciplinares como o de memória social no Brasil e em programas específicos em torno da temática de memória e patrimônio em diversos países.

Foram também criadas redes e fóruns de discussão na internet de pesquisadores e profissionais do campo do patrimônio congregando significativo número de adeptos. Por seu turno, as novas tecnologias dos suportes informacionais passaram a con-tribuir para a produção e gerência da catalogação e documentação das “diferenças culturais”, seja por parte das agências estatais consagradas ao campo, seja por parte dos museus, bibliotecas, arquivos ou ainda organizações não-governamentais, uni-versidades, redes sociais. A disponibilização de portais e sistemas informacionais na web gerou também uma nova área cunhada de “patrimônio digital”. A partir da tecno-logia das redes informacionais, uma nova onda patrimonial foi posta em marcha, com a criação de novos suportes de preservação e memória (Dodebei, 2008).

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PRIMEIRA PARTE. ABORDAGENS TEÓRICAS

O fenômeno da “patrimonialização das diferenças” pode ser descrito como uma área em ebulição e, num certo sentido, como uma área de excesso. O excesso de deman-das de patrimonialização convive com políticas de distinção, principalmente com a implantação das “listas” com várias gradações: lista dos patrimônios imateriais ame-açados; lista dos patrimônios mundiais; lista das obras-primas do patrimônio oral e imaterial da humanidade. Se, de um lado, no plano dos inventários, da catalogação, da documentação, os processos de patrimonialização são inclusivos, no plano das listas, a corrida para candidaturas muitas vezes acirra disputas e tensões entre orga-nismos governamentais e não-governamentais em todos os cantos do globo. Outra característica da atual configuração é que não basta mais cada estado-nação consti-tuir seu próprio patrimônio, como ocorria até princípios do século!XX. Agora, é preciso tornar patrimônios específicos e singulares visíveis globalmente por meio da web. E, num contexto com excesso de informação (ou de patrimonialização), aqueles que se destacam e se distinguem com o selo de “patrimônio mundial” ou de “obra-prima do patrimônio oral e imaterial da humanidade” adquirem maior visibilidade, pois figuram no portal da UNESCO e em programas variados de difusão, o que certamente abre e fortalece projetos e demandas de mercantilização das culturas.

A importância que a visibilidade na web adquiriu para o campo do patrimônio pode ser exemplificada pelo caso das patrimonializações das cidades. A corrida para a obtenção do selo de “patrimônio mundial” concedido pela UNESCO desencadeou expectativas as mais diversas num mundo mercantilizado, onde se destacou o cres-cimento da indústria do turismo. Em finais dos anos 1980, o número de cidades dis-tinguidas como “patrimônio mundial” era de setenta e uma, enquanto, em finais dos anos 1990 (apenas dez anos depois), este número se elevou para cento e sessenta e quatro. O sociólogo Paulo Peixoto comenta que “tão ou mais significativo quanto este crescimento é o fato de a percentagem de cidades patrimônio mundial situadas na Europa ter passado, na última década do século!XX, de 45,1%, em 1989, para 57,3%, em 1999”. (Peixoto, 2012, 801-817)

Podemos sintetizar assinalando que o campo do patrimônio na contemporaneidade constitui-se num campo assaz paradoxal: se, por um lado, abre-se uma comporta para um excesso de patrimonialização impulsionado pela “política da patrimoniali-zação das diferenças como forma de combate à homogeneização neoliberal”, bem como pelas novas tecnologias e os modernos sistemas informacionais, por outro lado, fortalece-se o movimento inverso estimulando ações de distinção patrimonial, materializadas por meio dos selos de “patrimônio mundial” ou de “obra-prima do patrimônio oral e imaterial da humanidade”.

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De qualquer modo, e por mais paradoxal que este fenômeno possa parecer, o que me parece crucial é que estas duas modalidades de aproximação com o campo do patrimônio contribuíram para disseminar e popularizar a categoria “patrimônio”. Em outras palavras, a categoria “patrimônio” “caiu na boca do povo”. Deixou de ser uma prerrogativa das elites ou das agências estatais que representavam estas elites, para ser entronizada no senso comum, nos mais diversificados rincões do planeta. A von-tade de patrimonializar cresceu e se capilarizou no tecido social. E muitas têm sido as consequências deste movimento: uma delas é que patrimônio deixou de ser sinônimo de ouro, prata, bronze, coisa duradoura, para também contemplar a argila, o barro, o efêmero. Outra consequência é que os processos de patrimonialização deixaram de ser atributo de algumas falas autorizadas legitimadas no aparelho de Estado para se converterem em falas plurais tecidas em redes em que interagem diversos agentes, entre os quais se destacam as organizações não-governamentais, os especialistas, as comunidades, os patrocinadores, os agentes estatais.

Uma característica nova dos atuais processos de patrimonialização, especialmente aqueles ligados a bens culturais de sociedades tradicionais, é que os grupos sociais ligados a estes bens é que devem demandar a patrimonialização, ou pelo menos endossar as demandas de patrimonialização. Estas novas práticas, socialmente mais inclusivas, contrastam com práticas anteriores, principalmente quando a hegemonia do campo patrimonial se configurava como histórica e artística, ficando ao encargo dos especialistas destas áreas a constituição dos processos de patrimonialização. É perceptível o quanto estes processos deixaram de contemplar quase que exclusi-vamente reconstruções do passado para focalizarem manifestações culturais vivas e pulsantes como festas, rituais, saberes, conhecimentos tradicionais. Neste movi-mento, os protagonistas dos bens passíveis de serem patrimonializados entraram em contato com a lógica patrimonial. Muitos destes indivíduos, integrantes de etnias indígenas e diversos grupos tradicionais, tiveram que se relacionar com a lógica da patrimonialização aprendendo que manifestações culturais praticadas milenar-mente pelo grupo poderiam ganhar novos significados no contato com a sociedade nacional. Esta mudança de estatuto dos bens culturais, ao passarem pelo processo de patrimonialização, vem implicando também em mudanças de percepção, novos trânsitos e a transformação de visões de mundo numa perspectiva dialógica entre diferentes agentes. É sobre este momento de ultracriatividade que o fenômeno da patrimonialização das diferenças engendra o que trata este artigo.

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O papel decisivo da UNESCO

Já mencionamos o lugar hegemônico da UNESCO na nova configuração dos processos de patrimonialização. Numa ordem global, este lugar é exercido de diferentes manei-ras, mas uma ferramenta tem se destacado: as recomendações que, de tempos em tempos, a UNESCO lança, sugerindo ações e políticas públicas aos estados-membros. É evidente que cada estado-nação desfruta de autonomia para suas tomadas de deci-são, o que confere a estas recomendações o caráter de sugestão, mais do que de for-mulação de uma política para a área. Entretanto, na prática, grande tem sido o grau de adesão às formulações desta agência internacional. Neste contexto, é importante destacar a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, lan-çada em 15 de novembro de 1989, documento que trouxe um conjunto de novas questões, desdobrado posteriormente na Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, de 2001, na Declaração de Istambul, de 2002, e na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003.

A Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, de 1989, apro-vada pela Conferência Geral da UNESCO, configurou-se numa espécie de “discurso fundador”, colocando na ordem do dia uma nova diretriz: a identificação, a salva-guarda, a conservação, a difusão e a proteção da cultura tradicional e popular, por meio de registros, inventários, suporte econômico, introdução de seu conhecimento no sistema educativo, documentação e proteção à propriedade intelectual dos gru-pos detentores de conhecimentos tradicionais. A recomendação definia como cul-tura tradicional e popular:

o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundadas sobre a tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos, e reconhecidas como respondendo às expectativas da comunidade enquanto expressão da sua identidade cultural e social, das suas normas e valores transmitidos oralmente, por imitação ou por outros meios. As suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os cos-tumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes. (UNESCO, 1989)

Os documentos da UNESCO, neste período, vão enfatizar a enorme perda cultural para indivíduos, países e para a humanidade advinda das mudanças drásticas pro-duzidas pelo capitalismo em sua feição globalizada. Uma preocupação recorrente consistia em salvar tradições culturais em acelerado processo de desaparecimento. Um dos documentos trazia a imagem metafórica de perdas importantes para a huma-nidade, caso não fossem imediatamente postos em prática programas e políticas públicas de valorização e de registro da cultura tradicional e popular: “em sociedades

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tradicionais, quando um ancião morre, muitas vezes é uma biblioteca inteira que se queima”.

Por outro lado, na dinâmica de encontros da UNESCO, emergiam diferentes relatos de modos de preservação e políticas de patrimonialização abrindo novas perspecti-vas. Uma das experiências mais marcantes neste sentido relacionava-se à vertente oriental, especialmente à vertente japonesa de política patrimonial, voltada para a preservação dos processos e do “saber-fazer”, mais do que para a preservação dos produtos como “objetificação” de ideias abstratas como cultura, nação ou um cole-tivo de indivíduos. Desde os anos cinquenta do século passado, este país possui uma legislação específica voltada ao estímulo da transmissão do “saber-fazer” incenti-vando grupos e pessoas que são guardiães de tradições culturais relevantes. O pro-cesso de patrimonialização, neste sentido, relaciona-se ao “estímulo da transmissão”, ou seja, implica aspectos performáticos decorrentes de vivenciar uma experiência do “fazer de novo e do mesmo modo”, ou seja, seguindo as mesmas técnicas, de modos de fazer milenares, seja uma casa, uma festa, um arranjo floral, um estilo de escrita, uma maneira de tingir tecidos e assim por diante. Este processo de patrimoniali-zação diferia bastante do processo de patrimonialização que até então o Ocidente conhecia e que consistia em tirar da circulação um determinado objeto, auferir-lhe um especial estatuto, protegê-lo das intempéries do tempo e deixá-lo visível para um amplo público, seja num espaço público, quando se trata de bens imóveis como igrejas, templos ou palácios, seja num museu, quando se trata de um bem móvel. A diferença aqui não é tanto a questão da materialidade ou da imaterialidade do bem patrimonializado, mas fundamentalmente das diferentes maneiras de patrimonializar e das diferentes consequências que este processo envolve.

O documento que coroou esta nova perspectiva da UNESCO, surgida a partir da recomendação de 1989, foi a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003. Neste documento, havia algumas ideias-chave que norteariam o campo do patrimônio no milênio que se iniciava: primeiro, a ênfase recaía não mais em “cultura tradicional e popular”, mas em “patrimônio cultural imaterial”; segundo, associava-se este “patrimônio cultural imaterial” à noção de “desenvolvimento sus-tentável”, ou seja, o “patrimônio cultural imaterial como fonte de diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentável”. Tratava-se de uma mudança signifi-cativa: longe de salvaguardar a “cultura tradicional e popular” como resquícios ou remanescentes do passado, a intenção aqui era estimular que os estados-membros encontrassem mecanismos para “patrimonializar” a “cultura tradicional e popular”, pois esta seria a fonte de um estilo de desenvolvimento que se queria promover: desenvolvimento com sustentabilidade e com diversidade cultural. Percebia-se tam-bém uma grande ênfase na noção de “humanidade” e numa vertente universalista da

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patrimonialização. Não se tratava apenas de patrimonializar aquilo que distinguia um coletivo de indivíduos de outro, ou seja, de marcar os patrimônios culturais imateriais como nacionais. O documento partia de uma “vontade universal e da preocupação comum de salvaguardar o patrimônio cultural da humanidade” e entendia que “as comunidades, em especial as indígenas, os grupos e, em alguns casos, os indiví-duos, desempenham um importante papel na produção, salvaguarda, manutenção e recriação do patrimônio cultural imaterial, assim contribuindo para enriquecer a diversidade cultural e a criatividade humana”.

A Convenção de 2003 define patrimônio cultural imaterial como “as práticas, repre-sentações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana”. Segundo esta mesma Con-venção, este “patrimônio cultural imaterial” se manifesta nos campos das tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial, expressões artísticas, práticas sociais, rituais e atos festivos; conhecimentos e práti-cas relacionados à natureza e ao universo, técnicas artesanais tradicionais.

Após a definição do objeto da Convenção, o documento estipula como atribuição para os estados-membros “adotar as medidas necessárias para garantir a salva-guarda do patrimônio cultural imaterial presente em seu território”. Por fim, espe-cial destaque é conferido à “participação das comunidades, grupos e organizações não-governamentais pertinentes” na “identificação e definição dos diversos elemen-tos do patrimônio cultural imaterial presentes em territórios nacionais”. Este novo agenciamento dos processos de patrimonialização a um conjunto de agentes sociais marca uma distância com relação a antigos procedimentos, quando os processos de patrimonialização eram atribuição de agentes estatais e especialistas. Esta é uma mudança, a meu ver, altamente significativa, pois vai alterar os mecanismos, os ritos e fundamentalmente as correlações de poder. O campo do patrimônio a partir de então deverá integrar organismos do Estado e da sociedade civil.

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Ressonâncias

A Convenção entrou em vigor em 20 de abril de 2006 para os estados que haviam depositado seus respectivos instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão em 20 de janeiro de 2006 ou anteriormente. Para os demais estados, ficou estipulado que a Convenção entraria em vigor três meses depois de efetuado o depó-sito de seu instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão. Eram então considerados estados-partes da Convenção aqueles que ratificaram a Convenção. Estes estão divididos em cinco grupos: África; Estados Árabes; Ásia e Pacífico; Europa e América do Norte; América Latina e Caribe. Até o início de 2012, cento e quarenta e dois estados já haviam ratificado a Convenção. O primeiro deles foi a Argélia, enquanto o último foi o Cazaquistão (abril de 2012). O Brasil ocupa a trigésima sétima posição, tendo ratificado a Convenção em um de março de 2006. (UNESCO, 2012a)

Entretanto, alguns dados revelam diferentes ressonâncias com relação à participa-ção dos estados no projeto da UNESCO. Analisando a lista de patrimônio imaterial, verificamos que, no momento, apenas noventa países participam de processos de patrimonialização, o que significa que, embora signatários, cinquenta e dois países ainda não se mobilizaram efetivamente para participar do projeto. Os motivos são diversos. O pesquisador Ismail Ali El-Fihail, do Departamento de Patrimônio Intangível da União dos Emirados Árabes – Abu Dhabi, United Arab Emirates (UAE), em comuni-cação durante o Colóquio Local Vocabularies of Heritage. Variabilities, Negotiations, Transformations, ocorrido em 8 a 10 de fevereiro de 2012, na Universidade de Évora, comentou, por exemplo, que a reação dos países que formam o mundo árabe à Con-venção foi muito desigual. Enquanto a Argélia foi o primeiro país do mundo a ratificar a Convenção, três importantes países árabes levaram seis anos para dar o mesmo passo. Quatro outros países árabes ainda não são signatários da Convenção, entre eles, Bahrain e Kuwait. Ironicamente, a Líbia estava prestes a ratificar a Convenção antes da queda do regime de Gadaffi, mas agora o assunto ainda precisa ser mais trabalhado. A Somália também não ratificou a Convenção e pode continuar a não se posicionar com relação a este tema devido à guerra civil em curso. Estes exemplos podem ser indícios de que, em países com governos pouco democráticos ou em situ-ação de instabilidade social e política, a ressonância para a Convenção da Proteção ao Patrimônio Imaterial seja pequena ou mesmo inexistente.

No portal da Convenção, são sugestivas as notícias de fomento a comunidades tradicionais como forma de estimular um aumento da participação no projeto. Na África, por exemplo, foi criada uma Escola do Patrimônio Africano e a UNESCO tem procurado realizar ações nesta escola com apoio de um Fundo Internacional para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural. O objetivo é trabalhar numa ação conjunta de

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sensibilização dos estados nacionais e de fortalecimento do papel das comunidades nos assuntos de patrimonialização. Segundo o texto publicado no portal da Conven-ção, o objetivo da sensibilização através de oficinas é destacar o papel dos estados na adoção das medidas necessárias para garantir a salvaguarda do patrimônio cul-tural imaterial em seus territórios, tais como a adoção de uma política geral, a desig-nação de organismos competentes, o fomento de estudos científicos e a adoção de medidas legais, técnicas e administrativas apropriadas. O papel das comunidades na identificação e transmissão do patrimônio cultural imaterial ocupa também um lugar destacado, assim como a importância para salvaguardar o patrimônio cultural imaterial para o desenvolvimento sustentável e a coesão social. (UNESCO, 2012b)

Em 27 de janeiro de 2012, o portal da Convenção noticiou que mais de um milhão de dólares americanos haviam sido colocados à disposição para assegurar esfor-ços de salvaguarda do patrimônio imaterial em oito países da região da Ásia e do Pacífico (Butão, Camboja, Mongólia, Nepal, Papua Nova Guiné, Samoa, Sri Lanka e Timor Oriental). Como justificativa para esta ação, a UNESCO reiterava que a enorme riqueza das práticas culturais, os sistemas de conhecimento e os rituais existentes na região se encontram ameaçados. Que a salvaguarda do patrimônio vivo se faz cada vez mais necessária para o desenvolvimento sustentável dos países implicados, e que o patrimônio imaterial influi no bem-estar das pessoas, nas suas relações com as demais e com seu entorno natural, além de dotar as comunidades de um sentido de pertencimento e favorecer a coesão social. Com recursos da Noruega para o Fundo, outro projeto em andamento centra-se no desenvolvimento dos conhecimentos e da capacidade institucional em países da Ásia Central, e países africanos de fala portu-guesa e do Caribe. Para fomentar o projeto no Cazaquistão, representantes de organi-zações governamentais e não-governamentais, instituições acadêmicas e educativas e as comunidades receberão uma formação sobre a aplicação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial de 2003 em nível nacional, com recursos provenientes de vários países, entre eles Bulgária, Chipre, Flandres (Bélgica), Hungria, Japão, Noruega, República da Coreia, Espanha, Emirados Árabes e União Europeia.

A trajetória da patrimonialização das diferenças no Brasil

O Brasil promulgou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial em 12 de abril de 2006 pelo Decreto n. 5.753, assinado pelo então ministro das Rela-ções Exteriores, Celso Amorim, e o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. É importante chamar a atenção para a conjuntura favorável que se criou no país a partir do processo de redemocratização iniciado no final dos anos 1980 e que

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consolidou uma crescente participação da sociedade civil no governo, sobretudo das camadas populares durante o período de governo do presidente Lula (2003-2010). Na área da cultura, tendo à frente o ministro Gilberto Gil, um novo Plano Nacional de Cultura foi formulado e pactuado entre diversos setores, com a realização de inú-meros fóruns de discussão por todo o país. Há que se registrar a criação, em 2003, da Secretaria da Diversidade e Identidade Cultural no contexto deste Ministério que visava, entre outras ações, democratizar o acesso aos mecanismos de apoio, pro-moção e intercâmbio cultural entre as regiões e grupos culturais brasileiros, consi-derando características identitárias por gênero, orientação sexual, grupos etários, étnicos e da cultura popular.

Uma das metas desta Secretaria, em consonância com a plataforma do próprio governo, consistia em estimular ações para que a cultura se tornasse ferramenta efe-tiva de desenvolvimento sustentável em microrregiões do país. Levando em conta o tamanho do território brasileiro e as históricas desigualdades regionais no que tange ao acesso à cultura e ao desenvolvimento, a criação desta Secretaria reforçava uma política do Ministério da Cultura de inclusão social e construção da cidadania. Lem-bremos do slogan do governo Lula, “Brasil, um país de todos”. Lembremos também que o regime federativo no Brasil implicou historicamente em dissimilitudes com rela-ção ao alcance de políticas públicas nacionais, inclusive no que tange ao campo da patrimonialização. Lembremos ainda que, no bojo do processo de redemocratização do país, a partir dos anos 1980, novas formas de financiamento das ações culturais, inclusive relativas às políticas de patrimonialização, entraram em cena. Ficou popu-larmente conhecido como “leis da cultura” um conjunto de medidas para estimular o mecenato e o investimento da área privada em projetos culturais. O papel do Estado na área da cultura foi completamente redefinido. De grande promotor e financiador da cultura, o governo brasileiro passou ao papel de estimulador e regulador da entrada do capital privado por meio de mecanismos de renúncia fiscal. (Abreu, 2010, p. 163-203)

É neste contexto de redemocratização e no interior de um Estado em pleno processo de reforma e redefinição de seu papel que uma das instituições mais prestigiadas do país, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan traçou seus novos rumos. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), já havia sido criado um programa voltado para a patrimonialização do imaterial, como consequência direta da Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular lançada em 1989. Para debater a Recomendação, um grupo de profissionais do Iphan reuniu-se na cidade de Fortaleza, no Ceará, ali formulando um documento e uma proposta de ação. A conjuntura era altamente favorável, um ano após a promul-gação da nova Constituição brasileira de 1988. Esta nova carta magna brasileira, no artigo 216, já havia ampliado a definição de patrimônio cultural brasileiro:

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[...] bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em con-junto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjun-tos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, pale-ontológico, ecológico e científico. [A mesma carta magna (art. 216 parágrafo 1) apontava caminhos para os processos de patrimonialização, entendendo como dever do Poder Público] com a colaboração da comunidade, promover e pro-teger o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigi-lância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. (Brasil, 1988)

Como consequência direta, criou-se, em 4 de agosto de 2000, por meio do Decreto Federal n. 3.551, o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial com o objetivo de “viabilizar projetos de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimônio cultural”. Observemos que este programa nasce como um programa de fomento que busca estabelecer parcerias com instituições dos governos federal, estadual e municipal, universidades, ONGs, agências de desen-volvimento e organizações privadas ligadas à cultura, à pesquisa e ao financiamento. (Iphan, 2012) O Decreto Federal n. 3.551 tratava de estimular a própria sociedade a construir uma mentalidade de promoção e proteção ao patrimônio imaterial, pro-pondo ações e estabelecendo parcerias. Este aspecto me parece central, pois reflete o espírito dos novos tempos, em que o Estado aparece como fomentador e regulador de uma política que deve necessariamente envolver vários setores da sociedade: as comunidades, os especialistas, as organizações não-governamentais, as empresas privadas, as universidades.

O Decreto n. 3.551 instituiu dois mecanismos de valorização dos chamados aspec-tos imateriais do patrimônio cultural: o inventário dos bens culturais imateriais e o registro daqueles considerados merecedores de uma distinção por parte do Estado. Foram considerados bens culturais imateriais, as festas, celebrações, narrativas orais, danças, músicas, modos de fazer artesanais, enfim, um conjunto de expres-sões culturais que não estavam contempladas nas políticas patrimoniais até então, predominantemente voltadas para o patrimônio material. Segundo Marcia Sant’Anna (2009), uma das formuladoras deste programa, o objetivo do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial consistiu em “implementar uma política de identificação, inventário e valorização desse patrimônio”. Foram instituídos livros para inscrever os bens a serem registrados (patrimonializados), respectivamente, Livro de Registro dos

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Saberes (para o registro de conhecimentos e modos de fazer); Livro de Registro das Celebrações (para as festas, os rituais e os folguedos), Livro das Formas de Expres-são (para a inscrição de manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdi-cas), e Livro dos Lugares (destinado à inscrição de espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas).

Paralelamente, o Iphan desenvolveu uma metodologia de inventário de referências culturais – instrumento para subsidiar as ações de registro e realizar um recense-amento mais amplo das manifestações culturais do país. Nas palavras de Marcia Sant’Anna (2009, p. 56):

O Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) é um instrumento de pesquisa que busca dar conta dos processos de produção desses bens, dos valores neles investidos, de sua transmissão e reprodução, bem como de suas condições materiais de produção. Operando com o conceito de referência cul-tural, o INRC supera a falsa dicotomia entre o patrimônio material e o imaterial, tomando-os como faces de uma mesma moeda: o patrimônio cultural.

Com este programa nacional de patrimônio imaterial, o Iphan antecedeu-se à Con-venção de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da UNESCO de 2003. Quando, em 2006, o Brasil ratificou a Convenção, ações concretas já estavam em andamento para a promoção e proteção do patrimônio cultural imaterial brasileiro.

Tendo em vista que o aspecto substantivo destas ações era de fomento e estímulo à ampla participação da sociedade para a demanda de patrimonializações (registros) e a realização de inventários (INRC), novos elementos emergiram na dinâmica dos processos de patrimonialização. Um destes elementos consistiu na mencionada par-ticipação da comunidade ou grupo social envolvido com a referência cultural inventa-riada ou candidata à patrimonialização. Já vimos que a tônica nos programas tanto no nível internacional quanto no caso brasileiro enfatizavam a participação popular nos programas de patrimonialização. Percebe-se, portanto, uma intenção clara de reco-nhecimento do protagonismo social dos grupos envolvidos. A própria Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 215, assinala o papel do Estado como protetor das manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Outro elemento importante relaciona-se ao papel dos especialistas, notadamente dos antropólogos, nas ações referentes à patrimonialização nesta nova configura-ção. Aos antropólogos era destinada uma função importante no assessoramento aos grupos sociais detentores das manifestações culturais a serem inventariadas ou

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registradas. O próprio método do INRC foi criado tendo por base uma experiência piloto coordenada por um antropólogo, Antônio Augusto Arantes, em Porto Seguro, na Bahia, em 1999. A metodologia de pesquisa proposta inspira-se fortemente na tradição dos estudos antropológicos, sendo previstos: um levantamento preliminar, quando são realizadas pesquisas em fontes secundárias e em documentos oficiais, seguido de entrevistas com a população e contatos com instituições, propiciando um mapeamento geral dos bens existentes num determinado sítio e a seleção dos que serão identificados. Nesta fase, identificam-se os aspectos básicos dos processos de configuração da manifestação, seus executantes, seus mestres, seus aprendizes e seu público, assim como suas condições materiais de produção (matérias-primas e acesso a estas, recursos financeiros envolvidos, comercialização, distribuição, entre outros). Esta etapa inclui uma documentação por meio de registro audiovisual. O estágio seguinte, relacionado ao registro, isto é à patrimonialização propriamente dita, corresponde a um trabalho técnico, mais aprofundado, de natureza eminente-mente etnográfica. (Santanna, 2009, p. 57)

Como assinalou Maria Cecília Londres Fonseca, uma das formuladoras do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e consultora do Ministério da Cultura na ocasião, o que está sendo patrimonializado neste caso não são bens materiais, “edificações, sítios e obras de arte”, mas fundamentalmente, “narrativas” ou ainda “uma formação discursiva que permite mapear conteúdos simbólicos, visando a descrever a forma-ção da nação e constituir uma identidade cultural brasileira”. (Fonseca, 1997, p. 209) Neste caso, portanto, o que está sendo inventariado e passível de ser inscrito no livro de registros do patrimônio cultural brasileiro é uma materialidade discursiva, por meios escritos ou audiovisuais que serão posteriormente transformados em bits e inscritos no portal do Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro e, em alguns casos, no portal do Patrimônio Cultural da UNESCO, em suas listas de patrimônios da humani-dade. Esta produção discursiva complexa implica uma série de agenciamentos entre os especialistas, grande parte antropólogos, e as comunidades e seus representan-tes. Com relação a estes últimos, há que se levar em conta que as comunidades raramente apresentam características de homogeneidade e unidade, o que significa travar contato com um mundo pleno de clivagens, hierarquias e tensões. Há ainda outros elementos que passam a integrar esta nova dinâmica de patrimonialização: os patrocinadores, os poderes públicos locais e nacionais e outras instituições e agências como as universidades, as instituições não-governamentais, as associa-ções comunitárias.

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A construção dos dossiês: patrimonializando uma cultura indígena, o caso Wajãpi

No dia 4 de agosto de 2002, o Iphan conferia o título de patrimônio cultural do Brasil à arte Kusiwa – pintura corporal e arte gráfica Wajãpi, dos índios Wajãpi do Estado do Amapá, registrando esta manifestação cultural no Livro dos Saberes. O certificado da titulação constitui uma espécie de síntese de um extenso dossiê contendo docu-mentos textuais, bibliográficos e audiovisuais produzido pela antropóloga Dominique Tilkin Gallois (2006) com apoio de outros pesquisadores do Núcleo de História Indí-gena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo (NHII/USP) e com a colabora-ção dos assessores do Programa Wajãpi desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa e Formação Indígena/Iepé. A iniciativa da candidatura ao Programa Nacional do Patri-mônio Imaterial correspondia a uma “solicitação expressa dos principais chefes e professores indígenas, representados no Conselho das Aldeias Wajãpi/Apina com o qual o Museu do Índio (instituição vinculada ao governo federal) vinha mantendo parceria desde 2001, no âmbito da preparação e montagem da exposição “Tempo e Espaço na Amazônia: os Wajãpi”. (Gallois, 2005, p. 110-129; Abreu, 2012)

Esta síntese do dossiê expressa peculiar esforço de tradução cultural e de descrição de uma manifestação cultural exercida no cotidiano das aldeias Wajãpi. A arte Kusiwa é definida, em poucas palavras, como um sistema de representação, uma linguagem gráfica dos índios Wajãpi do Amapá que sintetiza seu modo particular de conhecer, conceber e agir sobre o universo. Ainda segundo este documento, o sistema gráfico Kusiwa opera como um catalisador para a expressão de conhecimentos e práticas que envolvem relações sociais, crenças religiosas e tecnologias, até valores estéticos e morais. A arte Kusiwa é também considerada como uma arte gráfica de excepcio-nal valor, funcionando como um conhecimento complementar à arte verbal ou aos relatos orais do grupo indígena. Ou ainda uma prática permanentemente interativa, viva e dinâmica. Trata-se de um acervo cultural que se transforma de forma dinâmica, com a inclusão de novos elementos, enquanto outros podem entrar em desuso ou se modificar através de suas variantes. A descrição contabiliza vinte e um padrões utilizados, que representam partes do corpo ou da ornamentação de animais, como sucuris, jiboias, onças, jabotis, peixes, borboletas; e objetos, como limas de ferros e bordunas e que podem ser combinados de muitas maneiras diferentes.

O registro patrimonial diz ainda que o grafismo é tradicionalmente utilizado como pin-tura corporal, por prazer estético e desafio criativo em atividades do cotidiano, reali-zada no âmbito familiar. Sendo uma tradição viva, modificações ocorrem de tempos em tempos. Diz ainda o documento que a arte Kusiwa, antes reservada apenas ao corpo, está sendo aplicada pelos Wajãpi a um conjunto variado de suportes. Fazem

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desenhos nas peças de cerâmica destinada à venda, decoram suas cuias com moti-vos incisos, utilizados também na tecelagem de bolsas e tipoias e no trançado de seus cestos. O uso do papel e de canetas coloridas constitui-se num campo novo e muito apreciado para esta expressão cultural. Mas é tradição utilizar recursos da flo-resta como sementes de urucum, óleo de andiroba, gordura de macaco, carvão para a obtenção das três cores utilizadas: o vermelho claro, o preto azulado, o vermelho escuro. (Iphan, 2002)

O registro explicita que a descrição sintética apresentada corresponde ao con teúdo de um processo administrativo mais amplo, no qual se encontra reunido o mais completo conhecimento sobre este bem cultural, contido em documentos textuais, bibliográficos e audiovisuais e que o presente registro está de acordo com a decisão proferida na trigésima oitava reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural.

Tomando por base a literatura sobre processos de patrimonialização, na qual se chama a atenção para a mudança de estatuto de um bem cultural que sai de circu-lação em certa esfera para adquirir significados simbólicos em outra, as perguntas que podemos fazer são: O que muda em casos como este? Quais as novidades des-tes processos de patrimonialização com relação àqueles existentes para a cultura material? E o que permanece sob novas roupagens? Uma primeira observação é que, neste caso, “o bem cultural” não sai de circulação, ou seja, não perde seu “valor de uso” para usar a expressão de K. Pomian. (1997, p. 51-87) Mas, efetivamente, ele adquire um valor simbólico que antes não encarnava, mesmo continuando a ser amplamente usado no cotidiano. A patrimonialização envolve uma dimensão valora-tiva ainda que a atividade consagrada componha o simples dia a dia das aldeias e que não se pretenda alterar este ritmo. Como salienta o documento referente ao certifi-cado de registro, “as pinturas aplicadas no corpo não são tatuagens, nem decalques, nem são marcas étnicas ou símbolos rituais”, mas são simplesmente uma tradição “por prazer estético e desafio criativo”, realizada por todos das aldeias – homens, mulheres, crianças – em atividades cotidianas. (Iphan, 2002)

Esta dimensão valorativa é a mesma que o Iphan confere às igrejas barrocas de Ouro Preto, ao edifício modernista do Palácio Gustavo Capanema, ao prédio do Museu Histórico Nacional. Trata-se de um título honorífico e com alto grau de simbolismo. Por meio de um ritual que confere a este bem cultural o título de patrimônio cultural do Brasil, sinaliza-se uma dimensão simbólica de representação da nacionalidade. Neste sentido, a arte Kusiwa ganha o mesmo estatuto de proteção que qualquer bem material tombado. Ela é investida desta aura simbólica que identifica o bem cultural (parte) com o coletivo de indivíduos (todo) e o indivíduo coletivo que a nação representa. E esta aura simbólica traz os índios Wajãpi da Amazônia para bem perto

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de nós, os brasileiros. Somos todos Wajãpi e festejamos com eles a conquista deste título. Esta similitude aproxima a arte Kusiwa de tantos outros bens culturais nos quais reconhecemos o signo construído do pertencimento à nação brasileira. E por meio do Decreto n. 3.551/2000, a arte Kusiwa passa a ter o mesmo estatuto de pro-teção do Estado que no Brasil tem a coroa do imperador ou na Inglaterra as joias da Coroa. E este é só o início do processo, pois a máquina do Estado, uma vez acionada, gerará os desdobramentos previstos de difusão e construção de uma longa trajetória de acompanhamento do bem cultural patrimonializado.

Mas aqui se coloca a questão: diferentemente das igrejas barrocas de Ouro Preto ou das joias da Coroa britânica, este bem cultural se mantém vivo no cotidiano das aldeias Wajãpi. Ele não perdeu seu valor de uso. Como bem cultural vivo nas aldeias Wajãpi, a memória desta tradição é repassada cotidianamente entre os indígenas. E o grande paradoxo é que, enquanto bem cultural patrimonializado, ele não pode mor-rer, ou seja, não pode deixar de ser uma tradição viva no cotidiano das aldeias. Quer dizer, não pode perder seu valor de uso sob pena de perder o título. Aliás, o título é também uma forma de proteção de que seu valor de uso não será perdido. Neste sen-tido, como apontou Jean Davallon em conferência recente, a política de patrimoniali-zação do imaterial está patrimonializando a memória de um grupo social. Caso este grupo decida, por algum motivo, abolir a prática que foi patrimonializada, o objeto da patrimonialização perde o sentido. Desse modo, quero chamar a atenção para o fato de que o discurso, a narrativa construída para a patrimonialização de um bem cultural deste tipo constitui a primeira forma de sua proteção. É neste momento que “registra-se” num livro especial, no caso dos Wajãpi, no Livro dos Saberes, uma des-crição do bem cultural a ser certificado. Chamo a atenção para que não é por acaso que “registro” é o nome convencionado para a atribuição do título de patrimônio cultural do Brasil a um “bem cultural imaterial”, distinguindo-se do dispositivo similar, “tombamento” para “bens culturais materiais”. O “tombamento” sinaliza que uma edificação ou um objeto não pode ser destruído fisicamente. O “registro” sinaliza que uma primeira proteção foi estabelecida para que um “bem cultural imaterial” não desapareça da memória social. O “registro” é uma forma de estimular a reativação de um “bem cultural imaterial” caso ele venha a sofrer a ameaça de desaparecimento.

Bem, chegamos agora a alguns desdobramentos. Se o “registro” é fundamental, ele implica uma “tradução” entre dois regimes culturais diferentes. A produção do dis-curso relativo ao inventário e registro de um bem cultural imaterial necessita de “tra-dutores” para o diálogo entre a comunidade onde a manifestação cultural é cultivada e a instituição que realiza a patrimonialização. Esta “tradução”, como fica visível nos certificados da titulação, impõe uma atitude reflexiva com relação ao bem cultural em processo de patrimonialização. As comunidades tradicionais, como, por exemplo,

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a comunidade Wajãpi, passará, a partir de então, a trabalhar com duas modalidades de relação com o respectivo bem cultural. De um lado, vivenciando-o e mantendo a tradição em circulação no grupo e na memória social e, de outro lado, sistemati-zando-o discursivamente, isto é, representando, por meio de linguagens audiovisuais, fotográficas, digitais, aspectos desta tradição que devem ser permanentes. Como é previsto que o bem cultural possa se modificar com o tempo, ele deve ser acompa-nhado por meio de alguns dispositivos, entre eles um plano de salvaguarda.

Retomemos a trajetória da arte Kusiwa Wajãpi. Segundo relato da antropóloga Domi-nique T. Gallois (no prelo), em 2003, o Conselho das Aldeias Wajãpi encaminhou, através do Museu do Índio – Funai e do Ministério da Cultura, sua candidatura à 2a Proclamação das Obras-Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, pro-pondo o desenvolvimento de um plano de salvaguarda intitulado “Plano integrado de valorização dos conhecimentos tradicionais para o desenvolvimento socioambiental sustentável das aldeias Wajãpi do Amapá”. Em novembro do mesmo ano, a UNESCO anunciou o resultado distinguindo as “Expressões gráficas e orais dos índios Wajãpi” na lista das obras-primas do patrimônio oral e imaterial da humanidade. A comuni-dade indígena encheu-se de autoestima e festejou com alegria o feito de terem alcan-çado agora um título internacional. Dominique T. Gallois (2005, p. 110-129) relata que “as festas do prêmio” ocorreram na virada do ano, em cinco aldeias concomitante-mente, e nenhum karikô (não índio) foi autorizado a participar.

É ainda Dominique T. Gallois quem relata que o plano de salvaguarda foi elaborado em 2003/2004 por alguns chefes da aldeia, com a colaboração de professores, de alguns agentes de saúde e com a sua assessoria. Um dos objetivos consistia em mobilizar as quarenta e oito aldeias Wajãpi na valorização dos saberes e práticas tra-dicionais. A estratégia escolhida pelos chefes indígenas foi a de organizar uma turma de “pesquisadores Wajãpi”, recrutados em diversas aldeias, que deveriam ser forma-dos para auxiliá-los na discussão das transformações em curso no modo de vida e para ajudar os professores a inserir, de forma adequada, a “cultura wajãpi” na escola.

A experiência com o plano de salvaguarda é bastante ilustrativa das questões que envolvem a difícil tarefa da “tradução cultural” que a patrimonialização das diferenças envolve. De um lado, a dupla patrimonialização – como patrimônio nacional e como patrimônio da humanidade – encheu a comunidade Wajãpi de orgulho. De outro lado, um longo e novo caminho se impôs trazendo questões até então impensadas. Refle-tindo sobre estas questões mais de dez anos depois, a antropóloga Dominique T. Gallois nos traz algumas “coisas boas pra pensar”. Para se compreender a maneira pela qual os Wajãpi apropriaram-se das novas políticas públicas de patrimonializa-ção, tanto no campo nacional quanto internacional, é preciso retroceder um pouco

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no tempo e entender o lugar que as comunidades indígenas conquistaram no Brasil a partir do processo de redemocratização e da Constituição de 1988.

A nova dinâmica social no Brasil e os sujeitos de direito coletivo

A nova configuração social e política que se produziu no Brasil no final dos anos 1980, e que se consolidou com a promulgação de uma nova Constituição em 1988, afetou diversos campos, entre eles, o campo do patrimônio, principalmente por tor-nar possível a entrada em cena de novos sujeitos de direito coletivo, defendendo seus próprios interesses e trazendo suas próprias demandas de patrimonialização e preservação de suas tradições. Por meio de uma crescente participação da socie-dade civil no governo, o país deu um salto de qualidade no fortalecimento de movi-mentos de ação afirmativa, no empenho da construção da autoestima e dignidade social para agrupamentos sociais que antes eram marginalizados social, econômica e politicamente. Novas identidades coletivas foram construídas e potencializadas pelos movimentos sociais e pelas novas conquistas democráticas.

Como consequência de muitos anos de mobilização, a nova Constituição é bastante avançada no que diz respeito à proteção de direitos sociais, da diversidade cultural e da biodiversidade. Nela, legitima-se, a partir da perspectiva da etnicidade, a emer-gência de novos sujeitos coletivos com proteção especial garantida por lei: os povos indígenas, os quilombolas, os povos da floresta e outros grupos sociais com interes-ses coletivos de natureza econômica, política e cultural. Podemos dizer, pois, que a Constituição de 1988 representou um marco no país como discurso fundador que desencadeou novas perspectivas para as identidades coletivas emergentes.

