CARDOSO Isabel-Art-cotidiano Reproducao Lefebvre

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  • O ESPAO URBANO E A RE-PRODUO DAS RELAES SOCIAIS NO PENSAMENTO DE HENRI LEFEBVRE: CONTRIBUIES TEORIA SOCIAL

    CRTICA

    Isabel Cristina da Costa Cardoso1

    Palavras-chave: re-produo; produo social do espao; espao abstrato; urbano, vida

    cotidiana; mtodo dialtico.

    Resumo: o artigo trata do pensamento de Henri Lefebvre e sua contribuio tradio

    marxista a partir da reflexo do papel do espao e da vida cotidiana na dinmica de re-

    produo das relaes sociais de produo capitalistas. A partir deste campo de reflexo, o

    artigo analisa os conceitos de sociedade urbana, de urbano, de cidade e os desafios

    formulados por Lefebvre instituio de uma nova prxis urbana baseada no direito cidade.

    Por ltimo, o artigo reflete acerca da pertinncia deste pensamento para a compreenso do

    urbano no Brasil.

    THE URBAN SPACE AND THE RE-PRODUCTION OF SOCIAL RELATIONS IN THE THOUGHT OF HENRI LEFEBVRE: CONTRIBUTIONS TO CRITICAL

    SOCIAL THEORY

    Abstract: The article discusses the thought of Henri Lefebvre and its contribution to the

    Marxist tradition from the reflection of the role of space and everyday life in the dynamics of

    reproduction of social relations of capitalist production. From this reflection, the paper

    analyzes the concepts of urban society, the urban, the city, and the challenges of a new urban

    praxis based on right to the city. Finally, the article reflects on the relevance of this

    thinking to the understanding of urban in Brazilian society.

    Key words: re-production; social production of space; abstract space; urban, everyday life;

    dialectical method.

    Introduo1 Professora adjunta da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro(FSS/UERJ), Doutora em Sociologia pela Universidade de So Paulo (USP), Pesquisadora do Programa de Estudos de Trabalho e Poltica e Membro da Rede Questo Urbana e Servio Social.

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  • no contexto de contribuio terica e poltica de Lefebvre ao campo da tradio

    marxista que o artigo busca dialogar com alguns dos conceitos centrais de sua obra a fim de

    refletir em que medida as formulaes tericas da produo social do espao, da sociedade

    urbana, do urbano, da re-produo das relaes sociais de produo, entre outros destacados

    ao longo do artigo, permitem compreender tanto as antigas e novas contradies da sociedade

    capitalista, enquanto totalidade social, notadamente as contradies do espao, quanto as

    exigncias e desafios atuais postos construo de novas prxis scio-espaciais, na dimenso

    da utopia urbana lefebvriana. Pensar a sociedade urbana a partir do pensamento Lefebvriano

    no se desvincula de uma exigncia prtico-sensvel, ou seja, a formulao de uma teoria da

    produo social do espao urbano capaz de interpretar a realidade scio-histrica implica a

    criao de uma nova prxis urbana, no sentido de uma nova utopia urbana.

    As reflexes aqui desenvolvidas so fruto do esforo de investigao terica do

    projeto de pesquisa trajetrias urbanas do trabalho e da cidade: o projeto Porto Maravilha e

    as transformaes do desenvolvimento capitalista da cidade do Rio de Janeiro e das

    atividades desenvolvidas pelo projeto de extenso Direito Cidade, Poltica Urbana e

    Servio Social1, ambos desenvolvidos no mbito do Programa de Estudo de Trabalho e

    Poltica da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

    O texto se encontra dividido em duas sesses. A primeira trata da formulao do

    conceito de re-produo das relaes sociais de produo pelo pensamento de Lefebvre e das

    relaes entre tal conceito e a formulao de sua teoria da produo social do espao. A

    ltima sesso se dedica ao tema do urbano, das suas determinaes a partir da sociedade

    capitalista, das contradies contidas nestas formas de determinao, e da potncia de

    transformao da vida urbana atravs da reivindicao do direito cidade. A partir desta

    sesso so realizadas mediaes entre o pensamento de Lefebvre e a formao do urbano no

    Brasil.

    I - A re-produo das relaes sociais de produo: a centralidade do espao e da vida

    cotidiana.

    A compreenso do pensamento de Henri Lefebvre um convite ao conhecimento de

    uma vida e uma obra marcadas pela exigncia da prxis. Escapa aos objetivos do texto a

    considerao biogrfica deste que foi um dos intelectuais marxistas mais comprometidos com

    a retomada do materialismo dialtico, em especial do mtodo dialtico, aps o seu eclipse

    proveniente do prprio campo marxista, notadamente das interpretaes e dogmticas 2

  • advindas do stalisnismo e do estruturalismo althusseriano. Assim, parte significativa do

    esforo intelectual e poltico de Lefebvre convergiu para a retomada da obra de Marx em um

    contexto de marxismo oficial institucionalizado, particularmente pelos partidos comunistas,

    e de misria da teoria, como bem sintetizou Thompson (1981). Contudo, tal recuperao

    dos textos clssicos de Marx ocorreu enquanto contribuio original e autoral de Lefebvre ao

    prprio campo marxista para compreenso tanto das transformaes do capitalismo a partir do

    sculo XX, quanto dos desafios ao exerccio da prxis terica e poltica marxista de

    transformao da realidade social.

    Para Lefebvre a sociedade capitalista uma totalidade no consumada e, por isso,

    aberta a inmeras contradies. Em outros termos um projeto histrico inacabado

    (GOTTDIENER,2010 p.147) Conforme sua anlise, o capitalismo deve ser concebido como

    uma totalidade aberta, como totalidade nunca sistematizada, nunca acabada; nunca per-feita,

    mas que, contudo, se vai consumando, se vai realizando (LEFEBVRE, 1973:p.5). Ou, ainda,

    de forma mais precisa:

    Os que acreditam no sistema incorrem em erro, pois no h totalidade completa, consumada. E, contudo, h, sem dvida, um todo que absorveu as suas condies histricas, assimilou os seus elementos, dominou algumas contradies, sem aceder por isso coeso e homogeneidade que buscava. isso que d ao modo de produo, tal como ele se reproduz, o seu bem curioso aspecto: partes distintas e, contudo, formao de conjuntos, sub-sistemas acompanhados de choques no todo, nveis conjuntos e disjuntos, conexes, conflitos, coerncias e contradies, tcticas e estratgias, fracassos e vitrias.(LEFEBVRE, 1973:p.9)

    Quando de sua introduo obra de Lenin dedicada dialtica de Hegel (LENIN,

    2011), Lefebvre retoma o conceito de totalidade e, em especial, a diferenciao entre a

    concepo de totalidade fechada de Hegel e a de totalidade aberta reivindicada por Marx ao

    inverter a dialtica hegeliana. O recurso a longa citao justificado dada a importncia que

    Lefebvre atribui a retomada da dialtica frente ao contexto terico e poltico referido

    anteriormente, bem como frente formulao do seu mtodo regressivo-progressivo

    analisado mais adiante, na prxima sesso, onde pulsam as contradies da coexistncia de

    diferentes temporalidades das relaes scio-espaciais.

