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CRISE E METAMORFOSE DA MODERNIDADE Filosofia da História FLUL Ano lectivo 2019-2020 Viriato Soromenho-Marques (Universidade de Lisboa) www.viriatosoromenho-marques.com 1

1 CRISE E METAMORFOSE DA MODERNIDADE · 2020-03-05 · METAMORFOSE DA MODERNIDADE Filosofia da História FLUL Ano lectivo 2019-2020 Viriato Soromenho-Marques (Universidade de Lisboa)

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CRISE E

METAMORFOSE DA

MODERNIDADE

Filosofia da História FLUL Ano lectivo 2019-2020

Viriato Soromenho-Marques

(Universidade de Lisboa)

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Pascal, Préface sur le Traité du Vide

(1651)

«… l’homme, (…) n’est produit que pour l’infinité. Il est

dans l’ignorance au premier âge de sa vie; mais il s’instruit

sans cesse dans son progrès: car il tire avantage non

seulement de sa propre expérience, mais encore de celle

de ses prédécesseurs… toute la suite d’hommes, (…) doit

être considérée comme un même homme qui subsiste

toujours et qui apprend continuellement…»»

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ÍNDICE DAS MATÉRIAS

• 1. A tradição intelectual do Ocidente. Os princípios

fundamentais.

• 2. Modernidade como projecto de emancipação e

autonomia. A novidade da ciência na sua orientação

tecnológica.

• 3. Três equívocos na interpretação das utopias

modernas.

• 3. Seis rupturas da modernidade.

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1

A Tradição intelectual do

Ocidente: Os Princípios

Fundamentais

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tradição intelectual do Ocidente (1)

• Princípio da unidade: Todas as grandes questões têm uma resposta única e verdadeira.

• Princípio da transparência: as respostas verdadeiras são cognoscíveis. Sucedâneo prático: «a humanidade só coloca a si mesmo tarefas que pode resolver» (Marx).

• Princípio da harmonia: todas as respostas verdadeiras são coerentes entre si, formando um sistema.

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tradição intelectual do Ocidente (2)

• O dilema Cultura<>Natureza: ou se adapta a natureza às necessidades da cultura (Epicuro a Marx); ou se adapta as necessidades da cultura às condições de possibilidade da natureza. Correlato prático; relação entre Liberdade e Necessidade.

• Princípio da estabilidade: a natureza humana e a sua finalidade essencial eram dadas uma vez por todas.

• Princípio da limitação: qualquer acção humana, mesmo de co-criação (Pico), encontrava-se limitada pela impossibilidade técnica de uma «Segunda Criação».

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2

Modernidade como projecto de

emancipação e autonomia:

a novidade da ciência na sua

orientação tecnológica.

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O programa da Modernidade…

“Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente deejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por lei por nós prescritas.

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…A co-criação da humanidade

Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás [a tua natureza] para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as besdtas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo." (50-53) G. Pico Della Mirandola, Discurso sobre a Dignidade do Homem (1486)

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A Modernidade como história comum

"(..) Só se existe a história é que se pode falar de progresso. Pois bem, a modernidade, na hipótese que proponho, termina quando -- por múltiplas razões -- já não parece possível falar de história como qualquer coisa de unitário. De facto uma tal visão da história implicava a existência de um centro em torno do qual se recolhem e se ordenam os acontecimentos(8) Gianni Vattimo, A Sociedade Transparente/La Societá Transparente (1989).

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A razão técnica como força motriz

• 1- RAZÃO TÉCNICA: " (...) uma das rupturas de que Galileu e Descartes serão os grandes obreiros, reside na passagem duma razão estética para uma razão técnica(...)"(76).

• 2-CONHECER E CONSTRUIR:"(...)o modelo maquinal domina toda a epistemologia galilaica, na qual se cruzam, duma maneira extremamente fecunda, dois tipos de inteligibilidade, a matemática e a mecânica, cuja essência gnosiológica é precisamente a mesma: o homem só conhece verdadeiramente aquilo que ele próprio constrói." (78-79). João Maria ANDRÉ, Renascimento e Modernidade- Do poder da magia à magia do poder (1987).

