56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    1/73

    c o l e ~ a o TRANS

    Bruno LatourJAMAIS FOMOS MODERNOS

    Ensaio de Antropologia Simetrica

    TradUt;iioCarlos [rineu da Costa

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    2/73

    EDITORA 34 _ASSOCIADAAEDITORA NOVA FRONTEIRAD i s t r i b u i ~ a o pela Editora Nova Fronteira S.A.R. Barnhina, 25 CEP 22215-050 Tel . (021) 286-7822 Rio de Janeiro - RJ

    Copyright 199434 Literatura SIC Ltda. (direiros adquiridos para linguaportuguesa, no Brasil)NOlls n'avons jamais ere modernes 1991 Editions La Decouverte, ParisA FOTOCDPlA DE QUALQUER FOLHA DESTE UVRQ E lLEGAL, E CONFIGURA UMAAPROPRIAC;AO INDEVlDA DOS DIREITOS INTELEeruAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

    Titulo original:Nous n'avons jamais ete modernesCapa, projeto grafico e e d i t o r a ~ a o eletronica:Bracher & Malta Produqao Grd(icaRevisao:Claudia Moraes

    l ' Edi ,ao - 199434 Lirerarura SIC Ltda.R. Jardirn Boranico, 635 s. 603 CEP 22470-050Rio deJaneiro - RJ Tel. (021) 239-5346 Fax (021) 294-7707

    CIP - Brasil. CaralogaLU

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    3/73

    .;;::I"F.: :,;,3C/BSCSH:c I 211 ( ~ ) t " C ~ f-'

    Em,: al1!'JC. -

    Agraclecimentos:Sem Fran

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    4/73

    REATANDO 0 N6 G6RDIO

    Ha cerca de vinte anos, eu e meus amigos estudamos estas situa

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    5/73

    "Mas entaoe poHtica? Voces reduzem a verdade cientffica a interesses e a efid.cia tecnica a manobras polfticas?" Eis ai 0 segundo mal-entendido. Se os fatos nao ocuparem 0 lugar ao mesmo tempo marginal e sagrado que nossas a d o r a ~ 6 e s reservam para des, imediatamente sao reduzidos a meras contingencias locais e miseras negociatas. Contudo, naoestamos falando do contexto social e dos interesses do poder, mas sim deseu envolvimento nos coletivos enos objetos. A o r g a n i z a ~ a o da marinhaamericana sera profundamente modificada pela a l i a n ~ a feita entre seus escritorios e suas bombas; EDF e Renault se tornarao irreconhecfveisde acordo com sua decisao de investirem na pilha de combustivel ouno motor aexplosao. A America nao sera a mesma antes e depois da eletricidade; 0contexto social do seculo XIX nao sera 0 mesmo se for construido compobres coitadosou com pobres infestados por microbios; quanto ao sujeitoinconscienteestendido sobre seu diva, como seradiferente casoseu cerebroseco descarregue neui'O transmissores ou caso seu cerebro umido secretehormonios. Nenhumdestes estudos pode reutilizar aquilo que os soci610gos, psicologos ou economistas nos dizem do contexto social para aplica10 as cienciasexatas. A cada vez, tanto 0 contexto quanto a pessoa humana encontram-se redefinidos. Da mesma forma como os epistemologos naoreconhecem mais, nas coisas coletivizadas que Ihes oferecernos, as ideias,conceitos e teorias de sua infancia, tam bern as ciencias humanas seriamincapazes cle reconhecer, nestes coletivosabarrotados decoisas que nos desdobramos, os jogosde poder de sua adolescenciamilitante. Tanto it esquerda quanto a direita, as finas redes t r a ~ a d a s peta pequena mao de Ariadnecontinuam a ser mais invisfveis do que aquelas tecidas pelas aranhas.

    "Mas se voces nao falam nem das coisas-em-si nem dos humanosentre-eles, quer dizer que voces falam apenas do discurso, da representa'rao, da linguagem, dos textos." Este e 0 terceiro mal-entendido. Aquelesque colocam entre parenteses 0 referente externo - a natureza dascoisas- e 0 locutor - 0 contexte pragmatico ou social- sopodemmesmo falardos efeitos de sentido e dos jogos de linguagem. Entretanto, quando MacKenzie perscruta a evolu.;ao do girosc6pio, esta falando sobre agenciamentos que podem matar a todos; quando Calion segue de perto os artigoscientfficos, ele fala de estrategia industrial, ao mesmo tempo em que falade ret6rica (Calion, Law et aI., 1986); quando Hughes analisa os cadernos de notas de Edison, 0 mundo interior de Menlo Park logo se tomarao mundo exterior de toda a America; quandodescrevo a domestica,ao dosmicrobios por Pasteur, mobilizo a sociedade do seculo XIX, e nao apenasa semiotica dos textos de urn grande homem; quando descrevo a inven

    ~ a o - d e s c o b e r t a dos peptideos do cerebro, falo realmente dos peptideos emsi, e nao de sua representa,ao no laborat6rio do professor Guillemin. Everdade, entretanto, que se trata de retorica, estrategia textual, escrita,

    contextualizas:ao e semi6tica, mas de uma nova forma que se conecta aomesmo tempo a natureza das coisas e ao contexto social, sem contudoreduzir-se nem a uma coisa nem a outra .

    Nossa vida intelectual e decididamente mal constrllida. A epistemo-"logia, as ciencias sociais, as ciencias do texto, todas tern uma r e p u t a ~ i i o ,contanto que p e r m a n e ~ a m distintas. Caso os seres que voce esteja seguin-(do atravessem as tres, ninguem mais compreende 0 que voce diz. O f e r e ~ aas disciplinas estabelecidas uma bela rede sociotecnica, algumas belas trad u ~ 6 e s , e as primeiras extrairao os conceitos, arrancando deles todas asrafzes que poderiam liga-los ao social ou a retorica; as segundas irao amputar a dimensao social e poHtica, purificando-a de qualquer objeto; asterceiras, enfim, conservarao 0 discurso, mas irao purga-Io de qualqueraderencia indevida a realidade - horresco referens - e aos jogos de poder . 0 buraco de ozoniosobre nOSsas c a b e ~ a s , a lei moral em nosso cora

    e 0 texto alltonomo podem, em separado, interessar a nossos criticos.Mas se uma naveta fina hOllver interligado 0 ceu, a industria, os textos,as almas e a lei moral, isto permanecera inaudito, indevido, inusitado.

    A CRISE DA CRfTICA

    Os crfticos desenvolveram tres repertorios distintos para falar de nosso mundo:a n a t u r a l i z a ~ a o , a s o c i a l i z a ~ a o , a d e s c o n s t r l l ~ a o . Digamos, de formarapida e sendo urn pouco injustos, Changeux, Bourdieu, Derrida. Quandoo primeiro fala de fatos naturalizados, nao ha mais sociedade, nem sujeito,nemforma do discurso. Quando 0 segundofala de podersociologizado, naoha mais ciencia, nem tecnica, nem texto, nem conteudo. Quando 0 terceirofala deefeitos de verdade, seria urn atestado de grande ingenuidade acreditar na existencia real dos neuroniosdo cerebro Oll dos jogos depoder. Cadaumadestas formas de critica e potente em si mesma,mas nao pode ser combinadacom as outras. Podemos imaginar urn estudoque tornasse 0 buracode ozonio algo naturalizado, sociologizadoe desconstrufdo? Anatureza dosfatos seria totalmente estabelecida, as estrategias de poder previsfveis, masapenas nao se trataria deefeitos desentidoprojetandoa pobreilusao de umanatureza e de urn locutor? Umatal coleha de retalhos seria grotesca. Nossavida intelectual continua reconhecfvel contanto que os epistemologos, ossociologos eos desconstrutivistas sejammantidos a uma distancia conveniente,alimentando suascrfticascom as fraquezas dasoutras duasabordagens. Vocespodem ampliaras ciencias,desdobrar os jogos de poder, ridicularizar a c r e n ~ aem uma realidade, mas nao misturem estes tres aciclos causticos.

    Ora, deduas coisas uma: ou as redes quedesdobramos realmente naoexistem, e os criticos fazem bernem marginalizaros estudos sobre as cien-

    10 Bruno Latour Jamais FomosModernos 11

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    6/73

    cias au separa-Ios em tres conjuntos distintos - fatos, poder, discurso-,au entao as redes sao tal como as descrevemos, e atravessam a fronteiraentre os grandes feudos da critica - nao sao nem objetivas, nem sociais,nem efeitos de discurso, sendo ao mesmo tempo reais, e coletivas, e discursivas. AU nosdevemos desaparecer, portadores demas noticias que 50 -mos, ou entao a propria critica cleve entrar em crise por causa clestas redes contra as quais ela se debate. as fatos cientificos sao construidos, masnaG podem ser reduzidos ao social, porque ele esta povoado por objetosmobilizados para construf-lo. 0 agente desta dupla constru

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    7/73

    nos comercios e nasfabricas seu antigo trabalho deexplora,iio. 0 Ocidente liberal niio se contem de tanta alegria. Ele ganhou a guerra fria.Mas este triunfo dura pOlleo. Em Paris, Londres e Amsterda, oestemesma glorioso ano de 1989, sao realizadas as primeirasconferencias sabre

    /0 estado global do planeta, 0 que simholiza, para alguns observadores, 0fim do capitalismo e de suas vas e s p e r a n ~ a s de conquista ilimitada e de

    d o m i n a ~ a o total sabre a natureza. Ao teotar desviar a e x p l o r a ~ a o do homem peIo homem para uma explora

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    8/73

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    9/73

    A CONSTlTIJl

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    10/73

    A tarefa cia antropologia do mundo moderno consiste em descrevercia mesma maneira como se organizam todos os ramos de nosso governo,inclusive os da natureza e dasciencias exatas,e tambem em explicar como

    apenas metade deseucontrato, ja que nao explicaram 0 trabalho de purif i c a ~ a o que se realiza acima deles, 0 qual explica esta p r o l i f e r a ~ a o .Quanta aas caletivas estrangeiros, etarefa da antropalagia falar aamesmo tempo sobretodos os quadrantes. Na verdade,como ja disse, qualquer etn610go e capaz de escrever, na mesma monografia, a d e f i n i ~ a o das

    f o r ~ a s presentes, a r e p a r t i ~ a o dos poderes entre humanos, deuses e naohumanos, os procedimentos de c o n s e n s u a l i z a ~ a o , os l a ~ o s entre a religiaoe os poderes, os ancestrais, a cosmologia, 0 direito a propriedade e astaxonomias de plantas e vegetais.tnologo evitara escrever tres livros- urn paraos conhecimentos , outro para as poderes,e urn ultimo para aspraticas. Escrevera apenas urn, como aquele, magnifico, em que Descolatenta resumir a c o n s t i t u i ~ a a das achuar da Amazonia (Descala, 1986):

    "Os achuar, entretanto, nao se apropriaram completamente da natureza nas redes simb6licas da damesticidade. Claro, 0 campo cultural aqui e particularmente abrangente, umavez que nele se encontram classificados animais, plantas, e espiritos que dizem respeito ao dominio natural em outras sociedades amerindias. Nao encontramos, portanto, nos achuar,esta antinomia entre dois mundos fechados e irredutivelmenteapastas: a munda cultural da saciedade humana e a mundanatural da sociedade animal. Ha, ainda assim, urn momentoem que0 continuum de sociabilidade e interrompido para darlugar a urn universo selvagem irredutivelmente estranho aohornem. Incornparavelrnente mais reduzido que 0 dominio dacultura, este pequeno segmento de natureza cornpreende 0 conjunto das coisas com as quais nenhurna c o m u n i c a ~ a o pode serestabelecida. Aas seres passuidares de linguagem (aents), dasquais os humanos sao a e n c a r n a ~ a o mais completa, opoem-seas coisas mudas, que povoam uIJ.iversos paralelos e inacessiveis.A incomunicabilidade e muitas vezes atribuida a uma falta dealma (wakan) que afeta algumas especies vivas: a maior partedos insetos e dos peixes, os animais rastejantes e numerosasplantas sao, assim, dotados de uma existencia maquinal e inconsequente.Mas a ausencia de c o m u n i c a ~ a o e por vezes fun

    da distancia; infinitamente afastada e prodigiosamentemovel, a alma dos astros e dos meteoros permanece surda aosdiscursas das hamens" (p.399).