    Inverter Hegel, aqui, liquidar o equvoco do seu pensamento e elucidar esta ideia inteiramente nova da totalidade aberta, resolvendo suas contradies num movimento ascendente e no numa transcendncia metafsica ou mtica.A contradio , pois, real, est nas coisas mesmas, Ela no uma transposio conceitual do movimento, nem to somente uma expresso limitada e provisria das coisas, resultado de uma anlise

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  • incompleta e fragmentada. A essncia das relaes reais , sendo relaes, ser luta e choque. Termos e relaes so tomados no como eternos, mas como mveis. Estas frmulas no constituem uma apologia da contradio, do dilaceramento ou do absurdo.O marxismo v na luta de classes a ltima forma das lutas que ensanguentam a natureza biolgica, a variedade ltima e que deve ser superada da contradio objetiva. No a contradio que fecunda fecundo o movimento. E o movimento implica simultaneamente a unidade (a identidade) e a contradio: a identidade que se restabelece em um nvel superior, a contradio sempre renascente na identidade. A contradio como tal intolervel. As contradies esto em luta e em movimento at que elas prprias se superem a si mesmas.A vida de um ser ou de um esprito no consiste em ser dilacerado pela contradio, mas sim em super-la, em manter em si, depois de hav-la vencido, os elementos reais da contradio. Assim opera a humanidade inteira, considerada como uma totalidade aberta, como esprito. A contradio, como tal, destrutiva; ela criadora enquanto obriga a encontrar uma soluo e uma emancipao, reconquistada num nvel superior. A vida esta superao. Constantemente, a contradio reaparece na vida. Constantemente, ela deve ser vencida. (LEFEBVRE e GUTERMAN, 2011:p.25-26)

    Da a importncia atribuda por Lefebvre re-produo das relaes sociais de

    produo, posto que esta unidade de anlise permite no apenas flagrar o movimento da

    totalidade aberta, mas tambm evidenciar os tipos de movimentos atravs dos quais o

    capitalismo reproduz e reinventa a forma e o contedos das suas prprias contradies

    enquanto totalidade. Como ensina Lefebvre, o conceito de reproduo das relaes de

    produo incide sobre a totalidade, sobre o movimento desta sociedade ao nvel global

    (Lefebvre, 1973:p.58). Da mesma forma a re-produo das relaes sociais de produo

    instiga pensar os novos desafios postos superao destas contradies pela prxis

    revolucionria. Isto porque a re-produo das relaes sociais no um processo que contm

    apenas a possibilidade da repetio, mas tambm da superao, da negao criadora. Como

    afirma Lefebvre, As contradies tambm se re-produzem, no sem modificaes.(...)Outras

    h que se constituem de maneira que h produo de relaes sociais no seio da re-produo.

    (1073:p.104). neste campo rico de questes que emerge a formulao do conceito de re-

    produo das relaes sociais de produo capitalistas e a centralidade desempenhada pelos

    conceitos de espao social e de vida cotidiana para a compreenso de tal dinmica de re-

    produo.

    A pergunta de Lefebvre onde se produz a re-produo? ? (1973:p.56) ou, dito de

    outra forma, onde se re-produzem as relaes sociais de produo? (1973:p.56)

    acompanhada da seguinte afirmao: o espao social (...) o lugar da reproduo das

    relaes de produo, (que se sobrepe reproduo dos meios de produo). (Idiben:p.17)

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  • Partindo da reflexo sobre as relaes de explorao e de dominao, Lefebvre

    argumenta que

    As relaes de produo, caractersticas da sociedade capitalista, carecem elas mesmas de ser reproduzidas. Uma sociedade uma produo e uma reproduo de relaes sociais e no s uma produo de coisas. (...). Ora, as relaes sociais no se produzem e no se reproduzem apenas no espao social em que a classe operria age, pensa e se localiza, isto , a empresa. Reproduzem-se no mercado, no sentido mais amplo do termo, na vida quotidiana, na famlia, na cidade, reproduzem-se tambm onde a mais-valia global da sociedade se realiza e se reparte e dispendida, no funcionamento global da sociedade, na arte, na cultura, na cincia e em muitos outros sectores, mesmo no exrcito. (...) Nas condies em que a reproduo das relaes sociais desconhecida e em que o problema do seu controle no levantado sequer, reproduzem-se as relaes antigas. (1973:pp109-110)

    Para Lefebvre no apenas toda a sociedade que se torna o lugar da reproduo (...):

    todo o espao. (Ibden:p.95). No se trata do espao formal e abstrato da fsica e da

    geometria, por exemplo, e sim do espao social. Contudo, o ponto de partida e de chegada da

    anlise metodolgica lefebvriana no o espao como produto, mas sim o processo de

    produo social do espao e a correspondente transformao do espao social em espao

    abstrato pela sociedade capitalista. Como ele mesmo adverte, Como no tempo de Marx (...) a

    inverso consiste em passar dos produtos (estudados de perto ou de longe, descritos,

    enumerados) produo. (Lefebvre, 2006:p.27)

    A possibilidade de atenuao das contradies capitalistas, segundo Lefebvre, e que

    possibilitou a reproduo do prprio capitalismo e de novos ciclos expansivos de crescimento

    e acumulao, est diretamente associada ocupao do espao e produo social do

    espao, em escala mundial, pelo capital, atravs da subordinao do espao social ao espao

    abstrato.

    (...) o capitalismo conseguiu atenuar (sem as resolver) durante um sculo as suas contradies internas e, consequentemente, conseguiu realizar o crescimento durante esse sculo posterior ao Capital. Qual o preo disso? No h nmeros que o exprimam. Por que meios? Isso, sabemo-lo ns: ocupando e espao, produzindo o espao. (LEFEBVRE, 1973:p.21)

    O espao transformado em fora produtiva, subordinado lgica da mercadoria,

    transformado ele mesmo em uma mercadoria, onde o valor de troca e as relaes de consumo

    subordinam as formas e os contedos do valor de uso que so gerados pela dinmica da vida

    cotidiana, um espao passvel de ser fragmentado, homogeneizado, hierarquizado, um espao

    alienado e fonte de alienao. Sob este registro, o das relaes capitalistas, a produo social

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  • do espao a busca incessante de produo do espao abstrato. Contudo, dentre as

    contradies da decorrentes esto as formas de contestao ao espao abstrato, as formas de

    sua negao criadora que, ainda que de forma precria e momentnea, segundo Lefebvre,

    seguem as formas de realizao do espao abstrato como uma sombra (1973, p.98) e

    sustentam as possibilidades de uma nova prxis urbana. Os conflitos sociais urbanos em torno

    das formas de uso e ocupao do espao urbano da cidade que expe outras formas de

    apropriao no alienada da cidade, outras temporalidades do espao social que se encontram

    subordinadas ao tempo do capital e de seus ritmos e promessas de desenvolvimento, por

    exemplo, so expresses dos movimentos e dos momentos de choque entre as contradies

    da sociedade capitalista.

    Tal concepo pressupe, tambm, a crtica vigorosa da explicao marxista

    estruturalista de Manuel Castells (2000) que encerra o urbano e a dinmica das prticas scio-

    espaciais ao momento da reproduo dos meios de produo, notadamente as necessidades de

    reproduo da fora de trabalho e a correspondente espacializao dos instrumentos, polticas

    e equipamentos coletivos de reproduo social, sob responsabilidade do Estado capitalista.