Nos anos que se seguiram, e especialmente após a Convenção da Biodiversidade de 1992, vários projetos de lei foram sendo sancionados com relação às “culturas populares e tradicionais” e também ao “conhecimento tradicional associado à bio-diversidade”. (Araújo, 1996, 2006; Ávila, 2006) Proliferaram os documentos, leis e decretos em torno da questão da “diversidade cultural”, dos “recursos genéticos” e dos “conhecimentos tradicionais associados”, o que permite perceber uma expres-siva quantidade de forças sociais envolvidas. Percebe-se também o progressivo alar-gamento do conceito de patrimônio e seus qualificativos: genético, químico, natural, imaterial ou intangível, entre outros. (Abreu, 2007, p. 271-284; 2009, p. 34-48)

A Constituição e os novos projetos de lei que se seguiram garantiram caminhos possíveis para a proteção de “interesses coletivos” de “coletividades singulares”-

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denominadas ora por “comunidades locais” ora por “populações tradicionais”. Ligados a uma coletividade determinável, surgiram os interesses coletivos de natureza econômica e de conteúdo cultural, além dos interesses de natureza ambiental e social. No livro organizado pela antropóloga Eliane Cantarino O’Dwyer (2002), encontramos a expressão “remanescentes de quilombos” como referência a grupos étnicos que guardam referências identitárias comuns associadas a uma representação do passado, especialmente da vivência da escravidão, bem como a um tipo de organização que persistiu ao longo dos anos. Como assinalou o antropólogo Alfredo Wagner de Almeida: (2008, p. 70)

a categoria “povos da floresta”, que emerge em 1988, a partir de mobilizações políticas, sintetiza este processo social e identitário. Trata-se de um primeiro momento para se compreender o surgimento de novas identidades coletivas e sua objetivação em movimentos sociais, apoiados na força mobilizatória de etnias, de comunidades extrativistas, que agrupam famílias de produtores dire-tos com consciência ambiental aguçada e laços locais profundos. Neste pro-cesso, os agentes sociais deixam de ser vistos como “indivíduos biológicos”, de existência serial e atomizada, para assumir, sob condições de existência cole-tiva, uma posição de sujeitos sociais. As referências empíricas em pauta nos remetem diretamente a sujeitos sociais construídos em consonância com suas condições específicas de existência coletiva e afirmação identitária, a saber: seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu, quilombolas, pes-cadores, ribeirinhos e povos indígenas, então agrupados na União das Nações Indígenas (UNI). A aproximação destas identidades emergentes, que se apoiam numa autoconsciência cultural e começam a se organizar como força política, resulta na denominada “aliança dos povos da floresta”, consolidando um signi-ficado mais abrangente de natureza, capaz de expressar a diversidade social e étnica e seus repertórios de reivindicações face aos aparatos de Estado.

Os antropólogos que focalizam a nova dinâmica social no Brasil, como o próprio Almeida, vêm sinalizando para o surgimento de novas percepções, novas maneiras de fazer política, novas ontologias. Os novos sujeitos sociais passaram a falar em seus próprios nomes, não mais aceitando que tudo ficasse depositado na “razão iluminista” ou na ação estatal. Segundo Almeida,

As novas relações dos sujeitos sociais com a natureza, com a terra, com o trabalho, com os outros homens, com a cultura erodiram o velho sistema clas-sificatório que os reduzia a ocupações econômicas homogêneas ou a figu-ras típicas como pescadores, lavradores, agricultores, operários, soldados, marinheiros e assim por diante. Estas categorias deixaram de ter funções

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explicativa s e foram transformadas com as mobilizações políticas, a cons-ciência ambiental e o advento das novas identidades coletivas. O que passa a importar é como esses grupos sociais se autodefinem e chamam a si mesmos, e não mais como os outros os designam. Não importa mais como o Estado, os grandes empreendimentos econômicos ou os eruditos os classificam ou querem classificar. Já não se catalogam pessoas como se catalogavam “indiví-duos” e “espécies” da natureza e as “variedades” não correspondem à diver-sidade social. Assim, em vez de ter apenas uma “razão” em pauta, passamos a ter múltiplas. Estamos diante, hoje, sobretudo a partir de 1988, de múltiplas racionalidades concorrentes, implodindo com a ideia de um “racional supe-rior” alimentado secularmente pelo colonialismo. Trata-se do reconhecimento jurídico-formal de uma diversidade social liberta da moldura fisiográfica. (Almeida, 2008 p. 73-74)

É neste contexto que podemos falar em mudanças efetivas das correlações de força dos agentes sociais e governamentais nos processos de patrimonialização. Estas mudanças ficam visíveis quando analisamos casos específicos da apropriação das políticas públicas no campo do patrimônio cultural pelas chamadas comunidades tradicionais. Uma categoria central como a de “tradição” ganha novos contornos e parece estar sendo construída social e politicamente no tempo presente, a partir de projetos de futuro. Assim, o que muitas vezes chamamos de comunidades tra-dicionais, como as sociedades indígenas, são os novos sujeitos coletivos que nada têm a ver com remanescentes de comunidades primitivas ou resíduos de estágios anteriores na formação social. Estas sociedades são permanentemente redefinidas e recicladas a partir dos efeitos de movimentos sociais.

É interessante observar como os novos sujeitos de direito coletivo passaram a articu-lar projetos políticos e sociais a partir de estratégias patrimoniais. Além do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, estas comunidades vêm experimentando novas modalidades de relação com a construção e a difusão de suas próprias memórias em projetos de museus sociais. (Abreu & Chagas, 2007, p. 130-152; Freire, 2009, p. 217-253) e outros programas fomentados pelo governo, como os “pontos de memó-ria” e as organizações não-governamentais voltadas para direitos humanos e para a inclusão social e política destas populações. São novas formas de apropriação das políticas públicas em memória e patrimônio que estão associadas a lutas por direitos sociais, da propriedade territorial e de garantias de cidadania. Em torno de políticas nacionais e internacionais relacionadas ao campo do patrimônio, observa-se ainda uma tendência crescente à valorização da cultura popular, da tradição de grupos populares. E esta tendência vai revelando um patrimônio mais ligado ao cotidiano, a formas de vida populares e relacionadas com a natureza. O patrimônio monumental

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relacionado às elites perde força neste novo enquadramento. Quero enfatizar aqui a concepção de que se processam diferentes formas de apropriação da categoria “patrimônio” e diferentes usos das políticas nacionais e internacionais do campo do patrimônio por estes sujeitos coletivos. Tal como ocorreu com o conceito de “cul-tura”, o tema do patrimônio encarna hoje “um novo papel como argumento político e vem servindo como arma dos fracos”. (Cunha, 2009)

Desdobramentos e consequências de processos de patrimonialização das diferenças

O caso Wajãpi é muito emblemático e serve como bom exemplo tanto para analisar a nova configuração da patrimonialização das diferenças – movimento que se capi-lariza mundialmente a partir do protagonismo da UNESCO – quanto para analisar os efeitos desta nova configuração no caso brasileiro. Por um lado, como vimos, a patrimonialização da arte Kusiwa seguirá todos os procedimentos e percursos pró-prios desta modalidade de patrimonialização. Imagino que, nos mais de cem países que ratificaram a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, questões relativas à necessidade de tradução cultural, registro, discursividade, reflexividade estejam surgindo e um caso como este dos Wajãpi possa talvez servir para iluminar muitos outros. Entretanto, tenho certeza de que há diferenças impostas pelos con-textos sociais e políticos em que estas patrimonializações ocorrem. Sendo assim, é preciso analisar cada caso e perceber as novidades que podem estar trazendo.

No Brasil, as políticas públicas relativas à salvaguarda da cultura tradicional e popular e, mais especificamente, à salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, já encon-tram um terreno fértil ao se voltarem para as chamadas sociedades tradicionais. Estas, especialmente as sociedades indígenas, já vinham de um longo processo de lutas políticas e de reconhecimento e valorização de identidades étnicas. Particular-mente importante foram os processos de lutas pelas terras com políticas de efetivas demarcações de territórios indígenas. Nestes processos, foram também se tecendo relações de aliança com diversos setores do governo e da sociedade civil: univer-sidades, organizações sociais, instituições de pesquisa, agências governamentais, agências internacionais de apoio e patrocínio. Particularmente os antropólogos vêm desempenhando importantes papéis de mediadores e de defensores de causas des-tes novos sujeitos coletivos e, portanto, de “tradutores culturais” no contexto de uma extensa rede. Estas conquistas implicam em conquistas jurídicas e envolvem diversos poderes e instâncias governamentais (locais, nacionais, internacionais). Dominique T. Gallois (2011, p. 95-116) cita ainda “a instalação de escolas, as práticas de assistência à saúde, que vêm há décadas sendo operadas como política pública

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(primeiro pelo Serviço de Proteção ao Índio, depois pela Fundação Nacional do Índio – Funai e, na sequência, por ministérios preocupados em “incluir” os índios)”.

Para um estudo sobre os efeitos das políticas de patrimonialização das diferenças é importante levar em conta as condições sociais e políticas que antecedem os pla-nos de salvaguarda. Como já assinalamos, estas são políticas que dependem em larga medida de um protagonismo das comunidades envolvidas. Os “tradutores cul-turais” apenas podem agir em comunidades dispostas a levar adiante os processos de patrimonialização. Citamos anteriormente diferentes casos em países da África, da Ásia e da América Latina em que a UNESCO busca dispositivos para instrumen-talizar a população e construir indivíduos capazes de exercer a liderança e se torna-rem gestores de processos de patrimonialização. O caso brasileiro apresenta como peculiaridade e, especialmente, entre os povos indígenas, o fato de que algumas destas etapas já foram vencidas em função de outras experiências de contato. Pode-mos supor que comunidades tradicionais que passaram por experiências históricas traumáticas como guerras e conflitos sociais ou que não se libertaram de governos autoritários passem por trajetórias bem diferentes das que vêm ocorrendo em casos como este que descrevo no Brasil.

Os Wajãpi foram adquirindo uma consciência de si e forjando uma identidade étnica no próprio contexto da demarcação de suas terras que começou em 1994. Foi neste mesmo ano que eles criaram uma organização não-governamental, o Conselho das Aldeias Wajãpi, a Apina. Atualmente, eles vivem numa terra indígena protegida pelo Estado, com cerca de seiscentos e quatro mil hectares. Cada grupo Wajãpi mora em uma aldeia separada. Somam um total de treze aldeias, e a população vem aumen-tando sensivelmente. Através da Apina, eles vêm promovendo projetos de desen-volvimento sustentável ligados ao artesanato e ao garimpo, com substâncias não poluentes. Praticam também o extrativismo como alternativa econômica de sustento na floresta sem causar o desmatamento e a poluição ambiental, produzindo e ven-dendo produtos agrícolas, como o cupuaçu, a copaíba e a castanha.

Ao analisar os efeitos da patrimonialização da arte Kusiwa, dez anos depois, a antro-póloga Dominique T. Gallois assinala que muitas das questões que chegaram com os títulos de patrimônio cultural do Brasil e de patrimônio oral e imaterial da huma-nidade já eram enfrentadas anteriormente. A patrimonialização trouxe novos ingre-dientes e favoreceu certos processos que já estavam em curso. Uma das questões relaciona-se à construção de uma postura reflexiva que o plano de salvaguarda e as necessárias sistematizações dos processos tradicionais envolvem. Estas questões já ocorriam a partir da chegada da escola nas aldeias.

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A transposição para a escrita de narrativas míticas, ou seja, de experiências de encontros entre ancestrais e seres do início dos tempos, criou tantas confu-sões, críticas e disputas de versões que esses jovens passaram a desenvolver reflexões muito interessantes a respeito dessa dificuldade de transposição e registro escrito. Alguns deles procuravam manter em seus registros não só as marcas autorais correntes na narração como discutiam cuidadosamente as variações, percebidas como valor, e não como problemas. Como diziam esses professores indígenas, é difícil “resumir a cultura Wajãpi”. Afirmavam inclusive que ela não existe mesmo se utilizam a palavra cultura para uso político em palcos interétnicos. Aliás, é o que pensam os mais velhos, que continuam con-tando como os Wajãpi, em tempos remotos, “roubaram” dos animais ou dos ini-migos a maior parte dos elementos culturais de que fazem uso hoje. Da mesma forma, como vimos, não há problema em afirmar que tal padrão gráfico ou canto ou item decorativo foi apropriado dos Wayana, ou de outro grupo. Cultura wajãpi mesmo, como eles dizem, não existe. (Gallois, 2011, p. 114)

Mas, embora fossem enormes os problemas de transcrição das narrativas orais para o domínio da escrita, a antropóloga assinala que, no processo de construção do plano de salvaguarda, estes problemas foram minimizados diante da importante aproximação que ocorreu entre os mais velhos e os mais jovens das aldeias. Estes últimos afastavam-se cada vez mais dos saberes tradicionais e dos mais velhos e viam na escola um espaço para se aproximarem do universo dos não índios que mais lhe interessavam. Com o processo de patrimonialização, os mais jovens começaram a valorizar os saberes tradicionais e os mais velhos, trazendo uma nova perspectiva para a comunidade.

Ao propor um “plano de salvaguarda” para os grafismos e expressões gráfi-cas Wajãpi, o Iphan (PCI) estimulou a realização de oficinas e uma “discussão” entre os Wajãpi sobre a temática da cultura. “Toda essa discussão levou alguns jovens interessados em comparar o que os Wajãpi chamam de dois caminhos – o dos saberes dos não índios e dos saberes dos antigos – a uma reimersão nos saberes tradicionais. São poucos indivíduos ainda, mas determinados e engajados em aprender com os mais velhos as formas de enunciação julga-das corretas, belas. Esse foi, certamente, o resultado mais promissor desse trabalho inicial de discussão sobre a temática da cultura, que se ampliou hoje na forma de um “plano de salvaguarda”, conduzido pelo Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina e pelo Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena – Iepé, com apoio do Iphan, da UNESCO, da Petrobrás Cultural e de outras instituições. A via da patrimonialização suscitou, assim, um movimento de rea-proximação entre as gerações, que está se consolidando lentamente, no bojo

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de novas p ráticas de transmissão. Se o inventário dos bens imateriais Wajãpi vai demorar a ser concluído, ou seja, se esta experiência de um programa de salvaguarda não resultar em produtos tão acabados como se costuma exigir nesse tipo de projetos, é certo que a reflexão de jovens e velhos Wajãpi sobre todo esse percurso de sua cultura terá valido a pena. (Gallois, 2011, p. 114)

No contexto do registro do sistema gráfico Kusiwa como patrimônio cultural imaterial, os jovens Wajãpi, estimulados por uma equipe acadêmica liderada por Dominique Gallois, se mobilizaram para realizar pesquisas junto aos mais velhos. As lideranças Wajãpi avaliaram que seria interessante um novo encontro com os saberes tradicio-nais, uma vez que os professores indígenas e os jovens ainda não são detentores nem transmissores competentes dos conhecimentos de suas respectivas comunida-des. Foi realizada uma pesquisa colaborativa intitulada “Saberes Wajãpi”, realizada conjuntamente com pesquisadores acadêmicos do NHII-USP, educadores do Iepé, representantes do Conselho das Aldeias Wajãpi/Apina e vinte jovens pesquisadores em formação. Estas pesquisas tornaram-se uma oportunidade para um reencontro entre gerações, em torno de problemáticas do conhecimento.

Dominique T. Gallois avalia positivamente a participação dos Wajãpi no processo de patrimonialização. Por um lado, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial vem possibilitando um conjunto de apoios às comunidades indígenas, bem como fomen-tando parcerias:

Investimentos em serviços de assessoria técnica e científica, alocação de novas tecnologias de registro, com recursos públicos e privados, constituem sem dúvida uma dimensão econômica a ser considerada, com impactos sociais, políticos e culturais. São apoios que hoje se multiplicam no Brasil, viabilizando a agregação de valor a algumas produções indígenas, em que o “bem” cultural é, muitas vezes, menos importante que a produção de “produtores” desses bens. Mesmo se admitimos que os resultados desses investimentos econômi-cos não são tão significativos no que diz respeito à sua resultante mercadoló-gica. (Gallois, 2011, p. 98)

Por outro lado, para Dominique T. Gallois, o mais importante para os Wajãpi tem sido a participação deles nos próprios processos de patrimonialização. A riqueza destes processos parece ultrapassar qualquer resultado com relação aos produtos finais em si mesmos (se é que eles existem no caso do patrimônio cultural imate-rial). Transitando entre regimes culturais diferenciados, construindo novas formas de olhar para si próprios e suas tradições, redescobrindo novos aspectos em seus cotidianos, valorizando os mais velhos e seus saberes, enfim, a partir de um leque

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amplo de novas perspectivas que as práticas patrimoniais engendram, na avaliação de Gallois, os Wajãpi:

não só criam novos objetos, como constroem a si mesmos, enquanto sujei-tos políticos e ativos agentes da mudança [...] A produção de objetos cultu-rais (neste caso) parece ser indissociável da produção de sujeitos sociais. [Ou ainda:] É no campo do reconhecimento político, da agregação de valores sim-bólicos que eles (os processos de patrimonialização)!contribuem para a cons-trução da cidadania das populações indígenas. (Gallois, 2011, p. 98)

A complexidade da nova configuração colocada em marcha por políticas de patri-monialização das culturas nos mais longínquos rincões do globo terrestre parece ensejar novas modalidades de pesquisa. Como assinalou Jean Davallon (2010), a instabilidade da noção de patrimônio designando realidades largamente contraditó-rias, tem levado os estudiosos a trabalharem com o conceito de “patrimonialização”. Entender seus processos por meio de levantamentos detalhados em estudos de caso pode ser um bom caminho para descortinar novos horizontes. Já não há mais tempo a perder em polêmicas carregadas de juízos de valor que opõem a cultura material à cultura imaterial, discutindo as vantagens desta ou daquela via. O fenômeno da patrimonialização das diferenças tal como aqui foi exposto me parece constituir um ponto de partida para o que ainda está por vir. É hora de contribuirmos com pesqui-sas consistentes refletindo sobre seus efeitos e desdobramentos.

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Segunda parte. Análises de casos

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O filme documentário como discurso de patrimonialização da música popular brasileira

Evelyn Goyannes!Dill!Orrico, Amir Geiger e Sabrina Dinola!Gama!Silva

Documentário musical e a patromonialização

Na última década, sobretudo nos últimos três anos, vem ocorrendo um aumento sig-nificativo na produção de filmes sobre música no Brasil. Mais especialmente, houve uma produção expressiva de documentários tanto sobre gêneros musicais quanto sobre músicos, cantores ou compositores1. Isso, de certo modo, despertou a atenção sobre o que alguns autores vêm chamando, com teores diversos de ironia, crítica e perplexidade, de boom ou inflação da memória na contemporaneidade2.

Dentro dessa nova produção de filmes, algo significativo ocorreu na relação entre essas duas artes: de modo resumido e provocativo, pode-se afirmar que a música passou da trilha para a tela, o que, por sua vez, nos instiga a pensar na relação que essa mudança na ordem dos discursos e das percepções tem com a própria realidade brasileira e as perspectivas ou desafios de representá-la, apreendê-la e modificá-la – por exemplo, nas práticas patrimonializadoras.

Ao problematizarmos a maneira como as narrativas fílmicas retratam a ideia de autenticidade de certas trajetórias, mais precisamente daquelas que caíram no ostracismo no auge da MPB, objetivamos compreender seu papel na construção da identidade brasileira.

Levando em conta o papel da música popular brasileira que, sob a sigla da MPB, marcou o cenário musical brasileiro nos anos 1960 e 1970 como uma linguagem

1. Sinalizando e refletindo (sobre) essa produção, dois festivais de cinema, sediados no Brasil, tiveram como tema, ou traziam como destaque, documentários sobre música brasileira: o Festival Internacio-nal de Cinema de Arquivo – Recine, em 2010, e, no ano seguinte, a terceira edição do In-Edit Brasil.2. Huyssen (2000) é particularmente incisivo na caracterização pós-moderna e ambígua dessa infla-ção como característica intrínseca da pós-modernidade.

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musical que buscava expressar o Brasil, sendo, portanto, fortemente atrelada a um gênero musical-identitário, este trabalho questiona, em primeiro lugar, de que modo a relação da música com a identidade brasileira pode ser entendida segundo o que chamamos de patrimonialização. Na atualidade, os diferentes grupos não mais se reconhecem naqueles que produziriam uma “autêntica” cultura. É a discussão sobre essa autêntica cultura que nos fez pensar em um processo de construção simbólica valorativa em relação a determinadas formas artísticas, mais especialmente sobre alguns artistas, que aqui denominamos patrimonialização. O cenário musical atual, associado à produção intensa de documentários sobre música e músicos, nos fez perceber a quebra da consciência homogeneizante que marcou o cenário musical brasileiro nos anos 1960 e 1970.

Além disso, trazemos à discussão um outro fator importante na contemporaneidade: a mediação cultural. Para nós importa pensar o papel que a mídia exerce nesse pro-cesso de patrimonialização. A título de exemplo, podemos citar a revista Carta Capi-tal (2011, no 671), que publicou uma matéria sobre música, cujo título aproxima-a à temática deste capítulo: “O novo ar da velha bossa. Patrimônio instrumental brasi-leiro, o Zimbo Trio lança trabalho autoral e tem os seus primeiros discos reeditados”. A matéria versa sobre o lançamento de uma caixa de CDs do conjunto musical e o texto elogia a trajetória do trio, evidenciando a sua importância para o cenário musi-cal brasileiro desde quando foi criado, na segunda metade do século passado.

O primeiro ponto que nos chama atenção nessa aproximação é a apropriação, no título, do termo patrimônio para vinculá-lo à excelência do trabalho artístico, qualificado na matéria como “marco” da cultura musical brasileira. Além disso, é o diálogo estabele-cido entre esse patrimônio e o papel que o grupo musical desempenhou na consolida-ção de uma produção artística respeitada no âmbito da cultura nacional, denominada no texto por expressões como “[o trio] Logo viraria referência com sua nova forma de tocar e acompanhar a música brasileira” e ainda “Os críticos ressaltavam: o Zimbo é sofisticado, mas é samba da gente”. Com isso estamos discutindo o patrimônio como valor estabelecido por um grupo social a determinadas manifestações culturais que permitiriam – ou provocariam – que os brasileiros se reconhecessem como tal.

Como terceiro e último ponto de aproximação, vemos a relação com o que estamos aqui adotando sob o rótulo de MPB como algo construído em prol de uma identidade musical brasileira:

São as primeiras gravações comerciais do grupo, feitas para a gravadora RGE, plenas de uma mensagem inconfundível: a música brasileira mudava. O grupo é do samba, mas não deixou de gravar com orquestra, com cordas, com naipe de

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

metais, e numa época em que o violão […] e a brasilidade davam as cartas de uma maneira quase radical. E, ao tomar essa atitude, o trio instrumental tornou-se ainda mais querido de todos. (Carta Capital, 2011, no. 671, p. 89)

Acreditamos que mencionar essa matéria jornalística possa ilustrar o que aqui consi-deramos como a construção discursiva de representações de ícones de identidade e memória de grupos sociais, ao que chamamos de patrimonialização.

Por patrimonialização e seus termos correlatos, então, denominamos o processo de incorporar e sedimentar uma manifestação considerada por um grupo social como valorosa e que, por isso, mereça integrar o conjunto de representação que o próprio grupo, no caso a população brasileira, faça de si mesmo. Isso significa dizer que haveria atribuição de valor a uma dada manifestação cultural que só pode ser com-preendida pelo grupo a partir de uma convenção social, definida pelo próprio grupo por intermédio de um discurso articulado.

Assim, estamos em busca de compreender processos alternativos – os documen-tários – utilizados pela comunidade, em especial a brasileira, para se apropriar de elementos que permitam ao povo brasileiro se reconhecer identitariamente. Nesse processo, formariam tradições de conhecimentos e crenças, em especial pela MPB, o que nos aproxima do que Elias (1993) denomina de elementos de autointerpreta-ção da sociedade contemporânea.

A partir do exposto, problematizamos o papel do filme documentário como veículo a serviço da patrimonialização da música e, dessa forma, refletimos sobre o papel desses documentários na produção de “experiências” sobre o Brasil. Admitindo a experiência como algo narrável e também transmissível e aberta a interpretações futuras (Benjamin, 1985), devemos, sob essa perspectiva, analisar a potencialidade do cinema (a partir desse encontro com a música) como gênero discursivo, na pers-pectiva de Bakhtin (1997).

À luz dessa concepção, compreendemos o documentário como um campo de per-cepção valorizada, já que ele é não só um modo de representar o mundo, mas, acima de tudo, um modo de construção desse mundo. É tanto um local de disputa, de conflito e de esquecimento quanto de continuidade e de lembrança. Dessa forma, o gênero, por ser possuidor de elementos essenciais abertos ao surgimento do novo, mas calcado em referencial anteriormente estabelecido, coloca em funcionamento elementos necessários ao processo de permanência e mudança, constituindo-se em um “órgão de memória” que estabelece a dinâmica dessas narrativas: esquecimento e ressignificação.

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Ao pensar sobre novas formas de patrimonialização, esta investigação tem como ponto de partida aquilo que diz Davallon (2006) sobre o lugar do patrimônio na socie-dade ocidental contemporânea. Para esse autor, o papel do patrimônio se resume a frear a preocupação em reter realidades, tomar o lugar da memória viva e traduzir a recusa em olhar para o futuro.

Os documentários constituir-se-iam em “operadores de memória social”, segundo Davallon (2007), para quem todo “objeto cultural” – livros, filmes, arquiteturas, ou qualquer outro objeto concreto que resulte de uma produção formal e que se des-tine à produção de um efeito simbólico – pode ser observado como “operador de memória social”.

Some-se a isso o que Davallon (2007, p. 25), ao trabalhar a relação existente entre a memória social e as produções culturais, esboça ao analisar a “imagem contemporânea”3 como sendo uma forma de operar a memória. Dialogando com as ideias de M. Halbwachs, ele mostra que um acontecimento deixa de ser indiferente e torna-se memória ao conseguir sair do “domínio da insignificância” (op. cit., p. 25). É nesse sentido que podemos analisar a produção de documentários como um ope-rador da memória social.

Os documentários seriam o “registro da relação intersubjetiva e social” (op. cit., p. 31). Ao mesmo tempo em que um acontecimento se dá num momento singular do tempo, os documentários representarão para sempre a “essência do ato”. Trata-se do “registro do acontecimento”, que possibilita a relação entre passado (registrado) e futuro (momento de significações). Tais imagens, associadas aos enunciados linguísticos, se tornarão, de maneira indissociável, “documento histórico e monu-mento de recordação” (op. cit., p. 27). Podemos afirmar que, como objeto cultural, os documentários, ao mesmo tempo em que buscam representar a realidade, tam-bém buscam fazer “impressão sobre seu espectador”, ou seja, buscam também “conservar a força das relações sociais” (op. cit., p. 27). Essas produções não só “representam”, mas também permitem, àquele que as observa, uma possibilidade de produzir significação.

Embora Davallon esteja se referindo ao processo legislativo da ação de patrimonia-lizar, e nós, ao processo de construir discursivamente valores como constitutivos do patrimônio cultural de determinado grupo social, acreditamos que o diálogo possa se estabelecer, porque, a nosso ver, ao lado de uma ampliada preocupação com o que lembrar, vivemos o tempo de patrimonializar o que lembramos. E, nesse sen-tido, compreender o conjunto patrimonializável como arquivo, já que “a constituiçã o

3. O autor propõe, como exemplo, imagens televisionadas.

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do arquivo está intrinsecamente relacionada à noção de enunciado, ou ainda, ao sistema de enunciabilidade” (Sargentini, 2008, p. 105), é pensar novamente no con-ceito de mediação.

Nesse sentido, podemos afirmar que o patrimônio, assim como os documentários, é uma categoria discursivamente construída. Como afirma Gonçalves (2002), é em torno do patrimônio, pensado enquanto um gênero discursivo, que emergiriam as diferentes disputas para a representação da autêntica memória da coletividade. Quando tomamos essas narrativas documentárias como novos lugares de produção de discurso sobre a música brasileira, o elemento que permearia todas essas narra-tivas, bem como nos faria entender os períodos tratados (direta ou indiretamente) é o discurso produzido em torno da ideia de atribuir valor à “autenticidade”, ou melhor, detemo-nos nos diferentes discursos e nas diferentes formas de mobilizar ou construir autenticidade.

Apontamos para a ideia de construção porque a autenticidade é pensada não como uma característica intrínseca ao objeto, mas como algo construído discursivamente e, como tal, inserido no momento sócio-histórico de sua enunciação.

Documentários e memória dos músicos marginais

A ideia de MPB, surgida no decorrer dos anos 1960, tinha como objetivo traçar o Bra-sil musicalmente. Esta proposta, embora trouxesse em seu cerne uma multiplicidade, buscava construir uma imagem de Brasil. Nesse sentido, é partindo da diversidade que se estabeleceu uma busca de sínteses que convergissem para uma expressão nacional razoavelmente uniforme.

No entanto (ou por isso mesmo), é nesse cenário que diversas manifestações indi-viduais acabaram permanecendo marginais ou excluídas, caíram no ostracismo e no esquecimento. Isso pode ser observado como uma equivalência discursiva na caracterização das trajetórias abordadas em quatro documentários aqui estudados: Fabricando Tom Zé (2007), de Décio Matos Jr; LoKi - Arnaldo Batista (2008), de Paulo Henrique Fontenelle; Jards Macalé – um morcego na porta principal (2008), de Marco Abujamra e João Pimentel; e Simonal – Ninguém sabe o duro que dei (2009), de Clau-dio Manuel, Micael Langer e Calvito Leal. Todos eles abordam trajetórias musicais da chamada época heroica da MPB, segundo uma perspectiva do esquecimento.

Não se trata apenas de entendê-los como lugares de registro ou de preservação de informação sobre o artista ou a cena musical da época, mas, principalmente, como

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narrativas atuais e mecanismo ativador no qual as trajetórias artísticas do passado constroem um sentido presente.

Partindo desse plano, observamos como tais narrativas, ao trabalharem os dramas e as oscilações em torno dessas obras e carreiras, conduzem a um retrato em que, de um modo ou de outro, a não consagração fica associada a algum tipo de rotulação sofrida pelos artistas retratados e, de modo mais profundo, a um caráter divergente/desviante, em sentido próximo ao que diz Howard Becker (2008) que, por sua vez, é também próximo aos outsiders de Norbert Elias (2000).

No entanto, devemos ressaltar que a maneira como a rotulação de desviante vai sendo produzida pelo discurso fílmico remete diretamente a certos ruídos presentes no cenário musical brasileiro dos anos 1960/1970. Dessa forma, tais trajetórias se tornam representativas/expressivas de um momento cismogênico da música brasi-leira, mas numa inteligibilidade dada pelo cenário musical e cultural da atualidade. Por cismogênico compreendemos o que não aglutina, mas divide de um modo para-doxal: não suscita meramente oposição entre facções contra e a favor, mas diver-gência de interpretações totalizantes (todos igualmente contra e a favor, mas com sentidos invertidos).

A problematização – ainda que indireta, ou alusiva – dos conflitos e dos cismas pre-sentes não só no campo ou na cena artística, mas na sociedade brasileira de então, é que traz a ressignificação ou nova apropriação dessas trajetórias.

Ao focar nas trajetórias – isto é, no entrelaçamento da biografia pessoal-afetiva com a objetividade da carreira mais as redes dos encontros, parcerias e processos criativos que redundaram nas obras (as composições, os álbuns), assim como nas avaliações críticas – os documentários dão novo significado ao esquecimento. Este aparece como uma memória da divergência, ou um apagamento ativo, que depende de valores similares aos que geraram esses artistas e seus contemporâneos hoje consagrados. De algum modo, sua desclassificação (são quase tabus, lendas de mal-dições) se transforma em sintoma de inclassificabilidade.

A rotulação ou estigmatização vai sendo construída pela narrativa fílmica de modo muito semelhante: trazendo múltiplas vozes em volta da linha grosseira do esqueci-mento e consagração.

De modo geral, é interessante observar como, ao tematizar os cismas (ou os dilemas cismogênicos) naquela cena musical, tais documentários promovem algo análogo àquilo que Norbert Elias (1995) chamou de “encontro entre homem e artista”.

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Discurso fílmico sobre os marginais

A análise dos quatro documentários, respeitando as respectivas especificidades, nos aponta para uma linha de argumentação discursiva que nos remete a uma relação que denominamos encontro homem-artista. Essa linha de argumentação se cons-trói por duas vertentes: a primeira pela presença de marcas da vida privada que se misturam à profissional, como, por exemplo, a utilização de nomes de álbuns ou de músicas dos artistas como título do documentário.

A segunda vertente volta-se para mostras de cenas de consagração-rechaço, em que fragmentos de imagens sobre shows na época áurea ou daqueles realizados no período de esquecimento evidenciam a importância do artista.

Na primeira vertente da construção discursiva, a aproximação entre a vida privada e a profissional se faz pelos títulos dos próprios documentários que são tirados de músicas ou de álbuns musicais do artista retratado. Na medida em que os filmes mostram a trajetória do artista, entremeá-la com a vida privada faz parte de uma opção de construção narrativa que merece ser observada, porque a autêntica obra de arte, obra de cultura, é a própria trajetória, como os encontros e desencontros do homem com o artista, em diálogo com o grupo e a época.

LoKi – álbum de Arnaldo Batista – conduz à visão já solidificada da figura do artista (viciado em drogas, diversas internações) essencial para o entendimento da relação entre homem e artista. Por trás das canções melancólicas que compõem o álbum LoKi, o documentário promove novamente esse encontro após abordar os elementos “criatividade” e “inovação” tratados pela narrativa tanto como elementos de valori-zação da singularidade do artista como aquilo que lentamente levaria o músico ao esquecimento4.

Tais ambiguidades são também enfatizadas no documentário sobre Tom Zé, cujo título é Fabricando Tom Zé. Neste documentário, o título não remete a uma obra específica, mas à possibilidade de construir o próprio artista. Através dessas narra-tivas podemos perceber como o processo criativo pode ser observado como diver-gente/desviante5. O espírito inovador dos músicos em relação a Arnaldo e a Tom Zé,

4. É interessante observar como todos os demais filmes têm também algum tipo de ênfase na perfor-mance como um estado específico, diferente da “apresentação” ou “exibição” – a performance como fora do regime da reprodutibilidade.5. Seguindo um caminho que conecta o gênio “sociológico”, segundo Elias, e o gênio patológico-criativo dos paradoxos cognitivos, segundo Bateson, sugerindo que a criação genial é ela mesma um desvio, uma constante diferenciação que tem algo de aleatória a priori e que, no entanto, não cessa de, a posteriori, se revelar como recriadora-complexificadora da ordem anteriormente dada.

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e xaltado nos depoimentos, mostra artistas que são excelentes ao mesmo tempo que singulares, como indício de inadequação. Em relação a Tom Zé, por exemplo, diz-se que fazia orquestras com enceradeiras, ao mesmo tempo em que é apresentado como algo singular, não afeito a fazer concessões à padronização.

Os documentários sobre Simonal e Macalé, cujos títulos são Ninguém sabe o duro que eu dei e Tem um morcego na porta principal, remetem a duas obras de grande impacto na carreira de cada um dos artistas.

Na segunda vertente, sobre as cenas de consagração-rechaço, podemos iniciar a análise focando a turnê de Tom Zé na França e na Itália em 2005. O relato nos apro-xima do processo criativo do músico, mas também apresenta os complicadores de sua carreira; um exemplo é o episódio em que Tom Zé, encantado com a pequena cidade medieval em que vai se apresentar, compõe uma canção em francês recor-rendo inclusive à ajuda de um tradutor, minutos antes do show.

A falta de comunicação com a plateia, a incompreensão, as vaias finais não são apenas ilustrativas de inadequação, falha de roteiro ou de direção do show, mas funcionam como um memento de que é desse mesmo “material” que são feitos os momentos mais “apoteóticos”. O interessante nesse caso é frisar essa relação entre o artista, a situação de palco e o público que se dá numa constante tensão (que metaforiza todas as demais trajetórias). Essa permanente imprevisibilidade criativa – e que não é fluente, mas sim atritiva – é indissociável daquilo que poderíamos chamar de seu “desvio musical”. Ou melhor – podemos ver diante de nós que não há um suave deslizar nas ondas da aprovação externa, e que é essa energia a contra-pelo que está na estranheza de sua música, sua não vocação para o apelo do gosto geral. Como se a estranheza fosse o próprio signo e prova da genialidade, como uma sugestão de que a dramaticidade ou estranheza da música e do não sucesso (ou da decadência, e com valores invertidos, no caso de Simonal) já estivesse contida na obra, não como profecia, mas como presença no campo artístico. Aqui, a biografia do antissucesso é menos o tema do que a problematização do caráter da originalidade (e da brasilidade).

Continuando a análise nessa segunda vertente de argumentação, os shows de Arnaldo Baptista em Londres, à semelhança do de Tom Zé na turnê francesa, não têm lugar, nas narrativas, somente como apoteoses ou como definitivas redenções; ao contrário, são fortes reencontros do homem com o artista, porém em um modo menor, áspero, de múltiplas sublimidades e perdições, e cuja vocação não se estabe-lece, mas deve acontecer a cada vez; encontros rarefeitos, refeitos e concatenados com os percalços do homem (ator social) e do artista (criador).

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Os filmes sobre Wilson Simonal e Jards Macalé formam quase uma rede de cenas que remetem à cena musical-cultural-política em que os artistas retratados aparecem como individualidades capazes de combinar atitude e musicalidade num embaralha-mento de referências que dispensariam modelos estáveis.

No caso específico desses dois últimos, a malandragem aparece como noção comum, mas em aspectos bastante distintos em cada caso – a de Simonal associada a um (suposto) oportunismo de conveniência desrespeitoso de qualquer ética universali-zável e que, no limite, fez dele um equivalente moral (mesmo que não tecnicamente) do “dedo-duro” (por acionar a seu favor pessoal agentes da repressão política), ou, no caso de Macalé, uma malandragem associada a uma estética contracultural. E isso não está desconectado do modo como, nos mesmos documentários, são também tematizadas as ambiguidades, as complexidades e desobediências a vários códigos (musicais, de classe etc.) presentes no interior dessas trajetórias e em seu ambiente. Nesse caso, seja a partir de um ato, dentro de um contexto unívoco, ou de não flexi-bilidades dentro de uma cena musical, são apontadas certas classificações que mais tarde se tornaram elementos a serem excluídos da cena musical da época, mas tam-bém apontam para a valorização das singularidades, das inovações (nas artes, nas técnica) remetendo sempre a uma certa autonomia desses artistas na assimilação/interpretação de regras e de códigos.

O show de reencontro dos Mutantes em Londres em 2006, ao qual o filme Loki dá algum destaque, tem obviamente uma camada de história de reconhecimento tardio, mas que é logo relativizada pelo retorno do filme (e de Arnaldo) ao plano pessoal. O show não é chave de ouro da aclamação, mas a chave instável de decifração – é também o lugar do encontro homem-artista. Algo de louco e angelical (de selvagem e barroco) brilha nessa constelação da genialidade. A loucura é tomada como signo dessa criatividade.

Através dos filmes, portanto, a imperfeição ética-estética das obras desse quarteto de esquecidos/relegados, por ser desproporcional à riqueza e à inventividade que elas mesmas carreiam, passa a ter uma beleza cruel ou selvagem, do tipo que não se arrefece quando tocada pelo espírito de experimentação que sempre namora a feiúra.

Assim, os novos (des)equilíbrios ético-estéticos não seriam o efeito disruptor da modernidade sobre a tradição brasileira, mas, ao contrário, lances de uma brasili-dade mítica e bricoleuse que nunca chega à síntese; que escande tradições como recurso de excesso (um excesso menor, sem monumentalidade) numa relação imitativa-apropriativa do padrão da disseminação industrial. É uma brasilização da

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

modernidade, uma proliferação de modos híbridos em composições de rupturas e continuidades com a matéria e a condição brasileiras, numa leitura aplicável ao núcleo menos modernizante da MPB.

Documentários e identidade da música brasileira

A caracterização das trajetórias desses músicos como desviantes, seja no sentido torto ou louco, teria mais a ver, no discurso desses filmes, com certa afinidade eletiva entre contraculturalidade e condição brasileira, o que, por sua vez, leva a duas outras observações.

Em primeiro lugar, os filmes documentários são gênero discursivo e, por isso, reali-zam – tornam real, porque têm sucesso na operação de convencer-nos da sua função de representação – aquilo que narram; não mostram e não registram uma relação (o desvio, a incompatibilidade, a ambiguidade) supostamente acontecendo diante das câmeras, mas tecem, “fabricam” (como lembra o título de um dos documentários) essa relação com e entre os elementos que compõem o discurso. Inventam-na.

É do discurso fílmico que os “fatos e documentos e comentários” trazidos vão signi-ficando, nas respectivas trajetórias, certos conteúdos como irresponsabilidade, ins-tabilidade, imaturidade, agressividade, receptividade, ludicidade – uma constelação de traços que não formam talvez um caráter, mas se organizam em torno das figuras modernas de autenticidade: o louco, a criança, o primitivo, o marginal. E sua associa-ção ao gênio dá a este um polimorfismo que ultrapassa as consagrações oficialescas e o aproxima novamente da cismogênese e da contraculturalidade.

Isso fica ainda mais evidente nas cenas – ou no circo – dos festivais da canção. Se, por exemplo, tomarmos um quinto documentário, Uma noite em 67, a respeito da final televisada do “festival da música popular brasileira” daquele ano, fica bem claro que sua estruturação e montagem documentárias são um ótimo contextualizador do momento da MPB em que despontaram (dentre outros) os músicos tematizados pelos documentários aqui estudados, e que essa contextualização como que confere uma espacialidade de interação, uma arena (não só um palco) às temporalidades próprias e conflitivas de cada trajetória. Mas é possível, e talvez mais interessante, inverter o foco: as trajetórias retratadas também contextualizam o acontecimento dos festivais. O documentário sobre o festival deixa de ser então um tratamento direto das origens e consequências de um evento histórico6 e ganha um teor memorial

6. O cartaz do filme traz como frase de apresentação: “o festival que revolucionou a música brasi-leira”.

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– não é nem apenas um ponto de intercessão, nem o desencadeador de outros eventos, mas quase uma encenação, um ritual, um mito (televisionado), um drama musical dos dilemas e confluências, das forças e fragilidades do momento MPB em transição para a época da televisão7.

Ou seja, sem negar a factualidade de um relato histórico-jornalístico – a televisão produzindo um evento/entretenimento musical e trazendo para o palco artistas em início de carreira e/ou já consagrados –, estabelece uma estratégia de mediação que nos permite entender de outra forma esse conjunto de filmes: do ponto de vista das questões “patrimoniais” da cultura brasileira, é como se as diversas personas, figuras e modalidades de autenticidade ocupassem a cena do festival para, entre a confraternização e o agonismo, definir os rumos da incorporação, assimilação, apro-priação ou aceitação da modernidade pop da indústria cultural.

