Auguste Comte - geografia · PDF fileAuguste Comte A sã política não deveria ter por objeto fazer avançar a espécie hu­ mana, que se move por impulso próprio, seguindo uma lei

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  • Auguste Comte

    A s poltica no deveria ter por objeto fazer avanar a espcie humana, que se move por impulso prprio, seguindo uma lei to necessria quanto a da gravidade, embora mais modificvel; ela tem por finalidade facilitar sua marcha, iluminando-a.

    Systme de politique positive, Apndice III, Plan des travaux scientifiques ncessaires pour

    rorganiser la socit, 1828, p. 95.

    Montesquieu , antes de tudo, o socilogo consciente da diversidade humana e social. Para ele, o objetivo da cincia pr ordem num caos aparente; o que consegue, concebendo tipos de governo ou de sociedade, enumerando determinantes que influenciam todas as coletividades e, talvez mesmo, em ltima anlise, identificando alguns princpios racionais de validade universal, embora sujeitos a eventuais violaes, aqui e ali. Montesquieu parte da diversidade para chegar, no sem esforo, unidade humana.

    Auguste Comte, ao contrrio, antes de mais nada o socilogo da unidade humana e social, da unidade da histria humana. Leva sua concepo da unidade at o ponto em que a dificuldade inversa: tem dificuldade em encontrar e fundamentar a diversidade. Como s h um tipo de sociedade absolutamente vlido, toda a humanidade dever, segundo sua filosofia, chegar a esse tipo de sociedade.

    As trs etapas do pensamento de Comte

    Parece-me que podemos apresentar as etapas da evoluo filosfica de Auguste Comte como representando as trs formas pelas quais a tese da unidade humana afirmada, explicada e justificada. Essas trs etapas esto marcadas pelas trs obras principais de Comte.

    A primeira, entre 1820 e 1826, a dos O puscules de p h ilo so p h ie sociale: Som m aire apprciation su r T ensem ble du p a ss m oderne (Opsculos de filosofia social: apreciao sumria do conjunto do passado moderno), abril de 1820; Prospectus des travaux sc ien tifiques ncessaires p o u r rorgan iser la socit (Prospecto dos trabalhos cientficos necessrios para reorganizar a sociedade), abril de 1822; C onsidrations ph ilo so p h iq u es su r les ides e t les savan ts (Con

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    sideraes filosficas sobre as idias e os cientistas), novembro-dezembro de 1825; Considrations sur le pouvoir spirituel (Consideraes sobre o poder espiritual), 1825-1826. A segunda etapa est constituda pelas lies do Cours de philosophie positive (Curso de filosofia positiva), 1830-1842; a terceira, pelo Systme de politique positive ou trait de sociologie instituant la religion de 1humanit (Sistema de poltica positiva ou tratado de sociologia instituindo a religio da humanidade), publicado de 1851 a 1854.

    Na primeira etapa, nos Opsculos (republicados por Comte no fim do tomo IV do Systme de politique positive, para marcar a unidade do seu pensamento), o jovem polytechnicien reflete sobre a sociedade do seu tempo. A maior parte dos socilogos toma como ponto de partida uma interpretao da sua poca. Auguste Comte , nesse aspecto, exemplar. Os Opsculos constituem a descrio e a interpretao do momento histrico vivido pela sociedade europia no princpio do sculo XIX.

    Segundo Auguste Comte, um certo tipo de sociedade, caracterizado pelos dois adjetivos, teolgico e militar, est em vias de desaparecer. O cimento da sociedade medieval era a f transcendental, interpretada pela Igreja Catlica. O modo de pensar teolgico era contemporneo da predominncia da atividade militar cuja expresso era a atribuio das primeiras posies aos homens de guerra. Um outro tipo de sociedade, cientfica e industrial, est em vias de nascer. A sociedade que nasce cientfica, no sentido em que a sociedade que morre era teolgica: o modo de pensar dos tempos passados era o dos telogos e sacerdotes. Os cientistas substituem os sacerdotes e telogos como a categoria social que d a base intelectual e moral da ordem social. Esto em vias de receber dos sacerdotes, como herana, o poder espiritual que, segundo os primeiros Opsculos de Comte, se encarnou necessariamente, em cada poca, nos que oferecem o modelo do modo de pensar predominante, e fornecem as idias correspondentes aos princpios da ordem social. Assim como os cientistas substituem os sacerdotes, os industriais, no sentido mais amplo - isto , os empreendedores, diretores de fbricas, banqueiros - , esto assumindo o lugar dos militares. A partir do momento em que os homens pensam cientificamente, a atividade principal das coletividades deixa de ser a guerra de homens contra homens, para se transformar na luta dos homens contra a natureza, ou na explorao racional dos recursos naturais.

    Desde essa poca, Auguste Comte conclui, a partir da anlise da sociedade em que vive, que a reforma social tem como condio fundamental a reforma intelectual. Os imponderveis de uma revoluo ou a violncia no permitem reorganizar a sociedade em crise. Para isso preciso uma sntese das cincias e a criao de uma poltica positiva.