    Sob este registro as cidades so essencialmente unidades de consumo e o espao urbano

    encontra-se encerrado a uma concepo instrumental e funcional (LEFEBVRE, 2008). Como

    adverte, Lefebvre:

    Essa vinculao produo, do espao em geral e do espao urbano em particular, abrange somente a reproduo dos meios de produo, dos quais faz parte a fora de trabalho. Ora, essa hiptese convm ao capitalismo do sculo XIX, ao capitalismo concorrencial, cujo problema principal era re-produzir materialmente seus meios de produo (mquinas e fora de trabalho) e permitir o consumo dos produtos, ou seja, a compra no mercado. Sistema contratual (o contrato de trabaho), sistema jurdico (o cdigo civil e o cdigo penal) quase bastavam para assegurar, com a venda da fora de trabalho, essa re-produo dos meios de produo. claro que nessas condies o espao era, ento, simplesmente funcional e instrumental. A cidade tradicional tinha, entre outras, essa funo de consumo, complementar produo. Mas a situao mudou: o modo de produo capitalista deve se defender num front muito mais amplo, mais diversificado e mais complexo, a saber: a re-produo das relaes de produo. Essa re-produo das relaes de produo no coincide mais com a reproduo dos meios de produo: ela se efetua atravs da cotidianidade, atravs dos lazeres e da cultura, atravs da escola e da universidade, atravs das extenses e proliferaes da cidade antiga, ou seja, atravs do espao inteiro. (2008:p,47-48)

    Ao afirmar que a re-produo das relaes sociais de produo se efetiva atravs

    tambm da cotidianidade, importante observar a reviso operada por Lefebvre no conceito

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  • de vida cotidiana, quando de sua formulao posterior na obra A vida cotidiana no mundo

    moderno (1991). A partir desta referida obra, so formulados conceitos importantes como o

    de sociedade do consumo dirigido e de terrorismo que passam a organizar um campo terico

    importante atravs do qual a vida cotidiana analisada. Assim, Lefebvre, por exemplo,

    destaca o cotidiano como o plano para o qual a sociedade do consumo dirigido orienta seu

    esforo para sentar sobre o prprio cotidiano (Ibiden, p.68). Em outros termos, Lefebvre

    afirma que a cotidianidade seria o principal produto da sociedade dita organizada, ou de

    consumo dirigido, assim como a sua moldura, a modernidade (Ibiden: p78). Ainda sobre o

    esforo de explicitao conceitual da vida cotidiana, o autor tece a seguinte reflexo:

    Ele [o cotidiano] se torna o plano sobre o qual se projetam os claros e os escuros, os vazios e os cheios, as foras e as fraquezas dessa sociedade. Foras polticas e formas sociais convergem nessa orientao: consolidar o cotidiano, estrutur-lo, torn-lo funcional. (...) O Novo, de alguns anos para c, que as consequncias da industrializao, numa sociedade dominada pelas relaes d eproduo e de propriedade capitalistas (um pouco modificadas, mas conservadas em sua essncia), se aproxima de seu termo: uma cotidianidade programada num ambiente urbano adaptado para esse fim. A cidade tradicional explode, enquanto a urbanizao s eestende, o que permite hoje semelhante empresa. A cibernetizao da sociedade corre o risco de produzir-se por este caminho: organziao do territrio, instituio de vastos dispositivos eficazes, reconstituio de uma vida urbana de acordo com um modelo adequado (centros de deciso, circulao e informao a servio do poder). (Ibiden: p.73)

    Diante das fortes tenses para o encapsulamento da vida cotidiana, Lefebvre, ao

    contrrio de abandonar a cotidianidade, conclui com uma convocao prxis poltica para a

    construo de uma utopia urbana que assuma a conquista da cotidianidade. Nos seus termos,

    para quebrar o crculo vicioso e infernal, para impedir que se feche, necessria nada menos que a conquista da cotidianidade, por uma srie de aes investimentos, assaltos, transformaes que tambm devem ser conduzidos de acordo com uma estratgia. Somente o futuro dir se ns (os que quiserem) reencontraremos assim a unidade entre a linguagem e a vida real, entre a ao que muda a vida e o conhecimento. (Ibidem: p. 82)

    Em certa medida a ressalva de Lefebvre, acima exposta, pode ser colocada em

    perspectiva junto com a problemtica da construo de hegemonia. Mais precisamente

    permite abrir um campo reflexo sobre a relao entre a produo de hegemonia e a

    produo social do espao enquanto lugar e expresso fundamental da re-produo. Sobre

    esta questo, Lefebvre assim se manifesta em sua obra A produo do espao:

    O conceito de hegemonia, introduzido por Gramsci (...) permite ainda analisar a ao da burguesia, em particular no que concerne ao espao (...). A hegemonia se exerce sobre a sociedade inteira, cultura e saber includos, o

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  • mais frequente por pessoas interpostas: os polticos, personalidades e partidos, mas tambm muitos intelectuais, cientistas. Ela se exerce, portanto, sobre as instituies e sobre as representaes. (...).Como a hegemonia deixaria de lado o espao ? Este seria apenas o lugar passivo das relaes sociais, o meio de sua reunificao tendo tomado consistncia, ou a soma dos procedimentos de sua reconduo? No. Mais adiante se mostrar o lado ativo (operatrio, instrumental) do espao, saber e ao, no modo de produo existente. Ser mostrado que o espao serve e a hegemonia se exerce por meio do espao constituindo, por uma lgica subjacente, pelo emprego do saber e das tcnicas, um sistema. (2006:p.17)

    Cabe destacar uma parte importante da conceituao de Lefebvre acerca do espao

    social, a saber, a triplicidade do espao manifesta na prtica espacial, nas representaes do

    espao, e nos espaos de representao, bem como a correspondente relao dialtica

    estabelecida no interior desta mesma triplicidade e que funda a articulao entre espao

    percebido, o espao concebido e o espao vivido. Este contedo fundamental para a

    compreenso do papel do espao social junto dinmica de re-produo das relaes sociais

    de produo, como tambm na dinmica de produo de hegemonia. De acordo com

    Lefebvre, a prtica espacial, as representaes do espao e os espaos de representao

    intervm diferentemente na produo do espao: segundo suas qualidades e propriedades,

    segundo as sociedades (modos de produo), segundo as pocas. (2006:p.40). Assim, no

    de um modelo abstrato que se trata, mas sim de um conceito que tem como tarefa se apoderar

    do movimento concreto da realidade, sob pena de ser reduzido a mais uma mediao

    ideolgica do real. Aqui, interessa analisar a dinmica dialtica desta triplicidade do espao a

    partir da sociedade capitalista.

    Em uma de suas obras principais dedicada ao tema da produo do espao

    (LEFEBVRE,2006) o autor assim se expressa ao definir a referida triplicidade:

    a) A prtica espacial de um sociedade secreta seu espao; ela o pe e o supe numa interao dialtica: ela o produz lenta e seguramente, dominando-o e dele se apropriando. Para a anlise, a prtica espacial de uma sociedade descoberta decifrando seu espao. O que a prtica espacial no neo-capitalismo? Ela associa estreitamente, no espao percebido, a realidade cotidiana (o emprego do tempo) e a realidade urbana (os percursos e redes religando os lugares do trabalho, da vida privada, dos lazeres). Associao surpreendente, pois ela inclui em si a separao exacerbada entre esses lugares que ela religa. A competncia e a performance espaciais prprias a cada membro dessa sociedade s se examinam empiricamente. A prtica espacial moderna se define, portanto, pela vida cotidiana de um habitante de HLM2 no subrbio, caso limite e significativo; o que no autoriza negligenciar as auto-estradas e a aero-poltica. Uma prtica espacial deve possuir uma certa coeso, o que no quer dizer uma coerncia (intelectualmente elaborada: concebida e lgica);

