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Série RUMOS DA CULTURA MODERNA Direção Editorial de Moacyr F éli x  Volume 42

CHÂTELET, François. Logos e Praxis

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François Chatelet

LOGOS E PRAXIS

Tradução de R o l a n d C o r b i s i e r

Paz e Terra

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Traduzido do original francês:LOGOS ET PRAXIS

© Société d’Édition d’Enseignement Supérieur, 1962

Capa:

R a g n a r L a g e r b l a d

Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S.A.Av. Rio Branco, 156 — s/1222 Rio d e J a n e i r o —  g b .,

que se reserva a propriedade desta tradução. 

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Impresso no Brasil Printed in Brazil 

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Sumário

Prefácio

I — o MATERIALISMO DIALÉTICO E A CRÍTICA 

CONTEMPORÂNEA

1. O materialismo dialético 122. As objeções do antimaterialismo 293. A resposta materialista 584. Novas objeções antimaterialistas 765. O sentido do debate 83

II —  O EXERCÍCIO DA FILOSOFIA E O PROJETO DO DISCURSOINTEGRALMENTE LEGITIMADO

1. O fundo da oposição materialismo-antima- terialismo 86

2. O problema do discurso integralmente legitimado e o nascimento da metafísica 87

3. A solução metafírúca e o seu fracasso 114

4. Os caminhos após o fracasso da metafísica 1195. A superação da metafísica e o êxito da filo

sofia 1256. A “ciência” 137

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1. Significação do saber absoluto 1372. O êxito da filosofia e o destino empírico do 

homem a “crítica” do jovem-hegelianis- mo 141

3. Do “fracasso” do saber absoluto à idéia da superação da filosofia 161

III  — 0 ÊXITO DA FILOSOFIA E A EXIGÊNCIA DE SUPERAÇÃO

IV  — o CAMINHO DA SUPERAÇÃO: A APREENSÃO DO HOMEM

EM SUA REALIDADE EMPÍRICA

1. Retomada dos resultados adquiridos 1772. A solução filosófica do problema do Estado e a exigência de superação 180

3. Problemas da definição do homem no seu ser empírico 200

4. Notas sobre a concepção marxista de historicidade 218

5. O estatuto teórico do marxismo 233

V  — O CAMINHO DA SUPERAÇÃO: AS TAREFAS DO 

PENSAMENTO ATUAL

1. O estatuto teórico do marxismo e a decisão filosófica 253

2. O que significa o materialismo marxista 2643. O que significa a ligação da teoria e da prá

tica 2864. O que significa a superação da filosofia 298

Apêndice 315

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Prefácio

E b a n a l   e justo salientar a importância assumida 

pelo pensamento marxista, como teoria e como prática, na vida contemporânea. Forças sociais de importância considerável organizaram-se, invocando — pouco importa, no momento, que tal patrocínio seja legítimo ou não

 — princípios enunciados por Marx, Engels e Lênin; partidos políticos, que desempenham papel decisivo na história atual, consideram necessário, quando fixam sua linha estratégica ou determinam sua tática, referir-se às análises ou às fórmulas do marxismo; Estados que, pelo seu potencial econômico, sua população ou situação, pesam no destino da humanidade, fizeram do materialismo dialético sua doutrina oficial, que, não só é utilizada — corretamente ou não — para elaborar ou 

 justificar políticas internas ou externas, mas é também ensinada a milhões de indivíduos como a verdadeira con

cepção da realidade e a expressão justa dos mais altos ideais do homem; povos que a propagação do capitalismo lançou no drama internacional, apesar da repugnân-

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cia que suas tradições possam ter por semelhante modo de pensar, voltam-se para o marxismo porque a luta descrita por Marx lhes parece ser sua própria luta e porque a sociedade por ele anunciada é o objeto de seu mais vivo desejo, embora muitas vezes o mais oculto. Em face das grandes concepções do mundo — que as religiões 

reveladas chegaram a definir e a transportar para a realidade, a que o humanismo liberal pratica sem ter logrado unificar sua estrutura teórica —, uma nova concepção nasceu, a qual, apesar da oposição que encontra e as violentas crises por que passa, constitui o elemento histórico decisivo na dinâmica do mundo moderno.

Q filósofo, prevalecendo-se, com razão, dos direitos do livre pensamento, poderá pretender desinteressar-se de tal fato e ver em semelhante Weltanschauung uma das muitas simplificações de que o vir-a-ser é costumeiro. Defrontar-se-á, novamente, com os problemas propostos pelo marxismo a partir do momento em que quiser levar em conta, em suas pesquisas, os resultados adquiridos pelas ciências e pelas técnicas no que diz respeito à realidade humana. Perceberá, então, que aque

les cuja especialidade pôs em relação com o homem, do etnólogo ao psiquiatra, não podem, desde que levem muito adiante suas investigações, negligenciar os temas que Marx suscitou e cuja importância o marxismo constantemente salienta. Ser-lhe-á fácil, sem dúvida, na análise dos métodos empregados e dos resultados obtidos por essas disciplinas, encontrar elementos que põem em questão, sobre este ou aquele ponto, a validade do 

marxismo: não poderá negar, porém, que o historiador que salienta a função das determinações econômicas ou o jogo da luta de classes e das camadas sociais, que o psiquiatra que deve levar em conta, no tratamento deste assunto, das estruturas econômico-políticas, dos mitos e da linguagem que essas estruturas suscitam, que o etnólogo que compreende tal tipo de “mentalidade” por referência a tal nível de forças produtivas, que o soció

logo que interpreta esse movimento em função dessa mudança das relações de produção em determinada con-

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 juntura, adote, em maior ou menor número, noções definidas por Marx e seus sucessores.

No momento que procure inteirar-se da complexidade da vida econômica contemporânea, recorrer, como material de sua reflexão, às disciplinas científicas, e, em particular, às ciências do homem, desde que procure 

resolver as questões tradicionais procurando apoio na experiência atual, e procure elucidar, como historiador da filosofia, a presente situação da cultura, o filósofo encontrará o marxismo. E mesmo que tenha chegado a elaborar uma doutrina original cuja problemática escape às determinações da época, ser-lhe-á necessário, sob pena de não ser ouvido e de parecer negligenciar um as

pecto essencial, situar-se em relação à ótica marxista, a qual, hoje em dia, não é sério deixar ds levar em conta.Ora, se esse filósofo, para saber com exatidão com 

o que deve tratar teoricamente, interrogar as exposições propriamente filosóficas do marxismo, será tomado de grande surpresa. Verificará, inicialmente, que, na própria obra de Marx, não se encontram semelhantes exposições; verá, em seguida, se consultar Engels e Lênin, 

que sua preocupação em travar polêmicas em que se misturam argumentação política e argumentação filosófica deixa à analise chamada especulativa um domínio muito restrito. Todavia, se voltar-se, como é normal, para as obras marxistas atuais e, em particular para aquelas que a conjuntura histórica oficializa, encontrará textos cujo título e cujo estilo provam que se trata realmente de pesquisas filosóficas, das quais pode espe

rar um esclarecimento suplementar. Mas, esse contato desprevenido com tais obras ameaça deixá-lo insatisfeito: observará desde logo que a diversidade dos autores não implica necessariamente a diversidade dos pensamentos e que, de um texto a outro, os mesmos temas e as mesmas formulações se repetem, que a pesquisa, para o marxismo atual, não consiste em demonstrar ou exprimir o verdadeiro de outra maneira ou melhor do que o fizeram até então, mas em repetir peremptoriamente verdades propostas de uma vez por todas, o único esfor-

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ço de originalidade consistindo em procurar novos exemplos mais adaptados às circunstâncias e ao público visado. Enfrentará uma escola — no sentido mais restrito do termo — que se compraz no jogo da repetição e da citação e que se contenta em trazer uma revelação que 

 já contém todas as verdades essenciais.

Aprenderá, assim, que o princípio fundamental, pelo qual é necessário começar sob pena de cair cedo ou tarde no idealismo, afirma a anterioridade da matéria em relação ao espírito, que é preciso confiar nas ciências e que estas, devidamente interpretadas, ensinam que todos os processos da realidade natural e humana são dialéticos, que a noção de progresso dialético implica, entre outras coisas, a passagem da quantidade à qualidade. Em suma, estará diante de um conjunto organizado de princípios, de uma filosofia completa que, em relação a todas as questões importantes, diz o essencial e que, apresentando-se como a expressão contemporânea do racionalismo, admite como ponto pacífico que as descobertas e os acontecimentos futuros não deixarão de justificá-la. Em face de tamanha segurança filosófica, 

o filósofo indagará sobre o direito de que essas filosofias gerais marxistas se prevalecem para liquidar tão sumariamente a questão. Ficará surpreso em verificar que o problema da legitimidade dos enunciados, em geral decisiva para o filósofo, é mantida, no mais das vezes, em silêncio, que não é, por assim dizer, jamais encarada de frente e que as “filosofias” ou as “teorias do conhecimento” marxistas preferem afirmar o que jul

gam ser verdades do que formular o problema do estatuto da verdade. Encontrar-se-á, então, na situação do filósofo a quem se apresentam fórmulas como verdadeiras, mas a quem não se diz porque e a que título filosófico são verdadeiras.

De fato, o êxito histórico do marxismo, a importância que assumiu nos diversos setores da pesquisa não são acompanhados de desenvolvimento equiva^nte nesse domínio da teoria que se costuma chamar de filosofia. Se a concepção do mundo de que Marx definiu os temas.

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assumiu amplitude e consistência, a “filosofia” que a ela corresponde, pelo contrário, estiolou-se e esclero- sou-s9 (é claro que nos referimos especialmente — sobre esse ponto nos explicaremos no começo do capítulo primeiro — às exposições filosóficas do marxismo que recebem a caução dos Estados e dos grandes partidos 

políticos que invocam a obra de Marx). De sorte que, o pensamento filosófico enfrenta atualmente um paradoxo: para onde quer que encaminhe sua investigação, encontra noções de que Marx foi o iniciador e se defronta com o que J.-P. Sartre chama de “marxismo prático”; mas, se interroga a doutrina filosófica atual que se apresenta — e pretende ter algum direito histórico a fazê-lo — como a herdeira do pensamento de Marx e de 

seus sucessores, descobre apenas um sistema pobre e esquemático, aliando ao dogmatismo do estilo um conteúdo completamente injustificado e traindo as mais elementares exigências da reflexão filosófica.

Ora, tal situação faz recair, atualmente, sobre o desenvolvimento da pesquisa teórica, uma hipoteca muito pesada. Instaura-se uma polêmica filosófica — o pri

meiro capítulo do presente trabalho resumirá seus principais temas, desenvolvidos, na França, ao longo destes últimos anos, sendo a França um campo particularmente revelador, em razão não só de seus hábitos filosóficos e de sua paidéia mas também porque os movimentos revolucionários e o “marxismo prático” nele desempenham há muito tempo importante papel — e opõe pensadores que, longe de menosprezar a contribuição do 

marxismo, recusam as filosofias gerais materialistas atuais e se declaram antimaterialistas, a teóricos que sustentam agressivamente uma doutrina que confunde elementos do legado marxista e formulações ontológicas ou “gnoseológicas” filosoficamente injustificadas. Semelhante debate termina inevitavelmente na confusão, suspeitando a crítica antimarxista que, ao refutar as filosofias gerais materialistas, não refutou totalmente a teo

ria marxista, não sabendo porém onde encontrar essa “filosofia marxista”, tendo os pensadores materialistas

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a impressão de que não fazem senão dizer o que disseram os fundadores da doutrina, esquecendo-se, no entanto, porque e como o diziam e enclausurando-se no dogmatismo.

O objetivo da presente pesquisa, que procura apreender a significação teórica do marxismo, quer dizer de

finir a maneira pela qual Marx, em oposição à filosofia tradicional, concebe o trabalho teórico, em sua forma e em seu conteúdo, é o de contribuir para levantar essa hipoteca. O fio condutor que orientará esta pesquisa é a verificação de qus hoje, tanto os adversários quanto os adeptos do materialismo marxista, esqueceram a idéia, decisiva para Marx, de que é preciso cessar de “fazer filosofia”, no sentido em que Platão e Hegel “faziam” filosofia, que a tarefa do pensamento teórico é doravante outra e que a constituição de um contexto universalmente aceitável, por necessária que seja, não é suficiente, e que a operação inicial que define o materialismo nega, supera e engloba a problemática filosófica. A atual crítica filosófica do marxismo, as exposições filosóficas do marxismo dialético, desconhecendo 

essa idéia, contribuem para separar ainda mais a investigação teórica do drama da vida contemporânea, a voltar a essas discussões que Marx, depois de Hegel, mostrou que é necessário precisamente evitar se quisermos restituir ao pensamento teórico sua dignidade, seriedade, e eficácia.

As limitadas proporções deste estudo não permitem ir muito longe na análise dessa idéia da superação ne

cessária do modo de pensar filosófico; mas, o fato de que semelhante tema seja hoje em dia tão constantemente desprezado e a dificuldade da tarefa, autorizam talvez a dar apenas indicações e direções de pesquisas ulteriores. Não é somente, devemos notá-lo, o sentido profundo do empreendimento marxista que é, em geral, esquecido; tende-se, também, a esquecer que, durante a segunda metade do século XIX, no momento em que a sociedade industrial começa a atravessar crises profundas que impedem não só de acreditar no otimismo libe

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ral, mas também de supor que um sistema, por grandioso que seja, como o de Hegel, é capaz de dar conta do mundo modemo, pensadores como Kierkegaard e Nietzsche descobrem, eles também, “o fim da filosofia” 1e reclamam a instauração de um novo modo de pensar. O que chamaremos, ao longo deste trabalho, período de 

passagem da sociedade industrial mal organizada à sua organização correta e humana, período que começa na Europa Ocidental com a morte de Hegel e no seio do qual ainda nos encontramos, ressoa de semelhantes apelos e a obra de Heidegger deve ser compreendida, hoje em dia, como um desses apelos. Todavia, seja qual for a originalidade que tenha manifestado e a descoberta que tenha feito, o modo de pensar filosófico — procuraremos esclarecer o que entendemos por essa expressão

 — mantém seu estilo tradicional e a técnica da prova, critério do “êxito” filosófico que elaborou. Tão firmemente o mantém que o materialismo marxista, impelido pelo ambiente, mas também pela preocupação da propaganda, julgou necessário, desde a Dialética da na- tureza, desde Materialismo e empirocriticismo, recons

truir-se como filosofia e definir assim uma doutrina bastarda, que ignora Marx e propõe uma filosofia não legitimada .

O caminho que se deve seguir para tentar evidenciar essa exigência de uma Aufhebung da filosofia e que deverá ser endossada pela teoria que se propuser apreender o que há de importante da vida moderna, é difícil. Provocará muitas oposições. E, em primeiro lugar, as 

dos filósofos que dizem não ter sentido pretender superar a filosofia por outra coisa que não seja uma filosofia e que essa noção que acabamos de empregar, de um estilo que seria próprio da filosofia, não é aceitável. Procuraremos mostrar o que entendemos por filosofia e que essa “essência” da filosofia, assim compreendida, é a que admitiam, por exemplo, Platão e Hegel, e também Marx, Kierkegaard e Nietzsche. Esta análise será talvez criticada por interpretar livremente o marxismo. Talvez tivesse sido mais correto estudar a obra de Marx

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e ver em seguida por que processos o pensamento do fundador se infletiu progressivamente, se é que houve inflexão. O método seria certamente mais correto: mas, além de sua aplicação superar de muito os esforços de um só homem (também implicaria, com efeito, a análise dos movimentos históricos no seio dos quais se efe

tuaram esses processos), correria o risco ds logo encontrar as mesmas objeções.E o motivo pelo qual escolhemos o caminho da livre 

reflexão, apresentando referências apenas quando é evocada uma idéia precisa de determinado autor, pondo entre parêntesis o aspecto político dos problemas propostos, não tendo propriamente preocupação de histó

ria da filosofia, mas visando, a partir dos temas considerados reveladores, a definir a situação do pensamento teórico atual e dissipar as confusões que embaraçam seu desenvolvimento. A fim de evitar a abstração, tomaremos como ponto de partida essa situação, evocando o debate entre materialismo e não-materialismo sobre os temas da filosofia geral marxista: Descobriremos, então, o que a crítica antimaterialista condena nesta última 

e, a partir desse ponto, poderemos enfrentar o problema da “essência” do enunciado filosófico e mostrar porque Marx reclamou (e como definiu) um novo modo de pensamento teórico e porque, atualmente, no período da passagem, se desejarmos que o trabalho teórico mantenha sentido, deveremos elucidar, aprofundar e enriquecer essa descoberta de Marx2.

1 Cf. o artigo de K. Lõwith, “A conclusão da filosofia clássica por Hegel e sua dissolução cm Marx e Kierkegaard”, in Recherches philo- sophiques, 1934-1935, pp. 232-257 e a obra de J. Wahl, Estudos kier - kegaardianos, em particular os capítulos IV e V.

2 Cf., em apêndice, as observações relativas a quatro obras publicadas após a publicação deste estudo: A Suma e o Resto, de Henri Le- 

febvre, Pesquisas dialéticas , de Lucien Goldmann, o t. I da Crítica da razão dialética, de J.P. Sartre, e Marx pensador da técnica, de Kostas Axelos.

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I

O Materialismo Dialético 

e a Crítica Contemporânea

D EPiNiDO tanto quanto possível, num prefácio, o programa desta pesquisa, importa caracterizar mais nitidamente o objeto do primeiro capítulo. Um dos aspectos mais significativos da situação do pensamento teórico atual, na França, em particular, — já indicamos por que razões esse exemplo parece característico —  parece ser o conflito que opõe os partidários do materialismo dialético e os filósofos que, interessados pe’a teoria marxista, recusam, por motivos diversos, seus enunciados fundamentais. Há cerca de quinze anos, polêmicas às vezes violentas, nas quais a argumentação 

propriamente teórica nem sempre pesou como seria de desejar, puseram em evidência as contradições existentes entre pensadores que, de pronto, declaram tomar como ponto de partida os princípios do materialismo e aqueles que, não só não admitem a imediata validade desses princípios, mas concluem pela sua falsidade, insuficiência ou obscuridade. Entre todas essas críticas do

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materialismo dialético, não há sem dúvida acordo completo no seio da própria crítica, e seria errôneo isolar uma corrente não-materialista única, da qual se pode  riam determinar claramente os temas positivos; parece, no entanto, que filósofos com óticas e propósitos tão diferentes quantos os que vão ser evocados nas páginas se 

guíntes, têm, ao menos, em comum, a dupla idéia de que é necessário falar do materialismo dialético e que é difícil, desde o momento em que se fala dele filosoficamente, considerá-lo uma doutrina filosófica séria, quev dizer, uma doutrina que atende às características normalmente exigidas de um contexto filosófico.

Assim também, será lícito falar de um sistema quanto ao materialismo dialético? Será justo, por exemplo, agrupar sob a mesma rubrica pensadores como Henri Lefebvre e Roger Garaudy, Lucien Goldmann e Pierre Naville? Se. a rigor, é inteligível evocar, em con

 junto, a crítica antimaterialista, na medida em que essa critica encontra certa unidade na contestação, havevc. alguma verdade histórica em supor a unidade do marxismo teórico? A questão mereceria ser proposta se r 

materialismo dialético fosse uma escola filosófica entre outras. Ora, por motivos e causas históricas que o pre sente trabalho não pretende analisar, constituiu-se um marxismo, senão oficial, pelo menos oficializado, que procurou e encontrou sua expressão filosófica, e a partir do qual o filósofo, crítico ou partidário, queira ou não é levado a situar-se. É tarefa do historiador da cultura determinar qual dos dois, Stalin filósofo ou Lukács. au

tor de Geschichte and klassenbewusstsein, representa melhor o pensamento dos fundadores do marxismo. A situação atual é a seguinte: ao lado de certas disparidades de pormenor, há uma corrente de conjunto qir

 — com ou sem razão — reivindica a ortodoxia e a obtém, o materialismo dialético, em relação ao qual pesquisas como as de Henri Lefebvre, Pierre Naville ou Lucien Goldmann são consideradas dissidentes ou “originais”.

Em conjunto, o materialismo dialético, em suas atuais exposições oficializadas, apresenta-se como uma

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filosofia geral que soube propor e resolver, como convém, os problemas tradicionais do ser e do conhecer. Apoiando-se em textos como a Dialética da natureza ouo AntiDuhring de Engels ou Materialismo e empirocri  ticismo, de Lênin, as obras de Roger Garaudy, A Teoria materialista ão conhecimento e .4 Liberdade, ou de G. 

Besse e M. Caveing, Princípios elementares de filosofia  — qu2 provocaram na França grande repercussão —  têm por objetivo opor aos sistemas que chamam de “idealistas” um sistema materialista que responda de modo concludente às questões que é habitual propor em filosofia. Definem, assim, uma doutrina — veremos, em confronto com a crítica que dela se faz, se é coerente ou não — que constitui, atualmente, o materialismo dialético .

Assim sendo, se quisermos, como propõe o “Prefácio” deste trabalho, levantar a hipótese que atualmente impede o livre desenvolvimento do pensamento teórico, importa saber o que são essas exposições gerais do materialismo marxista. Não pretendemos distribuir certificados de autenticidade; não se trata de saber quem se 

inscreve na linhagem de Marx ou quem a trai. Um pri- neiro problema é proposto: a importância do marxismo em todos os domínios da vida contemporânea; obras aorssentando-se como a expressão correta, no domínio da fUosofia, do pensamento de Marx e dos fundadores do marxismo; um fato é inegável: as teses sustentadas n~ssas obras são submetidas a contestação por autores que sa’ientam suas lacunas e confusão. A primeira per

gunta aue formularemos será, portanto, a seguinte, per- punta imrênua que. como se verá, deverá ser ultrapas- ?ada: quem tem razão nesse debate? Quem tem direito, do ponto de vista filosófico, nessa oposição, de reivindicar a verdade? Qual das duas correntes, o materialismo, em sua expressão oficializada, ou a crítica antimateria- lista. traz a prova de sua validade?

Neste primeiro capítulo, pediremos ao leitor que admita por entre parêntes das correntesdesignadas pela expressãc marxista e o

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fato de que a crítica dos filósofos não-materialistas provenha de horizontes muito diferentes. Para a comodidade da exposição, pediremos ao leitor que admita sejam qualificadas como filosofias gerais marxistas as perspectivas defendidas pelos pensadores citados em notas, e que seja chamada “filosófica” a crítica que delas é feita. 

Esperamos mostrar, em seguida, que essas qualificações não são apenas extrínsecas e que, de fato, a argumentação antimarxista atual é uma crítica, segundo o estilo de pensamento filosófico, de um modo de pensar novo que o supera e que o erro cometido pelas apresentações atuais do marxismo — erro que implica em desastroso desconhecimento de seu conteúdo e de sua significação teórica e prática — consiste em apresentá-lo como filosofia geral.

No momento, é necessário, se quisermos dissipar as obscuridades, colocarmo-nos na própria confusão da situação atual e tentar definir a oposição entre filosofia materialista e filosofias antimaterialistas, tentando captar o momento preciso em que se produz a ruptura entre as duas óticas.

1

As teses sustentadas pelos que são considerados quase sempre credenciados para exprimir o estado atual da füosofia ou da teoria do conhecimento marxista, resu- 

mem-se em poucas palavras, quer se apresentem em obras de estilo erudito ou em textos mais limitados, de vulgarização ou de apologética. O objetivo visado é sempre o mesmo e as formulações permanecem idênticas: trata-se de expor certo número de enunciados principais, muito gerais, pensados como se fossem decisivos e fora dos quais não poderia haver nem verdade, nem moralidade autêntica.

O problema não é o de refletir sobre o conteúdo desses enunciados, de por à prova sua validade, de pro-

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vá-los a outrem — admitindo que a ótica do interlocutor possa ser, ao mesmo tempo, diferente e de boa fé —, mas de repeti-los incansavelmente, sabendo descobrir algum fato científico recente1, algum acontecimento contemporâneo que os confirmem. Todo o esforço consiste, pois, em elaborar as fórmulas mais simples e mais 

peremptórias — as que mais podem decidir o senso comum a adotá-las e, além disso, em encontrar exemplos originais, novas ilustrações. A idéia essencial, com efeito, é que, após a constituição do materialismo dialético, nada de novo, de fato, no domínio da filosofia, aconteceu, que apenas confirmações suplementares foram dadas e que a única tarefa legítima consiste em expor novamente, à luz dos fatos atuais, o que já é conhecido. Paralelamente, em perspectiva semelhante, todos os escritos filosóficos depois do aparecimento de Materialismo  e empirocriticismo são considerados hábeis, ou engenhosas retomadas de posições que já foram criticadas por Marx, Engels e Lênin: toda doutrina moderna é reduzida a uma obra refutada e é qualificada de solipsista, como a de Berkeley, de teológica como a de Leibniz, ou 

de agnóstica, como a de Kant ou de Mach2. A demons-

1 Roger Garaudy menciona assim (Teoria materialista do conhecimen- to, Introdução, pp. 43-44) quatro “passos decisivos” realizados pela ciência soviética que confirmam e reforçam a validade do materialismo dialético e permitem apresentá-lo em nova “forma” (mas com o mesmo conteúdo fundamental): “O triunfo espetacular dos mitchuristas e de Lyssenko”, “o aprofundamento, pelos sucessores de Pavlov, de suas  

teses sobre o segundo sistema de sinalização”, “as intervenções de Stalin a propósito do marxismo em lingüística”, e o plano de transformação  da natureza, publicado em 20 de outubro de 1948. Assim também, no conjunto da demonstração, o autor cita em apoio da ótica materialista: em cosmologia, O. Schmidt e Ambartsoumian, em biologia: Oparine e Lepechinskaia.

2 Assim , para R. Garaudy (Id. introd., pp. 3-5) toda doutrina não explicitamente materialista é idealista e “Berkeley fo rm u lo u ... a tese 

fundamental de todo idealismo”, que “conduz necessariamente ao so- lipsismo ou à teologia”; e o autor cita, em apoio de sua tese, as obras de Fichte, Bradley, Hamelin, Le Senne, Husserl e J.P. Sartre.

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tração desenvolve-se, assim, na clareza e na simplicidade .

Surgem, assim, obras estranhas. As mais importantes não repelem a erudição que, no entanto, é utilizada em sentido único. Trata-se de encontrar a citação de um dos fundadores do marxismo que convenha a este 

momento preciso do desenvolvimento e, em última análise, parece que o ideal consistiria em justapor essas citações com tanta habilidade que o autor não tivesse finalmente outra coisa a fazer senão dar referências. Trata-se, também, de solicitar os resultados das ciências, que, no entanto, são especialmente escolhidos para ilustrar a tese defendida; e, a esse respeito, é verdade que o marxismo, na maior parte de suas atuais apresentações, não é um positivismo, pois os fatos estabelecidos pelas disciplinas particulares não são recolhidos e retidos quando são também confirmações da tese filosófica proposta3. Todavia, essa vontade de encontrar sólidos apoios é acompanhada pela preocupação de não complicar demais as coisas e, particularmente, de evitar os escrúpulos excessivos dos historiadores da filosofia ou dos 

epistemólogos : a partir daí, escolherão — de acordo com um critério do qual deve-se dizer que é bastante arbitrário — os textos “claros” (evitar-se-ão, por exemplo, os Mamcscritos de 1844 e os Cadernos filosóficos, considerados muito obscuros, e tratar-se-ão os resultados científicos admitidos com a preocupação de vulgarizá-los e simplificá-los. De tal conjunção, resulta um estilo pedagógico muito particular. O leitor tem sempre a im-

3 Pois é admitido com o ponto pacífico que somente os resultados que convêm às teses do materialismo dialético são realmente científicos. Cf. em particular, R. Garaudy, O humanismo marxista, sobre os intelectuais, p. 252: “A concepção positivista está estreitamente ligada à alienação do pensamento: exige que se registrem “fatos”, “dados” e que se estabeleçam as relações constantes que os ligam.  Impede de ir além. O positivismo é fundamentalmente um agnosti-  

cismo: todo pensamento que se esforça em ultrapassar a película superficial das aparências “dadas”, do empirismo, é qualificado com  desprezo de “metafísica”.

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pressão de estar um pouco na situação do escravo do Menon;  lembram-lhe, constantemente, o elementar e, muito cedo, percebe que o consideram, seja qual for o saber que possa possuir, de cabeça muito fraca. Esse leitor esqueceu que não escapa ao domínio da ideologia da classe dominante e que é idealista, mesmo se declarar 

o contrário ou pretender desinteressar-se de tal questão. A pedagogia converte-se, então, em polêmica e em retórica: polêmica que visa ridicularizar toda atitude não materalista, a opor ao vazio e à mentira do idealismo a solidez provada dos enunciados da filosofia marxista; retórica que tende mais a exaltar sem restrições os fundadores do materialismo contemporâneo, esses gigantes do pensamento que, afinal de contas, tudo previram (não é possível, com algum cuidado, encontrar a citação que corresponda a cada problema atual?) e a mostrar, geralmente a título programático, as possibilidades que oferece à humanidade, em todos os domínios do pensamento, a crença nos princípios do marxismo.

Esses caracteres gerais, de natureza formal, da maior parte das atuais exposições da filosofia geral materia

lista, não deixam de ter relação com o conteúdo que expõem. Nelas encontramos, misturadas a referências históricas e citações muitas vezes preciosas e belas e enunciados científicos importantes, demonstrações superficiais, refutações injustas ou levianas assim como afirmações dogmáticas apresentadas em terminologia monótona e sem matizes. Admite-se, em geral, que a viga mestra do sistema é o enunciado segundo o qual a ma

téria existe anteriormente e exteriormente ao espírito4.

4 Após a declaração: “o problema fundamental de toda filosofia éo de seu começo”, à questão: “por onde começar? Pelas coisas ou  pela consciência que delas tenios?’’ R. Garaudy responde, Teoria ma- terialista do conhecimento, introd., p. 1: “O materialismo afirma: 19) que os fenômenos do universo são os diversos aspectos da ma

téria em movimento, sendo a matéria o que existe fora de meu espírito e de todo espírito e que não precisa de nenhum espírito para existir; 2?) que a matéria é, conseqüentemente, a realidade primeira

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Esse princípio da precedência — a um tempo ontológica, cronológica e “gnosiológica” — da materialidade sobre o pensamento, conteria, desde que corretamenta interpretado, o segredo da verdade. Como é possível, contra o idealismo (solipsista ou teológico) demonstrar a validade desse princípio? Pode-se, desde logo, na se

qüência do materialismo chamado ingênuo, apelar para a prática quotidiana e lembrar que “o pudim se come” pois é necessária toda a astúcia dos partidários de Ber- keley, confessos ou não, para negar esse fato e pretender que a natureza seja apenas um feixe de sensações subjetivas. Mas, além da experiência banal, é à ciência que convém referir-se. Esta, não deixa chance alguma às operações idealistas. Não mostra a fisiologia, sem equívoco possível, que o surgimento de uma representação na consciência está ligado ao fato de que um agente exterior vem tocar os órgãos sensoriais, determina o aparecimento de um influxo nervoso que é transmitido ds transmissor em transmissor até a zona cortical onde, em virtude de processos muito complexos, transforma-se em representação desse objeto exterior6. A existência de re-

da qual nossas sensações e nosso pensamento não passam de produto  e reflexo”. Cf. J . Stalin, Materialismo dialético e materialismo histó- rico, p. 10: “O materialismo filosófico marxista parte desse princípio que a matéria, a natureza, o ser, é uma realidade objetiva existente fora e independentemente da consciência; que a matéria é um  dado primeiro, pois é a fonte das sensações, das representações, da consciência, ao passo que a consciência é um dado segundo, derivado,  

pois não passa do reflexo da matéria, o reflexo do ser”.5 “O objeto situado fora de nós é anterior à imagem que dele formamos; aqui também nossa representação, a forma, vem depois do  objeto, de seu conteúdo. Se olho e vejo uma árvore, isso significa  simplesmente que, muito antes que a representação da árvore tenha  surgido na minha cabeça, existia a árvore, que fez nascer em mim  uma representação correspondente” . J. Stalin, Anarquismo ou socia- lismo, p. 23.

6 “A sensação é imagem da matéria em movimento. Nada podemos  saber das forças da matéria nem das forças do movimento a não ser pelas nossas sensações; ora, as sensações são determinadas pela ação

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presentações imaginárias, não pode constituir uma ob jeção dirimente, tanto quanto a possibilidade, para o pensamento, de criar termos abstratos. Dados imaginários e conceituais têm a mesma raiz nesses movimentos nervosos primeiros que nascem do contato do corpo com o mundo no qual vive.

Em nível inferior, nos seres pouco evoluídos, essas incitações provocam apenas movimentos reflexos simples; em seguida, à medida em que se complica o sistema nervoso na escala animal, os reflexos se tornam mais ricos e mais ágeis; fenômenos de condicionamento se produzem e sensações cada vez mais ricas e cada vez mais claras aparecem; ao nível humano, a prodigiosa di

ferenciação do aparelho nervoso permite não só o considerável desenvolvimento do sistema dos reflexos e das ligações condicionadas, mas também a elaboração de um segundo sistema de sinalização7. Graças a este, o homem torna-se capaz de pensamento e de palavra.

da matéria em movimento sobre nossos órgãos dos sentidos. Tal é a  

lição das ciências naturais. A sensação de luz vermelha reflete as vibrações do éter a uma velocidade aproximada de 620 trilhões de kms. por segundo. As vibrações do éter existem independentemente  de nossas sensações de luz. Nossas sensações de luz dependem da  ação das vibrações do éter sobre o órgão humano da vista. Nossas sensações refletem a realidade objetiva, quer dizer, que existe independentemente da humanidade e de suas sensações humanas” . Essa idéia de Lênin, Materialismo e empirocriticismo,  p. 41, é retomada, desenvolvida e comentada por R. Garaudy, id.t 11 parte, pp. 136-147. Cf. igualmente J. Stalin,

Materialismo dialético e materialismo his- tórico , pp. 10-11: “ . . . o pensamento é um produto da matéria, quando esta atingiu em seu desenvolvimento um alto grau de perfeição; mais precisamente, o pensamento é um produto do cérebro, e o cérebro o órgão do pensamento”. E .G . Besse e M. Caveing, Princípios fundamentais de filosofia, 10^ lição, § 2, p. 181: “A tese marxista significa que o conteúdo de nossa consciência não tem outra fonte além das particularidades objetivas apresentadas pelas condições exteriores nas quais vivemos, dadas a nós pelas nossas sensações”.

7 Pavlov descobriu os mecanismos do reflexo em todos os seres vivos cotados de sistema nervoso. Estudando em cada etapa o modo de dependência do organismo em relação ao meio, definiu três momen-

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Essa constante ligação, cientificamente estabelecida por todas as disciplinas que visam tornar inteligível a evo’ução füogenética e ontogenética do animal, entre a diferenciação nervosa, a capacidade prática e a elevação do nível de consciência, é uma prova da verdade do materialismo. Assim como a sensação subjetiva é causada por um fato objetivo que determina seu conteúdo, assim tarnbém aquilo que o,s filósofos idealistas chamam de ataa, pensamento, consciência tem origem na lenta e dramática ascensão do ser vivo a formas cada vez mais complexas*. Do inorgânico mais simples ao cérebro do homem, há uma cadeia cujo estudo experimental já logrou descobrir muitos anéis. A esse propósito, deve-se salientar — acrescentam essas apresentações atuais do marxismo — a importância de obras como as dos antigos atomistas e dos materialistas franceses do século XVIII; embora esses pensadores carecessem de suficiente informação científica, souberam desvencilhar-se das

tos decisvos na evolução do comportnmento: 1?) os reflexos incon- dicionados organizados em instintos; 2*?) o primeiro sistema de sinalização constituído pelos sentidos, as cores, os odores, as formas, as situações dos objetos no espaço, em uma palavra, todos os dados externos ou internos dos órgãos dos sentidos; 3?) o segundo srstema de sinalização, constituído pela linguagem, e que é característico do  homem”. R. Garaudy, icl., p. 176.