    Como muitos de seus contemporneos, Auguste Comte considera que a sociedade moderna est em crise, e encontra explicao dos probslemas sociais

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    na contradio entre uma ordem histrica teolgico-militar em vias de desaparecer e uma ordem social cientfica-industrial que nasce.

    A conseqncia dessa interpretao da crise da sua poca que Comte, reformador, no um doutrinrio da revoluo ao modo de Marx, nem um doutrinrio das instituies livres maneira de Montesquieu ou de Tocqueville; um doutrinrio da cincia positiva e da cincia social.

    A orientao geral do pensamento e, sobretudo, os planos de transformao de Comte decorrem dessa interpretao da sociedade da poca. Assim como Montesquieu observava a crise da monarquia francesa, e essa observao constitua uma das origens da sua concepo de conjunto, Auguste Comte observa a contradio de dois tipos sociais que, segundo ele, s pode ser resolvida pelo triunfo do tipo social que chama de cientfico e industrial. Essa vitria inevitvel, mas pode ser mais ou menos acelerada, ou retardada. Com efeito, a funo da sociologia compreender o devenir necessrio, isto , indispensvel e inevitvel, da histria, de modo a ajudar a realizao da ordem fundamental.

    Na segunda etapa, a do Curso de filo so fia positiva , as idias diretrizes so as mesmas, mas a perspectiva ampliada. Nos Opsculos, Auguste Comte considera essencialmente as sociedades da poca e seu passado, isto , a histria da Europa. Seria fcil para um no-europeu mostrar que, nos primeiros opsculos, Auguste Comte tem a ingenuidade de conceber a histria da Europa como se ela absorvesse a histria de todo o gnero humano; ou ainda, pressupe o carter exemplar da histria europia, admitindo que a ordem social para a qual tende ser a ordem social de toda a espcie humana. Durante essa segunda etapa, isto , no Curso de filosofia positiva , Auguste Comte no renova esses temas, mas aprofunda e executa o programa cujas grandes linhas tinha fixado em suas obras de juventude.

    Passa em revista as diversas cincias, desenvolve e confirma as duas leis essenciais, que j tinha enunciado nos opsculos: a lei dos trs estados e a classificao das cincias1.

    Segundo a lei dos trs estados, o esprito humano teria passado por trs fases sucessivas. Na primeira, o esprito humano explica os fenmenos atribuindo-os a seres, ou foras, comparveis ao prprio homem. Na segunda, invoca entidades abstratas, como a natureza. Na terceira, o homem se limita a observar os fenmenos e a fixar relaes regulares que podem existir entre eles, seja num momento dado, seja no curso do tempo; renuncia a descobrir as causas dos fatos e se contenta em estabelecer as leis que os governam.

    A passagem da idade teolgica para a idade metafsica, e depois para a ida- ^le positiva, no se opera simultaneamente em todas as disciplinas intelectuais. No pensamento de Comte, a lei dos trs estados s tem um sentido rigoroso quando combinada com a classificao das cincias. A ordem segundo a qual so or

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    denadas as diversas cincias nos revela a ordem em que a inteligncia se toma positiva nos vrios domnios2.

    Em outras palavras, a maneira de pensar positiva se imps mais cedo nas matemticas, na fsica, na qumica, e depois na biologia. normal, alis, que o positivismo aparea mais tarde nas disciplinas que tm por objeto matrias mais complexas. Quanto mais simples uma matria, mais fcil pensar sobre ela positivamente. H mesmo alguns fenmenos cuja observao se impe por si mesma, de sorte que, nesses casos, a inteligncia imediatamente positiva.

    A combinao da lei dos trs estados com a classificao das cincias tem por objetivo provar que a maneira de pensar que triunfou na matemtica, na astronomia, na fsica, na qumica e na biologia deve, por fim, se impor poltica, levando constituio de uma cincia positiva da sociedade, a sociologia.

    Mas essa combinao no tem unicamente por objeto demonstrar a necessidade de criar a sociologia. A partir de uma certa cincia, a biologia, intervm uma reviravolta decisiva em termos de metodologia: as cincias deixam de ser analticas para serem, necessria e essencialmente, sintticas. Essa inverso ir dar um fundamento concepo sociolgica da unidade histrica.

    Esses dois termos, analtico e sinttico, tm, na linguagem de Auguste Comte, mltiplas significaes. Neste exemplo preciso, as cincias da natureza inorgnica, a fsica e a qumica, so analticas no sentido de que estabelecem leis entre fenmenos isolados, e isolados necessria e legitimamente. Na biologia, porm, impossvel explicar um rgo ou uma funo sem considerar o ser vivo como um todo. com relao ao organismo como um todo que um fato biolgico particular tem significado e pode ser explicado. Se quisssemos separar arbitrria e artificialmente um elemento de um ser vivo, teramos diante de ns apenas matria morta. A matria viva enquanto tal intrinsecamente global ou total.

    Essa idia da primazia do todo sobre os elementos deve ser transposta para a sociologia. impos