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  • b) As representaes do espao, ou seja, o espao concebido, aquele dos cientistas, dos planificadores, dos urbanistas, dos tecnocratas retalhadores e agenciadores (...) o espao dominante numa sociedade (um modo de produo). As concepes do espao tenderiam (com algumas reservas sobre as quais ser preciso retomar) para um sistema de signos verbais, portanto elaborados intelectualmente;

    c) Os espaos de representao, ou seja, o espao vivido atravs das imagens e smbolos que o acompanham, portanto espao dos habitantes, dos usadores (...) Trata-se do espao dominado, portanto, submetido, que a imaginao tenta modificar e apropriar. De modo que esses espaos tenderiam (feitas as mesmas reservas precedentes) para sistemas mais ou menos coerentes de smbolos e signos no verbais. (p.35)

    Como a relao entre os elementos da triplicidade do espao social dialtica, cada

    elemento se articula e, contraditoriamente, tensiona o outro. Assim, o espao concebido lana-

    se sobre os espaos de representao para disciplinar e controlar as prticas scio-espaciais no

    plano da vida cotidiana, atravs das polticas, das tecnologias, dos discursos e das ideologias

    que sustentam o conhecimento cientfico sobre o espao urbano, como as prticas e as teorias

    do urbanismo e de distintos campos disciplinares, como o do Servio Social que, desde a sua

    origem, foi convocado a atuar nas prticas de controle scio-espacial da classe trabalhadora,

    como nas polticas de higienismo social e disciplinamento da vida cotidiana. Como resultado,

    so criados os espaos neocolonialistas (Lefebvre, 1973, p.97), os espaos programados

    (Ibiden; p.101), as prticas de monumentalismo (Ibiden: p.100). Mas no s. H tambm a

    produo de novas formas de contradio, de novas relaes sociais no interior da triplicidade

    referida acima, que questionam e tensionam a dominao das formas de representao do

    espao, do espao concebido sobre o espao vivido e, em ltima instncia, sobre o controle do

    prprio corpo no espao urbano. Sobre este ltimo contedo, vale destacar a reflexo de

    Lefebvre acerca das contradies do espao concebido e a relao entre cotidiano e corpo.

    Particularmente interessa demonstrar a reflexo lefebvriana sobre os limites que tal relao

    cria e expe ao domnio das prticas scio-espaciais caractersticas do espao concebido.

    E a mais extraordinria [contradio do espao], no ser esta, que a pouco e pouco se vai destacando: o corpo, membro efetivo deste espao, ope-se-lhe. Por que? Porque no se deixa desmembrar sem protesto, porque sem protesto no deixam que o dividam em fragmentos, que o privem de ritmos, que o reduzam a necessidades catalogadas, a imagens, a especializaes. Irredutvel e subversivo no seio do espao e dos discursos dos poderes, o corpo refuta a reproduo das relaes que o esmagam e o privam de tudo. H algo mais vulnervel, mais fcil de torturar do que a realidade de um corpo? H algo mais resistente? Fundamento tanto das necessidades e do desejo, como das representaes e dos conceitos, sujeito e objeto filosficos e, mais e melhor, base de toda a prxis e de toda a reproduo, o corpo humano resiste reproduo das relaes opressivas. Quando no o faz

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  • frontalmente, f-lo pela calada. vulnervel, sem dvida, mas no se pode destru-lo sem massacrar o prprio corpo social eis o corpo carnal e terrestre, quotidiano. (LEFEBVRE, 1973:p. 102)

    Do conjunto das determinaes que saturam o espao social enquanto totalidade e que

    o subordinam ao espao abstrato, h que se destacar, por ltimo, a centralidade da

    propriedade privada para a dinmica da produo do espao no capitalismo, particularmente

    para a produo de um espao conjunto-disjunto onde se dissocia o que deveria estar ligado.

    Como afirma Gottdiener,

    Em contraste com Castells, Lefebvre no procura analisar e isolar os elementos da poltica urbana. Em vez disso, ele est interessado em promover a luta poltica contra o Estado e as relaes de propriedade que sustm o modo capitalista. (...) Isto , para Lefebvre, o ponto essencial de transformao do poder dentro do sistema capitalista se acha em suas relaes vigentes de propriedade, no na interveno do Estado no campo do consumo. (2010:p.151)

    Particularmente interessa Lefebvre desnudar o poder ideolgico da prxis capitalista

    de ocultao da frmula trinitria capital-terra(propriedade privada do solo)-trabalho e sua

    transmutao em uma relao de dissoluo entre as partes, de conjuno-disjuno.

    Para compreender esse esquema do tempo e do espao, preciso retornar ao captulo mal conhecido de Marx, ao final dO Capital, intitulado A frmula trinitria. Nesse difcil captulo, Marx explica a sociedade burguesa, a saber a conjuno-disjuno de seus elementos. Retomemos os termos da anlise. H na sociedade em ato, ou seja, na produo e na reproduo das relaes: a) o capital e o lucro do empreendedor, isto , da burguesia; b) a propriedade do solo, com as rendas mltiplas: do subsolo, da gua, do solo edificado, etc; c) o trabalho, com o salrio destinado classe operria. Esses trs elementos, unidos em ato, so representados como separados, e sua separao tem um sentido objetivo, pois cada grupo parece receber uma parte determinada do rendimento global da sociedade. H, portanto, aparncia alienada das relaes sociais, aparncia que representa um papel real. a iluso da separao numa unidade, a da dominao, do poder econmico e poltico da burguesia. (...) Nessa hiptese, a ideologia coincide com a prtica: a separao na sociedade burguesa. A ideologia a de aceitar a dissociao e consider-la real. (...) Nossa hiptese sobre o espao conjunto-disjunto se vincula, pois, diretamente, ao esquema tripartite ou trinitrio da sociedade capitalista, segundo Marx. (LEFEBVRE, 2008, pp57-58)

    Mascarar as suas prprias contradies, inclusive a do espao, , assim, uma

    importante estratgia de classes para a re-produo das relaes sociais de produo. As

    contradies do espao, mesmo que dissimuladas, ocultas, no percebidas e apreendidas, so

    existentes e fundamentam o sentido poltico do espao e a poltica do espao, para Lefebvre.

    Assim, para concluir este raciocnio e passar prxima sesso do texto onde os conceito de

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  • urbano e de sociedade urbana sero tratados, vale a remisso a citao que se segue onde

    Lefebvre reafirma as bases do poder de classe da burguesia sobre o espao.

    As contradies do espao no advm de sua forma racional, tal como ela se revela nas matemticas. Elas advm do contedo prtico e social e, especificamente, do contedo capitalista. Com efeito, o espao da sociedade capitalista pretende-se racional quando, na prtica, comercializado, despedaado, vendido em parcelas. Assim, ele simultaneamente global e pulverizado. Ele parece lgico e absurdamente recortado. Essas contradies explodem no plano institucional. Nesse plano, percebe-se que a burguesia, classe dominante, dispe de um duplo poder sobre o espao; primeiro, pela propriedade privada do solo, que se generaliza por todo o espao, com exceo dos direitos das coletividades e do Estado. Em segundo lugar, pela globalidade, a saber, o conhecimento, a estratgia, a ao do prprio Estado. Existem conflitos inevitveis entre esses dois aspectos, e notadamente entre o espao abstrato (concebido ou conceitual, global e estratgico) e o espao imediato, percebido, vivido, despedaado e vendido. No plano institucional, essas contradies aparecem entre os planos gerais de ordenamento e os projetos parciais dos mercadores de espao. (LEFEBVRE, 2008:p.57)

    II - A contribuio da obra de Henri Lefebvre para a compreenso do urbano: o

    conceito de sociedade urbana

    Para se compreender a dinmica de produo social do espao e, a partir desta, a

    produo da sociedade urbana, necessrio afirmar a sociedade urbana como obra e produto

    humano, o que implica o esforo de se considerar as distintas formas e contedos do urbano

    como realidades prtico-sensveis da vida cotidiana. Como enfatiza Carlos (2004, p.19)

    Se a construo da problemtica urbana se realiza no plano terico, a produo da cidade e do urbano se coloca no plano da prtica scio-espacial, revelando a vida na cidade. (...) as relaes sociais se materializam num territrio real e concreto, o que significa que, ao produzir sua vida, a sociedade produz/reproduz um espao enquanto prtica scio-espacial. A materializao do processo dada pela concretizao das relaes sociais produtoras dos lugares. Esta a dimenso da produo/reproduo social do espao, passvel de ser vista, percebida, sentida, vivida.