    BOYLE E SEUS OBJETOS

    "Nao concebemos a politica como algo exterioraesferacient if ica e que poderia , de certa forma, sobrepor-se a ela. Acamunidade experimental [criada par Bayle] lutau, justamente, para Impor este vocabulario da d e m a r c a ~ a o , e nos e s f o r ~ a -mos para situar historicamente esta linguagem e para explicaros a v a n ~ o s destas novas c o n v e n ~ o e s do discurso. Se desejamosque nossa pesquisa seja respeitada do ponto de vista historico~ . . ,e preciso que eVltemos USar de forma superficial a lingua des-tes atores em nossas proprias e x p I i c a ~ o e s . Eprecisamente estalinguagem que permite conceber a politica como algo exterioraciencia que tentamos compreendere explicar. Chocamo-nos,nesteponto, com a visaa geral dos historiadores da ciencia quepensam ter ult rapassado ha muito as nor;oes de "inter ior" e"exterior" da ciencia. Grave errol Estamos apenas c o m e ~ a n d oa entrever os problemas colocados por estas c o n v e n ~ o e s de de-

    e por que estes ramos se separam, assim Como os multiplos arranjos queas r e u n e ~ ..0 etn610go de nossomundo deve colocar-se no ponto cornum

    o ~ ~ e se ~ l ~ l d e m os papeis, as ac;oes, as competencias que inlo enfim permttIr defImr Certa enttdade como animal OU material, uma outra comosujeito direito, outra como sendo dotada de consciencia, au maquinal,e outra amda como inconsciente ou incapaz. Ele deve ate mesmo comparar as formas sempre diferentes de definir ou nao a materia 0 d irei to aconsciencia, e a alma dos animais sem partir cia metaffsica ~ o d e r n a . Damesma forma que a constituic;ao dos juristas define os direitos e deveresdos cidadaos e do Estado, 0 funcionamento da j u s t i ~ a e as transmissoesde poder, da mesma forma esta Constituir;ao - que escrevo com maiuscula para distingui-Ia da outra - define as humanos e nao-humanos suaspropriedades e suas r e l a ~ o e s , suas competencias e seus a g r u p a m e n t ~ s .

    Como descrever esta C o n s t i t u i ~ a o ? Escolhi concentrar-me sobre umasituar;ao e x e ~ p l a r , no inicio de sua escrita, em plena seculo XVII, quando Boyle, 0 clentista, e Hobbes, 0 cientista politico, discutem entre si a

    r e s ~ e i t o da r e p a r t i ~ a o dos poderes cientfficos e politicos. Esta escolha podena parecer a ~ b i t ~ a r i a se urn livro notavel nao tivesse acabado de se agregara esta. dupla c n a ~ a o de urn COntexto social e de uma natureza que lhe es-capana. Boyle e seus descendentes, Hobbes e seus seguidores irao servirme deexemplo e resumo para uma historia muito mais longa que sou incapaz de r e t r a ~ a r aqui, mas que outros, rna is bern equipados que eu iraosem duvida narrar. '

    Jamais Fomos Modernos

    Iruno Latour0

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    11/73

    l i m i t a ~ o . Como,historicamente, os atores cientificosdistribuemos elementos de acordo com seu sistema de delimitat;ao (e naode acordo com 0 nosso), e como podemos estudar empiricamente as formas que eles possuiam de conformar-sea este sistema? Isto que chamamos de "ciencia" nao possui nenhuma demarCat;aO que possamos tamar comofronteira natural" (p.342).Esta longa cita,ao, extraida do l im de urn l ivro de Steven Shapin e

    Simon Schaffer (Shapin e Schaffer, 1985), marca 0 verdadeiro principiode uma antropologiacomparada que leva a serio a ciencia (Latour, 1990c).Eles nao mostram como 0 contexto social da Inglaterra podia justificar 0desenvolvimento da flsica de Boyle e 0 fracasso das teorias matemaricasde Hobbes eles lidamcom 0 proprio lundamento da lilosolia politica. Longe de "sit;ar os trabalhos cientfficos de.Boyle em seu : o n t e ~ t o ~ o e i a l " oudemostrarcomo a politica "deixa vestiglOs" nosconteudos clennficos, elesexaminam comoBoyle e Hobbes brigaram para inventar uma ciencia, urncontexto e uma demarca

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    12/73

    AMEDIA

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    13/73

    argumentos, uma demonstrac;ao que provaria que sua ontologia naD enecessaria, que 0 vacuo e politicamente aceitavel. E como Boyle responde?Escolhe, ao contrcirio, tornar sua experiencia mais sofisticada, para mostrar 0 efeito que 0 vento de eter postulado por Hobbes (na e s p e r a n ~ a deinval idar a teoria de seu detrator) tern sobre urn detetor - uma simplespena de galinha! (p.182). Ridiculo! Hobbes levanta urn problema fundamental de filosofia polftica e desejam refutar suas teorias com uma penano interiorde urn recipiente de vidro no interior do castelo de Boyle! Obviamente, a pena nao se move nem urn milimetro, e Boyle chega aconclusaoque Hobbes esta errado, que nao existe urn vento de eter. Entretanto,Hobbes nao pode estar enganado, ja queele se recusa a admitir que 0 fe-nameno do qual ele fala possa produzir-se em qualquer outra escala que

    ' \ nao a da Republica inteira. Ele nega aquilo que ira tornar-se a caracterisI tica essencial do podermoderno: a mudanc;a de escala e os deslocamentos\ que 0 trabalho de laboratorio pressupoe. Boyle, novoGato de Botas, precisara apenas pegar 0 Ogro reduzido ao tamanho de urn rato.

    o TESTEMUNHO DOS NAO-HuMANOSA i n v e n ~ a o de Boyle esta completa. A despeito da opiniao de Hobbes,

    ele se apossa do velho repert6rio do direito penal e da exegese biblica, paraaplica-Jos contudo ao testemunho das coisastestadas no laboratorio. Conforme escrevem Shapin e Schaffer:"Sprat e Boyle invocavam 'a pratica das cortes de justic;ana Inglaterra' para garantira veracidade moral de suas conclu

    soes e para dar mais val idade a seu argumento de que a multi plicac;ao dos testemunhos suscitava urn 'acumulo de probabilidades'. Boyle usava a c1ausula da lei sobre a t r a i ~ a o de Clarendon em 1661 segundo a qual, nos diz ele , doi s t es temunhosbastarn para condenar urn hornem. Vemos que os modelos juridicos e sacerdotais da autoridade representavam os principaisrecursos dos experimentadores. Os testemunhos confiaveispertenciam, por isso mesmo, a uma comunidade digna de fe: ospapistas, os ateus e os sectarios tinham sua narrativa questionada, 0 estatuto social do testemunho contribuia a sua credibilidade, e a coincidencia entre as vers6es de muitas testemunhastornava possivel descartar as extremistas. Hobbes coloca novamente em causa 0 fundamento desta pratica: ele mostra 0costume que justi ficava a pratica do tes temunho como sendoineficaz e subversivo" (p.327).

    Aprimeira vista, 0 repert6rio de Boyle nao traz nada demuito novo.Os eruditos, os monges, os juristas e os escribas haviam elaboracio todosestes recursos po t rnais de urn milenio. Mas e seu ponto de a p l i c a ~ a o quee novo. Ate entaD, os testemunhos haviam sempre sido humanos ou divinos - nunca nao-humanos. Os textos haviam sido escri tos por homensou inspirados por Deus - jamais inspirados ou escri tos por nao-humanos. As cortes de j u s t i ~ a viram passar inumeros processos humanos e divinos - nunca causas quecolocassemem jogoos comportamentos denaohumanos emurn laborat6rio transformado em tribunal de j u s t i ~ a . Ora,paraBoyle as exper iencias em laborat6rio possuem mais autor idade que osdepoimentos nao confirmados por testemunhas honrosas:

    "Em nossa experiencia [do sino do mergulhador] exposta aqui, a pressao cia agua possui efeitos visiveis sobre os corpos inanimados que sao incapazes de preconcei tos ou de darapenas i n f o r m a ~ o e s parciais, e tera mais peso junto as pessoassem preconceitos que as narrativas suspeitas e por vezes contradit6rias de mergulhadoresignorantes,cujas ideias preconcebidas estao sujei tas a f l u t u a ~ o e s , e cujas proprias s e n s a ~ 6 e s ,como as da plebe, podem Ser condicionadas por p r e d i s p o s i ~ 6 e sou muitas outrascircunstfmcias, e podem facilmente induzir aoerro" (p.218).Eis que intervem, na escrita de Boyle, um novo ator reconhecido pela/:

    nova C o n s t i t u i ~ a o : corpos inertes, incapazes de vontade e de preconceito,mais capazes de mostrar , de ass inar , de escrever e de rabiscar sobre osinstrumentos de laboratorio testemunhos dignos de fe. Estes nao-humanos, privados de alma, mas aos quais e atr ibuido urn sentido, chegam aser mais confiaveis que 0 comum dos rnortais, aos quais e atribuida umavontade, mas que nao possuem a capacidade de indicar, de forma confiavel,os fenomenos. Deacordo coma c o n s t i t u i ~ a o , em caso de duvida, maisvale apelar aos nao-humanos para refutar os humanos. Dotados de seusnovos poderes semi6ticos, aqueles irao contribuir para uma nova formade texto, 0 artigo de ciencia experimental, hibrido entre 0 estilo milenarda exegese biblica - ate entao aplicadoexclusivamente as Escrituras e aosclassicos - e 0 novo instrumento que produz novas i n s c r i ~ 6 e s . A part irde entao, sera em torno da bomba de ar em seu e s p a ~ o fechado, e a respeito do comportamento dotado de sentido dos nao-humanos, que astestemunhas iraQ continuar seus debates. A velha hermeneutica iracontinuar,mas ela acrescentani a seus pergarninhos a assinatura tremula dos instrumentos cientificos (Latour e Noblet, 1985; Lynch, 1985; Latout, 1988a;Law e Fyfe, 1988; Lynch e Woolgar, 1990). Assim, com uma corte de jus-

    28 Bruno Latour Jamais Fomos Modernos 29

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    14/73

    simetria na i n v e n ~ a o do repert6rio moderno, devemos compreender porque Shapine Schaffer permanecemassimetricosem sua analise, porque elesatribuem maior p e n e t r a ~ a o e capacidade explicativa a Hobbes do que aBoyle, quando seria preciso terlevado a simetria ate 0 fim. Sua hesita\=ao,na verdade, revela as dificuldades da antropologia comparada e, como 0leitor provavelmente ira compartilha-Ia, einteressante nos determos nela.

    Em certo sentido, Shapin e Schaffer deslocam para baixo 0 centro dereferencia tradicional da critica. Se a ciencia esta fundada sobre as competencias, os laboratorios e as redes, onde entao iremos situa-Ia? Ecertoquenao do lado das coisasem si, uma vezque osfatos sao fabricados. Masecer to tambem que nao sera do lado do sujeito - sociedade/cerebro/espirito/cultura-, uma vez que 0 passaro que sufoca,as esferas de marmore, 0 mercurio que desce nao sao nossas proprias c r i a ~ 6 e s . Sed. entao quedevemos situar a prarica da ciencia no meio desta l inha que liga 0 poloobjeto ao polo sujeito? Ela e urn hibrido ou uma rnistura? Urn pouco objeto e urn pouco sujeito?

    ticra renovada, todos as autros paderes serao derrubados, e eisto que tanto perturbaHobbes; masesta reviravolta so e possivel se qualquer lacro comos ramos politicos "e religiosos do governo tornar-se impossivel.