8 “As ciências naturais mostram que a insuficiência do desenvolvimento do cérebro em determinado indivíduo constitui o maior entrave ao desenvolvimento da consciência, do pensamento: é o caso dos idiotas. O pensamento é um produto histórico do desenvolvimento da natureza em alto grau de perfeição que é representado nas espécies vivas pelos órgãos dos sentidos, o sistema nervoso e notadamente  seu segmento superior, central, que comanda todo o organismo: o  cérebro. O cérebro reflete ao mesmo tempo as condições que reinam no organismo c as condições externas”. G . Besse e M. Caveing, op. 

cif., § 3, pp. 183-184. Cf. principalmente os desenvolvimentos contidos na 2:l parte do op. cit. de R. Garaudy, Pré-história da sensibilidade.

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ciladas da superstição, da religião e do idealismo, e afirmar o primado da matéria9.

Esse primado, atestado pela análise fisiológica, pela ciência da evolução, é também claramente confirmado pelo estudo geológico e paleontológico. A idéia da criação do mundo por qualquer princípio transcendente tor

nou-se inaceitável. O que prova a pesquisa científica é que, anteriormente à época em que o homem apareceu, sucedsram-se eras geológicas ao longo das quais, de acordo com as leis da causalidade física, formações químicas constituíram-se, permitindo o nascimento e o desenvolvimento do vegetal e do animal10. Trata-se de épocas cujos vestígios e estruturas podemos atualmente prescrutar. Em outras palavras, houve um tempo em que alguma coisa existia efetivamente, em que alguma coisa se produziu: a erosão alpina, por exemplo, na qual pensamento algum, manifestamente, estava presente. A idéia de que se constituiu uma “representação”, da realidade — mesmo formaliter spectata, para retomar a expre:são kantiana — mostra-se portanto absurda. E a idéia, cara ao empirocriticismo, de um complexo sujeito- 

objeto, anterior à diferenciação dos termos, é contestada pelos fatos estabelecidos. A matéria, com a estrutura que a ciência física revela, existiu anteriormente ao espírito; existe sem ele. Não render-se a essas evidências é mergulhar na ilusão e no misticismo; é opor a dados objetivos crenças subjetivas.

De fato, o idealismo, em todas as suas diversas for-

9 Cf. Curso de jüosojia, Introd. üc C. Angrand, pp. 19-24.

10 “ . . . São as ciências naturais que nos mostram que o pensamentoapareceu depois da matéria. A matéria orgânica é um fenômeno tardio, produto de uma longa evolução... e mesmo depois da formação, na terra, de matérias orgânicas, foram necessários milhares de  milênios para que nascessem formas superiores de matéria viva dotadas de sensibilidade. A consciência, o pensamento são produtos de 

uma evolução mais avançada ainda. A matéria existiu, pois, antes da consciência, e esta nasceu em certa etapa do desenvolvimento da  m a té r ia ...” R . Garaudy, id., introd., p. 23.

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mas, ideologia da classe dominante, não pôde elaborar- se, desenvolver-se e durar, senão explorando o medo do homem em face do desconhecido, sua debilidade diante da natureza e, para a época contemporânea, salientando as dificuldades de crescimento das ciências experimentais. Há, sem dúvida, problemas que permanecem pendentes e é normal que, influenciados pela concepção obscurantista do mundo, apresentada pela religião e pelas doutrinas irracionalistas, os cientistas tenham sido freqüentemente levados a salientar essas dificuldades, a desencorajar-se e apelar para explicações não-materialis- tas11. O conhecimento da verdade do materialismo marxista permitirá, doravante, evitar semelhantes erros. As 

ciências provam a validade do materialismo; este, porém, estabelecendo alguns princípios claros que definem um rumo e um programa, por sua vez, os orienta e lhes dá o método de conjunto do qual careciam. Esse método pode ser caracterizado em poucas palavras: trata- se de ter sempre presente ao espírito a idéia segundo a qual é correta e fecunda toda pesquisa que mostra a anterioridade da matéria, que assegura o triunfo do ma

terialismo. Assim, é trabalho científico e sério — contra todas as sutilezas e os arcanos em que se refugia o vita- lismo — afirmar que a estrutura celular pode formar-se a partir de matéria viva a-celular12.

Entre as obscuridades que não deixará de salientar a crítica antimaterialista, encontra-se a que sempre se invocou a propósito do materialismo e que constitui, de

11 Tal é, entre outros, o caso de W .K . Ciifford, de P. Duhem , de H. Helmholtz, de T. Huxley, de E. Mach, de W. Ostwald, de K. Pearson, de H. Poincaré, de P. Volkmann citados por Lênin em  Materialismo e empirocriticismo. Tal é também o caso, no que se refere à física contemporânea, de Niels Bohr e da escola de Copenhague, de um lado, e de Einstein, de outro (Cf. Garaudy, id., III? parte, cap. II, pp. 217-254).

12 Por exemplo, os trabalhos de O. Lepechinskaia, Origens das cé- lulas a partir da matéria, amplamente utilizados por R. Garaudy, id., I? parte, cap. II, pp. 113-115.

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fato, o argumento característico do bergsonismo: como explicar, a partir da relativa simplicidade dos movimentos nervosos, a riqueza da consciência? Como dar conta da individualidade do pensamento tomando como ponto de partida apenas a estrutura orgânica? De modo mais geral, como evitar os impasses do epifenomenismo se, 

para explicar o conteúdo do pensamento, adotam-se, como base única, os fatos corporais, registráveis objetivamente, que o acompanham? A questão é capital e, na medida em que as ontologias e teorias do conhecimento marxista, atuais, visam constituir um sistema geral, preocupam-se em responder a essa pergunta. A dificuldade para essas teorias, ao menos aparentemente, não é considerável pois defendem uma concepção, não apenas materialista, porém materialista-diaZéíica13. Voltaremos a tratar do significado desse termo, do sentido que lhe atribuem, talvez levianamente, as exposições contemporâneas do marxismo em França e do alcance que, em conseqüência, conviria atribuir-lhe. Digamos, porém, desde logo, que as filosofias gerais materialistas das quais se procura, neste capítulo, resumir o estilo e o conteúdo, inspiram-se no Engels da

Dialética da Na- tureza 14, atribuem à noção de dialética uma amplitude bastante grande: incluem nessa categoria, — e, sem dúvida, sem pensar que o pensamento da identidade há

13 Cf. as numerosas refutações do materialismo mecanicista, inspiradas nas análises de Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia  

clássica alemã,parte II, in

Etudes philosophiques,pp. 26-27: R. Ga- 

raudy, op. cit. Introd., pp. 37-39 e Cone. da P parte, pp. 94-97; G. Besse e M. Caveing, op . cit., 9* lição, parte II, pp. 153-156; J. Stalin, Materialismo dialético e materialismo histórico , pp. 3-10; cf. igualmente, a título de exemplo, a defesa do pavlovismo como materialismo não-mecanicista, por R. Garaudy, O Humanismo marxista, dialé- tica e liberdade, p. 175: “A psicologia pavloviana... não se contenta em adicionar reflexos, mas procede, ao contrário, por via de integração, de totalização, que comporta, nos diversos graus de desenvolvimento do psiquismo, mudanças dialéticas qualitativas”.

14 E, em particular, as pp. 29-55 da trad. publicada pelas Éditions Sociales.

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muito tempo pôs em evidência as dificuldades que essas assimilações continham — a justaposição ou a sucessão das diferenças (o branco e o preto, a flor e o fruto), o confronto dos juízos contrários (todo homem é mortal, nenhum homem é mortal) e todas as formas de oposição das contraditórias. Assim, a tarefa de definir, de 

precisar, em face das objeções, é consideravelmente simplificada: desde o momento em que há devenir, quer se trate de mudança (de alteração) ou de movimento, a dialética é, sem dúvida, invocada; mas, basta que haja simples diferença para que se proceda da mesma maneira .

Veremos quais as críticas a que se expõe semelhante atitude. É preciso determinar agora aquilo a que se esforça em responder. À argumentação do espiritualismo — quer dizer, do idealismo, que insiste na independência da alma em relação ao corpo e na diferença qualitativa existente entre um influxo nervoso, por mais complexo que se queira, e o mais pobre pensamento —  a ontologia (ou a “gnosiologia”) marxista, em seu ava- iar contemporâneo na França, não responde. Mais pre

cisamente, afirma que está de acordo; mas só o faz para declarar imediatamente sua oposição a toda doutrina que nisso encontraria um pretexto para o idealismo. O que mostra a dialética, herdada de Hegel como bem imóvel e inalienável, é que a idéia da passagem do mesmo ao outro não é inconcebível, que Parmênides estava errado quando queria compelir o enunciado a não se contradizer e que a verdade está com Heráclito que reconhecia a importância do devenir e da contradição. Assim, da matéria ao espírito, do corpo à alma, o vínculo é dialético. A partir do momento em que a realidade orgânica atinge certo estágio, produz-se um salto qualitativo que faz aparecer o ser vivo e o explica embora permaneça essa realidade orgânica, qualitativamente inferior a ele. Assim também, em certo momento da 

maturação nervosa, uma novidade aparece: o pensamento. que, em sua totalidade, encontra sua causa na etapa

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precedente e que, apesar de tudo, a ultrapassa e instaura uma nova maneira de ser13.

Essas passagens dialéticas, já tão abundantes na Filosofia da natureza de Hegel, não teriam maior consistência se o pensamento materialista não lhes conferisse conteúdo científico. Para as ontologias materia

listas contemporâneas, basta interrogar as disciplinas experimentais para perceber que existe uma dialética real da natureza. Sem entrar nas minúcias das leis da dialética, é fácil verificar, mesmo no nível de uma investigação elementar, que a contradição rege todos os fenômenos. Não é evidente, por exemplo, que a química repousa sobre o fato do conflito entre corpos que se opõem e que, entrando em combinação, fazem surgir uma realidade nova que integra em sua composição os elementos de ambos os corpos antagônicos? 10 Ou me'hor: não se verifica que há — nos aminoácidos em particular 17 — combinações que, por assim diz?r, se recusam a abandonar o que quer que seja daquilo que põem em fusão, realizando a síntese perfeitamente bem sucedida? Por que ir tão longe? A meteorologia adota como prin

cípio a oposição do ciclone e do anticiclone; a e.etrici-

15 Cf. ainda Mao Tsé-Tung, “A j-»o"ósiio da prática”, in Cahiers du Communisme, fevereiro de 1951, p. 242: “O que se chama de grau emocional do conhecimento, isto é, o grau rias sjnsações e das impressões... tal é o primeiro gra.i do conhecimento. A continuação da prática social acarreta na prática dos homens a repetição múltipla de coisas que percebem pelos sentidos e que nt-les produzem determinado 

efeito; em conseqüência, produz-s.' no cérebro do homem um salto  no processo do conhecimento: surge o conceito. Por sua natureza, o conceito representa a assimilação da natureza das coisas, do que têm  de comum, de sua ligação interna. Há, entre o conceito e a sensação, uma diferença não só de quantidade, mas de qualidade”.

16 Cf. Enaels. Antidiihrinc, cap. XÍI. pp. 158-160 e R. Garaudy, Teoria materialista do conhecimento, I? parte. cap. I, pp. 75-76.

17 Cf. J .B .S . Haldane, A filosofia marxista e as ciências, p. 120; 

“Um aminoácido é um corpo muito particular. É um magnífico exemplo da união dos contrários — um ácido e uma base. Apresenta algumas das propriedades de cada um deles c também propriedades novas”.

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dade admite como ponto pacífico a contradição do pólo positivo e do pólo negativo13; a própria matemática —  apesar dos preconceitos do formalismo da identidade que a governam — reconheceu, além das simplicidades do cálculo elementar, a existência de contradições: as do -j_ e do — 5 10, do infinito em extensão e do infinito por 

divisão, também a do & do cálculo infinitesimal que é ao mesmo tempo uma quantidade e uma ausência de quantidade20.

Assim, seja qual for o domínio da ciência para o qual nos voltemos, a dialética, definida com a amplitude que acabamos de indicar, manifesta-se como a lei mais geral que rege os fenômenos. Determinante em física e em química, também o deve ser em fisiologia e psicologia: o erro do materialismo é o de ter pretendido reduzir os fatos de consciência aos fatos corpóreos; ora, é claro que há duas realidades diferentes por natureza; essa diferença, porém, não implica de modo algum a independência da consciência em relação ao corpo; este, em virtude de sua organização própria, a engendra dia- leticamente. Os resultados adquiridos pela fisiologia 

pavloviana já mostraram, sobre certos pontos, como se opera semelhante causalidade dialética. Pretender que tudo tenha sido esclarecido nesse, domínio, é antepor a preocupação maníaca do fato às hipóteses geralmente confirmadas pela razão científica. Uma vez que a natureza é dialética, o é evidentemente em todas as suas “regiões”; e, o que importa, é orientar os trabalhos científicos nessa direção. Graças ao emprego dessa lei da

18 Cf. entre outros, Engcls, Dialética da natureza , p. 82.

19 Engcls, Antidiihring, cap. XIII, pp. 167-168.

20 Exemplo que, como o precedente, tem o mérito, não só de por em evidência a existência de contradições, mas ainda de ilustrar a lei 

da negação da negação (—  ax + a = a2; do mesmo modo, adicionando grandezas infinitamente pequenas, no cálculo diferencial, obtemos, uma grandeza real). Cf. ibid. e cap. XII, pp. 153-154.

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dialética, em suas quatro formas21, abrem-se perspectivas de um saber sistemático positivo capaz de integrar todos os resultados das ciências e desenhar um quadro de conjunto da realidade e de sua evolução2-. Pode-se, então, pelo jogo dessa nova causalidade, discernir as principais etapas da evolução que conduziu os corpos

21 A análise de Stalin, Materialismo dialético e materialismo histó- rico, pp. 4-5, é tradicionalmente repetida: — primeira lei (chamada  da ação recíproca e da conexão universal): “A dialética considera a  natureza não como acúmulo acidental de objetos, de fenômenos destacados uns dos outros, isolados e independentes uns dos outros, mas como um todo unido, coerente, no qual os objetos, os fenômenos, estão ligados organicamente entre si, dependendo uns dos outros e condicionando-se reciprocamente”; — segunda lei (chamada da mudança universal e do desenvolvimento incessante): “A dialética considera a natureza não em um estado de repouso e de imobilidade, de estagnação e de imutabilidade, mas como um estado de movimento e de  mudança permanente, de renovação e de desenvolvimento incessantes, onde cada coisa nasce e se desenvolve, onde cada coisa se desagrega e desaparece”; terceira lei (chamada da mudança qualitativa): “A  dialética considera o processo do desenvolvimento, não simples processo de conhecimento, no qual as mudanças quantitativas não che

gam a mudanças qualitativas, mas como desenvolvimento que passa das mudanças quantitativas insignificantes e latentes a mudanças aparentes e radicais, a mudanças qualitativas; onde as mudanças qualitativas não são graduais, mas rápidas, súbitas e se fazem por saltos,  de um estado a outro; essas mudanças não são contingentes mas necessárias; são o resultado do acúmulo das mudanças quantitativas insensíveis e graduais; — quarta lei (chamada da luta dos contrários): “A dialética parte do ponto de vista de que os objetos e os fenômenos da natureza implicam contradições internas, pois têm todos um aspecto positivo e um aspecto negativo; um passado e um futuro, todos têm elementos que desaparecem ou que se desenvolvem; a luta desses contrários, a luta entre o antigo e o novo, entre o que morre e o que nasce, entre o que perece e o que se desenvolve, é  o conteúdo interno do processo do desenvolvimento, da conversão das mudanças quantitativas em mudanças qualitativas” . Para os com entários dessas quatro leis, cf., entre muitos textos, R. Garaudy, Teoria material ista I? parte, cap. I, pp. 95-97, e G. Besse e M. Ca-  veing, op. cit. P parte, 1-7* lições.

22 R. Garaudy, id. Cone., p. 374: “A dialética materialista é o estudo das leis mais gerais do movimento na natureza, no pensamento e na história. . e, algumas linhas adiante: “A teoria do conhecim ento é a

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mais simples à complicação do organismo humano e, daí, ao pensamento.

Uma objeção, no entanto, ameaça surgir no espírito idealista. Reduzindo assim, mesmo dialeticamente, o “superior” ao “inferior”, não se retoma necessariamente a ótica do epifenomenismo? Que acontece então com a 

liberdade humana, com o poder do pensamento, com a individualidade do ego consciente? Esse argumento, com efeito, declara a filosofia geral materialista, repousa numa incompreensão do processo dialético23: a realidade mais rica, engendrada a partir da realidade menos rica, libera-se, por assim dizer, em relação a esta e se torna capaz de reagir sobre ela. Assim, o pensamento nascido da matéria será capaz, pela prática, pelo trabalho, de transformá-la, de imprimir-lhe sua marca. Essa idéia da reação do engendrado sobre o engendrante é particularmente clara no domínio da história: a ideologia, quer dizer o conjunto dos pensamentos e das instituições vigentes em determinada época, é uma superestrutura; suas formas e seus conteúdos diversos têm como causa a situação material do homem nessa época — sendo cla

ro que se deve compreender a situação material não só como situação natural, mas principalmente como situação social em que o nível das forças produtivas e a natureza das relações de produção desempenham pápel de-

dialética, quer dizer, o estudo do movimento da matéria e de suas leis, em todos os aspectos e em todos os níveis, desde o da mecânica  até o da história, e de seu reflexo na cabeça dos homens”.

23 Cf. J. Stalin, Socialismo ou Anarquismo, p. 22: “ . . . a idéia deque a consciência é uma forma de ser não significa de modo algumque a consciência, por sua natureza, seja também matéria. Só pensavam assim os materialistas vulgares (por exemplo, Biichner e Moles-  chott), cujas teorias contradizem fundamentalmente o materialismo de  Marx, e que Engels com razão ironizou em seu Ludwing Feuerbach. De acordo com o materialismo de Marx, a consciência e o ser, a idéia e a matéria, são duas formas diferentes de um só e mesmo  

fenômeno que, em tese, se chama natureza ou sociedade. Logo, um  não é a negação do outro e, além disso, não constituem um só e  mesmo fenômeno”.

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terminante24. A ideologia, portanto, quer seja homogênea, quer oponha correntes contraditórias, é produzida por dado estado de fato, que ela reflete -5. Todavia, porque é consciente da situação, poderá, por sua vez, influir no dado: poderá, por exemplo, denunciar sua injustiça ou organizar uma ação política que produzirá — é o 

caso das revoluções — uma transformação radical das relações de produção que permitirá uma modificação do nível das forças produtivas e, mais profundamente ainda, uma transformação no ambiente “natural” do homem20. Seria considerar unilateralmente o processo dialético e ignorar os fenômenos de interação que se produzem entre a causa e o efeito.

O materialismo marxista não desconhece, pois, nem a existência, nem o papel do pensamento: salienta, pelo

24 Assim, após ter afirmado que o meio geográfico e o crescimento e a densidade da população não são causas determinantes da “fisionomia da sociedade, suas idéias, suas opiniões, suas instituições políticas”, J. Stalin em Materialismo dialético e... esclarece que a força principal é “o modo de obtenção dos meios necessários à vida dos 

homens, o modo de produção dos bens materiais”, entendendo-se que  este “engloba tanto as forças produtivas da sociedade quanto as relações de produção entre os homens, e é assim a encarnação de sua unidade no processo de produção dos bens materiais” (pp. 16-19).

25 Utilizando o célebre texto do Prefácio à Contribuição àCrítica da economia política  (ed. Molitor, p. 29): “Não é a consciência dos homens que determina sua existência, é sua existência social que determina sua consciência”, J. Stalin, por exemplo, escreve {id. p. 14): “É prcciso procurar à fonte da vida espiritual da sociedade, a origem  das idéias sociais, das teorias sociais, das opiniões políticas, não nas próprias idéias, teorias, opiniões e instituições políticas, mas nas condições de vida material da sociedade, no estado social do qual essas idéias, teorias, opiniões, etc. são o reflexo”; assim (p. 21): “ao modo  de produção da sociedade correspondem, quanto ao essencial, a própria sociedade, suas idéias e teorias, opiniões e instituições políticas. Ou, mais simplesmente, tal gênero de vida, tal gênero de pensamento”.

26 '\A superestrutura é engendrada pela base, mas isso não quer dizer que se limite a refletir a base, que seja passiva, neutra, que se mostre indiferente ao destino da base, das classes, à índole do regi-

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contrário, as condições nas quais o espírito humano pode ser verdadeiramente eficaz e exercer um poder efetivamente real. Constitui, assim, o único humanismo autêntico. Voltado contra o idealismo, que visa sempre, se

 jam quais forem seus disfarces, afastar o homem de sua tarefa prática, difundir concepções místicas com as quais as classes dominantes procuram fazer com que os explorados aceitem a infelicidade e a opressão, a minimizar, sob o falacioso pretexto de “fundá-los”, a importância dos resultados científicos, a lançar a dúvida e o descrédito sobre a técnica e a exaltar doutrinas em que se demonstra que “o homem anda de cabeça para baixo27”, a teoria marxista do ser e do conhecimento, apresenta 

uma visão clara e científica das origens e da situação real da humanidade. Graças às descobertas dos fundadores da doutrina, pela firme sustentação dos princípios e pelo uso do instrumento dialético, novo impulso

me. Ao contrário, desde que surge, torna-se imensa força ativa, ajuda 

ativamente sua base a cristalizar-se e afirmar-se; toma todas as providências para ajudar o novo regime a completar a destruição da velha base e das velhas classes, e a liquidá-las” . J. Stalin, A propósito  do marxismo em lingüística, Últimos escritos, pp. 14-15. Semelhante perspectiva é comentada por G. Besse e M. Caveing, op. cit . 4* parte, 19* lição e por R. Garaudy, id., principalmente na 4* parte, cap. II,2 e cap. III, B; cf. igualmente R . Garaudy, Humanismo marxista, p. 203: “As relações entre a base e a superestrutura não são de modo  algum mecânicas. A superestrutura não está simplesmente “colocada” 

sobre a base, para protegê-la, como a palavra sugere. É, ao contrário, “oposta” a ela, no sentido de que reage contra ela, a contradiz em  certos aspectos, para acelerar ou deter seu desenvolvimento” .

27 Foi a operação tentada, no começo do século, pelo empirocriti- cismo e suas variantes, denunciada por Lênin, op. cit.; mais recentemente, é, segundo R. Garaudy, na época do capitalismo em decomposição, o sentido das obras de W. James e J. Dewey, Teotia mate- rialista...  p. 326, de Bergson, pp. 331 ss, de Merleau-Ponty, pp. 332- 359, dos estudos semânticos, pp. 362-363 e. finalmente, de todas as pesquisas filosóficas que não consideram absolutamente verdadeiros todos os principais enunciados do materialismo dialético.

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foi dado às disciplinas experimentais28. A justeza da concepção materialista, que as descobertas recentes e os acontecimentos contemporâneos constantemente confirmam, proporciona, além disso, à humanidade, a possibilidade de libertar-se dos preconceitos religiosos, do obscurantismo, e constitui a poderosa alavanca por meio 

da qual a ação em favor de um mundo de justiça triunfará.Às sutilezas do idealismo, é preciso opor a clareza 

dos princípios cuja evidência pode ser por todos comprovada. Não se trata, de modo algum, de rejeitar tudo o que foi elaborado pela filosofia passada, mas de repensar suas aquisições à luz do marxismo, à luz do pensamento materialista e dialético, aquele que, para defender e ilustrar o princípio essencial: “a matéria existe anteriormente e exteriormente ao espírito”, soube definir as quatro leis da dialética, permitindo, assim, a constituição de um método universal isento, enfim, de incerteza29.

2

Tal é, esquematicamente apresentada, em seu estilo e conteúdo, essa filosofia geral materialista que pretende ser, na atualidade, a expressão da teoria marxista-leni- nista e, como tal, entra em debate com as diversas doutrinas e atitudes não-materialistas. Sua argumentação, que acabamos de resumir, é diversa: apela ora para a

28 “A estrela polar que orienta o trabalho do cientista ou do filó sofo, é o materialismo dialético, a teoria materialista dialética do reflexo, a única doutrina filosófica que generaliza todo o conhecimento  científico”. R. Garaudy, id., IV parte, II.

29 “Essa filosofia (a filo sofia marxista) realmente científica, apóia-se em todo o conjunto das verdades relativas descobertas pelas di

versas ciências e grupadas com o auxílio do método dialético, querdizer, do único método realmente científico...” Id., III® parte, III,p. 280.

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prática quotidiana e para a evidência “mundana” que a acompanha30, ora para demonstrações análogas em sua estrutura às demonstrações filosóficas tradicionais31, ora para essa verdade positiva de que se prevalecem as ciências experimentais32. Acontece-lhe, também, arriscar (voltaremos a salientar esse aspecto), perspectivas mo

rais e opor a solidez e a universalidade dos valores que defende à fragilidade e a obscuridade dos valores “idealistas” 33. Na realidade, porém, não consegue nem persuadir nem convencer. Por mais que afirme que toda reflexão que não aceita os princípios do materialismo é levada a tornar-se antimaterialista, que o idealismo é uma sobrevivência e a base mais sólida do poder das classes dominantes, não conseguirá eliminar do espírito dos fi

lósofos, não suspeitos de paixão partidária, sua descon-

30 “Pois, enfim é claro, para todo homem são de corpo e de espírito  que o objeto não deixa de existir mesmo que não haja nenhuma ação  recíproca entre ele e o sujeito, quer dizer, mesmo que a experiência  não ocorra. Ninguém duvida de que o sol nascia e se punha antes do nosso nascimento e do de todo ser vivo e que nascerá e se deitará  

depois de nossa morte e mesmo após o desaparecimento de qualquer vestígio de consciência e de vida em nosso planeta”. R. Ga- raudy, O Humanismo marxista, dialética da natureza e materialismo, p. 128. Cf. igualmente as formulações de Lênin, Materialismo e em - pirocriticismo, p. 111: “A admissão ou o repúdio da noção de matéria é para o homem uma questão de confiança no testemunho dos sentid o s . . . ” (nas duas citações o autor é que sublinh a).

31 C f. por exem plo a exposição do pensamento teórico apresentada em Materialismo dialético e materialismo histórico, não havendo dú

vida, aliás, Anarquismo e socialismo, p. 7> que “o marxismo... é uma concepção completa do mundo, um sistema filosófico”.

32 É o estilo geral da demonstração apresentada por R. Garaudy em sua Teoria materialista do conhecimento, que citamos abundantemente, na seção anterior.

33 “Contra o individualismo exagerado e o pensamento sem ação, o pensamento desencarnado do capitalismo em decomposição, o co

munismo traz o sentido profundo de solidariedade humana e de eficácia social: é pela minha colaboração com o todo que me torno um  homem”. R. Garaudy, O comunismo e a moral, p. 124.

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fiança em relação aos enunciados fundamentais do materialismo ou, ao menos, a preocupação de criticá-los e pô-los à prova. Debitará, então, essa “incompreensão” 34 na conta de hábitos mentais há muito enraizados na profissão filosófica; e chegará a considerar essas obje- ções um produto de dimensões psíquicas individuais. 

Esses processos de nada lhe servirão na medida em que, apresentando-se, desde logo, como filosofia, obriga-se a aceitar o debate filosófico como tal; deve supor a boa fé  do interlocutor e reconhecer que, no diálogo, cada um  parte com as mesmas chances de atingir a verdade. Em outros termos, uma vez que afirma ser a manifestação contemporânea do racionalismo, obriga-se, ao mesmo tempo, a admitir que, a uma demonstração correta, nenhuma ótica individual, nenhum hábito de espírito pode resistir. E, quando invoca a pressão da ideologia dominante, comete uma petição de princípio, pois a própria idéia dessa pressão só pode ser admitida por aqueles que reconhecem a validade de suas perspectivas de conjunto.

De fato, na posição adotada por essa filosofia geral materialista, nada, a não ser um subterfúgio, autoriza a 

evitar a discussão filosófica tal como se costuma travá-la. E é preciso dizer que a ontologia (ou a teoria do conhecimento materialista), se considerarmos suas produções atuais, não está de modo algum em situação de triunfar. A crítica antimaterialista — e por essa expressão designamos as objeções provenientes da filosofia perennis e as que emanam dessas novas correntes chamadas existenciais — fará, em primeiro lugar, recair sua dúvida 

sobre o sentido e a validade do enunciado fundamental: “a matéria existe exteriormente e anteriormente ao espírito”. Perguntará, e é difícil negar-lhe o direito de

34 Essa incompreensão tem como raiz as duas características dosintelectuais qiu compreenderam “a falência da burguesia que os for-  nlOu,, mas “são levados a adotar o ponto de vista que contradiz

fundamentalmente a herança mais tenaz de sua formação burguesa”: a abstração e o individualismo. Cf. Garaudy, Humanismo marxista, sobre os intelectuais, pp. 244-247.

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fazê-lo, o que querem dizer as palavras então empregadas . Verificará que, na demonstração dada pelo materialismo a propósito desse enunciado, há ambigüidade. Ninguém jamais negou, dirá inicialmente, que “o pudim se coma” e Berkeley jamais pretendeu que sua demonstração mudasse o que quer que seja no fato empírico tal como se apresenta3r-: quer a “matéria” seja coisa-em-si ou feixe de representações, propõe-se, ein todo caso, como empiricamente real e é uma fraude confundir o imate- rialismo do autor dos Diálogos de Hilas e Filonus com o solipsismo — quem jamais foi filósofo solipsista? —  ou com qualquer irrealismo. É bem verdade, observará a crítica, que o materialismo só se atém a essa argumen

tação elementar nas polêmicas exteriores. A prova que prefere utilizar é a proporcionada pelas ciências positivas: fisiologia, ciência da evolução, paleontologia, geologia36. Não percebe, porém, que confunde então dois aspectos da objetividade sobre os quais há muito tempo costuma a reflexão interrogar-se37. O problema posto

35 "Hylas: quando negais a matéria, sou levado a supor inicialmente  que negais as coisas que vemos e to ca m o s. .. Não concordaríeis em conservar o nome de matéria e aplicá-lo às coisas sensíveis? Poderíeis fazê-lo sem em nada modificar vossa maneira de pensar; e, acreditai-me, seria o meio de conquistar certas pessoas que podem ficar mais chocadas com uma inovação verbal do que com a novidade de uma opinião. Philonous:  de todo meu coração, conservai a palavra matéria e aplicai-a aos objetos dos sentidos se o quiserdes” . Berkeley, Diálogos cie Hylas e Philonous, p. 211, texto citado por Ferdinand 

Alquié em sua demonstração de A nostalgia do ser, p. 53.36 É o sentido de todas as análises feitas por Lênin em Materialismo  e empirocriticismo;  é também a atitude assumida por R. Garaudy, desde a 1* página de sua Teoria materialista...:  “Essa filosofia (o materialismo dialético) é totalmente fiel aos ensinamentos da ciência”.

37 Cf. a demonstração de F . Alqu ié, op. cit., pp. 52-55, consagrada à refutação da “doutrina do objetivismo c ie n tis ta ... batizada materialista, e que consiste, contraditoriamente, depois de ter afirmado  

que a matéria é anterior em relação ao espírito, em defini-la ao nível  do objeto científico, quer dizer, precisamente como construção do espírito” : “os objetivistas. . . são, eles próprios, idealistas que se ig-

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é o de sentido que convém atribuir à noção de matéria. Lênin, por exemplo, declara que a matéria é “aquilo que atuando em nossos órgãos produz a sensação; .. .é a realidade objetiva que nos é dada na sensação” 38; admite, pois, como ponto pacífico, que a materialidade é o que nós percebemos e a causa da percepção. Há, com 

efeito, duas definições que não coincidem exatamente ou a propósito das quais seria preciso demonstrar, ao menos, que remetem a realidades idênticas: de um lado, com efeito, a materialidade é apreendida como aquilo que se mostra —  tò fainómenon — na percepção; de outro, é considerada causa eficiente do ato de perceber. Essa é uma assimilação que é perigoso fazer quando não se provou sua verdade filosófica. De um lado, há, sem 

dúvida, o mundo percebido que é horizonte da consciência e ergue diante dela sua opacidade e seus reflexos; esse mundo é vivido tanto quanto é percebido, e sua objetividade é uma objetividade de ser, a de algo irredutível que está aí sem mim, mas sempre diante de mim, e, de certo modo, por mim; de outro, há o mundo estudado pelo físico e pelo biólogo, universo de ondas e 

de forças, distribuído em um suscetível de ser estudado experimentalmente e quantificado. Mas, quem garante que esse dois mundos se correspondem? Com que direito se confunde o ser, tal como aparece na imediatidade vivida, e a construção do cientista? 39 Responderão que não se trata de modo algum de assimilá-los totalmente, sa-

noram”, pois “assimilar o ser ao objeto conhecido, é constituir um  objetivismo que a mais simples reflexão, descobrindo que só há percebido para um perceptor, transformará em idealismo”.

38 O p. cit. pp. 110-111.

39 Cf. por exemplo, M . Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percep- ção, Prefácio, pp. 11-111: “Tudo o que sei do mundo, mesmo pela ciência, o sei a partir de uma visão minha e de uma experiência do 

mundo sem a qual os símbolos da ciência nada quereriam dizer. Todo  o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido e se quisermos pensar a própria ciência com rigor, avaliar exatamente seu

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bendo-se que o conhecimento científico é mais rico e mais profundo do que a apreensão perceptiva, mas que, precisamente, aquele explica esta, que o mundo percebido se explica pelo conhecimento conceituai que dele nos dão as ciências positivas10; acrescentarão que estas — à margem de uma crise de nominalismo sempre provisória e 

agora superada — sempre souberam que experimentam com aquilo mesmo que os homens percebem e que acreditam na existência real de entes científicos cujas leis estabelecem.

Responderá a crítica, por sua vez, que é atribuir confiança excessiva, filosoficamente excessiva, ao cientista e às ciências, aceitar sem demonstração seus preconceitos; insistirá mostrando de que modo o vivido, por sua 

riqueza, por sua diversidade, excede sempre a descrição científica que dele é possível fazer. Concluirá afirmando que, nessa fase, aparece um primeiro aspecto do dogmatismo da filosofia geral marxista: confundir, como se essa assimilação fosse ponto pacífico, o dado tal como se mostra na vida e na percepção e o objeto-material, a coisa-científica, tais como são conhecidos pelo cientist a -11. Ora, devemos salientá-lo, essa crítica contemporânea não se faz em nome de um idealismo de tipo berke- leyano ou mesmo fichtiano. Provém, freqüentemente,

sentido e alcance, deveremos inicialmente despertar essa experiência do mundo do qual a ciência é a expressão segunda. A ciência não  tem e jamais terá o mesmo sentido de ser que o mundo percebido pela simples razão de que é uma determinação ou uma explicação”, e o cap. IV da Introdução , o Campo Fenomênico.

40 Cf. entre outros, Mao Tsé-Tung, Da Prática, que retoma, na análise do grau emocional do conhecimento e de sua passagem ao grau racional, a ótica tradicional, representada contemporaneamente por Alain e L. Brunschvicg.

41 Cf. por exemplo, M . Merleau-Ponty, ibid., pp. 384-385: “A coisa e o mundo só existem vividos por mim ou por sujeitos seme

lhantes a mim, pois são o encadeamento de nossas perspectivas, mas transcendem todas as perspectivas porque esse encadeamento 6 temporal e inacabado” .