    O conhecimento da vida cotidiana uma chave interpretativa importante de Lefebvre

    para a compreenso da dinmica de produo social do espao posto que o cotidiano

    constitutivo e constituinte dos processos de produo e reproduo das relaes sociais

    capitalistas enquanto totalidade social. Logo, no plano da vida cotidiana que os fluxos

    globais da diviso scio-espacial do trabalho e da acumulao e dominao capitalistas se

    materializam, ganham sentido, redefinem e embaralham a escala local dos lugares e de suas

    fronteiras onde a vida cotidiana se processa cidade, campo, periurbano, centro, periferia, 11

  • bairro, metrpole - e produzem o que Lefebvre (1991) denominou a colonizao da vida

    cotidiana pela sociedade burocrtica do consumo dirigido.

    Contudo, se tal processo de dominao e colonizao oblitera a realizao das

    potencialidades democrticas e civilizatrias do urbano no plano da vida cotidiana, tambm

    neste mesmo plano que novas utopias (LEFEBVRE, 2002 e 2008) se constituem no interior

    da sociedade urbana como possibilidades do pensamento e da ao, revelando os limites

    estreitos da colonizao da vida cotidiana (Lefebvre,1991), da dominao capitalista sobre

    os rumos e sentidos da sociedade urbana e, neste sentido, a impossibilidade de realizao do

    direito cidade ou do direito vida urbana, como obra e apropriao humanas, no interior da

    experincia histrica capitalista.

    Se a sociedade urbana , para Lefebvre, uma potencialidade que j se realiza

    (2008:p.87), posto que foi da experincia industrial que esta nasceu, por outro lado tambm

    uma virtualidade em marcha (Ibden) aberta construo pela prxis social. Ou seja, a

    sociedade urbana ao mesmo tempo que nasce da extenso e generalizao das relaes sociais

    de produo dadas pela industrializao e da decorrente acelerao e esgaramento da

    urbanizao, por outro lado tal dinmica capitalista contm os termos de sua prpria negao.

    deste aparente paradoxo, que constitui o urbano enquanto campo cego, que Lefebvre

    lana o desafio terico e poltico para a construo de uma outra utopia urbana.

    Em que consiste tal cegueira? No fato de olharmos atentamente o campo novo o urbano - vendo-o, porm, com os olhos, os conceitos, formados pela prtica e teoria da industrializao, com um pensamento analtico fragmentrio e especializado no curso desse perodo industrial, logo, redutor da realidade. Opomo-nos a ela, a afastamos, a combatemos, impedimo-la de nascer e de se desenvolver. (...) Em poucas palavras: o urbano reduz-se ao industrial. (2002, p.38-39)

    Na obra Espao e Poltica (2008) Lefebvre alerta que, ao se manter a condio do

    urbano enquanto campo cego, onde o que se enxerga, se compreende e se pratica menos a

    sua potencialidade utpica e criadora, corre-se o risco de se fortalecer a anti-cidade, a

    negao da prpria sociedade urbana pelo fortalecimento de seu avesso, de suas contradies.

    Em outros termos corre-se o risco de fortalecer a segregao generalizada, a separao, no

    terreno, de todos os elementos e aspectos da prtica social, dissociados uns dos outros e

    reagrupados por deciso poltica no seio de um espao homogneo.(p.88)

    De uma forma sinttica, pode-se elencar alguns elementos centrais do pensamento de

    Lefebvre acerca da definio de sociedade urbana e do direito cidade - ou direito vida

    urbana - que elucidam a preocupao do autor com as prticas e relaes que negam a

    dimenso utpica da sociedade urbana. Notadamente interessa destacar o papel destruidor das 12

  • prticas de segregao sobre o urbano, tendo em vista a contribuio que tal elemento gera

    para a compreenso da dinmica do espao urbano frente produo social do espao.

    Pode-se iniciar a definio do urbano, em Lefebvre, a partir da idia de campos

    tambm denominada de esferas ou eras histricas - e de sua diferenciao tempo-espacial

    atravs dos campos rural, industrial e urbano. Tal idia construda enquanto modos de

    pensamento, de ao, de vida, portanto os denominados campos rural, industrial e urbano so

    representativos no apenas de fenmenos sociais, mas de sensaes e de percepes, de

    espaos e de tempos, de imagens e de conceitos, de linguagem e de racionalidade, de teorias e

    de prticas sociais (2002, p.37). Contudo a transformao histrica e espacial de cada

    campo, e da experincia correspondente de cidade, no implica uma viso evolucionista de

    superao cronolgica e sem tenses e readaptaes recprocas. Pelo contrrio, implica que a

    forma-contedo mais desenvolvida s pode se anunciar como possibilidade a partir do

    esgotamento, da saturao ou da crise da forma histrica anterior. Assim, o campo urbano,

    nasce de um processo de imploso-exploso da experincia de cidade gestada e

    desenvolvida pelo campo industrial. Nesse processo contraditrio de extenso e

    desenvolvimento das relaes sociais de produo capitalistas ocorre o crescimento

    desmedido das cidades, a concentrao exacerbada de populao, relaes, objetos, processos

    de troca no plano local da cidade e a saturao do processo de urbanizao da decorrente. A

    forma-contedo da cidade caracterstica da era histrica industrial passa a no comportar mais

    tais processos e relaes tempo-espaciais do fenmeno urbano. Da a metfora da exploso

    da cidade para expressar a tenso que a complexificao/generalizao do urbano acarreta

    sobre a cidade, levando a sua exploso e recriao do urbano em uma escala mundial. Desta

    exploso, nasce o fenmeno urbano como realidade global plena de contradies que o

    afirmam e o negam.