    Shapin e Schaffer levam a limites extremos sua discussao sobre osobjetos, laboratorios, competencias emudancras de escala. Se e verdade quea ciencia nao esta fundada sobre ideias, mas sim sobre uma pnitica, se elanao esti do lado defora, mas sim do lado de dentro do recipiente transparente da bomba de ar, se ela tern lugar no interior do espa,o privado dacomunidade experimental, entao como ela poderia estender-se "por todaparte", a pontode tornar-se tao universal quanto as "leis de Boyle"? Bern,eia nao se torna universal, ao menos naoamaneira dos epistemologos! Suarede se estendee se estabiliza. A brilhantedemonstra,ao deste fato esti emUU l capitulo que Ii, assim como a obra de Harry Collins (Collins, 1985;Collins, 1990) ou deTrevor Pinch (Pinch, 1986), urn exemplo marcante dafecundidade dos novos estudos sobre as c H ~ n c i a s . Ao seguirem a reproducrao de cada protot ipo de bomba de ar atraves da Europa e a transformacrao progressiva de urnequipamento custoso, pouco confiavel e atravancanteem uma caixa preta de baixo cus to , que aos poucos se torna urn equipamento comum em todosos laboratorios, os autores trazem a aplicacrao universal de uma lei fisica de volta ao interior de uma rede de praticas padronizadas. Evidentemente, a interpreta,ao da elasticidade do ar dada por Boyle

    .', se propaga, mas se propaga exatamente com a mesma velocidade que a'comunidade dos experimentadores e seus equipamentos se desenvolvem.Nenhuma ciencia pode sairda redede sua pratica. 0 peso doar certamentecontinua a ser urn universal, mas urn universal em rede. Gracras aextensao desta, as competenciase 0 equipamento podem tornar-se suficientementerotineiros para que a producrao do vacuo torne-se tao invisivel quanto a arque respiramos, mas universal como antigamente, nunca.

    FtGURA 1Polo BoyleCoisa-ern-si

    ~ - - - - - - : Construfl1o no laborat6rio

    de urnob je to e de urn contexto

    Polo HobbesHornens-entre-eles

    o ARTIFlcIO DUPLO DO LABORAT6RIO E DO LEVIATAA escolha de tratar ao mesmo tempo de Hobbes e Boyle tern algo de

    genial, uma vez que 0 novo principio de simetria, destinado a explicar aomesmo tempo a natureza e a sociedade (ver abaixo) nos e imposto pelaprimeira vez nos estudos sobre a ciencia atraves de duas grandes figurasdo inicio da era moderna. Hobbes e seus seguidores criaram os principaisrecursOs de que dispomos para f al ar do poder - r e p r e s e n t a ~ a o , soberano, contrato, propriedade, cidadaos -, enquanto que Boyle e seus seguidares elaboraram urn dos repertorios mais importantes para falar da natureza - exper iencia , f ato, t es temunho, colegas. 0 que nos ainda naosabiamos, e que se tratava de uma dupla i n v e n ~ a o . Para compreenderesta

    Os autores nao nos fornecem uma resposta final a esta pergunta. Damesma forma que Hobbes eBoyleestao de acordo sobre tudo, exceto quantaaforma de praticar a e x p e r i r n e n t a ~ a o , as autores, queestaode acordo sobretudo, nao chegarn a urn acordo quanto aforma de tratar 0 contexto "social",quer dizer,a i n v e n ~ a o simetrica, porHobbes, de urn humano capaz deser representado. Os capitulos finais do livro oscilam entre uma e x p l i c a ~ a ohobbesiana do proprio trabalhodos autores e urn ponto de vista boyleano.Esta tensao apenas torna sua obra mais interessante, e fornece aantropologia das ciencias uma nova linhagem de "drosofilas" perfeitamente adequadas, ja que se distinguem apenaspor uns poucos t r a ~ o s . ShapineSchafferconsideram as e x p l i c a ~ 6 e s macro-sociais de Hobbes relativas aciencia deBoyle como sendo mais convincentes que os argumentos usados por Boylepara refutar Hobbes! Formados no ambito do estudo social das ciencias

    30 Bruno Latour Jamais Fomos Modernos 31

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    15/73

    (Calion e Latour, 1991), erna is dificil para eles desconsrruir 0 conrextomacro-social do que a naturezaout there. Parecem acreditar querealmenteexiste uma sociedade up there que explicaria 0 fracasso do programa deHobbes. Ou, para ser mais exato, naa chegama fechar a questaa, anulando na conclusao aquila que haviam demonstrado no capitulo VII, e maisuma vez anulando sua argumentac;;:ao na ultima frase do livra:

    "Nem nosso conhecimento cientifico, nem a constituic;aode nossa soeiedade, nem as afirmac;6est radicionais relativas asconexoes entre nossa sociedade e nosso conhecimento continuam a seI vistas como predefinidos.Amedida em que descobrimos 0 estatuto convencional e construido de nossas farmasde conhecimento, somas levados a compreenderque somes nos- e nao a rea lidade - que estamos na origem daquilo quesabemos. 0 conhecimento, assim como 0 Estado,eproduto dasa

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    16/73

    i nao-humanos, mas the eproibida qualquer possibilidade de apelo apoli'I tica; cabeapolitica a representa,ao dos cidadaos, maslhe e r o i b i d a ~ u a l -quer rela,ao com os nao-humanos produzldos e moblhzados pela ClenClae pelatecnologia.Hobbes e Boyle brigampara definir os dois recursos queate haje utilizamos sem pensar no asSunto, e a intensidade de sua duplabatalha reve1a claramente a estranheza daquilo que inventam.

    Hobbes define urn cidadao nu e calculador que constitui 0 Leviata,este deus mortal, esta criatura artif icial. 0 que sustenta 0 Leviata? 0 calculo dos ,homos humanos gerado pelo contrato, 0 qual decide quanto airreversfvel c o m p o s i ~ a o cia f o r ~ a de rodos nas maos de urn tinieD. Do queefeita essa f o r ~ a ? Da autorizaerao dada por rodos os cidadaos nus a umaunica pessoa que pode falar em seu nome. Quem age quando ele age? Nos,que delegamos a ele, de forma definitiva, nosso poder. A Republicaeumacriatura artificial paradoxal, composta de cidadaos unidos apenas atravesda autoriza,ao dada a uma pessoa para representa-los todos. 0 soberanofala em seu nome ou emnome daqueles que 0 autorizam? Questao insollivel que a filosofia moderna nunca terminou de desembaralhar. De fatoe0 soberano quem fala, mas sao os cidadaos que falam atraves dele. asoberano torna-se seuporta-voz, sua persona, sua p e r s o n i f i c a ~ a o . Ele traduz os cidadaos e portanto pode tral-Ios. Estes ultimos 0 autorizam e portanto podem interdita-lo. 0 Leviata efeito apenas de cidadaos, de c.kulos, de acordos e disputas. Resumindo, e feito apenas de r e l a ~ 6 e s sociais.au antes, com Hobbes e seus seguidores, c o m e ~ a m o s a compreender 0 quesignificam as r e l a ~ 6 e s sociais, poderes, f o r ~ a s , sociedades.

    Mas Boyledefine urn artefato ainda mais esrranho. Ele inventa 0 laboratorio, no interior do qual maquinas artificiais criam fenomenos porinteiro. Ainda que artificiais, caros, diffceis de ieproduzir e apesar do pequeno mimero de testemunhas confiaveis e treinadas, estes fatos representam a natureza como ela e. as fatos sao produzidos e representados nolaborat6rio, nos textos cientificos, admitidos e autorizados pela comunidade nascente de testemunhas. as cientistas sao os representantes escrupulosos dos fatos. Quem fala quando e1es lalam? Os proprios fatos, semduvida nenhuma, mas tambem seus porta-vozes autorizados. Quem fala,entao: a natureza ou os homens? Questao insohivel com a qual a filosofiadas ciencias ira defrontar-se durante quasetres seculos. Em si, osfatos saomudos, as f o r ~ a s naturais sao mecanismos brutos. as cientistas, porero,afirmam nao falar nada: os fatos falam por si mesmos. Estes mudos saoportanto capazes de falar, de escrever, de significar dentro da redoma artificial do laboratorio ou naquela, ainda mais rarificada, da bomba devacuo. Pequenos grupos de cavalheiros fazem com que as f o r ~ a s naturaistestemunhem, e testemunham uns pelos outros que eles nao traem, masanteS traduzem 0 comportamento silencioso dos objetos. Com Boylee seus

    disdpulos, c o m e ~ a m o s a conceber 0 que e uma for

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    17/73

    entre si de forma que urn se limita aciencia das coisas e 0 outrO apoliticados homens. Qual a rela'r3.o intima entre seus dois movimentos? Sera estap u r i f i c a ~ a o necessaria para permitir esta p r o l i f e r a ~ a o ? Serao necessariascentenas de hibridos para que haja uma politica simplesmente humana ecoisas simplesmente naturais? Sera necessaria esta distin'rao absoluta entre os dois movimentos para que permane'ram ambos eficazes? Como explicar a potencia destearranjo? Quale0 segredo do munciomoderno? Paratentar capta-Io, e precise generalizar os resultados de Shapin e Schaffer edefinir a Constituil'ao completa, ja que Hobbes e Boyle escreveram apenas urn de seus primeiros esbo'ros.Como para qualquer Constitui'rao, eprecise medir as garantias queela oferece. 0 poder natural que os descendentes de Boyle definiram emo p o s i ~ a o aos descendentes de Hobbes, e que permite que os objetos mudos falem com 0 auxflio de porta-vozes eientificos fieis e disciplinados,oferece uma garantia capital: nao sao os homens que fazem a natureza,ela existe desde sempre e sempre esteve presente, tudo que fazemos edescobrir seus segredos. 0 poder polit ico que os descendentes de Hobbesdefiniram em oposi'rao aos descendentes de Boyle faz com que diversoscidadaos falem a uma so voz atraves da tradu'rao/traic;ao de urn soberano, 0 qual diz apenas aquilo que eles dizem. Este poder oferece uma garantia igualmente capital: sao os homens e apenas os homens queconstroema sociedade e que decidem livremente acerca de seu destino.Se, assimcomo a filosofiapolitica moderna,consicierarmosestasduasgarantias separadamente, elascontinuam a serincompreensiveis. Se a natureza nao e feita pelos homensnem paraeles, entao ela continuaa ser estrangeira, para sempre longinqua e hostil. Sua propria transcendencia nos esmagaou a torna inacessivel. Simetricamente, se a sociedade e feita apenas peloshomens e para eles, 0 Leviata, criatura artificial da qual somos ao mesmotempo a forma e a materia, nao seria capazde se sustentar. Sua propria imanencia iria dissipa-Io imediatamente na guerra decada urn contra os outros.Mas nao eseparadamente que devemosconsiderarestas duasgarantiasconstirJCionais, a primeiraassegurando a nao-humanidade da naturezae a segunda, a humanidade do social. Elas foram criadas juntas. Sustentam-semutuamente. A primeira e a segunda garantias servem de contrapeso mutuo,de checks and balances. Elas sao apenas dois ramos do mesmo governo.

    Olhando-as em conjullto, e nao em separado, iremos perceber queas garantias se invertem. Os descendentes de Boyle nao dizem apenas queas leis da natureza escapam a nosso dominio, eles tambern as fabricam nolaboratorio. Apesar de suaconstru

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    18/73

    A QUARTA GARANTIA: A DO DEUS SUPRIMIDO

    Serao necessarios muitos autros autores, muitas outras instituic;6es,muitos outros regulamentos para completar este movimento esboc;ado peladisputa exemplar de Hobbes e Boyle. Mas a estrutura do conjunto podeser, agora, facilmente captada: estas tres grandes visoes de conjunto iraopermitira mudanc;a de escala dos modernos. Estes poderao fazer com quea natureza intervenha em todos os pontos na construs:ao de suas sociedades sem deixar, com isso, de atribuir-lhe sua transcendencia radical; poderao tornar-se os unicos atores de seu proprio destino politico sem deixar, com isso, de sustentar sua sociedade atraves da mobilizas:ao da natureza. De urn lado, a transcendencia da natureza nao ira impedir sua imanencia social; do outro, a imanencia do social nao ira impedir 0 Leviatade continuara ser transcendente.Eprecise confessarque e uma bela construs:ao, que permite fazer tudo sem estar limitado por nada. Nao e de seestranhar que esta Constituis:ao tenha permitido, como se dizia outrora,"liberar algumas forc;as produtivas"...