Em outras palavras, mais importante que o papel desempenhado por cada artista no evento-festival e no momento-cisma da MPB-tropicália, é entender o lugar do festival (do campo de tendências que ele ilumina) nas trajetórias. Pois estas, na medida em que não são biografias artísticas, nem sucessões de obras e acontecimentos, mas, sim, conjuntos de significados e ações narráveis e retratáveis por documentários, objetivações e subjetivações de relações sociais e de formas e conteúdos culturais, têm complexidade igual ou maior que os eventos produzidos – ou melhor, são tam-bém eventos, desenhos traçados em lampejos criativos que vão ligando pontos de um campo social e simbólico que inclui as realizações passadas, mas também as solicitações presentes.

E, como que para nos lembrar que não há lampejo planejado nem descobrimento projetado, e, como que para reafirmar que as linhas tortas, para sê-las, devem nas-cer retas, os documentários – diacrônica ou sincronicamente – falam de uma rup-tura que já não é a das vanguardas modelares do modernismo, mas no modo da inflexão semialeatória da diversão (sempre a um passo das demais conversões ou perversões) de quem leva o talento ou a técnica ou o bom gosto sempre à beira da consumação.

Na medida em que os filmes não falam de uma outra MPB, de um outro projeto, mas de músicos não menos inseridos nem mais iconoclastas do que os consagrados e os

7. Falas e aparições como as de Chico Buarque, Edu Lobo e Sergio Ricardo também ajudam a marcar que a repartição de papéis entre bom-mocismo e irreverência, contestação e conservadorismo, tradi-ção e iconoclastia, modernidade e politização etc. podia ser bastante contingente e variável, conforme as perspectivas musicais, ideológicas, comerciais etc.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

esquecidos, e cuja formação não destoa nem agride os padrões dos quais brotaram, tem-se quase um ruidoso turbilhão consentido.

*Pode-se dizer que os documentários não se propõem a descobrir obras esquecidas ou a consagrar artistas injustiçados, mas mostrar que (ou como) ainda há modos de ouvir suas trajetórias8. É de uma outra escala (de valores e atitudes, de musica-lidades, de modernidades) que eles dependem, e é dela que os filmes falam. É na escuta que pode estar a autenticidade e é só aquela escuta que procura a (e que se dá como) descoberta que pode captar a autenticidade como atributo daquilo que é escutado – do contrário, ter-se-ia uma cultura “alienada” que depende de laudos de peritos (ou da autoridade estrangeira) capazes de medir autenticidades “objetivas” (supostas como atributos das obras, e não como valor que circula nelas). O descobrimento não aparece como um ato essencial, nem como encontro com a essência e, sim, um aleatório incorporado a uma ordem instável. E a autenticidade brasileira tem a ver com uma condição made in brasil que nunca é perfeitamente objetivável, que tem sempre história e afetos, circunstância e atavismos, mitologias e iconoclastias.

Há (ou houve?) uma relação forte – e que ainda se ouve – entre a música feita no Brasil e a identidade brasileira. E veremos como os filmes documentários sobre trajetórias da MPB falam dessa relação, ao abordarem um momento de sínteses e fragmentações em convergências e divergências, nos anos 1960. Mas é preciso já deixar dito que a força dessa relação – no discurso desses filmes, e talvez por efeito deles e do conjunto mais amplo de discursos em que se inserem na atualidade – não está nos laços considerados substantivos, ou naturais, ou transcendentes, entre um ser e uma manifestação ou entre uma realidade e sua representação. Tal-vez por ser a música menos evidentemente mimética (ou representacional) do que as artes verbais e as plásticas, tenha lhe cabido, nas reflexões e na sensibilidade modernas brasileiras do início e meados do século XX, um papel mais “expressivo” de manifestação social/cultural. Mas, ainda assim (continua o argumento), a rela-ção de expressão tinha um valor similar ou equivalente ao da representação – e foi talvez sobre esse eixo que se sustentou a divisão de tarefas entre artes e ciências no espírito da “construção da nação” que o modernismo animou (sem dogmatismo).

Essa relação privilegiada (pensada como natural, ou transcendente, ou necessária, ou determinada historicamente) é talvez o que se entendia, em certo senso comum culto, como a autenticidade de uma manifestação. E era esse sentido de autenticidade

8. É aqui que opera a “sociologia implícita” dos documentários; menos a adesão a um tipo de conhe-cimento do que uma riqueza musical da relação entre música e contexto pessoal-social.

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

que marcava os anos 1960, vindo da generalização e institucionalização do moder-nismo brasileiro nos anos 1930. Mas, se nos anos 1930, essa ideia tinha um poder de operar ou contribuir para sínteses (o nacional pensado como resultado e o Estado pensado como agente destas), nos anos 1960 era uma ideia cismogênica.

Resumindo: os filmes documentários abordados permitem que se mantenha uma relação identitária com a música brasileira, mas sem que para isso seja suposta uma identidade essencial qualquer – portanto, produzem um vínculo que é de memória, não de continuidade objetiva e, por isso, não sintetizam identidade, não a respeitam, mas sem cessar de recriar as invenções daqueles que nela acreditaram.

Portanto, a sugestão deste trabalho de que os documentários de trajetórias esque-cidas da MPB são um discurso de patrimonialização tem um sentido forte e especí-fico: patrimonializa-se a MPB, naquilo que ela tem de cismogenicamente criativa, não somente suas obras ou carreiras consagradas. E isso, por sua vez, só é possível num plano já metarreferencial, mas sem metalinguagem (e, por isso, pós-moderno): a gra-mática da MPB, ou seu vocabulário, ou sua entonação são incorporados sem neces-sidade e mesmo contra a necessidade de respeitar suas crenças, suas convicções.

Existe uma mensagem que está nos filmes como gênero, porque é um modo de relação com os Brasis passados e presentes e que, por isso mesmo, não se encon-tra em nenhum deles especificamente: que a MPB é interessante, não por ter con-seguido encontrar ou produzir a música brasileira autêntica que projetou ou em que se projetou convicta e engajada, mas porque autenticamente, isto é, de um modo radicalmente brasileiro, produziu músicas genial e genuinamente inautênti-cas, divergentes.

Ou, dizendo de outro modo: que a riqueza e o valor – condição de patrimonialibili-dade – da MPB esteve na sua capacidade de produzir obras e atitudes (trajetórias) falhadas, divergentes, contraditórias, assonantes, não consagráveis. Que ela foi uma linguagem e não um conjunto de realizações. Isso significa que há uma descontinui-dade vinculada, na medida em que a importância e o valor não são tomados como “residentes” em determinadas canções ou estilos, isto é, que a MPB não produziu a autenticidade e as obras autênticas em que acreditava, e que o modo como não o fez é que dá sua riqueza e seu valor, pois foi um modo brasileiro, isto é, atravessado das relações problemáticas constitutivas das crises de identidade brasileira, um modo que ainda é capaz de “dizer algo” – como sonoridade, como atitude, como imagina-ção criativa – numa relação de parceria e não de fundamentação ou de anterioridade com o presente.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

Outra marca discursiva nos documentários analisados é sublinhar a sensação de estranheza que há na obra desses artistas (Tom Zé, Arnaldo Batista e Macalé), ou que aparece diante delas. Essa marca, por sua vez, está associada à interação, à nego-ciação de sentidos, à valorização e à explicitação de uma relação que se estabelece dentro do filme entre documentarista e artista retratado. Isso se observa mesmo – ou talvez principalmente – com Simonal, já morto, mas cujas imagens/sons de arquivo dialogam permanentemente com os demais documentos e depoimentos, já a partir da abertura do filme, com uma fala drummondiana em tom de quase pilhéria9.

Ao se constituírem como discurso polifônico sem o qual a condição brasileira e a divergência autêntica não seriam dizíveis ou mostráveis na sua complexidade para-doxal, os documentários recriam uma MPB (em cismogênese tropicalista) segundo nova lógica cultural – ou seja, estão produzindo e atribuindo discursivamente essa brasilidade e autenticidade, o que é a “essência” mesma da operação mágica e téc-nica que é a patrimonialização.

9. “Certa ocasião eu estava conversando com o meu anjo da guarda. Ele virou-se sério para mim e disse: ‘Simona, ou você vai ser alguém na vida, ou vai morrer crioulo mesmo!’”.

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Patrimônio em rede: a cinza, a brasa e os direitos indígenas no Brasil

José!Ribamar!Bessa Freire e Renata!Daflon Leite

Entretenir la tradition, ce n’est pas conserver les cendres, c’est souffler sur les braises.

Jean-Pierre Rioux, Jean Jaurès, Paris, Perrin, 2008, p.!48

Uso das tecnologias digitais por comunidades indígenas

Os estudos em memória e patrimônio passam a apresentar novas configurações con-ceituais e metodológicas a partir do momento em que as tecnologias comunicacio-nais digitais se fazem cada vez mais presentes no cotidiano em todos os setores da vida social. Até mesmo as comunidades conhecidas por suas práticas e modos de vida mais tradicionais passam a ver a internet como uma ferramenta com múltiplas possibilidades. O uso das tecnologias digitais por índios de diferentes etnias no Bra-sil ocorre dentro de um contexto de tensão entre a tradição e a inovação, trazendo consequências sociopolíticas e culturais, especialmente no campo da identidade e da memória.

O Censo de 2010 do IBGE registrou a existência de mais de duzentos e trinta povos indígenas, somando oitocentas e noventa e seis mil, novecentas e dezessete pessoas que residem em território nacional e correspondem a 0,47 da população total do país. Destas, trezentos e vinte e quatro mil, oitocentas e trinta e quatro vivem em cidades e quinhentos e setenta e dois mil, oitenta e três em áreas rurais, em seiscen-tas e setenta e nove terras indígenas. (IBGE, 2012) Nessas terras, funcionam duas mil, seiscentas e noventa e oito escolas indígenas com cerca de duzentos e dez mil alunos. Uma parte significativa deles já entrou no mundo digital. (Freire, 2011, p. 216)

Analisamos aqui o impacto das tecnologias da informação e comunicação digitais na consolidação do patrimônio e identidade indígenas. Apresentamos um estudo de

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

caso do blogue Índios online como exemplo do uso das tecnologias digitais pelos índios, procurando enfocar os trabalhos de uma memória criativa construída de forma processual e colaborativa, contrapondo-se à ideia comumente aceita de que a memória é constituída apenas do passado. Para os Guarani, o passado não está antes do presente, mas dentro do presente. Assim, a internet intercultural propõe um encontro entre as culturas indígenas tradicionais e as culturas da sociedade indus-trial, que traz à tona o caráter criativo e político da memória social em seu movimento incessante e contínuo, agora potencializado nas mídias digitais.

O dado novo que deve ser destacado aqui é a “liberação do polo da emissão”, carac-terística das mídias de função pós-massiva, conforme sugerido por Lemos (2009). Ela nos permite entender o caráter universal e pós-massivo da blogosfera como um poderoso instrumento na construção identitária indígena, pois, afinal, os sujeitos indígenas passam a ser autores da própria informação. Segundo Lemos (2009), as mídias de função pós-massiva apresentam-se como uma forma de mídia social cola-borativa, em que os usuários podem criar e compartilhar seus conteúdos a partir de outros blogues, fazendo o que se denomina mixagens ou mashups. A liberação da emissão pelos blogues permite uma reconfiguração da vida social, quer dizer, dar voz a todos, pois pressupõe uma reelaboração da esfera pública. Desta forma, os blogues tornam-se um dos fenômenos mais populares da cibercultura, refletindo um desejo reprimido pela cultura de massa: o de ser ator na emissão, na produção de conteúdo e na partilha de experiências.

O nosso olhar para a construção da memória coletiva indígena enfoca o movimento contínuo presente em um trabalho de memória que se inscreve nos blogues da inter-net, apropriando-se da efemeridade do diálogo on-line enquanto elemento consti-tutivo de sua capacidade de agir sobre o mundo. O blogue interétnico Índios online nos mostra que o patrimônio em rede é muito mais uma prática social viva a ser preservada do que um legado intocável a ser transmitido. Dos usos da internet por sujeitos indígenas e suas consequências para os modos de subjetivação e processos de construção identitária, destacam-se aqueles que se referem aos graus de autoria, empoderamento e mobilização interétnica na garantia dos direitos indígenas e na reconstrução patrimonial. Entendemos aqui por “empoderamento” o processo pelo qual indivíduos e grupos secularmente discriminados adquirem uma maior autono-mia e poder de decisão no relacionamento interpessoal e institucional.

Este tema merece ser cada vez mais debatido porque estimula uma reflexão sobre o imaginário social relativo às culturas indígenas, promovendo uma desterritorialização de preconceitos difundidos no senso comum. A comunicação reticular indígena tem muito a nos ensinar sobre a estrutura dialógica em rede da web. Alguns estudos traçam

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um paralelo entre este modelo comunicacional e a rede hipertextual e interativa da web 2.0. Neste sentido, Gomez Mont (2007) aponta uma perspectiva de análise bastante instigante e estimulante a respeito das populações autóctones do México, ao relembrar-nos de que foi a lógica comunitária estruturada em rede (a comuni-cação reticular) que salvaguardou os saberes destes povos, apesar de quinhentos anos de colonização. Tendo como pressuposto que a lógica comunitária indígena, denominada “comunicação reticular”, se aproxima da lógica da rede comunicacional na internet e da formação de uma memória social criativa, a expansão digital do sistema comunicacional e memorial indígena vem se revelando como alternativa a uma política patrimonial vertical de cunho estatal. Rediscutir o patrimônio e afirmar a sua processualidade e a sua impermanência implica também reinventar os conceitos de homem e de direitos humanos. Repensar a noção de patrimônio nos dias atuais implica conceber um patrimônio constituído “em rede”, capaz de incorporar o caráter dialógico da web em sua constituição.

Entendemos que a internet indígena traz a originalidade das ideias novas que são capazes de mobilizar o nosso pensamento, fazendo-o habitar zonas fronteiriças potencialmente criativas. Quais as consequências da forte presença da autoria indí-gena na sociedade em geral? De que forma o discurso ocidental universalizante é abalado pela potência das narrativas indígenas?

Com o objetivo de melhor aprofundar estas questões, dividimos o trabalho em três tópicos: a) memória e patrimônio indígenas na blogue-esfera; b) a questão identitária na web indígena; c) o blogue Índios online.

Memória e patrimônio indígenas na blogue-esfera

Os atributos “digitalidade” e “virtualidade”, quando associados aos conceitos de memória social e patrimônio, inauguram uma reformulação conceitual dos mesmos, o que implica outros modos de conceber a transmissão e preservação do conheci-mento. Desta forma, os diversos sujeitos indígenas utilizam o espaço público da web, sugerindo tanto a construção do ciberespaço enquanto ágora pública de confluência cultural, quanto a reafirmação de suas raízes patrimoniais possibilitada pela rede digital. O contexto contemporâneo faz emergir alguns questionamentos relativos a diversas disciplinas e instituições antes seguras e definidas na modernidade, quando as identidades culturais eram estáveis e sólidas. O descentramento do sujeito na modernidade tardia e as modificações das paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade (Hall, 2003) enriquecem o debate sobre a constituição do patrimônio cultural. Consideraremos aqui as reconfigurações

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s ofridas pelo “campo patrimonial”, a partir da noção de patrimônio digital, que acaba por redimensionar, conforme defendemos aqui, as questões relativas ao humano.

O atributo digitalidade faz emergir o caráter de processualidade presente no pró-prio conceito de patrimônio (Dodebei, 2006). Podemos dizer, então, que o atributo digitalidade contribui para revelar o automovimento e o potencial criador presentes no conceito de patrimônio, denotando o seu caráter mobilizador. Podemos pensar, então, que o patrimônio digital efetua uma difícil passagem daquilo que seria a indi-vidualização do patrimônio para os diferentes processos de individuação do patri-mônio. Essa transição coincide com outra, aquela relativa à concepção mesma de indivíduo, passando da concepção estática e totalizante de individualismo proposta na modernidade para uma noção mais aberta, dos diferentes modos de individuação que surgem na supermodernidade, quando o sujeito moderno surge descentrado de seu eixo sólido, apresentando múltiplas possibilidades de identificação. O patrimônio como individuação implica sujeitos ativos e empenhados em sua preservação, eles mesmos autoimplicados neste processo, pois, enquanto reconstroem seu patrimô-nio, também reconstroem seus modos de subjetivação, efetuando uma escrita de si inseparável de uma escrita do mundo. (Leite, 2011, p. 50-51)

A crescente presença indígena na web permite o reconhecimento de saberes e prá-ticas tradicionais no contexto do mundo globalizado contemporâneo. A necessidade de reconstrução da memória e recuperação do patrimônio implica o uso dos instru-mentos da cultura letrada e da cibercultura, não como algo que anularia suas tradi-ções, mas sim como uma ferramenta técnica, como quer Ailton Krenak:

Para mim e para o meu povo, ler e escrever é uma técnica, da mesma maneira que alguém pode aprender a dirigir um carro ou a operar uma máquina. Então, a gente opera essas coisas, mas nós damos a elas a exata dimensão que têm. Escrever e ler para mim não é uma virtude maior do que andar, nadar, subir em árvores, correr, caçar, fazer um balaio, um arco, uma flecha ou uma canoa. Quando aceitei apren-der a ler e escrever, encarei a alfabetização como quem compra um peixe que tem espinha. Tirei as espinhas e escolhi o que eu queria. (Airton Krenak, 2007, p. 15)

O uso da internet pelos sujeitos indígenas e a inserção da cultura indígena na rede apresenta, porém, alguns pontos controversos, conforme podemos ver na reporta-gem “Tribo de Rondônia pode fechar acordo com Google Earth”, publicada pela Agên-cia Estado em 2007. Segundo a reportagem, o grupo indígena Suruí, localizado no município de Cacoal em Rondônia, na terra indígena Sete de Setembro, “deve fechar uma parceria com a gigante Google para incluir a aldeia de 1,2 mil habitantes no Goo-gle Earth, serviço de imagens de satélite e mapas via internet, e adicionar palavras

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da língua falada por eles nos motores de busca da empresa americana”. Almir Suruí, que promove a ideia de conservação ambiental na Europa, promete, no entanto, não fornecer as informações sobre a utilização de recursos da floresta para curar doen-ças: “Isso é nosso e não vamos compartilhar com eles”.

Figura!1. O cacique Almir Narayamoga Suruí acessando a internet

Fonte: www.paiter.org, consultado em 7 de julho de 2014.

A entrevista com o líder indígena Ampam Krakas, feita em 1980 quando seu povo, o Shuar, que vive uma parte no Equador e outra no Peru, decide criar a Rádio Shuar, contribui para pensarmos a questão de como os índios pensam sua identidade, por exemplo, face às questões espaciais e diante da realidade dos estados nacionais. “À pergunta feita: – Cual es tu Pátria?, ele me respondeu: - Mi pátria grande es el Ecua-dor y mi pátria chica es el Shuar”. (Freire, 2009, p. 19)

Este diálogo nos levou a pensar sobre a internet como um lugar onde as “pátrias chicas” se encontram, dada a capacidade das mídias pós-massivas em recuperar inclusive a riqueza da diferenciação dialetal que, segundo Claude Hagège (2000), possibilita a aparição de novas línguas. Desta forma, os blogues e outras redes sociais na web podem representar um poderoso instrumento de recuperação do patrimônio linguístico, a partir do uso da escrita e das novas tecnologias pelos índios, o que trará consequências inevitáveis sobre a questão da identidade. “Minha pátria é minha língua” – afirma o poeta português Fernando Pessoa.

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Segundo Marcos Terena, durante a celebração do Dia Internacional da Língua Materna, ocorrido no Clube de Periodistas do México, indígenas e especialistas deba-teram o efetivo direito às línguas maternas como valor de identidade nacional e res-saltaram que é preciso aproveitar a diversidade linguística para empoderar os povos indígenas1. Na ocasião, Susana Harp, promotora cultural mexicana, apontou a impor-tância do uso das novas tecnologias de informação e comunicação para a proteção linguística. Ela considerou que a negação no uso da língua materna ocorreu diante do alto grau de racismo e discriminação contra os povos indígenas. O dia 21 de fevereiro foi celebrado como o Dia Internacional da Língua Materna. Héctor Pedraza Olguín, secretário da Comissão de Assuntos Indígenas da Câmara dos Deputados do México, manifestou que “o idioma reflete a maneira de pensar de uma pessoa, de um povo, seus processos mentais, sua organização social, sua cosmovisão. Quando o último falante de um idioma morre, está morto também um acúmulo de ideias, histórias do grupo social e sua comunidade”.

Cecilia Alm em What can language technologies do for endangered languages, and vice-versa? (Alm, 2011, p. 94) revê a relação entre línguas em perigo de extinção e a linguagem computacional e nos mostra como a linguística computacional pode contribuir para o aumento da documentação e da presença de línguas em perigo, bem como o que estas línguas podem fazer pela linguística computacional. Quando falamos em recuperar e preservar o patrimônio indígena, estamos afirmando a recu-peração e preservação de um ponto de vista, uma visão de mundo, uma organização social, um processo cognitivo, um modo de vida e de pensamento específicos. O uso das línguas indígenas nas redes sociais permite que seus falantes celebrem a abertura desse novo espaço na perspectiva indicada por Bartomé Meliá: “A história da América também é a história de suas línguas, que temos que lamentar quando mortas, que temos que visitar e cuidar quando enfermas, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando são faladas”. (Meliá, 2010, p. 27)

A questão identitária na web indígena

O processo de construção e de reconstrução da identidade cultural indígena com o auxílio das mídias pós-massivas digitais permite investigar o exercício de identidades culturais ativas, capazes de interferir performaticamente e politicamente no mundo social, fugindo, assim, do purismo da “eugenia cultural”. Como diz Viveiros de Castro (2009, p. 85): [...] “eugenismo cultural também nunca deu certo [...] aquela história de raiz e de tradição, Deus me livre. Só tem tradição quem inventa”.

1. Terena Marcos, Mensagem postada em 20 de fevereiro de 2011 em literaturaindigena.yahoogru-pos.com.br.

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A construção de museus indígenas, capazes de exercer papel educativo e mobiliza-dor, organizar a memória e revigorar a identidade de diferentes etnias, como o Museu Magüta, por exemplo, ou os museus indígenas do Ceará, vem fortalecer a identidade étnica, contribuindo, assim, na luta pela demarcação de terras. É que o direito dos índios à terra depende, em grande parte, de serem reconhecidos como índios pela sociedade brasileira, assumindo plenamente sua identidade étnica, muitas vezes escondida por eles e negada sempre pela população regional, para quem os índios eram “caboclos”. Os museus indígenas, servindo como uma reafirmação cultural, fortalecem essa identidade. (Freire, 2009, p. 219)

Podemos, então, traçar um paralelo entre o papel do museu e aquele da internet na luta pela conquista dos direitos indígenas e fortalecimento étnico. Do mesmo modo que alguns museus indígenas em funcionamento no país mostram às lideranças indí-genas de todo o Brasil a força que pode ter um museu para reafirmar a identidade de uma etnia e para modificar a imagem que os brasileiros têm sobre os índios, a internet pode ser um importante instrumento no combate ao preconceito contra os sujeitos indígenas, retirando-lhes uma mordaça histórica, dando-lhes voz e um rosto, como lembra-nos Yakuy Tupinambá em depoimento presente no livro Arco digital: uma rede para aprender a pescar:

A internet promoveu a abertura de horizontes – contrariando o pensamento de uma grande maioria interessada em nos manter amordaçados – trouxe-nos novos significados, sem que isso implique no abandono das nossas tradições. Devolvendo nossas vozes, que foram caladas por muito tempo, cobertas pelas vozes dos que se julgam especialistas. Conectar-se ao mundo através da inter-net é ter direito a ter um rosto, e fazer ouvir nossa voz é saber dos acontecimen-tos e interesses que envolvem toda a humanidade. Através desse mecanismo tecnológico conseguimos perceber uma janela para o mundo, a tão sonhada Inclusão dos Povos Indígenas, como sociedade fundamentada, negada há déca-das e décadas. (Yakuy Tupinambá apud KARIRI-XOCÓ, Nhenety et all., 2007, p. 11)

Os indígenas engajados hoje na luta pelo direito de exercer as suas práticas culturais são como Cunhataí, a personagem do texto Ato de amor entre os povos da escritora indígena Eliane Potiguara: “Cunhataí sai pelas matas, pelos céus, pelos rochedos, pelas montanhas, rios e lagos buscando suas raízes fragmentadas e fragilizadas pelo colonizador de todos os tempos”. (Potiguara, 2004)

O movimento indígena nasce do domínio das letras, dos números, dos códigos sociais, dos processos econômicos e das políticas pelos líderes indígenas. Potiguara (2004, p. 70) escreve que “Daqueles primeiros líderes muito se viu e ouviu, mas

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pouco se leu”, e acrescenta que “Agora é hora de ler as palavras que foram ditas ao papel”. Desta forma, o movimento indígena surge com a apropriação, pelos índios, das instituições da sociedade nacional envolvente, constituindo uma busca por dar vazão ao que Potiguara denomina “visões indígenas”, ou seja, o pensar, o sentir e o viver dos povos indígenas brasileiros.

As lutas políticas indígenas têm, no uso da internet, uma importante ferramenta, como salienta a indígena Yaku Tupinambá em resposta à pergunta “Como a internet pode servir de instrumento de luta para a defesa dos direitos indígenas?”:

Não existe instrumento de comunicação mais democrático de fato que a internet (jamais conseguiria espaço na chamada grande mídia) para contarmos a nossa his-tória, promover intercâmbio cultural, lutar pelos nossos direitos, reivindicar políti-cas públicas, denunciar violação dos direitos humanos; hoje, basta um clic, e estou passando informações para a Amnesty International, ONU, Parlamento europeu e outros organismos que podem nos defender. A internet me levou a falar para a Comissão de Direitos Humanos no Parlamento Europeu em Bruxelas, na Bélgica; sem o uso da mesma, não ouviriam minha voz, jamais chegaria até lá, como fui em 2008, e tantos outros parentes que estão trilhando esse mesmo caminho. (Yakuy Tupinambá, entrevista em 4 de dezembro de 2010)2

A eclosão de microliberdades indígenas, através do povoamento do território digital, realiza efeitos de pressão sobre uma cultura massiva que se quer universal e que compreende o “índio” como uma ideia romântica, geral e ligada à noção de atraso intelectual, econômico e cultural. Esses movimentos de pressão são capazes de pro-vocar uma “desterritorialização da maioria”, pois, ao mesmo tempo em que a expe-riência tecnossocial possibilita meios favoráveis a uma construção identitária dos sujeitos indígenas, também impulsiona uma desterritorialização da noção genérica de “índio”. Será útil, portanto, empregarmos o conceito de “desterritorialização da maioria” conforme debatido por Deleuze:

Certamente as minorias são estados que podem ser definidos objetivamente, estados de língua, de etnia, de sexo, com suas territorialidades de gueto; mas devem ser consideradas também como germes, cristais de devir, que só valem enquanto detonadores de movimentos incontroláveis e de desterritorialização da média ou da maioria. (Deleuze, 2002, p. 53)

E como fica a construção de subjetividades indígenas a partir desta nova visibilidade proporcionada pelas tecnologias da informação e comunicação digitais (TICs)? As

2. Para mais detalhes sobre essa entrevista, ver a dissertação de Leite, 2011.

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tecnologias comunicativas digitais são instrumentos privilegiados na constituição da subjetividade e da identidade indígena. No caso do blogue Índios online, podemos dizer que, em cada post, está a subjetividade de seu autor e sua identidade indígena, já que o blogue é uma mídia em que a autoria é imprescindível para sua construção.

Figura!2. A intimidade com as TICS

Eliete da Silva Pereira (2008) emprega o termo “ciborgues indígenas” para referir-se à relação simbiótica entre grupos/sujeitos indígenas e as TICs, denotando um novo contexto de uma sociabilidade tecnológica com distintas formas de atuação e autor-representação, delineadas pela visibilidade e pela tomada da palavra eletrônica. Os ciborgues indígenas representariam, então, uma nova condição nativa contemporâ-nea, atravessada por softwares e hardwares, sistemas informativos e fluxos comuni-cativos. A presença indígena na blogue-esfera promove uma “(re)elaboração étnica que confronta direta e indiretamente com o termo ‘índio’, colonial e homogêneo; processo esse promotor de um diálogo intercultural estabelecido por uma situação social, tecnológica, comunicativa e em rede”. (Pereira, 2008b, p. 2) A emergência das redes digitais interativas motivaria agenciamentos provocadores de uma “reela-boração hipertextual da representação sobre si”, abrindo uma perspectiva de análise

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para além do uso antropocêntrico das tecnologias. Os ciborgues indígenas aponta-riam para uma “nova ideologia protagônica” surgida nos espaços tecnossociais das redes digitais, contribuindo para a “desestigmatização” da identidade étnica indí-gena. (Pereira, 2008a) Desta forma, a interculturalidade e a visibilidade de saberes e culturas é potencializada no ciberespaço a partir da promoção de um diálogo entre culturas mais direto e horizontal.

Entendemos, então, que a constituição de um ciberterritório indígena faz parte do movimento indígena e as ferramentas digitais auxiliam os sujeitos indígenas a con-quistar a sua identidade. A exaltação identitária aparece em toda a produção de escritura indígena, seja ela impressa ou presente no suporte virtual da web. Hoje, toda a forma de produção textual indígena expõe a luta pela identidade como um for-talecimento diante do desrespeito e da humilhação, que compõem, como diz Graça Graúna (2004), a sintaxe da diáspora indígena.

O blogue Índios online

O blogue Índios online surge em 2004 com um projeto piloto financiado pelo Super-mercado Bom Preço e, em 2006, torna-se um ponto de cultura3, conectando sete nações indígenas do Nordeste brasileiro: Kiriri, Tupinambá, Pataxó-Hãhãhãe, Tumba-lalá na Bahia, Xucuru-Kariri, Kariri-Xocó em Alagoas e os Pankararu em Pernambuco, conforme informação dada por Potyra Tê Tupinambá, advogada indígena em Ilhéus, durante o I Simpósio Indígena sobre Usos de Internet nas Comunidades Indígenas do Brasil, que ocorreu no final de novembro de 2010, na Cidade Universitária da Univer-sidade de São Paulo.

A situação dos índios no Nordeste é discutida em vinte e três artigos publicados no livro A presença indígena no Nordeste, organizado por João Pacheco de Oliveira, para quem:

O livro decorre do desconforto e mesmo da indignação que gera num conjunto de pesquisadores a forma superficial e preconceituosa com que a existência indígena no Nordeste tem sido abordada em circuitos prestigiados e poderosos de informação, repercutindo de maneira muito negativa na naturalização e na disseminação de estereótipos seja na opinião pública, seja na formação das novas gerações de estudantes. (Oliveira, 2011, p. 9)

3. Os pontos de cultura são iniciativas culturais desenvolvidas pela sociedade civil em parceria com o governo brasileiro, a partir da liberação de recursos do Ministério da Cultura. Para mais informações ver: http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1.

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A análise do blogue identificou alguns temas recorrentes nas postagens entre dezem-bro de 2010 e fevereiro de 2011, quais sejam:

• luta pela terra: demarcação de terras indígenas, ocupação e retomada de territórios;• política: movimento político indígena, denúncias, reivindicação de direitos indígenas, políticas públicas;• inclusão digital: computador nas aldeias, Índios online;• divulgação de eventos: simpósios, encontros, assembleias e reuniões;• educação: indígenas nas universidades, escolas indígenas;• cultura: manifestação artística, ancestralidade, memória social;• confraternização: saudações e festividades;• saúde: políticas públicas de saúde, demandas e prestações de serviço de saúde nas aldeias, médicos indígenas.

Observamos, desta forma, que as informações trocadas no blogue abrangem desde simples confraternizações entre os indígenas, até a presença de denúncias e troca de mensagens que enfatizam a defesa dos direitos indígenas. O blogue favorece um reconhecimento das narrativas indígenas, ainda que elas não componham a história oficial da nação, fazendo-as emergir e sair do grau de “apagamento” na

Figura!3. Blogue Índios online

Fonte: http://www.indiosonline.net, consultado em 10 de dezembro de 2014.

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m emória coletiva. A internet oferece-se como um instrumento eficiente na cons-trução da memória social, permitindo que a memória possa emergir dos próprios atores sociais em questão.

Vale insistir aqui no depoimento de Yakuy Tupinambá, presente no livro Arco digi-tal: uma rede para aprender a pescar (Kariri-Xocó, 2007), em que ela ressalta como a internet devolveu aos indígenas as vozes que lhes foram caladas por séculos e séculos, dando-lhes o direito de ter um rosto e saber de acontecimentos que envol-vem toda a humanidade. O blogue Índios online apresenta-nos, o tempo todo, atos performáticos que atualizam a memória indígena, desde a escolha de grafismos tra-dicionais no layout do site até os depoimentos presentes nos vídeos, bem como as matérias e imagens postadas.

O blogue Índios online apresenta-se também como ferramenta capaz de promover uma mobilização social em prol da luta pela defesa dos direitos indígenas. Lá, encon-tramos dois passados: um que fala da exploração do índio pelos invasores portu-gueses, e outro que fala da herança cultural indígena transmitida pelo convívio com seus ancestrais. Podemos dizer que esses dois passados surgem com novos signifi-cados a partir do presente e de um discurso atual que denuncia a discriminação, o preconceito, o desrespeito aos direitos indígenas, o assassinato e a criminalização de lideranças, sendo muitas vezes publicado em tempo real, como, por exemplo, no caso da notícia da prisão da cacique Valdelice. O post Cacique Maria Valdelice é presa injustamente, publicado em 3 de fevereiro de 2011, aparece no site apenas algumas horas após a prisão da liderança em questão.

Mais uma vez uma liderança do Povo Tupinambá de Olivença é presa injusta-mente. Primeiro foi o cacique Babau, depois seus irmãos Givaldo e Glicélia, agora foi a vez da cacique Maria Valdelice (Jamopoty). Ela foi presa na tarde de hoje (3 de fevereiro) após uma audiência, por policiais da Policia Federal em cumprimento ao mandado de prisão expedido pelo juiz federal Pedro Alberto Calmon Holliday, após decisão da Karine Costa. Carlos Rhem da Silva (docs. abaixo). (Postado por Potyra em www.indiosonline.org.br.)

Esta notícia nos faz refletir sobre a importância das mídias pós-massivas com seu poder de intervir no acontecimento em tempo real. As denúncias publicadas nos blogues e sites da internet rapidamente estabelecem uma rede de contatos capaz de mobilização social. De forma diferente das mídias de função massiva, o ativismo social na internet denota o poder de modificação do fato social. Logo após o post citado anteriormente aparecem seis comentários e também um setor específico com o título 7 trackbacks para esta matéria. Nele, temos acesso a outros sites que também

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publicaram matérias sobre a prisão desta cacique, tais como União campo cidade e floresta e Web Brasil indígena.

O movimento de protagonismo de uma minoria se dá a partir do momento em que ocorrem as lutas políticas pela memória, e que esta minoria passa a ressignificar o passado em seu discurso, como forma de fortalecer sua identidade de grupo, a qual necessita estar coesa para dar continuidade ao processo de construção de uma memória coletiva.

O post em questão dá acesso ao vídeo Homenagem à cacique Valdelice que está presa ilegalmente em Ilhéus-Ba que também é publicado no Canal Celulares Indíge-nas Youtube, em que podemos assistir a diversos depoimentos dados pela cacique Valdelice. Ela, enquanto ator social, traz à tona em sua fala o passado do grupo social ao qual pertence quando diz: “um povo sofrido, um povo que foi discriminado, que continua sendo discriminado ainda neste século [...]”.

Somos também confrontados com esse passado ao vermos o braço de Valdelice pintado com grafismos e seu cocar, lembrando-nos da tradição cultural indígena. Este passado, porém, aparece no presente, vivo e completamente ressignificado, mostrando-nos que a tradição é mantida a partir dos embates travados na luta polí-tica pela memória. A mesma discriminação que a cacique Valdelice aponta em sua fala aparece agora redimensionada quando o site Índios online publica a notícia sobre sua prisão.

A internet pode ser um poderoso instrumento na luta pela garantia dos direitos indí-genas, como, por exemplo, no caso da retomada de território pelos Tupinambás. Yakuy Tupinambá, em conversa via Skype realizada no I Encontro On-Line de Indíge-nas Vivendo em Cidades, chega a falar em “mídia comprada”, referindo-se à veicula-ção desta luta indígena na mídia de massa:

[...] um caos [...] governo não faz nada, fazendeiros perseguindo, mídia com-prada, por isso tendenciosa, indígenas torturados, criminalização de lideranças. Por isso damos importância à internet, porque o 4º poder, como é chamada a grande mídia, não nos dá direito a voz, não nos abre espaços, não mostra nossa realidade. A internet permite a globalização contra, hegemônica; o que tem feito a mídia é nos descaracterizar e nos desqualificar. (Yakuy Tupinambá, fala realizada no I Encontro On-Line de Indígenas Vivendo em Cidades)

No blogue Indios online temos, no Canal Celulares Indígenas Youtube, a exibição de quatro vídeos referentes à retomada de território pelos Tupinambás. São produções

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realizadas pelos próprios indígenas, as imagens foram registradas por Potyra Tê Tupi-nambá, Fábio Tupinambá e Bruno Ninhã Tupinambá e editadas por Alex Pankararu.

Há um post publicado em 22 de dezembro de 2010 com o título: É retomada e não invasão. Nele, podemos ler: “Quando é mostrada nos meios de comunicação a recu-peração da terra indígena, feita pelos próprios índios, exemplo de retomada, eles dizem: ‘indios da tribo… invadiram a fazenda de…’”. Não podemos deixar de sublinhar a presença do ponto de vista indígena nessas matérias e vídeos, que apontam para uma abordagem diferente daquela mostrada frequentemente nos veículos de comu-nicação de massa.

Jelin (2002, p. 41) fala-nos do forte vínculo com o poder presente na intencionalidade da construção da narrativa oficial de uma nação, sublinhando, porém, que as inter-pretações das narrativas históricas se produzem ao longo do tempo, como produto das lutas políticas, de mudanças na sensibilidade da época e do próprio avanço da investigação histórica. Alguns posts do site apontam para a atuação de verdadeiros “empreendedores da memória”, conforme definição de Jelin (2002, p. 54) que lutam pelo reconhecimento público e oficial de acontecimentos importantes para a memó-ria dos povos indígenas e que foram relegados ao “esquecimento” nas narrativas oficiais.

Podemos dizer que o blogue Índios online é um instrumento importante para a orga-nização da luta política pela memória indígena; nele observamos homens, mulheres, jovens e crianças lutando por materializar suas memórias, tanto aquelas referentes à tradição indígena, quanto as de acontecimentos do tempo presente, muitas vezes negligenciadas pela mídia de massa.

O mundo em movimento

Nos últimos anos, as políticas públicas no campo da educação e da cultura começa-ram a refletir uma compreensão da importância do uso das novas tecnologias pelas comunidades indígenas. O Museu do Índio, subordinado à Fundação Nacional do Índio (Funai), inaugurou, no dia 10 de abril de 2012, no Memorial dos Povos Indígenas em Brasília, uma exposição intitulada Mundo em Movimento: Saberes Tradicionais e Novas Tecnologias. São diferentes espaços que exibem o universo indígena no Brasil, sua produção artística e cultural e um diversificado conjunto de registros audiovi-suais, acervos tratados e digitalizados, dicionários, gramáticas, materiais de divul-gação como vídeos, CDs e DVDs, entre outros trabalhos produzidos pelos índios. Seus conteúdos são validados e qualificados por mestres e especialistas indígenas

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para uso em escolas e centros de documentação nas terras indígenas. A exposição contém objetos, textos, fotos, vídeos, músicas e falas que revelam, de forma lúdica, saberes tradicionais, mitos, rituais, dimensões simbólicas e estéticas, expressões linguísticas e modos de fazer associados a aspectos específicos de cada cultura de cinquenta e cinco etnias documentadas.

A exposição apresenta ainda um corredor sonoro com quatorze monitores portáteis e interatividade para escuta de dezoito sonoridades – falas e cantos – indígenas. Tudo isso é o resultado do Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indíge-nas (Progdoc) desenvolvido nos últimos três anos em cento e nove aldeias, em par-ceria com vinte e três povos indígenas, em conjunto com o Instituto Max Planck, da Holanda, e várias universidades e centros de pesquisa do Brasil. As mostras apresen-tam material inédito produzido pelos índios, no seu dia a dia. Trata-se de um evento que valoriza o protagonismo das populações indígenas em ações de salvaguarda de seu patrimônio cultural.

Tanto a exposição sobre os saberes tradicionais e as novas tecnologias como o blo-gue indígena propõem uma mudança no estatuto do olhar do outro, seja do outro (“homem branco”) para o sujeito indígena, seja do indígena para si mesmo, ao apre-sentar a relação entre a cultura tradicional indígena e as tecnologias digitais de forma criativa, como um instrumento de empoderamento diante do mundo. No caso do blogue, cada post traz a subjetividade de seu autor e sua identidade indígena, já que se trata de uma mídia em que a autoria é imprescindível para sua construção.

O Índios online e outros websites indígenas são, na atualidade, um dos lugares onde a memória é construída criativamente, fazendo circular subjetividades agentes e trans-formadoras, em que podemos observar a construção de um protagonismo indígena, a conquista da própria voz pelos índios e a consciência de que essa voz ecoa e pro-duz discursos capazes de ocupar outras fronteiras. Os sites indígenas lembram-nos, então, de que os modos de vida são criações que devem ser preservadas e que a existência é, antes de tudo, uma “existência artista”. Para retomar Jean Jaurés, que abriu este capítulo, podemos dizer que os sites indígenas não se limitam a conservar as cinzas da tradição, mas estão soprando sobre sua brasa.