    O estilhaamento da cidade tradicional um fenmeno evidente, ao contrrio de seu sentido. preciso procur-lo. (...) Esse fenmeno no pode ser elucidado seno com uma anlise dialtica e atravs do mtodo dialtico. A indstria surgiu efetivamente como a no-cidade e a anticidade. Ela se implantou ao sabor dos recursos que empregava em seu favor, a saber, as fontes de energia, de matrias-primas, de mo-de-obra, mas ela atacou as cidades no sentido mais forte do termo, destruindo-as, dissolvendo-as. Ela as fez crescer desmensuradamente e provocou uma exploso de suas caractersticas antigas (fenmeno de imploso-exploso). Com a indstria, tem-se a generalizao da troca e do mundo da mercadoria, que so seus produtos. O uso e o valor de uso quase desaparecerem inteiramente, no persistindo seno como exigncia do consumo de mercadorias, desaparecendo quase inteiramente o lado qualitativo do uso. Com tal generalizao da troca, o solo tornou-se mercadoria; o espao, indispensvel para a vida cotidiana, se vende e se compra. Tudo o que constituiu a

    13

  • vitalidade da cidade como obra desapareceu frente generalizao do produto.Pode-se dizer ento que a realidade urbana desapareceu ? No, ao contrrio. Ela se generaliza. A sociedade inteira tornou-se urbana. O processo dialtico o seguinte: a cidade -sua negao pela industrializao - sua restituio a uma escala muito mais ampla do que outrora, a da sociedade inteira. (LEFEBVRE, 2008,p.83-84)

    Neste processo dialtico a forma-contedo do urbano transcende a da cidade,

    avanando sobre antigas realidades como as do campo e as das prprias cidades existentes,

    sem as anular, mas recriando-as, subordinando-as como o caso do desenvolvimento das

    periferias e hiperperiferias e das reas periurbanas que se constituem cada vez mais em zonas

    de transio demarcadas pelo avano crescente do urbano sobre o campo, sobre territrios

    organizados por modos de vida culturalmente diversos como os territrios quilombolas e

    indgenas, as reas ocupadas por populao ribeirinha como nas regies Centro-Oeste e Norte

    do Brasil, redefinindo a relao cidade-campo que no desaparece, mas subordina-se relao

    urbano-rural3. Da mesma forma a criao de novos espaos perifricos, dispersos e

    segregados, representa a negao da centralidade enquanto principal caracterstica e qualidade

    virtuosa e utpica do urbano.

    Esse processo no transcorre sem conflitos, cada vez mais profundos. As relaes de produo existentes se estenderam, se ampliaram; elas conquistaram uma base mais ampla integrando simultaneamente a agricultura e a realidade urbana, mas nessa ampliao introduziram-se conflitos novos. De um lado, instituiram-se centros de deciso dotados de poderes ainda desconhecidos, pois eles concentram a riqueza, a potncia repressiva, a informao. De outro lado, o estilhaamento das antigas cidades permitiu segregaes multiformes; os elementos da sociedade so implacavelmente separados uns dos outros no espao, acarretando uma dissoluo das relaes sociais, no sentido mais amplo, que acompanha a concentrao das relaes imediatamente ligadas s relaes de propriedades. (LEFEBVRE, 2008,p.84)

    Assim, nesse processo so redefinidas e no negadas/suprimidas as relaes e

    fronteiras entre cidade-campo e centro-periferia, criando novas centralidades e novas

    segregaes. Isso significa dizer que Lefebvre no imaginou que a generalizao da sociedade

    urbana levasse supresso do campo, mas antes que a extenso do tecido urbano redefiniria a

    produo social do espao rural subordinando-o dinmica urbana da produo /reproduo

    capitalista. Isto fundamental para que possamos captar, por exemplo, o sentido e o contedo

    propriamente urbanos das transformaes contemporneas dos chamados espaos

    periurbanos. No dizer de Lefebvre (2001,p.69)

    a superao da oposio no pode ser concebida como uma neutralizao recproca. No h nenhuma razo terica para se admitir o desaparecimento

    14

  • de uma centralidade no decorrer de uma fuso da sociedade urbana com o campo. A oposio urbanidade-ruralidade se acentua em lugar de desaparecer, enquanto a oposio cidade-campo se atenua. H um deslocamento da oposio e do conflito. Quanto ao mais, em escala mundial, o conflito cidade-campo est longe de ser resolvido,todos sabem disso. Se verdade que a separao e a contradio cidade-campo (...) fazem parte da diviso do trabalho social, preciso admitir que esta diviso no est nem superada nem dominada. Longe disso

    Porm para a compreenso do conjunto das aludidas transformaes necessrio

    reconhecer que o desenvolvimento ocorre sobre bases e processos tempo-espacias desiguais e

    que as formas-contedos pretritas dos referidos campos ou eras histricas no

    obrigatoriamente desaparecem, podendo, inclusive, persistirem simultaneamente no como

    sinal de atraso, mas como adaptao funcional e requisito modernizao. o caso, por

    exemplo, quando se analisa a dinmica tempo-espacial dos trs campos nas sociedades

    capitalistas perifricas, notadamente da articulao entre manuteno da estrutura fundiria e

    das prticas agrrias e o desenvolvimento da industrializao e da urbanizao nas referidas

    sociedades, como testemunha o processo de modernizao conservadora da sociedade

    brasileira. Contra esta iluso continuista/evolucionista, Lefebvre ergue a idia de

    continuidades e descontinuidades das formaes urbanas e das relaes sociais4. Segundo o

    autor (2001,p.54-55),

    Esta iluso e esta ideologia evolucionista ocultaram o movimento dialtico nas metamorfoses da cidade e do urbano, e singularmente nas relaes continuidade-descontinuidade. No curso do desenvolvimento, formas transformam-se em funes e entram em estruturas que as retomam e as transformam. (...) Toda formao urbana conheceu uma ascenso, um apogeu e um declnio. Seus fragmentos e restos serviram em seguida para/em outras formaes.

    Assim, Lefebvre (2001,p.74) considera que, se por um lado, a crise da cidade

    mundial, por outro as causas prticas e as razes ideolgicas dessa crise variam segundo os

    regimes polticos, segundo as sociedades e mesmo segundo os pases em questo. Por isso, a

    transformao das formas tradicionais e a aludida exploso da cidade tambm ocorreram de

    modo diferente considerando-se a problemtica do desenvolvimento desigual, o que explica,

    por exemplo, segundo Lefebvre (2001,p.74), que

    Numa srie de pases mal desenvolvidos, a favela um fenmeno caracterstico, enquanto nos pases altamente industrializados essa caracterstica a proliferao da cidade em tecidos urbanos, em subrbios, em setores residenciais cuja relao com a vida urbana constitui um problema.

    15

  • Para concluir a anlise acerca da sociedade urbana no pensamento de Lefebvre,

    importante destacar a relao entre direito cidade e centralidade como elemento ilustrador

    da tenso entre os vetores de negao e de afirmao da sociedade urbana que refletem o

    carter contraditrio e dialtico do urbano. Tal carter estabelece o urbano como possibilidade

    utpica, ao mesmo tempo que define a exigncia poltica de superao/transformao dos

    elementos que o negam.

    Lefebvre considera a centralidade como qualidade ou propriedade fundamental do

    espao urbano. impossvel o direito cidade sem a afirmao da centralidade. Em seu

    processo dialtico de criao/destruio/recriao, a centralidade abre o urbano para a

    coexistncia entre antigas e renovadas centralidades em um processo que revela uma

    dinmica tambm de policentralidade (LEFEBVRE,2002). a centralidade que possibilita,

    enquanto potncia, a reunio de todas as diferenas no espao urbano, a concentrao em um

    dado centro da diversidade das relaes que constituem a vida urbana. Sob o registro da

    centralidade, o espao urbano o lugar do encontro. Em outras palavras, a centralidade

    permite pensar o urbano como o ponto de encontro, o lugar de uma reunio, a

    simultaneidade (LEFEBVRE,2002,p.112). Esta realidade urbana, assim constituda atravs

    da centralidade, baseia-se em um tempo-espao diferencial, no homogneo, em oposio ao

    espao e ao tempo da era ou campo industrial que tenderam e ainda tendem para a

    homogeneidade, para a uniformidade, para a continuidade constrangedora

    (LEFEBVRE,2008,p.87), qualidades essas que se expressam exemplarmente nas dinmicas

    de segregao scio-espaciais.