    Era preciso, entretanto, evitar 0 restabelecimento de uma simetriademasiado perfeita entre as duas garantias da Constituis:ao, 0 que teriaimpedido 0 duo de trabalhar a todo vapor. Era preciso que uma quartagarantia resolvesse a questao de Deus, afastando-o para sempre da dupIa construc;ao social e natural, deixando-o ao mesmo tempo apresentavel e intercambiavel. Os sucessores de Hobbes e Boyle dedicaram-se atarefa com sucesso, os primeiros esvaziando a natureza da presenc;a divina, os segundos esvaziando a sociedade de qualquer origem divina. 0poder cientifico "nao mais precisava desta hipotese"; quanto aos politicos, podiam fabricar 0 "deus mortal" do Leviata sem levar em conta 0Deus imortal cuja Escritura, ja em Hobbes, so era interpretada pelo soberano de forma figurativa. Ninguem e realmente moderno se nao aceitar afastar Deus tanto do jogo das leis da natureza quanto das leis da Re-publica. Deus tornou-se 0 Deus suprimido da metaffsica, tao diferente doDeus pre-moderno dos cristaos quanto a natureza construida em laboratorio 0 e da antiga physis ou quanto a sociedade 0 e do velho coletivo antropologico todo povoado por nao-humanos.

    Mas urn afastamento demasiado completo teria privado os modernos de urn recurso cdtico que lhes permitia completar seu dispositivo. Osgemeos natureza e sociedade estariam suspensos sobre 0 vazio sem queninguem pudesse decidir , em caso de conflito, qual dos dois ramos dogoverno deveria predominar sobre 0 outro. Pior ainda, sua simetria teriaaparecido claramente. Os modernos aplicaram ao Deus suprimido 0 mes-

    rno desdobramento que haviam aplicado anatureza e a sociedade. Suatranscendencia 0 afastava infinitamente, de forma que ele nao atrapalhava nem a aC;ao livre da natureza, nem a da sociedade, mas conservava-se,de qualquer forma, 0 direito de apelar a esta transcendencia em caso deconflito entre as leis da natureza e as da sociedade. a homem modernopodia ser ateu ao mesmo tempo em que permanecia religioso. Podia invadir 0 mundo material e recriar livremente 0 mundo social, sem com issosentir-se urn orfao demiurgo abandonado por todos.

    Ao reinterpretar os antigos temas teologicos dos cristaos, foi possivel colocarem jogo ao mesmo tempo a transcendencia de Deus e sua imanencia. Mas este tonga trabalho da Reforma do seculo XVI teria chegado a resultados muito diferentes caso nao se misturasse ao trabalho doseculo XVII sobre a invenC;ao conjunta dos fatos cientificos e dos cidadaos (Eisenstein, 1991). A espiritualidade foi reinventada, isto e, a transcendencia do Deus todo-poderoso no foro intimo sem que Ele interviesse em nada no foro exterior. Vma religiao totalmente individual e espiritual permitia criticar tanto a dominac;ao da ciencia quanto a da sociedade, sem com isto obrigar Deus a intervir em uma ou na outra. Tornavase possivel, para os modernos, serem ao mesmo tempo laicos e piedosos.A garantia constitucional nao era dada por urn Deus supremo, mas simpor urn Deus ausente - e contudo sua ausencia nao impedia que dele sedispusesse avontade na intimidade do corac;ao. Sua posiC;ao tornava-seideal, uma vez que era colocado duas vezes entre parenteses. Vma primeiravez na metafisica, uma segunda na espiritualidade. Nao mais atrapalharia 0 desenvolvimento dos modernos, ao mesmo tempo em que permanecia eficaz e fraternal no espirito dos humanos.

    Tres vezes a transcendencia e tres vezes a imanencia em uma tabela que fecha todas as possibilidades. Nos nao criamos a natureza; noscriamos a sociedade; nos criamos a natureza; nos nao criamos a soc ie-dade; nos nao criamos nem uma nem outra, Deus criou tudo; Deus naocriou nada, nos criamos tuJo. Quem nao percebe que as quatro garantias servem umas as outras de checks and balances nada entende sobreos modernos. As duas primeiras permitem alternar as fontes de poderao passar sem dificuldades da pura for

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    19/73

    A modernidade nao tern nada a ver com a i n v e n ~ a o do humanismo,com a i r r u p ~ a o das ciencias, com a l a i c i z a ~ a o da sociedade, ou com amecaniza,iio do mundo. Ela ea produ,iioconjunra desras tres duplas detranscendencia e imanencia, atraves de uma longa hist6ria da qual apresentei apenas uma etapa por intermedio das figuras de Hobbes e Boyle.o ponto essencial desta C o n s t i t u i ~ a o moderna e 0 de tornar invisivel, impensavel, irrepresentavel 0 trabalho de media\=ao que constr6i as hibridos . Seria isto capaz de interromper este trabalho? Nao, pois 0 mundomoderno parar ia imediatamente de funcionar, uma vez que ele vive damistura, como todos as outros coletivos. A beleza do dispositivo surgeaqui em toda sua intensidade. A Constitui

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    20/73

    A INVENCIBIUDADE DOS MODERNOSPor crer na separa

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    21/73

    dos homens, au asociedade transcendente, au ao Deus distante, au ao Deusintima, mas como resistir acombina

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    22/73

    Se, ao contrario, nossa Constitui

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    23/73

    Ao recorrer algumas vezes anatureza, outras vezes a Deus, e ao oporconstantemente a transcendencia de cada urn destestres termos a sua imanencia, a mola de nossas i n d i g n a ~ 6 e s encontrava-se bern comprimida. 0que ser ia , de fato, urn moderno que nao estivesse mais apoiado sobre atranscendencia da natureza para criticar 0 obscurantismo do poder? Sobre a imanencia da natureza para criticar a inercia dos humanos? Sobre aimanencia cia sociedade para criticar a submissao dos homens e os perigos do naturalismo? Sobre a transcendencia da sociedade para criticar ailusao humana quanta a uma liberdade individual? Sobre a transcendencia de Deus para apelar contra 0 julgamento dos homens e contra a obstin a ~ a o das coisas? Sobre a imanencia de Deus para criticar as Igrejas estabelecidas, as c r e n ~ a s naturalistas e os sonhos socialistas? Seria urn pobremoderno, este, ou entao seria urn pos-moderno: sempre tornado pelo desejo violento de denunciar, nao teria mais a forc;a necessaria para acredita r na legimitidade de nenhum destes seis tribunais de recurso. Retirar aindignac;ao de urn moderno significa priva-Io, ao que parece, de qualquerrespeito por si mesmo. Retirar dos intelectuais organicos e criticos os seisfundamentos de suas denuncias aparentemente e 0 mesmo que retirar-Ihestoda razao para viver.Quando perdemos a adesao sincera aConstituic;ao,nao temos a impressao que perdemos 0 melhor de nos mesmos? Nao eraesta a origemde nossa energia, de nossa forc;a moral, de nossa deontologia?

    E, no entanto,LucBoltanski e LaurentThevenotesvaziaram a deminciamoderna em urn livro tao importante para este ensaio quando 0 de SteveShapin e Simon Schaffer. Fizeram, em rela,ao ao trabalho de indigna,aocr:tica, 0 que Franc;ois Furet ja havia feito em relac;ao a Revoluc;ao francesa. "A denuncia acabou": este poderia ser 0 subtitulo de Economies de lagrandeur (Boltanski e Thevenot, 1991). Ate entao, 0 desvelamento criticoparecia ser algo dado. Era apenas questao de escolher uma causa para aindignac;ao e opor-se as falsas denuncias, colocando nisto toda a paixaodesejavel. Para nos, modernos, desvelar era a tarefa sagrada. Revelar sobas falsas conseiencias os verdadeiros d.lculos ou sob os falsos calculos osverdadeiros interesses. Quem aindanao sente, escorrendo pela boca,urn restode espuma desta raiva? Boltanski e Thevenot, porem, inventaram 0 equivalente de uma vacina anti-nibica, comparando tranquilamente rodas asFontes de denuncia - as Cidades que fornecem os diversos principios dajusti

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    24/73

    ]AMAIS FOMOS MODERNOS

    Sob a julgamento moral pa r denuncia, ha outro julgamentoque sempre funcionou par triageme s e l e ~ a o . Nos 0 chamamos de c o m b i n a ~ a o , com-binazione,mamata, mas tambem de n e g o c i a ~ a o au consenso. Peguy diziaque a moral flexivel e infinitamente mais exigente que a moral rigida. Ocorre 0 mesmo com a moral oficiosa que seleciona e reparte incessantementeas s o l u ~ 6 e s praticas dos modernos. Ela e desprezada porque nao permitea i n d i g n a ~ a o , mas e ativa e generosa porque segue as inumeras sinuosidades das situac;6es e das redes. f: desprezada porque leva em conta os objetos que nao sao nem quest6es arbitrarias de nosso desejo, nem tampoucosimples receptaculo de nossas categorias mentais. Da mesma forma comoa Constituic;ao moderna despreza os hibridos que abriga, tam bern a moral oficial despreza os consensos praticos e os objetos que a sustentam. Soba oposic;ao dos objetos e dos sujeitos, hi 0 turbilhao dos mediadores. Soba grandeza moral, ha a triagem meticulosa das circunstancias e dos casos.

    Posso agora escolher: ou acredito na C o n s t i t u i ~ a o moderna, ou entao estudo tanto 0 que eia permite quanto 0 que proibe, 0 que ela revela eo que esconde. Ou defendo 0 trabalho de purificac;ao- e me torno tambern urn purificador e urn vigilante da C o n s t i t u i ~ a o -, ou entao estudotanto 0 trabalho de m e d i a ~ a o quanto 0 de p u r i f i c a ~ a o , mas entao deixode ser realmente moderno.

    Ao acreditar que a C o n s t i t u i ~ a o moderna nao permite sua propriacompreensao, ao me dispor a revelar as praticas que permitem sua existencia, ao assegurar que 0 mecanismo critico se encontra agora esgotado,ajo como se entrassemos em uma epoca nova, sucessora da era moderna.Eu seria entao, Iiteralmente, pos-moderno? 0 pos-modernismo e urn sintorna e nao uma nova s o l u ~ a o . Vive sob a C o n s t i t u i ~ a o moderna mas naoacredita mais nas garantias que esta oferece. Sente que ha algo de erradocom a crltica, mas nao sabefazer nada alem de prolongara critica sem noentanto acreditar em seus fundamentos (Lyotard, 1979). Ao inv;;s de passar para 0 estudo empirico das redes, que da sentido ao trabalho de puri

    f i c a ~ a o que denuncia, 0 pos-modernismo rejeita qualquert rabalho empiricocomo sendo ilusorio e enganador. Racionalistas decepcionados, seus adeptos sentem cIaramente que 0 modernismo terminou, mas continuam aaceitar sua forma de dividir 0 tempo e nao podem, portanto, recortar asepocas senao atraves de r e v o l u ~ 6 e s que se sucederiam umas as outras.Sentemque vieram "depois" dos modernos, mas com 0 desagradavel sentimento de que nao ha mais depois. No future, e0 seu slogan que acrescenta-se ao dos modernos, No past. 0 que Ihes resta? Instantes sem refe-

    rencias e deniincias sem fundamento, uma vez que os pos-modernos naomais acreditam nas razoes que Ihes permitiriam denunciar e indignar-se.