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Patrimoniando o desmanche: coleções de inutilidades como uma metáfora capitalista

Leila!Beatriz Ribeiro

O desenraizamento é condição desagregadora da maioria. Ecléa Bosi

Introdução

Como lidar com uma discussão acerca da patrimonialização levando-se em conta uma impossibilidade aparente de elevar o estatuto de um objeto inútil1 às categorizações e aplicações das diversas disposições institucionais e jurídicas? Se não basta o inte-resse individual no que tange à conservação e à valorização desses objetos (Davallon, 2006, « L’institution du patrimoine : l’obligation de garder »), acrescente-se a isso uma lógica capitalista que configura a sociedade pós-industrial (Featherstone, 1997, p. 38) como um espaço de “triunfo da cultura dos significados e a morte do social”.

O capitalismo, na versão clássica de Marx, apresentava-se como um processo uni-versal da produção de mercadorias, ou seja, cada objeto produzido traduz abstra-tamente um trabalho humano (Marx, 1980). Contemporaneamente, além do seu caráter abstrato (consumo de bens e de corpos humanos/trabalho humano) e de mudanças nas formas de expansão da produção, o capitalismo traz um desenho em que cópias de reproduções confundem os indivíduos, numa explosão simbólica de simulacros que espelham a mistura entre o real e o imaginário. (Featherstone, 1997)

Para falarmos de objetos que saíram do circuito das trocas e foram coletados, orga-nizados sistemicamente, tratados e expostos, utilizamo-nos da categoria coleciona-mento. Para nós, colecionar é uma atividade que busca ordenar e manipular aquilo

1. Segundo Marx (1980), os objetos úteis são aqueles que se tornam mercadorias em decorrência de uma produção de trabalhos privados que, em conjunto, formariam uma totalidade de trabalho social.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

que se encontra em uma situação de dispersão, seja ele (o objeto) um resto ou um fragmento material que por vezes desafia uma lógica de investimento classificatório e de ordenação racional2.

A coleção tem ainda o poder de representar o indivíduo fazendo com que o objeto se perpetue como fator de ligação entre o indivíduo e o mundo que o cerca. É ainda a solução de organização da temporalidade (Baudrillard, 2004). Esse mundo se abre como uma possibilidade exploratória e criativa e, concomitantemente, torna-se pas-sível de novas leituras e reordenamentos para guarda e conservação latentes.

O colecionamento refere-se a uma possibilidade de uso de um processo que garan-tirá que esses representantes da cultura material (e imaterial) de um determinado grupo estarão a salvo de uma perda iminente. Nesse sentido, estariam assim pro-tegidos e carregados de atributos tais como: “coerência, continuidade, totalidade e autenticidade”. (Gonçalves, 2002, p. 23)

Além de bem próximos do presente de sua concepção, as coleções de objetos sobre as quais iremos nos debruçar contrariam inicialmente não somente alguns desses atributos, tendo em vista que eles, os objetos, são originários do desmanche, como também irão buscar garantir um tipo de identidade e de autenticidade que soa “exó-tico” aos olhos do grupo que as consumiu e as descartou3. De forma complementar, poderíamos nos perguntar se existe um investimento de uma quantidade de tempo despendido por esse colecionador que redundaria em um trabalho social qualquer.

Urbano, o Aposentado nasceu no ano de 1982. Seu autor, o cartunista Antônio Silvé-rio Cardinot de Souza, friburguense, tirou, em 1986, o terceiro lugar em um concurso promovido pelo jornal O Globo. Desde então, a tira tem saído de forma quase ininter-rupta no jornal. No dia 1 de setembro de 1986, Urbano tem anunciada a sua aposen-tadoria pelo seu chefe e recebe uma medalha por esse feito. Este senhor aposentado, que trabalhou durante muitos anos em uma repartição, encontra na pracinha perto de casa o seu refúgio. E é a pracinha, representação de um espaço clássico de men-digos, namorados, crianças e aposentados, que será palco de inúmera s aventuras,

2. Para Walter Benjamin (1995), por vezes, o ato de colecionar é exatamente a capacidade que os indivíduos têm, principalmente as crianças, de desencadear processos de vínculos inimaginados; sig-nifica mais um processo de desmonte, de desordenação e ressemantização das coisas e das funções que elas anteriormente carregavam (Sanches Neto, 2011).3. A esse respeito é interessante recuperar Abraham Moles (1981) que discute a ideia da morte de um conjunto de objetos, debatendo, entre outras questões, a (in)capacidade que o objeto tem de desafiar o tempo, a sua obsolescência psicológica e a introdução de uma nova filosofia acerca da materialidade dos objetos: a época tecnológica a partir da fabricação contínua da linha de montagem tem como mote a ideia de que a destruição dos objetos tem como virtude a sua destruição. Esta “virtude” é uma condição que terá de ser aceita pelo consumidor frente à capacidade da indústria de fabricar objetos com uma duração temporal limitada e de fácil reposição pelos consumidores.

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

passatempos, reflexões solitárias ou em contato tanto com os amigos como com desconhecidos4.

É Maria quem trabalha e cuida da casa e da vida desse aposentado que vive sonhando com feijoadas no lugar do mingau diário e está sempre às voltas com cuidados rela-tivos à sua saúde e dietas. É também Maria que reage veementemente contra o aposentado que tenta partilhar com ela, em diversas ocasiões, suas incursões e lem-branças junto às suas coleções. É ela quem resiste bravamente ainda contra outros tantos hábitos e manias desse personagem que, a cada tira, descobre novas formas de passar o tempo seja na rua (banco da praça; supermercados; feiras livres; filas de bancos; cinema etc.) como em casa (dormindo; testando diversos inventos etc.) e que, de alguma forma, reverbera dentro de casa traduzindo-se em constantes atritos com Maria. Urbano, além de um colecionador, preenche o seu tempo, por exemplo, como inventor e recorrentemente procura testar seus produtos com Maria e/ou nos objetos e no espaço doméstico. No entanto, é curiosamente Maria – por exemplo, na tirinha de 7 março de 1987 – quem o instiga ironicamente a se ocupar mais e reforça a ideia de Urbano se tornar um “colecionador de horas vagas”. Em outra tira de 11 de março de 1987, Urbano, sentado em sua poltrona, diz para Maria que está pensando em que tipo de coleção irá começar. Maria fala que seja ela qual for, que não desarrume a casa. Urbano pensa em fazer uma coleção de cabeças empalhadas. Nesta coleção está incluída a cabeça de Maria.

A análise desse personagem de tiras de HQs nos situa dentro de uma perspectiva de representação acerca de estratégias de afirmação e de representação social dos idosos e de seus lugares de fala; de sua inserção nos espaços públicos e privados e dos significados de seus hábitos e de suas lembranças materializadas por vezes nos diversos suportes de memória: os objetos “inúteis” de coleção.

Na tira de 15 de outubro de 1986, Urbano está pensando na evolução, decadência e falta de importância do velho, que antes era visto como guardião das tradições e hoje é visto como inútil, que não serve nem para guardar recado. Urbano conclui este pensamento depois de levantar para atender ao telefone e a secretária eletrônica ser acionada antes dele conseguir atendê-lo.

Esse personagem de tirinhas em quadrinhos, através de suas lembranças, pode nos possibilitar entender um tipo de sociedade em que os velhos, segundo Bosi, além de terem atravessado algumas décadas, já viveram alguns “quadros de referência

4. Bauman (2001), citando Sennett, observa que a cidade é um lugar propício para se deparar com estranhos, cujo encontro é um acontecimento marcado pela ausência de lembranças e projetos de continuidade, ou seja, é um evento no ato e sem passado e sem futuro.

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familiar e cultural”. (1994, p. 60) Entre as suas diversas práticas, Urbano coleta, troca e coleciona determinados objetos que o cercam na metrópole. Esses, por sua vez, podem ser categorizados sem uma funcionalidade aparente, pois, além de esta-rem fora do circuito das mercadorias por conta do descarte, não carregam simbo-licamente uma marca de objetos guardados para um legado posterior e podem ser categorizados como mortos5.

Metaforicamente, os objetos coletados por Urbano nos remetem aos próprios cole-cionadores, homens aposentados que são desvalorizados e degradados socialmente e que procuram, nesses objetos inúteis e descartados, um sentido que lhes foi rou-bado ao viver o presente de uma sociedade que só valoriza aqueles que trabalham e produzem. Para ilustrar tal situação, cabe lembrar aqui as palavras de Simone de Beauvoir: “[...] o material humano só interessa enquanto produz. Depois, é jogado fora”. (1990, p. 13) Em uma das tiras (19/01/1987), o personagem, por exemplo, é representado por pensamentos e imagens que elucidam bem essa situação:

Tem dias que eu me sinto tão inútil... (quadro 1 e figura bem delineada);

Pareço passar desapercebido... (quadro 3 e imagem apresentando somente contornos);

Uma figura totalmente dispensável (quadro 4 e Urbano encontra-se apagado do quadro).

Esses objetos representam ainda certo tipo de continuidade já que, de forma geral, expressam a cotidianidade dos indivíduos da metrópole e suas vivências e expe-riências diárias e até mesmo desconhecidas: falam das ruas, dos amigos, das coisas banais e dos diversos mistérios que assolam as cidades; podem também ser cacos ou objetos de alguém que ignoramos6. Ao serem coletados e ressignificados podem expressar também aventuras afetivas.

Em uma das tirinhas, acompanhamos Urbano, tal qual uma criança, a juntar sequen-cialmente os inúmeros araminhos de sua coleção de pão de forma e de imaginá-los como um traçado possível de uma viagem ao redor da Terra. Esse mecanismo de coleta, ordenação e preservação funcionaria como uma espécie de advertência à

5. Segundo Moles (1972; 1981), um “parque” caracteriza o conjunto dos objetos em situação de “vida”, ou seja, de acordo com a sua função. Nesse sentido, os objetos inúteis de Urbano podem ser vistos em seu extremo como mortos.6. Bosi chama esses objetos que estão fora de um ordenamento espacial racional de “desparceira-dos” (2003, p. 29).

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

sociedade de massas que rapidamente dissipou e desgastou diversos objetos ante-riormente carregados de status. (Bosi, 2003)

Ao readquirirem um estatuto de excepcionalidade restauram uma “memória mate-rial” corporificada em um tipo de mercadoria que se encontra armazenada “como coisas em casa”. (Marx apud Stallybrass, 1999, p. 105, grifos do autor) Para nós, a ideia de problematizá-los como patrimônio nos permite analisar as mutações das sociedades que o produziram. (Jeudy, 1990)

Nesse sentido, temos como proposta discutir se esses objetos – cuja trajetória pro-cessual vai desde o objeto de descarte até o objeto de coleção – podem auferir o sta-tus de objetos patrimoniados, observando sua natureza peculiar. Assim, cabe aqui, especificamente, apontar de que tipo de patrimônio estamos falando ou ainda quais os discursos que serão engendrados para legitimarmos as práticas patrimoniais que dizem respeito ao nosso contexto de problematização. Davallon (2006) argumenta que menos que a definição semântica do termo, o que está em jogo é o corpo de regras e os procedimentos institucionalizados. Gonçalves (2003, p. 22), por sua vez, ainda que chame a atenção para tomarmos determinadas precauções acerca do seu uso, discorre sobre a possibilidade de “transitar-se analiticamente [com a categoria patrimônio] entre diversos mundos sociais e culturais.”

E, para compreendermos o tipo de sociedade no qual está inserido nosso coleciona-dor de inutilidades, seguimos as reflexões de Bosi que apresenta os velhos com um tipo singular de “obrigação social”, ou seja, em oposição aos homens ativos e mais jovens, que se lembram menos, os velhos aposentados ocupam-se com mais fre-quência das atividades de rememoração. Nos dizeres da autora, eles têm: “a posição de lembrar, e lembrar bem”. (Bosi, 1994, p. 63)

Objetos de uma coleção de inutilidades em uma sociedade precarizada

Urbano, o nosso personagem, insere-se em um contexto que traduz a existência sofrida pelos impactos da circulação das mercadorias que transforma as coisas em líquidos. (Bauman, 2001) A sociedade capitalista clássica, como Marx problemati-zou, é referenciada pela universalização da produção de mercadorias, sociedade esta que, por mais abstrata que seja, traduz-se por uma prática consumista que “devora” os corpos humanos e cuja abstração é representada pelo próprio formato adquirido pela mercadoria. (Stallybrass, 1999, p. 53-54)

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

Como restos do acúmulo ou do desmanche7, os objetos inúteis coletados e cole-cionados por Urbano, fora do circuito das trocas, podem ser evocados a partir da representação de um “imaginário do desmanche”, metáfora trabalhada por Teixeira Coelho e apropriada por Fabrício Silveira (2010, p. 9) que designa um desejo de des-truição sobreposto ao de construção.

Abaixo apresentamos um pequeno inventário de alguns dos objetos colecionados por Urbano8:

Caixas vazias de creme dental; talheres e pratinhos descartáveis; sons exóti-cos (pios de aves; gargalhadas; gritos histéricos; sons da natureza; sirenes de ambulância e carros de polícia); araminhos de pão de forma; carrinhos de feira; lâmpadas queimadas; rolhas de garrafas; balões vazios de festas de aniversário; pneus carecas; panfletos de rua; embalagens vazias; prospectos de produtos; escovas de dente antigas; guarda-chuvas quebrados; esponjas de limpeza anti-gas; bonecos birutas de lojas e postos de gasolina; clipes; porcas, parafusos e pregos velhos; tubos vazios de creme dental; pentes velhos; quentinhas vazias; banners de candidatos; caixas de leite vazias; papéis de presente; embalagens vazias de remédios; rolhas de garrafas; listas telefônicas antigas; ingressos de cinema; rótulos; cacos de vidro; folhetos promocionais; lixo espacial etc.

Em paralelo ao “derretimento dos sólidos”9, vemos o esvaziamento do espaço e o tempo tornando-se histórico porque adquire instantaneidade ainda que sem sua força atrativa diferenciada anteriormente pela durabilidade10.

7. Esses objetos, sob a ótica problematizada por Bauman (2001), não carregam mais o volume, a solidez, a duração e o peso da sociedade capitalista clássica. Se antes os objetos testemunhavam a força de seus donos, hoje, os objetos são leves, acelerados – como os seus portadores – prefe-rencialmente portáteis e tradicionalmente descartáveis, traduzindo a ideia da instantaneidade e da movimentação ágil.8. Nessa lista deixamos de lado os objetos coletados e ainda não caracterizados pelo personagem como pertencentes às coleções já “legitimadas socialmente” tais como as de: selos; brinquedos (soldadinhos de chumbo; piorras); cartões-postais; fotografias; monóculos com fotografias; medalhas; instrumentos musicais (maracas; instrumentos de percussão); caixinhas de músicas; ampulhetas; figu-rinhas de álbuns etc.9. Bauman (2001) utiliza-se da metáfora de liquidez para apontar que, na atualidade, os poderes estão sendo redistribuídos e realocados. Estes poderes atingiram, segundo o autor, primeiramente as instituições. Posteriormente, foram os padrões de relação, dependência e interação que fizeram com que os indivíduos – agora desapegados, desterritorializados e solitários e com uma “sensação” de liberdade – se confrontassem com esses novos formatos e padrões. 10. Em matéria jornalística no jornal O Globo, de 6 de julho de 2011, tomamos conhecimento de projetos russos e norte-americanos para rastreamento e coleta do lixo espacial em torno da Terra. Segundo as informações jornalísticas, somente de destroços de maior proporção, existem mais de vinte mil objetos na órbita terrestre.

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Nessa sociedade contemporânea caracterizada por uma “precarização material”, buscamos o entendimento da memória coletiva e como esta se deposita material-mente tendo em vista que a precariedade da nossa existência social se traduz por uma percepção de mundo “como um agregado de produtos para o consumo ime-diato”. Esta percepção do mundo, cujos indivíduos passam a ser vistos como itens de consumo, “faz da negociação de laços humanos duradouros algo excessivamente difícil. [...]”. (Bauman, 2001, p. 188)

A ideia de precariedade encontra eco em reflexões de Pierre Bourdieu (1998, p. 120), quando esse teórico argumenta que, na contemporaneidade, devemos estar critica-mente atentos a um tipo de “manutenção da ordem simbólica” que contribui para o “funcionamento da ordem econômica” e que apresenta seus efeitos estendidos a todos os indivíduos tanto no setor público quanto no setor privado. Não somos mais insubstituíveis no espaço do trabalho, nos sentimos inseguros e desmobilizados e nossa projeção de futuro é cada vez mais incerta frente às estratégias de precariza-ção impostas pela “flexibilidade”, pela desterritorialização das empresas que têm, via de regra, a dissociação de um estado-nação ou de um território.

Discutir a memória nessas condições é repensá-la no espaço da fluidez, em que os objetos fora do circuito preenchem mais o tempo do que o próprio espaço. Bauman (2001) argumenta que a instantaneidade, ao anular a resistência do espaço e lique-fazer a materialidade dos objetos, faz com que o “momento” se torne infinito e que a capacidade de extração desse momento, por mais breve e “fugaz” que seja, não apresente um limite. Nesse sentido, como lidar com o paradoxo desses objetos inú-teis que carecem de datação? Ou seja, se a ideia de “longo prazo”, como argumenta Bauman, já não se sustenta, como problematizar as coleções que têm como projeto o longo prazo?

Contrariando o consumo que é voraz e instantâneo, Urbano faz dos seus objetos inúteis algo a ter permanência e vai de encontro ao processo de “desvalorização da imortalidade”11. Refletir sobre uma cultura que se posiciona de forma insensível moralmente às mudanças advindas da lógica do eterno, do transmissível e do legado para gerações futuras, é, segundo Bauman, um território a ser explorado, e torna-se necessário repensarmos uma sociedade em que a memória e o passado precisam ser reproblematizados sob outra ótica que privilegie a vivência do momento.

11. Moles (1981, p. 109) discorre acerca de uma “ética do eterno” que representa o homem (prin-cipalmente o das classes superiores) que, investido de uma fragilidade frente ao mundo material, vivenciou um estágio em que ele se projetava para o futuro. Dessa forma, buscava construir e deixar para eternidade joias, grandes templos e palácios, enfim, toda uma gama de construções e objetos que pudessem simular um desafio ao tempo.

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Entender essas coleções “como ato autobiográfico” significa perguntarmos: nos pro-cessos de formação de subjetividade, o inútil e o traste são valores que permeiam representações do aposentado ou a representação metafórica de resistência ao des-carte é uma crítica aos hábitos de consumo, à morte das coisas? Perguntamo-nos ainda se Urbano propõe uma nova ordem taxinômica do espaço do desmanche?

A transformação dos objetos de coleção em signos

Se a mobilidade e a contingência acompanham nossas relações, há algo que desejamos que permaneça imóvel, ao menos na

velhice: o conjunto de objetos que nos rodeiam. (Bosi, 2003, p. 5)

O espaço do consumo referencia-se a partir de práticas de sedução e desejos cres-centes e nunca satisfeitos, pois a cada objeto (ou os sistemas simbólicos por eles representados) consumido ou a cada vontade realizada no hoje, o amanhã se torna menos distante, pois as vontades de hoje transformam-se em necessidades de ama-nhã semiologicamente representadas por um sistema de códigos vigentes. (Bauman, 2001; Featherstone, 1997)

É importante pensar que guardar, acumular aquilo que está fora do circuito sem valor de uso e de troca ocupa espaços sólidos. Nesse sentido, perde-se a referência da territorialidade histórica em função da temporalidade histórica, fluída, desterritoria-lizada. Aqui, cabe introduzir Davallon (2006) que, ao refletir acerca da patrimonia-lização, adverte que esse movimento requer mais do que uma mera reconstrução cognitiva do passado para o presente, demandando a busca por novas formas ou gestos de entendimento acerca do processo de patrimonialização em sua diversi-dade no espaço público.

Urbano luta contra a individuação, buscando a manutenção de um tipo de identi-dade que faz do “objeto de desejo” aquilo que está próximo. É alguém que, também discursivamente, narra uma história do desperdício a partir do que é considerado lixo e descarte do mundo e propõe um deslocamento das coisas originárias, res-significando-as. Ouçamos Silveira (2010, p. 38, grifos do autor): “A capacidade de descartar – e não mais de possuir – objetos parece reconfigurar os sistemas de atribuição e aquisição de status social, legitimidade e capitais simbólicos. E que a substituição seja tão ampla e irreversível quanto constante e veloz!”. Assim, em ter-mos práticos, coletar e colecionar objetos produzidos pela cultura de massa parece reverberar uma tentativa de manutenção de determinadas práticas de trabalho que

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corresponderiam à manutenção de uma expectativa de continuidade de experiên-cias, contrariando um ciclo clássico da lógica capitalista que produz objetos para consumo e descarte. Moles (1981, p. 104) chama a atenção para o tipo de objeto característico da área tecnológica nomeando-o de “objeto misto”. Este tem uma duração de vida definida e não é feito para a eternidade.

Propomos pensar que as práticas de colecionamento prescindem também de uma postura cidadã, de um reconhecimento do papel dos sujeitos históricos como cole-cionadores, publicizados e com questões que se fazem representar acerca dos objetos. Legitimar Urbano como um colecionador e seus objetos como coisas cole-cionáveis é colocá-los no espaço das discussões públicas. Desse modo, é preen-cher de questões públicas o espaço público, reproblematizando e redimensionando, com questões como a aposentadoria, a velhice, o consumo desenfreado, o descarte cada vez mais voraz. Ainda que seja cada vez mais difícil enxergamos um projeto emancipatório na sociedade contemporânea, colocar essas temáticas em debate é abrir mão do esvaziamento da esfera pública e dos projetos individualizantes e midiáticos12.

Urbano, o enciclopedista e colecionador visionário do desmanche?

Para Marx, assim como para os operários sobre os quais ele escreveu, não havia “meras” coisas.

As coisas eram os materiais – as roupas, as roupas de cama, a mobília – com os quais se construía uma vida; elas eram o

suplemento cujo desfazer significava a aniquilação do eu. (Stallybrass, 1999, p. 105)

Pomian (1984, p. 72) argumenta que um objeto, para ter uma atribuição de valor, necessita ser útil ou carregado de significado. “Os objetos que não reúnem nem a primeira nem a segunda destas condições são privados de valor; de fato, já não são objetos, são desperdícios”. Nesse sentido, o próprio autor nos aponta uma das chaves de leitura para entender os objetos da coleção de Urbano: socialmente

12. Sob outra vertente, não problematizando o colecionamento como uma prática de acumulação capitalista, Oliveira, Siegmmann e Coelho (2005, p.!11-119), em um instigante artigo intitulado: “As coleções como duração: o colecionador coleciona o quê?” propõem olharmos para essas prá-ticas contemporâneas a partir da ótica da filosofia da diferença ao invés de uma abordagem mais economicista. Aproximando as coleções do espaço da estética, as autoras situam o colecionador como um artista que, ao ser capaz de “atualizar o imemorial”, cria e busca novos arranjos do novo e da memória.

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eles são “desperdícios”, individualmente eles são carregados de significado e são considerado s “preciosos” como peças de um colecionador. O autor argumenta que essa preciosidade diz respeito à valoração representativa do invisível e que tais obje-tos “preciosos” participam, desse modo, de um lugar superior e fecundo. No entanto, socialmente, esses objetos, ainda que não tenham utilidade para grande parte da sociedade, também não apresentam nenhum tipo de significação a não ser a falta de uso, ou seja, são “desperdícios” ou restos.

É interessante nesse sentido, acompanhar a discussão que Gonçalves apresenta acerca da retórica da perda que pode nos esclarecer sobre esse aparente paradoxo do personagem, ou seja, guardar aquilo que é produzido para o descarte. O autor argumenta que as narrativas nacionais que são engendradas para classificar objetos na categoria de patrimônio cultural trazem um duplo aspecto: “desaparecimento e reconstrução imaginativa, perda e apropriação, dispersão e coleção, destruição e preservação, contingência e redenção”. (2002, p. 30) Assim, esses processos que não podem ser problematizados de forma separada ou mesmo dicotômicos.

Dessa forma, poderíamos dizer que o que mantém a lógica de preservação e enten-dimento das coleções de inutilidades de Urbano seria uma recorrência acerca da redundância do ato de coletar e preservar aquilo que deveria ser descartado. “Uma ruína é algo que desaparece. Paradoxalmente, é algo que não é mais. Foi, certa vez, parte de uma totalidade. Ao mesmo tempo, convida a uma permanente reconstru-ção”. (Gonçalves, 2002, p. 114) Urbano, ao não abrir mão dos objetos que represen-tam inventários exaustivos e enciclopédicos das coisas do mundo, guarda entre suas variações e particularidades aquilo que poderia ser classificado como restos e como redundâncias. O personagem engendra mais os discursos acerca das coisas que podem morrer do que as próprias coisas em si. (Maciel, 2009)

“Tudo guardar, nada jogar fora” nos ajuda também nessa reflexão. Jeudy (1990, p. 64) argumenta que, mais do que os sentidos que o objeto carrega, é o relato, a his-tória que ele pode transmitir que é nova. Transmitir, então, a história dos homens, principalmente a partir do desperdício e da representação do consumo voraz e acelerado, é para nós a tarefa de Urbano, o colecionador-símbolo da contempo-raneidade: o colecionador da sociedade do desmanche. Mas é também recuperar e atualizar os processos de interação contidos nos objetos, ou seja, se eles, no espaço das mercadorias, na modernidade sólida, tiveram um valor de troca, qual o seu sentido como referência no circuito do desmanche? Se isso for possível, estaríamos diante de um discurso redentor para parafrasear Reginaldo Gonçalves? Ou devemos ficar atentos ao que já preconizava Abraham Moles, em décadas ante-riores do século passado:

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Parece que esta invasão pelos objetos, a poluição do mundo pelas formas sóli-das que o homem realiza, deve se tornar um problema fundamental na socie-dade futura. A imagem do “pronto para jogar fora” impõe-se como uma das suas imagens-chaves, da qual o psicanalista se serve para analisar o conjunto social. Uma teoria da eliminação dos produtos fabricados pelo homem é exigida, se se sonha que o cidadão da cidade atual dissipa cerca de um quilograma de lixo por dia (dos quais 30% são embalagens) nas lixeiras. (Moles, 1981, p.!182)13

Outro tipo de resposta a esse impasse se encontra no que eles, os objetos, podem representar, e diz respeito metaforicamente ao próprio colecionador. Ou seja, se “sempre colecionamos a nós mesmos”, o velho como uma categoria social não pode mais ser ignorado frente aos números cada vez mais expressivos de envelhecimento da sociedade brasileira. Em 2009, segundo o levantamento efetuado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), a população girava em torno de cento e noventa e um milhões e oitocentos mil habitantes e já contava com vinte e um milhões de habitantes de sessenta anos ou mais de idade. Entre o período de 1999 a 2009, este conjunto da população passou de 9,1% para 11,3%, demonstrando que este grupo vem ocupando um lugar de destaque na sociedade brasileira. (IBGE, 2010)

Mas as coleções de objetos que um dia foram mercadorias significam a sua inclusão no espaço das trocas de uma sociedade em que os indivíduos, para a produção, tinham um lugar com endereço fixo, ou seja, esses objetos ainda falam de um tra-balho, mas e agora? Trabalho que é tão desperdiçado quanto aqueles que os pro-duziram? De espaços que somente nos remetem aos templos do consumo? Qual o “regime de valor” (Appadurai, 2008) que se funda em nossa sociedade e em que poderíamos legitimar Urbano e seus objetos não mais como mercadorias, mas como “coisas” ou artefatos que são representações materiais de uma cultura industriali-zada? A esses objetos colecionados não é permitido o retorno ao seu estado natural de mercadorias. No entanto, essas coleções de inutilidade não podem significar des-vios de rota? Transgressões às avessas, ou possibilidades de auferir novamente um tipo de valor ainda que não seja estético ou carregado de autenticidade ou mesmo de originalidade? As coisas e objetos, segundo Appadurai (2008), podem ser entendidos

13. A esse respeito é interessante fazermos referência ao filme de animação Wall-E (2008) que narra a trajetória de um robô no futuro, quando a Terra se encontra soterrada pelo lixo. A situação do pla-neta obriga os governos a tomarem medidas drásticas, traçando um plano de despoluição em que robôs Wall-E ficam responsáveis pela limpeza do planeta por um período de cinco anos, até que a Terra possa ser novamente habitável. Porém, diante da situação insalubre, este período se estende por setecentos anos e, perante a falta de manutenção, apenas um robô Wall-E resiste e permanece em funcionamento. O robô passa a vagar realizando a tarefa para a qual foi programado, ao mesmo tempo em que escuta velhas melodias e coleciona inúmeros artefatos encontrados durante a limpeza. Através dos objetos descartados, Wall-E se aproxima da humanidade e de sua história, reconfigurando o seu próprio mundo. Cf. Ribeiro Leila Beatriz, Costa Thainá Castro, 2010. [Ver também: Ribeiro Leila Beatriz, 2006].

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

a partir de seu próprio trajeto sócio-histórico e de uma análise sobre suas formas e usos. Ao se movimentarem, eles nos dizem acerca dos indivíduos e da sociedade dando a eles um significado.

“É o objeto que nos pensa” [...] Trata-se claramente de uma relação mágica que contém o reverso de nossas projeções. O objeto absorve todas as posições do sujeito, para devolvê-las como espelho de suas intenções. E, para nos res-guardar dos eventuais sortilégios do objeto, nós o botamos no museu. (Jeudy, 2005, p. 47)

Pensá-las como signos que são contemporaneamente significa atribuir aos objetos um possível status de capacidade de transmissibilidade de algo passível em conser-var lembranças para aqueles que ainda não nasceram ou mesmo desconhecem as possíveis funções que esses objetos conservam quando são evocados14. Significa também acreditar que Urbano, ao imprimir esse status em seus objetos de coleção, os simboliza como socialmente úteis tanto para ele como para o seu próprio grupo. É nesse sentido que alguns cuidados que os objetos sofrem, tais como acondicio-namento, catalogação e indexação, por exemplo, contribuem para enxergarmos os mesmos como produtos de um determinado trabalho, o do colecionador que imprime aos “objetos inúteis” uma singularidade valorativa ao fixar neles um atributo de valor igualitário. Cada objeto das diversas coleções apresentaria um valor idêntico entre si, ainda que sejam materialmente diferentes, representando o resultado produtivo do trabalho de um colecionador que investiu tempo de trabalho nas diversas funções executadas e descritas acima:

[...] Ora, a história de sua valorização” é a história de qualquer coisa, porque une magicamente os relatos da vida psíquica mais individual ao movimento projetivo do sincretismo simbólico. O valor é o dizer do objeto devolvido como um espelho ao indivíduo e à coletividade. (Jeudy, 1990, p. 65)

Assim, se as coleções de inutilidades representassem um valor de trabalho ainda que de um pequeno grupo, é possível que elas passem a representar uma nova pos-sibilidade de coleções de objetos “úteis” que se convertam em signos abstratos de produtividade material e recuperem também a relação estabelecida entre homens e natureza.

14. Em uma das tiras, por exemplo, Urbano, no banco da praça com sua coleção de prospectos, informa aos amigos o preço de custo de uma torradeira em 1993. Um deles comenta: “Nunca falta assunto quando Urbano traz sua coleção de prospectos!”

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

Desse modo, a discussão acerca da patrimonialização das coleções de objetos de Urbano, o Aposentado pode demandar outro tipo de reflexão, tendo em vista que repensarmos o trabalho investido nesse tipo de tarefa e o valor investido pelo cole-cionador é o que faz jus ao estatuto desses objetos.

A ideia da mistura, uma ideia meio que desorganizada, meio que caótica, vai ao encontro do controle e da ordenação do mundo a partir dos objetos de coleção de Urbano. Guardando-se as proporções, poderíamos enxergar no seu projeto menos que um retorno a um “gabinete de curiosidades”; seria mais a criação ou reinvenção de um “teatro da memória” contemporâneo.

Como resolver sobre se as coleções de Urbano têm valor de uso e valor de troca apa-rente? A não ser o estatuto dado pelo próprio dono? O uso do olhar e do evocar lem-branças seria suficiente? Voltar aqui à resistência das coisas, ao mundo que recicla objetos e legitima o idoso cada vez mais como uma categoria social? (Ribeiro, 2011)

O valor dado pela resistência, como um dado ideológico, seria então uma resposta suficiente para a contemporaneidade? Ou seja, vemos cada vez mais objetos retira-dos do circuito, inclusive os objetos do desmanche, sendo valorados e alçados a uma categoria até que mereçam, alguns deles pelo menos, o retorno ao circuito no espaço da reciclagem e se tornem mercadoria. Urbano, como ícone do descarte, transforma-s e então em um projeto do novo capital? Transforma-se ainda em uma representação de intermediação do desmanche e do circuito das mercadorias? A velhice ressignifi-cada com seus objetos traz o passado (e seus objetos inúteis) não mais apenas como referência de lembranças, não mais apenas a ser exposto e olhado pelos humanos, mas como produto a ser novamente consumido (reciclado), representação icônica da contemporaneidade.

Pomian (1984, p. 67) diz que a interpretação da história das coleções contemporâ-neas ainda está por se fazer. É nesse sentido que buscamos pensar Urbano, o Apo-sentado, o colecionador de inutilidades, engendrando um tipo de linguagem que lhe possibilita relacionar-se com o invisível, unindo quando possível passado e presente, evocando aqueles que se foram ou as coisas que teimam em desaparecer. Assegu-rar essa capacidade linguística de interação de coisas, pessoas e acontecimentos em tempos e em espaços diversos torna Urbano capaz de enunciar o escondido, o mundo submerso de “coisas que ninguém viu”:

A necessidade de assegurar a comunicação linguística entre as gerações seguintes acaba por transmitir aos jovens o saber dos velhos, isto é, todo um conjunto de enunciados que falam daquilo que os jovens nunca viram e que

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talvez jamais verão. A linguagem engendra então o invisível, porque o seu pró-prio funcionamento, num mundo onde aparecem fantasmas, onde se morre e acontecem mudanças, impõe a convicção de que o que se vê é apenas uma parte do que existe. A oposição entre o visível e o invisível é antes de mais a que existe entre aquilo de que se fala e aquilo que se percebe, entre o universo do discurso e o mundo da visão. (Pomian, 1984, p. 68)

No entanto, o próprio autor argumenta que a linguagem não é suficiente para garan-tir a relação entre representação e objetos. Mas a linguagem ajuda a tornar essa relação atuante e politicamente engendrada para mover algumas instituições, por exemplo. Assim, as coleções do desmanche podem prenunciar um ato de celebração e fazer de Urbano um intermediador não somente entre o mundo da visibilidade e da invisibilidade, mas um personagem que transmite, a partir dessas coleções, um tipo de resistência às práticas de produção15.

É interessante deixar que os objetos da coleção de Urbano conversem entre si, talvez dessa forma eles possam auferir o status de documento e saírem do espaço de res-tos, desperdícios, desmanche. Se eles são capazes de suspender o tempo, de evocar, em alguns momentos, lembranças tais como a chegada do homem a lua, as festas de aniversários dos netos dos amigos, os usos passados dos objetos, as comidas hoje proibidas e saboreadas no passado, como não dar a eles a legitimidade de objetos de coleção? A coleção de inutilidades de Urbano como uma representação imagé-tica, exposta aos olhares dos homens, tem como projeto ser formada de objetos- testemunhos de sua própria história, testemunhos da história da materialidade das coisas, da essencialidade funcional, da incapacidade de retenção da durabilidade no espaço e tempo do circuito das mercadorias.

Coleção de cacos Já não coleciono selos. O mundo me enquizila. Tem países demais, geografias demais. Desisto. Nunca chegaria a ter álbum igual ao do dr. Grisolia, orgulho da cidade. E toda gente coleciona

15. Para Marshall (2005), a relação entre o colecionar, o colocar em ordem e enunciar um discurso pressupõe a ordenação, o colecionamento e a narração. O autor propõe, ainda, de forma provo-cadora, que a coleta seletiva realizada pelos “colecionistas-indigentes” das cidades apresenta um “intenso ardor classificatório”.

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os mesmos pedacinhos de papel. Agora coleciono cacos de louça quebrada há muito tempo. Cacos novos não servem. Brancos também não. Têm de ser coloridos e vetustos, desenterrados – faço questão – da horta. Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas, restos de flores não conhecidas. Tão pouco: só roxo não delineado, O carmesim absoluto, o verde não sabendo a que xícara serviu. Mas eu refaço a flor por sua cor, e é só minha tal flor, se a cor é minha no caco da tigela. O caco vem da terra como fruto a me aguardar, segredo que morta cozinheira ali depôs para que um dia eu desvendasse. Lavrar, lavrar com mãos impacientes um ouro desprezado por todos da família. Bichos pequeninos fogem de revolvido lar subterrâneo. Vidros agressivos ferem os dedos, preço de descobrimento: a coleção e seu sinal de sangue; a coleção e seu risco de tétano; a coleção que nenhum outro imita. Escondo-a de José, por não ria nem jogue fora esse museu de sonho. (Carlos Drummond de Andrade)

Mas esses objetos são ainda testemunhos daqueles que enxergam neles o próprio tempo: candidatos a um mito de origem da contemporaneidade, “autênticos” exem-plares da cultura do desmanche. Um tempo que nos remete ao espaço de triunfo do capitalismo, de uma “ética da destruição criadora” (Moles, 1981) ou de um tempo que um “algo a mais” se oculta. (Vieira, 2008)

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A mediação de autenticidade dos substitutos digitais

Cécile Tardy Traduzido do francês por Germana!Henriques!Pereira!de!Sousa

A análise centra-se sobre a circulação social das coleções patrimoniais fotográficas de um museu a partir de sua transformação numa imagem digital. Antes da digitaliza-ção, os museus utilizavam a fotografia para produzir substitutos, ou seja, um suporte que se substituía à presença física do objeto patrimonial, para permitir seu estudo sem o risco de degradação ou, mais comumente, para acompanhar a elaboração dos saberes relacionados ao inventário das coleções. Assim, as imagens do patrimônio inscrevem-se na longa tradição da conservação de seus objetos feita pelos museus. Essa tradição permitiu que se pensasse que os substitutos haviam sido reduzidos a um mero meio secundário que possibilitava o registro do rastro dos objetos patrimo-niais. Nesse sentido, as políticas de digitalização seriam, antes de tudo, iniciativas a serviço de uma abordagem mimética do real. Seu desafio seria, então, a construção de uma representação portadora de uma referência fiel ao objeto autêntico. Ora, o substituto digital não é apenas um “suporte bis” para um objeto de museu. Deve ser situado num processo de negociação da semelhança com o objeto original do qual participam os atores envolvidos na digitalização. O exemplo da digitalização das foto-grafias em placas de vidro é um caso-limite que poderia permitir explorar esse grau de transformação do patrimônio quando se escolhe revelar a imagem em positivo quando havia sido revelada em negativo numa placa de vidro. Mas o objeto da análise está em outro lugar. A questão é saber o que a digitalização provoca no patrimônio e não em matéria de semelhança, mas com relação aos aspectos comunicacionais1. A digitalização modifica, portanto, essencialmente a relação da sociedade com o patri-mônio quando o substituto não é mais concebido como um suporte de registro para os especialistas, mas como um suporte de mediação do patrimônio para os públicos. Assim, a digitalização acarreta uma expansão social, semiótica e material dos objetos de museu, que devemos medir se quisermos entender o alcance estratégico de sua mediação, para os museus, especificamente, nesse caso, para o museu de sociedade.

1. Uma pesquisa exploratória que eu fiz sobre o assunto, intitulada “O substituto digital: estatutos e práticas museais”, foi apresentada no 18o Colóquio Bilateral franco-romeno Traços, memória e comu-nicação, organizado pela Universidade de Bucareste, de 30 de junho a 1 de julho de 2011.

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A análise procura entender o funcionamento e os desafios da transformação do esta-tuto do substituto, que passa de suporte de registro dedicado ao estudo e ao inven-tário do patrimônio a suporte de mediação do museu voltado para seus públicos. A intenção da pesquisa não é, certamente, erigir um catálogo de todas as possibilida-des abertas pela digitalização das coleções no que se refere à mediação, mas antes apontar para um problema colocado pela mediação, qual seja, a representação da relação com a autenticidade feita pelo substituto e não mais pelo patrimônio. Esse problema é enfocado a partir do caso da produção, feita pelo Museu Canadense da História Social McCord, de um aplicativo para iPhone que consiste em fazer o usuário projetar as imagens dos arquivos Notman2, na cidade de Montreal, no local original das fotografias. Os substitutos são assim colocados no mesmo mundo de origem das coleções fotográficas que representam. Essa materialização em tamanho original do mundo de onde vêm as coleções permite que o museu adquira um potencial inco-mum de encenação da autenticidade. Ele pode capturar a matéria urbana, em vez de evocá-la por meio de coleções fotográficas na qualidade de rastros de memória da cidade. Esse deslocamento da relação com a autenticidade em prol do tratamento de um mundo de origem, vivo socialmente, não é apenas espetacular. Ele cria, na ver-dade, um contexto de ativação de uma memória social que não está mais vinculada a uma única representação do passado, mas a uma representação do tempo presente e futuro. Assim, fundamentando a valorização do seu patrimônio fotográfico por meio do suporte de registro, o Museu McCord reorganizou sua relação com a sociedade e com a cidade de Montreal.