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de doutrinas que, inspirando-se em graus diversos e em orientações diferentes, nas filosofias chamadas da existência, estão prontas a reconhecer a independência ou uma independência do ser em relação à consciência (embora, para a maior parte delas, seja no ser da consciência que o ser se experimente com maior plenitude) mas 

recusam-se a tratar o ser como o cientista considera seu objeto e, mais ainda, a atribuir-lhe propriedades de caráter científico. Que haja “alguma coisa”, “exterior” à subjetividade, que a ultrapasse por sua plenitude compacta e pelo seu caráter próprio de ser dado (ou de ser mostrandose ) isso, elas o admitem e o sustentam como essencial; é ilegítimo, desse ponto de vista, ao menos se conservarmos o sentido tradicional das palavras, qualifi

cá-las de idealistas43. Algumas, dentre elas, salientam, ao contrário, a realidade, a “exterioridade” e uma espécie de precedência do ser que não é a consciência; separam-se, no entanto, do materialismo, a partir do momento em que este pede à ciência que prove essa independência e justifique objetivamente o dado. E, se adotam essa atitude, é porque não vêem de modo algum a neces

sidade que leva do ser (experimentado, vivido ou percebido) ao objeto (científico).A seu ver, há uma grave carência, considerando-se a 

exigência filosófica, no fato de que o materialismo assuma por sua conta o realismo espontaneamente adotado pelas ciências. Com efeito, além desse equívoco que pesa sobre a noção de matéria, desenha-se o “cientismo” que a ontologia marxista herdou do século X IX 43. Essa on-

42 Entre os autores aos quais nos referimos neste capítulo para ex- por a argumentação antimaterialista, nenhum pode ser considerado seriamente idealista. J. Wahl, F. Alquié, J.P. Sartre, M. Merleau- Ponty, propõem, uns e outros, explicitamente, e sob perspectivas diferentes, a independência do ser em relação à consciência; quanto aos autores “cristãos”, J. Lacroix, H.I. Marrou, J.Y. Calvez, P. Bigo, inscrevem-se, ao que parece, na corrente realista tradicional.

43 Sobre as acusações de cientifismo, de objetivismo e de naturalismo, dirigidas seja a Marx, seja a Lênin e ao materialismo dialético con-

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tologia utiliza constantemente as idéias de verdade, de existência, de ser, de objetividade, sem jamais interrogar-se a respeito de sua significação, seu alcance filosófico e o direito que temos de empregá-las. Acabamos de verificar a ambigüidade dessa noção de objetividade que significa, ora o fato de dar-se ou de ser dado à consciência, ora a possibilidade para um fenômeno de ser integrado na rede das relações universais estabelecidas pelas disciplinas positivas. É ilegítimo não reconhecer essas duas significações, mesmo que fosse para reduzi-las em seguida a uma só. Mas, a carência é particularmente grave quando se trata com semelhante desenvoltura o problema do enunciado verdadeiro. Há como que 

uma recusa em filosofar no fato de admitir, como não constituindo problema, que alguma coisa possa ser conhecida autenticamente; e, considerar o verdadeiro como um reflexo puro e simples do real “na” consciência, é aceitar o mais ingênuo objetivismo. Sem dúvida, é justo dizer que um enunciado é verdadeiro quando é adequado ao seu objeto; mas, a filosofia consiste em perguntar 

como se dá tal possibilidade, e de que modo, em todo caso, se conhece e justifica essa adequação. Ora, acrescenta a crítica antimaterialista, é inevitável, a partir do momento em que se formulam semelhantes questões, inerentes ao correto exercício da filosofia, que sejamos remetidos do objeto ao sujeito; pois, na idéia de um enunciado verídico, seja científico e cercado de todas as pre

cauções experimentais, está implícita a noção de um poder de verificação ou de legitimação pelo qual a verdade advém, poder esse que não pode ser senão o pró-

temporâneo, cf. J.P. Sartre, Materialismo e revolução, Situações III, pp. 136-145, Questões de método, Tempos modernos, n? 139, pp. 359- 361, M. Merleau-Pnty. A querela do existencialismo e Marxismo e 

filosofia, Senso e NãoSenso, pp. 154-164 e pp. 253-276, As aventu- ras da dialética, pp. 61-89; J.Y. Calvez, O pensamento de Karl Marx;  F. Alquié, A nostalgia do Ser, ibid.

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prio sujeito 44. É inevitável que se abra, assim, uma problemática obscura, difícil de resolver ou mesmo insolúvel; mas a filosofia só começa se admitirmos semelhante problemática e a exigência profunda de legitimação que a implica. O materialismo, porque se tornou, sem procurar disso justificar-se, o depositário das cren

ças realistas e positivistas do século passado, menospreza uma questão que se tornou tradicional na filosofia; a da possibilidade do verdadeiro, e por meio dela, a do “valor da ciência”; considerando esse problema resolvido antes mesmo de o ter proposto, representa uma regressão do pensamento situando-se numa perspectiva que é, no mínimo, anterior à crítica kantiana45.

Assim, embora pretendendo o título de filosofia, es

sas exposições gerais da teoria marxista não compreendem que é necessário distinguir dois planos, duas atitudes, dois domínios diferentes por essência. Há o domínio da existência quotidiana, que é também o das ciências positivas, o domínio “mundano”, no seio do qual o fato como tal — presença imediata na percepção natu-

44 “Se, portanto. . . o realismo não deve ser contestado, mas mantido, deverá, para isso, ser orientado. Pois, se permanecer ao nível do qualitativo, ou mesmo da relação objetiva, não ficará, em nenhum  espírito sincero, ao abrigo da reflexão que nos leva a reconhecer que a neve não poderia perceber-se a si mesma como branca, que o fogo  não se sente queimando, e que uma relação matemática não se pensa sozinha”. F. Alquié op. cit. pp. 54-55.

45 De modo geral, o cientismo está ligado à teoria do reflexo que 

constitui em si uma desoladora regressão do pensamento; cf. M.  Merleau-Ponty, As aventuras da dialética, p. 82: “Repetindo que o pensamento é um produto do cérebro, e, através dele, do real exterior, retomando a velha alegoria das idéias-imagens, Lênin pensava instalar solidamente a dialética nas coisas, esquecendo-se de que um reflexo não se assemelha à sua causa e que, efeito das coisas, o conhecimento se acha por princípio aquém do seu objeto e só atinge  sua reprodução interna. Anulava-se, assim, tudo o que se pôde dizer  a respeito do conhecimento, desde Epicuro, e o próprio problema 

de Lênin — o que ele chama de “questão gnosiológica” da relação  entre o ser e o pensamento — restabelecia a teoria do conhecimento  pré-hegeliana”.

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ral, eficácia na ação ou presença controlada nos laboratórios — constitui a única justificação exigida para a validade de um enunciado. Quando o geólogo, por meio de observações precisas e de manipulações experimentais, mostra que tal camada de terreno, na qual discerne vestígios humanos, é mais recente do que outra, em 

que nenhum desses vestígios foi descoberto, apesar de múltiplas investigações, quando, além disso, auxiliado pelo químico e pelo biólogo, mostra de que modo a existência de determinadas condições naturais e a ordem normal de evolução dos seres vivos tornam inteligível o aparecimento de animais muito evoluídos, tem o direito, cientificamente, de afirmar que “a materialidade desprovida de consciência precede a materialidade dotada de consciência”. As idéias de materialidade, de consciência e de anterioridade, são por ele recebidas como se não constituíssem problema; e isso é legítimo. O filósofo não pode contentar-se com semelhante modo de  justificação; exige que as noções sejam plenamente elucidadas; quer, sobretudo, que o conceito de anterioridade revele sua significação e seu fundamento40 (veremos 

como, a propósito do uso feito por essa filosofia geral materialista da dialética, como se desenvolve sobre esse assunto a argumentação crítica). Admite que, além dessa região “mundana”, desenham-se os contornos de um domínio — estranho para aqueles que permanecem na atitude natural, no qual se impõe a exigência do fundamento último, em que todo conceito deverá mostrar seu significado último e “confessar” a origem do poder 

de validação que possui, se é que o possui. Ora, a ontologia e a teoria do conhecimento materialistas ignoram esse segundo domínio: conhecendo as ciências e seus resultados, os aceitam, sem mais. Reivindicam, no entan

46 Cf. as críticas às noções de dialética e de materialidade tais como são entendidas pelo materialismo nas obras citadas, na nota 3 da p. 26e também na 3* parte, cap. II da Fenomenologia da percepção e no  Tratado de metafísica , de J. Whal.

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to. o título de filosofias. Não haverá nisso uma contradição grave ou, em todo caso, fraqueza ou cegueira?

Essa insuficiência do materialismo manifesta-se, como já vimos, na obscuridade da definição da materialidade, interpretada ora como horizonte da vida, ora como tò fainómenon, ora como objeto conhecido ou a 

conhecer, como realidade científica. Suas relações com o espírito, que, para a teoria marxista, é segundo em relação à matéria, também não são claras. Freqüentemente, com efeito, a matéria é compreendida de modo puramente negativo ou indefinido, para retomar a expressão kantiana: é considerada o que não é espírito, aquilo que o precedeu; é representada como o não-espí- rito que, no entanto, engendrou o espírito (na evolução) 

ou o suscita atualmente (na percepção)47. Essa, porém, não é uma definição aceitável: com efeito, ou bem a espiritualidade é, de qualquer modo, deduzida da matéria, retornando-se finalmente a uma posição análoga à de Epicuro, Helvetius ou Vogt, de acordo com a qual a consciência aparece como se fosse manifestação, atributo ou espécie da matéria, concebida como substância ou gênero último; nesse caso, permanece de pé o conjunto das críticas dirimentes e dos fatos acumulados contra o materialismo mecanicista; ou então, admite-se que há mais no espírito do que na matéria — e essa parece ser a perspectiva do marxismo — e, nessa hipótese, tratar- se-á, ainda, de materialismo?48 Para que fosse assim, se-

47 Cf.J.

Whal,op cit.,

p. 215: “ . . . só se pode definir a matéria dizendo que ela é o que não é o espírito. Chegaríamos assim a esta fórmula, para designar o materialismo, que o espírito não é o espírito,  e é produzido pelo que não é o espírito. O espírito deve ser reduzido  ao que não é espírito. Ora, mesmo para pensar a palavra espírito, é preciso pensar alguma coisa que não é exatamente a mesma coisa  que o não-espírito. Não chegaremos assim bastante perto do que  podemos conceber como a dialética do materialismo, e mesmo como  o materialismo dialético”.

48 ld.,  p. 214: “pois como ter uma idéia precisa da matéria e comoatribuir um sentido preciso à palavra materialismo se há movimento no espírito e na matéria”; cf . igualmente J . P. Sartre, Materialismo 

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ria preciso garantir a dedtição filosófica, que permitisse passar da materialidade (justificada negativa ou relativamente) à espiritualidade de que qualquer um experimenta em si mesmo o caráter positivo. Em suma, o materialismo, por essa série de argumentos, acha-se acuado ao seguinte dilema: ou admite, sem razão filo

sófica, a atitude realista49 e os resultados das ciências positivas e trai a exigência filosófica à qual pretende submeter-se; ou, então, submete-se a essa exigência e, nesse caso, chega apenas a resultados medíocres, confusos e obscuros60.

As filosofias gerais marxistas têm, como salientamos, uma resposta pronta: o que a crítica chama de confusão e obscuridade é, de fato, o resultado do em

prego de um método agora comprovado: o método dialético. As objeções antimaterialistas, desconhecendo o caráter dialético da realidade e do pensamento, e das ciências que os refletem, enxergam dificuldades que uma doutrina que soube romper com os preconceitos da lógica da identidade sabe facilmente superar. Basta compreender, como atesta o progresso do pensamento'tanto filosófico quanto científico, desde que Marx e Eneels souberam forjar o instrumento materialista dialético, que a realidade está em vir-a-ser, que este envolve em seu curso uma multidão de interações, que procede por saltos e que toda mudança progressiva na quantidade acarreta, em certa fase, uma brusca mudança qualitati-

e revolução , I,

Situações III, p. 162: “ . . . nossos materialistas cons- 

truíram sem boa fé um conceito escorregadio e contraditório de matéria. Ora é a mais pobre abstração, ora a totalidade concreta mais rica, conforme suas necessidades”.

49 J. Wahl, ibid.:  “O que Lênin afirma, é . . . que há alguma coisa que é dada; e é preciso partir desse dado. Quando Lênin fala de materialismo, é freqüentemente ao realismo que se refere”.

50 ld.,  p. 215: “ ...p od er íam os mostrar que uma tensão subsiste no 

interior do pensamento materialista, e poderíamos dizer uma tensão dialética, entre o materialismo dialético e o materialismo de teorias como a de Watson e a de Pavlov”.

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va. Os mistérios da passagem da matéria ao espírito, do movimento nervoso à consciência, das dificuldades da definição, a um tempo relativa e absoluta, da materialidade, dissipam-se então. Vimos os numerosos exemplos dados pela ontologia e pela “gnosiologia” materialista para provar a validade dessa ótica de conjunto, 

exemplos tomados das ciências da natureza, da história, das matemáticas, da lógica e da linguagem quotidiana.

Devemos, sem dúvida, reconhecer que o não-mate- rialismo ou o antimaterialismo não está de modo algum convencido por essa técnica dos exemplos. A crítica suscitará, inicialmente, objeções propriamente formais, que 

 já assinalamos: surpreender-se-á com a facilidade que leva os filósofos marxistas a incluir no pensamento dialético simples oposições lógicas — o branco, o preto, que são unicamente termos contrários —, mudanças efetivas ligadas ao fato do devenir — a semente, a flor, o fruto —, fenômenos de tensão estudados pelo físico, tensões expressas por meio de palavras contraditórias, - +  e, ciclone e anticiclone, diferenças reais ou concentuais 

e contradições propriamente ditas. Acusará, então, seu interlocutor de esquematismo; não terá dificuldade em mostrar que, de um lado, na exposição geral, aceita um modelo pronto que não procura de modo algum aprofundar e justificar e, de outro, recorre, para ministrar a prova, a simples exemplos, heterogêneos extraídos arbitrariamente das disciplinas do pensamento e das mais diversas regiões da realidade.

A crítica contemporânea, porém, desenvolverá sua argumentação especialmente contra a materialização da dialética, operada pela filosofia geral marxista. Não se trata de que a filosofia não-materialista atual recuse, geralmente, a idéia de dialética51. Pelo contrário adota-

51 Nas páginas seguintes, utilizarem os as análises críticas da con

cepção materialista dialética principalmente de J . P. Sartre e M. Merleau-Ponty. Ora, é incontestável que esses dois pensadores usam constantemente “idéias negativas”, para retomar a expressão de J. Wahl.

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a; atribui grande importância à noção do devenir formador e, a esse respeito, abandonou a ótica atribuída a Platão de acordo com a qual o movimento é, por natureza, corruptor; verificou que a formação do homem não se faz sem dramas e que, em conseqüência, importa considerá-la do ponto de vista de uma luta de con

trários ou de contraditórios; essa noção da polaridade do real lhe é cara e se compraz em descobrir essas rupturas em torno das quais desenvolve reflexões sutis e atraentes. Na medida em que se esforça em recuperar a “seriedade da vida”, encontra na dialética um meio que convém à sua preocupação: o espírito de Hegel, quer se transmita por Kierkegaard, Nietzsche, Dilthey ou Marx, permanece vivo, assim como permanece constan

te a recusa de uma metafísica que imobüiza as noções. Assim também, a Hegel e a seus continuadores, toma a noção de negatividade do homem, concebida de maneiras múltiplas. Ora é interpretada como nada da consciência que insere o vazio na compactidade maciça do em-si; ora é experimentada como apreensão trágica da finitude humana manifestando a presença do nada no seio do ser; ora é considerada como o projeto que recor

ta no horizonte da situação a vertigem das possibilidades indefinidas; ora, mais tranqüilamente, é concebida como essa espécie de limitação positiva introduzida pelo enunciado que nega o dado e, ao mesmo tempo, o eleva ao rigor do conceito. Em todos os casos, como aspecto da atividade, do sentimento ou do logos, o homem é considerado um poder de negação que suprime, mantém e integra aquilo com que se defronta. É claro que tal atitude se faz acompanhar de uma presunção da historicidade como dimensão essencial do homem; o indivíduo humano não é: ex-iste; projeta seu ser que jamais é, em virtude dessa temporalidade que é seu fundamento.

Todavia, essa perspectiva opõe-se radicalmente à ótica materialista. Não admite, com efeito, que se fale de uma dialética da natureza: a expressão lhe parece 

desprovida de significação e julga surpreendente que a filosofia marxista a aceite com tanta facilidade. Sobre esse ponto, sua argumentação é de grande riqueza e nos

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escusamos de mencionar dela apenas alguns traços. O antimaterialismo — que é doravante um antimateria- lismo dialético — apresenta, em primeiro lugar, a questão do sentido da história natural que a cosmologia, a geologia, a paleontologia tomam como objeto de estudos e que o marxismo utiliza abundantemente. Essas 

disciplinas supõem um devenir real da natureza e se atribuem como tarefa desvendar sua ordem efetiva; admitem, pois, a existência de uma temporalidade própria a essa realidade ante-histórica. Quanto à ciência, seu direito a semelhante postulação é evidente: a física, do mesmo modo, atribui ao móvel que se desloca sobre um plano inclinado uma temporalidade que é integrada em seu saber na forma de um parâmetro. A operação, po

rém, torna-se ilegítima desde o momento em que a filosofia se apodera desse tempo para dele fazer uma temporalidade real. Basta, para convencer-se disso, continua o antimaterialismo, considerar atentamente a própria noção de temporalidade. Um “lapso de tempo” é uma série unificada de momentos sucessivos, quer dizer, um conjunto dinâmico compreendendo uma ordem tal que este momento existe antes daquele que, por sua vez, 

precede aquele outro. Ora, só há temporalidade para um ser capaz de unir agora esse momento passado longínquo e esse momento passado próximo, de operar uma síntese entre olim e nunc. Um ser apenas é suscetível de efetuar semelhante síntese e esse ser é a consciência humana que é, fundamentalmente, temporalidade, quer dizer, essencialmente memória e projeto52. A natureza, em si mesma, limita-se a um eterno presente, pois cada um 

de seus estados, embora ligado aos outros, não poderia

52 “Quando digo que anteontem a geleira produziu água que agora corre, subentendo uma testemunha situada em certo lugar no mundo e comparo suas visões sucessivas... A mudança supõe certo posto em  que me coloco e de onde vejo as coisas desfilarem; não há acontecimentos sem alguém a queni aconteçam e cuja perspectiva finita fun

da sua individualidade. O tempo supõe uma visão sobre o tempo”. M. Merleau-Ponty, benoinenologiu <la percepção, 1119 parte, cap. II, p. 470.

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ser apreendido como seqüência do estado precedente e como anúncio do estado seguinte"3. Assim sendo, afirmar que existe uma temporalidade da natureza, é pro

 jetar sobre o dado uma propriedade que só pertence à consciência. De fato, o tempo das coisas só pode ser o tempo de uma consciência que se acha em face das coi

sas e as temporaliza. Para convencer-se disso, basta voltar à experiência de si: que chamamos de temporalidade, no sentido originário, senão essa mudança que experimentamos precisamente porque guardamos a lembrança da situação que não é mais e sentimos abrir-se diante de nós o abismo do futuro. Se não há um especta- dor-ator, de certo modo onipresente, que faça existir es

se acontecimento como tendo surgido antes dêsts outro, resta apenas a absoluta diversidade dos fatos heterogêneos. Assim, o esforço filosófico tendente a elucidar a estrutura da temporalidade conduz do tempo das coisas ao tempo da consciência e, daí, à consciência do tempo (ou temporalizante), única que se apresenta como temporalidade real54.

Essa argumentação, prossegue o antimaterialismo, pode ser retomada a propósito da noção de história que se acha implícita na idéia de história natural. Assim como o tempo remete à consciência, assim também a

53 Ibid., “A própria noção de acontecimento não tem lugar no mun

do objetivo”, e p. 471: “O passado e o presente existem demais no  mundo, existem no presente e o que falta ao próprio ser para ser temporal, é o não-ser do alhures, do outrora e do amanhã. O nuindo  objetivo é pleno demais para que nele haja tempo”.

54 “O tempo é pensado por nós antes das partes do tempo, as re lações temporais tornam possível os acontecimentos no tempo. É preciso, pois, correlativamente, que o próprio sujeito não esteja situado no tempo para que possa estar presente cm intenção no passado e  no futuro. Não digamos mais que o tempo é um “dado da consciência”, digamos, mais precisamente, que a consciência desdobra ou constitui o tempo”. ld.y p. 474.

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história remete ao homem55. Pela palavra história, devemos, com efeito, entender o local dramático em que uma ação ligada ao próprio passado retoma esse passado em função do futuro que projeta. As diversas posições da bola no plano inclinado não são acontecimentos., mas simples fatos justapostos: o que constitui um acon

tecimento, é o fato de que um cientista diante desse fenômeno, à luz do que sabe, invente um novo conceito  que, conforme sua justeza, determinará de certo modo o futuro. Em outros termos, para que haja história, é preciso que haja um desejo ou uma vontade, um homem que realize um ato, em certa situação e tendo em vista certo fim (que não é necessariamente refletido como histórico). A erosão alpina nada desejou e nada quis: 

só é histórica por metáfora. Isso é evidente para quem quer que tenha elucidado a ligação entre historicidade e temporalidade. Só pode ser qualificada, a rigor, de histórica, a ação humana, e, em conseqüência, o mé- dium em que ela se desenrola; a humanidade, enquanto sofre, deseja e quer, secreta a temporalidade; fora dela, há apenas um dado bruto que exige a temporaliza- ção na medida em que se apresenta como horizonte do 

conhecimento e da ação do homem. Não podemos deixar de observar, desde logo, a ressonância kantiana desta demonstração; ao sujeito transcendental, substituiu- se o sujeito existencial; o homem, pelo fato que percebe, não impõe apenas ao fenômeno o ser no tempo; porque existe, impõe também à situação a ser vivida como tempo, ou, mais precisamente, como história.

Encontramos aqui um tema constante do pensamento não-materialista contemporâneo e do nominalismo latente que o anima. As propriedades atribuídas aos objetos pelas ciências não são consideradas proprieda-

55 “ . . . é claro que a noção de história natural é absurda: a história não se caracteriza nem pela mudança, nem pela ação pura e simples do passado; define-se pela retomada intencional do passado pelo presente: só pode haver história humana”. J.P. Sartre, Materialismo e revolução, Situações III, p. 148

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des reais (ou de importância real); são antes consideradas significações de certo tipo, significações intersubje- tivas cuja raiz se encontra no ser humano considerado seja como consciência, seja propriamente como existência™. E esse existente é considerado irredutível: descreve-se, mas não se deduz. Em semelhante perspectiva, a 

dialética, tal qual o materialismo a define, torna-se inteiramente incompreensível: não poderia ser concebida como estrutura do movimento da natureza e da sociedade. Que significa, por exemplo, a luta dos contrários? Pode ser que se trate de uma noção lógica: um conceito só se põe opondo-se; ou mais precisamente, de acordo com a sugestão de Spinoza, toda definição é uma negação e, como tal, implica em sua compreensão o termo 

negado. É a razão pela qual as diversas disciplinas científicas — pelo fato de se exprimirem num contexto —  apelam para relações de contrariedade que são, aliás, de tipos extremamente diferentes: o positivo e o negativo não se opõem do mesmo modo no domínio da eletricidade e no domínio matemático. Mas, seja o que for dessa diversidade, a contradição (ou a contrariedade) é da ordem da linguagem científica; remete a uma consciên

cia que a estabelece, a põe em forma. Dir-se-á que, nesse contexto científico, a oposição dos termos reflete contradições reais e que há luta efetiva, ruptura geradora de movimento e de progresso entre o + e o — do matemático, o pólo positivo e o pólo negativo do eletricista, as forças de atração e de repulsão do físico, o ciclone e o anticiclone do geógrafo? Seria falar, segundo a crítica do materialismo, com a maior leviandade: para que ha ja luta real, é preciso que um dos termos seja efetiva- mente positivo em relação a outro efetivamente negativo. Ora, na natureza, só poderia haver plena positivida- de: o sinal — é tão positivo quanto o sinal +, o cátodo

56 M . Merleau-Ponty, /V/., p. 151: “ . . . c a da uma das equações da física pressupõe

nossa experiência pré-científica do mundo e essa re

ferência ao mundo vivido contribui para constituir sua significação  válida”.

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tão positivo quanto o ânodo e a alta pressão quanto a baixa pressão. Se falamos de luta, é unicamente por metáfora ou, mais precisamente, por antropomorfismo. Se existe dialética nas noções científicas, é apenas em virtude de certas exigências da linguagem e da consciência57.

Assim também, prossegue o antimaterialismo, há lirismo em pretender que a flor refute ou negue o botão e que seja, por sua vez, refutada pelo fruto. A planta amadurece, dá nascimento a um botão que desabrocha e em seguida engendra a fruta: trata-se apenas de sucessão de estados, todos positivos e diferentes uns dos outros. A consciência tomará a akmé de cada um desses estados e interpretará a seqüência dos fatos como com

bate dramático do seguinte contra o antecedente; assim fazendo, romantiza. “A seriedade, a dor e a paciência” do negativo só aparecem no nível do homem e da história humana. Na idéia de uma dialética da natureza, há uma transferência ilegítima de uma realidade revelada ao nível da ação do homem, entregue ao trabalho e à história, para a realidade natural. O ser humano é efetivamente agente dialético, reconhecem certos antima- terialistas; transforma o dado por uma ação negadora e o objeto original ou a situação nova que faz surgir constituem, sem dúvida, uma superação; o devenir que constrói e ao qual, ao mesmo tempo, se acha entregue, é certamente dialético: a burguesia industrial engendra, em função de uma necessidade própria, sua contradição, o proletariado, que não pode deixar de trabalhar pela 

supressão das classes. Essa lei histórica tem um senti

57 Cf. também J . P . Sartre, Id.,  p. 151, esta refutação da passagem da quantidade à qualidade: “Para o cientista, a quantidade engendra a quantidade: a lei é uma fórmula quantitativa e a ciência não dispõe de símbolo algum para exprimir a qualidade enquanto tal. O que F.ngels pretende apresentar-nos como um passo da ciência, é o puro 

e simples de seu espírito que vai do universo científico ao do realismo ingênuo e retorna em seguida ao mundo científico para recuperar  o da sensação pura” .

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do, pois corresponde à prática econômico-social do homem. O dado natural, ao contrário, nada manifesta de semelhante: o terciário é diferente do secundário, a flor diferente do fruto e a ciência tem por fim elaborar conceitos que expliquem a passagem de um estado ao estado diferente, e nada mais58.

Assim, mesmo quando reconhecem a existência do devenir real da natureza, independente da consciência, os adversários do materialismo surpreendem-se com que se possa considerá-la submetida às leis da dialética. Ora negam que se tenha o direito de falar de uma história  da natureza, a não ser no seio dessas “ontologias regionais” que são a cosmologia e a geologia; ora admitem essa possibilidade, mas recusam a essas disciplinas qual

quer importância filosófica; em todo caso, declaram vazia de significação real a idéia de um movimento dialético da matéria que explicaria o devenir natural e o aparecimento do homem e da história humana. O essencial da argumentação consiste, devemos insistir nesse ponto, na concepção desses pensadores a respeito da luta dos contrários e da negatividade. Ambas as noções são consideradas por eles em termos de consciência:

58 C f. esta observação de J. P. Sartre, Id. pp. 148-149, sobre a idéia de Engels de que Darwin teria verificado em sua doutrina da evolução o princípio da dialética materialista: “...se Darwin mostrou que as espécies derivavam umas das outras,, sua tentativa de explicação é de ordem mecânica e não dial ét i ca. . . Quanto à luta pela vida, não poderia produzir uma síntese nova pela fusão dos contrários: tem efeitos estritamente negativos uma vez que elimina definitivamente os 

mais fracos. Basta, para compreendê-lo, comparar seus resultados com o ideal verdadeiramente dialético da luta de classes: neste último caso, com efeito, o proletariado fundirá em si a classe burguesa na unidade de uma sociedade sem classes. Na luta pela vida, •js   fortes fazem pura e simplesmente desaparecer os fracos”. Cf., ibid., p. 217: “Não há “luta de contrários’* no seio da unidade material. Para dizer a verdade, não há nem mesmo contrários: o quente e o frio são simplesmente graus diversos na escala termométrica, passa-se progressivamente da luz à obscuridade: forças iguais e de sentidos opostos  

se anulam e produzem simplesmente um estado de equilíbrio. A idéia de uma luta de contrários é a projeção das relações humanas nas relações materiais”.

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contradição e negatividade alimentam-se, em última análise, desse poder reservado ao espírito humano de não ser mais ele próprio. Para esses pensadores, se o movimento dialético e não: aZloíosis (mudança) ou kínesis (movimento) vem ao mundo, é sempre pela mediação do existente humano que, no seu ato ou sua presença, 

tem por propriedade ser “distância de si mesmo em relação ao objeto, e mesmo distância de si mesmo em relação a si mesmo”59. Sem o existente humano, haveria apenas a positividade compacta do dado.

Percebe-se o sentido dessa crítica: consiste em opor a uma visão pretensamente científica e objetiva uma perspectiva mais humana e mais real que não pode deixar de recorrer ao papel determinante da subjetividade 

como tal. O que se põe em questão, em suma, é a possibilidade, para a filosofia geral materialista, de construir um humanismo que atribua à humanidade o lugar que lhe compete e, em particular, reconheça seu papel na construção de seu próprio destino. O erro do materialismo, comprometido com uma posição cada vez mais científica, está em considerar o indivíduo humano como 

coisa™,que recebe do exterior as determinações que o 

levam a ser o que é, a fazer o que faz, está em desprezar — malgrado suas afirmações em contrário — o caráter decisivo da tomada de consciência e silenciar sobre a dimensão que confere ao existente humano sua originalidade de ser: a liberdade01.

Esse preconceito de objetividade da filosofia mate-

59 J. Wahl, op. cit.60 Cf. por exemplo, esta observação de J. P. Sartre: “Quando Marx escreve: “A concepção materialista do mundo significa simplesmente a concepção da natureza tal qual é, sem nenhum acréscimo externo’*, ele se faz olhar objetivo e pretende contemplar a natureza tal qual é absolutamente. Tendo eliminado toda subjetividade e assimilando-se à pura verdade objetiva, deambula em um mundo de objetos habitado  por homens objetos”. “Questões de Método I,”, Les Temps modernes, n<? 139.61 “O idealismo do homem revolucionário o mistifica na medida emque o amarra a direitos e valores antecipadamente dados; mascara-lhe

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rialista, prossegue a crítica, é encontrado em todos osníveis: o devenir histórico é considerado como uma sé-rie de acontecimentos determinados pela infraestruturae a categoria utilizada pelo historiador marxista é a decausa6-', no domínio da crítica e da história do pensa-mento, tal poeta ou tal pintor é vinculado imediatamen-

te ao meio social, econômico, que o leva a exaltar a tris-teza do destino individual, se pertence à burguesia deca-dente, ou a pintar reuniões de mercadores satisfeitos,se participa de um mundo no qual triunfa a economiamercantil; de modo mais geral, a situação, consideradano sentido mais objetivo do termo, é considerada o fatoressencialmente determinante. Sem dúvida, o marxismofala de uma reação da superestrutura sobre a infraes-

trutura e admite que um escritor tenha “manias” . Mas,se o faz, é sempre em termos de causalidade; e, em úl-tima análise, a escolha do indivíduo é limitada ao aci-dental, permanecendo o essencial, produto da infraes-trutura63.

Depois do materialismo e depois da dialética, é a ex-plicação materialista em história que, por sua vez, secontesta. Ao longo desta pesquisa tentaremos mostrar

que tal refutação interpreta o materialismo histórico talcomo é apresentado por Marx com uma curiosa ampli-tude e só é válida contra as “ revisões” atuais04. Impor-ta, no momento, mencionar seus principais argumentos.

o poder de inventar seus próprios caminhos. Mas o materialismo tam- bém o mistifica, roubandolhe a liberdade1*. J.P. Sartre Materialismo  

e Revolução II, Situações III,  p. 196.62 Ou da condição necessária. Cf. a esse respeito a análise de J.P .Sartre, “ Questões de Método” , Les Temps Modernes, n? 139, e, emparticular, as pp. 396397.

63 Cf. também J.P . Sartre ld., pp. 375 ss., a propósito de Valérye de Flaubert e Materialismo e revolução II, Situações III, pp. 192 ss.64 A esse respeito, verificase que os autores que levaram mais longe

a crítica do “marxismo oficial” — J.P . Sartre e M . MerleauPonty

 — têm por objetivo salientar o pensamento vivo de Marx, seja distin-guindo entre o que, em Marx, participa de uma concepção realmentedialética e o que tende para um naturalismo cientista próprio do século

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É evidente, antes de mais nada, que, ainda nesse nível,o antimaterialismo contemporâneo não retoma as po-sições tradicionais do espiritualismo e do idealismo: nãointerpreta o devenir humano como límpida manifesta-ção de uma vontade providencial, nem mesmo como re-sultado do desejo ou da vontade de alguns personagens

que as circunstâncias ou sua “ forte personalidade” pu-seram em condições de efetuar a contingência. Ao con-trário, as críticas do materialismo histórico parecemconcederlhe, de início, alguns de seus temas fundamen-tais03. O indivíduo é considerado “ jogado” em um mun-do que não desejou, com uma estrutura existencial dada,a braços com uma situação histórica que lhe é imposta.Sua “ facticidade” é dupla: de um lado, ele é, faça o que

fizer, e, de outro, é isto e não aquilo: francês, burguêse gago e não italiano, bem falante e proletário. Seu tra-balho, seus desejos, suas relações humanas, sua manei-ra de viver e de sentir não são nem o resultado de umagraça (ou de uma desgraça), nem o fruto de seu capri-cho, mas f a t o s . E os fatos se compreendem à luz do pas-sado e do meio econômico e social: o proletário na Fran-ça, no meio do século XX, vive no seio de uma classe

que quer a paz e isso faz parte da história06. Todavia, acrescenta o antimaterialismo, nada se dis

XIX, seja pondo em evidência as contribuições freqüentemente sumáriasde Engels (J.P. Sartre fala do “nefasto encontro com Engels”, Mate- rialismo e revolução, p. 213, n° 1) e as contestáveis interpretações deLênin (M . MerleauPonty, “As aventuras da dialética” , cap. II I,

Pravda), seja, finalmente, opondo o marxismo como “materialismoprático” aos dogmáticos atuais.

65 Cf., por exemplo J .P . Sartre que declara ( Questões de método, p. 351 e p. 358): “ Estávamos convencidos... de que o materialismooferecia a única interpretação válida da história” e “quando Garaudy escreve (Humanité  de 27 de maio de 1955) “O marxismo constituiatualmente, na realidade, o único sistema de coordenadas que permi-te situar e definir um pensamento seja em que domínio for, da eco-nomia política à física, da história à moral” , estamos de acordo com  ele  (é o autor que sublinha).

66  Cf. também as análises T  13 i ' P t m   „t  í*  n én n t a q  

parte, cap. 1, II, Liberdade 

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se a respeito do assunto quando se disse tudo isso. Maisexatamente, situaramno, mas não explicaram seu serna primeira pessoa. Não será, com efeito, senão um ele-mento passivo do devenir histórico? A experiência mos-tra que tal proletário vai constituirse em proletário quequer a supressão do regime que o explora, ao passo que

tal outro procurará salvarse individualmente, tentando“aproveitarse” do regime burguês. Essa escolha é irre-dutível, na medida em que é primeira em relação a qual-quer horizonte objetivamente dado. A crítica decisiva àexplicação materialista é de esquecer a con sc i ên c i a : ne-nhuma situação é determinante, se não for assumidapelo indivíduo como situação que .0 determina07. O queesta demonstração volta a por em questão, é a noção

mesma de situação. Para esse antimaterialismo, uma si-tuação objetiva é apenas um limite: toda situação ép a r a  um sujeito que a constitui desta ou daquela manei-ra de acordo com o que alguns pensadores nãomaterialistas chamam o irrefletido. Desse irrefletido, aliás, nadahá a dizer. Mais precisamente, devese manifestálo comoirrefletido inexplicável, no sentido estrito, e dado emprimeira pessoa, e tornar claras suas estruturas gerais

(é sexual, espacial, temporal... etc.) e, quando se tra-ta de Pedro ou de Paulo, resta apenas descrevêlo. Umacontingência se reintroduz, que não é a contingênciatotal da indiferença, nem tampouco a contingência li-mitada daqueles que, absurdamente, “levam em contaa liberdade” : é a contingência mesma do existente hu-mano integral e inteiramente livre03.