    Vma outra s o l u ~ a o surge a partir do momento em que seguimos aomesrno tempo a C o n s t i t u i ~ a o e aquilo que ela proibe ou permite, a partirdo momento em que estudamos de perto 0 trabalho de produC;ao de hibridos e 0 trabalho de eliminac;ao destes mesmos hibridos. Percebemosentao que jarnais fomos rnodernos no sentido da C o n s t i t u i ~ a o . A modernidade jamais come

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    25/73

    ambos oscasose mantida a ideia revolucionaria por excelencia de que umarevolu

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    26/73

    tar dos hibridos. a sistema de purificac;aofica tao entulhado quanto nossosistema judiciario.

    Talvez 0 quadro moderno houvesse conseguido se manter par maisalgum tempo caso seu proprio desenvolvimento nao houvesse estabelecido urn curto-circuito entre a natureza, de urn lado, e as massas humanas,de outro. Enquanto a natureza permaneceulongfnqua e dominada, aindase parecia vagamente com 0 polo constitucional da tradiC;ao. Parecia reservada, transcendental, inesgotavel, longfnqua. Mas como c1assificar 0buraco de azonia, a aquecimenra global do planeta? Onde calacar esteshfbridas? Eles sao humanas? Sim, humanas pais sao nassa abra. Sao naturais? Sim, naturais porque nao foram feitos por nos. Sao locais ou globais? as dois. As massaS humanas que as virtudes e os vicios da medicinae da economia multiplicaram tambem nao sao faceis de mapear. Em quemundo abrigar estas multidoes? Estamos no campo da biologia, da sociologia, da historia natural, da socio-biologia?Enossa obra, e no entantoas leis da demografla e da economia nos ultrapassaminfinitamente. A bomba demagrafica e global au local? Os dais. Partanta, tanto do lada danatureza quanto do lado do social, nao podemos mais reconhecer as duasgarantias constitucionais dos modernos: as leis universais das coisas, osdireitosimprescritfveis dos sujeitos. a destinodas multidoes famintas, assimcomo 0 de nosso pobreplaneta, encontram-seligados no mesmo no gordio,que mais nenhum Alexandre vira cortar.Digamos entao que os modernos quebraram. Sua ConstituiC;ao podia absorver alguns contra-exemplos, algumas excec;oes, ate mesmo alimentava-se disto; mastorna-se impotente quando as excec;oes proliferam,quando 0 terceiro estado das coisas e 0 terceiro mundo se misturam parainvadir em massa todas as suas assembleias. Como Michel Serres, chamo estes hibridos de quase-objetos, porque nao ocupam nem a posiC;aode objetos que a Constituic;ao preve para eles, nem a de sujeitos, e porque e impossivel encurralar todos eles na posiC;ao mediana que os tornaria uma simples mistura de coisa natural e simbolo social. Curiosamente, e Levi-Strauss, procurando urn exernplo para nos mostrar 0 quanto 0pensamento selvagern nos e proximo, quem melhor define esta intimafusao atraves da qual os rastros dos dois componentes da natureza e ciasociedade se apagam - componentes que ele diz estarem de frente urnao outro, "como em urn espelho":

    55

    M u l t i p l i c a ~ a odos quase-objetos

    Polo sujeito/sociedade

    Dimensao nao moderna

    FIGURA 4

    Dimensao moderna

    ]amais Fomos Modernos

    humanizadas pela intenc;ao dos motoristas, e homens transformados em forc;as naturais pela energia fisica da qual eles setornam os mediadores. Nao se trata mais cia operac;ao de urnagente sabre urn objeto inerte, nem da r e a ~ a o de urn objet?,promavida aa pape! de agente, sabre urn sujeita que se tenadespassufda em favor do abjeta sem nada pedir-lhe em retorno, ou seja, situac;oes envolvendo, de urnlado ou do outro, umacerta dose de passividade: os seres em presenc;a se defrontamao mesmo tempo enquanto sujeitos e objetos; e, no codigo usadopor eles, uma simples v a r i a ~ a o na disrancia que os separa terna fan;a de urn exarcisma muda" (Levi-Strauss, 1962, p.294).

    Aa inves de acampanhar a multiplicao;aa dos quase-abjetas apenasatraves de sua projec;ao sobre a longitude, convemtambem localiza-los como auxilio de uma latitude. 0 diagn6stico da crise com a qual comecei esteensaio torna-se entao evidente: 0 crescimento dos quase-objetos saturouo quadro constitucional dos modernos. Estes praticavam as duas dimensoes mas so desenhavam explicitamente uma delas, de modo que a seguncia permanecia em pontilhado. Eprecise que os nao-modernos desenhemas duas de forma a compreender ao mesmo tempo os sucessOS dos mo-, , ddernos e seus recentes fracassos, sem com isso naufragar no pos-mo er-nismo. Ao desdobrar as duas dimensoes simultaneamente, talvez possamos acolher os hibridos e encontrar urn lugar para eles, urn nome, umacasa, uma filosofia, uma ontologia e, espero, uma nova constituic;ao.

    Polo natureza

    Para acolher tais quase-objetos, na verdade nao muito diferentes daqueles do pensamento selvagem (ver abaixo), devemos trac;ar urn espac;oque ja nao e mais 0 da Constituic;ao moderna, -uma vez que preenchezona mediana que esta pretendia esvaziar. A. pratica de purificaC;ao -11nha horizontal -, convem acrescentar as praticas de mediac;ao - linhavertical.

    Bruno Latour

    "Urn observador exotico julgaria sem duvida que a circulaC;ao automobilistica no centro de uma grande cidade ou emuma rodovia ultrapassa as faculdades humanas; e de fato eassim, uma vez que esta circulaC;ao nao coloca face a face nemhomens nem leis naturais, mas sim sistemas de forc;as naturais

    54

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    27/73

    a GRANDE DISTANCIAMENTO DAS FlLOSOFIAS MODERNIZADORASComofoi que as grandesfilosofias tentaram absorver aD mesmatem

    po a Constitui'raomoderna e os quase-objetos, este Imperio do Centro quenaG parava de se estender? Se simplificarmos muito, podemos discernir tresgrandes estrategias. A primeira consiste em fazer a grande s e p a r a ~ a o entre os objetos e os sujeitos, cuja distancia naG para entao de creseer; a segunda, sob 0 nome de "vertente semi6tica", preocupa-se com 0 meio,abandonando os extremos; a terceira, enfim, isola 0 pensamento do Serdo pensamento dos eotes.

    Vamos sobrevoar rapidamente as primeiras. Quanta maisos quaseobjetos se multiplicam, mais as grandes filosofias tDrnam os dais polosconstitucionais incomparaveis, ao mesmo tempo em que afirmam que naoha nenhuma tarefa mais urgente doque reconcilia-Ios. Portanto, elas percorrem 0 paradoxo moderno asua maneira, proibindo aquilo que permitern e permitindo aquilo que proibem. Cada uma destas filosofias e comcerteza infinitamente mais sutH do que este misero resumo; cada uma e,por definic;ao, nao moderna, e defronta-se com este mesmo problema queestou abordando desajeitadamente, mas suas interpretac;6es oficiais e popularizadas, entretanto, mostram quanto a isto uma espantosa coerencia:como multiplicar os quase-objetos sem com isso conceder-Ihes a cidadan ia , a fim de que seja mantida a Grande Divisao que nos separa tanto denosso passado quanto dos outros coletivos?

    Hobbes e Boyle,como vimos, s6 estavambrigando tanto porque quasenao eram capazes de separar 0 p610 dos nao humanos mudos e natura isdaque!e dos cidadaos conscienres e falantes. A separa

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    28/73

    o FINAL DOS FINAlS

    59

    ce com urn numero de equilibristas. Ate aqui, todos estes grandes movimentos filosoficos eram serios e profundos; eles fundavam, exploravam,acompanhavam 0 prodigioso crescimento dos quase-objetos, desejavamacreditar que era possivel, apesar de tudo, encaixa-Ios e digeri-Ios. Falando somente de pureza, visavam apenas captar 0 trabalho dos hibridos.Todos estes pensadores interessavam-se apaixonadamente pelas cienciasexatas, pelas tecnicas e economias, porque reconheciam ao mesmo temposeu perigo e sua salva'rao. Mas 0 que dizer das filosofias que vieram depois deles? Alias, que nome lhes dar? Modernas? Nao,porque nao tentam mais segurar as duaspontas da cadeia. Pos-modernas? Ainda nao, 0pioresta para vir. Digamos, pre-p6s-modernas, para chamaraten'raoparao fa to de que sao uma t r a n s i ~ a o . Elas elevam aquilo que era apenas umadistin\=ao, depois uma s e p a r a ~ a o , depois uma c o n t r a d i ~ a o , depois umatensao insuperavel ao nivel de uma incomensurabilidade.

    A C o n s t i t u i ~ a o moderna inteira ja dizia que nao ha medida comumentre 0 mundo dos sujeitos e 0 dos objetos,mas elaanulavaimediatamenteesta distancia ao praticar 0 contrario, ao medir humanos e coisas emconjunto com as mesmas medidas, ao multiplicar, sob 0 nome de intermediarios, os mediadores.Os pre-pos-modernos, por sua vez, acreditam realmente que 0 sujeito falante e incomensuravel ao objeto natural e a eficaciatecnica, ou que devera se-Io caso ainda nao 0 seja 0 bastante. Eles anulam, entao, 0 projeto moderno, ao mesmo tempo em que pensam salva10, pois seguem a metade da C o n s t i t u i ~ a o que fala de pureza enquantoignoram a outra metade que apenas pratica a h i b r i d a ~ a o . Acreditam quenao ha, que nao deve haver mediadores. Do lado dos sujeitos, inventam apalavra, a hermeneutica, 0 sentido, e deixam 0 mundo das coisas derivarlentamente em seu vazio. Do outro lado do espelho, e claro, os cientistase os tecnocratas mantem uma atitude simetrica. Quanto mais a hermeneutica expandeseu territorio, mais 0 naturalismo expande 0 seu. Mas estar e p e t i ~ a o das divis6es da historia torna-se caricata: Changeux e seus neuronios de urn lado; Lacan e seus analisandos de outro. Seu casalde gemeosnao e mais fiel a inten\=ao moderna, uma vez que des nao mais,se esfor\=am para pensar 0 paradoxo que consiste em multiplicar os hfbridos cujaexistencia se proibe por outro lado.Eainda pior quando tentam proteger 0 projeto moderno do perigode seu desaparecimento. Habermas exprime este esforc;o desesperado (Habermas, 1988). Sed que ele vai mostrar que nada nunca separou profundamente as coisas das pessoas? Sera que ira retomar 0 projeto moderno,demonstrar osarranjos da pratica por sob as justificativas cia Constitui\=ao?Pelo contrario, ele acredita que 0 perigosupremo vernda confusao entre ossujeitos falantes e pensantes com a pura racionalidade natural e tecnicapermitida pela anriga filosofia da consciencia! "Eu 0 sugeri todas as vezes]amais Fomos Modernos

    )

    Trabalho deP u r i f i c a ~ a o

    )

    Bruno Latour

    )

    P6lo sujeitolsociedade)

    Multiplicar;:dodos quase-objetos

    Dimensiio nao moderna

    ContradiyJo (Hegel)

    Incomensurabilidade (Habermas)

    Trabalhode M e d i a ~ a o

    FIGURA 5

    (Tensiio insuperavel rfenomenologia)

    Hiper-incomensurabilidade (p6s-modernos)

    ((!p4r4(iio (kantismoj

    D, ti ii0c/Hobb5' e yle)Dimensiiomoderna

    ((

    Polo natureza

    Quanta mais as quase-ob;etosse multiplicam, mais crescead i s t i n ~ a o entre as dais polos

    A fenomenologia iria realizar, uma ultima vez, a grande separa

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    29/73

    dos objetospelodo acordo entre sujeitoscapazesde falare de agir" (p.350).Se algum dia alguem esteveenganado quanta aos inimigos, decerto foi estekantrsmo deslocado em plena seculo xx que se esforl'a para aumentar aabismo entre os objetos conhecidos pelo sujeito, de urn lado, e a razao comunicacional, do outro, enquanto a antiga consciencia tinha ao menos 0merito de visar 0 objeto e, conseqiientemente, de lembrar a origem artifi

    ~ i a l dos dois palosconstitucionais. Mas Habermasquer tornar osdois polosmcomensurclveis, no momento eX':i.to em que os quase-objetosmultiplicamse de tal forma que parece impossivel encontrar apenas urn deles que separe'Sa, urn minimo que seja, com urn sujeito falante livre ou com urn objeto da natureza reificado. Kant ja nao conseguia faze-Io em plena revolu'Sao industrial; comopoderiaHabermasconsegui-Io depois da sexta ou setimarevolu'Sao? 0 velho Kant ainda multiplicava a superposi'Sao dos intermediarios, 0 que lhe permitia restabelecer as transi'Soes entre 0 numenoe 0 egotranscendental. Nada disso ocorrequando a razao tecnica devesermantidatao longe quanto possivel da livre discussao dos homens.