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Descartes, em 1637

• " (...) il est possible de parvenir à des connaissances qui soient fort utiles à la vie, et qu'au lieu de cette philosophie spéculative qu'on enseigne dans les écoles, on en peut trouver une pratique, par laquelle, connaissant la force et les actions du feu, de l'eau de l'air, des astres, des cieux, et de toutes les autres corps qui nous environnent, aussi distinctement que nous connaissons les divers métiers de nos artisans, nous les pourrions employer en même façon à tous les usages auxquels ils sont propres, et ainsi nous rendre come maîtres et possesseurs de la nature" (168).

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Um Cristianismo da dominação da Terra?

Lynn White, Jr. “The Historical Roots of Our

Ecological Crisis”, Science, 10 de Março de 1967

“Formerly man had been part of nature; now he

was the exploiter of nature.”

Fusão entre Ciência e Tecnologia (séc.XIX)

“unidade funcional entre o cérebro e a mão”

Nova cultura democrática.

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Três equívocos na

interpretação das utopias

modernas.

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1.º O equívoco da novidade

• MAQUIAVEL, Il Principe, 1513.

• MORE, Utopia, 1516

• LEIBNIZ, Essais de Théodicé (1710)

Thomas More criou o conceito de “utopia”,

do mesmo modo que Leibniz o de

“teodiceia”, mas nenhum dos dois inventou

as dimensões do pensamento humano que

esses conceitos convocam.

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Realismo

“(…) parece-me mais conveniente ir direito à verdade efectiva do assunto (veritá effettuale della cosa) do que os desvarios da sua imaginação. Alguns imaginaram repúblicas e principados que nunca foram vistos nem conhecidos por verdadeiros (…)” Maquiavel, Il Principe, XV, 57 [manuscrito original de 1513]

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MORE, Thomas, Utopia [1516]

• A primeira edição, em latim, foi publicada em

Lovaina por Martens, e, 1516. Por Gourmont, em

Paris, no ano seguinte. Duas vezes por Froben,

em Basileia, em 1518. Em inglês: Ralph

Robinson (1551); Gilbert Burnet’s (1684).

• A edição standard inglesa moderna foi publicada

em edição bilingue por Hexter e Sturtz na The

Yale Edition of the Complete Works of St.

Thomas More, vol. 4, 1965.

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Em Português

• Thomas Morus

• Utopia, ou a melhor forma de governo

• Estudo introdutório de J.V. Pina Martins

• Edição crítica, tradução e notas de comentário por Aires

A. Nascimento

• Lisboa, FCG

• 2006.

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Algumas visões da Utopia

Ética do trabalho.

O ordenamento do território.

Rigoroso planeamento urbano

e gestão demográfica.

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Chaves interpretativas

• Uma obra humanista e classicista.

• A amizade com Erasmo e a articulação com o Elogio da

Loucura (1509-11).

• A ironia, a ambiguidade semântica, a crítica da

contemporaneidade.

• A importância dos Descobrimentos Portugueses.

• Cristianismo, razão e antropologia.

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Chaves interpretativas

• Uma obra humanista e classicista.

• A amizade com Erasmo e a articulação com o Elogio da

Loucura (1509-11).

• A ironia, a ambiguidade semântica, a crítica da

contemporaneidade.

• A importância dos Descobrimentos Portugueses.

• Cristianismo, razão e antropologia.

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A utopia de Tommaso Campanella

Em 1602, no cárcere, Campanella escreveu o seu livro, em italiano, com o título de Città del Sole. Foi revisto em 1613. Publicado, pela primeira vez, na Alemanha, e em latim, e, 1623. com o seguinte título: Civitas solis, appendix Politiae Idea reipublicae philosophicae.

> Tradução portuguesa de Álvaro Ribeiro.

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A aceleração tecnológica da história

“Dizem eles [os solários] que em nossos dias, num período de cem anos, acontecem mais factos dignos de história do que nos quatro mil anos do mundo anterior, e que maior número de livros foram publicados neste último século do que nos cinquenta passados. Não cessam de elogiar a invenção da imprensa, da pólvora e da bússola, sinais particulares e, ao mesmo tempo, instrumentos da união de todos os habitantes do mundo num só ovil [curral de ovelhas].” (95).

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A utopia técnica e científica de Francis

Bacon

BACON, Francis, New Atlantis,

New Atlantis and The Great

Instauration, Jerry Weinberger

(ed.), Arlington Heights, Illinois,

Harlan Davidson, Inc., 1989, pp.

35-83.