O texto a seguir desenvolverá, num primeiro momento, o quadro referencial teórico da digitalização para se entender com precisão os desafios que o museu enfrentará em matéria de comunicação da autenticidade na transformação da materialidade do patrimônio. Em seguida, será feita a análise do caso do uso de substitutos num apli-cativo móvel pelo Museu McCord e a posição que ele se atribui num espaço regido pelo turismo. A conclusão intenta abrir uma discussão sobre os desafios enfrentados pelo museu ao deslocar o estatuto do substituto para uma lógica de marca.

2. O Museu McCord apresenta em sua página virtual os arquivos fotográficos Notman como uma documentação “de valor histórico inestimável”, ao mesmo tempo, de Montreal, do Quebec e do Canadá, e que cobre, principalmente, o período de 1840 a 1935. Esse acervo dispõe de 1,3 milhão de fotografias, incluindo 200 mil negativos de vidro. O museu disponibiliza totalmente esse acervo digitalizado em sua página virtual, quer seja no banco de dados de suas coleções ou nos inúmeros jogos e exposições on-line.

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

A digitalização como operação de redistribuição da autenticidade museal

A principal característica da digitalização, enfocando-se os desafios que o museu enfrenta com relação à sua evolução, é a dissociação que opera entre a imagem do objeto e seu suporte de origem. Essa questão foi frequentemente apontada com relação ao livro, que se tornou um texto digital, analisando-se a força do par signo/suporte na identificação do objeto livro (Melot, 2007). A representação que se faz dos objetos passa, então, pelo reconhecimento de uma materialidade que condi-ciona o seu estatuto e a sua existência social. Trata-se da história das formas do livro que foi abalada, mas não interrompida, uma vez que esse “descolamento do signo” (“déliaison du signe”) (Jeanneret, 2004, p. 14) requer sempre uma cultura livresca ou outra cultura de referência, quer seja o modelo da antologia (Doueihi, 2008) ou a referência à cultura do cenário audiovisual (Leleu-Merviel, 2005). As análises do texto digitalizado não deixam de salientar que não há devir imaterial. A representa-ção digital, ao mesmo tempo que ignora a materialidade do objeto original introduz uma outra, informática, a partir da qual ela dá ao substituto um poder de existência social. De um lado, tem-se o patrimônio fixo, congelado, imobilizado; de outro, a representação de um patrimônio que é de natureza informacional, não manipulável, mas palpável cognitivamente, o que não impede, claro, um engajamento corporal.

Poderíamos nos limitar a pensar que, para o museu há, daqui para a frente, o objeto raro, original, autêntico, de valor patrimonial, e sua cópia digital, de valor mais ordi-nário, que preserva seu rastro. Valor superior do original, valor inferior do documento. Mas esse argumento, se observarmos com atenção, não se sustenta mais. Se ele permite aos profissionais procederem à conservação do objeto pela sua transfor-mação em um resto visual, esse gesto documentário não é uma simples redução no sentido de um empobrecimento do objeto original. Possibilita, de fato, uma visão sem precedentes sobre o objeto, oferecendo ao olhar uma realidade inacessível natu-ralmente, quer seja pela miudeza dos detalhes ou pela extensão das coleções de museus. Além de sua contribuição no estudo do objeto, a digitalização traz consigo mudanças sociais e culturais. No caso extremo de objetos que são digitalizados para superar sua fragilidade excessiva, o que é frequentemente o caso com fotografias sobre placas de vidro, vê-se, embora a questão se coloque em todos os casos, a inversão de valores que acontece: o que o objeto patrimonial perde em termos de uso, o substituto aproveita. A ausência do suporte original libera um lugar social na medida em que a materialidade sempre suporta a integração de tudo na vida social. A substituição dessa primeira materialidade por um suporte dedicado a seu registro confere ao substituto um valor sem precedentes em termos de uso. Sua materiali-dade informática atrela-o, daqui por diante, aos dispositivos com tela e à rede digital.

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A digitalização não pode mais ser considerada apenas como uma materialidade defi-nindo uma modalidade de preservação de um original, mas como uma introdução inédita de modalidades de “disseminação”, de acordo com o termo usado por Vera Dodebei e Inês Gouveia (2007).

Essa disseminação deve ser entendida do ponto de vista da mediação, uma vez que a materialidade informática não é comparável a um canal de transmissão de infor-mação que transportaria fluxos de dados sem afetá-los. Diante dessa concepção do substituto numa lógica de disseminação para além do círculo dos especialistas, não se trata de se perguntar se o museu está relutante ou, ao contrário, entusiasmado, mas antes de considerar como a longa tradição museal de fabricação dos substitu-tos, da prática fotográfica à digitalização, é reinvestida de diferentes formas sociais e materiais que tornam os substitutos, e através deles o museu e as suas coleções, visíveis, inteligíveis e de fácil manipulação pela sociedade atual. A imagem pode, portanto, aparecer numa variedade de lugares, a partir do momento em que um equipamento de projeção o permita. A digitalização oferece uma nova superfície de inscrição para os acervos fotográficos antigos, qual seja, a tela informática. Torna-se, assim, possível brincar com o dimensionamento das fotografias, com as modalidades de apresentação e com a mobilização do saber-ler digital dos públicos.

Nesse movimento em prol do uso de substitutos no contexto de uma mediação com os públicos, o museu é desafiado a manter uma troca dinâmica entre o original e seu substituto, a fim de que o segundo não leve ao esquecimento do primeiro e, em última instância, ao do museu. Essa relação entre o substituto e o objeto que ele representa depende do reconhecimento social do museu como uma instituição res-ponsável por garantir a autenticidade de suas coleções. Através de suas funções de conservação, pesquisa e exposição, o museu é responsável pela garantia do estatuto patrimonial dos objetos a partir de sua autenticidade, ou seja, de sua relação com o mundo que representa (pois são oriundos de um mundo particular) (Davallon, 1999, p. 31-32). Essa relação com a autenticidade tem suas consequências na visitação do museu. Gérard Namer (1987) sublinha o caráter emocional que ela é susceptível de causar. O objetivo não é ligar a autenticidade a um choque emocional que seria natural para o visitante, mas considerar que, por um lado, este último aciona seu reconhecimento social do que ele espera do museu em matéria de apresentação de objetos patrimoniais e, por outro, o museu encena, através de seu dispositivo de exposição, a autenticidade dos objetos, religando-os ao seu mundo de origem. A representação do objeto patrimonial em seu mundo original produz uma memória social, uma vez que ela consiste em elaborar uma representação do passado que podemos compartilhar coletivamente, desde que o museu estabeleça as condições de sua transmissão.

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

Como colocar em cena a autencididade a partir dos substitutos de patrimônios? O descolamento material entre objeto e substituto lhes permite evoluir separadamente, na independência física um do outro, como o museu pode adequar a continuidade de uma dependência patrimonial? O desafio que o museu enfrenta não é menor, uma vez que isso põe em questão a perenidade daquilo que o fundamenta, a saber o valor de autenticidade de suas coleções. A digitalização o leva a adotar uma posição de afastamento com relação a essas coleções, convidando a instituição museal a refletir sobre o modo como pode destacar a autenticidade de seus objetos a partir de subs-titutos. O desafio da pesquisa é fazer esse questionamento numa situação em que o museu leva ao extremo a lógica do uso de substitutos, mobilizando sua capacidade de reinvestimento em dispositivos informáticos com tela e de mobilidade para além das paredes do museu. A análise centra-se na forma como o museu, num contexto em que dissocia o aparecimento dos substitutos da instituição de acolhimento dos públicos e de apresentação dos objetos originais, vai colocar em cena a autenti-cidade de suas coleções. Trata-se de um problema comunicacional que o museu tem que resolver, colocando seus públicos em relação com o mundo de origem dos objetos. A hipótese é a de que, nessa mutação da relação com o patrimônio, o museu também vá deslocar sua relação com a memória social, inventando novas formas de exposição de seus objetos por substituição. O estudo de caso realizado a seguir explora o processo de reautentificação das coleções pelos substitutos, buscando aprofundar os desafios e riscos de uma tal recomposição comunicacional para a instituição museal.

O processo de delegação da representação da autenticidade em ambiente urbano

O Museu Urbano MTL é um aplicativo para download gratuito em aparelho iPhone, lançado em 2011 pelo Museu McCord, na cidade de Montreal, em colaboração com Historia, um canal de televisão de língua francesa sobre história. Esse dispositivo permite sobrepor a vista atual “150 pontos da cidade explorando o acervo dos Arquivos Fotográficos Notman do Museu McCord”3. Usando o mapa que mostra a localização das vistas, a função de geolocalização do dispositivo e pastilhas colo-cadas no chão, o detentor do iPhone projeta a imagem da cidade cem ou cento e cinquenta anos atrás.

3. Essa citação, extraída do comunicado de imprensa, pode ser baixada em: http://www.musee-mccord.qc.ca/fr/mobile/MuseeUrbainMTL/, consultado em 30 de mars de 2012.

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Figura 4. Tela principal do iPhone do aplicativo Museu Urbano MTL [Musée Urbain MTL] do Museu McCord

A observação do uso dos substitutos do acervo Notman do Museu McCord é centrada na sua contextualização por meio do suporte iPhone, em ambiente urbano e turístico. A análise visa compreender como o museu delega, nessa contextualização, o valor de autenticidade dos objetos originais. O texto a seguir abrangerá três momentos desse processo, durante os quais instauram-se as condições para a transmissão de autenticidade pelos substitutos:

1. A encenação da relação dos substitutos com o mundo de origem das coleções: a questão enfoca a reconstrução da relação entre patrimônio e memória social que o Museu McCord ativa a partir de uma forma de exposição, aliando espetáculo tecnológico e tradição turística.

2. Processo de validação da autenticidade patrimonial pela montagem de duas vistas da cidade, a do passado, dada por cada substituto, e a presente: representar a autenticidade do patrimônio através de seu substituto requer a introdução de uma regra de validação da relação entre o substituto e o mundo de pertencimento do patrimônio representado.

3. A representação da presença do museu como uma garantia da autenticidade da relação entre o substituto e o mundo de origem das coleções: o museu, encenando sua própria transmissão – já que ele é de fato o detentor do lugar de enunciador do dispositivo –, desloca sua posição institucional e sua legitimidade para dizer o que é autêntico no cerne do espaço socioeconômico do turismo.

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O panorama como representação da memória urbana

É pela introdução de uma imagem de arquivo do final do século XIX ou do início do século XX, confrontando-a com seu quadro atual, in situ, que se concretiza, na cidade de Montreal, uma iconografia cujo intervalo4 de tempo é de cem anos. As coleções fotográficas do Museu McCord, embora concluídas e arquivadas, são reabertas, em primeiro lugar pela digitalização, e, em seguida, pela reorientação do estatuto do arquivo numa operação iconográfica, no sentido de representar a cidade, tanto em seu passado como em sua evolução. Essas fotos antigas são retiradas da trajetória de sua produção inicial para serem colocadas na perspectiva de um novo programa iconográfico, que consiste em colocar em cena a relação física entre a imagem de arquivo e a cidade. Portanto, não somente a fotografia mantém uma relação indicial com o mundo que ela representa, uma vez que ela é sua marca física, como também a fotografia continua a expressar a sua relação com um passado através dos vestí-gios desse último que compõem a sua imagem, mas, para além disso, a localização da imagem na cidade recria sua relação com o mundo que ela representa.

Nesse modo de ser empurrada para a cidade contemporânea, a imagem de arquivo ganha instabilidade temporal. Enquanto a fotografia remete imediatamente a um tempo passado, mesmo logo após a realização da imagem, e enquanto seu devir de arquivo patrimonial reforça essa relação com o passado, a introdução da perspec-tiva contemporânea vai rebocar o arquivo, estirá-lo ao longo do tempo5 para trazê-lo até nós numa encenação “memorializada” da cidade. É interessante esmiuçar essa relação com a memória urbana para se entender que a autenticidade das coleções

4. A noção de iconografia do intervalo é de Didi-Huberman, com relação à obra de Étienne-Jules Marey (1830-1904), inventor da cronofotografia, tendo introduzido o tempo na imagem. Para representar uma imagem em movimento, Marey vai tanto sequencializar como sobrepor as ima-gens. Ele é o promotor, segundo Georges Didi-Huberman, de uma “verdadeira iconografia do intervalo, ainda mais visível do que na percepção” [grifo da autora] (Ibid., p. 245). [“véritable icono-graphie de l’intervalle, rendu plus visible encore qu’il ne l’est dans la perception”]. [Nossa tradução] A iconografia do intervalo usada no contexto da análise da obra de Marey permite chamar a atenção para a questão da montagem de várias imagens para representar o tempo. Embora o caso ora em análise justaponha vistas figurando espaços urbanos – não é o traço de um movimento que carrega a imagem –, a lógica da representação de um intervalo de tempo está plenamente presente nessa iconografia em duas etapas.5. Vale fazer referência à obra Traditions et temporalités des images, a respeito, sobretudo, das está-tuas de culto onde se encontra essa questão das condições de alongamento do tempo e da imagem: “Il faut comprendre en effet le rituel et toute liturgie comme un mode de production des objets qui, en sollicitant tous les sens (la vue, mais aussi l’odorat avec l’encens et les parfums, l’ouïe avec la musique et les chants, le toucher et même le goût) étire le temps de l’image autant qu’il est nécessaire pour qu’elle vive dans l’esprit des hommes et y imprime son pouvoir” (en italique dans le texte) (Careri et al., 2009, p. 12). [“Devemos entender o ritual e toda a liturgia como um modo de produção de obje-tos que, solicitando todos os sentidos (visão, mas também o olfato com o incenso e os perfumes, a audição, com a música e os cânticos, o tato e até mesmo o gosto), estiram o tempo da imagem tanto quanto for necessário para que ela viva no espírito dos homens e aí imprima o seu poder.” (em itálico no texto de origem)] [Nossa tradução]

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não somente está atrelada a um mundo original definitivamente passado, mas a um mundo em permanente construção. O fato de não se atrelar o dispositivo a uma segunda imagem fotográfica da cidade atual – o que acarretaria automática e ime-diatamente uma relação com o passado – permite deixar em aberto a relação com o tempo presente e futuro. Para realizar essa bifurcação temporal do arquivo para o futuro, o museu mobiliza o rastro digital de sua coleção patrimonial a serviço da produção de uma memória social da cidade.

O uso do próprio contexto da produção dos arquivos permite ao museu realizar uma mediação inédita em comparação com o que ele é capaz de concretizar em suas exposições. Com o Museu Urbano MTL, o mundo original não é nem uma reconstitui-ção nem o puro passado das imagens. É o mundo de origem atualizado, verdadeiro, mas que evoluiu ao longo do tempo. O público é colocado numa relação espacial contínua entre a imagem de arquivo e a cidade – pois se trata do mesmo lugar –, porém numa ruptura temporal entre as duas entidades que se expõem mutuamente. Podemos refletir sobre a natureza de um tal dispositivo representacional capaz de iniciar uma relação com o passado e o futuro a partir do presente, e isso no contexto urbano. A originalidade da mediação, feita em Montreal pelo museu, consiste em, integrando-se ao espaço turístico, negligenciar o controle de um circuito de visita, tal como feito habitualmente numa exposição museal, para brincar com encena-ções pontuais, embora recorrentes, de diferentes lugares. É nesse estreitamento do poder de representação do tempo num só lugar do espaço que a afiliação com o panorama pode ser discutida. Uma vez que o panorama trabalha uma relação com o espaço composta de continuidade e ruptura espaciais, esse adota um ponto de vista dominante que destaca do espaço circundante o observador, ao mesmo tempo que o conecta a ele geograficamente. A encenação dessa quase ruptura promove a experienciação de um alhures a partir do presente no qual se situa o observador. O dispositivo panorâmico geográfico pode parecer muito longe do que pode oferecer o tamanho portátil e reduzido na superfície da tela de uma ferramenta digital. Porém, a experiência de representação é a mesma: o turista de Montreal não apenas está diante de uma representação iconográfica como, na verdade, ele evolui dentro dela. A imagem de arquivo acompanha seus passos, pois a cidade representa o mundo de origem da imagem. A iconografia em dois tempos de Montreal mantém com o panorama uma relação de parentesco, por meio do processo de inversão da posição do sujeito, que passa da posição de estar diante da representação à posição de estar no interior dela.

Outra diferença aparente entre a fórmula panorâmica da profundidade temporal e o panorama geográfico é a das visões oferecidas, uma operando a partir do solo, a outra a partir de um ponto de vista situado mais alto. No entanto, vale notar que ambas

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trouxeram da experiência panorâmica esse desejo de englobar uma totalidade, quer seja espacial ou temporal. Aumentar a possibilidade de tudo ver, até mesmo o que o olho humano não pode assumir sozinho, afetaria, de hoje em diante, não apenas o espaço, mas o tempo. Podemos até perguntar se essa maneira de fazer emergir a profundidade temporal da cidade não corresponderia ao futuro da formação de uma nova sensibilidade à paisagem urbana e a um novo objeto de turismo urbano. Não há certeza, mas há uma tendência. Projetos de reconstituição virtual das cidades em seu passado por meio das tecnologias da realidade aumentada mostram que extensões de outra magnitude estão em curso6. As projeções temporais do espaço ancoradas pelas tecnologias digitais afetarão um dia até os nossos hábitos visuais?

Uma diferença fundamental do que poderíamos chamar de “memorama” com relação ao panorama geográfico é a sua ausência física da cidade, ou para ser mais exata, a sua presença segundo a forma de rastros através das pastilhas fixadas no solo. Uma vez que o dispositivo “memorâmico” só existe na utilização que é feita dele, a produ-ção da autenticidade por meio de sua encenação é feita a partir do usuário.

A antecipação de uma postura de validação dos saberes feita pelo dispositivo

O Museu McCord rejeita a dissociação em suas coleções fotográficas entre suporte e signo, para oferecer outras modalidades de apresentação além das exposições intra-muros. Os substitutos digitais dão ao museu a oportunidade de brincar com o carater de acontecimento circunstancial e criativo da exibição de suas coleções. Conforme enfatizado por Yves Jeanneret com relação ao texto informatizado: “O texto [infor-matizado] deixou de ser uma coisa manipulável para se tornar um evento repetido”7 (Jeanneret, 2004, p.!14). Esse devir circunstacial dos objetos de museu tem conse-quências na sua temporalidade de exibição e sobre o modo como são atualizados. O dispositivo informatizado situa sua atualização, não apenas do seu conteúdo, mas de si mesmo, no campo do receptor detentor da mídia que é o telefone.

A imagem do arquivo só é materialmente fabricada no ato de leitura do usuário-turista8 em seu iPhone. O princípio do dispositivo é, assim, colocar o turista em

6. Penso, por exemplo, no projeto B3D, da cidade de Bordeaux (França), que está em curso de con-cepção e experimentação de uma visita com realidade aumentada.7. “Le texte [informatisé] a cessé d’être une chose manipulable pour devenir un événement réitéré.” [Nossa tradução]8. O discurso do comunicado de imprensa da aplicação refere-se a usuários de uma tecnologia numa situação de passeio pedestre em zona urbana: “Uma forma única de aprender sobre o passado em Montreal apenas andando pelas ruas da cidade, tudo isso graças a um aplicativo móvel e ao telefone do usuário!” [“Une façon unique d’apprendre sur le passé montréalais en marchant simplement dans les rues de la ville, tout cela grâce à une application mobile et à son téléphone!!” (Nossa tradução)].

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posição de fabricar ele mesmo a imagem. Não se trata de propor logo um conjunto de imagens e uma estrutura de acolhimento ao público, mas de propor ao turista um modo de conectar uma imagem a um lugar, posicionando-se num determinado lugar da cidade. O dispositivo museal em ambiente urbano consiste em instruir o turista com relação a que atitude adotar para acessar a profundidade temporal da cidade pela conexão de duas vistas sobre o passado e o presente. Com sua ferra-menta de leitura na mão, ele é convidado a identificar “as pastilhas no chão que irão localizar alguns dos cento e cinquenta lugares incluídos no aplicativo” (informa o press release). Uma vez situado no local requisitado, “a tecnologia da realidade aumentada permitirá a sobreposição de uma imagem histórica na vista atual de Montreal, oferecendo, assim, simultaneamente, duas visões do lugar, a de ontem e a de hoje”.9 Assim, o turista se transmuta em operador de um duplo enquadra-mento, o da fotografia antiga, que ele ativa a partir de seu iPhone, e o da imagem contemporânea, que ele ativa mentalmente reportando-se ao primeiro enquadra-mento. É, pois, o corpo do turista que assegura a ligação entre as duas partes da iconografia, passado e presente. Ele é quem concretiza, através de sua posição na cidade, a projeção da memória urbana, mantendo unidas as duas partes de uma mesma totalidade. Por conseguinte, ele também é aquele que garante a validade da veracidade dos saberes e da autenticidade patrimonial, atualizando a boa operação de montagem iconográfica.

O que interessa à análise é entender como o dispositivo reinveste a memória social relacionada com a fotografia inicial para controlar o programa iconográfico. Todo dis-positivo de exibição do arquivo na cidade repousa na reunião simbólica do corpo do turista com o corpo do fotógrafo original no local em que a imagem foi feita. A troca é singular, sem face a face e localizada num tempo alongado, uma vez que se trata de retomar a experiência de uma realidade geográfica feita por outro que não seja a própria pessoa. O objetivo é conseguir construir um testemunho da memória urbana de cem ou cento e cinquenta anos, fazendo coincidir os dois corpos no mesmo local. O turista deve encontrar a localização do primeiro no espaço para reproduzir seu enquadramento com a maior precisão possível, de modo a assegurar de que se trata realmente da representação da memória de um só e mesmo lugar. O fotógrafo e o turista vão traçar juntos um segmento de tempo.

A organização desse encontro à distância não exige apenas a definição de um local corporal específico. Ela também redireciona o estatuto de cada um desses dois pro-

Também fala de “visitante” do Museu Urbano MTL.9. “La technologie de la réalité augmentée permettra la superposition d’une image historique à un point de vue actuel de Montréal offrant ainsi simultanément deux visions du lieu, soit celle d’hier et celle d’aujourd’hui.” [Nossa tradução]

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tagonistas, fazendo do fotógrafo a primeira testemunha da cidade que cria a expe-riência da segunda testemunha. Essa definição de estatuto a ser mantido nessa ação envolve um comportamento que seja coerente com o que se espera do museu. Para o usuário, ser a segunda testemunha não corresponde a alguém que poderia permitir-se degradar a informação dada pela primeira testemunha. Essa noção, emprestada de Renaud Dulong para se compreender a posição que o dispositivo dedica ao usu-ário, permite destacar o funcionamento de uma “corrente de testemunhas” (Dulong 1998, p. 209), o que é conseguido pela repetição de uma experiência, durante a qual a testemunha está totalmente envolvida, em seu nome, na propagação de um signi-ficado atualizado do passado. Instaurando um dispositivo que consiste em repetir a experiência do fotógrafo do passado, o Museu McCord estabelece um procedimento de validação da exibição de cada substituto no lugar indicado na cidade. Seja qual for o seu lugar na cadeia de testificação, a testemunha exerce uma responsabilidade memorial, qual seja, a de dizer o que é a memória da cidade. O dispositivo iconográ-fico de dois tempos e dois protagonistas funciona segundo uma autoridade compar-tilhada. A primeira testemunha fornece a segurança documental (não é um álbum de família que é projetado, mas vistas reconhecidas por instituições patrimoniais e museais por sua qualidade documental); a segunda testemunha deve garantir o ajuste da iconografia in situ. A ocupação dessa posição de segunda testemunha é condicionada pela posse do iPhone, pelo desejo de descobrir esse aplicativo ou por outras motivações. Mas o princípio dado pelo museu é a sua disponibilidade devido à gratuidade. Cada um de nós pode atualizar o dispositivo. Somos todos testemunhas potenciais da evolução de Montreal, mas testemunhas de passagem. O dispositivo nos arrola como testemunha sem prender-nos, mas pedindo-nos para atender ao exercício solicitado na qualidade de responsável pela memória urbana.

Nesse encadeamento de testemunhas, o papel atribuído à primeira testemunha, o fotógrafo do passado, é especial. Pois, pedindo ao usuário para colocar-se em seus rastros, o museu faz do fotógrafo original um mediador modelo, no sentido em que ele não existe no presente, mas representa um guia ideal, devido a três razões:

• É a fonte mais segura de informação que há, e diria até mesmo a mais autêntica, uma vez que é dada por aquele cujo corpo tocou o evento e que foi a testemunha do passado da cidade através de sua atividade fotográfica.

• Ele realiza uma orientação corporal dos turistas para o recebimento de informação exata, convidando-os a reproduzir o enquadramento autêntico da imagem, o quadro original que ele colocou lá, há muito tempo, como fotógrafo. O usuário o imita, colocando-se na pele desse testemunho de época. A autenticidade se imiscui até nos gestos e na atitude do usuário, convertido em intérprete da

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cidade pelas imagens de arquivo e em intérprete das imagens de arquivo atraves da cidade.

• Ele é o porta-voz fiel e autêntico da instituição, uma vez que não se furtará ao que ele é convidado a fazer – ou, mais precisamente, de fazer o turista fazer –, e isso porque o fotógrafo antigo representa a própria identidade da instituição. Através dele, o museu habita o visitante num corpo a corpo urbano reiterado em cada local.

O processo de representação não hesita em mostrar a presença institucional do Museu McCord, garantidor final do valor de autenticidade da memória de Montreal.

O museu, prescritor e garantidor da autenticidade no espaço turístico

O dispositivo do Museu Urbano MTL é caracterizado pela transição da imagem das coleções Notman do Museu McCord, na cidade velha de Montreal, o Vieux-Montréal, o coração da atividade turística na cidade. O desafio do deslocamento é cruzar duas áreas socioeconômicas, a do museu e a do turismo em Montreal. As pesquisas con-duzidas por Saskia Cousin, no campo do turismo, sobre “a organização da econo-mia da autenticidade”, mostram que o museu desempenha aí um papel importante. Basta observarmos, de fato, como o turismo cultural implementa uma relação recí-proca entre um campo e outro. “No Benin, os viajantes que vão para o norte do país conhecer suas reservas e povos ‘autênticos’ fazem escala no Museu Etnográfico da cidade de Porto-Novo para preparar sua visita, ou seja, para solidificar e legitimar a representação que fazem de um país onde poderiam encontrar etnias autênticas – pré-modernas e impermeáveis aos outros.”10 Ela também evoca o Museu de Artes Primeiras do Quai Branly, em Paris, um lugar de turismo cultural: “Tanto por causa do próprio museu quanto como forma de preparação para a viagem, e como auten-ticação da viagem a posteriori”11 (Cousin, 2011, p. 64). No caso do Museu McCord e do Vieux-Montréal, essa circulação de atividades não parece inédita. Em primeiro lugar, o Museu McCord é situado em pleno centro de Montreal, no coração da cidade histórica, o que já é uma primeira prova da relação entre esses dois espaços de práticas de visitas. No dispositivo Museu Urbano MTL, o museu valoriza os “lugares emblemáticos de Montreal”, localizados numa área próxima, como a rua “Sainte-

10. “Ainsi, au Bénin, les voyageurs en route pour le Nord du pays, ses réserves et ses peuples ‘authen-tiques’, font-ils escale au musée ethnographique de la ville de Porto-Novo pour préparer leur ren-contre, c’est-à-dire, en fait, pour solidifier et légitimer leur représentation d’un pays où l’on pourrait rencontrer des ethnies authentiques – pré modernes et imperméables aux autres.” [Nossa tradução]11. “À la fois pour lui-même, comme préparation au voyage, et comme authentification du voyage a posteriori” [Nossa tradução]

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Catherine, a rua Sherbrooke, o Vieux-Montréal, o Parque do Mont-Royal e o campus da Universidade McGill”. Em outra indicação desses lugares, novamente estipula como locais turísticos: o Carré Philips, o Belvedere do Mont-Royal, o Campus McGill, a Praça Jacques-Cartier e a frente do Museu McCord. A relação entre o museu e a cidade também é temática: o Museu McCord é um museu de sociedade, possuindo coleções fotográficas importantes da cidade. Além dessas circulações geográfica e temática, o museu inspira uma política de circulação das mediações entre os muros da instituição e fora deles. Vale notar que o aplicativo foi lançado no contexto da nova exposição permanente “Montreal - Pontos de vista”. Esse não é, portanto, o seu primeiro experimento de exposição for a de seus muros12.

No caso estudado, a originalidade da circulação do valor de autenticidade do museu para o turismo urbano não deve ser buscada numa circulação que manteria uma dis-tinção entre um e outro espaço. A economia da autenticidade entre museu e turismo ocorre pela superposição dos dois espaços socioeconômicos. A questão então se concentra em como o museu reinventa sua presença institucional no cerne de um espaço que está fora dele. O turista não iria assim buscar um critério de autenti-cação dentro de um museu, já que ele estaria integrado, através da figura da insti-tuição museal, no cerne da área turística. O contrato moral que vincula o museu à sociedade, para garantir a autenticidade dos objetos por meio de uma política de conservação e desenvolvimento de saberes especializados, estaria operando fora do museu. O nome do dispositivo, Museu Urbano MTL, traz a ideia da fusão entre o museu e a cidade. O museu é, assim, aquele que vem alimentar o território urbano: não é um apêndice dele. A representação do museu pelo dispositivo deve resolver o problema, que consiste em integrar plenamente o museu à cidade sem, por isso, fazê-lo desaparecer. Dessa fusão deve nascer um novo posicionamento do museu no espaço turístico. Vamos tentar entender esse processo de reconhecimento no contexto de uma assimilação.

A cartografia do Google que aparece no iPhone do usuário, e que aponta o acesso aos locais da projeção de imagens de arquivo, desempenha um papel fundamental na representação integrada do museu dentro do espaço urbano turístico. Esse acesso

12. Em 2007, por exemplo, o Museu McCord organizou a exposição Configurações: “Enquanto você passeia pela avenida McGill College, visite a segunda exposição de fotografias fora do McCord. Nessa exposição anual gratuita, 58 fotografias, extraídas dos célebres Arquivos Fotográficos Notman e de coleções de artistas contemporâneos, evocam a vitalidade e a diversidade do tecido social quebe-quense.” http://www.musee-mccord.qc.ca/expositions/expositionsXSL.php?lang=2&expoId=49&page=accueil. [“Tout en vous promenant le long de l’avenue McGill College, visitez la deuxième exposition de photographies extérieure du McCord. Dans cette exposition annuelle gratuite, 58 pho-tographies tirées des célèbres Archives photographiques Notman et de collections d’artistes contem-porains évoquent la vitalité et la diversité du tissu social québécois.” (Nossa tradução)] A primeira exposição feita segundo esse princípio de exterioridade ao museu foi Transações, em 2006, mobili-zando novamente os Arquivos Fotográficos Notman

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aos substitutos das coleções não é neutro, ele só não é prático. A cartografia, diz Jean-Marc Besse, deve ser considerada como um processo social de territorialização por meio do qual uma sociedade marca seu espaço de vida, lhe dá sentido e identidade (Besse, 2009, p. 144). No caso do Museu Urbano MTL, o Museu McCord delega ao Google a exibição do território do que pretende cobrir através da mediação de suas coleções. O acesso cartográfico às coleções permite o desenho de um território não por meio das fronteiras administrativas que marcam um perímetro, mas por inter-médio de uma massa de arquivos que o constituem pelo seu interior. E o território do Museu McCord é definido por um enxame de pinos vermelhos dispostos sobre o mapa que baliza, de alguma forma, o interior do espaço urbano dedicado a uma expe-riência museal. Trata-se de um mapa que não coloca novos limites territoriais dentro da cidade de Montreal, porém ela desenha um território em movimento baseado num centro estável: o próprio museu. A posição geográfica do museu no centro histórico de Montreal e sua própria definição como um dos lugares emblemáticos da cidade cobertos pelo aplicativo Museu Urbano MTL facilita a concepção de uma tal conti-nuidade do museu em direção ao centro de Montreal e, inversamente, do centro da cidade para o museu. O usuário do aplicativo encontra-se numa espécie de extensão, do museu e da cidade; de alguma forma, não está separado nem de um nem do outro. O Google representa, portanto, um processo de territorialização que define uma arti-culação estreita entre os espaços turístico e museal.

Nessa dupla fusão, museal e urbana, o museu mantém sua singularidade, primeiro usando o fundo de arquivos Notman que o identifica fortemente. Se a constituição do circuito de visita não depende do museu, mas antes da organização turística da cidade, deve-se notar que o museu não delega a certificação da autenticidade dos objetos – os arquivos. O museu é definido, pelo contrário, como o único referente institucional da veracidade dos saberes sobre os arquivos, colocando neles sua assi-natura de proprietário, para além da assinatura de um formato textual. De fato, cada imagem de arquivo leva na parte inferior e no centro a menção ao nome do museu, seguida do copyright, seus direitos autorais, e está localizada na mesma linha do número de inventário da imagem que conserva dentro de seus muros. Número de inventário do arquivo, copyright, identidade: o museu aparece como o proprietário do dispositivo e dos arquivos. Ele é o detentor do objeto autêntico – a fotografia original –, cujo rastro continua no substituto; é realmente o lugar onde se elaboram os sabe-res especializados sobre o objeto e sua interpretação. Por outro lado, o formato dos textos que acompanham as imagens na tela do iPhone afirma uma enunciação que parte do museu. De alguma forma, o texto aparece com ele, uma vez que adota as normas de uma ficha de inventário de identificação do objeto: o título dá o nome do lugar, a data da fotografia seguida do nome do fotógrafo, a breve descrição fala sobre o que é mostrado na imagem, às vezes dando indicações sobre a evolução do uso.

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Figura 5a. Exemplo de uma imagem dos arquivos Notman

Figura 5b. Descrição pelo mapa que gera o acesso aos arquivos

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Note-se que o dispositivo faz suceder (pela ação do usuário) a imagem de arquivo e, em seguida, essa sinopse, que fica disposta quando se clica na imagem e desaparece quando o usuário toca de novo na tela. A imagem de arquivo parece prevalecer sobre o texto. Ela aperece em primeiro plano e o usuário pode retornar a ela facilmente. No entanto, a consulta é projetada para que o usuário seja obrigado a passar pela se quência de texto para poder voltar e escolher outra imagem. O usuário é colo-cado na relação com as imagens de arquivo do museu, quer ele consulte as imagens ativando o dispositivo na própria cidade quer em qualquer lugar. Observa-se, entre-tanto, que em qualquer situação de consulta, o dispositivo, ligando mapa e texto, nunca é definido como uma simples disponibilização das coleções on-line do museu: ele disponibiliza, na verdade, um imaginário da visita à cidade.

E essa é a vantagem desse dispositivo Museu Urbano MTL: o museu é aquele que enuncia o que deve ser visitado e como visitar. Torna-se, assim, o legítimo prescritor de uma autêntica visita da cidade de Montreal. Esse aplicativo não serve apenas para uma conscientização dos arquivos Notman, mas da própria cidade de Montreal. Ele funciona como guia turístico, criando uma “memória de espera” para uma futura visita. Essa expressão, usada por Gérard Namer, significa que vamos ao museu por-que nos foi indicado e elogiado por um guia turístico ou uma “autoridade cultural”; esta equivaleria a um professor ou um amigo, “cujo gosto respeitamos”, e se estende à “escola” e à “publicidade” (Namer, 1987, p. 180). O Museu McCord torna-se uma autoridade cultural do espaço turístico. Ele aconselha uma visita à cidade velha de Montreal a partir de cento e cinquenta lugares selecionados com base em suas cole-ções arquivísticas: é ele mesmo o promotor e a condição de realização. O museu coloca sua garantia de autenticidade a serviço da descoberta turística.

Os substitutos, suportes de conservação, de mediação ou de marca?

A recontextualização dos substitutos leva o museu a construir uma comunicação institucional capaz de não perder no caminho a própria imagem do museu e de atrelar sua garantia de autenticidade à mediação de suas coleções por seus substi-tutos. Quanto mais o museu expande seu campo de ação ou o destaca do que está acontecendo dentro da instituição, mais ele é levado a reforçar sua imagem para confirmar sua presença. A fronteira entre mediação patrimonial e campanha publi-citária torna-se frágil porque cada uma é indispensável à outra. A operação Museu Urbano MTL é uma criação de marketing original, discreta e identitária, remetendo à concepção da autenticidade à lógica da marca museal13.O desafio para esse museu

13. Vale se referir, sobre a noção de marca autêntica,às observações feitas por Sandra Camus (Les

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de sociedade é fornecer, com os substitutos, uma nova alternativa de mediação de sua instituição por uma marca, que podemos dizer autêntica, baseada na identidade de suas coleções, na proximidade das pessoas que vivem no território do museu (moradores ou turistas), e também na discrição do dispositivo de orientação. O reali-zador dessa abordagem promocional inventiva, a agência londrina Brothers and Sis-ters, tem a vantagem da sua experiência na capital inglesa. Essa agência realmente possui a experiência desse tipo de aplicativo, colocando em situação urbana arqui-vos fotográficos para o Museu da Cidade de Londres, no contexto da promoção da abertura de sua nova galeria. A agência londrina oferece a justaposição da marca de museus em áreas urbanas que se imiscui com discrição na profundidade temporal da cidade, bem como nos bolsos, nas mãos e nas atitudes urbanas. Para isso, brinca com a transformação da tela do telefone num cartaz portátil e personalizado (que aparece no local escolhido pelo visitante). O substituto pode muito bem tornar-se um novo objeto de publicidade digital ideal para museus, imiscuído na profundidade temporal dos locais.

Esse equilíbrio a ser encontrado no uso de substitutos, entre lógicas de marca e de mediação, apela para um primeiro comentário sobre os atores envolvidos em tais operações. O museu não está sozinho em sua relação com o espaço turístico – ele trabalha com atores que dominam a passagem à era digital da materialidade das coleções para formas de mediação espacial extensas que envolvem habilidades de leitura digitais. O Museu McCord está trabalhando com vários atores interes-sados na representação, especializados em digitalização e exposição, e também em cartografia e publicidade. O uso conjunto da geolocalização e de aplicativos para iPhone interessam hoje, amplamente, aos profissionais do mundo da publi-cidade. A propagação extrema das marcas no espaço das cidades (Boyer et al., 2005) impulsiona a imaginação e a tecnologia a avançarem para formas cada vez mais inéditas, para se diferenciarem da sobrecarga urbana de placas publicitárias. A indústria da publicidade não é mais o centro das atenções, mas a campanha publicitária que a pessoa baixa para seu dispositivo onde estiver, possivelmente visando o que a rodeia. Os aplicativos para iPhone mobilizando a geolocalização tornam-se essenciais nessa publicidade nômade. O museu está mudando, graças ao substituto, sua relação com o espaço público, buscando atender à questão da representação publicitária, que poderia se tornar, aplicada ao museu, a de uma padronização da comunicação patrimonial.

Cahiers du Musée des Confluences. volume 8: L’Authenticité, 2011), que mostra que a busca por uma criação de marketing sem precedentes, ao se descolar da massa de produções de imagens, levou a estratégias de autenticidade das marcas, aliando ao desejo de uma criação original, uma experiência de consumo de marca desinteressado financeiramente e uma comunicação da marca que lança mão mais da discrição do que da imposição.

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A passagem de um substituto de conservação a um substituto de mediação, e, em seguida, de marca, interpela as evoluções que estão no horizonte dos museus. O que pode ser observado concerne, de um lado, à diversidade dos tipos de atores com os quais o museu tem relação, no sentido de tratar os suportes de registros digitais de suas coleções na qualidade de suportes de mediação; e, de outro, a diversidade de espaços socioeconômicos em que ele pode investir suas coleções digitalizadas. Entre o espaço museal e o espaço turístico poderia ser definida a disponibilização da garantia de autenticidade que socialmente fundamenta o primeiro. Dessa forma, o substituto ofereceria os meios para o museu não só divulgar sua imagem, mas também para emprestá-la a um território. Vê-se nesse estudo de caso que a cidade de Montreal torna-se qualificada pela marca do Museu McCord. Para essa disponibi-lização de uma imagem de autenticidade, a contrapartida do museu será manter, e até fortalecer, esse contrato social que o liga à sociedade. Poderá, por conseguinte, ainda menos negligenciar sua missão de conservação, estudo e pesquisa, já que deseja divulgar sua relação com a autenticidade fora de sua instituição.

Outro ponto de discussão diz respeito aos limites da autonomia do substituto em relação ao objeto original que representa. Como mídia digital, poderá viver muitas recontextualizações possíveis sem medo de desaparecer. Mas o signo que carrega com ele, um objeto autêntico preservado num museu, não poderá ser transmitido sem ser afetado. Qual é o limite desse reinvestimento em substitutos de forma a não comprometer a sua afiliação com o museu e as suas coleções? Os substitutos, na intersecção!das missões de conservação, de exposição e promoção, convidam o museu a encontrar um equilíbrio entre esses diferentes investimentos, de modo a não induzir uma ruptura da comunicação patrimonial, a que garante a autenticidade dos objetos.

De forma mais ampla, esse estudo de caso canadense permitiu decifrar as questões e os desafios do devir móvel, como também colocar em imagem as coleções patri-moniais. Muitos museus estão agora preocupados com essa evolução, que tende a aproximá-los das questões da sociedade contemporânea, ao colocarem a visão e a prática de suas coleções mais perto das pessoas que vivem em seu território de proximidade ou que o atravessam temporariamente. O pesquisador é convidado a examinar as formas assumidas pelas coleções digitalizadas no espaço social e os desafios reflexivos colocados à instituição museal na abordagem da imagem de suas coleções.