    Ocorre com os pre-pos-modernos 0 mesmo que ocorreu com a rea'Sao feudal bernno fim do Antigo Regime; nunca a honra foi tao minuciosa nem 0 calculo dos quartos de sangue azul mais preciso, e no entanto jaera urn pouco tarde para separar radicalmente a plebe e os nobres! Damesma forma, e urn pouco tarde demais para tentarmos novamente 0 golpecia revolu'Sao copernicana, fazendo as coisas rodarem em torno da intersubjetividade. Habermas e seus discipulos so mantern 0 projeto modernoporque se abstem de qualquer estudo empirico (Habermas, 1987); casocontrario, 0 terceiro estado iria tornar-se visivel rapido demais e misturarse com excessiva intimidade aos pobres sujeitos falantes. Quemorram asredes, contanto que a razao comunicacional pare'Sa triunfar.

    Ainda assim, Habermas e ainda honesto e respeitavel. Mesmo na car ~ c a t u r a do projeto moderno, podemos reconhecer ainda 0 brilho enfraquecldo das Luzes do seculo XVIII au a eco da critica do seculo XIX. Mesmonesta obsessao de separara objetividade cia comunica'Sao, pociemos captarurn rastro, uma lembran'Sa, uma cicatrizda propriaimpossibilidade de faze10 . Com os pos-modernos, 0 abandono do projeto moderno foi consumado. Nao fui capaz de encontrar uma palavra suficientemente vii para designarestemovimento, ou antes, esta imobilidadeintelectual atraves da qualos humanoseos nao humanos saoabandonadosaderiva.Nao estamosmaisfalando de incomensurabilidade, mas da "hiper-incomensurabilidade".

    Basta urn exemplo para mostrar a derrota do pensamento e do projeto pos-moderno. "Este fil6sofo que sou traz urn balan'So desastroso", respondeIean-Franl'ois Lyotard, a quemalguns nobrescientistas pediamquerefletisse sobre 0 la'So que conecta a ciencia ao coletivo humano:

    nada de humano. Talvez nosso cerebra seja apenas a portadorprovisario de urn processo de complexifical'iio. A tarefa agoraseria a de desconectar este processo daquilo que 0 transportouate 0 momento. Estou convencido quee isto que voces [os cientistas!] estao fazendo. A informatica, a engenharia genetica, afisica e a astrofisica, a astronautica, a rob6tica jatrabalham comesta preserva'Sao da complexidade em condi'Soes de vida independentes da vida sobre a Terra. Mas nao vejo 0 que is(o ternde humano, se por humano entendermos as coletividades comsuas tradi'Soes culturais, estabelecidas desde determinada epoca sobre zonas precisas deste planeta. Tenho certeza que esteprocesso "a-humano" possa ter, alem de seus efeitos destrutivos,algumas boas c o n s e q i H ~ n c i a s para a humanidade. Mas isto naotern nadaa vercoma emancipa'Saodo homem" (Lyotard, 1988,p.XXXVIIl).Aos cientistas surpresos com este balan'So desastroso e que ainda

    acreditam na utilidade dos fil6sofos, Lyotard responde, lugubre: "Creioque voces irao nos esperar por urn longo tempo!". Mas esta e a falenciado pas-modernismo (Hutcheon, 1989), e niio a da filosofia. Os pas-modernos acreditam que ainda sao modernos porque aceitam a divisao total entre 0 mundo material e a tecnica de urn lado, os jogos de linguagemdos sujeiros falantes de outro. Mas estao enganados, porque os verdadeiros modernos sempre multiplicaram, na surdina, os intermediarios a fimde tentar pensar 0 formidavel crescimento dos hlbridos ao mesmo tempo em que pensavam sobre sua purifica

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    30/73

    As VERTENTES SEMI6TICAS

    Estes filosofos acharam que so seria possivel autonomizar 0 sentidose duas questoes fossem colocadas entre parenteses. A primeira, a questao da referencia ao mundo natural; a segunda, a identidade dos sujeitosfalantes e pensantes. Para e1es, a linguagem ainda ocupa este lugar medianoda filosofia moderna - 0 ponto de encontro dos fenomenos em Kant _ ,

    opaca, mais au menos fiel ou mais au menos traidora, ela tomou todo 0espa

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    31/73

    c o m e ~ a r a m a desconstruir a si mesmos, glosas autonomas sobre glosasautonomas, ate a a u r o d i s s o l u ~ a o .Desta vertente fundamental, aprendemos que 0 unico meio de esca

    par as armadilhas simetricas da n a t u r a l i z a ~ a o e da s o c i o l o g i z a ~ a o consiste em concedera linguagem sua auronomia. Como desdobrar, sem ela, este

    e s p a ~ o mediano entre as naturezas e as sociedades para nele acolher osquase-objetos, quase-sujeitos? As semi6ticas oferecern uma excelente caixa de ferramentas para seguir de perto as media

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    32/73

    Entreranto, houve realmente alguem que esqueceu0 Ser? Sim, aqueIe que acredita sinceramente que 0 Ser foi esquecido para sempre. Comodiz Levi-Strauss, " 0 barbaro e antes de tudo 0 homem que cre na barbarie". Aqueles que deixaram de estudar empiricamente a ciencia, as tecnicas, 0 direito, a politica, a economia, a religiao e a fiq:ao perderam aspistasdo Ser distribuidas entre os entes. Caso, ao desprezar 0 empirismo, vocese afaste das ciencias exatas, depois das ciencias humanas, depois da filosofia tradicional, depois das ciencias da linguagem, e entao voce se recoIha em sua floresta, certamente ira sentir uma falta tragica.Mas e vocequesente falta, nao 0 mundo. Os seguidores de Heidegger transformaram estafraqueza notavel em uma f o r ~ a . "Nada do que sabemos e empirico, masnao importa, porque 0 mundo de voces evazio de Ser. N6s protejemos apequena chama do pensamento do Ser contra tudo, e voces que tern todoo resto, naotern nada." Pelo contrario, ternos tudo,porquc temos 0 Ser,eos entes, e nunea esqueeemos a d i f e r e n ~ a entre 0 Ser e os entes. Realizamos 0 projero impossivel de Heidegger que aereditava naquilo que a Const i t u i ~ a o moderna dizia sobre si mesma sem eompreender que isto era apenas a metade de urndispositivo mais vasto que nunca abandonou a velhamatriz antropologica. Ninguem pode esquecer 0 Ser, ja que nunca houvemundomoderno e, por isso, nuncahouve metaffsica. Nos ainda somos presocrarieos, pre-cartesianos, pre-kantianos, pre-nietzscheanos. Nenhumarevolu'rao radical podera separar-nos destes passados. Sim, Heraclito e urnguia mais confiavel que Heidegger: "Einai gar kai entautha theaus".

    o INfclO DO TEMPO QUE PASSAA prolifera'rao dos quase-objeros foi, portanto, acolhida por tres es

    trategias diferentes: primeiro, a separa'rao cada vez maior entre 0 p610 dana tu rez a - as cois as em si - e 0 p610 da sociedade ou do sujeito - oshomens-entre-eles; segundo, a autonomiza'rao da linguagem ou do sentido; enfirn, a desconstru'rao da metaffsiea ocidental. Quatro repertoriosdiferentes permitem que a critica desenvolva seus

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    33/73

    que sao Ati la, atras do qual a grama nao crescia rna is. Nao se sentem distantes da Idade Media pa r alguns seculos, mas separados dela pa r revolu

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    34/73

    ser uma novidade absoluta, ja que a grande sabia apagou todos as pistasdesua constrw;ao ecortoutodos as nos que 0 tornavam dependence de seuspredecessores, mergulhados assimna obscuridao? Que sua vida tenha sidocortada coma mesma guilhotina eem nome domesmo obscurantismo e umaironia sinistra da historia(Bensaude-Vincent, 1989). A genese das inova

    ~ o e s cientfficas ou tecnicas so e tao misteriosa na C o n s t i t u i ~ a o modernaporque a transcendencia universal deleis locaise fabricadas torna-se impensavel, e deve permanecer assim sobpena de provocar urn esca,ndalo. A historia dos homens, por sua vez, id. permanecer contingente, agitada pelobarulho e pelo furor. Haved. ponanco duas hist6rias diferentes, uma semoutrahistoricidadeque nao a das r e v o l u ~ o e s totais ou dos cortes epistemologicos, que tratara dascoisas eternas desde sempre presentes, e outra quefalani aper:tas da a g i t a ~ a o mais ou menos circunstancial, mais au menosduravel dos pobres humanos separados das coisas.

    Atraves desta distin

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    35/73

    tarmescomo seodaarcaicaa c r e n ~ a deBoyle nos milagres,obteremos entaoa impressao de urn tempo moclerno radicalmente novo. A n o . ~ ~ o setairreversfvel- progresso ou decadencia- provem deuma c l a s s l f I c a ~ a o dosquase-objetos cuja crescimento os modernos nao. p o ~ e m explic3:" irreversibilidade no cursa do tempo eela mesma devlda a transcenclencla dasciencias e das tecnicas, que na verdade escapam a qualquer compreensao.Eurn processo de classifica

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    36/73

    o tempo nao e urn panorama geral, mas antes 0 resultado provisorio da l i g a ~ a o entre os seres. A disciplina moderna agrupava, eogaochava,sistefilatizava para manter uoida a pletora de elementos contemporaneose, assim, eliminar aqueles que nao pertenciam ao sistema. Esta teotativafracassou, ela sempre fracassou. Nao ha mais, nunca houve nada aMm deelementos que escapam do sistema, objetos euja data e d u r a ~ a o sao incertas. Nao sao apenas os beduinos ou os kung que misturam os traosistores e os costumes tradicionais, os baldes de pIastico e odres em pelesde animal. Ha algum pais que nao seja uma "terra de contrastes"? Acabamos todos misturando os tempos. Nos tornamos todos pre-modernos.Se nao podemos mais progredir como os modernos, devemos regredircomo os anti-modernos? Nao, devemos passar de uma temporalidade aoutra ja que, em si mesma, uma temporalidade nada tern de temporal. Euma forma de c l a s s i f i c a ~ a o para ligar as elementos. Se mudarmos 0 principio de c l a s s i f i c a ~ a o , i r e ~ o s obter umaoutra temporalidade a partir dosmesmos acontecimentos.Suponhamos, por exemplo, que nos reagrupemos os elementos cootemporaneos ao longo de uma espiral e naomais deuma linha. Certamentetemos urn futuro e urn passado, mas 0 futuro se pareee com urn drculoem expansao em todas as d i r e ~ 6 e s , e 0 passado nao se eneontra ultrapassado, mas retomado, repetido, envolvido, protegido, recombinado, reinterpretado e refeito. Alguns elementos que pareciam estar distantes se seguirmos a espiral podem estar muito proximo quando comparamos osaneis. Inversamente, elementos bastante contemporaneos quando olhamosa linha tornam-semuito distantes se percorremos urn raio. Tal temporalidade nao f o r ~ a 0 usa das etiquetas "arcaicos" ou " a v a n ~ a d o s " , ja que todoagrupamento de elementos contemporaneos pode juntarelementos perteocentes a todos os tempos. Em urn quadro deste tipo, nossas a ~ 6 e s sao enfim reconhecidas como politemporais.