67 Cf., entre múltiplos textos, a notável análise consagrada por Sar-tre, ob. cit., 4^ parte, cap. I, à fundação de Bizâncio por Constan-tino.

68 Cf., o último capítulo da Fenomenologia da percepção  e tambémesta frase de Sartre, Materialismo e revolução II, pp. 205206: “As-sim, a liberdade só se descobre no ato, constitui uma unidade com oato ;... não frui jamais dela mesma mas se descobre em e pelos seusprodutos... E . .. o poder de engajarse na ação presente e de cons-truir um futuro; engendra um futuro que permite compreender e mu

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Esse modo de conceber a ação e o papel do sujeitoleva a adotar, em relação ao problema da explicação nahistória, uma atitude que contradiz a posição de rigor ede objetividade definida pelo materialismo histórico. Aolongo deste trabalho, repetimos, deveremos mostrar seefetivamente o fato de considerar a história uma ciên-

cia, aproximativa, sem dúvida, mas rigorosa, implicaque se renuncie a atribuir à primeira pessoa o lugar quelhe compete. Os críticos do marxismo estão convencidosdisso e se comprazem, a esse respeito, em retomar, commaior ou menor clareza, os argumentos expostos porDilthev e reformulados em óticas diversas, pela “filoso-fia crítica da história”09. A partir do momento, dizemeles, em que o sujeito é interpretado — por motivos fi-

losóficos — como irredutível poder de escolha, como lu-gar em que a significação se atualiza, tornase absurdofalar de d e t e r m i n i s m o  histórico. O devenir faz aparece-rem situações que definem, quer dizer, limitam, e mar-cam o horizonte dos indivíduos; mas, o próprio de umasituação é ser ambígua: este a considerará derrota, fu-turo bloqueado e ameaça de morte, aquele a apreende-rá como luta a encetar, futuro difícil e m éd i u m  do he-

roísmo70. É, portanto, debalde reduzir o sujeito histó-rico a uma causalidade qualquer, seja econômica, psí-quica ou ideal. Os pensadores subjetivistas consideram,aliás, que, freqüentemente, o materialismo substitui adeterminação que era habitualmente considerada pelos

dar o presente. Assim o trabalhador aprende, com efeito, a liberdadepelas coisas: mas, precisamente porque as coisas lhe ensinam, é eletudo no mundo, exceto uma coisa” .

69 Devemos salientar, a esse respeito, a importância das obras deR. Aron, Introdução à filosofia da História  e a Filosofia crítica da  História; cf. também H .I . Marrou, Do conhecimento histórico  e P.Ricoeur, História e verdade  (Introd. e 1* parte).

70 J.P . Sartre, L ’Etre et le néant, pp. 510 ss. a análise das atitudes

revolucionárias dos operários das fábricas de seda de Lião, em 1831,e do povo parisiense em 1848 e o problema posto pela ação dos Girondinos, Questões de método, pp. 364 ss.

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historiadores clássicos, a do caráter ou da vontade, umacausalidade na aparência mais científica, mas igual-mente “dogmática” e, finalmente, naturalista. Pois, emsuas perspectivas, o sujeito é liberdade: nada determinaConstantino a fundar Bizâncio; dirá o especialista queos acontecimentos o solicitaram a edificar um centro

romano que estivesse ao abrigo das ambições bárbaras;mas, essa não passa de uma interpretação, a que se po-de dar atualmente, agora que se pôde comparar o des-tino diverso do Império do Oriente e o do Ocidente. Cons-tantino nada sabia de tudo isso e seu ato fundador foiuma aposta, triunfante, assim como a dos revolucioná-rios franceses da Comuna foi uma aposta perdida. As-sim sendo, se quisermos sistematizar uma visão “con-

creta” da história, deveremos evitar o excesso de objetivismo que consiste em privilegiar o aspecto econômicoda evolução humana71. É evidente que a dimensão eco-nômica e social não deve ser desconhecida e que o “idea-lismo” clássico que reduz os atores do devenir a p s y k a i , mais ou menos bem dotadas ou mais ou menos bem in-tencionadas é insuficiente; mas, igualmente insuficien-te é o método que pretende limitálos ao papel de “pro-

dutores” ; é preciso “ inflar” a noção de situação a fimde nela integrar todas as determinações próprias da exis-tência humana72. O econômico não deve ser concebidocomo fato decisivo, mas com essa mansira de existir

71 Cf., por exemplo, a oposição muito sugestiva estabelecida porI .P . Sartre, ibid., pp. 353 ss. entre a ótica de Marx, explicando a

Revolução de 1848, e a perspectiva adotada pelo que ele chama de“ idealismo marxista” : “Jamais, em Marx, encontramse entidades; astotalidades (por exemplo, a “ pequena burguesia” no 18 Brumário )são vivas” ; em compensação o “ idealismo marxista” procede a duasoperações simultâneas: a conceitualização e a ultrapassagem do limi-te"; e o elemento que permite ambas as operações de empobrecimento,é o “economismo” .

72 Cf. a nota muito importante acrescentada por M . MerleauPonty ao 59 capítulo da 1* parte da Fenomenologia da percepção, pp.

199202, em que o autor desenvolve a tese segundo a qual a noçãode existência “quando bem compreendida” permite superar a alternativaeconomismoespiritualismo.

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muito importante que é vivida desta ou daquela manei-ra — e, em particular, como importante ou não — deacordo com a própria existência do sujeito. Tratase, emsuma, de um esforço de síntese que não recusa o cará-ter material do dado, que pode ser estudado objetiva-mente, mas que o recobre com alguma outra coisa que é

o sujeito, a inexplicável escolha cujo caráter contingen-te se impõe a quem quer que reflita sobre a noção deato humano. Sem dúvida dificilmente se verá em seme-lhante ótica, que uma história científica possa vir a lu-me. A essa última idéia, julgada ingenuamente positi-vista, o antimaterialismo histórico contemporâneo subs-titui ou o que chama de “a colocação em perspectiva” ,a partir da situação atual do historiador, ou uma espé-

cie de crítica que visa esclarecer o dinamismo profundo,oriundo do próprio indivíduo histórico, e, no entanto,dele ignorado, graças ao qual os atos desse indivíduoassumem sentido de conjunto. Seja o que for desse pro-blema epistemológico, a h i s t ó r i a r e r um g e s t a r um   nãotem mais o caráter de disciplina objetiva, mas como umdado de importância capital (porque, no plano ontoló-gico, o sujeito é considerado como ser temporalizante

que secreta a história = r e s ges t as ) , e, por natureza;ambígua, que uma primeira pessoa, igualmente ambí-gua, decifra e exalta em função de sua situação, de seuprojeto73.

De sorte que o devenir não tem u m  sentido, mas, deacordo com uma fórmula célebre, sen t i d o a p e n a s ;  e, arealização desse sentido, projetado existencialmente peloagente histórico (e pelo historiador) é, finalmente, pro-blema de vontade. Vêse claramente, nesse nível, o as-

73 Id., p. 201: “ Uma teoria existencial da história é ambígua, masessa ambigüidade não pode ser criticada, pois está nas co isas.. . Oato do artista ou do filósofo é livre, mas não ssm motivo. Sua li-berdade reside no poder de equívoco. . . ou ainda no processo dc fu-g a . . . ; consiste em assumir uma situação de fato dandolhe um sentido

figurado além de seu sentido próprio” . Cf., igualmente, o último ca-pítulo do livro e, em particular, as páginas 505517 de A ambigüi- dade da história segundo Boukharine  em Humanismo e Terror.

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pecto freqüentemente moral que assume a crítica con-temporânea do materialismo histórico. O que condenano marxismo é a ênfase dada às motivações objetivasque o leva a por entre parênteses o que permite um jul-gamento moral74: para poder condenar a ação de um in-divíduo, para poder apreciála, é necessário concebêla

como l i v r e ;   para todos esses pensadores, parece que aidéia kantiana: “ a l i b er da d e éa ‘ r a t i o essend i ’ d a l ei m o r a l ”  é considerada definitiva, embora permaneça tácita.Além disso, em sentido mais moderno, a filosofia pareceser concebida, para eles, menos como saber daquilo queé do que como reflexão arriscada sobre a vida, reflexãograças à qual um sujeito, atualmente, pode reconhecersua situação e agir com lucidez. Compreendese melhor,

nessa ótica, porque certos adversários do materialismoestão prestes a reconhecer a precedência histórica damatéria em relação ao espírito — como afirmações cien-tíficas — , sem que isso os leve a concordar com as ou-tras teses do marxismo. Admitem que o terciário prece-deu o quaternário; que o homem primitivo é o resulta-do de uma complicação orgânica; pensam, no entanto,ao mesmo tempo, que isso não é i n t e r e s s a n t e  75. Pois a

vontade humanista, moralista, os obriga a situarse no

74 Salienta, também, a incoerência do pensamento marxista que se-para teoria e prática, que trata teoricamente o homem como umacoisa  determinada por sua situação econômica e, praticamente, aonível da ação política, não pode deixar de emitir julgamentos morais.Cf. J.P. Sartre Materialismo e revolução II, p. 193: “O simples fatode que o revolucionário consinta em sacrificar sua vida por uma or-dem a cujo advento jamais imagina assistir, implica que essa ordemfutura, que justifica todos seus atos e da qual no entanto ele não frui-rá, funciona para ele como um valor. Que é, com efeito, um valorsenão o apelo do que ainda não é?M

75 É notável, a esse respeito, que o O Ser e o nada  e a Fenomenolo  gia da percepção  comportem muitas análises propriamente históricasnas quais o filósofo se esforça por apreender a atitude e a consciên-cia do indivíduo, ou de determinada classe social, em face do drama

do devenir humano, ao passo que uma obra como Teoria materialista  do. conhecimento  os ignora quase totalmente ou se contenta com osesquemas explicativos habituais.

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âmago do drama do indivíduo, sofrendo e combatendo,a braços com a adversidade da situação. Que importa apedra polida e a lenta progressão da humanidade, se averdadeira questão não é a do começo, mas a do destino!O essencial é esse ser singular que está diante dos meusolhos, que carrega com ele sua salvação ou sua decadên-

cia, que arrisca sua vida ou sua dignidade em uma deci-são quotidiana. Se quero compreendêlo, e compreendêlo para ajudálo, é menos à sua gênese do que à sua vi-são do mundo que me devo dirigir, à sua maneira deexistir. É de pouca importância que, antes do homem,tenha havido pedras e amebas: atualmente um c o g i t o   se interroga e se acha interrogado; a existência de umser vivo tem mais sentido do que a vida suposta e re-

construída do Australopiteco. Ciência e saber filosóficoobjetivo estão englobados na mesma recusa, a recusade uma especulação inoperante que repele para a regiãoremota das idéias ou de um passado morto a solução deum problema que o menor olhar que encontra o meususcita com urgência e necessidade. Eis por que os ensi-namentos da ciência — nessa perspectiva que é muitopróxima da de Kant — são considerados, ao menos, co-

mo insuficientes: o que importa, é ajudar o homem aforjar para si um destino; a pretensão à objetividade éconsiderada ingênua e logo, aos olhos desse humanismo,a h i s t ó r i a , n a t u r a l i s  encontra a h i s t ór i a s a cr a   entre asocupações inventadas pela cultura para tentar escondera inquietação do homem em face do sentido de sua exis-tência.

Assim, o marxismo trataria com leviandade os pro-

blemas da subjetividade; e, desse modo, se exporia auma grave contradição: defendendo uma explicação ob- jetiva da história, é levado a considerar o indivíduo co-mo determinado; mas, propondo uma prática política,deve apelar para a responsabilidade das pessoas. Quan-do condena a covardia, a crueldade ou a hipocrisia des-te ou daquele, põese em contradição com sua teoria fi-losófica que define a consciência como reflexo e efeitode um devenir e que apresenta a ideologia como produ-to do viraser. Como conciliar esse apelo feito à liber

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dade e ao julgamento com aquilo que o antimaterialismo considera negação da liberdade?70 Essa dificuldadeé sintomática, segundo a crítica, da ruptura existenteentre a prática marxista, enxertada na vida, e sua teo-ria filosófica que, cega pelo preconceito objetivista, su-bestima o papel do sujeito, diminui a importância da

“ tomada de consciência” individual e se priva de todavisão realmente humanista. Assim como a crítica do ma-terialismo apoiavase na irredutibilidade do eu , assimcomo as críticas à concepção dialética do ser materialfundavamse na idéia da onipresença necessária de umaconsciência (ou de uma existência humana) negadorae unificante, assim também a crítica feita ao materia-lismo histórico põe em evidência a obrigação em que se

encontra para explicar o ato do homem em manter adimensão que lhe é tradicionalmente concedida: a li-berdade.

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A crítica de conjunto dirigida pelo pensamento antimaterialista contemporâneo à filosofia geral marxis-ta aparece agora claramente: admitindo, na base desua concepção de conjunto, enunciados não legitimados,assumindo a atitude nãoreflexiva do cientista realista,escolhendo arbitrariamente entre os resultados aquelesque convém ao seu objetivo, desconhecendo o papel da

subjetividade, o marxismo, por seu estilo e seu conteú-do, situase fora do domínio atribuído à filosofia; pre-tende definir uma filosofia nova, enquanto apresenta

76 Cf. a observação de J .P . Sartre, Materialismo e revolução, id., n°  1.: “ Essa ambigüidade encontrase nos julgamentos que o comu-nista enuncia sobre seus adversários. Pois, afinal de contas, o mate-

rialismo deveria impedilo de julgar: um burguês não passa do pro-duto de uma rigorosa necessidade. Ora, o clima de VHumanité, c o  da indignação moral”.

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apenas uma teoria vaga e não justificada, tomando aoséculo X IX positivista seus preconceitos e seus mitos:acredita ter ultrapassado, pela introdução de considera-ções dialéticas muito confusas, as insuficiências do ma-terialismo mecanicista: nem por isso deixa de permane-cer em ótica prékantiana; declara desenhar os contor-

nos de um novo humanismo; suprime de fato o que háde mais precioso no homem, a personalidade irredutí-vel. E essa carência geral, essa i n c u l t u r a  de conjunto,manifestase de modo especial, devemos repetir, no cons-tante menosprezo por toda pesquisa de uma p r o v a  uni-versalmente válida, de um saber apodítico que encontreem si mesmo seu próprio fundamento. O marxismo co-locarseia assim, na cr en ça e na p a i xão sem fazer o me-

nor esforço para delas libertarse77: sua adesão às ciên-cias, sua fé na realidade das coisas, sua decisão de su-por uma lógica da história — posições que qualifica to-das de racionais — tornam patente seu engajamentona atitude natural ou naturalista, engajamento jamaiscriticado, jamais posto em questão. Talvez haja uma jus-tificação filosófica da sociologia, da economia política,da política marxista. Em todo caso, não é a filosofia ge-

ral materialista atual que pode proporcionála78.Essa filosofia responderá a tais argumentos com ex-

trema vivacidade; diante de tamanha incompreensão,

77 “ Essa confusão refletese na atitude subjetiva do materialismo emrelação à sua própria doutrina: pretende estar certo  de seus princí-pios. Afirma, porém, mais do que pode provar. “O mateialismo ad- mite. . . diz Stalin. Mas por que o admite? Por que, pois, admitirque Deus não existe, que o espírito é um reflexo da matéria, que odesenvolvimento do mundo se faz pelo conflito de forças contrárias,que há uma verdade objetiva, que não há no mundo coisas incognoscíveis mas apenas coisas desconhecidas? Não nos dizem porque” .

 J.P. Sartre, Materialismo e revolução, /, p. 167.

78 Ao que parece, o propósito tanto de Sartre quanto de MerleauPonty, é o de elaborar uma filosofia capaz de explicar, na direção

indicada por certos textos de Marx e contra o dogmatismo simplificador do materialismo dialético atual, o movimento da sociedade mo-derna e do homem revolucionário.

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abandonará sua bonomia e sua tranqüilidade: adotaráclaramente, o tom polêmico. Perguntará — e para elaé uma questão decisiva — em que ponto de vista se co-loca a crítica para arbitrar esse pseudoconflito entre aexigência filosófica e a concepção materialista. Devol-verá, assim, a objeção que lhe era dirigida: condenavam

na por despreocuparse em legitimar seus enunciados;em nome de que pretende o pensamento nãomaterialista chegar a princípios plenamente legitimados? A quecritério se refere? Afirma situarse no ponto de vistafundamental, no “pensamento”, na “razão”, na “presen-ça” , no “sentido” ; atribuise, assim, arbitrariamente, apossibilidade de julgar a partir de uma zona neutra,

prévia a qualquer opção entre o materialismo e o idea-lismo; não tem, no entanto, d i r e i t o   algum de fazêlo,concedendose uma prerrogativa em si ilegítima79. En-quanto afirma recusar qualquer pressuposto, pressu-põe que há um além ou um aquém, à luz do qual é per-mitido invalidar ou validar a atitude do cientista idea-lista, julgar a objetividade e optar, com toda lucidez,pelo primado da matéria ou pelo do espírito.

Essa “zona neutra” prévia, esse lugar universal sóexiste para aqueles que nele pretendem encontrarse. Oque de fato existe — e, ao ver da filosofia geral mate

79 “Toda filosofia e, com efeito, um elemento da superestrutura

ideológica da sociedade. No seio da ideologia, desempenha um papef em função da base econômica dessa sociedade, seja servindo de jus-tificação dessa base, seja, ao contrário, combatendoa e preparando oadvento de novas relações de produção. Isso se explica porque o co-nhecimento não flutua indiferente, acima da sociedade e da práticasocial, mas, muito ao contrário, reflete em seu conteúdo o movimentodessa prática e adquire sua significação exprimindo as exigências quese desenvolvem no seio dessa prática. . . O homem não pode, pois,

tomar das coisas uma consciência que seja absolutamente neutra, ab-

solutamente indiferente às relações de produção características do graude desenvolvimento da sociedade na qual vive” . J .T . Desanti, In - trodução à História da Filosofia, I, II. 3, p. 60.

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rialista que se funda em enunciados de Engels80, esseé um dado histórico sobre o qual não cabe mais discus-são — , é uma oposição que domina todo o viraser dopensamento: a do materialismo e do idealismo. E essaoposição, a propósito da qual é inútil tergiversar, apa-rece na escolha que se faz n o com eço >81. Se escolhermos

como ponto de partida a consciência, e a interrogaçãoque dirige a si mesma, tenderemos imediatamente parauma “gnosiologia” idealista que, negando, no ponto departida, a existência do objeto e privilegiando a do sujeito,correrá logo o risco de resvalar para o solipsismo ou ateologia82. Se preferirmos considerar inicialmente o ob-

 jeto, a fim de determinar em que condições objetivas seacha refletido na consciência, seremos levados a atribuir

toda a importância às ciências positivas e todo seu po-der à razão humana; estabeleceremos, então, as basesde uma teoria do conhecimento materialista. Do mesmomodo, se considerarmos o problema ontológico em sua

80 Ludwing Feuerbacli ..., III e, em particular: “Conforme respondiam desta ou daquela maneira a esta questão (a grande questão fun-

damental de toda filosofia e especialmente da filosofia moderna, a darelação do pensamento e do ser), os filósofos se dividiam em doiscampos. Os que afirmavam o caráter primordial do espírito em rela-ção à natureza. . ., formavam o campo do idealismo. Os outros, queconsideravam a natureza como o elemento primordial, pertenciam àsdiferentes escolas do materialismo” , p. 22.

81 “O problema fundamental de toda filosofia é o de seu come-ço. Estamos engajados em uma realidade de múltiplos aspectos; há anatureza, seus fenômenos, seu devenir, e, em seguida, há nossos pen-

samentos, nossas relações sociais, nossa história. E nós temos a am-bição da unidade. A última palavra da nossa filosofia dependerá daprimeira. Por onde começar? Pelas coisas ou pela consciência quedelas temos? O espírito é primeiro em relação à natureza? Ou bema natureza é o elemento primordial do qual o pensamento será a flo-ração suprema ao termo de um longo desenvolvimento?” R. Garaudy, Teoria materialista . . . , Introd., p. l .

82 “Solipsismo ou teologia. O idealismo está condenado a esse di-

lema desde que rompeu com o “ realismo ingênuo” que está implícitoem toda prática quotidiana do homem e em toda experiência cientí-f ica” . Ibid., p. 6.

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generalidade, é evidente que se abrem apenas dois ca-minhos: o do idealismo, que começa por colocar a rea-lidade do espírito, esforçandose em seguida em dele de-duzir a essência e a existência da matéria, da natureza;a do materialismo que, ao contrário, afirma a prece-dência da matéria e, em seguida, graças às informações

proporcionadas pelas disciplinas positivas83, mostra co-mo, dialeticamente, a natureza engendra a consciênciae a espiritualidade. A história do pensamento filosófico,nessa perspectiva, perde qualquer obscuridade: fundan-dose em um texto de Engels, considerado decisivo, asexposições atuais do marxismo assim a simplificam: deum lado, há os pensadores que sustentam o caráter pri-mordial do espírito em relação à natureza — “ esses cons-

tituem o campo do idealismo” — ; de outro, há os queconsideram a natureza como o elemento primordial:constituem “as diferentes escolas do materialismo”84. Oúnico problema, então, é o de saber que caminho é con-veniente trilhar: os fundadores do marxismo o indica-ram claramente, e é justo seguilos.

Assim como não há zona neutra, prévia, também

não existe terceiro caminho que permita conciliar ostermos dessa oposição irredutível. Pretender definir

83 “Há a questão: que é a matéria?  à qual o materialismo respon-de: é a realidade. objetiva, independente do espírito e que não ne-cessita do espírito para existir. Há a questão: como é a matéria?  àqual o materialismo responde: é tarefa da ciência dar da matéria umarepresentação aproximativa cada vez mais perfeita” . Id. p. 16.

84 “O pensamento, tomado em sua atividade ou em seu produto (oconceito) preexiste às coisas? Ao contrário, as coisas tomadas em seuconteúdo imediato (o fato de que sejam exteriores à consciência esejam dadas por meio dos sentidos) preexistem a todo pensamento, atodo conceito? Materialismo ou idealismo? Tais são os termos nosquais Platão e Aristóteles formulam o problema do ser e do conheci-mento, através de todos os véus que deles mesmos os escondem. Essaalternativa, a reencontraríamos em filosofias essencialmente diferentes

do idealismo antigo... Nós a encontraríamos no centro das filosofiasambíguas, nas quais parece envolvida” . J .T . Desanti, op. cit., § 78,P . 53.

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esse terceiro caminho, tentar qualquer síntese, leva aestabelecer a pior confusão, que só poderá ser desfeitaretornandose à clara contradição inicial85. Entre osdois “campos”, nenhuma área de entendimento é pos-sível: é absurdo, nessa ótica, cuja nitidez não podemosdeixar de reconhecer, não só admitir a possibilidade

“gnosiológica” de uma dúvida de estilo cartesiano, mastambém de supor a existência de um elemento primeiroindeterminado — o complexo ou a dualidade sujeitoobjeto80, por exemplo. Lênin, aliás, expõe claramente,em Ma t er i a l i sm o e em p i r o cr i t i c i s m o  , as implicações últi-mas dessa concepção de conjunto quando define o ma-terialismo como p os t u l a ção  sustentada contra a postu-

lação adversa, a do idealismo87. Afastar a idéia da pos-tulação filosófica necessária e a da escolha obrigatória,é exporse a construir sistemas “acéfalos” cujo protó-tipo é o empirocriticismo.

Em outros termos, há uma tomada de partido, uma“posição” partidária em filosofia, como nos outros do

85 Os textos das filosofias gerais marxistas atuais, dirigidos contraa fenomenologia e contra o existencialismo, retomam, em geral, a ar-gumentação dirigida por Lênin contra Mach e seus adeptos e se fun-dam em numerosas passagens de Materialismo e empirocriticismo, nes-ta em particular: “Observamos. . . em todas as questões da gnosiolo g ia .. . a luta entre o materialismo e o idealismo. Sempre encontra-mos, atrás das contorções da nova terminologia, atrás da confusãoda escolástica erudita, duas correntes principais. . . a causa de milharese de milhares de erros e de confusões nesse domínio, é que, sob a

aparência dos termos, das definições, dos subterfúgios escolásticos, dosmalabarismos verbais, deixase passar sem ver , essas duas tendênciasfundamentais”, p. 309.

86 Cf. a refutação dada por R. Garaudy, Humanismo marxista, dialética da natureza e materialismo, I, pp. 128129, do “largumentode Kant: não há objeto sem sujeito” .

87 Cf. Lênin, ibid. p. 105: “A existência do que é refletido inde-

pendentemente do que reflete (a existência do mundo exterior inde-pendentemente da consciência) é o postulado fundamental do mate-rialismo” .

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mínios88. Nenhum juízo, nenhuma doutrina tem di-reito de pretender fazer abstração de semelhante toma-da de posição. Há, no entanto, ao que parece, umaobscuridade. Que significa essa postulação? O termo égeralmente empregado pela epistemologia, para desig-nar um enunciado admitido como verdadeiro, embora

não mantenha e nem prove sua verdade senão no inte-rior do sistema do qual é o fundamento; que, portanto,não é verdadeiro absolutamente, mas apenas relativa-mente a um dado sistema de referência e precisamenteao sistema de referência que adota. Isso equivale adizer que nenhum conjunto de postulados e que ne-nhuma axiomática podem imporse como verdadeiros anão ser por uma escolha arbitrária feita pelo indiví-

duo em função de alguma intuição prévia e de outraordem. Esse modo de considerar o problema não pode,de modo algum, ser o do materialismo: não se trata,absolutamente, de esco l he r arbitrariamente entre o idea-lismo e o materialismo, mas de optar por este último,que é v e r d a d e i r o , contra o primeiro, que é f a l s o  89. Assim,o problema que se pretendia afastar, apresentase nova-mente, embora um pouco menos complicado. Admitindo

essa visão maniqueísta da história da filosofia e a noção

88 “Marx e Engels foram, em filosofia, do começo ao fim, homensde partido...”, id ., p. 312. Essa idéia da posição de partido emfilosofia é retomada, em particular, por Stalin, Materialismo dialético  e materialismo histórico,  p. 3: “ O materialismo dialético é a teoriageral do Partido marxistaleninista” , Roger Garaudy, Teoria materia  

lista, pp. 316319 e Humanismo Marxista, pp. 265272; e A . Jdanov,Sobre a literatura, a filosofia e a música, pp. 4650.

89 “Sem dúvida, a partir do momento em que declaramos que omaterialismo não pode ser “deduzido” , afirmamos, por isso mesmo,que começa por um “ postulado” . Mas, desde quando a idéia de pos-tulado se identifica com a idéia de arbitrário? Quando aceitamos o“postulado” de Euclides, afirmamos simplesmente que só esse postu-lado nos permite construir uma geometria cujos diversos teoremascorrespondem à nossa experiência corrente, na escala dos atos hu-

manos quotidianos” . R. Garaudy, Humanismo marxista, p. 270. Cf.sobre essa idéia de postulado, a análise sutil de H. Lefebvre, Os proble- mas atuais do marxismo, pp. 97103.

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de escolha obrigatória, é preciso ainda saber que partidoconvém escolher: onde está o vício e onde está a vir-tude?

A essa interrogação, os teóricos atuais do marxismoprocuram responder. Percebem a importância do pro-blema: vêem que precisam, ao mesmo tempo, defender

a noção de postulação e mostrar porque convém adotaros principais enunciados do materialismo; encontramse, assim, compelidos a justificar a idéia — e, é precisodizêlo, à primeira vista aberrante — de 'p o st u l a d o v er  dade i r o ' , não têm a possibilidade nem de recorrer a p a r t e   a n t e  a um fundamento metafísico (análogo àquele aoqual se refere a epistemologia formalista dos matemá-ticos, a “ intuição metafísica” de Hilbert, por exemplo),

nem de apelar, a p a r t e p ost , como justificação, para oêxito ou a eficácia da hipótese de trabalho escolhida90(embora, na polêmica, entreguemse freqüentemente àsfacilidades de semelhante pragmatismo)91. De fato, sóresolvem a dificuldade transpondoa para outro plano;se, a seu ver, os princípios do materialismo dialético sãoverdadeiros é porque refletem adeqüadamente e no níveldo conceito uma opção real que é justificada — dada

como justa, nos dois sentidos do adjetivo — por seu con-teúdo histórico: o “ campo” materialista seria validadoporque exprime, em sua generalidade, o ponto de vistada classe operária; do mesmo modo, o “campo” idealistamergulharia necessariamente no erro e, hoje em dia, noirracionalismo, no obscurantismo, porque traduz os in-teresses das classes exploradoras que, na época do impe-rialismo, sentem seu fim próximo e se esforçam, falsifi

90 Desde 1908, Lênin ataca energicamente o pragmatismo (W., p.315, nota 1) Cf. crítica semelhante de G . Besse e M . Caveing, op. cit, 2? lição, pp. 207209, onde o praematismo é definido como “ umafalsificação da noção marxista de prática” .

91 Uma dessas facilidades consiste, por exemplo, em apresentar

como prova da validade filosófica do materialismo dialético os êxitospolíticos, econômicos, artísticos ou militares obtidos pelos Estados ouos partidos que declaram aplicar praticamente a teoria marxista.

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cando o conhecimento, em deter o movimento da his-tória.

Assim, a postulação filosófica que adota como prin-cípio fundamental o primado da materialidade e o ca-ráter dialético da realidade, implica e reflete uma esco-lha mais profunda, de ordem política. A posição de par-

tido, simplesmente": tratase, para o filósofo, de situarse nas perspectivas de conjunto do proletariado que lutacontra a exploração, de desentranhar as noções filosó-ficas imanentes que orientam essa luta e de ajudar,assim, o seu desenvolvimento, iluminandoo, e levando aluta também para o domínio ideológico. Essa transpo-sição do filosófico em político compreendese facilmentepela referência à teoria do reflexo, vigamestra das

gnosiologias marxistas atuais. Cada doutrina filosóficaexprime, com particularidades devidas, sem dúvida, àindividualidade dos autores, o ponto de vista de umaclasse ou de determinada camada social. Assim, Platãoé um “ filósofo idealista da Grécia antiga, inimigo domaterialismo e da ciência, adversário da democraciaateniense e defensor da aristocracia reacionária de Ate-nas” 93. Bergson, um “ filósofo idealista francês, místico,

inimigo do socialismo, da democracia e da concepçãomaterialista, científica do mundo94. Assim também, asdiversas escolas materialistas representam os diversosníveis da luta de classes ou das camada sociais explo-radas: luta dos democratas contra os aristocratas naAntigüidade, da burguesia contra as estruturas feudaisno século XVIII, por exemplo95. O materialismo dialé-

92 “A “ posição de partido” em filosofia e nas ciências implica pois,inicialmente, uma escolha  política; a de servir a classe operária emsua missão histórica, de destruir o capitalismo e construir o socia-lismo” . R . Garaudy, Humanismo marxista, p. 265.

93 M . Rosenthal e P. Ioudine, Pequeno dicionário filosófico, p. 481.

94 Ibid., p. 43.

95 Cf. entre outros, as análises de R . Garaudy sobre a evoluçãodo “ pensamento burguês”, Teoria materialista... lntrod., pp. 3738e 4? parte, III, pp. 327332.

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tico adota o ponto de vista do proletariado, da classeoprimida, na época do capitalismo industrial.

Mas, essa opção política, feita pelo filósofo ao esco-lher o postulado materialista, é, ao mesmo tempo, umaopção pe l a verdade, pela ciência, pela objetividade, pelaRazão e pelos valores humanos. O enigma contido naidéia dessa postulação verdadeira explicase pelo fato deque, adotando ao mesmo tempo o ponto de vista daclasse operária e o materialismo dialético que o refleteabstratamente, o filósofo escolhe, ao mesmo tempo, overdadeiro. E isso porque a classe operária como tal éportadora da verdade. Quando a burguesia, nos séculosXVII e XVIII, esforçavase em quebrar os quadros feu-

dais que não mais correspondiam ao estado das forçasprodutivas, produziu pensadores que defenderam os di-reitos da Razão e da ciência, como Descartes, ou parti-dários confessos do materialismo, como Helvetius oud’Holbach; Descartes, no entanto, permanecia sob o do-mínio da teologia90 e o materialismo francês permane-cia mecanicista. Esses filósofos só conseguiram alcan-çar uma parte da verdade: a burguesia, da qual refle-tiam os objetivos, era uma classe ascendente e inovado-ra, mas visava substituir a opressão feudal por outro tipode opressão; como classe ascendente, queria a objetivida-de; como classe interessada em manter a exploração dohomem pelo homem, não podia nem ver nem querert o d a  a objetividade. O mesmo não acontece com o pro-letariado: este, em razão das condições históricas de suaformação, de seu desenvolvimento, e de sua tomada deconsciência, engendra um partido revolucionário, che-

96 Cf. em particular a análise de V .V . Sokolov, criticando as te-ses por demais favoráveis a Descartes, de H. Mougin, de R. Garaudy e de Henri Lefebvre, que tende a provar que o “dualismo car-

tesiano” é “a expressão filosófica da fraqueza da burguesia francesano século X V II” , pp. 2930 do opúsculo A filosofia de Descartes e a luta ideológica na França na hora atual 

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fes políticos07 e teóricos98 que se acham, de certo modo,habilitados por sua situação de partido, de chefes e teó-ricos do proletariado, a procurar, de acordo com o mé-todo conveniente, e a descobrir o que é verdadeiro nosdiversos domínios da ciência e aquilo que, em determi-nadas circunstâncias, constitui o bem e até mesmo o

que é esteticamente belo. Tal foi o caso de Marx e Engels que souberam, antes de qualquer pessoa, tomar par-tido simultaneamente em favor da classe operária e domaterialismo filosófico.

O que “fundamenta”, portanto, em última análise,a opção pelo postulado materialista, é o papel históricodo proletariado. Essa noção, que efetivamente se encon-

tra na obra de Marx, nos textos anteriores a 1860, emparticular09, ensejou, tanto por parte dos defensores domarxismo, quanto de seus historiadores, numerosas in-terpretações. Não seria justo omitir a de Georges Lukács, em sua obra célebre H i s t ór i a e consc iên c i a de  c lasse que, apesar de seu caráter, ao que parece, errô-neo, representa uma tentativa de compreensão em pro-fundidade do marxismo, de importância e riqueza excep

97 Cf. entre múltiplas declarações: “ Os chefes comunistas são diri-gentes como jamais houve, que exprimem a vontade de seu povo, queestão ligados ao povo por todas as fibras de seu ser, por toda suaação; estão na vanguarda de uma classe que tem por missão histórica

libertar todos os homens e que, portanto, não têm inimigos no povo;de uma classe que não teme o futuro, que em tudo se apóia na ciên-

cia e que confia totalmente no homem’'. F . Cohen, “Stálin e o cine-ma”, Nouvelle Critique, n? 45, p. 94.

98 Estes, aliás, não se distinguem daqueles. Cf. o artigo de J. Fréville, “Stalin e a França” , ibid., e as pp. 1011, em particular.

99 Admitindo essa data, não queremos de modo algum entrar no

debate que opôs, ao longo destes últimos anos, pensadores marxistas

a respeito do momento de formação do pensamento definitivo de

Marx. Sobre esse ponto, cf. as observações de H. Lefebvre, “O Mar-xismo e o pensamento francês” , Les Temps Modernes, n? 137138,

p. 120.

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cionais100. Devese mencionar, também, a tese segundoa qual a descoberta, por Marx e Engels, da missão daclasse operária estaria ligada a uma intuição ética queteria ocorrido a esses dois pensadores, impressionadoscom a situação atroz imposta pelo capitalismo de mea-dos do século X IX às classes exploradas 101. No presen-

te capítulo, porém, poremos entre parênteses essas in-terpretações, por mais interessantes que sejam, pois tratase de restabelecer esquematicamente a argumentaçãoformulada por essas filosofias gerais materialistas, queconstituem, atualmente, as apresentações oficiais do mar-xismo, as que são habitualmente admitidas e que susci-tam as críticas filosóficas mais significativas da situa-ção ideológica atual.