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As ilustrações do passado arqueológico: entre interpretação científica, testemunho e memória social

Émilie Flon Traduzido do francês por Germana!Henriques!Pereira!de!Sousa

As pesquisas arqueológicas engendram, desde o século XIX, representações gráficas ou plásticas dos homens do passado, de seus comportamentos, relações sociais e estilo de vida. Os arqueólogos utilizam frequentemente suportes outros que a publi-cação científica para divulgar informações ou suas descobertas junto a um público mais amplo do que o composto por seus pares. Dessa forma, lançam mão de artistas plásticos1 ou de ilustradores para representar o passado arqueológico em publica-ções destinadas a um público amplo ou ainda em exposições. Tais representações gráficas instigam inúmeras questões nos próprios arqueólogos, uma vez que são uma interpretação do passado alimentada pelo estado dos conhecimentos arqueológicos num momento dado, mas também devido ao contexto de trabalho dos arqueólogos e artistas: seus preconceitos, opiniões, e mais globalmente, sua cultura visual e social. Os ilustradores e os cientistas são, assim, levados a produzir uma visão particular do passado: as ilustrações, e, de modo mais amplo, as representações gráficas, contêm um aspecto imaginário e fictício, enquanto que o estatuto dos autores dessas ima-gens, e até mesmo as instituições (museais, editoriais) que as difundem, legitimam o conhecimento representado por elas.

É por essa razão que a literatura que trata das ilustrações do passado arqueológico aborda, em sua grande maioria, a questão da exatidão das reconstituições em vista dos conhecimentos arqueológicos e daquilo que a realidade do passado pode ter sido. As ilustrações são geralmente examinadas com relação à sua relativa veracidade

1. Esta contribuição enfoca as ilustrações científicas, mas as questões que se colocam com relação a esse tipo de desenho são as mesmas que para esculturas ou dioramas de museus e exposições. Existe uma abundante literatura sobre esta questão. Por exemplo: Ducros (2000), Arsenault (1990), Beard M. e Henderson J. (1999).

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e à necessária parte de imaginário ou ficção envolvidos na sua composição. Mas essas ilustrações também questionam os processos de patrimonialização e de memoração do passado. Elas são, por sua lógica de produção, ao mesmo tempo, uma representação do conhecimento científico num momento dado e uma obra que tem dimensão artística e é criada por um indivíduo. Em suma, o ilustrador é posto na condição de representar cenas do passado a que ele não assistiu, mas que ele deve, em sua maior parte, ser capaz de atestar. Isso não significaria produzir uma espécie de memória do passado arqueológico, memória legítima, no entanto, de um passado inacessível?

A contribuição ora apresentada objetiva questionar o papel das ilustrações no pro-cesso de construção social do passado, que parte do patrimônio arqueológico e de seu estudo científico para produzir mediações desse patrimônio. Qual é o status social dessas mediações? As ilustrações documentam o patrimônio (apoiando-se sobre os conhecimentos arqueólogos) e o requalificam, baseando-se numa interpre-tação artística do passado feita por um indivíduo, o ilustrador. Esta situação questiona sua legitimidade para representar o que chamamos coletivamente “o passado”. Em outras palavras, propomos abordar as ilustrações provenientes do campo arqueo-lógico como um objeto social, cujas características podem ser explicadas pelo lugar ocupado pelo ilustrador e pelos arqueólogos no espaço público.

Nossa hipótese é a de que o ilustrador de arqueologia ocupa a mesma posição social que a testemunha ocular no contexto social cotidiano, jurídico e histórico. Sob um ângulo sociológico, a definição da verdade fatual não depende mais de uma capaci-dade individual para se recordar ou representar a realidade do passado. Do ponto de vista sociológico, o testemunho é fundamentalmente definido:

• pelo duplo discurso que fornece: participação no reconhecimento dos acontecimentos como fatos reais e julgamento emitido sobre essa realidade;

• por seu estatuto, que se baseia na audiência e na confiança concedida à testemunha.

Esses dois pontos associam a ilustração do passado arqueológico e o fenômeno do testemunho. De fato, pede-se ao ilustrador para representar o que se pressupõe ser a realidade do passado, em função de um certo número de critérios de comprovação científica, mesmo tendo-se consciência de que participa da modelagem dessa reali-dade, do mesmo modo como se pede para comprovar um acontecimento, apesar da suspeita de que pode deformá-lo. É, portanto, finalmente, pelo reconhecimento social do ilustrador e de suas produções que a representação adquire um status

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legítimo que lhe permite figurar em publicações ou exposições científicas. Tanto em matéria de ilustração em arqueologia como matéria de testemunho, o momento de recepção é constitutivo do valor de verdade do discurso enunciado. Finalmente, a tensão si gnificativa entre a participação do ilustrador na manifestação gráfica de uma veracidade arqueológica e a crítica a que suas produções são submetidas pela comunidade científica não encontra sua origem nas capacidades do ilustrador para representar o passado em função de conhecimentos científicos, mas em situações de estrutura dialógica de recepção das ilustrações. Na verdade, o público lhe pediu para representar o que ele considera ser a realidade do passado, enquanto suspeita que ele possa distorcer essa realidade. Em suma, o ilustrador é socialmente colocado na posição de testemunha: obrigado a ser preciso por causa das consequências sociais do que expressa, e, ao mesmo tempo, propenso a cometer erros de julgamento.

Os trabalhos de Renaud Dulong (1998) sobre o testemunho fornecerão uma estru-tura de interpretação ao fenômeno da ilustração em arqueologia. Nossa reflexão baseia-se em materiais que traduzem a existência social da ilustração no contexto científico da arqueologia e no contexto de sua divulgação para os públicos. Por um lado, o corpus é composto por entrevistas feitas com os seguintes ilustradores, con-siderando suas práticas e produções: Jean-Claude Golvin e Benoît Clarys.2 De outro, é formado por documentos relativos às suas práticas e produções: uma revisão da literatura sobre a problemática da ilustração em arqueologia, uma série importante de artigos escritos por Jean-Claude Golvin sobre as regras de produção das ilustra-ções, catálogos de exposição contendo textos sobre as ilustrações e seus processos de realização e, enfim, as próprias ilustrações. O estudo desses materiais por meio da lente teórica do testemunho como um objeto social nos permitirá mostrar que o princípio da ilustração em arqueologia é produzir, simultaneamente, uma verdade e um julgamento subjetivo sobre o passado – esses dois tipos de discurso sendo socialmente legitimados pela posição do ilustrador – e certificados por uma comu-nidade científica e pelo público em geral. Mediante essa posição em equilíbrio entre a interpretação científica e o testemunho, o ilustrador é levado a produzir imagens que regulam nossas representações do passado, e que, como tal, são o que se pode chamar de uma memória social do passado arqueológico.

2. Duas entrevistas foram realizadas com Benoît Clarys, uma em abril de 2009 no Préhistosite de Ramioul (Bélgica) durante a preparação de uma exposição, e a outra em janeiro de 2012. A entrevista com Jean-Claude Golvin foi realizada em janeiro de 2012, por ocasião da exposição Golvin, um arqui-teto no coração da história, no Museu Departamental de Arles Antiga (França). Agradeço aos ilustra-dores Golvin e Clarys por terem se prestado ao jogo da entrevista, fornecendo-me a documentação necessária a esta pesquisa. Agradeço também a Benoît Clarys e ao Museu Departamental de Arles Antiga pela permissão para publicar as figuras 6 e 7 deste capítulo.

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Nossa reflexão seguirá as etapas do reconhecimento social das ilustrações arqueoló-gicas por meio daquelas do reconhecimento social do testemunho e que farão parte da demonstração dos paralelos entre esses dois objetos sociais. Um primeiro ponto abordará o estatuto das ilustrações dentro da comunidade científica, etapa que cor-responde, na lógica do testemunho, à certificação dos fatos feita pelas instâncias de regulação social: trata-se de atestar os fatos arqueológicos e de avaliar a veracidade das ilustrações. Um segundo ponto abordará o papel das ilustrações na produção da memória social, etapa que corresponde à expansão do espaço público envolvido na interpretação dos fatos: o testemunho dá uma inelegibilidade à realidade previa-mente atestada e produz, assim, a dimensão social da memória.

A certificação dos fatos passados concedida pelas instituições de regulação social: o estatuto das ilustrações dentro da comunidade científica

A primeira etapa no estabelecimento de um testemunho é a atestação dos fatos que são o objeto do testemunho. Quando abordamos o testemunho como objeto social, “na medida em que a fatualidade está inscrita numa maneira de falar sobre o pas-sado, ela depende dos julgamentos que acolhem o relato atestado, da confiança na palavra acordada à palavra do narrador”3 (Dulong, 1998, p. 38). No caso da ilustração em arqueologia, o reconhecimento é feito pelas instituições que são as disciplinas acadêmicas (a arqueologia, a história e a paleontologia), as atividades de seus mem-bros nas redes de divulgação científica e as instituições patrimoniais. Os debates e críticas em torno da ilustração por parte da comunidade científica são as manifesta-ções dessas instâncias de regulação social.

A certificação social de um fato (arqueológico)

O paralelo entre ilustração em arqueologia e testemunho começa pela constituição da fatualidade de que a testemunha participa. Interpretar, comentar, explicar, tradu-zir em imagens: todas essas atividades pressupõem um objeto independente, uma matéria preexistente, um conhecimento compartilhado. Para ser considerada, a rea-lidade deve primeiro ser disponibilizada: só se pode discorrer sobre o que é identifi-cado como um fato conhecido. Ora, o passado tem por conteúdo um acordo selado após o acontecimento. Mesmo que, para se certificar um acontecimento como um fato, utilizemos um dispositivo destinado a servir como prova de sua existência (fotos,

3. “Dans la mesure où la factualité s’inscrit dans une façon de parler du passé, elle dépend des juge-ments accueillant le récit attesté, de la confiance accordée à la parole du narrateur.” [Nossa tradução]

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arquivos), todos esses dispositivos se referem a testemunhos ou os pressupõem, uma vez que um acontecimento só se torna um fato na linguagem.

Normalmente, as mediações, que vão do andamento das ações à estabilização de uma descrição se colocando como memória do que aconteceu, são invisíveis. Dulong (1998) descreve algumas das etapas da transformação de um testemunho individual numa versão unânime dos fatos nos âmbitos policial e judiciário. Ele mostra que uma versão oficial dos fatos não constitui a soma de testemunhos individuais, mas um processo interativo de integração inconsciente de dados e de sua produção nar-rativa coletiva.4 Latour e Woolgar (1988) examinaram a gênese de um fato científico determinado num laboratório e demonstraram que um enunciado recebe o estatuto de fato após um complexo processo de “estabilizações” discursivas. Esse processo social é difícil de observar:

Um fato adquire uma qualidade que acaba por fazê-lo escapar das explicações sociológicas e históricas. [...] Um fato é reconhecido como tal quando perde todos os seus atributos temporais e integra uma vasta gama de conhecimen-tos apresentados por outros. Escrever a história de um fato esbarra numa difi-culdade essencial: por definição, ele perdeu todo referente histórico5 (ibid., p. 91-92).

De acordo com Dulong, a única maneira de pensar os fenômenos entre o aconte-cimento e seu relato seria analisar a produção do enredo, assim como procedeu Ricœur (1983), ou seja, a unificação em forma de relato de uma multiplicidade de elementos heterogêneos que configuram os fragmentos em um todo coerente.

A ilustração dos períodos arqueológicos faz, de algum modo, surgir o processo de constituição dos acontecimentos porque a imagem e suas ambiguidades epistemo-lógicas constituem um rastro de transformação social em acontecimento. Claro, o ilustrador não assistiu a nenhum fato da realidade que ele representa e interpreta. Se a ilustração ocupa a mesma posição social que o testemunho, uma diferença fundamental os distingue, entretanto: o que viveu a testemunha para produzir um testemunho, a realidade a que ela tem acesso para ser capaz de testemunhar. A

4. O fenômeno é bem conhecido da polícia: “Se não chegarmos na cena dentro de minutos após a ação e não tomarmos as devidas precauções para isolar as testemunhas umas das outras, difilmente obteríamos provas independentes.” (Ibid., p. 65) [“Sauf à arriver sur les lieux dans les minutes qui sui-vent l’action et à prendre la précaution d’isoler les témoins les uns des autres, on obtient difficilement des dépositions indépendantes.”] [Nossa tradução] 5. “Un fait acquiert une qualité qui finit par le faire échapper aux explications sociologique et histori-que. […] Un fait est reconnu en tant que tel lorsqu’il perd tous ses attributs temporels et s’intègre dans un vaste ensemble de connaissances avancées par d’autres. Écrire l’histoire d’un fait se heurte à une difficulté essentielle: il a, par définition, perdu tout référent historique.” [Nossa tradução]

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realidad e observada pelo ilustrador não é fatual, mas teórica ou acadêmica. A distin-ção entre a “verdade fatual” e “a afirmação racionalmente verdadeira” (Arendt, 1972) abre um mundo entre o passado tal como realmente existiu enquanto fato (inacessí-vel) e o passado tal como podemos racionalmente compreendê-lo a partir de dados científicos. A partir de seu estatuto social de testemunha, o ilustrador encontra essa primeira dificuldade ligada à fatualização dos acontecimentos arqueológicos.

Há um consenso na literatura: o estatuto das representações do passado arqueo-lógico suscita problemas, pois expressar a hipótese através de imagens é difícil (Wood e Cotton, 1999; Gouletquer, 1988; James, 1997; Goudineau e Lequeux, 1988; Corboud, 2003; Ducros, 2000). A parte complicada seria que o que é representado tende a adquirir mais o estatuto de um fato (ou uma certeza) do que o de uma hipó-tese. As imagens teriam um caráter realista, e, para o destinatário, as informações que elas passam teriam um estatuto definitivo: a imagem “congelaria” uma espécie de visão da “verdade” (Moser, 1996). Às vezes, isso gera recomendações ou regras de conduta para os autores de ilustrações ou reconstituições (James, 1997; Tosello, 1990). Por exemplo: uma imagem não deve contradizer os dados disponíveis, e deve testemunhá-los o melhor possível; tem de se conformar às propriedades físicas do material e às estruturas. No entanto, mesmo que estas regras sejam seguidas ao se produzir uma ilustração, “a única certeza que temos a respeito de uma reconstituição é de que ela é falsa”6 (James, 1997). Essa importante questão toca num processo cognitivo que embasa a disciplina da arqueologia: o arqueólogo não conhece o fato de que ele encontra vestígios; faz o caminho inverso pela interpretação do vestígio até o fato presumido. De fato, a arqueologia procede por inferências.

Segundo essa ótica, os trabalhos de Carlo Ginzburg (1989) sobre o paradigma indi-cial são esclarecedores. Este reúne arqueologia, história, psicanálise, mas também medicina, geologia, astronomia física e paleontologia: essas disciplinas têm “a capa-cidade de fazer profecias retrospectivas. […] Quando não for possível reproduzir as causas, resta apenas inferi-las a partir dos efeitos”7 (ibid., p. 169). Essas disciplinas científicas, mas também alguns métodos interpretativos das obras de arte ou ainda a capacidade dedutiva dos detetives, têm em comum basearem-se em indícios, ou evidências, ou seja, os mesmos vestígios infinitesimais, a fim de captar uma reali-dade mais profunda, inatingível de outra maneira. O núcleo desse paradigma indicial é, portanto, que “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – vestígios, indícios – que permitem decifrá-la”8 (ibid., p. 177-178). Trata-se de, a partir de fatos

6. “La seule certitude que l’on ait à propos d’une reconstitution est qu’elle est fausse.” [Nossa tradução]7. “la capacité de faire des prophéties rétrospectives. […] Quand on ne peut pas reproduire les cau-ses, il ne reste plus qu’à les inférer à partir des effets.” [Nossa tradução]8. “Si la réalité est opaque, des zones privilégiées existent – traces, indices – qui permettent de la déchiffrer.” [Nossa tradução]

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

experimentais aparentemente insignificantes, reconstituir uma realidade complexa que não é diretamente experienciável. Se a arqueologia é, pois, “uma ciência dos objetos e de sua interpretação”9 (Schnapp, 1993, p. 28), ela é mais ainda uma ciên-cia da interpretação dos vestígios, que são os objetos, das sociedades passadas. Devido a isso, várias razões estão por trás do estatuto epistemológico problemático das ilustrações do passado arqueológico para a comunidade científica. Em primeiro lugar, uma parte das informações representadas em imagens não pode ser ates-tada pela arqueologia, uma vez que esta nunca dispõe de dados completos. Uma representação do passado arqueológico envolve sempre uma parte de ficção. Em segundo lugar, os dados disponíveis são raramente generalizáveis: as disciplinas do paradigma indicial são de fato “disciplinas eminentemente qualitativas, que têm por objeto casos, situações e documentos individuais, enquanto individuais, e é preci-samente por esta razão que elas alcançam resultados que conservam uma margem aleatória irredutível”10 (Ginzburg, 1989, p. 153). Por essa razão, uma ilustração do passado arqueológico pode afetar somente o que ela representa, e é dificilmente generalizável para um período ou um território.

No processo de aquisição do estatuto de testemunho que a ilustração segue, a pri-meira etapa é constituída pelo estatuto parcial das informações atualizadas, e, por isso, sua interpretação pela arqueologia no seio do paradigma social torna visível o processo social (aqui operado pelos cientistas) de definição dos fatos passados. Na segunda etapa, o ilustrador fornece uma representação visual desse primeiro nível de interpretação científica, acrescentando aos conhecimentos sua própria interpre-tação dos fatos; ele ocupa, assim, o status de testemunha, num primeiro passo para a comunidade científica, e depois, mais amplamente, para o espaço público.

O estatuto da interpretação dos fatos na comunidade científica

A avaliação da veridicidade das ilustraçõesO estatuto epistemológico problemático das ilustrações suscita na literatura histórica e arqueológica, como nas exposições que mostram os trabalhos de ilustradores, uma avaliação de representações do passado com base no critério de veridicidade: social-mente, as ilustrações são julgadas com relação ao que elas representam do conheci-mento científico. A atenção é então focada em dois pontos: o processo de produção que parte dos vestígios para chegar à representação e a identificação das projeçõe s

9. “une science des objets et de leur interprétation” [Nossa tradução]10. “Des disciplines éminemment qualitatives, qui ont pour objets des cas, des situations et des docu-ments individuels, en tant qu’individuels, et c’est précisément pour ce motif qu’elles atteignent des résultats qui conservent une marge aléatoire irréductible.” [Nossa tradução]

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sociais que se imiscuem na encenação durante a sua produção. Num excelente exemplo desse posicionamento, Geneviève Lagardère (1990), curadora do Museu de Solutré, afirma: “É a partir dessas reconstituições de ‘cenas de gênero’ e de animais da pré-história que temos o direito de perguntar se elas são representativas de dados científicos objetivos, ou, se são, ao contrário, portadoras de ilusões?”11 Mesma cons-tatação no catálogo Jean-Claude Golvin, un architecte au cœur de l’histoire (2011), da exposição de mesmo nome, que reúne várias contribuições sobre o processo das restituições e as modalidades de colaboração com os arqueólogos.

Na literatura especializada, as pesquisas que identificam e denunciam as projeções sociais dos arqueólogos e dos ilustradores nas imagens são inúmeras, especialmente no cerne das representações dos indivíduos e suas relações sociais. Por exemplo, Trinkaus e Shipman (1993) reconstituem a história das representações do homem de Neandertal para mostrar a que ponto nossas representações desse “homem inima-ginável” (como aceitar outra espécie humana?) variam em razão do contexto cultural e político. Uma série de estudos sobre representações de gênero na pré-história (Hurcombe de 1995; Moser, 1993; Gifford-Gonzalez, 1993) mostra que, os vestígios arqueológicos da divisão sexual das atividades sendo incompletos e até inexistentes, as influências sociais atuais provocam ali múltiplas interpretações implícitas: se nos basearmos nessas ilustrações, havia menos mulheres do que homens; os homens definiram as espécies e as mudanças evolutivas; e homens e mulheres preenchiam os mesmos papéis sociais que nos dias de hoje.

Outro campo da literatura científica analisa as ilustrações como a expressão de ideias especulativas preexistentes às descobertas científicas. Stoczkowski (1994, 2000) demonstra a presença de uma “imaginação condicionada” que mescla o folclore aos padrões míticos (o homem primitivo da filosofia antiga, o homem da floresta da Idade Média) no desenvolvimento das teorias científicas como em suas ilustrações, o que leva o autor a concluir que os homens pré-históricos foram “inventados” antes de serem descobertos. Stephanie Moser (1998) e Moser e Gamble (1997) mostram ainda que as imagens científicas oriundas de dados recentes são fortemente depen-dentes de uma linguagem visual já estabelecida bem antes do estudo científico, sobretudo das imagens bíblicas ou românticas.

A avaliação da veridicidade, ou seja, a correspondência entre os conhecimentos cien-tíficos e as ilustrações, é totalmente integrada pelos ilustradores e sempre presente em seus discursos. As entrevistas mostram uma avaliação constante, feita pelos próprios

11. “C’est à partir de ces reconstitutions de ‘scènes de genre’ et d’animaux de la préhistoire, que nous sommes en droit de nous demander si elles sont représentatives des données objectives de la science, ou, à l’inverse, porteuses d’illusions!?” [Nossa tradução]

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

ilustradores, da exatidão de suas representações. As ilustrações são comentadas levando-se em conta a data de realização e os conhecimentos disponíveis naquela altura: existe a ideia de que “a pesquisa progride, e a ilustração também”.12 O desejo de uma ilustração “realista” (“mesmo que nunca se consiga ser perfeitamente realista”13, 14) leva a utilizar uma documentação importante e “para tudo” o que é representado. Mas quando a coerência da cena requer a representação de uma área ou de algo que não está documentado, os ilustradores implementam uma estratégia própria, que também depende do período de tempo representado.15 A expressão grá-fica do limite entre o que é constatado materialmente e o que é inferido torna-se um critério de avaliação: alguns deixam áreas inacabadas (por exemplo, a decoração em Benoît Clarys ou Gilles Tosello), ou expressam graficamente um traço mais impre-ciso, ou até borrado (por exemplo, as roupas em Benoît Clarys).

Outros disfarçam as zonas desconhecidas com vegetação, ou reproduzem várias vezes um elemento conhecido para dar a ideia de um todo (por exemplo, um sarcó-fago por uma necrópole romana, ou um bloco de casas por uma área habitada, como em Jean-Claude Golvin).

Assim, a atitude social que consiste em avaliar as ilustrações segundo o regime de veridicidade científica consiste em incluí-las numa administração da prova e em tratá-las como tal: trata-se de isolar os dados certificados pela ciência a fim de definir o passado. A etapa seguinte é a aquisição do estatuto social da testemunha.

O estatuto social do ilustrador no âmbito da comunidade científicaO estudo da literatura em história, arqueologia, ciências da comunicação e em museo logia acerca da ilustração do passado arqueológico mostra que o ilustrador é colocado numa situação de tensão social relevante: ele foi convidado a representar o que se acredita ser a realidade do passado, de acordo com uma série de critérios científicos e de processos de certificação, embora se saiba que ele distorce essa rea-lidade. É essencial mostrar aqui que a comunidade científica apoia, inclusive os seus críticos, a produção da verdade por parte do ilustrador: avaliar as representações gráficas de um passado arqueológico desaparecido através do prisma da verdade

12. Por exemplo, Benoît Clarys explica um “erro” em sua ilustração do rosto do australopiteco Lucy: quando estava sendo feita, só se tinha acesso à mandíbula superior, e não à inferior. O resultado é que essa mandíbula inferior ficou “um pouco curta” no desenho, porém, à luz dos conhecimentos atuais, ela deveria ser mais forte. Outro exemplo: numa ilustração de caça à rena no período Paleolítico, a trajetória da lança que parte do propulsor do caçador está incorreta: sabe-se hoje pela arqueologia experimental que, com o auxílio dessa ferramenta que aumenta a força do braço, a lança deveria partir de um ponto mais alto. 13. “même si on n’arrive jamais à être parfaitement réaliste” [Nossa tradução]14. As frases ou expressões entre aspas foram retiradas das entrevistas.15. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma escolha artística e das possiblidades deixadas pelos conhe-cimentos disponíveis; encontramos com frequência essa dualidade.

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científica pressupõe que essas representações possam pretender, pelo menos teori-camente, a um grau de verdade científica.

Para se compreender o exame crítico das ilustrações com base no critério de veridici-dade científica, é essencial distinguir-se as ilustrações oriundas da colaboração entre um artista e um arqueólogo, criações em que a arqueologia está envolvida de uma forma ou de outra (exposições, romances, épicos, quadrinhos, etc.).

A análise de obras ficcionais oferece apenas um interesse anedótico, pois, desse modo, qualquer profissão poderia contestar aí a forma como a presença de seus membros ou os detalhes de suas práticas, gestos e ‘ferramentas’ são encenados por um romancista ou um cineasta. A ficção se apegou aos médicos, policiais, eclesiásticos, gângsteres, e os filmes ou romances que se dedicam a eles devem pulular de imprecisões; mas não é por isso que eles se reúnem para discutir o assunto16 (Goudineau e Lequeux, 1988, p. 140).

O interesse da ilustração em arqueologia para indagar a produção social de nossa relação com o passado remete à colaboração entre o ilustrador e o arqueólogo e aos debates em torno das inexatidões das ilustrações.

Existe uma tradição de colaboração entre artistas (ilustradores, mas também visuais) e cientistas (arqueólogos e paleontólogos), com o objetivo de representar o passado distante. Essa tradição aparece desde os primórdios da arqueologia pré-histórica, no início dos anos 1830, com as ilustrações de cenas “antediluvianas” (Blanckaert, 2000). Desde o início, essas representações despertam controvérsia na comuni-dade científica. Esta considera que os colegas envolvidos nessas criações costumam “sacrificar ao entusiasmo do público”17 (ibid., p. 24), devido a seu caráter hipotético.18 Diversos artistas pertencem a essa tradição, e várias exposições, desde então, retra-çaram o percurso de sua abordagem.19 Se os seus nomes são, muitas vezes, pouco

16. “L’examen d’œuvres de fiction n’offre qu’un intérêt anecdotique car à ce compte toute profession pourrait contester la présence de ses membres ou les détails des pratiques, des gestes et des outils ‘mis en scène’ par un romancier ou un cinéaste. La fiction s’est attachée aux médecins, policiers, ecclésiastiques, gangsters, et les films ou romans qui leur sont consacrés doivent fourmiller d’inexactitudes!; ce n’est pas pour cette raison qu’ils se réunissent pour en débattre.” [Nossa tradução]17. “sacrifient à l’engouement du public” [Nossa tradução]18. Claude Blanckaert cita o texto escrito em 1901 por Manouvrier, exemplar, ainda hoje, do senti-mento dos arqueólogos: a reconstituição é uma “tentativa algo ousada”, destinada ao público, mas que poderia continuar instrutiva se um texto a acompanhasse, evocando os vestígios que inspiraram a reconstituição, seu significado e as hipóteses inseridas na representação. Blanckaert menciona reações semelhantes expressadas por Marcelino Boule e Ernest Hamy no mesmo período.19. O efeito da distância com relação às ilustrações do século passado permite medir melhor os erros dos artistas, e é usado regularmente em exposições de vocação didática ou crítica para questionar a nossa relação com o passado através dessas imagens. Por exemplo, as exposições Pintores de um mundo desaparecido, no Museu Departamental de Pré-história de Solutré, feita em 1990, ou Retratos

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conhecidos fora do meio da arqueologia, suas produções, entretanto, se deslocam de um suporte de mídia para outro, e marcaram fortemente o imaginário, incluindo o dos futuros arqueólogos (ibid.). Essa abordagem é seguida hoje na França por, entre outros, Gilles Tosello, Benoît Clarys e Jean-Claude Golvin.

A colaboração entre artistas e cientistas para produzir uma imagem sintética do pas-sado intervém em várias etapas da produção de uma ilustração. As encomendas são feitas, muitas vezes, por cientistas, arqueólogos e curadores do patrimônio, que querem incluir a ilustração em publicações ou exposições. Para além disso, a produ-ção da ilustração envolve uma extensa documentação, arqueológica e etnográfica. A síntese dos conhecimentos é o primeiro trabalho a ser feito para a composição da ilustração. Esse ponto de partida, abundantemente descrito em nossas entrevistas, é comum aos ilustradores empenhados nesse processo de estreita colaboração com os arqueólogos.20 Dessa forma, os ilustradores identificam claramente e têm plena consciência da fronteira entre o conhecimento documentado e a imaginação.

Para concluir essa avaliação das ilustrações sob o prisma da veridicidade científica, poderíamos comparar a posição epistemológica das imagens em arqueologia daque-las que ocupam na filosofia e nas suas relações com a ciência desde Platão (Dago-gnet, 1985). Platão lutava contra imagens e os simulacros, acusados de degradar o ser ou o verdadeiro real.

O mito da caverna – é já uma metáfora dos dioramas e do uso do dispositivo ótico! – relembra a nossa condição miserável e mantém o julgamento a tudo que é cênico e aparente. Somos mistificados pelas sombras, que tomamos, aliás, pelos próprios objetos21 (ibid., p. 10).

da pré-história: a imagem dos primeiros homens entre o mito e a realidade, realizada no Museu Depar-tamental da Abadia de Saint-Riquier, em 2008.20. Gilles Tosello, ilustrador e pré-historiador, afirmou: “O ilustrador, autor da imagem, deverá traba-lhar em estreita colaboração com os arqueólogos a fim de melhor assimilar os dados e transcrever os discursos deles em linguagem visual. De fato, nem todos os aspectos da vida pré-histórica podem ser reconstituídos com a mesma precisão, e alguns deles, de jeito nenhum. De modo geral, quanto mais longe o objeto mais se penetra no reino da imaginação.” [“L’illustrateur, auteur de l’image, devra associer étroitement son travail à celui des archéologues pour bien assimiler les données et trans-crire leur discours en langage visuel. En effet, toutes les facettes de la vie préhistorique ne peuvent être reconstituées avec la même précision, certaines même pas du tout. En règle générale, plus on s’éloigne de l’objet et plus on pénètre dans le domaine de l’imagination.”] (Tosello, 1990, p.109) Vejamos outro exemplo, do ilustrador checo Burian (1905-1981): “Extremamente exigente em sua abordagem do estudo do tema e da consequente realização, teve o cuidado de não dar livre curso à sua imaginação. Julgava que o fato de ‘soltar as rédeas’ da imaginação era mentir, o que equivaleria, portanto, ao fim das reconstituições.” [“Extrêmement exigeant dans sa démarche concernant l’étude de son sujet et sa réalisation, il veillait à ne pas donner libre cours à son imagination. Il jugeait que le fait de ‘lâcher la bride’ à l’imagination, c’était mentir, et par conséquent la fin des reconstitutions.”] (Lagardère, 1990, p. 56). 21. “Le mythe de la caverne – déjà la métaphore des dioramas et le recours à un dispositif optique!!

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No entanto, se considerarmos a ilustração como um fenômeno social, esse ponto de vista filosófico e científico corresponde à primeira etapa de um processo social mais amplo.

A interpretação dos fatos no processo de reconhecimento social do passado: o papel das ilustrações na construção da memória social

Mobilizar o modelo sociológico do testemunho para compreender a situação da ilus-tração em arqueologia tem dois interesses. Primeiro, o paralelo mostra que o estatuto epistemológico ambíguo das ilustrações é comum às outras situações de atestação dos fatos reais (na história ou no âmbito judiciário). A validade das representações do passado (discursivas, no caso do testemunho, visuais no caso da ilustração) não depende das habilidades da memória, cognitivas ou artísticas de um indivíduo, mas da audiência que as recebe e escolhe ratificá-las institucionalmente. Isso tem como consequência principal (este será o nosso segundo ponto) o fato de que a dimensão interpretativa e subjetiva torna-se precisamente o que constitui o interesse do teste-munho, porque dá uma inteligibilidade socialmente reconhecida aos fatos. Em outras palavras, o testemunho oferece um sentido à realidade cujo escopo é coletivo. No contexto do patrimônio, as ilustrações aparecem, então, como uma regulação de representações coletivas do passado, um operador constitutivo da memória social.

A interpretação pessoal dos fatos: dar uma inteligibilidade social a uma situação arqueológica graças à imagem

Após a participação no reconhecimento dos acontecimentos como fatos reais, abor-damos agora o segundo aspecto do discurso do testemunho: a interpretação sub-jetiva da realidade. De fato, se o testemunho contribui para o estabelecimento de uma realidade histórica, sua contribuição traz em relação aos outros documentos um toque especial de humanidade: ele expressa um primeiro julgamento e busca sua ratificação por outros. Esse é o nível da interpretação dos fatos, do seu significado para a ação presente. Com o testemunho, o julgamento emitido sobre o aconte-cimento e sobre os homens não é mais uma moral opcionalmente adicionada ao relato, ele constitui sua razão de ser (Dulong, 1998). A emoção é um ingrediente da inteligibilidade de uma situação, e longe de ser um elemento acessório do testemu-nho, enfatiza o sentido humano do olhar voltado para o que aconteceu. A testemunha

– rappelle notre misérable condition et entretient le procès au scénique comme à tout l’apparaître. Nous sommes mystifiés par les ombres, que nous prenons d’ailleurs pour les objets eux-mêmes.” [Nossa tradução]

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ocular (através de seu corpo e de sua fala) é atrelada à cadeia das fatualidades, e é por essa razão que ela pode dar uma inteligibilidade humana, moral e emocional à realidade.22 O reconhecimento social de seu estatuto de testemunha atua como uma ratificação de seu julgamento. Para o ilustrador, o julgamento que ele emite sobre o evento e a emoção que ele associa a isso não estão relacionados com a sua participação no evento, mas com suas escolhas de interpretação dos conhecimentos e da composição da imagem; daí a importância de suas competências científicas e artísticas.

Na prática, o ilustrador interpreta os conhecimentos baseado num argumento jurí-dico. Tomemos o exemplo de La Rencontre, ilustração de Benoît Clarys que repre-senta um contato entre o homem de Neandertal e o homem moderno. Esse evento não foi atestado arqueologicamente, pois não há evidências diretas desse encontro, mas unicamente objetos culturalmente atribuídos a um e ao outro e presentes na mesma camada estratigráfica. As condições do encontro, por conseguinte, reme-tem ao julgamento do ilustrador: ele optou por representar um contato pacífico, na medida em que não existem atualmente vestígios arqueológicos de combates, e que consideramos, de todo modo, as diferenças em matéria de encontro de acordo com as regiões. Intervém aí um critério de equilíbrio entre a ausência de vestígios arqueo-lógicos e a documentação.

Para a representação dos trajes dos personagens, acontece da mesma forma: o ilustrador diz ter “tomado o partido” de representar o homem moderno vestido de modo mais sofisticado do que o de Neandertal, e mesmo que a agulha ainda não exista, porque podemos supor que homem moderno desenvolveu uma estratégia técnica contra o frio (ele vem do Oriente Médio, área que já era mais quente do que a Europa). Esse julgamento é baseado numa documentação: alguns povos da América do Sul desenvolveram adaptabilidade fisiológica ao frio, e presume-se que o Neandertal também poderia ter desenvolvido (o homem de Neandertal é a espécie europeia endêmica ao Paleolítico europeu, antes da chegada do homem moderno, vivendo, portanto, num clima mais frio). Outro critério de interpretação aparece aqui: a comunicabilidade da imagem, ou seja, a expectativa de compreensão por parte do espectador. O ilustrador escolheu representar nessa imagem um gesto amigá-vel decodificável, mesmo correndo o risco de “fazer um clichê” (a mão no ombro).23

22. Dulong analisa de maneira detalhada esse aspecto através dos exemplos das testemunhas das duas guerras mundiais.23. “Les habitants de Nouvelle-Guinée tirent la langue pour dire ‘bonjour’, mais si je fais ça avec Neandertal les gens ne vont rien comprendre!!” Entrevista com Benoît Clarys. [“Os habitantes da Nova Guiné estiram a língua para dizer ‘olá’, mas se eu fizer isso com o homem de Neandertal ninguém vai entender nada.”] [Nossa tradução]

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Esse critério de interpretação dos conhecimentos é tanto uma competência de comunicação como de mediação; também é encontrada no discurso de um outro ilustrador, Jean-Claude Golvin.

Jean-Claude Golvin formalizou sua argumentação interpretativa por meio de vinte e cinco publicações e comunicações científicas de 1984 a 2011,24 que constituem uma metodologia de reconstituição arquitetural. O princípio da argumentação é a fidelidade aos saberes em simultâneo com a verossimilhança da imagem: “A ideia global que veiculamos é justa. Mas não é necessário ler tudo nos mínimos detalhes: alguns detalhes são pertinentes, são realmente coisas que conhecemos, e outros são adicionados, porque existiram, e temos que integrá-los na imagem, porque se

24. Notadamente Golvin (2003, 2005). Para a bibliografia completa, consultar: Collectif, 2011, p.! 187-188. Agradecemos calorosamente a Jean-Claude Golvin por nos ter dado acesso a essas publicações.

Figura 6. O Encontro

Ilustração de Benoît ClarysPrimeira publicação: Atlas des premiers hommes, Casterman, 1998.

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e stivessem ausentes a mensagem seria falsa.”25, 26 A ideia é a de que o conhecimento não é suficiente para alcançar uma representação verdadeira ou plausível do pas-sado; devem ser misturados a ela elementos interpretados com método. Trata-se de compreender os princípios fundamentais da cidade antiga para assegurar o julga-mento a partir de cinco determinantes sistemáticos: a topografia e as paisagens, o contorno e os limites da cidade (muralha, necrópole), o tecido urbano (regular ou não, ter um esboço disso), os edifícios públicos, bem como a posição relativa desses ele-mentos que é única, dependendo da cidade. Esses elementos permitem construir a imagem de forma metódica, articulando os conhecimentos (a equivalência dos fatos) com o julgamento. No trabalho do ilustrador, dar uma inteligibilidade social à imagem do passado é dar-lhe um significado que permitirá sua circulação social.

A ratificação social das interpretações do passado

Socialmente, a atividade do ilustrador funciona da mesma maneira que a da teste-munha ocular e possui o mesmo estatuto: sua visão vai participar da identificação do que se proclama como passado, enquanto referente coletivo e identitário.27 Essa função essencial possui uma forte carga simbólica: a testemunha dá significado à realidade social que ela testifica. A força dessa posição social difícil reside na possi-bilidade de produção de um espaço público para o debate científico, mas também de um espaço de mediação do passado que reúne cientistas e membros da sociedade.

A ilustração como produção de um espaço públicoO impacto político dos testemunhos só alcança sua verdadeira dimensão com o con-ceito de espaço público, pois a testemunha é um indivíduo social chamado a dizer em voz alta o que ele viu e a ver o seu discurso tomado numa série de outros discursos de caráter argumentativo. Num sentido amplo, o espaço público abrange qualquer interação e qualquer expressão pública. Arendt o define como: “[…] a comunidade dos homens enquanto devem, na ausência de garantias metassociais ou de uma máxima universalizante, estar de acordo sobre os princípios fundadores do viver em conjunto”28 (Dulong, 1998, p. 83) O espaço público inclui, portanto, a ação coletiva, o debate que a elabora, a vida política e social. A história e a arqueologia são, por-

25. “L’idée globale que l’on donne est juste. Mais il ne faut pas tout lire au niveau du détail!: certains détails sont pertinents, ce sont vraiment les choses que l’on connaît, et d’autres sont rajoutées parce qu’elles ont existé, et il faut arriver à les mettre, parce que si elles étaient absentes le message serait faux.” [Nossa tradução]26. Entrevista com Jean-Claude Golvin.27. Para Arendt (1972), a primeira função da testemunha é proclamar o acontecimento e fazer com que se tome consciência de sua importância (Dulong, 1998, p. 123).28. “[…] la communauté des hommes en tant qu’ils sont tenus, en l’absence de garants métasociaux ou d’une maxime universalisante, à s’entendre sur les principes fondant leur vivre ensemble.” [Nossa tradução]

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tanto, cada uma, um espaço público regional, que exige, por sua vez, uma instância de preservação da fatualidade: crítica das publicações, controvérsias sobre as teses, revisão dos sistemas de interpretação, e também a avaliação das ilustrações sob o regime de veridicidade. Por meio de sua posição como testemunha, o ilustrador em arqueologia faz existir o espaço público segundo duas modalidades discursivas: a discussão e a narrativa. Essas modalidades se manifestam em espaços sociais e em redes diferentes.

A ilustração em arqueologia cristaliza a tensão entre os conhecimentos científicos da disciplina (que têm o estatuto de verdade) e o modo de produção dos conhecimen-tos, que, em parte, têm a ver com a discussão, porque a arqueologia procede por inferências (paradigma de índice). A ilustração é, então, um equilíbrio a estabilizar em permanência, entre verdade científica e discussão. Para os pesquisadores que acei-tam integrar ilustração à sua pesquisa, a função da ajuda na discussão da ilustração é muito clara: a atividade do ilustrador “age como um revelador”.29 30 “O desenho que esboça rapidamente revela o que funciona e o que não funciona, seja técnico, incli-nação do terreno, relevo ou localização. A localização do porto fluvial, por exemplo, não poderia convir porque era o lugar onde a corrente era mais forte... Sua principal virtude é nos ajudar a decidir.”31 A comunidade científica, a instância que determina o que é reconhecido como fato ou verdade científica, é, então, o primeiro espaço público em que age o ilustrador como revelador do debate e suporte à decisão do que constitui os fatos.