    Eu talvez use uma furadeira eletr ica mas tam bern urn martelo. Aprimeira tern vinte anos, 0 segundo eentenas de milhares de anos. Eu sereiurn carpinteiro "de contrastes" porque misturo gestos provenientes detempos diferentes? Eu serei uma curiosidade antropologica? Aocontrario,mostrem-me uma atividade que seja homogenea do ponto devistado tempomoderno. Alguns dosmeus genes tern 500 milhOes de anos, outros 100.000,e rneus hcibitos variam entre alguns dias e alguns milhares de anos.

    Como dizia a Clio de Peguy, e como Michel Sertes tepete hoje, "somos trocadores e misturadores de tempo" (Serres, 1992).Eesta troca quenos define, e nao 0 calendario ou 0 luxo que os modernos tinham construido para nos. Enfileire os Burgraves uns atras dos outros e 0 resultadocontinuani nao sendo tempo. D e s ~ a Iateralmentepara captara ocasiao damorte de Querubim em toda sua intensidade, e 0 tempo estara presente.74 Bruno Latour

    Nos somos tradicionais, entao? Tambem nao. A ideia de uma tradiestavel e uma ilusao da qual os antrop610gos ha muito nos livtaram.Todasas t r a d i ~ 6 e s imutaveis mudaram anteontem. Ocorrecoma maior parte

    dos folclores ancestrais 0 mesmo que ocorreu com 0 kilt "centenario" dosescoceses, totalmente inventado no iniciodo seculoXIX (Hobsbawm, 1983),ou como os Cavaleiros provadores de vinho de minha pequena cidade naBorgonha, cujo ritual milenar nao tern mais do que cinqtienta anos. "Ospovos semhist6ria" foram inventados por aqueles que acreditavamter umahist6ria radicalmente nova (Goody, 1979). Na pratica, os ptimeitOs inoyam sem parar, os segundos passam sem cessar pelas mesmas r e v o l u ~ 6 e s epelasmesmas controversias. Ninguemnasce tradicional,euma escolha quese faz quando se inova muito. A ideia de uma r e p e t i ~ a o identica do passado, bern como a de uma ruptura radical com todos os passados, sao doisresultados simetricos de uma mesma c o n c e p ~ a o do tempo. Nao podemosvoltar ao passado, a t r a d i ~ a o , a r e p e t i ~ a o , porque estes grandes dominiosimoveis sao a imagem invertida desta terra que, hoje, nao nos esta maisprometida: a corridaparafrente, a r e v o l u ~ a o permanente, a m o d e r n i z a ~ a o .o que fazer se nao podemosnem a v a n ~ a r nem recuar? Deslocar nossa

    a t e n ~ a o . Nos nunca a v a n ~ a m o s nem recuamos. Sempre selecionamos ativamente elementos pertencentes a tempos diferentes. Ainda podemos selecionat. Ea s e l e ~ i i o que faz 0 tempo, e nao 0 tempoque faz a s e l e ~ i i o . 0modernismo- e seuscorolarios anti- e p6s-modernos- eraapenas umas e l e ~ a o feita por alguns poucos em nome de muitos. Se mais e mais pessoas recuperarem a capacidade de selecionar, por conra propria, os elementos que fazem parte de nosso tempo, iremos reencontrar a liberdade demovimento que 0 modernismo nos negava, liberdade que na verdade jamais haviamos perdido. Nao emergimos de urn passado de trevas que confundia as naturezas e as culturas para atingir urn futuro no qual os doisconjuntos estarao enfim claramente separados, g r a ~ a s a r e v o l u ~ a o continua do presente.Jamais estivemos mergulhados em urn fluxo homogeneoe planetario vindo seja do futuro, seja dasprofundezas das eras. Amodet

    n i z a ~ a o nunca ocorreu. Nao e uma mare que ha muito sobe e que hojeestaria refluindo. Jamais houve uma mare. Podemos seguir emfrente, querdizer, retornar as diversas coisas que sempre seguiram de outra forma.

    UMA CONTRA-REVOLUc;:Ao COPERNICANA

    Se houvessemos sido capazes de recalcar atrasde nos, por mais tempo,as multidoes humanase 0 ambiente nao humano, provavelmente poderiamos continuar acreditando que os temposmodernos realmentepassavam,eliminando tudo em sua passagem. Mas 0 que foi recalcado esta de volta.o F R II Jamais FomosModli'BliQlOlii1 S'IOIW (;ico,Si,J,3 Sociais HUlIlanida'lJej

    tanto, tinham sempre tres aspectos: uma purifica

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    37/73

    FIGURA 7

    t ia sempre dos dois polos e se dir igia para 0 meio, inicialmente ponto declivagem e depois ponto de encontro dos recursos opostos. Desta formao meio e ra mantido e abo lido ao mesmo tempo.

    Polo sujeito/sociedade

    Polo sujeito/sociedade

    Polo natureza

    Polo natureza

    FIGURA 8

    O ~ O : = ~ : = = : ; O ~ T r a ~ b a ~ l h O ~ { ; ; ~ e( : u r z ~ l i c ~ ~ ~ O = : = ~ : : O 0)eE - ' : : : " ' O ~ ~ ~ ~ e : . . . . ~ = - - - - - - ' O " = = " ' - - - - " ' ' ' - 7Trabalho de mediao

    A e x p l i c a ~ a o parte dos mediadores e atinge os extremos enquanto resultados;o trabalho de purificac;ao torna-se uma mediac;ao em particular

    Se estamostentando desdobrar 0 Imperio do Meioem si, somos obrigados a inverter a forma geral das explica

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    38/73

    o objeto gire em torno de urn novo foro ao multiplicar os intermediariospara anular aos poucos a distancia. Mas nada nos obriga a tomar esta revoluC;ao como urnacontecimento decisivo que nosteria colocado para semprena caminho seguro da ciencia , da moral e da teologia. Ocorre, com estainversao, 0 mesmo que com a Revolwraofrancesa, que esta ligada a eIa;saoexcelentes instrumentos paratornar 0 tempoirreversfvel, mas nao sao, emsi, irreversfveis. DOll 0 nome de contra-revolw;ao copernicana a esta inversao da inversao. au antes este deslizamento dos extremos rumo ao centroepara baixo, que faz girartanto 0 objetoquanto 0 sujeito emtorno da pr

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    39/73

    cia materia? Boyle in! se tarnar urn experimentador respeitado casa pratique estas experiencias vulgares e abandone a explica'rao dedutiva, a unicadigna de urn cientista? Todas estas perguntas naG estao rna is encurraladas entre a natureza e a soeiedade, ja que radas elas redefinem aquila deque a natureza ecapaz e 0 que ea sociedade. Natureza e sociedade naGsao mais os termos explicativos, mas sim aquila quereguer uma explica

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    40/73

    gra, a pedra. A ciencia moderna nasce, na R e n a s c e n ~ a , a partirda queda dos corpos: caem as pedras. Por que Jesus fundou aigreja crista sabre urn homem cuja nome era Pedro?Misruro avontade religioes e conhecimentos nestes exemplos de instaura,ao " (p.213).Por que deveriamos levar a serio uma generalizac;ao tao apressada

    de radas estas petrificar;oes, misturando a pedra negra religiosa a quedados corposde Calileu? Pelomesmomotivo que levei a serio 0 trabalho deSchapin e Schaffer "misturandoavontade religioes e saberes em seus exemplos de instaurar;ao" cia ciencia e cia politica modernas. Eles haviam fundamentado a epistemologia com este novo atOtdesconhecido, a bomba dear improvisada, artesanal e que vaza. Serres fundamenta a epistemologiacom este atcr desconhecido, as caisas silenciosas. Todos sao movidos pelamesma razao antropol6gica: a ciencia e a religiao estao ligadas po r umaprofunda reinterpreta,aodo que significaacusar e julgar. Para Boyle, comopara Serres, a eiencia e urn ramo do judiciario:

    "Em todas as linguas da Europa, ao norte bern como aosui , a palavra coisa , qualquer que seja sua forma, tern comoorigem ou raiz a palavra causa, proveniente da area juridica,politica ou da critica em geral. Como se os objetos em si existissern apenas de acordo com os debates de uma assembleia oude acordo com uma decisao pronunciadapor urn juri. A linguagem quer que 0 mundo venha somente dela. Ao menos e 0 quediz" (p.lll). "Era assim que 0 latim chamava res, a coisa , deonde tiramos a realidade, objeto do procedimento juridico oua propria causa, de forma que, para os antigos, 0 acusado erachamado de reus porque os magistrados 0 citavam. Como setoda realidade humana viesse apenas dos tribunais" (p.307)."Ali nos esperam 0 milagre e a resolu,ao do enigma final . Apalavra causa designa a raiz ou origem da palavra coisa: causa, cosa; da mesma forma, thing ou Ding.[...]0 tribunal coloca em questao a ident idade da causa e da coisa , da palavra edo objeto ou a passagem substitutiva de ambos. Algo emergeai" (p.294).Eassim que Serres generaliza, em tres c i t a ~ 6 e s , os resultados que

    Schapin e Schaffer montaram com tanto e s f o r ~ o : ascausas, as pedras e osfatos nunca ocupam a p o s i ~ a o da coisa-em-si. Boyle perguntava-se como

    p a ~ o fechado em urn recipiente onde a existencia do vacuo ficaria elara,renunciaodo a condenar as testemunhas por suasopini6es. Nao haveni rnaisnenhuma a c u s a ~ a o ad hominem, nos diz Boyle, nenhuma testemunha humana sera levada em coota, somente os indicadores oao humanos e instrumentos observados po r cavalheiros serao validos. A acumula,ao obstinada dos matters of fact ira estabelecer os fundamentos do coletivo pacificado. Esta i n v e n ~ a o dos fatos nao e, entretanto, a descoberta das coisas out there, e uma c r i a ~ a o antropol6gica que redistribui Deus, a vontade, 0 arnor, 0 odio, e a j u s t i ~ a . Serres concorda. Nao ternos a menor ideiaquanto ao aspecto que as coisas ter iam fora do tribunal, fora de nossasguerras civis, fora de nossos processos e nossos tribunais. Sem a c u s a ~ a o ,nao temos nenhuma causa para defender e nao podemos atribuir causasaos fenomenos. Esta s i t u a ~ a o antropologica nao se limita a nosso passado pre-cientifico, posto que pertence mais a nosso presente cientffico.

    Assim, nao vivemos em uma sociedade que seria moderna porque,contrariamente a todas as outras, estaria enfirn livre do inferno das rela

    ~ 6 e s coletivas, do obscurantismo da religiao, da tirania da polftica, masporque, da mesma forma que todas as outras, redis tr ibui as a c u s a ~ 6 e s ,substituindo uma causa - judiciaria, coletiva, s o c i a l - por uma c a u s a cientifica, nao social, matter-of-factual. Em nenhum lugar podemos observar urn objeto e urn sujeito, uma sociedade que seria primitiva e outramoderna. Vma serie de s u b s t i t u i ~ 6 e s , de deslocamentos, de t r a d u ~ 6 e s mo- bilizam povos e coisas em escala cada vez maior.

    "Imagino, originalrnente, urn turbilhao rapido no qua l aconstitui,ao transcendental do objeto pelo sujeito se alimentaria, como po r r e t r o a l i m e n t a ~ a o , da c o n s t i t u i ~ a o simetrica dosujeito pelo objeto, em serni-eielosvertiginosos e constantementeretomados, retornando aorigem. [...] Existe urn transcendental objetivo, condi,ao constitutiva do sujeito pela apari,ao doobjetocomo objeto em geral. Da c o n d i ~ a o inversa ou simetrica sobre 0 cielo turbillhonante, temos testemunhos, restos ounarrativas, escritos nas lfnguas instaveis. [...] Mas da c o n d i ~ a oconstitutiva direta apartir do objeto temos testemunhos tangiveis, visfveis, concretos, formidaveis, tacitos. Por mais que voltemos na hist6ria falante ou na pre-historiasilenciosa, eles nuncadeixam de estar presentes" (p.209).Serres, em sua obra ta o pouco moderna, nos conta uma pragmato

    gonia, tao fabulosa quanto a velha cosmogonia de Hesiodo ou a de Hegel.