De fato, para esses teóricos, a idéia de “missão his-tórica do proletariado” achase justificada de modo mui-to simples. As análises econômicas de Marx e de Engels,os acontecimentos históricos a partir da Internacio-nal dos Trabalhadores, mostraram que a classe operáriaé a classe radical, a que não pode se libertar da opres-são senão suprimindo a própria sociedade de classes.

 Todos os movimentos revolucionários anteriores, os que

foram dirigidos pelos mercadores e artesãos de Atenascontra as famílias nobres, os desencadeados pelos bur-gueses franceses e ingleses nos séculos XVTI e XVni, vi-savam assegurar a vitória de uma nova classe contra aordem antiga, supondo, no entanto, a manutenção na

100 Cf. a tradução francesa de K. Axelos e de J. Bois publicadapelas Éditions de Minuit, col. Arguments, n? 1 e, entre os comentáriosrecentes dessa obra, os trabalhos de L. Goldmann que teve o méritode ser o primeiro a salientar sua importância e originalidade, as aná-lises de M. MerleauPonty, As aventuras da dialética, cap. II, e o ar-tigo de A. Ghisselbrecht, “As aventuras do marxismo ocidental” , Nou- velle Critique, n? 67.

101 Tal é, esquematicamente, a posição adotada por M. Rubel em

sua obra, Karl Marx, Ensaio de bioqrafia intelectual; cf. as observa-ções críticas de L . Goldmann, “Há uma sociologia marxista?” inLes Temps Modernes, n? 140, pp. 729751.

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servidão econômica de uma parte da humanidade, osescravos na Antiguidade, o “povinho” das cidades e doscampos na época moderna. Ora, de acordo com o que éensinado no M a n i f es t o c om u n i s t a  102, o regime capitalista,em razão de radicalizar a exploração do homem e fazeraparecer a verdade das relações sociais, torna possível

a tomada de consciência pelos oprimidos da raiz real desua miséria e a organização de um combate tendo porobjetivo o desaparecimento de toda alienação política eeconômica. Tornandose assim classe “parasi” 103, o pro-letariado, não só empreende a luta decisiva em sua açãoquotidiana — o operário que milita contra o patronatocapitalista age objetivamente em favor da supressão dapropriedade privada dos meios de produção e, assim,

contra o fundamento real do regime de classes — , pro-porcionando ainda no teórico que sabe colocarse em seuponto de vista a perspectiva graças à qual todo o mo-vimento da história tornase inteligível. Tomar o partidoda classe operária, aderir filosoficamente ao materialis-mo dialético, que é a W e l t a n s c h a u u n g  dessa classe, tra-balhar concretamente nas fileiras do Partido que a re-presenta, em suma, inscreverse voluntariamente na

classe histórica que está destinada a realizar a história,é, para o filósofo, tornarse capaz de considerar o realtal qual é, “sem acréscimo de nada estranho” 104, e, aomesmo tempo, de posse assim do bom método, determi-nar o que é moralmente bom e o que é esteticamenteválido.

Mais ainda: a classe operária não é apenas a “últi-ma” classe; “é a classe que pelo seu trabalho está dire-

102 Pp. 2935 (Éditions Sociales).

103 “No próprio seio da sociedade capitalista criaramse, assim, ascondições de uma organização do proletariado e de uma tomada deconsciência do proletariado, de tal ordem que esse proletariado nãoé mais apenas uma classe “em si” , mas uma classe “ para si’\ R. Garaudy, La Liberté, 2? parte, I, p. 150.

104 F. Engels, “Fragmento de Feuerbach não publicado” , in Êtudcs   philosophiques, p. 64.

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tamente a braços com a natureza” 103. Assim sendo, ede acordo com um esquema que é retomado da dialéticahegeliana do Senhor e do Escravo, pode “conceber semmistificação as relações do pensamento e do ser e trazerassim uma solução completa ao problema fundamentalda filosofia” 100. Nessa ótica, o proletariado é, em suma,

diretamente filósofo: a experiência que faz da realidadematerial e das relações sociais em sua existência quoti-diana, lhe revela, melhor e mais profundamente do queaos teóricos que vivem na abstração, a verdade filosó-fica 107. Esta se acha depositada, não no falso saber ela-borado pelos representantes das classes exploradoras,mas na ação trabalhadora e militante do operário, maisexatamente no Partido revolucionário que é a vanguar-

da esclarecida do proletariado e na experiência acumu-lada pelos seus chefes 108. O que o proletariado cons-ciente compreende, de modo particular, é a importânciada prática social e é também o caráter errôneo de todaconcepção do mundo que considera a realidade comoespetáculo: porque está em luta direta contra a natu-reza, apreende imediata e concretamente a mentira dafilosofia idealista e da religião e o modo unilateral, a

insuficiência com que o materialista mecanicista enfoca

105 Ibid.

106 Ibid.

107 Cf. L. Casanova, O Partido Comunista, os intelectuais e a na  ção, p. 68: “De tal sorte que o operário consciente já se move emum nível de pensamento bem superior ao nível alcançado por qualquerideólogo, formado de acordo com as disciplinas da ideologia burguesa,se a elas permaneceu submetido” .

108 Cf. R. Garaudy, Humanismo marxista, que é um partido operá- rio revolucionário?, pp. 288289: “ O partido é. . . uma organizaçãode combate. Mas, esse combate tem um caráter particular: é orientadopelo conhecimento das leis objetivas do desenvolvimento histórico quefixa as perspectivas da classe operária e permite descobrir cientifica-

mente, pela análise das condições objetivas, os meios de vencer. Comisso queremos dizer que a disciplina do partido está fundada em umconhecimento científico: o marxismoleninismo”.

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e resolve o “problema fundamental” . Justificase, assim,a fórmula de Marx: “o proletariado é o herdeiro da fi-losofia” 100.

Elemento motor da história contemporânea e cons-ciência verídica da relação do homem e da natureza, aclasse operária nada tem a temer dos resultados obtidospela ciência. Assim como a burguesia, em sua fase as-cendente, apoiavase nas disciplinas experimentais a fimde denunciar a ideologia mistificadora do feudalismodecadente, assim também o proletariado aceita e utilizaem seu combate as lições do pensamento científico. Po-de, no entanto, ir mais longe do que os pensadores doséculo XVII: sua posição histórica de classe “última”, o

desenvolvimento das forças produtivas, o progresso dastécnicas, a própria obra de Marx e de Engels no domíniodas ciências do homem, permitemlhe compreender emseu verdadeiro sentido as leis que refletem os proces-sos da realidade objetiva, e confiar espontaneamente naciência e na Razão. De modo mais geral, a classe ope-rária, em seu próprio interesse, procura espontaneamen-te a verdade, que só lhe pode ser útil na medida em que

sua descoberta acelera o movimento da história e apres-sa o triunfo de seus objetivos. Eis por que combaterácom a maior energia todas as falsificações que procura-rão impingir os representantes das duas classes explo-radoras. A verdade do proletariado, praticamente reali-zada nas lutas travadas pelos operários contra o capita-lismo e pelos Estados socialistas contra os Estados im-

perialistas, teoricamente desenvolvida pelo Partido revo-lucionário em sua doutrina, é, de fato, a verdade da hu-manidade toda. São necessários todos os artifícios, todasas violências das classes em declínio para que essa idéia

109 Cf. também, Contribuição à crítica da filosofia do direito de 

Hegel, Oeuvres philosophiques, T .I, p. 107: “Assim como a filosofiaencontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra

na filosofia suas armas intelectuais” .

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não seja aceita como evidente por todos aqueles que nãose beneficiam da exploração110.

É, pois, uma só e mesma coisa dizer que o proleta-riado tem uma missão histórica e designálo como “clas-se universal” . Na verdade, a expressão correta dessa vi-são verídica da realidade é a tarefa do partido que orga-

niza a ação da classe operária. Este, considerando ape-nas sua tarefa teórica, reúne e compreende as experiên-cias múltiplas e, graças ao método materialista dialé-tico, delas extrai lições de conjunto que lhe servirão paraguiar o militante em seu trabalho político, o cientista,o filósofo e o artista em suas pesquisas. Se é verdade,com efeito, que a ciência, a arte, a filosofia são super-estruturas refletindo a classe que as suscita, se é ver-

dade que existe, como Marx provou, uma economia po-lítica liberal, que exprime, sob as aparências de umapseudociência, a alienação do trabalho em regime capi-talista m , e que há uma filosofia que, como Engels dei-xou claro, tende a manter os privilégios dos proprietá-rios, o idealismo, também é verdade que há uma arte e

110 Em relação a todo este assunto, cf. Garaudy id., pp. 151, 152,e Teoria materialista..., pp. 318319: “ A classe operária não é ape-nas a classe ascendente em dado momento da história. É a últimaclasse que exercerá uma dominação de classe; tem a missão histórica,pela ditadura do proletariado, de criar as condições da sociedade semclasses, do comunismo, e de instaurála; essa classe operária não vêascender, depois dela, nenhuma classe nova que estivesse destinada aser seu coveiro. Eis por que não precisa, em momento algum de suaevolução, falsificar nem tentar deter a marcha do tempo. Pode explo-

dir todos os freios da história porque nada tem a temer da história.Identificase com a ciência” .

111 É assim que R. Garaudy, Humanismo marxista, pp. 261 ss. justi-fica a idéia de posição de partido em todos os domínios científicos ena arte, pela referência à crítica feita por Marx à economia políticaburguesa: “ Para descobrir, atrás do que a economia política burguesaconsiderava como um dado inicial, a propriedade capitalista, porexemplo, uma relação entre os homens e uma relação contraditória,

era necessário colocarse em um ponto de vista diferente do pontode vista burguês: do “ ponto de vista” daquele que sofre essa contradi-ção, que é esmagado ou dilacerado por ela” .

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uma ciência que refletem o ponto de vista do proleta-riado11. Desde então, para quem sabe ver, as coisas setornam muito claras: o partido da classe operária e seusdirigentes, pelo fato de resumirem em seu saber a óticada classe “universal” possuem a capacidade de definir,nos diversos campos do conhecimento e da cultura, a

perspectiva justa e têm o direito de interferir para orien-tar as pesquisas113. No caso preciso do trabalho filosó

112 Sobre a oposição da ciência burguesa e da ciência proletária cf.o opúsculo publicado pelas Edições da Nouvelle  Critique. Cf. igual-mente, as análises de J. Kanapa ( Nouvelle Critique , n? 5, pp. 5253)“Formulemos a questão: não significa isso que tampouco existe um a  

ou a natureza quanto uma ou a ciência? Não significa isso que a

ciência nova deve levar em conta que a natureza com a qual experi-menta tem, em um novo tipo de sociedade (socialista), uma realidade  social  nova e que, inversamente, o poder dessa ciência deve orientarse no sentido da transformação da natureza em matéria social, capazde servir, de libertar o homem? Isso não significa que o objeto centífico“ floresta colcoziana” não seja o mesmo objeto que a “ floresta feudal” ,por exemplo? Que reclama um tratamento experimental diferente, seo quisermos eficaz? E não é apenas isso, o objeto da ciência, atual-mente, é um objeto social, sim, esse objeto, na u r s s é um objeto

socialista: foi necessária uma revolução social, em seguida uma re-volução natural; já seria tempo de admitir que é necessária tambémuma revolução científica. E não é a partir de uma reflexão conduzidasem preconceitos, e violentando, às vezes, as normas tradicionais depensamento, que poderia fundarse uma distinção de  principio  entreciência burguesa e ciência proletária (ou socialista)?” Sobre as re-lações entre a luta de classe operária e a tarefa dos escritores e dosartistas, cf., em particular, L. Casanova, artigo citado, e A . Stil,“Rumo ao realismo socialista” , que retomam os temas definidos porA .D . Jdanov, op . cit. Igualmente R. Garaudy, Humanismo marxista ,

pp. 176275: “O mesmo ocorre com a “ posição de partido” no domí-nio da literatura e das artes. Nesse plano, como em todos os outros,travase uma luta encarniçada entre a ideologia burguesa e a ideolo-gia socialista. Não é verdade que a exaltação literária ou artística doindividualismo anárquico, do egoísmo sem perspectiva, do ceticismo,proceda apenas de uma pretensa “arte pura” ; tais fenômenos têmuma significação de classe e trazem a marca da decadência burguesa” .

113 Cf. R . Garaudy, id.t   p. 277: “ Essa função do partido não cons-

titui entrave, mas estímulo ao intelectual criador: a lembrança dosprincípios fornecelhe as coordenadas sociais de todo pensamento ede toda criação, dá profundidade e coesão às suas análises e às

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fico, importa elaborar obras que correspondam às exi-gências do momento na luta contra o “ campo” dos ex-ploradores, de participar, no campo de batalha ideológi-co, do combate militante. A posição de partido em filo-sofia, que se funda em uma posição de partido em polí-tica, determina certo estilo de filosofar do qual a preo-

cupação política jamais estará ausente. Tal é a concepção de conjunto, com certas variações

devidas precisamente às circunstâncias114, afirmam asfilosofias gerais marxistas, concepção que a filosofia tra-dicional e as diversas correntes subjetivistas ignoram.Os pensadores que criticam o materialismo dialético pre-tendem, quando não têm a ingenuidade ou a hipocrisiade desconhecer deliberadamente o problema político, co

locarse “ acima das classes” e repensar o conjunto dasquestões de seu ponto de vista, à luz apenas de sua “vi-vência” ou de qualquer razão abstrata. As refutaçõesque elaboram são freqüentemente hábeis: não atingem,porém, seu objeto, pois esquecem ou fingem esquecer ofato fundamental, a existência de uma luta de classesque repercute em todos os setores do pensamento. Narealidade, a afirmação, atualmente, de que é possível si-tuarse nessa famosa “zona neutra” , nessa “ esfera préobjetiva”, anterior à escolha entre a postulação idealistae a postulação materialista, a partir da qual poderíamos

 julgar da validade de uma ou de outra (assim como a

suas criações; a lembrança das perspectivas fornecelhe o indispensávelmeio de situar em justo lugar os aspectos positivos e negativos dosacontecimentos e dos homens, de escapar ao diletantismo dos estetasdesorientados nos quais a burguesia procura esquecer sua decadência.O que alguns chamam atualmente de “jdanovismo” era, quanto ao es-sencial, a lembrança da necessidade do espírito de partido, quer dizer,ao mesmo tempo do espírito, de princípio e do espírito de responsabili-dade, nas questões da literatura, da arte, da cultura” .

114 Embora a idéia de posição de partido seja constantemente lem-brada pelos teóricos que citamos, a distinção entre ciência burguesa e

ciência proletária é atualmente repudiada pelos mesmos teóricos; as-sim também, a concepção do realismo socialista foi consideravelmenteabrandada.

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pretensão de julgar em nome de que não se sabe queconcepção objetivista da pesquisa biológica, a respeito dodebate entre os partidários de Mendel e os mitchourinistas) remete a essa idéia, historicamente absurda, deque é permitido situarse fora da luta de classes. E aque-les que sustentam semelhante tese, queiram ou não, pro-

porcionam um auxílio real ao campo dos exploradores,detêm o movimento da história e dificultam o desabrochamento dos valores mais altos da justiça e da solida-riedade .

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Nesse estágio, muda o sentido e o estilo da polêmica.Os teóricos contemporâneos do marxismo apresentaminicialmente o materialismo como uma filosofia en t r e a s   d ema i s , tendo, sobre elas, a superioridade de provarp o s i t i v a m e n t e  sua validade, pela referência aos resulta-dos das disciplinas científicas. Ora, a problematização

operada pela crítica, negando que tal referência cons-titua prova, obriga a maior aprofundamento. Já apare-ce a idéia de que o materialismo marxista difere, emseu aspecto teórico, de uma ontologia ou uma teoria doconhecimento, que, se t em f u n d a m en t o , não é no sentidoem que um sistema como o de Descartes ou o de Husserldeclarava ser fundamentado. Todavia, ao examinar otipo de justificação que nos trazem as apresentações

atuais do marxismo em substituição ao fundamento tra-dicional, percebese que, além de ser incapaz de conven-cer o filósofo, suscita, no próprio seio do materialismo,graves contradições.

A crítica assinalará, inicialmente, a obscuridade eas dificuldades que implica a noção que é a vigamestradessa nova “demonstração” da verdade do materialismo:a da missão histórica do proletariado. Para que seme-lhante noção tenha sentido — limitandonos aqui aos ar-gumentos de ordem filosófica, com exclusão dos que se

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referem ao domínio propriamente político — seria pre-ciso que, por um lado, a análise sociológica e históricapudesse definir de maneira incontestável a existência deu m a  classe proletária conceituada univocamente, e poroutro, que se pudesse, a partir do estudo de fatos, defi-nir com suficiente precisão o conteúdo dessa consciên-

cia proletária genérica e discernir na evolução, ao me-nos a partir do século passado, a existência e a constân-cia de uma vontade única da classe operária. Ora, pros-seguirá a crítica, mesmo admitindo a validade de con-

 junto da análise econômica de Marx, e reconhecendoque há certa unidade de situação dos explorados nomundo inteiro, resta que, para o estudo sociológico ri-goroso, por motivos históricos igualmente importantes,

essa unidade se fragmenta em elementos diversos e queé impossível, do ponto de vista sociológico, falar em umproletariado mundial. E fácil notar qiie, já nos traba-lhos históricos de Marx, a noção de proletariado estálonge de ser unívoca; atualmente, com o progresso dosmeios de investigação, verificase que o “fato proletário”interfere com outros fatos, o fato nacional, o fato pro-fissional, o fato da migração e da colonização, de tal

sorte que uma pesquisa deve antes falar, se quiser per-manecer fiel aos dados, de uma multiplicidade de cama-das sociais exploradas, com interesses objetivos diferen-tes, que podem entrar em conflito umas com as outraspor causas objetivas ou unirse contra a exploração, deacordo com as circunstâncias115.

Essa diversidade de fato também se encontra quan-do se examina a consciência desses grupos. A diversi-

dade das situações em que se encontram os diferentesproletariados nacionais, e, no interior deles, as rivalida-des que podem surgir entre as profissões “ refletemse”precisamente na consciência dos proletários. E fácil atri-buir essa diversidade à ação da classe exploradora e do

115 Cf. os trabalhos de G. Gurvitch e, em particular, Determinismos  sociais e liberdade humana, 2? parte, 2? seção, cap. II, O determinis- mo sociológico próprio das classes sociais, pp. 178 ss.

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aparelho de Estado nos países capitalistas: é mais cien-tífico verificar que o proletariado de determinado país,em conseqüência de determinada conjuntura histórica,pode adotar, por exemplo, uma atitude “xenófoba” ouentregarse ao reformismo, renunciando à luta de clas-ses . Interpretase a história com estranha latitude quan-

do se vê nessa luta apenas um conflito entre dois cam-pos bem delimitados e com clara consciência de seusinteresses e ideais. Assim como há contradições no seioda classe dos proprietários dos meios de produção, se-nhores do Estado, o fato é que existem antagonismosentre as diversas camadas de explorados e que falar deuma consciência proletária genérica constitui mais umvoto piedoso do que uma observação. Marx e Lênin, aliás,

não insistiram nos “erros” que pode cometer a consciên-cia proletária e na necessidade de uma ciência118 e deum partido que saibam explicar a situação e mobilizara energia operária sempre arriscada a ignorar seus ver-dadeiros interesses.

Se há uma classe proletária lúcida, não pode poisser em virtude de uma situação objetiva que, mecani-camente — ou dialeticamente — produziria a capaci-

dade de apreciação justa em todos os domínios da açãoe da cultura. É curioso observar, a esse respeito, salien-tará ainda a crítica antimaterialista, que esses filósofosmarxistas que afirmam, de um lado, admitir a jurisdiçãodos fatos como única, usam, para justificar a noção demissão histórica do proletariado, idéias que não estãoisentas de misticismo. É sem dúvida tentador atribuir

 — nas pegadas do jovem Marx 117 — significação espe-

cial ao sofrimento a que está condenada a classe ope-rária no regime capitalista e ver na situação de extremaprivação que lhe é imposta a condição dialética de sua

116 Cf. Lênin, Que fazer?, II , A espontaneidade das massas e a cons- ciência da socialdemocracia, Obras Escolhidas, t. I, pp. 195217.

117 Cf., eni particular, o texto célebre, Contribuição à crítica da filo- sofia do direito, Oeuvres philosophiques, t. I, pp. 105106, sobre oproletariado, “classe radical” .

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completa liberação; e parece igualmente cômodo — e oscríticos do materialismo parecem o ter admitido algu-mas vezes118 — atribuir um poder histórico extraordi-nário àqueles cuja profissão põe em contato direto coma dura materialidade e assim experimentam em suavida quotidiana a relação autêntica com o mundo sen-

sível. A análise efetiva, porém, tanto filosófica quantosociológica, mostra o quanto são aproximativas seme-lhantes noções. É verdade que, na obra de Hegel, a dore o trabalho desempenham o papel de mediadores deexcepcional importância; deverá, porém, uma concepçãocientífica admitir, sem maior aprofundamento, conceitosque só adquirem significado no seio do idealismo deHegel e que constituem a parte mais mística, a menos

válida, do legado hegeliano? Em todo caso, terá sentidocondenar o hegelianismo que faz “o homem andar decabeça para baixo” e tomar ao sistema suas idéias maiscontestáveis?

Na verdade, a tentativa de fundamentação que vaida afirmação da verdade da opção materialista à posiçãode uma classe universal incumbida de cumprir o destinoda humanidade suscita um novo messianismo, cujas con-

seqüências tanto filosóficas quanto políticas são graves.Faz do materialismo dialético uma f i l o sof i a da h i st ór i a .  Observase aí uma contradição; pois, precisamente, asfilosofias da história, de Santo Agostinho a Hegel, pas-sando por Vico, Herder e Comte, caracterizamse por seudesdém para com a análise objetiva rigorosa, pela von-tade de salientar um elemento único de formação oude transformação, mesmo em detrimento da diversidadeimposta pelos acontecimentos, e pelo seu aspecto nãocientífico. Tudo se passa como se, para semelhante in-terpretação do marxismo, a ótica de conjunto do mate

118 J .P. Sartre, Materialismo e revolução II, Filosofia da revolução; cf. também, ’’Os comunistas e a Paz” , I, II, I II” , Temps modernes, n s

81, 8485 e 101 e as observações críticas de M. MerleauPonty, As  aventuras da dialética, cap. V, e principalmente, C. Lefort, “O Mar-xismo e Sartre”, Les Temps Modernes, n? 89.

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rialismo constituísse mera laicização de dados que setornaram tradicionais por meio de certas concepçõescristãs: a alienação do proletariado é o pecado original;seu sofrimento é o análogo da Paixão do Cristo e o ho-mem total, por vir, o homem liberto de todas as contra-dições, evoca o momento da Ressurreição dos Corpos, o

Fim dos Tempos119.Essa idéia de uma virtude específica do proleta-

riado, que teria a capacidade de fazer o que convém pararealizar o destino da humanidade, de querer o que é pre-ciso querer para realizar as mais altas virtudes, é tãomanifestamente insuficiente no domínio da prática queos teóricos materialistas freqüentemente criticaram o“espontaneísmo” e insistiram no fato de que a We l t a n s -   c h a u u n g  proletária, para adquirir toda sua força e todasua clareza, deve refletirse no partido operário (que re-colheu, ele próprio, a herança dos fundadores do mar-xismo) . Na verdade, o agente histórico eficaz, para ospensadores já mencionados, parece ser menos o proleta-riado, “ classe parasi” , do que o partido que exprime seuestado de espírito e mobiliza sua vontade. Assim, entreo elemento propriamente conceituai da doutrina — omaterialismo dialético — e a “visão do mundo” proletá-ria, introduzse um termo mediato: o partido operário.A crítica filosófica poderá, a esse propósito, proporsemúltiplas questões; verá, no fato de que é necessário re-correr à mediação de uma organização à qual a d e r em osindivíduos a prova de que a teoria do reflexo é incapazde explicar a prática e que não há “ consciência prole-

tária” , mas antes uma consciência que esco lhe esta po-lítica e não outra, estes valores e não aqueles; preo-

119 “Até Nietzschc, todo o pensamento ocidental viveu, no que serefere à história, em função de esquemas cristãos; tal como se desen-volveu, principalmente a partir de Condorcet e de Hegel, a “filosofiada história” aparece como lima transposição no plano natural dosconceitos básicos herdados da teologia cris tã .. .” H . I . Marrou, Ambi- 

valência do tempo e da história em Santo Agostinho, p. 15; cf. igual-mente P. Ricoeur, História e Verdade, pp. 80 ss., O Cristianismo e o  sentido da História.

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cuparseá, então, com o alcance que se pode atribuir asemelhante fundamentação. Pois, se é obscuro afirmarque as quatro leis da dialética são verdadeiras porque,afinal de contas, exprimem em alto grau de elaboraçãoa concepção proletária, tornase inaceitável considerálas válidas porque são reconhecidas como tais pelo par-

tido que se declara operário; que prova temos de que éesse partido e não a q u e l e o u t r o  — pois há vários parti-dos que invocam o marxismo e a classe operária. — quereflete os interesses do proletariado? Será legítimo sub-meter a apreciação filosófica à variação das situaçõespolíticas? Quem tem razão, o Lukács que escreve H i s t ó r i a e con sc iên c i a d e c lasse, ou o Lukács que redige Ex i s t en c i a l i sm o ou M a r x i s m o ?  Não se abrirá caminho à con-

tingência, ao arbitrário e ao dogmatismo confiando auma organização, a dirigentes que podem ser dominadospela paixão e que, em todo caso, são obrigados, pela suaprópria situação de políticos, a levar em conta as con- junturas históricas, o cuidado de fixar a “ linha” ideo-lógica? O exemplo recente, que se convencionou chamarde stalinismo, mostra a que desoladores excessos, a quesectarismo e também a que versatilidade é arrastada a

pesquisa teórica.Finalmente, assim apresentada sob os auspícios do

espírito de partido que constitui sua justificação última,o materialismo dialético perde todas as característicaspróprias de uma doutrina filosófica. A idéia de que háum espírito de partido em filosofia é, na verdade, umaconfissão: a confissão de que o problema filosófico comotal, e especialmente o do fundamento, devem ser afas-

tados como desinteressantes, e que a única questão querealmente importa é política e que a mensagem filosó-fica deve ser considerada uma arma como as outras, lan-çada na luta ideológica. Depois de Lênin, o materialis-mo filosófico manifestase como um mito 120, que, paramelhor convencer a camada flutuante dos “intelectuais”,assume todos os aspectos de uma filosofia, embora tenha

120 J.P. Sartre, “ Materialismo e Revolução” Situations Hl, p. 175.

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por fim único permitir uma vitória do proletariado ou,mais exatamente, desse partido ou desse Estado que afir-mam refletir os objetivos da classe operária. Sob essaluz, todas as variações, todas as contradições dos teóri-cos materialistas se compreendem; de acordo com o mo-mento histórico e as exigências da luta, tal aspecto ssrá

silenciado, tal outro será exaltado, tal pensador nãomaterialista será qualificado de “idealista” que faz o jogo da classe exploradora ou de “companheiro de jor-nada” provisoriamente extraviado; o materialismo seapresentará ora como uma filosofia geral, que resolveuem suas linhas gerais o problema do ser e do conhecer,ora como prudente disciplina positiva que se contentaem resumir os resultados das ciências121. A doutrina em

seu conjunto é um “Proteu inapreensível” 122 que, na dis-cussão, foge constantemente, passa sem deterse de umplano a outro, misturando, sem a menor preocupação declareza, a pesquisa filosófica, certos resultados científi-cos e considerações políticas, e que encontra, como últi-mo argumento, uma objurgatória de ordem moral: aque-le que não aceita os enunciados fundamentais do ma-terialismo ajuda um regime que mantém no mundo a in-

 justiça, a desordem e a miséria.Que aceite ou não o “marxismo prático” — enten

dese por isso a política que invoca o marxismo — , quese preocupe ou não com política, a crítica antimaterialista admite geralmente como refutação decisiva o fatode que o materialismo dialético, ao menos tal como éexposto na França, em particular, pelos seus teóricosoficiais, não é uma filosofia, que se apresenta como filo-sofia uma doutrina vaga e contraditória que, contraria

121 . .O materialismo é uma metafísica dissimulada sob um posi-tivismo: mas c uma metafísica que se destrói a si mesma, pois, mi-nando por princípio a metafísica, retira todo fundamento a suas pró-prias afirmações” , ld., p. 140.

122 “ Eis, pois, o materialismo em favor do qual nos querem fazeroptar: um monstro, um Proteu inapreensível, um grande vulto vagoe contraditório” . /</., p. 172.

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mente à tradição da filosofia, postula seus princípios enão consegue justificarse senão referindose a um prin-cípio extra filosófico, não justificado, a confiança naciência ou o espírito de partido. Limitado ao seu aspectosociológico ou considerado como doutrina econômica,considerado igualmente como perspectiva política, o mar-

xismo poderia ser admitido e discutido como tal. A dis-cussão tornase impossível a partir do momento em quepretende ser uma concepção filosófica, uma vez que serecusa a formular em termos filosóficos o problema daprova ou do fundamento e que resolve esse problema pormeio de simples postulação ^ . Dizer que não há “zonaneutra” , lugar a partir do qual se possa julgar o “valorda ciência” , por exemplo, é confessar que se renunciou

a fazer filosofia, que se renunciou ao universal e talvezmesmo ao livre exercício do pensamento.

5

Assim, parece que o debate termina com a derrotado materialismo: nenhum dos princípios que as filoso-fias gerais marxistas — as que se inspiram essencialmen-te na D i a lét i ca d a n a t u r eza e no Ma t er i a l i sm o e em p i r o -   c r i t i c i s m o  — julgaram poder invocar para justificarse,constitui legitimação a partir da qual poderia instaurarse uma discussão séria. A confiança atribuída à sensa-ção ou à interpretação positivista da ciência, a posição

de uma classe universal, na medida em que são instituí-das como último recurso que “ todo homem são de corpoe de espírito” 124 não poderia recusar, situam a teoria ma-terialista aquém do que é justo exigir de um contexto fi

123 “A ambigüidade do materialismo consiste na sua pretensão deser, ao mesmo tempo, ora ideologia de classe, ora expressão da ver-

dade absoluía” . /</., p. 222.

124 Cf. acima nota 30.

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losófico. Eminentemente contestável em seu conteúdo, omaterialismo dialético logo revela, na polêmica, sua ca-rência essencial: sua incompreensão da problemática pró-pria de um pensamento que reivindica o título de filo-sofia, a elaboração de uma prova ou de um fundamentoque não proceda de outro critério que não seja a exi-

gência da livre reflexão esforçandose, em face da di-versidade dos fatos e dos julgamentos, na pesquisa maisaprofundada e menos preocupada com as convenções.

O teórico materialista não aceitará essa derrota: re-cusará, por sua vez, o tribunal da livre reflexão, afir-mando que se trata, no caso, de um ardil do idealismo

 — e, conseqüentemente, da ideologia dominante em re-gime capitalista — e que a pretensão de julgar fora daopção fundamental, idealismomaterialismo, é em si ina-ceitável. Retomará os argumentos de acordo com osquais é desconhecer o caráter superestrutural da filoso-fia conceder a qualquer princípio, seja qual for, vivên-cia, consciência empírica ou transcendental ou razão de-sencarnada, o direito de ditar leis sem levar em conta atomada de posição inicial. O debate desemboca assim naobscuridade e na confusão. O esclarecimento que se es-perava alcançar, partindo da situação característica daFrança ao longo desses últimos quinze anos, revelaseimpossível. Tratavase de saber qual dos dois, se o ma-terialismo ou o antimaterialismo, traz a prova de sua va-lidade. Ora, a exposição esquemática dos argumentostrazidos de parte a parte mostra que a noção de p r o v a ,  na qual supunham poder apoiarse, se não para resol-

ver, ao menos para pesar o positivo e o negativo, não écompreendida por uns e por outros do mesmo modo.Mais precisamente, parece que a refutação antimaterialista mantém a idéia da prova tal qual se apresenta nátradição filosófica: provar um enunciado, é tentar tor-nálo aceitável por todo indivíduo de boafé, é propor co-mo legitimação única a de um pensamento que chegou alibertarse do particularismo e da paixão.

Esse critério, as filosofias gerais marxistas parecemaceitálo inicialmente; chegam mesmo a erigilo em prin-

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cípio absoluto. Mas, nas demonstrações que apresen-tam, verificase que admitem, na extrema confusão, ummodo de legitimação diferente. Parece que hesitam cons-tantemente — hesitação ou astúcia? — entre um tipode justificação filosófica, caso em que são rapidamentevencidas na discussão, e algum outro tipo de legitimação

que não chegam, por cegueira, ou não querem, por pro-paganda, definir. De qualquer maneira, a interpretaçãoda idéia da prova no domínio teórico constitui o pontode ruptura mais nítido, embora nem sempre o mais re-conhecido, entre o materialismo e seus adversários con-temporâneos .

Assim, o debate que opõe o materialismo dialético"oficial” e seus críticos, a esterilidade e a confusão dosresultados aos quais chega, a hipoteca que faz pesar so-bre o pensamento essa confusão exige que se formulemais precisamente a questão da prova: de um lado, oantimaterialismo recusase a admitir como válida outrapedra de toque além de uma pesquisa que não aceita“fato” algum senão aquele que o pensamento livre e au-dacioso reconhece como fato incontestável; de outro, omaterialismo que, desastradamente, tenta mostrar quesemelhante método leva a validar qualquer opinião, mé-todo esse que admite como “fato” decisivo dados que sãoapenas dados, em sua própria opinião.

A digressão que fizemos, ao formular tão difícilquestão, parecerá talvez excessiva. Não é possível evi-tála quando se quer sair da ambigüidade em que sedebate, e na qual às vezes se compraz, a pesquisa teó-

rica atual.

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II

O Exercício da Filosofia 

e o Projeto do Enunciado 

Integralmente Legitimado

i

A p r i n c i p a l   restrição dos críticos à filosofia geralmarxista é, como acabamos de ver, desprezar o proble-ma do fundamento, enclausurarse em postulados arbi-trários, aceitar, sem justificar, os resultados das ciências,

aderir a uma visão da história insuficientemente legiti-mada: criticamna por usurpar o título de filosofia doqual se prevalece e de apresentar como provado o quecarece de prova filosófica. A essa contestação, as atuaisexposições teóricas do materialismo não respondem ourespondem levianamente; invocam apenas, como justifi-cação última, convicções: confiança na razão científica,crença na existência de uma classe universal; substituemao exercício da prova — que é decisivo para o filósofo — uma retórica hábil ou desastrada. Ora, parece — e éesse, de certo modo, o pressuposto deste trabalho — que

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há mais na obra de Marx, no marxismoleninismo, doque na versão que dele atualmente nos apresentam, naFrança em particular. O meio de verificar a validadedesse pressuposto, dessa hipótese, é perguntar se o filó-sofo tem razão em querer semelhante prova, é saber oque reclama então e a que exigência atende quando o

faz. Assim sendo, as primeiras questões que se impõemsão as seguintes: que é, para o filósofo, a prova filosófica,e por que a procura? Essa procura corresponde realmen-te à vontade filosófica tal qual se manifesta desde Pla-tão? A que tipo de prova chega então o filósofo? A esseconjunto de questões, três respostas são concebíveis: oubem o exercício da filosofia é efetivamente esse esforçopara construir um enunciado totalmente legitimado e

o filósofo é, então, bem sucedido, ou capaz de ter êxitoem semelhante empresa; ou bem a filosofia é outra coisa,que será conveniente determinar, por exemplo, uma vi-são do mundo expressa sistematicamente; ou, enfim, érealmente essa tentativa de fundação integral do enun-ciado, que jamais completamente realizada, exige, porisso mesmo, sua superação.