    Contudo a centralidade, enquanto qualidade do urbano, uma potncia que s se

    realiza enquanto prxis social, logo depende da correlao de foras entre as classes sociais

    em um dado tempo histrico e dos seus projetos e intencionalidades sobre a vida urbana . No

    casualmente no processo de criao/destruio/recriao da centralidade, o espao urbano

    tensionado pelos distintos contedos das relaes sociais que produzem esta dinmica scio-

    espacial. neste sentido que as prticas urbanas capitalistas buscam subordinar os elementos

    qualitativos do espao urbano o uso, o valor de uso, a simultaneidade, o encontro etc, - aos

    elementos quantitativos da troca e do valor de troca, tpicos da lgica da mercadoria. Assim,

    para Lefebvre (2002), a cidade capitalista possui uma dupla centralidade: lugar de consumo e

    consumo de lugar. O encontro e a simultaneidade aqui possibilitados por esta centralidade da

    e na cidade capitalista so materializados no encontro das mercadorias, dos seus

    16

  • consumidores, inclusive os consumidores do espao da prpria cidade, mas tambm encontro

    das decises atravs da criao de centros de poder.

    A citao que se segue um exemplo de sntese do pensamento Lefebvriano

    (2008,p.32) acerca dos elementos aqui elencados.

    No existe realidade urbana (...) sem um centro, sem uma reunio de tudo o que pode nascer no espao e nele ser produzido, sem encontro atual ou possvel de todos os objetos e sujeitos. Excluir do urbano grupos, classes, indivduos, implica tambm exclu-los da civilizao, at mesmo da sociedade. O direito cidade legitima a recusa de se deixar afastar da realidade urbana por uma organizao discriminatria, segregadora. Esse direito do cidado (...) anuncia a inevitvel crise dos centros estabelecidos sobre a segregao e que estabelecem: centros de deciso, de riqueza, de poder, de informao, de conhecimento, que lanam para os espaos perifricos todos os que no participam dos privilgios polticos. (...) O direito cidade significa, portanto, a constituio ou reconstituio de uma unidade espao-temporal, de uma reunio, no lugar de uma fragmentao.

    E completando a conceituao, Lefebvre afirma o significado utpico do direito

    cidade posto que o mesmo implica a superao/transformao das relaes sociais de

    produo capitalistas.

    O direito cidade, tomado em toda a sua amplitude, aparece hoje como utopiano. (...) obvio que s um grande crescimento da riqueza social, ao mesmo tempo que profundas modificaes nas prprias relaes sociais (no modo de produo), pode permitir a entrada, na prtica, do direito cidade e de alguns outros direitos do cidado e do homem. Um tal desenvolvimento supe uma orientao do crescimento econmico, que no mais conteria em si sua finalidade, nem visaria mais a acumulao (exponencial) por si mesma, mas serviria a fins superiores. (2008,p.34)

    A partir da concepo Lefebvriana de sociedade urbana torna-se fundamental

    perguntar: quais so as prticas scio-espaciais que produzem a cidade ? Ou como ensinam

    Santos e Silveira (2001,p.11) importa saber e perguntar como, onde, por quem, por qu e

    para qu o espao, o territrio usado? Para compreender tais processos, necessrio partir

    da compreenso que, na sociedade capitalista, o espao tem o seu valor de uso subordinado

    lgica do valor de troca que expressa a transformao do espao em uma mercadoria como

    outra qualquer e define os limites e as condies de sua utilizao e apropriao. Como

    destaca Carlos (2004,p.11)

    O uso deixa marcas profundas no espao (...) as relaes de propriedade criam os limites do uso, redefinindo-o constantemente, com a tendncia destruio do espao pblico como espao acessvel s possibilidades do uso. Os lugares da metrpole redefinidos por estratgias do mercado imobilirio, transformam o espao em mercadoria. Como o uso tem um carter local, definindo trajetos e percursos que dizem respeito realizao da vida, apropriada pelo corpo, os lugares redefinidos pelas estratgias

    17

  • imobilirias, marcam a passagem do processo de consumo no espao para o de consumo do espao.

    Assim, o salto que demanda ser dado pelas formas capitalistas de produo e

    reproduo do espao no momento atual da acumulao capitalista o de se consumir a

    cidade, o espao urbano como uma mercadoria to efmera quanto as mercadorias que

    circulam atravs dela. Dessa forma, o espao urbano, como o das cidades, escapa

    crescentemente definio de formas mais durveis - tanto em termos dos objetos que

    configuram a paisagem urbana, quanto das prticas sociais que constroem o espao e criam as

    regulaes, como as legislaes urbanas e os instrumentos urbansticos. Ou melhor, a forma-

    contedo do urbano cada vez mais definida por esta capacidade de transmutar ou

    escapar a prpria forma, naquilo que ela traz de elemento mais durvel e permevel

    ao poltica dos sujeitos e regulao pblica. Assim, no estgio capitalista de

    desenvolvimento da acumulao flexvel e de acumulao por espoliao, nos termos de

    Harvey (2005 e 2011), o urbano passa a ser tambm tensionado pelas prticas de

    flexibilizao da sua forma-contedo, onde se destacam, por exemplo, as prticas urbanas do

    planejamento estratgico e do empreendedorismo urbano (CARDOSO,2008). Por outro lado,

    tambm as antigas e novas formas de expropriao da terra urbana e rural, do ponto de vista

    da reproduo ampliada do capital, so acionadas e reproduzidas no capitalismo do sculo

    XXI, produzindo clssicas e novas contradies do espao urbano na sociedade capitalista,

    particularmente nas sociedades capitalista perifricas, dependentes e herdeiras do

    colonialismo.

    Uma boa chave interpretativa sobre os limites e contradies do urbano na sociedade

    brasileira pode ser obtida atravs das prticas e dos discursos do desenvolvimento urbano e do

    crescimento econmico. Se por um lado verdadeira a confirmao da centralidade

    econmica dos espaos metropolitanos frente ao conjunto da produo e circulao da

    riqueza, por outro o sentido do desenvolvimento metropolitano no Brasil profundamente

    desigual quando se analisa, por exemplo, os tipos de investimentos, segmentos e prticas

    econmicos que se concentram espacialmente nestas regies, a concentrao demogrfica e o

    perfil da ocupao urbana e rural e os impactos destes processos. Um exemplo a localizao

    privilegiada dos investimentos e empreendimentos econmicos do segmento extrativista da

    indstria de minerao e as cadeias produtivas associadas a este segmento na regio Norte do

    pas. A este respeito, o documento do Ministrio das Cidades intitulado Contribuio dos

    18

  • Seminrios Regionais Plano Nacional de Habitao PlanHab , observa que as regies

    Norte e Centro-Oeste

    so as frentes de expanso urbana e de povoamento do pas com fortes impactos socioambientais, por causa de importantes ecossistemas e culturas tradicionais, indgenas, quilombolas e ribeirinhas ali existentes. As projees econmicas prevem crescimento constante no PIB em ambas as regies, provavelmente puxado por investimentos do governo federal, pelo setor agroindustrial, pela produo de commodities e pelo desenvolvimento do setor energtico, entre outros. Um dos principais fatores que ajudam a explicar o ritmo mais acelerado de crescimento populacional do Norte e Centro- Oeste, em comparao com as demais regies, o padro migratrio positivo e crescente. (MINISTRIO DAS CIDADES,S/D,p.91)

    A denominada condio de frentes de expanso ou, ainda, a chamada frente

    pioneira revelam mais do que um processo de expanso demogrfica no territrio, nas

    regies Norte e Centro-Oeste, mas fundamentalmente um conjunto de processos e relaes de

    temporalidades histricas distintas das demais regies do pas, no apenas do ponto de vista

    econmico, mas tambm dos modos de vida. A este respeito, Martins (2009) produziu uma

    rica anlise que evidencia o quanto em uma mesma sociedade capitalista podem ser desiguais

    e simultneas as temporalidades scio-espaciais do desenvolvimento capitalista e de sua

    experincia de sociedade urbana, convivendo formas tipicamente capitalistas com as formas

    tradicionais de expropriao e espoliao da acumulao primitiva, no como dualidade ou

    superposio do arcaico sobre o moderno, mas como experincia concreta de modernizao

    conservadora e de desenvolvimento desigual, dependente e perifrico do capitalismo no

    Brasil.