    I

    82 BrunoLatour Jamais Fomos Modernos 83

    como urn gradiente que varia a estabilidade das entidades continuamentedo acontecimento ate a essencia. Nada sabemos ainda sabre a bomba de

    A sua nao procede por metamorfose ou dialetica, mas por s u b s t i t u i ~ 5 e s .As novas ciencias que desviam, transformam, petrificam 0 coletivo em coisas que ninguem fez, nada mais sao do que retardatarios nesta longa mi

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    41/73

    ar quando dizemos que ela e a r e p r e s e n t a ~ a o das leis da natureza ou a representa,ao da sociedade inglesa ou uma aplica,ao da primeira sobre asegunda ou vice-versa. Precisamos ainda decidir se estamos falando dabomba de ar-acontecimento do scculo XVII, ou da bomba de ar-essenciaestabilizada no seculo XVIII ou noseculo XX. 0 grau de estabiliza,aoa latitude- etao importante quanto a p o s i ~ a o sobre a linha que vai donatural ao soeial.- a longitude.

    tologia das s u b s t i t u i ~ 5 e s . Aqueles que acompanham as redes ou que estudam asciencias nao fazem nada senao documentar a enesima volta destaespiral cujo come,o fabuloso e esbo,ado por Serres. A ciencia contemporanea e uma forma de prolongar aquilo que sempre fizemos. Hobbesconstruiu urn corpo polit ico a partirde corpos nus animados- ele se veas voltas com a gigantesca protese artificial do Leviata; Boyle concentratodo 0 con1ito das guerras civis em torno de uma bornba de ar - ele seve as voltas com fatos. Cada volta da espiral define urn novo col;t ivo euma nova objetividade. 0 coletivo em perma'nente r e n o v a ~ a o que se organiza em torno das coisas em perrnanente r e n o v a ~ a o jamais deixou deevoluir . Jamais deixamos a matriz antropo16gica - estamos ainda naidade das trevas ou, se preferirmos, estamos ainda na infancia do mundo.

    ONTOLOGIAS DE GEOMETRIA VARIAVEL

    Polo natureza

    latitudeE vazia nO 5

    C'

    FIGURA 9

    IEssenciaA

    D"E'

    B'Polo sujeito/sociedade

    D'

    D vazio n 4

    A partir do momento em que atribufrnos a historicidade a todos osatores, a fim de acolher a p r o l i f e r a ~ a o dos quase-objetos, a natureza e asociedade tornam-se tao inexistentes quanto 0 Oeste e 0 Leste. Tornamse referencias comodas e relativas que os modernos empregam para diferenciar os intermediarios, alguns sendo chamados de "naturais" e outrosde "sociais", enquanto que outrqs serao "totalrnente naturalS" e outrosainda "totalmente sociais". Os analistas que vao em d i r e ~ a o a esquerdasetaO charnados de realistas, enquanto os que forem para a direita seraochamados de construtivistas (Pickering, 1992). Os que desejarem manterse exatamente no meio inventarao inurneras c o m b i n a ~ 6 e s .para separar anatureza da sociedade (ou sujeito), alternando a "dimensao sirnb6lica" dascoisas com a "dimensao natural" das sociedades. Outros, mais imperialistas, tentarao naturalizar a sociedade integrando-a na natureza, ou entao socializar a natureza, fazendo comqueseja digeridapela sociedade (ou,o que e mais diffcil, pelo sujeito).

    Entretanto, estas referencias e estes debates continuam a ser unidimensionais. Classificar todas as entidades segundo uma unica linha quevai da natureza asociedade seria 0 mesmo que elaborar mapas geograficos somente com a longitude, 0 que os reduziria a urn unico t r a ~ o ! A segunda dimensao permite dar qualquer latitude as entidades e desdobrar 0mapaque registra,como eu disse anteriormente, ao mesmo tempo a Constituic;ao moderna e sua pratica. Como iremos definir este equivalente doNorte e do SuI? Misturando as metaforas, eu dida que e precise defini-lo

    C vazio nO 3 l-__ ---1C"B" vazio n 2A vazio nO 1

    ExistencialongitudeI

    A ontologia dos mediadores, portanto, possui uma geometria variavel. 0 que Sartre dizia dos humanos, que sua existencia precede sua esseneia, evalido para todos os actantes, a elasticidadedo ar, a soeiedade, amateria e a consciencia.Nao temos que escolher entre 0 vacuo n5, realidade da natureza exterioreuja esseneia nao depende de nenhum humano,eo vacuo n 4, r e p r e s e n t a ~ a o que os pensadoresocidentais levaram seeulospara definir. Ou antes, s6 poderemos escolher entre os dois quando houverem ambos sido estabilizados. Nao podemos afirmar se 0 vacuo n 1,muito insravel no laboratorio de Boyle,enatural ou social, mas apenasqueocorre artificialmente no laborat6rio. 0 vacuo nO 2 pode ser urn artefatofabricado pelamao do homem, a menos que se transmute em vacuo n 3,que e o m e ~ a a tornar-se uma r e a ~ a o que escapa aos homens . 0 que e0vacuo, entao? Nenhuma destas p o s i ~ 5 e s . A essencia do vacuo ea tra;et6-ria que liga todas elas. Emoutras paIavras, a elasticidade do ar possui umahistoria. Cada urn dos actantes possui uma assinatura uniea no e s p a ~ odesdobrado por esta trajet6ria. Para t r a ~ a - l o s , nao precisamos construirnenhuma hipotese sobre a essencia da natureza ou a da sociedade. Basta

    84 Bruno Latour Jamais FomosModernos 85

    superpor todas estas assinaturas para obtera forma que osmodernoscha torna-se, g r a ~ a s apropria p r o l i f e r a ~ a o dos hibridos, urn gradiente conti

  • 7/28/2019 56062581 Latour Bruno Jamais Fomos Modernos PDF

    42/73

    mamerroneamente,para resumire purificar, de "natureza" e "sociedade".Mas se projetarmos todas estas trajetorias sobre a linha unica queliga 0 antigopolo da natureza ao antigopolo da sociedade, nao compreen

    deremos mais nada. Todos os pontos (A, B, C, 0, E) estarao projetadosunicamente ao longo da longitude (A', B', C', D' , E'), sendo que 0 pontocentral A estara localizado no local dos antigos fenomenos, onde nadadeveria OCoreer de acordo com a hipotese moderna. Com esta linha, apenas, realistas e construtivistas poderao brigar durante cento e sete anosparainterpretar 0 vazio: as primeiros irao afirmar que ninguem fabricou estefato real; os segundos que este fato social foi fabricado apenas com nossas maos. Os partidarios do ponto exatamente intermediario irao balanentre os dais sentidos da palavra "fato", usando de vez emquando aformula "nao apenas... mas tambem...". Isto porque 0 fabrico encontrase abaixo desta linha, no trabalho de m e d i a ~ o , visivel unicamente se levarmos em conta tambem 0 grau de e s t a b i l i z a ~ a o (B", C", D" , E").Ocorre, com as grandes massas da natureza e da sociedade, a mesrna que oeorre com as continentes resfriados na tectonica das placas. Sedesejarmos compreender seu movimento, precisamos descer nessas fendasem chamas onde a magma irrompe e a partir do qual serao produzidas,muito mais tarde e mais longe, pa r resfriamenro e empilharnento progressivo, as duas placas continentaissobre as quais nossospes estao firmementefixados. Nos tambemdevemos descer e aproximar-nos desses lugares ondesao criados os mistos que iraotornar-se, muito mais tarde, coisas naturaisou sociais. Seria muito pedir que, em nossos debates, de agora em diante,tenhamos que definir tanto a latirude quanto a longitudedas entidades deque falamos, e que consideremos todas as essencias como trajetorias?

    Agora podemoscompreendermelhor 0 paradoxodos modernos. Umavez que utilizavam ao mesmo tempo 0 trabalho de m e d i a ~ a o e 0 de puri

    f i c a ~ a o , mas representavam apenas 0 segundo, eles jogavam ao mesmotempo com a transcendencia e com a imanencia das duas instancias danatureza e da sociedade. 0 que resultava em quatro recursos contraditorios, que lhes permitiam fazer tudo e qualquer coisa. Ora, se t r a ~ a r m o s 0mapa das variedades ontologicas, iremos pereeber que nao ha quatro regioes, mas somente tres. A dupla transcendencia da natureza, de urn lado,e da sociedade, do outro, coreesponde as essencias estabilizadas. Em comp e n s a ~ a o , a imanencia das naturezas-naturantes e dos coletivoscorrespondea uma mesma e llnica regiao, a da instabilidade dos eventos, a do trabalho de m e d i a ~ a o . A C o n s t i t u i ~ a o moderna, portanto, esta certa: ha de fato .',urn abismo entre a natureza e a sociedade, mas este abismo e apenas- urnresultadotardio da e s t a b i l i z a ~ a o . 0 unico abismoquecontae 0 que sepa-ra 0 trabalho de m e d i a ~ a o da moldagem constitucional, mas este abismo

    nuo que somos capazes de percorrer tao cedo nos tornamos novamenteaquilo que jamais deixamos de ser, ou seja, nao-modernos. Se acrescentarmos a versao oficial e estavel da C o n s t i t u i ~ a o sua versao oficiosa e quente- ou instavel -, e 0 meio, pelo contrario, que fica cheio, e os extremosse esvaziam. Compreendemos porque os nao-modernos nao sucedem aosmodernos. Tudo que os primeiros fazem e oficializar a pratica desviadados segundos. Pelo p r e ~ o de uma pequena c o n t r a - r e v o l u ~ a o , podemos enfimcompreender, retrospectivamente, aquilo que sempre havfamos feiro.

    LIGAR os QUATRO REPERT6RIOS MODERNOSAoconstruirestas duas dimens6es, moderna e nao-moderna, ao operar esta c o n t r a - r e v o l u ~ a o copernicana, ao fazer com que 0 objeto e 0 sujeito deslizassem para 0 centro e para baixo, talvez sejamos capazes decapitalizar osmelhores recursos criticos.Os modernos desenvolveram qua

    tro repertoriosdiferentes, que acreditavam serincompativeis,par a acomodar a p r o l i f e r a ~ a o dos quase-objetos. 0 primeiro repertorio trata da realidadeexterior de uma natureza da qual naosomasmestres, que existe forade nos e que nao conta nem com nossas paix6es nem com nosso desejo,ainda que sejamos capazes de mobiliza-la e de construf-la. 0 segundo reperrorio trata do l a ~ o social, daquilo que liga os humanos entre si, daspaix6es e desejos que nos agitam, das f o r ~ a s personificadas que estruturama sociedade - a qual nos ultrapassa, ainda que seja construfda por nos.o terceiro trata da s i g n i f i c a ~ a o e do sentido, dos actantes que comp6emas hist6rias que contamos uns aos outros, das provas que eles enfrentam,das aventurasque atravessam, dos tropos e dosgeneros que os organizam,das grandes narrativas que nos dominam infinitamente, ainda que sejamsimultaneamente texto e discurso. 0 quarto, enfim, fala do Ser, e desconstroi aquilo de que nos esquecemos quando nos preocupamos apenascom 0 ente,ainda que a d i f e r e n ~ a do Ser esteja distribuida pelos entes, coextensivos a sua propria existencia.

    E,Stes recursos s6 sao incompatfveis na versao oficial da Constitui~ a o . Na pratica, e diffcil distinguir os quatro. Misturamos, sem 0 menorpudor, nossos desejos com as coisas, 0 sentido com 0 social, 0 coletivocom as narrativas. A partir do momento em que seguimos de perro qualquer quase-objeto, est