 Tratase, pois, de examinar o que quer dizer: prova

em filosofia e, isso, para o filósofo. Há audácia em for-mular semelhante questão que equivale, em suma, a per-guntar o que é a filosofia, isto é, o que pretende o filó-sofo. A preocupação em dissipar a confusão da situaçãoideológica atual fará, talvez, perdoar essa audácia.

2

Admitese freqüentemente que: concepção do mun-do é uma definição suficiente da filosofia. Se nos atemosa essa definição, subentendemos que qualquer maneirade perceber, de sentir e de pensar a realidade é filosó-fica. O que é dificilmente aceitável a longo prazo, poisnos torna incapazes de dizer qual é a originalidade dafilosofia e, além disso, de compreender por que algunshomens afirmaram que eram antifilósofos. É preciso,

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pois, acrescentar alguma qualificação ao substantivo“concepção”, graças à qual uma diferença ou uma opo-sição aparecerá. Essa qualificação é variável: freqüen-temente contentamse em esclarecer: concepção geral domundo. Dizse, assim, alguma coisa, pois distinguese afilosofia do que não o é, conferindolhe a gene r a l i d a de . 

Esta, no entanto, é difícil de entender como tal: é pre-ciso, para compreender o conteúdo de tal definição, refe-rirse a uma concepção do mundo que não fosse geral,quer dizer, uma concepção especial ou individual. É evi-dente, desde esse momento, que o progresso, emboraainda não muito claro, é sensível: de um lado, há ho-mens que têm sobre a realidade uma visão de conjunto,unindo os diversos aspectos do dado em um todo e que

exprimem essa “visão” em um contexto, o contexto filo-sófico, precisamente; de outro, há homens que, em sualinguagem, limitamse a refletir sua própria maneira dever e de sentir ou da coletividade natural, profissionalou institucional da qual participam. A distinção, no en-tanto, não é ainda bem nítida, e é difícil darlhe umconteúdo preciso e real: podese, por exemplo, opor “bomsenso” e “ filosofia” , “afetividade” e “razão” , “ imediatida

de da vida” e “reflexão” e assim por diante. Mas, destavez, dizse demais e dificilmente se percebe p o r q u e  osdois termos se opõem: percebese, confusamente, semdúvida, o que os distingue, mas não a significação e aimportância dessa distinção.

A fim de que apareça com nitidez, seria necessárioque a idéia de concepção nãogeral do mundo fosse de-terminada e que se pudesse atribuirlhe algumas quali-dades intrínsecas. Assim, a oposição assumiria um con-teúdo e a idéia de filosofia atributos mais bem definidos.Ora, o pensamento grego nos fornece um conceito degrande riqueza graças ao qual um novo progresso se tor-na possível: o conceito de do x a . Desculpamonos por con-servar o vocábulo grego: a tradução implica o risco deintroduzir ambigüidades: “senso comum” , “bom senso”e “opinião” , aceitáveis literalmente, devem, no entanto,ser evitadas, a primeira expressão por ter um matiz pe-

 jorativo desagradável, a segunda por conservar em fran-

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cês algo da b on a m en s  cartesiana, e a última, finalmen-te, por remeter a a p r i o r i   sociológicos que devem serevitados. A d o x a  pode ser descrita como um sistema decrenças manifestandose na prática, na conduta, nos sen-timentos e nas falas, crenças tais que, quem as possuinada mais deseja, e pensa, graças a elas, que atinge ne-

cessariamente a satisfação em todos os domínios: êxitona ação, felicidade na alma e justeza no julgamento.Por si, a d o x a  é certeza que não sonha sequer em con-frontar seu conteúdo com qualquer outra “visão do mun-do” : se o homem da d o x a  fala, é para d i z e r  e não paradiscutir; situase, de início, na esfera da plenitude sa-tisfeita e, se lhe ocorre utilizar a linguagem de modonão utilitário, o faz na afirmação segura de seu valor.

Assim, considerase como se tivesse recebido de nascençauma espécie de graça que o premune não, sem dúvida,em relação a qualquer malogro ou qualquer inexatidão,mas do grave malogro e do erro que arruina. Essa “gra-ça” , que é seu apanágio, lhe indica o que convém fazere pensar no momento adequado: suas crenças refletem,em suma, exatamente, graças a uma espécie de harmo-nia preestabelecida, o ordenamento e a distribuição do

mundo. Ele sabe e não cogita de perguntarse se saberealmente pois vive seu saber como se correspondesseimediatamente ao que é. O privilégio do homem quevive na d o m  é análogo ao que experimenta o poeta ins-pirado: mesmo que não me sinta inspirado, apreendesecomo possuidor de uma virtude que lhe garante que nãofalhará essencialmente, que saberá fazer, sentir e conhe-

cer, quando for necessário. Considerada fora da contes-tação filosófica (ou da contestação de outras doxo i , achandose as duas coisas ligadas), a “opinião” situaseespontânea e constantemente em um universo onde nãohá outra coisa a fazer ou a pensar senão o que ela reco-menda: não considera ainda (ou mais precisamente,ainda não possui) a oposição do erro e da verdade; sim-plesmente, e la , possui o s e n t i d o  — que não compreende

e não procura compreender — e tudo o que não é ela é,a seus olhos, desprovido de sentido.

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Em si, é fácil aproximar o homem da d o x a  do indi-víduo pertencente a essas coletividades antigas onde olaço social é naturalmente tão estreito que nenhum deseus membros poderia constituirse separado. Cada umse reconhece nos valores, nas práticas e nas “idéias”adotadas pelo grupo e nenhum solicita outra coisa além

desse reconhecimento imediato, recebido como plenamen-te satisfatório: os deuses dos ancestrais são deuses pro-tetores — não de todo homem, o que permitiria suporque se preocupam com os outros —, mas daquele queprecisamente tem esses deuses como protetores; as prá-ticas agrícolas e artesanais legadas pelos pais, são práti-cas eficazes; e a maneira de viver é a que convém exata-mente à satisfação do desejo. A inserção na coletividade

(notemos que, evidentemente, não se trata, em umaperspectiva histórica, senão de um limite) é tão completaque a outra coletividade, cuja existência outra é experi-mentada nas trocas e na guerra, não chega a assumirimportância; é totalmente relegada à estranheza daoutra, daquilo que o filósofo chamaria de inconcebível.Qualquer inquietação que apareça, permanece interior aogrupo: resulta, por exemplo, do temor de não viver com

os deuses ou de compreendêlos mal. Devese observarque a certeza da d o x a  concerne não só os sentimentose a “visão do mundo” mas ainda as ték n a i e a distribui-ção dos privilégios sociais: nesse sentido, a “opinião”constitui a expressão de uma atitude existencial que des-preza, como sem alcance real, todo modo de existênciadiferente e que se apreende como absolutamente satis-fatória. Tal é, ao que parece, o verdadeiro estado da

certeza imediata que parece menos ser a presença irre-dutível do h i c et n u n e  sensíveis, do que a constante igual-dade consigo mesmo nos sentimentos, ligada à plena sa-tisfação da existência dada (dada e não conquistada porum esforço qualquer, do pensamento ou da ação).

A d o x a  não formula questões: constitui antes umacoleção de respostas. Esclareçamos que, evidentemente,este último enunciado vale apenas em si, pois o homemda d o x a  parasi, não formula nem questão nem respos-ta: a linguagem é utilizada por ele como comentário,

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pontuação ou substituto da ação. O único questionárioé o que lhe impõe sua existência e as respostas que eledá são, a seu ver — quer dizer, na etapa histórica emque se encontra — inteiramente satisfatórias. Todavia,em função de um devenir próprio que não poderíamosaqui estudar, — tarefa da ciência histórica — , sobrevêm

um momento no qual as condições da existência se trans-formam de tal maneira que a coletividade não mais podepermanecer enclausurada em seu particularismo; aomesmo tempo, no interior dos próprios grupos, o desen-volvimento das técnicas de produção suscita relações so-ciais novas que são fermentos de dissolução do antigovínculo social. No caso do mundo grego, por exemplo,que, por motivos geográficos e históricos é particular-

mente significativo, o desenvolvimento simultâneo datécnica artesanal e da economia mercantil, o aperfeiçoa-mento dos processos, o aparecimento de uma classe ser-vil importante, o crescimento do número de indivíduosque, voluntária ou involuntariamente, desprendemse dosconstrangimentos impostos pelos gén e  constituem causasefetivas que contribuem para arruinar a certeza das cren-ças tradicionais. A esse respeito e a títulos diversos, em-

bora as produções literárias assinalem considerável atra-so em relação às consciências, obras como as de Hesíodo, Ésquilo e Heródoto manifestam essa dúvida que vemcorroer as grandes certezas herdadas dos tempos pas-sados. Os grupos, interiormente debilitados, entram emcontato cada vez mais íntimo uns com os outros; novascoletividades aparecem, fundadas não no sangue ou nolugar (o gén os e a k h i ó m e )  , mas nas circunstâncias for-tuitas que unem os interesses; as guerras se multiplicame se tornam senão mais cruéis, ao menos mais radicaisem seus efeitos: o indivíduo — mesmo que fosse grego

 — passava brutalmente da categoria de homem livre àde escravo e a desgraça essencial e definitiva irrompe,não mais em sua forma natural, mas em sua forma his-tórica; e a experiência dramática da produção, da “po-

lítica” e da guerra vem contestar o sólido empirismo dosantigos: eis aí a idade de bronze a qual, sem dúvida, nãorevela a violência, mas lhe dá um aspecto humano. Os

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deuses do grupo são f i n a l m e n t e  causa do infortúnio dacoletividade vencida: mas, há t a m bém  responsáveis,aqueles que, em sua certeza, deram ordens ou ditaramsoluções, cujo e r r o   é dolorosamente sentido por todos;outros agiram de maneira diferente e triunfaram. Aexistência quotidiana, tornandose diretamente histórica,

povoase de incertezas e a satisfação de sentir e de fazeré substituída pelo problema vital da ação bem sucedida.

O conflito entre diferentes d o x o i  assume um aspectoparticularmente revelador ao nível dessa formação polí-tica que é a po l i s . A cidade grupa duas classes sociaispropriamente ditas: os homens livres e os escravos; estes,no entanto, por causas múltiplas, não contam e os anta-gonismos surgem na própria classe dos cidadãos. As di-versas camadas sociais que a constituem disputam a“renda nacional” fornecida pelo trabalho das terras, oslucros comerciais, a pilhagem, a colonização: opõemsea respeito do modo mais conveniente de conceber o des-tino do Estado para que a “Cidade seja feliz e unida” ;e essa oposição se manifesta em todos os domínios, peloaparecimento de d o x o i   contraditórias no que se refere

aos deuses, à virtude, à lei. Dionisos, por exemplo, voltaa ser uma divindade importante na Ática no momentoem que os pequenos agricultores que cultivam a vinha sealiam politicamente aos comerciantes do litoral que ven-dem o vinho; à antiga pedagogia que visava formarguerreiros de costumes sóbrios e sentimentos piedososopõese uma nova p a i dèi a que procura educar cidadãos,hábeis em defender seus interesses e os do Estado na

Pnix e afeitos às novas t êch n a i ;   à idéia tradicional devirtude que repousava na moderação e o temor da y b r i s   inspiradas pelo terror da M o i r a  substituise uma concep-ção mais “progressista” que oscilará constantementeentre o humanismo e o cinismo; a própria noção deEstado suscita dissenções, opondose o modelo atenienseao modelo espartano. Seria fácil multiplicar os exem-plos dessa diversidade: a cidade de Péricles tornarseá

o lugar de disputas apaixonadas em que se manifestamas diferentes d o x o i :   a tragédia, a comédia são a ocasião

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de dramatizar esses conflitos; a descrição de aconteci-mentos passados deixa de ser pretexto à poesia e permi-te apreender a diferença das civilizações, de confrontar,nos fatos, as opiniões dos políticos e dos chefes milita-res . A própria especulação muda de aspecto: não expri-mese mais poeticamente, nos poemas grandiosos, mas

essencialmente “dogmáticos” ; assume força argumentativa. Surgiu o diálogo, como expressão da luta dos inte-resses e das paixões das individualidades e das classessociais.

 Todavia, esse diálogo ainda não é troca ou discus-são; é confronto. Mais precisamente, se a d o x a  renun-ciou a essa certeza que a autorizava a não ver o outro,nem por isso renunciou a apresentar seu próprio con-teúdo como verdade. Nasceu a oposição da verdade aoerro, mas cada uma das d o x a s  julga que é a verdade.Ainda não se pergunta e não se admite ser perguntado:afirmase aquilo de que se está convencido em face deum outro que, por seu lado, está persuadido da exce-lência de suas “idéias” . A inquietação não leva ainda aduvidar de si: reconhece o outro, sem dúvida, mas logo

se dissipa apresentando como verdade determinada con-cepção do mundo. A técnica do discurso não consiste emsaber quem tem razão, mas de que maneira podese fazertriunfar sua “opinião” , o problema da justeza sendo igno-rado ou posto entre parênteses. O discurso dogmático,que está ligado às novas formas da civilização e que em -s i  traduz a falência da certeza, não se tornou ainda uminstrumento de pesquisas: continuou sendo uma manei-

ra de dizer. Mais precisamente ainda, a linguagem con-tinua sendo a linguagem do interesse e da paixão e suaforça persuasiva é posta a serviço daquele que compreen-deu que, na nova vida política, é um meio de triunfarainda mais poderoso do que no passado. Alguns sofis-tas, aliás, compreenderam isso admiravelmente, como severifica graças aos raros textos subsistentes e median-te concepões que lhes atribui Platão: entre as diversas

i e k n a i  graças às quais o indivíduo bem dotado pode de-senvolver seu poder e aumentar sua satisfação, a arte

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do discurso é a mais importante e é capaz, quase sempre,de substituir eficazmente todas as demais.

Pa ra - s i , cada uma das do x a s  se apresenta como ver-dade: qual, no entanto, dessas opiniões, é posse efetivado verdadeiro? A circunstância histórica é tal, na Gréciaclássica, que nenhuma delas pode pretender esse privi-

légio e é apenas paradoxo aparente afirmar que o “mi-lagre grego” e, em particular, a vontade de filosofia,foram engendrados pela própria confusão e por essa es-pécie de falsidade que caracterizam a situação helénicanos séculos V e IV. Os acontecimentos, com efeito, dãosucessivamente razão a cada uma das partes conflitan-tes e, no conflito que opõe a tradição ao progresso, aagricultura ao comércio e ao artesanato, a oligarquia àdemocracia, a natureza à história, a ordem dada à justi-ça desejada, Aristófanes a Hipérboles e a Cleon, Spartaa Atenas — esse acúmulo indicando a riqueza do pro-blema e de modo algum a pretensão de esgotálo — cadaopinião pode encontrar exemplos e argumentos que lhedão razão. O drama, aliás, é precisamente esse: Crítiasvê mais longe e com mais justeza que seus adversários

democratas; é ele, no entanto, quem morre revoltado emcombate absurdo e que, legitimamente, endossa a res-ponsabilidade da traição; Sócrates apreende genialmentea significação da tragédia política de Atenas e seus ata-ques contra a democracia permanecem irrisórios e esté-reis; que nos permitam mesmo declarar: Platão tornaplenamente inteligível a estrutura desse destino da “Gré-

cia da Grécia” e, no entanto, malogra em sua ação pes-soal e elabora somente soluções ideais. O devenir, con-forme sua necessidade, tece os fios de tal maneira quenenhuma d o x a  pode imporse como decisiva: cada umsente, em contato com o acontecimento, sua limitação esua particularidade, mas cada vim logo a domina poruma afirmação furiosa que sempre encontra no aconte-cimento uma prova que lhe basta. O interesse de cada

grupo social, de cada individualidade, pode, em últimaanálise, pretender a verdade, pois cada ação violenta,

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em seu tempo, soube triunfar ostentando argumentos darazão.

Desse excepcional encontro de circunstâncias nas-cerá o que se costuma chamar de filosofia. Os homensfalam e dizem, com habilidade, de acordo com seus dons,seus interesses e suas paixões; vestemnos de argumen-

tos e multiplicam os exemplos irrefutáveis: infelizmen-te, cada um desses homens sabe que sua fala persuasivapode ser interrompida bruscamente por um aconteci-mento irreversível, o ato de seu interlocutor que o mata(ou que nele faz nascer tal temor que prefere nada maisdizer). No começo, não o sabe bem: pensa que a novavida política confere ao discurso desinteressado uma es-pécie de imunidade; mas por que o adversário gago, de-sastrado na palavra ou, simplesmente mais forte, deterseia em semelhante aparência? O poder do discurso logomanifesta sua fragilidade: os processos se multiplicam,os banimentos e os assassínios tornamse mais numero-sos. Manifestando sua efemeridade, o discurso da d o x a   redescobre porsi o que já era em realidade: substitutivoda força ou meio de dissimular uma força insuficiente.

Desde então, falar, discutir, parecem brinquedos de pou-ca importância. Paralelamente, o absurdo da existênciahumana parece imporse: não só cada interesse é capazde encontrar os argumentos que o justificam, mas tam-bém, de acordo com as circunstâncias, cada um podetriunfar e impor pela violência seu ponto de vistaaos outros. Aristófanes traduz mais grosseira e mais

diretamente do que Sócrates essa perplexidade do cida-dão que assiste ao êxito dos indivíduos menos qualifica-dos e vê manifestaremse como justas as piores teses eas mais incoerentes. E o êxito final do Paplagoniano emOs Cava l ei r o s  revela o caráter irrisório de todo ato his-tórico que mergulha necessariamente no nãosenso esuscita quando muito uma interpretação cômica. Emoutra perspectiva, Tucídides descobre como único remé-

dio para esse doloroso absurdo a existência de um homemque, como Péricles, seria capaz de impor, pela irradiação

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de sua personalidade e uma série de felizes circunstân-cias, a ordem justa.

A lição é de um pessimismo apavorante: nada en-trou em lugar da antiga certeza, a não ser o jogo deuma violência cega que distribui suas provas ao acaso.A M o i r a   reaparece sob um aspecto ainda mais conster

nador, pois agora se sabe que nada preside o acaso a nãoser o jogo caprichoso de uma sorte reduzida à pura con-tingência. O ato filosófico, o de Sócrates, e principal-mente o de Platão, representa a vontade corajosa de sairdessa situação insustentável e de restituir ao homem aesperança de assistir ao êxito duradouro de uma açãosensata. Caberia estudar com precisão as circunstânciashistóricas que permitem a essa vontade definir seus finse realizarse numa obra; também caberia mostrar porqueessa vontade necessariamente malogra. Devemos con-tentarnos, aqui, em salientar os traços gerais da empre-sa filosófica nascente, traços graças aos quais será pos-sível elucidar a oposição da filosofia à d o x a . O primeiroato filosófico consiste precisamente em tomar consciên-cia da tragédia da existência histórica e recusar as so-

luções parciais até então satisfatórias: o “bom tempoantigo” de Aristófanes, o homem providencial de Tucídides, a “ boa vontade” de certos sofistas e o individua-lismo egoísta e gozador de alguns outros, a moderaçãoe a exaltação das virtudes tradicionais defendidas pelospolíticos representantes das classes médias, tudo isso érejeitado como insuficiente e, finalmente, como ingênuo.A experiência filosófica inicial é a da inanidade dessas

soluções: um olhar suficientemente amplo sobre a his-tória de Atenas e da Grécia durante essa cruel guerrado Peloponeso mostra que nenhuma delas é aceitável,nem mesmo a da violência, pois todo vencedor, pela pró-pria necessidade de sua vitória, determinase como ven-cido em potencial. A técnica que corresponde a essa to-mada de consciência consiste em i g u a l a r   todas as d o-  x o i , em colocálas lado a lado num diálogo que se recusa

a escolher qualquer uma delas. Desde então, no mo-mento em que cada uma afirma e desenvolve sua argu-

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mentação, vê a outra negála e achar argumentos eexemplos que a destróem. Sócrates não toma partido:não pode fazêlo, pois deveria escolher uma d o x a , e ne-nhuma é capaz de provar sua validade. Os diálogos cha-mados socráticos são um impressionante resumo dos ma-logros do pensamento grego durante o século V:as di-versas crenças que inspiraram os homens são relaciona-das de tal maneira que cada uma delas logo confessasua incerteza. Percebese, nessa perspectiva, uma pri-meira significação dessa g e n e r a l i d a d e  que se costumaatribuir à concepção f i l o só f i c a do mundo. E, inicialmen-te, a possibilidade de unir, não ainda numa totalidade,mas num conjunto, as diversas visões parciais, de modo

a mostrar sua parcialidade e a fazêlas destruirse mu-tuamente. No começo, nada mais é do que uma nega-ção utilizando como prova essencial a multiplicidadedas óticas individuais. Para que essa negação pudesseser efetuada, era necessário que o devenir histórico en-gendrasse, de um lado, essa multiplicidade; e, também,que as opiniões múltiplas se projetassem sobre o fun-do de uma experiência comum. As lutas sociais do sé-

culo VI, as guerras médicas e, principamente, o anta-gonismo de Sparta e Atenas, proporcionaram, ao queparece, esse horizonte único. O destino próprio da de-mocracia ateniense certamente contribuiu para enri-quecêlo. Contra as do x o i , invocando cada uma o teste-munho de um elemento desse horizonte único, o filóso-fo invoca o horizonte em seu conjunto; mais precisa-mente, na medida em que o invoca em seu c o n j u n t o e   

que esse conjunto é contraditório, mostra o absurdo dorecurso ao que se costuma chamar de experiência, poiscada um pode nela encontrar o exemplo que legitimasua crença.

Nesse nível, o progresso é considerável: cada d o x a   se apresentava imediatamente como a verdade e situa-va a outra no erro; agora, o simples fato de que sejamgrupadas em um discurso único e imparcial as múlti-plas opiniões basta para precipitálas todas no erro. Uti-lizando a incerteza real que faz reinar a violência his-

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tórica, o filósofo arruina a atitude mesma da d o x a  mos-trando a falsidade da opinião em geral. Esse, porém, éapenas o primeiro momento de sua tarefa; acontece quea exigência da certeza perdura, que o homem — e, con-seqüentemente, o filósofo também — quer saber o quese deve pensar e como convém comportarse para che-

gar à justeza e à felicidade. Resta que a inocência dacrença primitiva, que ignorava a oposição do erro e daverdade, não é mais praticável: e, doravante, a aboli-ção de todas as soluções aceitas revela a urgência emdefinir uma atitude graças à qual poderá esboçarseuma solução verdadeira. Ora, como irá, no começo, de-finirse o filósofo? Que elementos possui para respondera essa exigência de certeza? “Nada sabe”, segundo a

fórmula célebre; sabe apenas que os homens pensam sa-ber e se enganam; sabe, também, que os fatos que cadaum invoca para justificarse não são de modo algumdecisivos, tão grande é a variedade dos fatos e a tal pon-to o interpretálos depende da paixão. O único fato que,portanto, subsiste para o filósofo é a existência de umalinguagem que todos querem persuasiva e a multiplici-dade das d o x o i  opostas. Restam, em suma, o crédito emfavor da forma do discurso e a contradição que se ma-nifesta nos conteúdos dos diversos discursos.

Dessa extrema pobreza, o filósofo vai fazer uma ri-queza: e é para a estrutura discursiva da linguagemque visa persuadir, que vai apelar. Tendo feito surgiro erro da contradição, esforçase em construir o discur-so coerente, capaz de suscitar, pela exclusiva virtude das

palavras, e apoiandose em erros parciais, a adesão det odos os interlocutores sérios. A todas as crenças, subs-titui unicamente sua confiança no l ogos . Cada uma dasdoxas fala: esta define a coragem desta maneira; aque-la fornece da mesma virtude uma idéia diferente. A par-tir dessa oposição e dos exemplos que cada um empre-ga, é possível dizer o que é a coragem: a coragem é istoou  aquilo, segundo as d o x o i  ; isso equivale a dizer, uma

vez que ninguém pode impor sua concepção, que a co-ragem é isto e aquilo, quer dizer, que é ainda essa outra

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coisa que não é nem isso nem aquilo, mas que dá con-ta de uma e de outra: e essa outra coisa é o que a co-ragem é em ver d a d e  ou ainda, seu conce i t o . Não se tra-ta, pois, de modo algum, de uma tentativa de somaçãoque reteria o que há de comum nas diversas perspecti-vas: a experiência mostra suficientemente que seme-

lhante tentativa está condenada ao malogro; a ambi-ção é maior: consiste, graças à arte do diálogo, — adialética no sentido platônico — em, formulando asquestões adequadas, obrigar o outro, não só a confessara insuficiência de sua posição, mas também a descobriro enunciado verdadeiro. De fato, cada um, falando, co-nhecia o verdadeiro, mas, perturbado pelo interesse, de-le ze  afastava. E a técnica filosófica consiste em utili-

zar a preocupação de coerência daquele que fala pararevelar esta verdade: colocar em sistema as do x o i  é ar-ticulálas de tal modo que, no desfecho do colóquio, adefinição justa se imponha com nitidez a todos os inter-locutores de boa fé. Essa “concepção geral” está poisem relação dialética — no sentido moderno — com asvisões parciais: no momento em que as nega, formula

su a verdade e, por isso mesmo,

a verdade.

O triplo sentido do termo l ogos  resume essa dialé-tica capital que conduz da expressão imediata da cren-ça ao discurso filosófico. Enquanto pa l a v r a , o l o g o s   éantes de mais nada declarativo; manifesta o sentimen-to e designa um objeto sem inquietarse com sua jus-teza; é o fato da plenitude subjetiva que exterioriza suacrença e canta seu universo. Se alguma contestação sur-

ge, o l o gos se torna d i s c u r s o  : conhece sua verdade e, emface do erro do outro, argumenta e tende a fazer valerseu conteúdo como único admissível; é uma organiza-ção da paixão no seio da vida “política” . Todavia, a ex-periência revela a diversidade dos interesses e o fato deque cada discurso, parasi, é legítimo e, em si, errôneo:dessas disputas, ninguém sai convencido. Será precisodeixar de falar e entregarse à pura violência? Perdidaa inocência, será preciso admitir a barbárie como solu-ção única? O filósofo recusa esse caminho; se o homem

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que fala é capaz, às vezes, de convencer os outros, entãoa linguagem possui em si mesma as promessas de sal-vação: é preciso encontrar uma “arte” tal que esse po-der da linguagem se torne mais convincente do que apaixão e a violência, de tal modo que o l o gos se transfor-me em r a zão. O filósofo é aquele que consegue suscitar

a adesão do homem presa do interesse mostrandolhe,apenas pela linguagem, o que é verdadeiramente e dáa razão de suas palavras, uma razão ao qual o outro nãopode resistir: o filósofo é o dialeta — no sentido platô-nico — , aquele que sabe formular as questões e dar asrespostas convenientes.

Percebemos aqui a ligação existente, na noção defilosofia, entre a idéia de g e n e r a l i d a d e  e a de l e g i t i m a  ção. Uma concepção do mundo só pode pretender sergeral se for capaz de converter à sua perspectiva as vi-sões parciais, somente, portanto, se for capaz de dara razão de sua g e n e r a l i d a d e . É justo, conseqüentemente — e é incontestável — reclamar da filosofia que sejaoutra coisa além do desenvolvimento da crença, por maisrico de fatos que possa ser esse desenvolvimento, por

mais evidente que seja seu “êxito” . E, dar razão, legiti-mar, justificar — também se pode dizer f u n d a m e n t a r .  Está implícito no exercício da filosofia que nela se pro-cura evitar toda e qualquer postulação: a tal ponto queé desse modo exato que se distingue formalmente doexercício matemático cuja estrutura é hipotéticodemonstrativa: o filósofo não quer formular enunciado algumque não seja geral — no sentido em que acabamos de

definir esse termo — , isto é, que possa ser admitido portodo homem de boa fé, seja em que situação for. Deveseobservar, desde logo, que se trata, no caso, de um pro-grama ao qual a simples coerência do discurso não sa-tisfaz plenamente. Esse programa, podese afirmar queo pensamento filosófico, ao longo de sua história, esfor-çase efetivamente em realizálo com as armas, as pre-ocupações, os instrumentos que cada época lhe fornece;pois, afinal de contas, tratase sempre, para o filósofo,de construir um discurso tal que cada um que o conhe-

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ça possa nele encontrar os meios graças aos quais poderápensar com justeza e, ao mesmo tempo, viver na satis-fação.

Na origem, pois, generalidade, legitimação e aceita-bilidade podem ser equiparadas: o filósofo prova a gene-ralidade de sua concepção graças a um discurso que im-

plica a adesão de todo interlocutor de boa fé. Com apreocupação de coerência daquele que fala, obriga o ho-mem da d o x a  a renunciar à sua parcilidade e a substi-tuir sua visão abstrata por uma apreensão sistemáticae ordenada do real. O logos não é mais considerado ex-pressão imediata da crença nem uma t ék n e particular-mente cômoda: constitui o domínio no qual se constróio enunciado verdadeiro. Nele, e por suas virtudes pró-prias, a existência quotidiana se reflete e transformade tal maneira que desaparecem os absurdos e as am-bigüidades. De fato, à experiência irrisória e incoeren-te da vida imediata, substituise a experiência do rigorproporcionado pelo discurso que pretende ser realmen-te persuasivo. A formação do conceito correspondente aessa tentativa de dar à palavra tal consistência e soli-

dez que não permita a ninguém entendêla de outra ma-neira. Seria possível, sem dúvida, apresentar o signifi-cado da nascente empresa filosófica de outra maneirae opor, por exemplo, em perspectiva análoga, a dúvidaà reflexão, o sensível ao inteligível, o empírico ao racio-nal: essas são, no entanto, categorias muito elaboradase historicamente posteriores. Parece claro que a filoso-fia adquire sua fisionomia autêntica a partir do momen-to em que um homem se preocupa em falar não paraafirmar ou persuadir, mas para convencer, em organizarsua palavra de modo tão “verdadeiro” que ninguémmais possa acusálo de falar enquanto é ele próprio oupara si mesmo, mas, como seja que homem for — dignodesse nome (e a restrição tem importância na socieda-de grega) — falaria.

Foi necessário, no entanto, ao longo desta análise,todas as vezes em que era evocado o interlocutor do fi-

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lósofo, acrescentar que esse interlocutor devia ser hones-to e de boa fé a fim de que o diálogo tivesse sentido.Pode acontecer, com efeito, que o homem da d o x a   aoqual se dirige o filósofo se recuse a discutir com ele,que compreenda o perigo que representa para sua pai-xão a argumentação filosófica e que se afaste pura e

simplesmente pretextando precisamente a importânciadessa paixão ao lado da qual os exercícios verbais sãoapenas lúdicos. Nesse caso, o filósofo está desarmado.

 Também o está quando o homem da d o x a   admite con-versar, mas considera sem importância o fato de con-tradizerse ou de grupar experiências contraditórias emum todo. O filósofo é igualmente impotente se, em ní-vel ainda mais sutil, seu interlocutor declara falar ape-

nas por hábito ou polidez e sem que se deva dar o me-nor crédito ao que ele diz ou ao que não diz. Devemoslembrar aqui — depois de muitos — a importância ca-pital do final do Geo r g i a s , quando Cálicles afirma — com muito arrebatamento, mas também com astúcia — que continua a discutir para agradar Georgias, embora,para ele, o colóquio não tenha mais significação algu-ma1. E. Weil desenvolveu essa idéia com admirável segu-rança: basta remeter à sua demonstração2 e salientarcom ele que “o filósofo socrático” realiza seu propósitosempre que a d o x a   aceita a filosofia: se a recusa, ne-nhum recurso é possível. E a eventualidade extrema — a que doravante pesará sobre o desenvolvimento de todoo pensamento filosófico — é que a paixão, irritada pelaargumentação filosófica e pelo efeito qus produz sobre

os ouvintes menos avisados, tome a decisão de negar afilosofia: a marte de Sócríates assinala irremediavel-mente os limites do discurso convincente.

1 ‘"Calliclès: Saiba, além disso, que tudo aquilo que V. me diz m#é completamente indiferente! Foi para agradar a Georgias que apresenteia V . essas respostas!” Georgias, 505 c.

2 Lógica da filosofia  e, em particular, a Introdução, A, reflexão sobre  a Filosofia, II, o Homem como violência.

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Para afastar a eventualidade de uma condenação,o filósofo pode evidentemente manterse em silêncio erenunciar a convencer seus concidadãos: na intimida-de de si mesmo, fruirá a satisfação proporcionada peloconhecimento do que é. Infelizmente, essa solução é, defato, impraticável: a filosofia, nascida do diálogo, não

pode renunciar a convencer sem logo perderse e se cor-romper. Revelando a parcialidade das diversas doxo i , o  filósofo visa, entre outros fins, tornar manifesta a to-das a boa organização política, a que permite a cada um,conforme sua natureza, obter um contentamento dura-douro: entre os conceitos que procura definir em verda-de, há o da justiça e, entre as condutas que tenta de-terminar, há a conduta justa. Desde então, o filósofonão pode deixar de pretenderse justo: e como o seriase vive na Cidade injusta? Como escapar da desonesti-dade se participa, enquanto cidadão, de açõss imorais?O exemplo mostra que a melhor natureza se corrompenuma ordem política submetida às flutuações e às de-sordens da d o x a :  Alcibíades, o mais bem dotado dos ho-mens, traiu sua pátria; Crítias pereceu, sedicioso e de-

sonrado. Sócrates não pode permanecer siencioso: ca-landose, aceitará, sem dizer palavra, a violência dos ou-tros, e então cairá inevitavelmente na imoralidade. Nãohá “torre de marfim” para o filósofo: é um d a ím on queo impele a lutar contra as visões parciais e errôneas econtra a violência, pois somente na medida em que rei-nar a justiça poderá filosofar com a segurança de alcan-çar o conhecimento verídico e o comportamento do sá-

bio. Para ele, a alternativa não está entre a palavra e osilêncio, mas entre a palavra e a corrupção, entre o ris-co da morte e a imoralidade.

Descobrir o conteúdo dessa alternativa, é revelar aimplicação necessária existente entre o exercício da fi-losofia e o ato pedagógico e político. Seria relativamen-te fácil mostrar como, no sistema platônico, as três ta-refas, filosófica, política e pedagógica, se organizame permutam constantemente seus fins e seus interesses:a estrutura da R e p u b l i c a  testemunha sua estreita liga-

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ção. Sócrates morreu em uma cidade injusta porquequis; por ter pretendido definir a justiça: importa dora-vante modificar a ordem política, a fim de que o filóso-fo possa viver permanecendo filósofo. Tratavase, inicial-mente, de estabelecer em lugar das desordens do dis-curso uma palavra coerente; importa, agora, lutando

contra as desordens políticas, assegurar a sobrevivênciadaquele que se recusa a contradizerse. A própria exis-tência do filósofo tornase aquilo mesmo que a filosofiapõe em jogo. Logo, porém, o empreendimento manifes-tase difícil e cai numa espécie de círculo vicioso: paraque o filósofo viva, é preciso que a justiça reine; mas,para que isto seja possível é necessário que os homensacreditem na filosofia, que já sejam filósofos; ora, se

assim fosse, a justiça já reinaria. Ou ainda: o discursocoerente, capaz de promover a boa ordem, o que garan-te a segurança do filósofo, não pode só ser ouvido nummundo no qual o filósofo, porque nele se acredita, já temsua segurança garantida. Na Cidade injusta, a pedago-gia filosófica é ineficaz: aos que são dominados pela pai-xão apresentase como um jogo estéril ou um disfarcedo interesse. E não há meios, pelo discurso, de rompero reino da violência que se engendra a si mesma.