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A ciência como empresa…

Os temas da SH: agricultura,

medicina, indústria e minas,

comunicações e comércio. De

salientar a antecipação das

biotecnologias (75) e da arte de

voar (80)”

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Ciência e poder político A ambiguidade política reside, tb, no

facto de não se perceber onde é

que está o poder soberano. Por

um lado existe um estado (state),

mas, por outro, os membros da

SH é que decidem sobre o que

devem ou não divulgar (têm

perfeita autonomia, tanto na

investigação, como nas

aplicações).

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2.º Universalismo ou insularidade?

Sociedades insulares e fortificadas em relação ao resto

do mundo (no caso de More, a ilha foi mesmo construída

a partir de uma península).

Sistemas políticos fortemente elitistas, com escasso

espaço para a “liberdade individual”.

Uma forte consciência da relação conhecimento-poder e

da dinâmica do segredo e da competição na emergência

de uma nova era técnica e científica.

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3.º O equívoco da inatingibilidade do real

pelas utopias modernas A perspectiva aberta pela utopia moderna revela-se de uma eficácia e clareza extremas. A chave do futuro, desse lugar por realizar, desse u-topos, não se encontra na mudança (impossível) da natureza humana (como seria o caso da conversão ética das utopias clássicas), mas sim na revolução das relações entre a cultura humana e a Natureza.

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Da ética para a técnica Essa mutação radical da utopia moderna funda-se no

aprofundamento do conhecimento sistemático dos

processos causais inerentes às forças e fenómenos, e na

sua replicação técnica para fins humanamente úteis. É o

horizonte e as promessas da sociedade tecnocientífica,

em que nos encontramos longamente mergulhados, que

se encontram enunciados na linguagem dos grandes

pensadores de Seiscentos

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“Homo hominans”: a próxima fronteira

As grandes utopias modernas procuraram ajudar a criar uma espécie de nova humanidade, através da criação de inusitados meios tecnológicos, suscitados pela explosão do potencial científico das sociedades, e pelo dinamismo de mercados económicos totalmente libertos de quaisquer espécie de constrangimentos ou mecanismos de moderação. O tema do poderio humano, centrado durante séculos no controle e domesticação da natureza biofísica, conhece hoje uma espécie de recuo em direcção à própria condição humana.

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SEIS RUPTURAS DA MODERNIDADE

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Ruptura Cosmológica

•Ruptura cosmológica com as

representações ptolomaico-cristãs,

finitistas e geocêntricas. O

contributo fundador das obras de

Copérnico, Kepler, Galileu, sem

esquecer, Tycho Brahe ou, a outro

nível, Giordano Bruno.

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A Ruptura Geográfica

• A construção de uma nova imagem da Terra: o

trabalho revolucionário dos cosmólogos e astrónomos foi

precedido e acompanhado pelas grandes viagens de

navegação de Dias, Colombo, Cabral, Gama, Magalhães,

que estilhaçaram as representações geográficas

clássicas.

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Ruptura em direcção a uma «episteme»

experimental Muito antes das formulações metodológicas, tornadas canónicas, de Bacon ou Descartes, temos a vaga dos alquimistas, os esboços de Da Vinci, a modernização das técnicas de navegação e balística por parte dos portugueses. Trata-se dos primeiros passos em direcção a uma concepção de ciência baseada na aplicação de métodos quantitativos, orientada por critérios de rigor e progressiva especialização

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Ruptura humanista

• "Ao homem nascente o Pai conferiu sementes de toda a

espécie e germes de toda a vida, e segundo a maneira

de cada um os cultivar assim estes crescerão e darão os

seus frutos." (Nascenti homini omnifaria semina et

omnigenae vitae germina indidit Pater; quae quisque

excoluerit illa adolescent, et fructus suos ferent in illo.

Pico della Mirandola, Oratio de hominis dignitate: 52-53).

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A Ruptura do “mundo desencantado”

• Foi Max Weber quem formulou a mais lapidar e

condensada síntese do processo da secularização e da

modernidade: "o desencantamento do mundo" (die

Entzauberung der Welt). O mundo perdia o seu

encanto, a sua magia, o seu poder de sinal do

sagrado, de ponte para o divino.

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A Ruptura de um “mundo sem Deus”

• Nietzsche: "Se nós não fizermos da morte de Deus uma grandiosa renúncia e uma contínua vitória sobre nós próprios, então teremos de suportar a sua perda." (Wenn wir nicht aus dem Tode Gottes eine grossartige Entsagung und einen fortwährenden Sieg über uns machen, so haben wir den Verlust zu tragen. Werke: vol. 9, 12/10, 577).

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