O segundo espaço público em que ele intervém é muito maior, e corresponde à difu-são social de suas obras. O ilustrador é então confrontado com a pesada responsa-bilidade a cargo da testemunha quanto ao sentido moral da sua testificação para a compreensão do passado e de seu significado para o futuro coletivo. O relato da tes-temunha convoca o espaço público como uma comunidade de seres que partilham a mesma sensibilidade em certos aspectos do mundo. O relato não é uma simples listagem do que aconteceu: a compreensão do evento coincide com a sua inclusão em um espaço de sentido; e na medida em que é inteligível, a descrição de um seg-mento de mundo participa na produção de um espaço de troca entre os homens (Dulong, 1998, p. 135-138). Para Arendt (1972), contar um evento é tanto extrair uma configuração de um caos de ocorrências durante a execução de um ato de

29. “agit comme un révélateur” [Nossa tradução]30. A expressão e a citação são de uma curadora de patrimônio que solicitou várias ilustrações de Lutécia a Jean-Claude Golvin por ocasião de uma exposição no Museu Carnavalet em 2011, E Lutécia se tornou Paris (Collectif, 2008).31. “Le dessin qu’il esquisse révèle très vite ce qui fonctionne et ce qui ne fonctionne pas, qu’il s’agisse de technique, de pente, de relief ou de localisation. L’emplacement du port fluvial, par exem-ple, ne pouvait convenir parce que c’est là que le courant était le plus fort… Sa principale vertu, c’est de nous aider à trancher.” [Nossa tradução]

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

julgamento ligado ao ato de perceber, como conferir a inteligibilidade necessária para abrir um futuro. O testemunho prepara os relatos históricos para o ouvido humano, tornando-os interessantes e até mesmo moralmente úteis. Se seguirmos a análise sociológica do testemunho, o propósito da ilustração em arqueologia encontra-se, portanto, na interpretação pessoal do passado, com base nos conhecimentos de que dispõe o ilustrador, e na ratificação coletiva dessa visão pessoal do passado. Essa interpretação é o que dá inteligibilidade ao passado, e é por meio dela que o fenô-meno do testemunho atinge a sua amplitude política. Jean-Claude Golvin também é muito explícito sobre isso: “Em nossa própria rua, não somos capazes de desenhar todas as casas de memória! Não precisamos, não faz sentido. É preciso representar o que faz sentido.”32

O ilustrador funciona, então, realmente, como um agente de memória social. A memó-ria social é um conteúdo e, ao mesmo tempo, uma forma de processar e apreender esse conteúdo, ou seja, um modo de ser no mundo (Candau, 1998). A memória social assegura a continuidade sob a forma de “escolas de pensamento”, vestígios ou mate-rializações rituais (Davallon, 2006, p. 110), e orienta a comunicação ou a expressão das memórias individuais; “funciona como uma instância de regulação da lembrança individual”33 (Hervieu Léger, 1993), dando-lhes uma clarificação de sentido que teste-munha uma “visão de mundo” comum (Namer, 1987). O conceito de memória social implica, portanto, a introdução de mecanismos de mediação para essa regulação (comemorações, documentos, objetos...) de que as ilustrações fazem parte.

As ilustrações como produção de memória socialO caso das ilustrações dos sítios arqueológicos de palafitas é um bom exemplo para se compreender o papel das ilustrações como operador da memória social, e sobre-tudo, graças ao recuo temporal que se tem hoje sobre o impacto social dessas ima-gens. Em 1854, Ferdinand Keller, presidente da Sociedade de Antiquários de Zurique, oferece a primeira restituição de uma aldeia lacustre, após a descoberta da estação de palafitas de Obermeilen. A ilustração de Keller é totalmente consistente com a abordagem de ilustração científica aqui discutida: é um arqueólogo e usa documen-tação etnográfica34 e arqueológica oriunda de suas escavações. O sucesso da ima-gem não só irá desencadear uma onda de pesquisas arqueológicas nas margens dos lagos suíços, mas também dará origem ao que é chamado de “mito lacustre”: aldeias construídas em plataformas acima das águas, sobre as quais se fixam as projeções

32. “Dans notre propre rue, on n’est pas capable de dessiner toutes les maisons de mémoire!! On n’en a pas besoin, ça n’a pas de sens. Il faut représenter ce qui a du sens.” [Nossa tradução]33. “fonctionne comme une instance de régulation du souvenir individuel” [Nossa tradução]34. Keller foi inspirado por um dos desenhos de Dumont d’Urville, após sua viagem para a Nova Guiné em 1827 (Kaufman, 1979) e nas antigas casas de pescadores do Lago de Zurique, desaparecidas há várias gerações, mas cuja lembrança foi conservada (Kaeser, 2000).

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

identitárias ideológicas suíças. Durante décadas, assumimos, com base em um modo tão particular de habitat, a unidade étnica e cultural dos habitantes de lagos. A teoria lacustre de Keller fica, assim, profundamente enraizada no contexto socio-político da época, e também contribui para moldá-lo: permite fortalecer a identidade nacional da nova Confederação Suíça remodelando-a, pois, devido à interpretação de Keller, ela parece surgir a partir de uma coesão cultural (Kaeser, 2000). “Desse modo, a partir de algumas aldeias pré-históricas, ele construiu uma nova civilização. Assim, podemos dizer que, se Keller não descobriu as palafitas, se não foi o primeiro a realizar pesquisas nesse domínio, ele inaugurou de chofre uma teoria abrangente e coerente. Aos olhos de seus contemporâneos, ele é o primeiro a compreender esses vestígios”35 (ibid., p. 83).

Assim como no caso do testemunho, o sucesso do mito lacustre está intimamente ligado à qualidade da sua recepção: ele criou um novo significado para os seus con-temporâneos. É por isso que o questionamento da teoria lacustre teve dificuldades em encontrar ecos. Os arqueólogos sabem, desde os anos 1950, que esses habitats não estavam situados sobre a água, mas nas margens dos lagos, e que nenhuma plataforma seria capaz de suportar o peso de um complexo habitacional. Foi apenas nos anos 1980 que o público começou a prestar atenção nessas descobertas. Para explicar essa resistência, os arqueólogos têm culpado a estupidez pública e a incom-petência da instituição de ensino, porém se trata de algo completamente diferente. “[O] mito lacustre (não visa) ao conhecimento do passado pré-histórico da Suíça, mas à compreensão da atualidade e do futuro em comum”36 (ibid., p. 35). Kaeser compre-endeu perfeitamente a amplitude e a importância coletiva da ilustração, e mesmo que não teça uma relação explícita com o testemunho, sua análise do mito lacustre poderia se aplicar a ambos os fenômenos:

[O ilustrador/arqueólogo] dá à luz uma realidade que ultrapassa, necessaria-mente, o domínio da objetividade, para entrar naquele das representações coletivas, fundamentalmente subjetivas. [...] O passado representado não existe mais como tal. Não tem mais a ver com um objeto de estudo situado no passado, mas com um sujeito vivo, nos olhos e no imaginário de um público que não é mais um mero espectador, uma vez que é precisamente seu olhar que anima a imagem37 (Kaeser, 2002, p. 34).

35. “Ainsi à partir de quelques villages préhistoriques, il construit, lui, une nouvelle civilisation. On peut donc dire que si Keller n’a pas découvert les palafittes, s’il n’a pas été le premier à effectuer des recherches dans ce domaine, il a inauguré d’emblée une théorie globale et cohérente. Aux yeux de ses contemporains, il est le premier à avoir compris ces vestiges.” [Nossa tradução]36. “[Le] mythe lacustre [ne vise pas] à la connaissance du passé préhistorique de la Suisse, mais à la compréhension de l’actualité et de l’avenir communs.” [Nossa tradução]37. “[L’illustrateur/archéologue] donne naissance à une réalité qui dépasse nécessairement le domaine de l’objectivité, pour entrer dans celui des représentations collectives, foncièrement subjective s. […]

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

A integração da totalidade das obras de Jean-Claude Golvin às coleções do Museu Departamental de Arles Antiga é outro exemplo mais recente da constituição da memó-ria social pela ilustração. Essas obras estão agora preservadas em domínio público, com o duplo estatuto de peças de coleção do museu e como mecanismos de mediação dos vestígios, já que muitas delas estão expostas nas salas das coleções permanentes ao lado dos vestígios que as mesmas representam, explicam e recontextualizam. A ilus-tração O circo romano de Arelate, exposta na fachada envidraçada do museu por oca-sião da exposição Golvin, um arquiteto no coração da história,38 é uma materialização do fenômeno da memória social constituída e regulada pela ilustração. Três elementos se sobrepõem visualmente para o espectador na fachada do museu: a ilustração do circo sobre o vidro, o monumento enterrado situado fora do museu, e a cidade real visível em plano de fundo. Através da composição que permite essa superposição, a ilustração recoloca em situação os vestígios e une visualmente a representação do passado ao presente da cidade de Arles para todos os visitantes que entram no museu.

Figura 7. O circo romano de Arelate

Ilustração do Jean-Claude Golvin apresentada no hall do Museu Departamental de Arles Antiga.©!Patrick Mercier Ville d’Arles

Le passé représenté n’en est plus un. On n’a en effet plus affaire à un objet d’étude situé dans le passé, mais à un sujet vivant, aujourd’hui, dans les yeux et dans l’imaginaire d’un public qui n’est plus un pur spectateur, puisque c’est précisément son regard à lui qui anime l’image.” [Nossa tradução]38. Exposição apresentada de 22 de outobro de 2011 ao 6 de maio de 2012.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

Para entendermos completamente o processo de constituição da memória social, desejamos concluir afirmando que é essencial conferir seu lugar de direito à certi-ficação científica do passado. Alguns analistas da ilustração consideram que: “[…] representar o mundo pré-histórico ou qualquer outro passado não é operação qua-lificável epistemologicamente, pois se trata de algo que não tem nada a ver com o conhecimento”39 (Boëtsch e Ferrié, 2000, p. 230). Acreditamos que este é um erro antropológico, na medida em que este raciocínio equivale a negar a ligação entre a lógica da patrimonialização e a produção da memória. As ilustrações possuem de fato uma validade social quando produzidas em comum acordo com os arqueólogos. Essa colaboração permite a produção de eventos memoráveis no campo da arque-ologia e do patrimônio: ela constrói laços sociais, pois contribui para estabelecer a existência de um passado comum. Nossas sociedades ocidentais precisam acreditar que esse passado foi real em função dos conhecimentos atuais, ou seja, acreditar que esse passado representado seja verossímil com relação aos saberes cientifica-mente comprovados, uma vez que a validade da ciência está no centro dos nossos valores sociais no sentido de estabelecer um passado comum.

A abordagem do ilustrador é, portanto, vetor de valor: a sua preocupação com a exatidão e veridicidade indica o compromisso social com a verdade científica para a constituição do patrimônio, e do passado, por extensão; sua relativa liberdade de composição da imagem indica que sua interpretação subjetiva do conhecimento fornece uma inteligibilidade do passado, legitimada pelo reconhecimento social do ilustrador.40 Os ilustradores participam, assim, enquanto indivíduos, na construção social de nosso passado, mesmo que às vezes isso pareça difícil de conciliar com a nossa concepção do patrimônio cientificamente autenticado. O fenômeno da ilus-tração mostra que as mediações têm um papel fundamental na legitimação do que consideramos socialmente como nosso passado (Flon, 2012).

39. “Se représenter le monde préhistorique ou tout autre passé n’est pas une opération qualifiable épistémologiquement, car c’est quelque chose qui n’a rien à voir avec la connaissance.” [Nossa tra-dução]40. Podemos também aproximar a interpretação subjetiva pelo ilustrador da noção de interpretação no sentido museológico, que implica diretamente o visitante no discurso museal através da emoção (Dufour, 2009).

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Patrimonializar a memória da guerra no museu: entre História e testemunho

Jessica Cendoya-Lafleur, Marie Lavorel e Jean Davallon Traduzido do francês por Germana!Henriques!Pereira!de!Sousa

Visto como um espaço de comunicação (Odin, 2011), o museu permite-nos obser-var como se pode escrever uma memória traumática em que o testemunho serve de ajuda à transmissão de passados difíceis. Esse testemunho pode ser encarnado pelos detentores da memória, ainda vivos, ou se apresentar numa forma material. É, portanto, uma manifestação interessante para se discutir as condições de um pro-cesso de patrimonialização da memória no âmbito das instituições museais.

A história contemporânea implica uma escrita sob a influência de uma demanda social, científica e política, em maior ou menor grau, de acordo com a proximidade temporal do evento histórico. Disso resulta uma escrita do passado entre história e memória num contexto social ocidental em que a experiência individual é priorizada por comunidades memoriais influentes. De modo geral, observa-se uma proliferação da memória no espaço público, aquele de uma mudança de temporalidade onde se cultiva o passado em todas as suas formas (arquivos, monumentos, memoriais, etc.) Isso tem, por efeito, privilegiar uma relação afetiva com o passado e uma produção narrativa desse passado com base na experiência humana individual, especialmente através do testemunho. O testemunho é um meio pelo qual a sociedade vive e pensa; ele se refere a um outro lugar. Ele fala sobre outra coisa. A testemunha é um “passa-dor”, o intermediário com essa “outra cena” que mobiliza simultaneamente, e com força, sentimentos e afetos, imaginação e quadros de referências interpretativos. É por essa razão que o testemunho pode participar da criação e manutenção do quadro de referência coletivo das identidades individuais. Ele é um relato que participa ati-vamente da criação de uma paisagem memorial. Ao contrário da narrativa histórica, permite reconstruir uma ligação com o passado que já não é só de domínio exclusivo do especialista. Essa ligação é direta e visível, uma vez que toma forma no teste-munho portador de uma experiência vivida – fenômeno que, aliás, provocou muitos debates sobre o estatuto do testemunho entre os historiadores do nosso tempo.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

Os acontecimentos históricos conflitantes do século XIX, por seu caráter traumático portador de uma ruptura simbólica, forçam historiadores e testemunhas a trabalhar em conjunto. Esses eventos questionam suas respectivas relações com o passado entre a busca da verdade e a missão de fidelidade memorial (Ricœur, 2001; Bedarida, 2005). Agentes de transmissão do passado, a testemunha e o objeto-testemunho(s) adquiriram um verdadeiro estatuto social e estão sujeitos a uma utilização midiática significativa. Se a televisão, o rádio e o cinema já se apropriaram amplamente disso, o museu, por sua vez, também parece participar dessa escrita do passado nos con-fins da história e da memória, revelando um processo de patrimonialização.

Dois casos são o objeto do presente estudo. O primeiro apresenta os resultados da análise de diferentes processos de exposição do objeto-testemunho(s)1 Guernica, o quadro de Pablo Picasso pintado em Paris, no contexto da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e atualmente em exposição no Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia (MNCARS). O segundo está localizado no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) no Museu da Resistência e da Deportação em Isère (MRDI). Este traba-lho apresenta os resultados da observação do encontro testemunha-historiador no comitê científico do museu. Essa relação se mostrou reveladora e potencialmente legitimadora da escrita patrimonial da memória da deportação.

Os dois estudos de caso selecionados oferecem uma oportunidade para obser-varmos processos de patrimonialização em diferentes estágios que se devem ao contexto histórico e memorial de dois acontecimentos. As exposições do objeto-testemunha(s) Guernica reativam constantemente o processo de patrimonialização do objeto-monumento que não pode ser concluído enquanto a história estiver sendo escrita e a memória permanecer viva. Por outro lado, estamos assistindo ao culminar de um processo de patrimonialização da deportação no Museu da Resistência e da Deportação de Isère.

Buscamos compreender como um processo de patrimonialização pode ser alcan-çado nesses contextos históricos e memoriais particulares. Em geral, portanto, ques-tionaremos as condições de operatividade do patrimônio.

1. O termo objeto-testemunho(s), pelo qual designamos o Guernica, está no plural, entre parênteses, porque é oriundo originalmente da Guerra Civil, mas também de vários eventos subsequentes, como o exílio dos refugiados espanhóis, os combates memoriais, etc. Distinguimos esse último da obra de arte Guernica, que, integrado no espaço museal, foi patrimonializada.

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

O objeto-testemunho(s) Guernica e seus contextos de exposição: um processo de patrimonialização inacabado

Um fato particular à Espanha é a dificuldade em se mencionar uma história nacional cientificamente comprovada, apesar de existirem os Arquivos Nacionais da Guerra Civil Espanhola. Os conflitos memoriais são recorrentes na esfera pública. E ainda indicam hoje a dificuldade de se estabelecer um consenso histórico, tanto para as autoridades políticas quanto para o povo espanhol. Nesse contexto, pode se revelar complexo para o museu ser o“relé” de uma história difícil de ser escrita, uma vez que se baseia principalmente em narrativas memoriais. É certo que o Guernica é parte do patrimônio dos espanhóis, no sentido tradicional da palavra “patrimônio”. No entanto, é mais difícil de estabelecer que o processo de patrimonialização desse objeto de arte, como testemunho, esteja devidamente concluído, uma vez que o seu estatuto evolui de acordo com os lugares e o contexto em que ele é exposto.

Exposição do Guernica: estabelecimento de uma comunicação do testemunho

O contexto histórico e político da criação de GuernicaO pintor espanhol Pablo Picasso pintou Guernica em 1937, no contexto de uma enco-menda do governo republicano para o Pavilhão espanhol na Exposição Universal de Paris naquele mesmo ano. Enquanto a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) assolava a Espanha, o pintor, que vivia na França, soube que a aldeia do país basco Guernica havia sido bombardeada. Ele fez desse evento o tema de sua pintura.

Fazendo um panorama histórico, essa guerra fratricida opunha republicanos e nacio-nalistas. Foram os nacionalistas, liderados pelo general Francisco Franco, que ven-ceram a guerra. Franco impôs uma ditadura até sua morte, em 1975. Foi apenas em 1977, após a transição democrática, que os espanhóis puderam votar novamente. A partir desse período, e isso até meados da década de 1990, o tema da Guerra Civil não foi mais claramente abordado no espaço público e na vida política espanhola. A memória coletiva foi construída sobre o desejo de esquecer o passado, a fim de proporcionar um futuro de paz. O esquecimento possui, então, uma legitimidade funcional no contexto do retorno da democracia na Espanha (Arostegui, 2007). No entanto, a partir do final da década de 1990, as associações expressaram sua neces-sidade de homenagear publicamente as vítimas do franquismo (Serrano-Moreno, 2012). Uma voga memorial invade o espaço público e o país fica dividido novamente. Alguns espanhóis pensam que desenterrar os mortos equivale a reacender o conflito, enquanto outros, filhos e netos de vítimas republicanas, expressam a necessidade

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

de um dever de memória nacional. Esse dever de memória foi discutido e instituído sob o governo socialista do presidente José Luis Zapatero. Em 2007, uma lei de “recu-peração da memória histórica” foi aprovada pelas Cortes Generales, isto é, o Parla-mento espanhol. Essa lei garante “[...] o reconhecimento, a expansão dos direitos e a instauração de medidas em favor dos que sofreram perseguição ou violência durante a Guerra Civil e a ditadura” (BOE, Lei 52 / 2007, de 26 de Dezembro de 2007). O debate ainda está em voga. A Guerra Civil dividiu e ainda divide espanhóis; portanto, não é possível falar de uma memória histórica comum.

Contextos de exposições em relação com a história política e memorial da EspanhaO Guernica viajou bastante desde a sua criação. Seus diferentes contextos de expo-sição permitem defini-lo como um objeto polissêmico e multifuncional: um objeto que é ao mesmo tempo artístico, histórico, político, cultural e memorial. Esse quadro é um testemunho da Guerra Civil Espanhola, e cada exposição sua tem uma resso-nância com a história política e memorial do país. Os países e os museus onde ele foi exposto, e suas diferentes cenografias, podem assim ser relacionados com o que viveu o povo espanhol, da Guerra Civil até hoje.

A primeira exposição do Guernica, em 1937, em Paris, foi um ato político deliberado. Picasso fez um testemunho através de um suporte artístico, destinado a denunciar as atrocidades da guerra sofridas pelos seus concidadãos espanhóis. Esses acon-tecimentos vieram à luz graças à iniciativa de refugiados republicanos que atraiu a atenção da comunidade internacional. Já podemos considerar o Guernica como um objeto de arte, um testemunho e um suporte de mídia, simultaneamente.

A guerra terminou em 1939, e muitos espanhóis fugiram do país. De 1938 a 1944, o Guernica foi exibido em várias cidades da Europa e da América para coletar fundos no âmbito da campanha de ajuda aos refugiados espanhóis. Não só o quadro fornece o testemunho do que o povo espanhol viveu, mas também é o porta-voz e o benfeitor dos refugiados republicanos.

Em 1944, o Museu de Arte Moderna de Nova York se torna o depositário do Guernica. De acordo com os desejos de Picasso, o quadro não poderia ser exposto na Espanha até que a democracia fosse restabelecida. Assim, o pintor dota-o do estatuto de dis-sidente assinalando a ditadura vigente em seu país.

Foi apenas em 1981, após a morte de Franco e a reintrodução da democracia pelo novo governo, que “o último exilado”2 entra pela primeira vez no território espanhol,

2. O quadro foi nomeado pela imprensa “o último exilado”.

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

sendo abrigado pelo Cason del Buen Retiro, administrado pelo Museu do Prado. É o símbolo da democracia reencontrada. No entanto, o vidro blindado por trás do qual fica exposto e os dois policiais que o emolduram testemunham as tensões políticas subjacentes, uma vez que o quadro não é bem-vindo para todos os espanhóis.

Em 1992, o Guernica foi transferido para o MNCARS, onde, até 2007, foi exposto num contexto exclusivamente artístico. Ao que parece, os curadores da época tentaram atenuar sua função memorial e política colocando entre parênteses o contexto histó-rico. Assim, podemos perguntar se essa cenografia não traduz o desejo de silenciar esse período da História, oferecendo uma interpretação estética e artística da obra. Por outro lado, desde o ano de aprovação da lei sobre o dever de memória e até agora (2012), o Guernica é exibido no contexto de criação artística, mas também histórico, o que fortalece e torna manifesto seu alcance memorial. O tratamento cenográfico do quadro, proposto por Manuel Borja Villel, o diretor do MNCARS, nomeado pelo governo socialista de Zapatero desde 2006, destaca as condições de criação e expo-sição da pintura em 1937, assim como as obras de artistas republicanos da época.

Descrição da sequência de exposição Guernica de 2007 a 2011Desde 2007, no MNCARS, a sequência da exposição intitulada Guernica apresenta um conjunto de unidades que retraça o contexto artístico e histórico da obra. Entre as unidades dessa sequência, consideramos apenas aquelas dedicadas ao período da guerra com cenografias propostas de 2007 a 2011.

Esse período é apresentado através de expôts que poderíamos designar como sendo artísticos (pinturas, fotografias, esculturas, desenhos, gravuras), históricos e docu-mentais (vídeos, fotos, cartazes, arquivos de imprensa). As etiquetas situadas nos elementos, embaixo e à direita, são simples, caracteres pretos sobre fundo branco que indicam: o nome do artista; as datas e locais de nascimento e morte; o título da obra em sua língua original, em espanhol e inglês; a data de criação; a técnica utili-zada, a origem da obra. Há textos de acompanhamento, mas nenhum texto de infor-mação afixado nas paredes que permitiriam aprofundar um saber sobre um contexto, uma obra ou um artista. Constatamos que a interpretação é livre. O visitante é quem deve construir uma narrativa segundo a relação que ele estabelecerá com os expôts que terão chamado sua atenção.

Voltemos, mais em detalhe, sobre as salas e os elementos que compõem a sequência da exposição Guernica. A primeira unidade é a do Guernica, ponto de convergência desse conjunto. As duas salas adjacentes detalham o processo criativo do artista pela exposição de vários desenhos, esboços e pinturas preparatórias. A instituição designou essas três salas para a exposição para formar um único conjunto com o

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

quadro. Uma põe em cena elementos da primeira apresentação do Guernica no Pavi-lhão republicano espanhol, durante a Exposição Universal de Paris em 1937. Pode-mos observar ali obras originais e reproduções de elementos presentes nas salas do pavilhão àquela época. A unidade seguinte apresenta uma série de desenhos exe-cutados por artistas republicanos, enquanto a última é composta por cartazes de propaganda franquista. A última exibe uma série de fotografias tiradas por repórteres de guerra, no front, incluindo o famoso Robert Capa.

Esse museu mobiliza um conjunto de unidades que giram em torno de um objeto central, o Guernica. Esses diferentes elementos são obras de arte e documentos que enriquecem o testemunho do quadro. Nesse conjunto, o testemunho tem dois níveis de leitura que são diferenciados por sutilezas tipográficas. O Guernica em itálico qua-lifica a obra de arte, enquanto o título da sequência “Guernica”, tipografado entre aspas, descreve o testemunho evocado pelo conjunto das unidades que acabamos de apresentar, como interagem entre elas e com a obra de arte.

Guernica: o objeto-testemunho(s) feito monumento

Com base na análise que apresentamos da história do Guernica, constatamos que essa pintura não é simplesmente um objeto estético. Pablo Picasso realizou-a para dar um testemunho através de um suporte estético e midiático: o quadro.

Um testemunho é produzido por uma testemunha, isto é, alguém que assistiu aos acontecimentos e autenticou sua existência. A palavra “testemunho” tam-bém faz parte do vocabulário judicial: pode estar relacionada com a denúncia. Mas a maioria dos artistas que produziram exemplos paradigmáticos de repre-sentação dos limites do sofrimento ou da maldade humana pode não ter sido uma testemunha direta dos fatos, mesmo que o seu trabalho tenha sido con-siderado por todos como a mais alta e bem-sucedida expressão de denúncia (Fernandez-Martinez, 2008, p. 2).3

No entanto, o próprio artista e outros produtores (curadores, políticos, etc.) mudaram, em seguida, esse testemunho através de diferentes exposições relacionadas com contextos históricos e políticos específicos. Nós não consideramos o Guernica como um testemunho dado por uma única pessoa, mas como um objeto-testemunho(s)

3. “Un témoignage est produit par un témoin, c’est-à-dire celui qui a assisté aux faits et authentifie leur existence. Le mot ‘témoignage’ fait aussi partie du vocabulaire judiciaire! : il peut être lié à la dénonciation. Mais la majorité des artistes qui ont produit des exemples paradigmatiques de la repré-sentation des limites de la souffrance ou de la méchanceté humaine, peut ne pas avoir été témoin direct des faits, même si leur œuvre a été considérée par tous comme l’expression la plus réussie et la plus aboutie de la dénonciation.” [Nossa tradução]

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no plural, na medida em que testifica uma série de eventos (Guerra Civil, refugiados, combate memoráveis, etc.). Contudo, convém distinguir o objeto-testemunho(s) do objeto-testemunha, termo comumente usado pelos etnólogos. Por exemplo, na obra Objets et Mémoires, Laurier Turgeon define o objeto-testemunha como um docu-mento que pode acompanhar o trabalho de investigação científica dos etnólogos e arqueólogos. Estes últimos consideram o objeto como o igual desse objeto próprio ao historiador que é o arquivo escrito.

Etnólogos conseguem reverter a perspectiva que até então prevalecia: os tes-temunhos materiais adquirem uma precedência sobre os testemunhos escritos, porque podem revelar segredos profundos da sociedade. Assim como a lingua-gem, o objeto permite atingir o pensamento e os processos cognitivos. Isso já é reconhecer um estatuto comparável ao escrito4. (Turgeon, 2007, p. 19).

Se concordarmos com esse autor, poderemos dar ao Guernica, como testemunho, um estatuto comparável ao da palavra escrita como objeto-testemunha. No entanto, propomos acrescentar ao nome comum “témoin” o sufixo nominal de ação, em fran-cês, “-age” e falar de “témoignage”, uma vez que o comparamos com o monumento que, pela sua presença, age sobre as memórias.

Um monumento, no sentido original do termo, refere-se a uma obra erigida com a intenção específica de manter, para sempre presentes nas mentes das gerações futuras, acontecimentos ou feitos humanos especiais (ou uma combi-nação de uns e outros).5 (Riegl, [1903] 2001).

Riegl afirma que, quando há uma batalha, um monumento é erguido para testemu-nhar o evento, para conservar um rastro. Picasso começou a realizar o quadro nos dias seguintes ao bombardeio. A obra ainda existe e foi instituída num estabeleci-mento público, MNCARS. O artista criou uma espécie de memorial para as vítimas da Guerra Civil; um monumento comemorativo cuja natureza é fornecer um testemu-nho. Muitas vezes, no entanto, o monumento foi movido e contextualizado. Cada uma dessas mudanças tem a ver com intenções políticas e memoriais da Espanha desde a sua criação em 1937. Podemos fazer nossa a precisão introduzida por Joël Candau sobre os objetivos do monumento:

4. “Les ethnologues réussissent ainsi à renverser la perspective qui avait prévalu jusqu’alors! : les témoignages matériels acquièrent une préséance sur les témoignages écrits, parce que capables de révéler des secrets profonds de la société. Au même titre que le langage, l’objet permet d’atteindre la pensée et les processus cognitifs. C’est déjà lui reconnaître un statut comparable à l’écrit.” [Nossa tradução]5. “Un monument, au sens originel du terme, désigne une œuvre érigée avec l’intention précise de maintenir à jamais présents dans la conscience des générations futures des événements ou des faits humains particuliers (ou un ensemble des uns et des autres).” [Nossa tradução]

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Na realidade, esses dois objetivos – honorífico e de transmissão –, destaca-dos pelo discurso oficial, escondem um terceiro, sempre implícito. Trata-se de causar emoção entre os visitantes, a fim de obter a sua adesão a um projeto político: reforçar a coesão nacional, satisfazer os representantes de “comu-nidades” ou de associações, fazer campanha para as próximas eleições, etc.6 (Candau, 2005, p. 124)

O Guernica é um monumento dedicado à memória dos republicanos vítimas da Guerra Civil Espanhola numa instituição pública. Além disso, podemos considerar que a sua função comemorativa só foi ativada em 2007, porque, vale lembrar, foi apresentada num contexto histórico após a aprovação da lei sobre o “dever de memória”. Esse testemunho encarnado pelo Guernica é produtor de memória. Intervém nas memó-rias coletivas que são “a combinação de lembranças individuais de muitos membros de uma sociedade”7 (Candau, 2005). De fato, na sociedade espanhola, as memórias individuais não estão relacionadas a uma base de valores comuns desde a Guerra Civil.

Um processo inacabado de patrimonialização

Se nossa análise estiver correta, como um monumento, o Guernica seria um objeto social que participa da (re)construção da memória da Guerra Civil Espanhola. Nós atribuímos a ele o adjetivo “patrimonial” no sentido tradicional da palavra “patri-mônio”. Em outras palavras, diferenciamos o patrimônio comemorativo, facilmente designado pelo Estado ou pela sociedade, do patrimônio operador de construção de uma relação com o passado, segundo gestos de patrimonialização8.

No caso de Guernica, é com esse segundo significado da palavra patrimônio que temos de lidar, porque, depois de analisarmos a questão, não podemos considerar o Guernica como um “monumento”, objeto patrimonial, porque seu processo de patri-monialização ainda está em curso. No entanto, não discutimos o sentido estético

6. “En réalité, ces deux objectifs – honorifique et de transmission – mis en avant par les discours offi-ciels en cachent un troisième, toujours implicite. Il s’agit de provoquer une émotion chez les visiteurs, dans le but d’obtenir leur adhésion à un projet politique!: renforcer la cohésion nationale, satisfaire les représentants de ‘communautés’ ou d’associations, faire campagne pour les prochaines élections, etc.” [Nossa tradução]7. “la combinaison des souvenirs individuels de beaucoup de membres d’une même société” [Nossa tradução]8. Lembremos que existem sete gestos de patrimonialização: “[1] Ruptura: o desaparecimento do objeto e/ou de seu contexto. [2] Revelação do objeto como “descoberta”. [3] Certificação de origem do objeto. [4] Confirmação da existência do mundo de origem. [5] Representação pelo objeto de seu mundo de origem. [6] Celebração da “descoberta” do objeto pela exposição. [7] Obrigação de trans-mitir às gerações futuras” (Davallon, 2006, p. 119-126) (Original em nota de fim). [Nossa tradução]

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

patrimonial de Guernica, que, como um objeto de arte integrado no espaço museal, é patrimonializado.

O Guernica objeto-testemunho(s) responde a todos os gestos, exceto ao primeiro, o da “quebra e desaparecimento do objeto e/ou seu contexto.9 De fato, “para que haja patrimonialização, é preciso ter havido uma ruptura na continuidade da memó-ria” (Davallon, 2006, p. 119). Essa ruptura deveria ser o resultado da passagem da memória da Guerra Civil Espanhola para a sua entrada na história oficial da Espanha. Ora, nesse caso, a memória é constantemente reativada10, porque é difícil para a Espanha terminar de escrever a história desse período. Os diferentes “estratos de representações memoriais”11 (Morisset, 2009, citado por Georgescu-Paquin, 2011, p. 302), tais como o símbolo da guerra, do exílio, das vítimas da guerra, da liberdade reencontrada, do objeto de arte e do objeto-testemunho(s), foram reativados pelos eventos memoriais do país, reatualizando, assim, sistematicamente, o processo de patrimonialização. As noções de reativação e atualização (Georgescu-Paquin, 2011) são interessantes, uma vez que elas se inserem numa lógica de ruptura-continuidade necessária a todo processo de patrimonialização. No entanto, a ruptura mencionada implica uma ruptura memorial para fazer história.

Guernica é um objeto difícil de ser apreendido, pois, como acabamos de ver, ele não é apenas o suporte memorial da Guerra Civil. Existem diferentes memórias que se sobrepõem umas às outras, cada uma delas sendo o resultado da conjuntura de seus espaços de exposição (França, Europa, Estados Unidos, Museu do Prado e o MNCARS), de seus processos de exposição (contexto político de 1937, atrás de um vidro blindado em 1981, num contexto artístico em 1992 e num contexto artístico e histórico-memorial desde 2007) e das repercussões da mídia, políticas e sociais da Espanha que colocam um freio no processo e num tratamento clarificado do objeto. A falha, que, segundo nossa análise, impediria o processo de ser operativo, é a impos-sibilidade atual, daquela nação, em chegar a um consenso histórico. A leitura desse objeto-testemunho(s) não se insere numa lógica historiográfica, ainda que, desde 2007, ele tenha sido exposto num contexto histórico. Além disso, ele está atualmente num museu de belas-artes, o que atenua o tratamento histórico do objeto. A exposi-ção do contexto histórico não oferece aos visitantes uma leitura límpida do evento.

9. “rupture et de la disparition de l’objet et/ou son contexte” [Nossa tradução]10. O caso do juiz Garzon que eclodiu em 2010 testemunha a questão delicada que representa ainda a Guerra Civil para o povo espanhol. “Desde a morte do General Franco em 1975, são os valo-res democráticos carregados pelos vencidos da Guerra Civil de 1936-1939 que lançaram as bases da Espanha moderna. Permaneceu, no entanto, a lei de anistia que ocultava os crimes da ditadura de Franco. Para confrontar esse ‘pacto do esquecimento’, o juiz Garzon, acusado de abuso de poder, arriscou-se a até 20 anos de interdição de praticar a justiça.” [Nossa tradução]11. “strates des représentations mémorielles” [Nossa tradução]

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

Por exemplo, os cartazes da propaganda franquista estão num corredor, não há salas reservadas para eles, e apenas um número limitado de visitantes pode identificá-los claramente e interpretá-los. A cenografia permite que sejam vistos, porém não os musealiza. Claramente, é difícil para as instituições públicas condenar o franquismo, já que isso faz parte das reivindicações memoriais que atualmente dividem o espaço público e os espaços políticos. Essas reminiscências que atualizam e restauram a memória são políticas e não apenas históricas (Davallon, 2006). Há aí um problema de posicionamento recorrente nesse tipo de contexto entre a memória e a história. De acordo com Julio Arostegui, a questão da memória é, nesse caso, muito forte, uma vez que as testemunhas dessa história ainda estão vivas para testemunhar:

[...] Há um fluxo contínuo da memória entre gerações, sucessivas ou comuns (não há apenas memórias sucessivas, mas também memórias entre as gera-ções ou contemporâneas), uma interação entre as gerações que vivem entre a memória individual e coletiva, uma elaboração mais ou menos finita de uma memória histórica, sem as quais um discurso histórico com base em suas pró-prias experiências não seria possível12 (Arostegui, 2007, p. 38).

Em conclusão, pode-se perguntar se o processo de patrimonialização poderá ocorrer enquanto a memória estiver sendo atualizada por repercussões memoriais no espaço público.

A relação entre testemunha e historiador no Museu da Resistência e da Deportação de Isère: rumo a uma patrimonialização acabada

Se a exposição de Guernica é um exemplo de patrimonialização da memória inaca-bada, a atualização da museografia do espaço dedicado à deportação no Museu da Resistência e Deportação de Isère revela, ao contrário, um processo de patrimoniali-zação que podemos qualificar hoje como acabada.

Em primeiro lugar, vale notar que o contexto histórico e memorial contemporâneo ligado à deportação em Isère é muito diferente do que acontece com o Guernica. De fato, o estado da investigação histórica sobre esse período, incluindo a publicação

12. “[...] il existe un flux continu de la mémoire entre générations, successives ou communes (il n’existe pas seulement des mémoires successives, mais aussi des mémoires intergénérationnelles ou contemporaines), une interaction entre générations qui vivent entre la mémoire individuelle et collective, une élaboration plus ou moins finie d’une mémoire historique, sans lesquelles un discours historique basé sur leurs propres expériences ne serait pas possible.” [Nossa tradução]

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

de um livro, Déportés de l’Isère,13 que recenseia da forma mais exaustiva possível os deportados políticos e deportados judeus de Isère, dá maior destaque à deporta-ção judaica, que, até então, era considerada secundária na historiografia dedicada à Resistência. O processo de reconhecimento dessa memória coletiva particular, ates-tado por um trabalho científico, contribuiu para acalmar um contexto memorial que, até 2006, parecia se definir em termos de concorrência entre memória da Resistên-cia e memória judaica sobre a deportação. Além disso, a abertura de novos arquivos a partir da década de 2000 ajudou a refinar e completar uma grande quantidade de dados.

Em seguida, esse contexto historiográfico, que poderíamos qualificar de acabado, se duplica num contexto memorial no qual as associações que apoiam as memó-rias dos resistentes também desaparecem, deixando um espaço maior para as asso-ciações de memórias dedicadas à deportação, em geral, aos Direitos Humanos e à memória judaica. Esse desaparecimento das testemunhas diretas da Resistência é acompanhado por um processo de reconhecimento, por parte dos historiadores, da dimensão afetiva de seu testemunho enquanto meio pertinente para transmitir esse acontecimento.

A atualização da deportação no MRDI, durante a modificação de alguns desses espa-ços, termina, assim, em 2008, num contexto científico e memorial pacificado.

Foi no início de 2006 que o Museu da Resistência e da Deportação de Isère, em Gre-noble, decidiu atualizar a sala dedicada à deportação em sua exposição permanente e pretendeu atender, assim, a diversas exigências. A primeira é de ordem histórica, uma vez que o progresso da disciplina torna caducos alguns dados da exposição. A segunda é de ordem tecnológica. A cenografia museal contemporânea integra!cada vez mais elementos audiovisuais para se adaptar a uma nova geração de visitantes acostumada a conviver com imagens em movimento. A terceira é de ordem simbó-lica. Por um lado, essa terceira exigência diz respeito à memória do Holocausto (a Shoah), que até agora não tinha se tornado um objeto de atenção especial na sala dedicada à deportação. De acordo com o curador, essa é a consequência da escolha que havia sido feita, no seio do comitê científico, para se conceber uma representa-ção geral da deportação num contexto de memórias concorrentes. Por outro lado, a atualização é realizada quando os últimos sobreviventes, especialmente os últimos fundadores do museu, estão desaparecendo.

Esse processo de atualização, concluído em abril de 2008, mostra uma abordagem museológica que, embora estando atenta à palavra de cada um dos atores envolvidos,

13. Déportés de l’Isère 1942-1943-1944, Presses universitaire de Grenoble, 2005.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

está se preparando para uma nova direção em sua missão. Nós podemos realmente falar de «quadro participativo», nas palavras de Goffman, para o quadro estabelecido pelo museu sobre as reuniões do comitê científico. Este é composto por represen-tantes de cada associação implicada pela deportação (comunidades resistentes e judaicas estão presentes com suas diferentes correntes memoriais), historiadores (a pesquisa em historiografia e a reflexão pedagógica são ambas representadas), pelo diretor da Associação dos Amigos do Museu e pela equipe do museu. A atuali-zação revela um novo compartilhamento de autoridade: os resistentes não têm mais reivindicações identitárias e as memórias estão pacificadas. Se era importante até agora atingir, por esse processo participativo, uma memória justa da Resistência e da Deportação, trata-se daqui para a frente de cuidar de sua transmissão.

Nesse contexto particular, propomos observar o testemunho daquele que o detém, a testemunha, em sua interação com o historiador no âmbito do comitê consultivo criado pelo museu. A nova escrita museal da deportação nos parece ser reveladora de um trabalho de patrimonialização agora possível na junção entre a história e a memória. Esse trabalho é realizado num momento-chave em que as testemunhas e, em especial, as testemunhas políticas e os fundadores do museu, começam a desaparecer.

Colocando em relação historiador e testemunha dentro de um comitê científico, o museu cria um espaço de comunicação que nos permite observar como esses dois atores interagem e se conectam, apesar de seus saberes diferentes sobre o mesmo acontecimento histórico. Para apreendê-lo, adotando um olhar antropológico, nos interessaremos pela última reunião do processo de consulta que aconteceu entre 2006 e 2008, como também pelas entrevistas individuais realizadas em paralelo.

Historiador versus detentor de memória: uma relação antagonista clássica

Um único historiador pôde estar presente nessa última reunião do comitê de con-sulta, e o primeiro comentário do curador de museu, logo no início na reunião – “... felizmente você está aqui” –, mostra a importância da presença desse ator para o museu. É também o primeiro locutor a ser interpelado pelo curador quando se trata de discutir os novos textos produzidos para o espaço.