Ainda uma vez, tendo compreendido o perigo que oespreita, o filósofo se acha desarmado: sua ação, queestá toda na palavra, achase condenada antecipada-mente ao malogro. Sem dúvida, pode esperar ou confiar:esperar que uma cidade apareça, na qual seus dirigen-tes compreendam a filosofia; esperar que o acaso faça

nascer reis filósofos ou filósofos reis. Essa é uma soluçãobem aleatória que somente uma crença infundada — uma crença do tipo da d o x a  — pode entreter. Não res-ta, pois, senão a ação propriamente dita, a que não he-sita em recorrer à violência. Entre a violência do apai-xonado e a do filósofo que se tornou político, há sem dú-vida uma diferença: a primeira é cega, a segunda é ilu-minada pelo l ogos . Mas, não será isso uma espécie de

malogro, uma confissão da importância do discurso emexistir por si mesmo como discurso coerente? Na reali-

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dade, esse malogro teria pouca importância se fosseacompanhado de um êxito efetivo, se o filósofo pudesseinstaurar — mesmo pela violência — a ordem filosófica(voltaremos a essa questão, precisamente, a propósitodo marxismo), pois seria capaz, em seguida, de criar ascondições que lhe permitiriam fazerse entender pelos

outros e justificar sua ação. Mas, o fato é, queremos di-zer, éh is t ór i co , que o filósofo, quando tentou o caminhoda atividade política ativa, pouco tempo após o nasci-mento da filosofia, não logrou êxito: nenhum sobera-no fez de Platão seu primeiro ministro e a aventura naSicília terminaria em malogro. Por motivos históricos,a Calípolis permanece uma utopia: depois da morte deSócrates, esse malogro constitui o segundo acontecimen-

to que vai contribuir para dar à filosofia seu aspecto tra-dicional. Desarmada no nível da palavra, a filosofia évencida no campo da ação. Restalhe calarse ou espe-rar a morte sem significado. Restalhe também tornarse retórica e renunciar a si mesma ou aceitar esse he-roísmo da paixão que é sua própria negação.

 Tais eventualidades são, de fato, irrealizáveis: a

exigência da justificação surgiu e as condições que afizeram nascer perduram. A incoerência das ãox o i  sub-siste e a incapacidade da violência em resolver os proble-mas humanos é tão aguda como sempre. A recusa da fi-losofia é possível; enriqueceuse mesmo com argumen-tos novos e persuasivos: mas a idéia de um saber quesuperasse as “opiniões” unificandoas, a idéia de umaconduta que levasse em conta a violência sem a ela re-

correr como prova, permanecem. Mesmo aqueles que re-nunciam ao ato de filosofar têm escrúpulo em repudiara palavra que parece carregada de significação mágicae perturbadora. Finalmente, a morte de Sócrates revelase, contraditoriamente, normal e injusta, e o malogrode Platão mostra, ao mesmo tempo, a ingenuidade e a

 justeza da ambição filosófica. Um novo caminho estáaberto — que o pensamento platônico impelido por sua

necessidade própria já havia amplamente utilizado — e que será durante longos séculos o caminho real da fi-

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losofia: o que corresponde a consolidar a filosofia con-tra a d o x a , o que pretende dar a prova da inanidade dapaixão, o que tenta fundar a exigência de um funda-mento com as próprias provas do interesse e do desejo.Essa procura entusiástica e todavia ordenada de umaordem de fato que esteja na raiz do direito, essa vonta-

de jamais desarmada de erguer contra a “ lucidez” docínico ou a “força” do coração, um mundo efetivo queprove a estupidez da violência imediata e a inanidadeda reivindicação individual determinam exatamente es-se movimento que leva da filosofia nascente à metafí-sica, de Platão a Aristóteles, e daí a tudo o que se cos-tuma chamar a f i l o so f i a p er en e, até Hume e Kant. A con-denação de Sócrates, de um lado, e, em outra medida,

o malogro político de Platão — acontecimentos que, re-petimos, são o fruto do devenir histórico — compelem,de certo modo, o filósofo a uma vontade nova: tratavase, antes de mais nada, para ele, de utilizar o crédito deque desfruta o discurso coerente para determinar con-ceitos que permitam pensar o real e a conduta com jus-teza; à luz dessas experiências dolorosas, verifica entãoa insuficiência da palavra, mesmo justa: a “maldade”de Cálicles, o “bom senso” de Anitos, a “ininteligência”de Dionísio tornam ineficaz a “demonstração” filosó-fica. E a infelicidade é que os fatos, em sua crueza, dãorazão — uma razão fundamentalmente não razoável — a esses adversários da filosofia. O ser está de seu lado,com suas ambigüidades, e não do lado do discurso bemorganizado, não do lado do diálogo entre pessoas de boa

fé. O l o gos mostra que é, de fato, o que era aos olhos deseus detratores: um divertimento inútil e, em todo ca-so, perigoso para aquele que o pratica. A lição do realnão dá razão ao filósofo e o filósofo sabe que tem ra-zão: se a vontade filosófica não fosse justificada, entãohaveria apenas a violência e a desordem, nem mesmo osilêncio, mas o discurso utilitário. Todavia, um recursoé oferecido pela necessidade própria da reflexão que anecessidade histórica, aliás, torna efetivamente viável:a que consiste em mostrar que o mundo que renega a

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filosofia não é o mundo verdadeiro, mas uma ilusão, umaa pa r ên c ia .

A exigência de ordem, a recusa da contingência edaquilo que os ensaístas contemporâneos chamam deabsurdo, levam os filósofos a legitimar, não mais ape-nas logicamente, mas também ontologicamente seu dis-

curso. O que dizem, não é a obra de uma palavra queirrisoriamente contradiz o mundo, é a revelação domundo real, que não se percebe imediatamente, masque, à luz da reflexão e para a reflexão, existe muitomais do que o mundo dado. Desde logo, o filósofo deixade ser uma simples subjetividade que, em virtude de umam a n i a  ou de um d a ím on , exprime seu desacordo com asmaneiras de viver e de pensar da d o x a :  tornase o intér-prete fiel do que é verdade e escapa à maioria. Como sa-lientou admiravelmente E. Weil — em cujo pensamentoesta análise repousa constantemente — , ganha o pen-sador por não poder ser contestado (ou condenado) a justo título: se algo deve ser culpado, não é este ouaquele homem, mas o próprio ser3. Tratáse, evidente-mente, de um subterfúgio: mas é importante e susten-

tou durante muito tempo a vontade do metafísico; Aris-tóteles, exilado e perseguido — ao menos segundo a le-genda, que é bela e significativa — pode invocar não oque ele pen s a , mas o que é: pode designar o o b j e t o  quelhe impõe dizer o que é; e Platão, antes dele, havia in-ventado os e idos , graças aos quais Sócrates, seu portavoz, sai da palavra para entrar no domínio sólido e re-

confortante daquilo que é em realidade. O caráter pleo

3 “Agora, a contradição ameaça o homem que, representante de to-dos os homens, fala oonsigo mesmo, não para estar de acordo consigomesmo, mas para estar certo de que está de posse da verdade sobreo que é: é preciso que não haja contradição entre o que o homem dize a própria realidade, é preciso que o que diz não esteja em contra-dição com o que encontra, com o que lhe acontece, com o que observa.

Em uma palavra, seu discurso deve dar conta do mundo” . E. Weil, op. cit. Introdução, B, Reflexão sobre a filosofia, II, O discurso do indi- víduo e do ser, pp. 2930.

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nástico desta expressão deixa de ser chocante se noslembrarmos que a situação histórica permitira aos antifilósofos desarticular a realidade e a verdade, o fatoe a expressão coerente do fato, a “ontologia” e a lógica.A vontade filosófica, atribuindose por tarefa a revelaçãodo que é verdadeiramente, esforçase em fazer desapa-

recer esse hiato, em reconciliar o discurso e o real, istoé, em revelar o real nãocontraditório que correspondeà expressão nãocontraditória.

Além dessa aparência, que se chama de mundo, hápois outro universo do qual a filosofia é conhecimento.A generalidade permanece generalidade d a  aparência,mas só é tal graças à mediação desse outro dado ime-

diato. Mais precisamente, o dado, que não se dá, cons-titui a generalidade desse dado que se dá e permite pen-sálo com justeza, segundo a generalidade. A legitima-ção do fato não está mais apenas no conceito, está nopróprio objeto que confere ao conceito seu peso e suaautoridade e que se pode, por exemplo, chamar de Idéia.A reflexão filosófica se desdobra: é inicialmente refle-xão do fato no discurso, em seguida reflexão do discur-

so em um fato superior e definitivamente probante. Apa-rece, assim, esse mundo das essências que, pela media-ção do logos , constitui a verdade da existência. O mo-vimento de pensamento que conduz dos frutos ao con-ceito de fruto e daí a esta entidade: o Fruto, por maisaberrante que pareça, é o resultado de obstinada tenta-tiva de anular a violência cínica e os ímpetos descon-

trolados do coração. O que se costuma, perpetuando um jogo de palavras cuja importância já se salientou váriasvezes, chamar de metafísica, cria um alémmundo on-de as ambigüidades se tornam diferenças, os antagonis-mos oposições claras, a desordem organização. Esse cal-mo universo não é uma dublagem: é uma concretiza-ção, ou ainda, um produto da reflexão sobre este mun-do que é, de fato, inconcebível. Nele a filosofia encon-tra a satisfação, as razões para recusar definitivamenteas d o x o i  e também um sério motivo para sua coragem.

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Agora, a segurança foi obtida: Sócrates não é um insen-sato, nem um criminoso; falava em nome de uma rea-lidade que os outros não viam, mas que existe; condenálo, não é triunfar sobre um homem, mas querer ser cegoe insensato.

 Todavia, o filósofo deve ainda p r o v a r   a realidade

desse alémmundo, pois, até agora, é o único a conhecersua existência, a saber que é em si. Para os outros, aIdéia (ou a Essência ou a “verdadeira e imutável natu-reza”) não se dá: permanece uma invenção, produto deuma reflexão vaticinante. A tarefa filosófica consiste,portanto, de um lado, em tornar manifesto o caráter fenomênico deste mundo e, de outro, em fazer aparecero que não se dá imediatamente. Tratase, em suma, de

uma espécie de troca; o que é real para a maioria deveconfessar sua irrealidade e o que não se apresenta comoreal deve provar sua realidade; o se r -aí será revelado co-mo falsoser, o ser que não está a í como ser verdadeiro.Em outras palavras, o empreendimento filosófico con-serva seu caráter pedagógico: importa l e v a r   aquele queé ainda uma cr i a n ça a reconhecer a puerilidade de suascrenças e a viver em contato com o mundo sólido e cla-ro das essências. O acento, porém, se deslocou: à educa-ção do logos , convém agora atribuir um fundamentoontológico; é a alma que se deve converter a fim detornála capaz de perceber o que está oculto. A procurada generalidade transformase em esforço de revelação:modificação da alma, que descobre seu vérdadeiro poder,e revelação do ser efetivamente real. É claro, a partir

daí, que essa educação se acha compelida a apresentaras provas de sua legitimidade e de seu sentido no pró-prio seio da existência quotidiana e, em conseqüência,a encontrar no seraí as manifestações da essência. Atroca tornase uma dialética: confessando sua inessencialidade, o ser fenomenal deve negarse e fazer conhe-cer o que é. E, ao mesmo tempo, o alémmundo devemostrarse como aquilo de que a aparência é aparência.

Entre o falsoser e o ser, não poderia haver exclusão nemmesmo corte — ao menos no início. Nesse sentido, a fi

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losofia exclui o misticismo que, desde logo, se acha emcomunidade com o ser e, assim, se afasta do quotidia-no como de um dado, por natureza, inessencial e des-provido de importância. Em outros termos, para o filó-sofo, algo do ser já deve estar na aparência, pois, casocontrário, restaria para ele o desespero silencioso neste

mundo e, no além, a fruição silenciosa; inversamente,o ser deve apresentarse como o ser da  aparência, senão,de acordo com a observação de Aristóteles, ele seria, masinutilmente4.

O problema da prova, do fundamento, achase ago-ra delimitado de modo muito mais preciso; tratase dedescobrir, a partir da diversidade, dada imediatamente,não só a prova de que há o verdadeiro, mas ainda o meioou o caminho que permitirá conhecer o que é verdadei-ro. Da contradição e da confusão dos fenômenos, con-vém extrair os traços que são ao mesmo tempo sinal emanifestação da essência, e tirar do desespero ou dotédio quotidiano razões de esperança e de satisfação.Esse esforço alimenta a vontade metafísica de Platão eAristóteles a Descartes e os cartesianos. Existe, sem dú-

vida, no seio dessa vontade, grande variedade de con-teúdos; sem dúvida, a época e o gênio de cada pensadortrazem grande diversidade de preocupações e de solu-ções. Tratase sempre, no entanto, de fazer ver o quenão é visto e de revelar o objeto estável e “lógico” doqual o discurso filosófico é a expressão fiel; insistamos,tratase de revelálo àqueles mesmos que a animali-dade, a paixão, o interesse, a tradição ou a ignorância

mantêm no seio de uma vida falsa e geradora de infe-licidade. Essa apresentação da tarefa metafísica poderáparecer estranha: o positivismo habituounos a consi-derar a “realidade metafísica” como o produto inútil emalsão da imaginação e do medo; chegouse mesmo asustentar, interpretando o marxismo de maneira sim-plista, que ela representava como tal um instrumento

4 Cf. Metafísica, A 9, 990 e ss.

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de opressão. É verdade que o débil desenvolvimento dastécnicas de produção e a falta de consciência de classedaqueles que trabalham efetivamente tornam possívela atualização da vontade metafísica; é verdade, tam-bém, que a obra do metafísico é utilizada pelos que sebeneficiam com a afirmação de um mundo diferente e

mais verdadeiro do que este mundo em que sofremos.Mas, nem por isso é justo fazer da metafísica um p r o  d u t o d i r e t o   da fraqueza humana ou do interesse dealguns em explorar a maioria. Ao contrário, o metafí-sico se apresenta, inicialmente, como aquele que se es-força em responder, pela revelação de uma realidadeoculta, à pergunta do homem da d o x a  que sofre e per-cebe confusamente que existe outra coisa além destadolorosa irrisão; é aquele que recusa os horrores da Guer-ra do Peloponeso, que se revolta com a sorte de certoscidadãos, que quer “reabilitar”, por uma demonstraçãode fato e não pela retórica, o cientista Galileu, e aqueleque, prudente e sorridente, incorre na condenação detrês Igrejas. A tentativa de constituir um discurso coe-rente visava contraporse à violência ingênua ou cíni-

ca; seu malogro de fato leva a constituir o universo dasessências: que essa solução não seja a boa, isso não querdizer que haja em sua raiz qualquer intenção delibera-damente má. Uma questão estava proposta, que o meta-físico resolvia com as armas que lhe eram oferecidas (ea solução platônica dura até Spinoza e Leibniz). Na ori-gem da vontade metafísica, há a procura de uma ra-

zão: a razão dada não é certamente satisfatória; nãopodia ser, aliás; resta que a busca do fundamento nãoé de modo algum insensata.

A rigor, a metafísica, nessa perspectiva, é, por defi-nição, racionalista. Assinalaremos, nas páginas seguin-tes, os limites dessa racionalidade. Nem por isso o me-tafísico deixa de estar animado pela intenção corajosade dar razão e de escapar, pela mediação do saber (pos-suído ou apenas indicado), ao jogo consternador dosimpulsos animais, das j&^ivaÇõe^ psíquicas ou das “li-

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vres escolhas” , termos aos quais finalmente se reduz a“racionalidade” do universo na ótica do nãofilósofo.Para empregar palavras mais modernas, poderíamos di-zer que o filósofo — enquanto se torna metafísico — recusa a contingência do pormenor e procura uma g e n e r a l i d a d e  precisamente, graças à qual o que parece

ahstrato, separado, encontra finalmente seu lugar noseio da organização do mundo efetivamente real. Ora aoperação metafísica simplifica arbitrariamente sua ta-refa rejeitando no inessencial o que a ela se apresentacomo “sem razão” ; ora quer descobrir nos fatos contin-gentes algum indício revelador (ou que assinale) a ra-zão; ora, em fase de maior elaboração, utiliza o própriofato da contingência para postular a necessidade de

uma razão. Em todos os casos, importa ao metafísico nãoabandonar aquilo que se dá ao puro fato de darse e deir do “mostrado” à demonstração: a seus olhos, nada doque é justo — no duplo sentido da justeza e da justiça

 — se não pode, ao mesmo tempo, dar conta do própriofato dessa existência. É importante salientar essa “na-tureza” da metafísica se quisermos compreender seu ma-logro. Pois é precisamente na medida em que essa pes-quisa da razão última se converte em injustificável pos-tulação que o empreendimento metafísico confessa suaimpotência: se chega a bom resultado é por deficiênciade seu poder e não por desfalecimento de sua vontade.Platão e Spinoza continuam a dar exemplo de racionalismo, mesmo que os tipos de racionalidade por eles pro-postos fossem a prova de seu caráter desarrazoado.

O grande problema da metafísica é, pois, o de des-cobrir a s ubs tânc i a . Há sempre grande dificuldade, semdúvida, em utilizar termos como Essência, Idéia ouSubstância; sua distinção é imprecisa e suas significa-ções são numerosas. Resta que a vontade do metafísico

 — desejoso de fundamentar uma predicação absoluta-mente legítima e de assegurar uma conduta coerente — esforçase por distinguir entre o acidental e o substan-

cial, entre o ser provisório e fluido e o ser constante esólido. Tratase, para o metafísico, de fazer ver a pouca

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importância daquilo a que a maioria atribui interesse eo caráter decisivo da realidade que só ele conhece. A di-ferença entre os metafísicos não é diferença entre asvontades, mas diversidade entre os tipos de separaçãoque introduzem entre o essencial e o inessencial. O quedistingue Aristóteles de Platão, Leibniz de Descartes,

não é a oposição das intenções mas, inicialmente, o con-teúdo que atribuem à substância, não a maneira pelaqual a definem (formalmente), mas o modo pelo qualpreenchem essa definição. Isso permite compreender, emparte, porque, impelido pela necessidade interna de suaprópria história, o pensamento metafísico acaba porpreocuparse principalmente com as diferenças existen-

tes entre as essências, isto é, a empenharse em tornarclara a estrutura do conteúdo do ser verdadeiro, muitomais do que a significação de sua vontade e da relaçãoque mantém a essência e o seraí. E o motivo pelo qual,também, é fácil — esquecendo sua origem — acusálade sutilezas excessivas: na verdade, cada época — deacordo com sua problemática política e moral, seu ní-vel técnico e científico — , cada pensador — de acordocom seu gênio — trazem às questões propostas por Pla-tão novas respostas, elaboradas sempre, porém, na mes-ma ótica: qual deve ser a substância, o essencial exis-tente, para que, revelada, essa substância permita umdiscurso coerente e uma conduta satisfatória e mostrea insuficiência das do x o i   e dos comportamentos que aelas se ligam? Como deve ser essa substância para que

se imponha como verdade do mundo da paixão e do in-teresse, quer dizer, como sua negação e seu fundamen-to? E posteriormente: qual deve ser a ordem das essên-cias para que seja conjuntamente ordem emsi e reor-ganização da aparência, quer dizer, explicação da de-sordem?

É evidente que o pensamento metafísico, ao longo

de sua evolução, nem sempre foi capaz de realizar posi-tivamente sua vontade. Aconteceulhe, por motivos que

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a história da cultura pode estabelecer, malograr, nãodescobrir a realidade verdadeira e isso apesar de suaesperança e de sua coragem. O resultado desse malogroé o que se chama de atitude cética, que se assemelha àdo cínico ou do ingênuo que permaneceu no nível dad o x a , e o ceticismo passa muitas vezes por uma antifilosofia. Essa identidade é apenas superficial. O cético,como o filósofo, e na mesma perspectiva metafísica, pro-cura o ser substancial; essa procura, porém, não chegaa resultado algum: em lugar da clara solidez da essên-cia, é o vazio da imaginação que se apresenta e a deses-pera. A partir daí, o único existente com o qual se podecontar é a aparência contraditória e confusa. Tudo sepassa como se a tomada de posição antifilosófica fosse

 justa; de fato, é antes  j u st i f i ca d a . Mais precisamente,o cético não parte da reprovação da metafísica: pro-curando uma razão, encontra a ausência de fundamen-to. Se encontra o homem da do x a , é porque lhe dá r a zão  

e não porque participe de suas certezas. Da atitude me-tafísica, só pôde guardar a forma à qual não conseguiu

dar conteúdo: restalhe calarse, rir ou manifestar comdesespero seu malogro. E mesmo a incompreensão dessasituação dolorosa: filosófica em sua forma, e antifilo-sófica em seu conteúdo, que permite o desenvolvimen-to dessas pobres “refutações” de acordo com as quais oceticismo se contradiria pois demonstra a inanidade detoda demonstração e estabelece a verdade da nãoverda

de. Semelhantes críticas ignoram simplesmente que oceticismo é o resultado de um movimento e que, se hácontradição, está entre termos sucessivos e não justa-postos: animado, i n i c i a l m e n t e , pela vontade de saber,o cético se choca em seg u i d a   com uma impossibilidadeque julga definitiva. A rigor, se nos colocamos, comoconvém, no nível da vontade, o cético é tão metafísico

quanto o que se costuma chamar de dogmático: é ummetafísico que não teve êxito.

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O pensamento metafísico procura a Substância. Todavia, o problema das provas que é capaz de apresen-tar permanece urgente e intato. O discurso coerente

não basta para suscitar a adesão de todos; precisa mo s t r a r  alguma coisa; mas, o que deve mostrar não é o quese mostra imediatamente. Como provar, então, que o serrevelado é o ser verdadeiro? É nesse nível, precisamen-te, que se define o malogro da metafísica; é aí que en-contra sua refutação efetiva. Se considerarmos as diver-sas doutrinas metafísicas, de Platão aos cartesianos,perceberemos que á prova produzida, com matizes e

modalidades diversas, é sempre do estilo da revelação.O pensador, para tornar incontestável sua doutrina efazer aparecer o conteúdo da realidade verdadeira, ape-la sempre para alguma coisa que parece a percepção.A n oési s platônica, o ato do nous po i e t i k ós , a f a n t a s i a   k a t a l ept i k é, os diversos tipos de i n t u i t u s  do cartesianismo, são, de certo modo, tomadas de contato direto como essencial existente; são meios de apreensão que não seoferecem a não ser após o esforço de mediação filosófi-ca. Mas, a posse do ser é análoga, em sua estrutura, àposse do fenômeno no nível da percepção. Há duas ma-neiras de ser: uma fenomênica, à qual corresponde umconhecimento sensível e um saber enganador, e outra“essencial” , a que corresponde o conhecimento filosóficoe um saber legítimo. E assim como a segunda não passa

da primeira invertida, assim também a apreensão daessência é da mesma natureza da apreensão do dadoimediato, embora afetada de predicados contraditórios.À intuição sensível e às suas modalidades, que alimen-tavam as certezas da d o x a , substituise a intuição espi-ritual graças à qual se atualiza a vontade metafísica. Adescrição dessa intuição é muito importante e se tornacada vez mais rica na proporção das próprias dificulda-des que suscita: isso permite compreender porque a teo-ria do conhecimento assume importância cada vez maior

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na elaboração da metafísica, porque o problema da na-tureza dessa essência, que é a alma, apresentase de mo-do cada vez mais preciso. Percebese melhor, também,porque a metafísica é necessariamente espiritualista:precisa supor que um existente possui um poder de co-nhecimento nãosensível graças ao qual a essência se

tornará manifesta, poder que esteja aí, embora não ime-diatamente utilizado. Basta, para convencerse dessanecessidade, lembrar as contradições e as dificuldadesque encontra a metafísica materialista (no sentido emque esse termo se opõe não à idealista, mas à espiritua-lista), contradições e dificuldades tais que delas o espi-ritualismo facilmente triunfa.

A metafísica, em última análise e se considerarmosas coisas de modo muito geral, apela pois para a evi d ên c ia . O movimento de legitimação, que a levara da defini-ção do discurso coerente à procura de seu fundamentoontológico, a conduz a determinar a maneira pela qualesse ser é conhecido em verdade. A procura do famoso“ critério da verdade” termina por essa afirmação de quea realidade autêntica se dá àquele que quiser fazer o

esforço de voltaxse para ela e isso porque o homem pos-sui por natureza o que é necessário para apreendêla.O fundamento último da ciência filosófica é, para o me-tafísico, o ato mesmo de ciência do filósofo que vê cla-ramente o que é (mesmo que fosse incapaz, como Pla-tão, de fazer corresponder a essa apreensão do que é,no mais alto grau, um discurso mais do que sugestivo).Assim, a metafísica é teórica — no sentido etimológi-

co — : sua pedagogia tem por fim primeiro (primeiro,pois não lhe é difícil utilizar em seguida seu saber emalguma tarefa prática, moral ou política) permitir acontemplação do autenticamente real, uma contempla-ção que produza a clareza na alma e acarrete imedia-tamente sua adesão. Todavia, que diferença há entre o“ estado de alma” do homem da d o x a  e o do metafísico?

O primeiro, dirseá, é um estado de simples certe-za ao passo que o segundo é verdade, assim como o ates-ta o sentimento de evidência (ou de presença, ou de sa-

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tisfação, ou de plenitude). Essa diferença, no entanto,é percebida apenas pelo metafísico; para aquele que per-maneceu no nível da d o x a   (ou para o observador “ex-terior” ou “imparcial” , para o psicólogo), não é de mo-do algum decisiva: pois essa obrigação de aderir eletambém a sente. À experiência da mediação operada pe-

lo metafísico, oporá sua experiência ativa da vida. Sem-pre lhe será fácil voltar contra a argumentação do fi-lósofo uma argumentação análoga: dirá que o pretensoser verdadeiro é um produto da imaginação, que a es-sência é aparência. E cada um só terá como prova ace r t eza  que experimenta. Teremos oportunidade, emtrabalho mais extenso e mais fundamentado historica-mente, de mostrar como os diversos sistemas metafísi-

cos esforçamse por legitimar a doutrina da evidênciaque adotam sem conseguilo inteiramente. Poderíamosevocar com precisão a acusação formulada contra Des-cartes de fazer um círculo quando fundamenta o valorda evidência; mostraríamos facilmente que o cartesianismo — como todos os sistemas — deve aceitar essecírculo ou reconhecer a validade absoluta de um i n t u i -   t u s  que não encontra outro fundamento além de simesmo. O problema seria, sem dúvida, menos simplespara Aristóteles ou para Leibniz que se esforçam pre-cisamente por atenuar as dificuldades apresentadas pe-lo “ intuicionismo” platônico ou cartesiano: veríamos,no entanto, que, finalmente, é sempre a p r esença do es-sencial que serve de legitimação última.

Sem dúvida, o metafísico poderá ainda afirmar que,

contrariamente às d o x a s  variáveis e múltiplas, o saberfilosófico é único e estável. Infelizmente, o pensamen-to metafísico definiu, ao longo de sua história, o ser es-sencial de tantas maneiras diversas que é impossívelaceitar essa resposta. À multiplicidade das d o x a s  corres-ponde, de fato, a multiplicidade das doutrinas metafí-sicas. Em última análise, nada mais resta que permitadistinguir fundamentalmente a opinião da filosofia.

Assim, a recusa da opinião e o desejo de instaurar umsaber legítimo para negar e superar a certeza dada

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levam a atribuirse a certeza. A vontade metafísicaqueria legitimar o discurso coerente, e o fez descobrin-do o universo das essências mas, quando lhe foi neces-sário, diante da incompreensão da antifilosofia, provarque esse universo das essências é o único que autorizaa fundar o saber verdadeiro e a conduta conveniente,

só pôde apelar para a intuição (espiritual ou intelec-tual), para a experiência (metafísica), quer dizer, parauma referência do tipo daquela que a opinião utiliza-va. Negando o conteúdo da do x a , não pôde a metafí-sica desprenderse de sua forma. A vontade metafísicamalogra, não porque procure um fundamento, masporque não consegue apresentar um que seja efetiva-mente aceitável; sua vocação, que era de nada admitir

que não fosse legítimo, convertese, irrisoriamente, nu-ma afirmação que ela declara legítima porque não che-ga a legitimála.

Um único dos “sistemas” metafísicos parece tertomado plena e corajosa consciência dessa dificuldaderevelada pelos temperamentos diferentes de Kant e deHegel: o de Spinoza. Não há, em sua perspectiva, pro-

blema de legitimação. Enquanto verdade e admissãoda metafísica, o spinozismo situase imediatamente naesfera do legitimado. Não só o ser essencial se dá, masse dá enquanto dado. Tratase, simplesmente, para ofilósofo, de saber: o problema da justificação desse sabernão é pois decisivo, na medida em que o justificado seapresenta como tal na totalidade orgânica de suas de-terminações. É admirável que cada uma das partes da

Ét i ca comece por uma série de axiomas e de definições:encontrase aí como que uma afirmação grandiosa ealtiva da dificuldade, acompanhada pela certeza de quenão é possível deixar de aderir ao conteúdo da doutrina;a exposição m o r e g eom et r i c o  é por assim dizer o desen-volvimento dessa certeza. Resta, no entanto, uma difi-culdade dirimente: mesmo que aceitássemos em sua to-talidade o spinozismo, mesmo que encontrássemos em

cada momento do desenvolvimento uma razão para con-cordar, subsistiria uma questão que o sistema não per

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mite resolver universalmente. Essa questão pode serassim formulada: por que Spinoza é o homem que soubeentrar em contato imediato com o Ser? Assim, o maisadmirável produto da vontade metafísica, revela o limi-te último do esforço de legitimação tal como é conce-bido pelo metafísico: mesmo que nos colocássemos ori-

ginariamente no Absoluto e recolhêssemos o assentimen-to universal, seria ainda necessário mostrar por que oAbsoluto se dá dessa maneira, por que é relativo, pode-ríamos dizer, parafraseando a bela frase de Hegel.

Revelase, pois, a metafísica, como uma d o x a  de tipoespecial que tampouco é capaz de provar a autenticida-de da “Substância” quanto a opinião é capaz de provaro valor da “aparência” . Vontade em sua origem e for-

ma, manifestase desde logo como expressão de certacrença, a da elite, crença daqueles que o devenir, deacordo com seu curso próprio, coloca em situação tal quelhes permite apreender a insuficiência das crenças da-das, embora nem por isso sejam capazes de elaborar umsaber efetivo. Eis por que a metafísica é utópica: nãoaceita a desordem atual; vê que há uma ordem a pro-

mover; mas, afinal de contas, não pode provar que suaordem é a boa. A razão profunda é que não passa danegação pura e simples da d o x a :   qusria repelila; nãopassa de sua contradição abstrata. Seu esforço para en-contrar, naquilo que nega, a prova do valor daquilo queafirma malogra constantemente. Continua a ser do do-mínio do coração: é paixão sublimada. De sua vontadegrandiosa, subsiste uma esperança: a que nos é dada

pelo fato de a violência não proporcionar satisfação aohomem. Mas esse é apenas um programa, que a voca-ção metafísica não cumpriu.

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O fracasso da metafísica leva a pensar que não exis-te Saber absoluto. Cada sistema acreditou ter alcança-do a verdade: mas cada um não fez senão descrever aspreocupações de um homem e de uma época. Que resta,

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então? Deveremos renunciar à filosofia e entregarnos àcontingência da opinião, à solução da violência? Deve-remos, simplesmente, lembrandonos da esperança des-pertada pela filosofia, “ compor” com a violência e, re-nunciando a promover uma ordem, organizarse tecni-camente na desordem? Afinal de contas, não está pro-

vado que o mundo das aparências seja definitivamenteinabitável: semelhante vida certamente não proporcio-nará a plenitude e a satisfação; mas será, ao menos,uma v i d a  isenta de desejos quiméricos e de coragem inú-til. Para levar a bom termo essa empresa modesta e li-mitada à individualidade, basta convencerse de que aexigência do fundamento — por mais h u m a n a  que seja — permanece sem efetividade para u m  homem e, ha-

vendo somente h ome n s , a Substância está ausente. Asimples procura da quietude sem satisfação pode adotardiferentes formas: ora tenderá a desenvolver tanto quan-to possível um saber do objeto tomado em si mesmo, afim de permitir aos homens a satisfação de suas neces-sidades; ora tentará fazer reviver em cada um os te-souros acumulados pela tradição e renovar as belas cer-tezas da d o x a ;  ora se empenhará em exaltar — umavez que tudo é paixão — alguma paixão particularmen-te nobre ou bela ou útil (a do nobre, do belo ou do útil,por exemplo). Desabrocha, assim, um novo ceticismo:não se define como avesso da metafísica (à maneira da-quele que evocamos alguns parágrafos atrás), ou aves-so da filosofia (à maneira do de Cálicles), mas, de certomodo, como colapso da filosofia. Não se entrega nem à

violência nem ao desespero sorridente ou raivoso: reco-nhece que há somente fatos fundamentalmente desor-denados, que o homem (cada homem) é um fato contin-gente e que convém arranjarse da melhor maneiranessa situação cuja solução ou transformação seria in-sensato imaginar.

Adotar semelhante atitude, é reconhecer a disjun-ção do Saber e do Absoluto, é situar o Absoluto em exte-

rioridade inacessível e limitar o saber à pessoa de umhomem, isto é, à paciência e ao talento individuais. Se

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melhante tomada de posição pode ser indefinidamenteretomada e prolongada: à exigência do metafísico, o in-divíduo poderá sempre opor a contingência do aconte-cimento e o caráter insensato e perigoso dessa procuraobstinada da razão; poderá sempre mostrar, no momen-to adequado, o acidental, que nada explica, pedir que lhe

“deduzam a caneta tinteiro” e exigir que lhe digam seexiste realmente uma Idéia do “cabelo e da escória” . Há,no entanto, como limite dessa nova d o x a , a constanteeventualidade da violência e o apelo constante lançadopelo homem para dela libertarse em definitivo, e achara satisfação. Na realidade, a honesta renúncia à filoso-fia é como a aceitação da morte, da brutalidade, daopressão; e o desejo de conciliar com a desordem, a sub-

missão à desgraça. Escolhendo uma espécie de salvaçãona “existência positiva” , o antimetafísico, ao mesmotempo, na medida em que reconhece a violência comofundamental, acaba por atribuirlhe valor. Não seriaessa uma dificuldade real se fosse verdade que o homemem geral aceitasse como justos o sofrimento, a aliena-ção em suas diversas formas. Ora, é um fato que nãoos aceita.

É, portanto, impossível não levar em conta esse mo-vimento no sentido da vida satisfeita que a vontade filo-sófica suscitou em sua origem. Não há terceiro caminhoentre C álic^ e Sócrates: reconhecer, com reservas, ma-tizes ou ( jjeções de pormenor, a visão do mundo de Cálicles é, finalmente, exporse a correr o risco de ser cí-nico ou vítima do cinismo. O único recurso do “homem

positivo” é então o de desejar que, durante sua breveexistência, a desgraça não lhe aconteça e que ele seja“bem sucedido” sem fazer nem suportar nenhum malem excesso. Indefinidamente reiterável, semelhante ati-tude mostrase indefinidamente insuficiente.

Não é verdade, no entanto, que haja um Saber abso-luto no qual o homem possa reconhecerse e pelo qualpossa realizarse. Resta pois a hipótese de que o Abso-

luto existe, mas não é um Saber. Semelhante soluçãodá à filosofia novo impulso: assinala, ao mesmo tempo,

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o declínio da metafísica e sua renovação. De um lado,com efeito, denuncia com energia a “ ilusão transcen-dental” que levou os pensadores, cedendo à esperançada Razão, a erigir em Substância os produtos da ima-ginação e da elocubração; a partir do momento em quese abandona o terreno da experiência, nenhum enuncia-

do pode ser verdadeiro: a melhor prova dessa tese éque é possível demonstrar a igual validade de duas for-mulações metafísicas contraditórias. A propósito daAlma, do Mundo e de Deus, é possível multiplicar os  enunciados sem encontrar a menor contradição interna:e isso não acontece porque se diz de cada vez algumacoisa verdadeira, mas porque, a rigor, nada se diz. Issonão significa, de modo algum, que não haja um saber:

a perfeição da matemática e a solidez da física provamque o homem pode conhecer alguma coisa e conhecêlacom rigorosa objetividade; todavia, esse saber universalque, por isso mesmo, é, de certo modo, absoluto, nãoé um saber d o Absoluto: o que apreende é apenas a exis-tência fenomênica e não essa Coisaemsi da qual o me-tafísico imaginava apreender a essência. Esta, escapasempre ao conhecimento, pois o simples fato de conhe-cêla a transforma e lhe confere um s t a h i s  relativo aohomem. O que importa, pois, para filosofar com serie-dade, é criticar a Razão e mantêla nos limites de seuuso legítimo: nesse domínio teórico, só é permitido de-senvolver experimentalmente a ciência, no sentido res-trito do termo, permanecendo convencido de quç é in-capaz de proporcionar uma posse integral do seremsi.