    A diferena inicial que os dois pontos de vista sugeriam era de que quando os gegrafos falavam de frente pioneira estavam falando de uma das faces da reproduo ampliada do capital: a sua reproduo extensiva e territorial, essencialmente mediante a converso da terra em mercadoria e, portanto, em renda capitalizada, como indicava e indica a proliferao de companhias de terras e negcios imobilirios nas reas de fronteiras em que a expanso assume essa forma. Nesse sentido, estavam falando de uma das dimenses da reproduo capitalista do capital. Quando os antroplogos falavam originalmente de frente de expanso, estavam falando de uma forma de expanso do capital que no pode ser qualificada como caracteristicamente capitalista. Essa expanso essencialmente expanso de uma rede de trocas e de comrcio, de que quase sempre o dinheiro est ausente, sendo mera referncia nominal arbitrada por quem tem o poder pessoal e o controle dos recursos materiais na sua relao com os que

    19

  • explora, ndios e camponeses. O mercado opera, atravs dos comerciantes dos povoados, com critrios monopolistas, mediados quase sempre por violentas relaes de dominao pessoal, tanto na comercializao dos produtos quanto nas relaes de trabalho (sendo ai caracterstica a peonagem ou escravido por dvida). (2009,p.137)

    Assim, idia de Lefebvre acerca do desenvolvimento desigual da sociedade urbana e

    da simultaneidade entre as formas tradicionais e modernas desta sociedade, que apontam uma

    dinmica de subordinao e no de anulao entre os termos dessa relao, pode-se

    acrescentar a contribuio acima de Martins e tambm a de Fernandes (2009) quando analisa

    a arcaizao do moderno e a modernizao do arcaico. Atravs de tais idias, Fernandes

    procurou evidenciar a

    rearticulao do todo, atravs da qual o que parece arcaico de fato atualizado, servindo de suporte ao moderno, e pela qual o moderno parece perder esse carter, revitalizando o seu oposto ou gerando formas socioeconmicas que misturamma acumulao pr-capitalista com a acumulao especificamente capitalista. O que importa, no conjunto, no a existncia do arcaico e do moderno, seu grau de visibilidade e os mundos superpostos que evidenciam. Mas o modo pelo qual as transformaes sucessivas do mercado e do sistema de produo encadeiam a persistncia de estruturas socioeconmicas herdadas do passado com a formao de estruturas socioeconmicas novas. (2009,p.67)

    O referido crescimento que se expressa na dinmica de produo do espao

    metropolitano, subordina o desenvolvimento do ponto de vista de padres civilizatrios e de

    justia. O que faz lembrar a clssica advertncia de Fernandes (2008) acerca da diferena

    entre crescimento e desenvolvimento e da articulao necessria entre a concepo de

    desenvolvimento e o que o autor denomina de consenso democrtico em torno da imagem de

    um destino nacional (2008).

    os problemas do Brasil, vistos sociologicamente, no so problemas de crescimento.Crescimento tem havido, especialmente no nvel econmico. Ele no chegou a assumir, porm as propores e um padro que afetassem a integrao do Brasil como uma sociedade nacional e sua posio no conjunto das demais sociedades nacionais, que compartilham da mesma civilizao. Assim, o que nos deve interessar o modo de participar do padro dessa civilizao. (Ibid, p.155)

    O autor continua ao destacar que

    A destruio de estamentos e de grupos sociais privilegiados constitui o primeiro requisito estrutural e dinmico da constituio de uma

    20

  • sociedade nacional. Onde essa condio histrica no chega ou no pode concretizar-se historicamente, tambm no surge uma ao e, muito menos, uma nao que possa apoiar-se num querer coletivo para determinar, por seus prprios meios, sua posio e grau de autonomia entre as demais sociedades nacionais do mesmo crculo civilizatrio. Sob este aspecto, a democratizao da renda, do prestgio social e do poder aparece como uma necessidade nacional. que ela e somente ela pode dar origem e lastro a um querer coletivo fundado em um consenso democrtico, isto , capaz de alimentar imagens do destino nacional que possam ser aceitas e defendidas por todos, por possurem o mesmo significado e a mesma importncia para todos. (Ibid,p.157)

    Assim, do conjunto destes elementos que formam uma concepo ampliada da

    problemtica do desenvolvimento para alm da questo do crescimento econmico e das

    deseconomias urbanas, pode-se tambm estender tal contribuio para a compreenso da

    realidade urbana. Logo, inspirados pelas problematizaes tericas de Lefevbre, Martins e

    Fernandes, pode-se compreender a heterogeneidade do espao urbano a partir da concepo

    de totalidade. Desse ponto de vista, a compreenso do fenmeno urbano implica o olhar

    atento para a diversidade da forma-contedo do urbano e da vida cotidiana no processo de

    produo do espao, inclusive onde o mesmo se produz nas fronteiras entre o urbano e o rural,

    o moderno e o tradicional. Como ensina Martins (2009) as reas de fronteira so, acima de

    tudo, reas de conflitos.

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  • 1 As aes extensionistas do Projeto Direito Cidade, Poltica Urbana e Servio Social se articulam ao campo de ao do Frum Comunitrio do Porto (FCP), espao poltico de debate e ao em defesa do direito cidade na regio porturia do Rio de Janeiro. O projeto visa apoiar e assessorar as lutas sociais pela defesa do direito cidade e do direito memria social e cultural da populao local e contribuir para a publicizao de denncias de formas de violao dos direitos humanos, notadamente o direito humano moradia digna, em um contexto atual de grandes projetos pblicos e privados de interveno urbana, como a Operao Urbana Consorciada da Regio do Porto do Rio, o Projeto Porto Olmpico de 2016 e o programa municipal de urbanizao Morar Carioca do Morro da Providncia. Da mesma forma, na perspectiva da educao popular, o projeto pretende contribuir com a atuao nos processos de resistncia e de luta poltica da populao na regio porturia, de reconhecimento do protagonismo social dos sujeitos e de valorizao dos moradores enquanto portadores da memria social da regio e, portanto, enquanto sujeitos da histria social do lugar e da cidade.

    2 A HLM (Habitation Loyer Modr) significa habitao de renda moderada e integra a poltica de produo de habitao social ou popular na Frana, desde o segundo ps-guerra, atravs de subsdio locao social e/ ou aquisio da casa prpria. A produo deste tipo de moradia foi historicamente pautada em prticas de segregao das famlias trabalhadoras pobres urbanas e de higienizao social das reas centrais da Frana. De tal forma que a histria da HLM confunde-se com a da produo da periferia francesa.

    3 Para o aprofundamento terico da realidade periurbana no Brasil a partir do dilogo com o pensamento de Henri Lefebvre, ver Bernardelli (2006) e Sobarzo (2006).

    4 A este respeito indica-se a leitura de Martins (1996).

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