O historiador, o único representante de sua disciplina, é solicitado pelo curador como garantidor da cientificidade, da precisão das mudanças que o museu pretende fazer. Isso indica, assim, aos outros participantes sua autoridade no assunto. Essa postura, favorecida pelo museu, mas também assumida pelo historiador, define um

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

pertencimento profissional do cientista e pesquisador e contribui para a construção de um certo compromisso de sua parte, para além da mera produção de conhe-cimento. A análise da transcrição da reunião serve para identificar nas intervenções do historiador uma variedade de termos e vocabulário que se referem a sua postura de historiador que representa um campo científico: recordar a cronologia; datas específicas; contextualização dos eventos históricos da deportação ocorrida em Grenoble, para além dos relatos anedóticos; cautela ou prudência em suas decla-rações quando o assunto não é sua especialidade; referências aos textos científicos produzidos. A ideia é de permanecer o detentor da objetividade científica, de uma história em busca da verdade. As intervenções para correção de uma data, ou um fato, na maioria das vezes dizem respeito à testemunha e são feitas num tom cordial, mas há pouca interação direta entre os dois. Pelo contrário, o que se vê é uma espécie de comunicação paralela, a transposição de uma relação clássica entre historiador e testemunha, um sendo dedicado à busca da verdade e o outro dedicado a uma missão de fidelidade à memória (Ricœur, 2001; Bedarida, 2005). O historiador responde à testemunha por meio de datas e estatísticas quando esta faz o relato de experiências vividas que, às vezes, adquire um caráter de anedota com relação ao tema discutido. A testemunha, por sua vez, destaca o seu estatuto único – é o único a ter experimentado a deportação – quando ele diz: “Será que todo mundo viveu esse período de 40-45? Não há ninguém que tenha vivido nesse período, você nasceu depois... bem...”. Ou ainda: “Eu ouvi e vi, e isso é tudo”14 (Testemunha ocular 1, Ata, reunião). A própria posição da testemunha ocular é, portanto, claramente reivindicada15 (Renaud Dulong, 1998). Dois tipos de conhecimento sobre a deportação coexistem em paralelo e não parecem realmente se encontrar, ou até mesmo se compartilhar. É o museu que os convoca, de um lado, para validar a abordagem com o historiador, e de outro, legitimar seus documentos.

A observação dessas duas posturas, a do historiador-cientista e a da testemunha portadora de memória, permite começar a entender como se compartilha a autoridade dentro da reunião e como o historiador constrói uma postura mais complexa do que a do simples cientista, enquanto a testemunha ainda permanece o detentor de uma experiência individual e o último representante vivo do espírito da Resistência e da experiência de deportação. Encontramos essa relação, algo desconfiada, entre historiador e testemunha, durante a entrevista. Há por vezes

14. “Est-ce que tout le monde a vécu cette période 40-45!? Y a personne qui a vécu cette période, vous êtes nés après… bon…” “Je l’ai entendu et je l’ai vu, c’est tout.” [Nossa tradução]15. No uso comum do testemunho, trata-se do “j’y étais (eu estava lá)” (Dulong, 1998, p. 55-57), que carrega essa marca do compromisso e que constitui implicitamente na linguagem uma condição de certificação e uma responsabilidade futura. Além disso, essa declaração testemunhal ocorre num espaço dialógico que requer que o relato seja ouvido por outras pessoas e, que seja especialmente cru. [Nossa tradução]

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

até uma certa condescendência quando o historiador chama as testemunhas de “pequenos portadores de memória” (Historiador 1, verbatim, entrevista). Depois, na entrevista, o historiador lembra os conflitos memoriais que abalaram a escrita da história da memória da Resistência e Deportação. Isso recoloca as interações com as testemunhas num longo período de tempo e permite ao historiador sublinhar que essas querelas – devidas, no momento, às várias afiliações políticas dos diversos deportados resistentes –, tornavam ainda mais necessárias as intervenções do historiador como um meio de resolver e substituir a escrita da deportação em sua relação com o passado. Ele destaca a importância dos dados científicos como um meio para combater os relatos memoriais de testemunhas quando essas narrativas podem derivar ou ser indevidamente influenciadas pelo presente (notadamente pelas afiliações e papéis políticos de algumas das testemunhas envolvidas no museu). Temos a sensação de que a ligação testemunha-historiador foi, por vezes, colocada no registo do confronto. Uma das estratégias do historiador era dispor de muitos dados históricos no sentido de compensar a dimensão experiencial e partidária da testemunha. Segundo o historiador, o fato de não ser portador de memória garante-lhe uma certa liberdade de expressão, até mesmo, implicitamente, no seu discurso em prol de uma objetividade. Esse aspecto é fortemente enfatizado durante a entrevista individual. A partilha do conhecimento ocorre raramente, e é sobretudo pedagogicamente que a autoridade da testemunha é reconhecida.

Essas duas posições não permitem de fato considerar a questão da transmissão, uma vez que estabelecem uma situação de comunicação sob o signo do confronto. Há duas formas de conhecimento que parecem se enfrentar aqui. Embora a testemunha seja ouvida e legitimada pelo museu, ela não é, contudo, considerada pelo historiador, cujo ponto de vista é dominante e que ocupa uma posição clássica de perito. Essa postura é reforçada implicitamente pelo museu pelo modo como se comunica com ele nas reuniões. Apesar da legitimidade da testemunha dentro desses comitês, a des-confiança impera do lado do historiador, e reencontramos, assim, uma configuração típica em que história e memória são quase antagonistas. Se a vontade do museu é construir colaborativamente um relato sobre a deportação, as entrevistas individuais confirmam, no entanto, que o saber legítimo está do lado do historiador e que a teste-munha está presente, sobretudo, para ser o representante dos valores da Resistência.

Historiador pedagogo e testemunha sensível: uma relação baseada na confiança e no reconhecimento

Duas outras posturas se desenvolvem em paralelo durante esse processo de atua-lização, especialmente durante essa mesma reunião (isso foi confirmado por entre-vistas individuais). Elas permitem repensar a relação do historiador e da testemunha.

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

O historiador científico funciona como um historiador professor, que faz, durante a reunião, intervenções motivadas pela busca da transmissão mais precisa desse difí-cil evento. A repetição da expressão “pedagogicamente” no começo de uma frase, a evocação do currículo ensinado na escola sobre a memória da deportação como justificativa para a escolha de textos ou imagens numa exposição, recordação dos interesses de um público adolescente por esse período marcam a preocupação e o interesse do historiador na questão pedagógica na transmissão dos saberes. O his-toriador demonstra também uma vontade de ser uma espécie de autoridade sobre o assunto. A testemunha, por sua vez, lembra a emoção contida no depoimento pre-sente na exposição, marcando, assim, a natureza sensível da memória, uma vez que está encarnada e figurada. Isso proporciona, portanto, a oportunidade que tem o público de entrar em contato mais diretamente com a experiência do campo de con-centração. Ambas as posturas permitem aos dois atores se encontrar e construir uma relação determinada pela confiança e respeito um pelo outro.

Estamos no coração da questão da transmissão patrimonial para as gerações futu-ras, e podemos aí ver se esboçar uma ligação entre as duas posturas, que ocorre em torno de uma confiança mútua. Esse aspecto pedagógico destaca no historiador o seu compromisso enquanto profissional da História atuando no espaço público. Den-tro do museu, ele pode colocar em prática seu trabalho em prol de uma iniciativa de vulgarização científica, mas também como cidadão, defendendo e compartilhando certos valores herdados da Resistência. Reencontramos a dualidade entre a postura de historiador e pedagogo, e entre a postura de cientista e pesquisador, zelando pela objetividade do saber, não só apresentado, mas enunciado pelos outros atores!; e a postura do professor, vendo no museu uma extensão materializada do que ele ensina na sala de aula. Essas duas posições são endossadas com base em questões abor-dadas durante a reunião, colocando em cena a complexidade intrínseca ao processo de patrimonialização que implica pensar o que nos une no sentido de criar um patri-mônio da história da deportação.

Mas, ainda mais, há uma consciência de ambos os lados do desaparecimento de testemunhas oculares. Para a testemunha, a presença do historiador e a confiança adquirida dentro do museu o tranquiliza com relação à transmissão de sua experiên-cia da deportação.

“Agora a gente pode morrer” (Curador, Verbatim, entrevista 2)16. Essa frase emitida por uma testemunha resume a confiança que deposita no museu, mas significa mais do que isso. A questão da transmissão pode enfim ser feita, uma vez que houve o

16. Extraído de uma entrevista realizada no final do processo de atualização com o curador, que faz aqui o papel de retransmissor da palavra de testemunhas envolvidas no processo de consulta.

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

reconhecimento de uma experiência e de uma fala portadora de memória. Reconhe-cimento também de um estatuto privilegiado no seio do museu, visto que se trata de início de um museu fundado por ex-combatentes resistentes e pelos deporta-dos. O fato de dar um lugar à memória judaica da deportação por ocasião da atu-alização do espaço foi totalmente aceito pelos resistentes políticos, que veem isso como uma maneira de construir uma narrativa histórica justa (Ricœur, 2005) e de garantir, assim, a plena legitimidade de suas palavras dentro de um espaço dedicado à deportação, que agora atualizado, oferece uma narrativa histórica mais próxima dos últimos dados científicos. Desta feita, o fato de que isso ocorreu antes de seu desaparecimento tranquilizou-os quanto à continuidade de sua presença no museu, materializada pelos arquivos, testemunhos, mas também, de modo implícito, pela promessa feita pelo curador de continuar a trabalhar e a produzir exposições eco-ando os valores da Resistência. Essa promessa é encampada pelo historiador, que adere a esses valores e reconhece que a testemunha – e, assim, o testemunho –, é totalmente necessária e legítima na mediação museal de uma história sensível relacionada a um evento traumático. Ao se introduzir a questão dos valores, é a ques-tão do patrimônio que é convocada. Além das alterações de textos, do reequilíbrio das memórias políticas e judaicas ou das melhorias tecnológicas introduzidas no novo espaço, o museu repensa um novo relato a ser transmitido sobre a deportação, entre história e memória. Pensar a transmissão implica fornecer um olhar não ape-nas sobre o passado, mas sobre o presente ou o futuro; olhar inerente a uma abor-dagem patrimonial (Schiele, 2005). Esse olhar voltado para o futuro permite que o historiador e a testemunha se encontrem a fim de superar a divisão tradicional entre história e memória. O historiador assume uma postura como pedagogo e junta-se à testemunha para decidir o que interessa apresentar às novas gerações, aceitando, assim, a dimensão afetiva e sensível do testemunho como forma de mediar uma história difícil. O fato de adotarem um olhar voltado para o futuro permite que os dois atores se encontrem e criem um relacionamento baseado na confiança necessária à construção compartilhada dessa nova narrativa da deportação.

Um processo de patrimonialização acabada

A historiografia avançada sobre o assunto e o contexto memorial apaziguado, gra-ças ao reconhecimento das diferentes memórias, políticas (resistentes) e judaicas, da deportação, permitiram considerar, em 2008, a questão da transmissão no processo de consulta estabelecido pela MRDI. Até então, tratava-se de mediatizar no museu uma história da deportação que não dispunha de todos os arquivos disponíveis para ser capaz de se escrever. Além disso, tratava-se também de mediatizar uma memória, de um lado, fortemente agitada por concorrências memoriais entre as diferentes tonali-dades políticas das associações resistentes e, de outro, parcial, evocando tenuament e

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a memória judaica ligada ao acontecimento. Esse longo processo, estabelecido desde a abertura do museu em 1994, atingiu atualmente um limite com o desaparecimento de testemunhas oculares e originou a possibilidade de um trabalho de luto inerente a um processo patrimonial. Trata-se de inscrever o passado no presente.

[...] A escrita desempenha o papel de um rito de enterro, ela exorciza a morte, inserindo-a no discurso. Por outro lado, tem uma função simbolizadora; ela permite a uma sociedade se situar, ao se atribuir na linguagem um passado, e assim ela abre no presente seu próprio espaço: “marcar” um passado é dar um lugar ao morto, mas também redistribuir o espaço dos possíveis, determinar negativamente o que está por fazer e, por conseguinte, utilizar a narratividade que enterra os mortos como um meio de fixar um lugar para os vivos17 (De Cer-teau, 1975, p. 140).

De Certeau refere-se aqui à escrita da história que produz um discurso científico sobre o passado e tenta restituir uma parte ausente, realizar um trabalho de luto, para encenar uma população de mortos. Quase se poderia dizer que o museu, expondo e arquivando os testemunhos dos membros do comitê, considerava-os por antecipação como mortos, enquanto as testemunhas podiam ver esse processo de musealização de suas palavras como uma promessa de eternidade, uma vez que se tratava de fixar suas palavras e transmiti-las às gerações futuras. A atualização da deportação constitui uma reviravolta no processo de patrimolialização. Essa nova narrativa, realizada num espaço de comunicação propício ao reconhecimento e à confiança entre historiador e testemunha, permite realmente se viver o luto e abrir um novo espaço para os vivos.

O tempo do patrimônio se parece um pouco com o do luto. E o trabalho do patrimônio é também semelhante ao trabalho do luto. É um tempo e trabalho para reinventar o sentido da vida, um momento em que se deve escolher entre o que será mantido, o que é descartado e o que é reinterpretado. Mas também podemos dizer que é um tempo para se sair da desesperança em que caem aqueles que não têm mais ninguém, o tempo para encontrar outra maneira de reformular o que nos une, e não só aos nossos contemporâneos mas também às gerações passadas e futuras18 (Micoud, 2005, p. 94).

17. “[…] L’écriture joue le rôle d’un rite d’enterrement!; elle exorcise la mort en l’introduisant dans le discours. D’autre part, elle a une fonction symbolisatrice!; elle permet à une société de se situer en se donnant dans le langage un passé, et elle ouvre ainsi au présent un espace propre!: ‘marquer’ un passé, c’est faire une place au mort, mais aussi redistribuer l’espace des possibles, déterminer négati-vement ce qui est à faire, et par conséquent utiliser la narrativité qui enterre les morts comme moyen de fixer une place aux vivants.” [Nossa tradução]18. “Le temps du patrimoine est un peu comme celui du deuil. Et le travail du patrimoine est aussi analogue au travail du deuil. C’est un temps et un travail pour réinventer le sens de la vie!; un temps

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MEMÓRIA E NOVOS PATRIMÔNIOS

Conclusão

Em ambos os casos que acabamos de analisar, constatamos que a relação entre a história e a memória estava no coração do processo patrimonial.

No caso de Guernica, o objeto-testemunho(s) não pode transitar em direção a uma patrimonialização acabada enquanto as agitações memoriais interferirem com a escrita da história. Vimos que cada uma das exposições tem uma ressonância com um acontecimento do passado. Elas reativam, assim, as memórias coletivas e rea-tualizam a memória social do testemunho. O curador – que ajuda a dar um estatuto e um uso diferente segundo a cenografia que propõe – não pode ocupar a função de historiador, mesmo que seja um cientista. O conservador refere-se a história da arte e não a do seu país, suas escolhas museográficas também não são o resultado de comitês de consulta, como os referidos no segundo caso. De alguma forma, no processo de patrimonialização do objeto-testemunho(s) Guernica, há a carência da história, e a patrimonialização não pode ser concluída sem a sua presença e valida-ção. Mas é provável que essa ação só possa ser feita quando as tensões políticas, sociais e memoriais forem apaziguadas na Espanha.

No caso do Museu da Resistência e Deportação de Isère, estamos assistindo a um processo da memória da deportação bem-sucedida e que se tornou possível graças a um contexto histórico e memorial apaziguado. As reivindicações memoriais foram ouvidas; a historiografia do período foi escrita num contexto social em que a depor-tação não é mais uma questão importante no plano político, uma vez que seu reco-nhecimento e sua institucionalização foram realizados. E parece-nos que estas são as condições necessárias para pensar a transmissão de uma memória traumática contemporânea na junção da história com a memória. Observamos que a perspec-tiva patrimonial engajada pelo museu permitia que as duas formas de conhecimento sobre esse período coexistissem sem conflitos. Eis o que pudemos constatar com relação à ligação entre historiador e testemunha que, ao adotar um olhar para o futuro iniciado pelo museu, foram capazes de se unir para construir em conjunto um relato patrimonial sobre a Deportação.

Além do fato de que a presença do historiador ou a existência de uma historiografia escrita e partilhada pela comunidade científica (no caso do Guernica) é uma das con-dições necessárias à possibilidade de patrimonializar uma memória difícil, parece-no s

où il faut choisir entre ce que l’on garde, ce que l’on jette et ce que l’on réinterprète. Mais l’on peut dire aussi que c’est un temps pour sortir de la déréliction qui échoit à ceux qui n’ont plus de liens!; le temps pour trouver une autre manière de redire autrement ce qui nous relie, pas seulement à nos contemporains mais aussi aux générations passées et à venir.” [Nossa tradução]

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SEGUNDA PARTE. ANÁLISES DE CASOS

que, in fine, o contraste entre as duas situações deve-se em grande parte a uma questão de temporalidade. A exposição do Guernica parece lutar com uma relação com o tempo que se alterna entre o presente e o passado, sem ser capaz de consi-derar um futuro como resultado de um passado que ainda não foi historicizado. No segundo caso, com o desaparecimento das testemunhas oculares, assistimos à his-toricização desse passado, o que permite apresentar uma narrativa compartilhada, validada tanto pelo historiador quanto pela testemunha dentro da instituição museal. Isso dá a oportunidade de sair de um pavor esclerosante do passado para considerar um imaginário social no presente, ou seja, de organizar “o tempo coletivo no plano simbólico” (Baczko, 1984, p. 35). Uma visão de futuro pode então encontrar o seu lugar, reflexo das projeções e esperanças coletivas.

Figura 8. Contexto do processo de patrimonialização

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Posfácio. Memória do patrimônio ou patrimônio “lembrete”?

Christine Bouisset e Isabelle DegrémontTraduzido do francês por Germana!Henriques!Pereira!de!Sousa

O patrimônio nunca foi tão atual: convocado, comunicado, exposto, organizado, seu interesse segue crescendo em todos os setores da sociedade, tanto individualmente quanto coletivamente. Desde a noção jurídica, erigida no século X, que manifesta o desejo de transmitir os bens da família, até aquela noção, mais contemporânea e societal, que desenvolve a ideia de um patrimônio comum material ou imaterial a ser transmitido para as gerações futuras, percebemos como o patrimônio é um verda-deiro construto social. A qualidade patrimonial surge dessa diversidade de conside-rações, de pessoas e de estruturas, o que tem aumentado o número, o conteúdo e a extensão dos bens considerados. O patrimônio é, portanto, tudo o que alguém diz e faz a respeito dele.

Esse fenômeno plural é, assim, cada vez mais utilizado com diversos objetivos: das políticas coletivas públicas às práticas culturais individuais de amadores. Claro, nas representações, o patrimônio continua sendo para muitos uma questão para as polí-ticas públicas. A partir do século XIX, nos países ocidentais, as políticas públicas se apoderaram do objeto, de início, material, para construir uma identidade coletiva ima-terial baseada na ideia de nação. Portanto, as políticas públicas nacionais – museais, de proteção às construções ou lugares naturais, para citar apenas as mais antigas –, se voltaram para o patrimônio. Foi “necessário” construir a identidade coletiva de um povo, de uma nação, reunindo-se os diferentes grupos sociais que os constitui. Os critérios de seleção, muitas vezes históricos, foram estabelecidos definindo-se o que fazia ou não parte do patrimônio e lançando-se as primeiras bases de um certo modo de definir e construir socialmente o patrimônio. Contudo, sem necessariamente questionar a constituição patrimonial oficial, o entusiasmo popular pelo patrimônio, tanto em relação aos seus componentes materiais (sítios, paisagens, monumentos de prestígio ou mais vernaculares) quanto em relação aos imateriais (como o saber-fazer, por exemplo), questiona atualmente os valores e os critérios oficiais de seleção do mesmo.

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Memória e novos patrimônios revela-nos, assim, com acuidade, esse desenvolvimento e esse interesse contemporâneos pelo patrimônio, notadamente pelo imaterial, em que o valor de memória popular torna-se mais importante que o valor histórico (ou pelo menos é destacado entre todos os mencionados) na construção patrimonial de um bem. Se as contribuições, francesas e brasileiras, mostram o olhar universal das sociedades em relação ao seu passado, elas estão preocupadas principalmente em compreender o peso, cada vez mais importante, da memória social na construção patrimonial. Essa preocupação cultural, que é atrelada particularmente à memória coletiva, é, atualmente, quase mundializada1 e parece possuir um amplo consenso. Ela mostra, de modo evidente, que o foco está agora em algumas formas do passado para construir um patrimônio. Ora, é aí que reside todo o interesse da obra Memória e novos patrimônios. De fato, se A. Riegl já havia pressentido que na família dos valores ligados ao passado2 o valor da Antiguidade (em que o passado é antes compreendido como uma ambiência por um indivíduo, o que a posiciona na dimensão individual do sensível e da emoção) prevaleceria no século XX sobre o valor da história (conside-rada como um verdadeiro valor científico, uma vez que é construído com base numa demonstração detalhada da singularidade do objeto patrimonial), essa passagem de tocha entre história e memória faltava ser estudada em detalhe, especialmente num processo de confrontação/comparação entre duas culturas distintas.

Além disso, Memória e novos patrimônios reconcilia memória e história ao se inte-ressar por suas mídias, aqui consideradas etimologicamente como um meio técnico, e também como um elo temporal entre o objeto original e sua constituição, a pos-teriori, como patrimônio por um maior número possível (o que demanda um esforço de vulgarização e de clareza de seu conhecimento). Essas mídias, em toda sua diver-sidade, intercedem, portanto, junto a elementos provenientes do passado e na sua transformação em patrimônio nos momentos seguintes. Ora, as contribuições da obra demonstram o quanto estamos em presença de um novo processo de patrimo-nialização, já que o valor memorial é ainda mais rico e, por isso, não há necessidade de se fazer escolhas drásticas na sua seleção, tendo em vista a multiplicação e a

1. É assim que as políticas internacionais de proteção patrimonial desenvolvidas pela UNESCO mostram a emergência desses novos valores, por exemplo, por meio de “paisagens cultu-rais” que combinam critérios culturais e naturais, ou ainda em torno do “patrimônio imaterial”, quando se afirma o seguinte: “o patrimônio cultural não se limita a manifestações tangíveis, tais como monumentos e objetos que foram preservados ao longo do tempo. Também engloba as expressões vivas, as tradições que inúmeros grupos e comunidades em todo o mundo herda-ram de seus antepassados e transmitem aos seus descendentes, muitas vezes oralmente.” Disponível em: http://portal.unesco.org/culture/fr/ev.php-URL_ID=34325&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html, consultado em 30 de mars de 2012.2. A partir de uma análise do culto dos monumentos históricos, Riegl desenvolveu uma classificação de valores patrimoniais baseada em duas grandes famílias: os valores de recordação e os valores de uso. Na primeira categoria, ele insiste nos valores de comemoração, de história e de Antiguidade. Na segunda categoria, ele destaca os valores estéticos e de usos contemporâneos (RIEGL, [1903] 1984).

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diversidade dessas mídias. Esta é uma nova forma de abordagem da memória social e coletiva pelo indivíduo, que, por vezes, resulta até mesmo numa patrimonialização dos suportes, como aconteceu no caso de fotografias antigas.

A problemática desta obra, que associa as memórias e o patrimônio, permite, desse modo, desenvolver um debate fecundo que permanece muito aberto, sobretudo no que diz respeito a questões como: a memória diante da temporalidade do patrimônio, mas também em face dos jogos complexos entre a coletividade e os indivíduos num contexto de mundialização patrimonial. Isso prova também o interesse do patrimônio na construção de uma relação cordial e interessada pelos outros: uma certa forma de alteridade caracteriza, assim, o patrimônio num mundo de mobilidades e de trocas.

Temporalidade, história ou memória do patrimônio: uma questão de saberes?

O patrimônio se partilha tanto quanto se defende. Ele teria valor para muitos, que o qualificam como patrimônio, tanto inicialmente quanto em sua evolução tempo-ral? De qualquer forma, a compreensão do processo de patrimonialização passa por questões como: “Quem patrimonializa?”; “Quem detém o discurso e os argumentos para a construção patrimonial?”. Finalmente, a pergunta “Quem detém o saber patri-monial?” continua a ser também, fundamental. Essa constatação leva, naturalmente, a indagar qual é a relação entre os saberes populares e os técnico-científicos na justificação patrimonial com o passar do tempo e durante a evolução das diferen-tes relações de uma sociedade com seu passado. O começo do fenômeno de patri-monialização foi, sem dúvida, colocado sob o signo dos saberes técnico-científicos, muitas vezes externos à sociedade que havia criado o objeto para usos específicos. Os pesquisadores, em particular os historiadores, têm desempenhado, muitas vezes, o papel de especialista, de modo a justificar cientificamente o interesse patrimonial e, assim, institucionalizar a conservação de patrimônios nacionais com as primeiras medidas de proteção no final do século XIX, sobretudo no começo do XX (e, então, a partir da metade do século XX, dos patrimônios internacionais), resultando na escolha e também na seleção de patrimônios baseada em comprovados critérios histórico-científicos. Mas, quem diz “seleção”, diz também “arrependimento” por não ter patri-monializado a tempo ou por não ter patrimonializado o suficiente. Os historiadores, juntamente com L. Réau (1994), por exemplo, foram também os primeiros a escrever sobre esta não seleção dos objetos, considerados, contudo, por eles de interesse científico. Essas políticas públicas patrimoniais, além de seu interesse na construção de uma nação e de uma forte identidade nacional – como demonstraram A. Chas-tel (1990) e P. Nora (1986) sobre os lugares de memória –, baseiam-se num forte

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entusiasmo popular ilustrado, tanto em termos de discursos quanto de práticas, por meio de uma verdadeira adoração das coisas do passado a serem transmitidas às futuras gerações. Além disso, ainda mais tardiamente do que se fazia supor seu papel de especialistas, os historiadores têm tentado explicar o entusiasmo em relação ao patrimônio. Naturalmente, nos referimos aos precursores J.-P. Babelon e A. Chastel na década de 1980, que, por meio do texto intitulado “La notion de patrimoine”, expli-cam a chegada do entusiasmo patrimonial pela mudança de contexto social, ou até mesmo de modelo de sociedade. É, portanto, uma sociedade moderna que ganhou ímpeto no século XVIII, que está construindo para si uma nova relação com o passado ao privilegiar coletivamente (especialmente em âmbito nacional) certos patrimônios. Inegavelmente, o patrimônio está ligado à modernidade de nossas sociedades. Desse modo, é surpreendente constatar as poucas observações em que o comportamento e as representações da sociedade civil são objeto de interesse. Porém, o patrimônio é considerado patrimônio graças ao interesse desta última. As memórias individuais e coletivas ocupam cada vez mais espaço nos saberes populares do que nos conhe-cimentos científicos.

Entre indivíduos e coletivos, entre subjetividade e objetividade: qual é o espaço-tempo do patrimônio?

As contribuições mostram, de fato, o surgimento da questão da passagem do indiví-duo ao coletivo no processo de patrimonialização. Os valores (presentes no registro do discurso) se transformam em critérios quando o patrimônio é oficialmente con-servado pelo coletivo. Podemos, portanto, indagar sobre a passagem sucessiva entre valores subjetivos (dos quais a memória faz parte de modo amplo) do indivíduo diante de um objeto “patrimonializável” e critérios coletivos de seleção (baseados, sobre-tudo, na história e na memória verdadeiramente coletivas) do objeto que se tornou, por exemplo, um patrimônio nacional ou internacional. Inversamente, de que modo o processo se torna normativo e induz o indivíduo, por parte do coletivo, a um modo de pensar? O patrimônio pode, muitas vezes, ser visto como um discurso simples, relacionado a uma retórica. Mas o aumento crescente do patrimônio leva a ques-tionar a relação entre discursos, políticas e ações sobre o espaço. Se o patrimônio é solicitado, visitado e vivido, ele deverá ser, portanto, um lugar público organizado ou ser exposto num local dessa natureza. Assim, o patrimônio está ligado às ações temporais ou espaciais, em que profissionais, políticos e público se encontram. Ao se perguntar como as pessoas se apropriam, se identificam com os patrimônios e, portanto, como identificam os patrimônios, a problemática patrimonial não pode fazer economia de uma reflexão sobre a identidade territorial sustentada por essas representações, essas práticas e essas políticas. Na verdade, a memória individual

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e coletiva em matéria de patrimônio continua a ser um forte elemento de identidade cultural. Ora, a identidade possui geralmente uma dimensão espacial, territorial, mui-tas vezes invocada no patrimônio – os já citados “lugares de memória” [lieux de mémoire] de P. Nora, os altos lugares [hauts lieux] de J.L. Piveteau (1995) e recente-mente, a relação entre memórias e territórios de A. Sgard (2007) ou ainda a identi-dade e o território de B. Debarbieux (2006), por exemplo!–. Essa dimensão identitária não é isenta de contradição com relação ao processo de patrimonialização discu-tido acima. De fato, a identidade cultural é paradoxalmente o que é semelhante e diferente ao mesmo tempo. De um lado, a identidade evoca uma certa unidade, de outro, ela se refere ao que é único, e portanto, diferente dos outros. Mas a memória territorial baseada em elementos patrimoniais pretende, sobretudo, desenvolver uma diferenciação que não deixa de ter uma certa contradição com o universalismo do processo, especialmente em relação ao seu tratamento dispendido pelas políticas públicas de proteção.

Porém, Memória e novos patrimônios lembra que o espaço-tempo que envolve o patrimônio não pode tampouvo ignorar um debate sobre seus ritmos temporais no espaço. Podemos dizer que, para o patrimônio, o tempo parou? O patrimônio é fixo num espaço, um lugar a partir de um tempo escolhido? A pergunta não é insignifi-cante, especialmente no que diz respeito à patrimonialização dos objetos mutáveis que dependem da memoração de costumes vindos do passado de uma sociedade: esses costumes estão condenados a sobreviver em nome das raízes mesmo que seu uso não exista mais no cotidiano? A memoração que conduz à patrimonialização, já que tende a fixar o objeto, levaria também necessariamente à transformação de costumes em tradições, isto é, em objetos invariáveis, estáveis, formalizados e se prestando à repetição? Para usar a definição de E. Hobsbawm: “O costume tem a dupla função de motor e de volante. Ele não exclui, até certo ponto, a inovação e a mudança” (Hobsbawm, 1995). A tradição não se transformaria em folclore com uma redescoberta ou reconstrução, mais ou menos realista e mais ou menos ideoló-gica, dos costumes perdidos e redescobertos...? A questão da autenticidade surge, então, com bastante acuidade e pode, por conseguinte, desafiar a patrimonialização da memória.

O tríptico costume, tradição e folclore também testemunha o fato de que a patri-monialização pressupõe etapas temporais. A primeira etapa, finalmente, não está relacionada com a qualidade patrimonial: temos objetos e os elementos que pos-suem um ou mais usos. Ora as etapas seguintes da patrimonialização mostram que esses objetos e esses elementos tornaram-se obsoletos, ora são de difícil funciona-mento, uma vez que estão ameaçados de extinção (daí a urgência de conservá-los ou de protegê-los). Se a memória e suas mídias permitem evitar o desaparecimento

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e, desse modo, patrimonializar mais, então o espaço-tempo do patrimônio se tornará ainda mais perturbado. Chegamos a uma certa contradição espaço-temporal que deve assumir a coexistência crescente, numa mesma época e num mesmo local, de objetos que podem se desdobrar, uns fixados pela memória, outros ainda em evolução nos usos contemporâneos. O espaço e o tempo das sociedades são, assim, cada vez mais questionados: o contexto atual de debate em matéria de desenvolvi-mento durável e de sua globalização está efetivamente agitando as lógicas societais de representação e de gestão. As sociedades estão mais preocupadas com sua pere-nidade e perguntando-se sobre a duração de sua vida: sua própria existência é ques-tionada quando se projetam no futuro. A reflexão sobre o passado e suas supostas raízes ficam ainda mais intensas.

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What is Memoryshare?, http://www.bbc.co.uk/humber/content/arti-cles/2008/01/15/02_memory_share_what_feature.shtml, consultado em 15 de janeiro de 2012.

228

Comunicações publicadas em anais de colóquios

ARSENAULT Daniel, 1990, «!Re-présenter le passé. Le problème de l’exposition des col-lections précolombiennes», Museologie et champs disciplinaires. Exposer le savoir, savoir exposer, Actes du colloque, 15 mai, Université de Laval, Québec, Musée de la civilisation, p.!79-96.

DODEBEI Vera, GOUVEIA Inês, 2007, «Organisation et préservation de l’information. Questions posées à l’expérience de virtualisation des musées brésiliens», 6e Collo-que International du Chapitre Français de l´ISKO, Organisation des connaissances et societé des savoirs: concepts, usages, acteurs, Actes du colloque, 7-8 juin, Gerard Regimbeau et Viviane Couzinet (dir), Toulouse, Université Paul Sabatier, p.!293-307.

DODEBEI Vera, 2007, «Museu e memória virtual», Museus, ciência e tecnologia: livro do Seminário Internacional, José Neves Bittencourt, Marcus Granato, Sarah F. Benchetrit, Rio de Janeiro, Museu Histórico Nacional.

DUARTE Luiz Fernando, 2000, «Uma natureza nacional: entre a universalização cientí-fica e a particularização simbólica das nações», MHN, Anais, RJ.

GOLVIN Jean-Claude, 2003, «!Le rôle de la restitution architecturale dans l’étude des temps de Dougga!», L’Afrique du Nord antique et médiévale, VIIe colloque sur l’histoire et l’archéologie de l’Afrique du nord antique et médievale, Actes, M. Khanoussi et al., Tabarka, 8-13 mai 2000, Tunis, p.!471-489.

GOUDINEAU Claude et LEQUEUX Brigitte, 1988, «!Vulgarisation, transposition, fiction!», VIIIe rencontres internationales d’archéologie et d’histoire. L’archéologie et son image, Actes, Antibes, Octobre 1987, Juan les Pins, Éditions APDCA, p.!139-140.

GOULETQUER Pierre, 1988, «!La préhistoire mise en scène!», VIIIe rencontres internatio-nales d’archéologie et d’histoire. L’archéologie et son image, Actes, Antibes, Octobre 1987, Juan les Pins, Éditions APDCA, p.!165-183.

KAESER Marc-Antoine, 2002, «!L’autonomie des représentations, ou lorsque l’imaginaire collectif s’empare des images savantes. L’exemple des stations palafittiques! », Lebensbilder-Scènes de vie. Colloque de Zoug, Actes, 13-14 mars 2001, Lausanne, Documents du GPS, n° 2, p.!33-40.

LEITE Renata Daflon, DODEBEI Vera, 2009, «Memória criativa na blogue-esfera entre as esferas pública e privada da internet», VI Congreso de la Cibersociedad 2009, Crisis

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analógica, futuro digital, Anais, 12 a 22 de novembro de 2009, Madrid (sede física), Observatorio para la Cibersociedad, vol.!1, p.!1-22.

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MELOT Michel, 2007, «!Mémoire et numérisation!», IIIe Colloque international icône-image, musées de sens. Image et mémoire, Actes, 6-8 juillet 2006, Éditions Obsi-diane!/!Les Trois P, p.!157-165.

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RIBEIRO Leila Beatriz, COSTA Thainá Castro, 2010, «Do lixão ao futuro: os aterros de objetos cotidianos, a informação e o descarte na narrativa fílmica Wall-E», VII Simposio de Historia «O passado no presente: reflexões sobre os usos da historia», Anais, São Gonçalo, RJ, Universidade Salgado de Oliveira/Universo.

Documentários cinematográficos

MATOS JR. Décio (dir.), 2007, Fabricando Tom Zé, BRA, 89 min., sonoro, colorido.

FONTENELLE Paulo Henrique, (dir.), 2008, LoKi - Arnaldo Baptista, BRA, 120 min., sonoro, colorido.

ABUJAMRA Marco e PIMENTEL João (dir.), 2008, Jards Macalé – Um morcego na porta principal, BRA, 71 min., sonoro, colorido.

MANUEL Claudio, Langer Micael e Leal Calvito (dir.), 2009, Simonal – Ninguém sabe o duro que dei, BRA, 90 min., sonoro, colorido.

TERRA Renato, CALIL Ricardo (dir.), 2010, Uma noite em 67, BRA, 2010, 93 min., sonoro, colorido.

230

Sobre os autores

Abreu, Regina

Professora associada I do Programa de Pós-Graduação em Memória Social Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro !- Unirio. Doutora em Ciências Humanas!/ Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro!/ UFRJ!/ Museu Nacional. abreuregin@gmail.com CV!Lattes: http://lattes.cnpq.br/3730365381262450

Bouisset, Christine

Maître de conférences en géographie Université de Pau et des Pays de l’Adour Laboratoire SET – Société Environnement Territoire (UMR 5603 CNRS), Institut Claude Laugénie, domaine universitaire de Pau Doctorat de géographie christine.bouisset@univ-pau.fr http://web.univ-pau.fr/RECHERCHE/SET/INTRANET/fiche_identite.php?user=bouisset

Cendoya-Lafleur, Jessica

Doctorante du programme conjoint de doctorat international Muséologie, médiation, patrimoine entre l’UAPV (Avignon) et l’UQAM (Montréal) jessica.cendoya@gmail.com

Davallon, Jean

Professeur émérite en Sciences de l’Information et de la Communication Université d’Avignon et des Pays de Vaucluse Centre Norbert Élias (UMR 8562), Équipe Culture et Communication Jean.Davallon@univ-avignon.fr http://www.univ-avignon.fr/fr/recherche/annuaire-chercheurs/membrestruc/personnel/davallon-jean.html

Degrémont, Isabelle

Maître de conférences en géographie Université de Pau et des Pays de l’Adour Laboratoire SET – Société Environnement Territoire (UMR 5603 CNRS), Institut Claude Laugénie, domaine universitaire de Pau Doctorat de géographie isabelle.degremont@univ-pau.fr! http://web.univ-pau.fr/RECHERCHE/SET/INTRANET/fiche_identite.php?user=degremont

231

Dodebei, Vera

Professora associada IV do Programa de Pós-Graduação em Memória Social Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. Doutora em Comunicação e Cultura, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. dodebei@gmail.com CV!Lattes: http://lattes.cnpq.br/1112112146102164

Flon, Émilie

Maître de conférences en Sciences de l’Information et de la Communication Université Pierre-Mendès France (Grenoble 2) GRESEC (Université Grenoble Alpes) Doctorat en Sciences de l’Information et de la Communication

Freire, José Ribamar Bessa

Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Memória Social Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. Doutor em Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. bessa_18@hotmail.com CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/7211811266353518

Geiger, Amir

Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Memória Social Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. Doutor em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. amr.geiger@gmail.com CV!Lattes: http://lattes.cnpq.br/6912091873348755

Lavorel, Marie

Doctorante du programme conjoint de doctorat international Muséologie, médiation, patrimoine entre l’UAPV (Avignon) et l’UQAM (Montréal) marie.lavorel@gmail.com flon.emilie@gmail.com

Leite, Renata Daflon

Doutoranda em Memória Social do Programa de Pós-Graduação em Memória Social Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. Mestranda em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. renatadaflon@gmail.com CV!Lattes: http://lattes.cnpq.br/5639464012374862

232

Orrico, Evelyn Goyannes Dill

Professora associada II do Programa de Pós-Graduação em Memória Social Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro!– Unirio. Doutora em Ciência da Informação, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia!/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. orrico.evelyn@gmail.com CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4299342469360586

Ribeiro, Leila Beatriz

Professora adjunta IV do Programa de Pós-Graduação em Memória Social Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro!– Unirio. Doutora em Ciência da Informação, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ/ Instituto Brasileiro de Informação Científica e Tecnológica – IBICT. leilabribeiro@ig.com.br CV!Lattes: http://lattes.cnpq.br/4234602401995614

Silva, Sabrina Dinola Gama

Mestre em Memória Social Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. sadinola@yahoo.com.br

Tardy, Cécile

Professeure en sciences de l’information et de la communication Université Lille 3 - GERiiCO Doctorat en sciences de l’information et de la communication cecile.tardy@univ-lille3.fr

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Sumário

Introdução 7Cécile Tardy e Vera Dodebei

Primeira parte. Abordagens teóricas 19

Memoração e patrimonialização em três tempos: mito, razão e interação digital 21Vera Dodebei

Memória e patrimônio: por uma abordagem dos regimes de patrimonialização 47Jean Davallon

Patrimonialização das diferenças e os novos sujeitos de direito coletivo no Brasil 67Regina Abreu

Segunda parte. Análises de casos 95

O filme documentário como discurso de patrimonialização da música popular brasileira 97Evelyn Goyannes!Dill!Orrico, Amir Geiger e Sabrina Dinola!Gama!Silva

Patrimônio em rede: a cinza, a brasa e os direitos indígenas no Brasil 111José!Ribamar!Bessa Freire e Renata!Daflon Leite

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Patrimoniando o desmanche: coleções de inutilidades como uma metáfora capitalista 127Leila!Beatriz Ribeiro

A mediação de autenticidade dos substitutos digitais 143Cécile Tardy

As ilustrações do passado arqueológico: entre interpretação científica, testemunho e memória social 161Émilie Flon

Patrimonializar a memória da guerra no museu: entre História e testemunho 181Jessica Cendoya-Lafleur, Marie Lavorel e Jean Davallon

Posfácio. Memória do patrimônio ou patrimônio “lembrete”? 201Christine Bouisset e Isabelle Degrémont

Bibliografia geral 207

Sobre os autores 230

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