Por outro lado, no entanto, há um domínio no qual ouso da Razão pode desenvolverse de acordo com suavocação: o da vida moral. O Absoluto, que é recusadoao homem no nível teórico, se dá em toda sua riquezano nível da Ação da Liberdade. Constituindose comovontade livre, desprendendose, pela escolha de um des-tino humano, das determinações mundanas, o indivíduotem acesso ao além dos fenômenos. Somente fazendose

“legislador e sujeito” , ou então personalidade que se criaa simesma como querer, que emerge de sua situação

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relativa e conquista a “ integral determinação” . As obrasda ciência, as ambições do Saber parecem bem modes-tas quando comparadas a essa tarefa grandiosa e peri-gosa, a de fazer a Razão no Ato ou, mais precisamente,de ser si mesmo a Razão agindo. Ser metafísico, o indi-víduo humano só se realiza na esfera prática: nenhuma

prova, aliás, pode ser dada do êxito dessa empresa, anão ser aquela que o sujeito se dá a simesmo conhecendoss como realização da lei moral. Não cabe pro-curar no mundo fenomênico sinais desse êxito: o Abso-luto tornase enfim o que sempre foi, uma “tarefa infi-nita” , um ideal. Resta que o homem pode encontrar aplenitude e tem o direito de esperar a completa satis-fação, como ser livre e não como ser cognoscente.

Essa solução — a respeito da qual nos deveríamosestender longamente para desenvolver toda a riquezaque contém, — é de grande beleza. Representa uma to-mada de consciência muito importante do sentido davontade filosófica e mostra que, em suma, essa vontadeé, antes de tudo, o aprofundamento da vontade huma-na em geral: aquela que consiste para o homem em

definirse (ou “conhecerse” , mas a fórmula tem umaressonância excessivamente psicológica), a fim de co-nhecer a maneira que lhe permita ser duradoura e ge-ralmente satisfeito. Ora, essa vontade, até então, acre-ditara que lhe competia descobrir a essência do homeme determinar a ligação existente entre essa essência e ouniverso total das essências. Situara o problema e a so-lução, após a condenação de Sócrates e o malogro sici

liano, em plano teórico, reservandose para aplicar àconduta o que tivesse aprendido ou mesmo fazendo daTeo r i a   a conduta que proporciona a plenitude. Ora, adiversidade contraditória das respostas que havia formu-lado ao longo de sua história provou que não conseguiade modo algum escapar à paixão. Deveria, então, con-tentarse com um cálculo prudente e esforçarse em es-tabelecer as condições de uma existência tranqüila, semnada mais esperar das essências, nem possibilidade detransformação do dado nem fruição? A filosofia moral,

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tal como foi definida por Kant, esforçase em retornarà própria fonte da vocação filosófica (que traduz a aspi-ração do homem): a vontade não tem que procurarnum além existente o que poderá satisfazêla; a deter-minação da conduta conveniente não é uma conseqüên-cia do Saber; ou então a aspiração do Saber não pode

ser integralmente satisfeita. É nela mesma que podeencontrar realização e plenitude, enquanto se conhececomo vontade universal capaz de ser pura atividade decriação de si, autodeterminação, além de todo dado e,especialmente, além do eu patológico. Não se sai dapaixão criando seres de razão, mas agindo contra a pai-xão, em geral, querendose como ser moral. Assim, oêxito da filosofia — que será também êxito do homem

 — está nas mãos de cada indivíduo, que sozinho con-sigo mesmo, deve provar a cada momento a derrota dapaixão ao existir como ser livre.

Dissipou a filosofia da reflexão todas as dificulda-des? Estabeleceu definitivamente os princípios de “ todametafísica futura” ? Permanece o fato de que se expri-me, como todas as demais doutrinas filosóficas, em um

discurso; resta igualmente que não apresenta provasirrecusáveis de seu valor. Explica, sem dúvida, porque ory •or>'Hf'ionado não é da ordem do Saber: nem por isso

deixa de sa bê-l o . Em outros termos, demonstra por umacrítica do Saber e da Ação que o conhecimento é rela-tivo e que só o ato moral é portador de caráter absoluto.Mas, com que direito faz essa crítica? Em nome do quea empreende e a considera concluída? Mais precisamen-

te: que justificação há da validade de seus preceitosmorais? À essas questões, a reflexão não pode respon-der; se quisesse fazêlo, precisaria ainda refletir sobre simesma: a crítica seria obrigada a criticarse a si mesmae não haveria razão alguma para que se detivesse nessaconstante indagação. Finalmente, querendo superar o“dogmatismo” do saber metafísico e o “empirismo” dostécnicos da existência, a filosofia da reflexão acaba por

negligenciar completamente o problema da prova da va-lidade de seu próprio procedimento e de seu conteúdo.

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Ainda melhor: na esfera moral que é, para ela, deci-siva, interditase qualquer tentativa de justificação, poisnada do que a p a r e c e  pode atestar a moralidade dè umato, nem mesmo a consciência que o sujeito tem de sipróprio.

Que resta, então, da esperança filosófica do discur-

so totalmente coerente e legitimado (quer dizer, verda-deiro e probante)? Que resta mesmo dessa admirávelcorrente de pensamento que, de Platão a Kant, tentouproporcionar ao homem a satisfação, revelandolhe oque é verdadeiramente? Deverseá retornar à prudênciados técnicos da existência quotidiana? Deverseá decla-rar secundária a vontade filosófica e considerála umempobrecimento de alguma empresa mais bela e mais

eficaz, a do Artista, por exemplo, que experimenta oAbsoluto de modo afetivo?

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O metafísico pretendia revelar o que é verdadeira-

mente a fim de desqualificar a do x a e mostrar a inanidade da aparência. Ora, finalmente, não consegue asse-gurar nem a existência desse além do dado fenomêniconem a apresentação que faz do seremsi. A realidademetafísica, longe de manifestarse como o existente es-sencial e como o fundamento da aparência, logo se mos-tra, por sua vez, como realidade “aparente” ; o recursoa esse milagre natural em todas suas diversas formas, amultiplicidade proposta dos métodos de acesso ao ser: adiversidade dos universos metafísicos revelados leva aconsiderar ilegítima a ambição metafísica. De fato, cadadoutrina, para desfazer a inquietação que a suscitou,i n v e n t a  um mundo ideal, em cuja estabilidade e ordemimagina encontrar a satisfação, mas que é, na verdade,um produto da imaginação. As substâncias imutáveis e

eternas são pensamentos realizados e não realidadesdesveladas e enfim pensadas: pela mediação da lingua-gem, o metafísico construiu um mundo ideal ao qual

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conferiu existência, por uma decisão arbitrária que nãopode justificar. Queria encher o vazio do Pensamento,desembaraçado das crenças comuns, pela plenitude doSer; não fez senão substituir às crenças oriundas dapaixão, crenças essas nascidas de sua vontade de ven-cer a violência e a incoerência. Levarão essas observa-

ções necessariamente ao retorno à d o x a  ou a desarticularfundamentalmente o Ser e o Saber?

Semelhantes observações, uma vez que se evitem aexaltação romântica e a falência positivista, abrem novoe grandioso caminho. O que os apologistas da vida quo-tidiana, o que os pensadores críticos puseram em ques-tão, é, afinal de contas, o exercício da metafísica: sua

operação, no entanto, não teve um caráter suficiente-mente radical; não fiseram incidir a interrogação noaxioma mais profundo que domina o pensamento meta-físico e explica seu desenvolvimento e seu fracasso. É aesse último estágio que se deve chegar ao querer abar-car o conjunto do movimento que conduz das afirma-ções platônicas às renúncias sublimes de Kant e tornarse capaz de ir além das dificuldades dirimentes encon-

tradas. De fato, uma idéia decisiva encontrase cons-tantemente de Platão a Kant, embora só se manifestena época moderna e seja nos Antigos corrigida por intuições de outra ordem, a idéia segundo a qual existeuma ci são essencial entre o objeto do discurso e o dis-curso, entre o Ser e o Pensamento, entre a verdade e acerteza. A própria maneira como nasceu a vontade filo-sófica, o modo pelo qual foi ulteriormente levada a cons-

truirse, contribuíram para desenvolver essa perspecti-va. O metafísico é aquele que supõe que, devendo dizera verdade, deve encontrar o meio pelo qual o Ser e aordem do Ser se refletem em seu pensamento subjetivoe pelo qual sua certeza individual se transforma em ver-dade absoluta; concebe o discurso como linguagem se-parada do Ser que deve encontrar o Ser por meio de

uma técnica adequada. É exatamente isso que exprimea fórmula escolástica segundo a qual a verdade éad aeqw a t i o r ei et i n t e l l ec t u s:  por mais justa e incontes

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tável que seja, tal fórmula implica uma separação pré-via e não legítima da coisa e do intelecto. Ora, essaótica conduz às conseqüências que conhecemos: na me-dida em que o i n t e l l e c t u s  jamais pode sair de si mesmopara confrontar a adequação efetiva da idéia que eleforma e da res, ou bem devemos supor certos caracteres

intrínsecos da idéia, arbitrariamente escolhidos paraprovar sua validade, ou recorrer a outra garantia queescapa, por natureza, à prova, sendo assim sempre sus-cetível de contestação, ou bem, mais banalmente e maisgravemente, admitir que não há verdade ou que há so-mente sucedâneos da verdade ou que a verdade não éhumana.

Essas últimas soluções são perfeitamente aceitáveis:a melhor prova está em que são aceitas, seja na vidaquotidiana, seja pelos filósofos decepcionados. Todavia,são o epitáfio da filosofia. O caminho qus permaneceabsrto consiste em renunciar a esse axioma inicial dametafísica e adotar como ponto de partida o axiomacontraditório, mesmo que apenas para experimentar seuvalor e sua fecundidade. Admitiremos então que o dis-

curso, fundamentalmente e por essência, já exprime oSer, de modo talvez limitado e parcial; que a subjetivi-dade não está cortada do dado mas é, em todo caso, seureflexo ou sua reflexão; que a certeza não é o oposto daverdade, mas o modo pelo qual a verdade pode mani-festarse. Admitindo essa perspectiva, não se procederágratuitamente: não se fará senão tomar consciência daprofunda preocupação que animava os metafísicos; cada

um pretendia harmonizar seu pensamento com o Ser edele fazer o Pensamento; cada um conferia pois ao dis-curso a propriedade de representar, quando bem suce-dido (ou verdadeiro), a realidade tal qual é; mas, aomesmo tempo, cada um se tornava incapaz de ter êxitoem seu discurso, a não ser subjetivamente, uma vez quesupunha, na origem, que o Ser era o u t r o  que não o dis-

curso, o u t r o  que não o pensamento humano. E, assim,conduzia inevitavelmente ao criticismo que, no fundo,equivale a verificar essa alteridade fundamental e dela

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tirar todas as conseqüências. Importa, para salvar a fi-losofia e com ela a racionalidade, compreender que o Sernão é o outro em relação ao discurso, mas antes seum e d i u m   imposto, que todo discurso é, dssde logo, dis-curso do e sobre o Ser e que é finalmente o ser enquantose exprime (parcialmente ou totalmente). Assim tam-

bém, o pensamento subjetivo, o do indivíduo que viveseu desejo ou que, a seu modo, experimenta o mundo,nem por isso é relegado à esfera da pura contingência:reflete, ainda, a s eu m odo , a realidade; por falsa quepossa ser sua “representação” ainda é representação dodado5.

Mas, conceber assim as relações do Ser e do discur-so, não é retornar aos caminhos que conduzem ao relativismo, ao ceticismo e à ruína da filosofia. Não se frag-menta o Ser em tantas modalidades quantas são as dediscursos possíveis, e a verdade não desaparece a partirdo momento em que se reduz a uma coleção disparatadade certezas diferentes? Já mostramos que, apesar de suavontade de constituirse contra a diversidade e as con-tradições das doxo i , o discurso metafísico era incapaz

de provar que é outra coisa além de uma do x a  maiselaborada e mais sistemática. Todavia evitase realmen-te a dificuldade declarando que a d o x a  diz qualquer coisado Ser e perde assim essa gratuidade, essa contingênciaque lhe atribuía a metafísica? Para responder a essaquestão, é preciso insistir ainda uma vez na vontade dometafísico e na natureza de seu discurso. Este pretenderefletir o que é tal como é; tenta tornarse outro pas-

sando de um conteúdo subjetivo a um conteúdo obje-tivo; tem êxito, mas apenas parasi; o Ser que reflete eque acredita seremsi absolutamente e, afinal de con-tas, seremsi apenas para si; traduz a experiência de umindivíduo (ou de uma coletividade) e o que descobrecomo Substância, é aquilo em que o pensamento (indi-vidual ou coletivo) se reconhece e aquilo por meio do

5 Em relação a todo este tópico, J. Hyppolite, Lógica e existência  e,em particular, Introdução.

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que se compreende; a realidade essencial revelada porele é efetivamente pensada de tal maneira que nela de-vem desaparecer as dificuldades, desfazeremse as con-tradições, resolveremse os problemas implícitos na ex-periência do sujeito ou do grupo: assim, o serreal dometafísico é a verdade do fato vivido na medida em que

aquele traduz e exprime este, elevandoo à clareza doconceito. Mas, inversamente, o fato aceito é a verdadedo serreal pois constitui sua matéria e seu conteúdovivo. O metafísico era sensível apenas ao primeiro as-pecto; é do segundo que o filósofo, passando pela provacrítica e preocupado em reconciliar o Absoluto e o Saber,deve tirar as conseqüências.

De fato, o discurso é, em ger a l , a unidade do Pensa-mento e do Ser; t a l discurso é a verdade de t a l experiên-cia. Nessa ótica, abrese um novo caminho: o discursoverdadeiro seria o que formasse um sistema de todos osdiscursos possíveis, que mostrasse como esses últimosse organizam e se encadeiam; o serreal manifestadonesse discurso total seria, ao mesmo tempo, o sistema dasdiversas realidades subtanciais reconhecidas pelos meta-

físicos; e a experiência correspondente seria a totalidadedas experiências possíveis e englobaria assim o conjun-to das perspectivas oferecidas à existência humana. Oobjeto da verdade filosófica não seria um outro exteriorao Pensamento, mas o próprio Pensamento enquanto ésempre pensamento do Ser. À substância morta, e ina-cessível por definição, substituirseia a vida do sujeito.O fato de tomar consciência da unidade primordial do

Ser e do Pensamento no seio do discurso traria a pos-sibilidade de realizar efetivamente essa unidade, em umdiscurso que incidisse precisamente, não sobre o Ser dosmetafísicos, mas sobre essa unidade ou os diversos es-forços de unificação. E, se cada discurso define indisso-luvelmente uma figura do ser e a figura do pensamentoque a reflete, então o discurso que reflete todos essesdiscursos traduzirá, não somente o Pensamento em seu

conjunto sistemático — o que seria o sonho de uma his-tória racional — , mas exprimiria o Ser na totalidade de

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suas determinações e integraria toda a riqueza da expe-riência .

 Tal possibilidade, no entanto, não será singularmen-te abstrata? Ela o seria se o desenvolvimento do pensa-mento metafísico em sua forma e em seu conteúdo nãoindicasse o caminho a seguir. De fato, cada experiên-

cia do homem, quer se exprima na linguagem inacabadada opinião, da arte ou da religião, quer se eleve ao con-ceito no discurso metafísico, encontra na substancialidade ao mesmo tempo seu fundamento e sua limitação.A consciência, apreendendo o que julga ser o serreal,encontra inicialmente a satisfação e frui a plenitude queele lhe oferece; seu contentamento, porém, não poderiadurar. Quando procura desenvolver sua intuição e fazerprevalecer sua perspectiva junto de outrem, quer dizer,a exprimila como ponto de vista universal e mostrar asexperiências quotidianas que a confirmariam, percebeque seu esforço está condenado ao fracasso e que devecontentarse em afirmar sua posição; ao conhecer essasituação de fato, fica indignada e sofre; é presa entre odesejo de desvendar o seroutro que lhe traria a satis-

fação e a obrigação em que se encontra de reconhecerseu seraí que põe em dúvida aquilo no sentido do que elatende; imobilizase, então, no sofrimento e perdese novaivém que a leva de sua esperança à sua situação trá-gica ou, então, corajosamente, define alguma substân-cia que melhor corresponda à sua ansiosa procura, negao que havia aceito como serreal e se supera, afirmandouma realidade mais rica que integra o conteúdo de sua

experiência renovada. Esse caminho do “negativo” é opróprio caminho que conduz ao Espírito, consideradonesse estágio último no qual a consciência, tendose per-dido no seroutro e, encontrandose solitária e entregue asimesma, descobre o lugar em que é indissoluvelmenteelamesma e o outro, onde a unidade do Ser e do Pensa-mento, do objeto do discurso e do discurso se realiza.Em outros termos, a possibilidade de uma realização davontade metafísica é dada na própria inquietação dometafísico que, ao mesmo tempo que postula seu êxito,

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percebe sua fraqueza, sofre, a oposição de outrem e, es-forçandose em dominála, vai além de simesmo. Omeio que permite realizar o discurso absolutamente ver-dadeiro e superar a renúncia crítica e o golpe de forçaromântico não é exterior ao ato filosófico: está presentenele e consiste simplesmente no conhecimento do que

esse ato pretendia realizar, conhecimento que ele nãopodia ter antes que o Espírito houvesse percorrido asetapas necessárias à sua formação. A via do Saber abso-luto já está no movimento que conduz de saberes par-ciais a saberes parciais: o Saber absoluto não passa dodifícil encaminhamento que leva de uns aos outros eque conhece a razão dessa progressão.

Ü3 tal modo que a questão proposta, referente à pos-sibilidade de um discurso que fosse o sistema de todosos discursos possíveis, não pode receber uma resposta quenão seja ao mesmo tempo um saber efetivo satisfazendoa questão apresentada. Se fosse de outra maneira, per-manecerseia na atmosfera crítica, indagando sobre odireito de dizer antes mesmo de dizer o que quer queseja. O que é necessário, a partir do momento em que

compreendeu o sentido da empresa filosófica, é realizála percorrendo as diversas etapas que assinalam o per-curso paciente e doloroso da consciência no encalço deum conteúdo em que a completa igualdade se estabeleçaentre o Ser e o Pensamento. Ora, esse caminho existe;basta seguilo para perceber sua verdade. Mostra elecomo a consciência, alienandose em um objeto no qualacredita reconhecerse e atingir a plenitude, perdese

nesse objeto, retorna a si descobrindo que é elaprópriaque se havia hipostasiado e prossegue, de conquista emfracasso, sua formação. Não há critério exterior quepossa provar a verdade do que então se diz: é a vida doconteúdo, em sua necessidade, que se impõe e consti-tui a prova. O erro do dogmatismo metafísico era o deimobilizarse em uma figura mantida como ponto de

vista universal; o erro do relativismo é o de reconhecera verdade parcial de cada figura; a experiência efetivado desenvolvimento da metafísica — que resume e ex-

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prime o movimento da existência humana à procura dasatisfação — torna manifesto o caráter profundamentesistemático do curso real do pensamento. Essa experiên-cia pode ser seguida historicamente, compreendendo quecada atitude do homem em face do real que ele vive àsua maneira, que cada doutrina filosófica, cada obra — 

no sentido amplo — esforçase em ir além da atitude,da obra, da doutria que a precederam; sem dúvida, cadauma, em seu movimento por ultrapassar o que é dado,imagina atingir o Absoluto; mas, nós que vimos depoise temos diante dos olhos o conjunto do processo, com-preendemos sua limitação e aprendemos com clareza queé simplesmente a negação, a superação, e a inclusão domomento anterior. O Espírito, desde então, não é senão

a história racional da consciência que se forma e se fazprecisamente Espírito; não há que provar que é real-mente o Espírito pois tudo lhe é interior, sendo o sistemade todas as verdades e de todos os erros possíveis (pos-síveis significando aqui, ao mesmo tempo, reais).

Essa formação histórica só adquire plena significa-ção no momento em que, tendose concluído, desemboca

na vida imanente do próprio Espírito que desenvolve suanecessidade. Aqui, ainda, é irrisório pedir qualquer le-gitimação da ordem e do conteúdo propostos: nada po-deria julgar esses l ogos que constitui o juiz supremo namedida em que integra em sua racionalidade toda espé-cie de intuição, de critério ou de idéia que se queira.A única contestação que se poderia fazer seria construirum discurso do mesmo tipo, diferente em certo modo.

Qualquer outra contestação, incidindo sobre o método ousobre a legitimação, tornase antecipadamente absurdapelo ponto de vista adotado. Sem dúvida, o indivíduopode ainda protestar que não se acha nessa ordem quelhe é apresentada, sem dúvida pode afirmar que eleainda existe, com seu sofrimento e sua inquietação, foradessa serena arquitetura. Seu protesto é normal: ol o gos não pretende ser o pensamento de todo homem;não pretende, principalmente, ser o pensamento do in-divíduo. Visa precisamente ao contrário; quer ser a ex-

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pressão do p e n s a r  ele próprio enquanto é pensamento doSer ou ainda enquanto é o Ser que se exprime e conhecesua racionalidade. A subjetividade dirá que essa soluçãonão lhe convém: mas, dizendoo, inserese ela própria nosistema, ou porque reitera em sua reivindicação umaatitude histórica compreendida e superada, ou, mais ge-

ralmente, por que se inclui na categoria da subjetividadea propósito da qual o Espírito mostra precisamente queé o momento parcial e abstrato do pensamento que secompraz na insatisfação.

O drama da metafísica parece pois resolvido: o quequeria está, doravante, realizado. Procurava a unidadedo Ser è do Pensamento: esta se realiza a partir do mo-mento em que se compreende que o pensamento é semprfl

pensamento do Ser e que não há entre os dois termosrelação de alteridade. Mais precisamente, a alteridadeé ainda tim fato pensado. Quando se apreende essa di-mensão fundamental, então desaparecem as dificulda-des que levam ao criticismo, ao romantismo ou à antifilosofia. Não cabe perguntar que representação do pen-samento corresponde à natureza do Ser: o discurso verí-dico é aquele que integra todas as representações, asorganiza e elabora, assim, as categorias que são as doPensamento e do Ser. Tal discurso, contanto que o rea-lizem —. Hegel o fez e não houve pensador algum paracontestar que o tenha feito — escapa, desde então, aqualquer tentativa de contestação do tipo daquela quemetafísica e filosofia da reflexão costumavam suscitar.O caminho que Platão havia definido encontrou, ao que

parece, o homem que soube seguilo sem titubear: ascontradições da do x a  são dissipadas, o pensamento al-cança a satisfação na clara limpidez do conceito e a tota-lidade da experiência humana é integrada, tanto quantoé razoável esperálo, no Saber do filósofo.

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A vontade que suscitou a empresa filosófica é von-tade de provar a b s o l u t a m e n t e  ; transmitiuse e realizou

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se diferentemente de acordo com as épocas e os pensa-dores. Mas, tratavase sempre de elaborar um discursotal que nele e por ele os problemas apresentados pelaexistência quotidiana fossem resolvidos ou dissipadoscomo falsos problemas; tratavase, também, porque aexistência quotidiana o exigia, de que esse discurso fosse

capaz de legitimar sua ambição junto de outrem e detrazer uma satisfação real (ou a eventualidade de umasatisfação que seria o resultado de alguma ação indica-da pelo discurso), mostrando o que é tal qual é. Nessesentido, o antimarxismo tem razão de queixarse da de-senvoltura do materialismo dialético em relação ao pro-blema da legitimação, à problemática do fundamento eda prova. O marxismoleninismo não se submete a essa

exigência; chega mesmo a considerála uma frivolidade,quando não a despreza pura e simplesmente. O verda-deiro problema, no entanto, — aquele em função do qualse organiza todo o presente trabalho — é o de saber oque acontece com essa idéia da prova que está efetiva-mente no centro do pensamento filosófico, de SócratesPlatão a Hegel. A filosofia reclama uma prova, uma le-gitimação definitiva, quer dizer, plena e universalmenteconvincente, daquilo que é dito: mas, ela mesma, quetraz? Sócrates foi condenado porque não conseguiuc on v en c e r  seus juizes; Platão fracassou porque não pôdec on v en c e r  Dionísio de Siracusa e sua Calípolis admirávelprovoca a ironia dos conservadores e dos revolucionários;desde então, desde Aristóteles, as metafísicas sucederamàs metafísicas, em construções grandiosas e profundas

mas nenhuma chegou a suscitar a adesão de todos epara sempre. Deveremos, pois, admitir com Kant que aprova não é da ordem do discurso, ou com o romantis-mo, que a prova se encontra no sentimento do Absolutoque experimento neste instante? Nos dois casos, a filo-sofia confessa sua impotência e se reporta, para vencersuas dificuldades, a tipo de atividade extrafilosóficos.

Sem dúvida, há a Fenom eno l o g i a do Espír i t o   e aCiên c i a d a Lóg i ca . Não estará, nesse nível, resolvida aquestão? Está resolvida; mas, observando bem, não será

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porque deixou de ser formulada? De fato, abolindo aalteridade do Ser e do Pensamento e fazendo do discursosua unidade efetiva, Hegel recusa e supera a problemá-tica tradicional da prova: todo discurso é legítimo, pordefinição, porque exprime certo modo de apreender arealidade (sempre admitimos que se tratasse de um dis-

curso dado). E quando Hegel apresenta seu próprio dis-curso como absolutamente verdadeiro, não é porque sou-besse encontrar um instrumento capaz de medir a con-formidade de sua obra com o Ser, mas porque esss dis-curso constitui a razão de todas as doutrinas, de todasas atitudes possíveis, porque mostra sua parcialidadetornandoa inteligível e porque nenhum dicurso — admi-tindo que o trabalho de Hegel tenha sido bem sucedido

 — pode constituir efetivamente sua limitação e sua refu-tação. O filósofo não está obrigado a provar: deve se-guir a ordem do processo que conduz dos saberes parciaisao Saber absoluto, deve desenvolver a necessidade dologos . O simples fato de elaborar um discurso tal quetoda expressão do Ser, que todo conceito seja nele in-cluído e nele encontre seu lugar, é prova de verdade.Nada mais há a que procurar porque aqui a integralidade do Ser se pensa e se reflete.

Isso significa, claramente, ao que parece, que o fi-lósofo deve afastarse definitivamente da procura estérilde um critério ou de um i n d e x  da verdade; que é mesmoirrisório perguntar por que sinais se reconhece umaidéia verdadeira e querer determinar a que estruturaontológica correspondem esses sinais. Tudo se passa co-

mo se o pensamento metafísico supusesse uma espéciede defeito ou falha original do pensamento subjetivo edo discurso que o exprime e, desde então, se atribuíssepor tarefa descobrir o caminho da purificação e da ver-dade. Esse caminho já se encontra no próprio exerci siodo discurso; não há um pecado essencial, mas uma in-suficiência que se corrige por si mesma. O problema nãoé nem o da possibilidade do erro, como julga a metafí-

sica, nem o da possibilidade da verdade, como compreen-deu o criticismo, mas o do efetivamente verdadeiro; e

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esse problema se resolve na realidade do discurso que,como tal, é capaz de convencer, p o r q u e  consegue cons-tituir um sistema de todos os discursos. Não será retor-nar por um atalho às perspectivas do intuicionismo me-tafísico? Não nos encontraremos, novamente, diante dofato consumado de uma revelação que nos limitamos a

oferecer? Seria assim se o discurso filosófico hegelianose contentasse em opor sua própria concepção às con-cepções que considera errôneas: esforçase — pouco im-porta que a empresa tenha ou não tido êxito — não sóem integrar em si as demais posições, mas ainda emmostrar como a verificação dessas posições deve levar aessa atitude lógicoontológica de acordo com a qual nãopoderia haver outra solução para o problema da verdadesenão a Ciência. Podem multiplicar os discursos filosó-ficos nãohegelianos: é difícil fazêlo com perfeita legi-timidade se, inicialmente, não se prova, de certo modo,que se superam as atitudes e as categorias compreen-didas pelo hegelianismo; se, em seguida, não se mostraque há uma doutrina da prova diferente daquela que éproposta pelo filósofo hegeliano; se, enfim — e não é a

condição menos difícil de realizar — não se consegueconvencer do fato de que não ocorre o abandono a algu-ma emoção da subjetividade, ansiosa de liberdade, e que,sob o nome de filosofia, propõe uma angústia, bem“fundamentada” uma vez que existe, mas sem relaçãocom os problemas universais definidos pelos filósofos.

Semelhante ótica, a do hegelianismo, chega pois, ao

que parece, a certificarse desse fato de que constituitoda solução, que toda doutrina que a ela se opõe é in-definidamente reiterável, mas é por ela incluída e quea única maneira de refutála seria deixar de falar nela.O círculo está desde então percorrido: vinte e três sé-culos permitiram que o problema proposto por Platãofosse resolvido. Resta ser filósofo e hegeliano ou re-nunciar ao hegelianismo, renunciando, porém, ao mes-

mo tempo à filosofia e desprezando sem direito toda agrave problemática que ela suscitou.

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III

O Êxito da Filosofia e a Exigência de Superação

i

E s s e  ê x i t o  da filosofia — com os traços caracterís-ticos que implica — significa, pois, aos olhos do filósofo,o próprio êxito do homem; no e pelo Saber absoluto, oPensamento, descobrindo sua essência e “realizandoa”efetivamente, atinge a plenitude e possui a liberdade;no e pelo Estado racional1, quer dizer, no nível da Razãoobjetiva, a satisfação é dada ao homem; está presente

 — ou, em todo caso, é “apresentável” — na vida quoti-

diana; a verdadeira liberdade humana encontra suarealização na medida em que o indivíduo pode racional-mente querer seu interesse e, ao mesmo tempo, o que éuniversalmente bom e racional. Sem dúvida, como já seobservou, a subjetividade pode continuar a opor a essaperspectiva seus protestos e suas zombarias; pode pre-tender que não se considera, nem superada, nem redu

1 Cf. neste trabalho, cap. IV , seção 2.

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zida, nem situada em seu verdadeiro lugar; e, diante darealidade desse protesto, o filósofo não pode fazer outracoisa senão reconhecer sua possibilidade; pouco lhe im-porta, aliás: o que conta, para ele, é o fato de que, seacontece à subjetividade — ávida em manifestar sua li-berdade abstrata — pretender contestar a ordem racio-

nal, é fácil doravante demonstrar que, assim agindo, re-velase insensata ou criminosa. A filosofia não tem aambição de tornar os homens racionais; não supõe que,pela magia do l ogos , seja capaz de suprimir a confusãoe a tendenciosidade do pensamento; sabe que a oposiçãoda subjetividade é indefinidamente reiterável. Sua mis-são é demonstrar o que é a Razão, de fazer aparecer oque querem realmente os homens e de revelar de modo

claro o que é legítimo, em dado momento do devenirhumano, querer e esperar. A antifilosofia — inspiran-dose sempre, em graus diversos, no estilo de Cálicles — conservará sempre o recurso de assinalar, com ironia ouamargura, a decalagem subsistente entre a realidade re-velada pelo filósofo e a existência empírica; esquecerá,se pretende fazer prevalecer a seriedade da vida contraa vaidade do conceito, que essa diferença entre o ex i s t e n t e  e o r e a l  é precisamente uma diferença que o filó-sofo conhece, que soube elevar ao conceito e a propósitoda qual mostrou que pode ser causa de irritação para oindivíduo, mas não fonte de insatisfação para o homemque se compreendeu a si mesmo.

Poderá, semelhante saber, receber uma qualificaçãoanáloga às que se costuma atribuir às doutrinas filosó-

ficas? Estaremos em presença de uma “ontologia” ma-terialista ou espiritualista, de uma “gnosiologia” empirista ou racionalista, de uma “metafísica” realista ouidealista? Será necessário forjar algum termo originalque convenha melhor à definição dessa nova perspecti-va? Na verdade, parece que o sistema hegeliano, na me-dida em que pretende ser o êxito da filosofia, sustentatambém estar além de semelhantes qualificações. Estas,

com efeito, designam e não designam senão óticas par-ciais e, conseqüentemente, falsas, que o saber total nega,

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supera e engloba e das quais dá razão enquanto resu-mem atitudes “existenciais” limitadas ou constituem ca-tegorias fragmentárias do Pensamento. Mas, dirseá, afilosofia hegeliana não é racionalista, idealista, espiri-tualista? Não afirma que “o que é racional é real e oque é real é racional” , que “só a Idéia Absoluta é o Ser,

somente ela a V i d a   imperecível, a Ver d a d e qu e se sa be  t a l , t o d a a Ver d a d e  ” \ que o Saber absoluto é idênticoao “Espírito que se sabe a si mesmo como Espírito” 4?Formular semelhantes julgamentos sobre o hegelianismo, é situálo precisamente em um nível que ele supe-rou, o da discussão e das disciplinas parciais (o proble-ma voltará a apresentarse, de saber se essa superação éefetiva, se essas qualificações, f i n a l m e n t e , aplicamse ounão): o que o sistema revela, é que a teoria do conhe-cimento tradicional do racionalismo — para tomar ape-nas esse exemplo — só tem sentido e verdade porque seopõe a uma teoria do conhecimento empirista que porsi mesma extrai sentido e verdade dessa oposição. Narealidade, o Saber absoluto, se é realmente tal, suprimeas diferenças e as contradições entre as “escolas” filo-

sóficas, reconduzidas ao seu estatuto de opiniões provi-sórias e necessárias, adotada pelo Espírito ao longo desua formação dolorosa e paciente.

Assim sendo, não será frívolo o debate que constituio objeto do presente trabalho? Não pertencerá precisa-mente a essa esfera da discussão que opõe “pontos devista” , opiniões, preferências, mas que não poderia fazersurgir um saber verdadeiro? Mais precisamente, a ques-

tão essencial, em torno da qual se desenvolve o debate,a da precedência efetiva da materialidade em relação àconsciência, ao Espírito, terá acaso sentido f i l o só f i c o? 

2 Princípios da filosofia do direito. Prefácio,  p. 30 (trad, francesa,Gallimard).

3 Ciências da lógica, livro III, 3? seção, cap. Ill, a Idéia absoluta, t. II, p. 549 (trad, francesa, Aubier).

4 Fenomenologia do Espírito, t. II, p. 312 (trad, francesa, Aubier).

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Parece que agora conhecemos a razão desse vaivém ob-servado no começo desta análise, que remete das res-postas do materialista às objeções de seus adversários,sem que seja possível deterse em um conceito defini-tivo: tratase de uma discussão por natureza estéril, poiscada uma das posições encontra ao mesmo tempo seu

conceito e seu limite na posição oposta. O materialistaapresenta provas cuja legitimidade é, a jvisto título, con-testada pelo antimaterialista; essa contestação, no en-tanto, operase sobre um fundo r e a l , o da ciência, davida política que é da alçada da análise materialista.Na verdade, as duas posições, ao que parece, são abstra-tas. Marx, aliás, escrevia em 1843: “O espiritualismoabstrato é o materialismo abstrato; o materialismo

abstrato é o espiritualismo abstrato da matéria” 8. Oantimaterialismo criticava a teoria marxista por serprécrítica: não será preciso rejeitar ambas as atitudescomo préhegelianas? O problema decisivo, segundo omarxista, tal como o apresentamos no começo deste tra-balho, o da precedência da matéria, tem uma significa^ção propriamente científica ao ver do filósofo hegeliano,e é às ciências especializadas que convém pedir a res-posta; mas, que essa resposta seja favorável ao materia-lismo não prova de modo algum que tenhamos o d i r e i t o   f i l o só f i c o de resolver do mesmo modo a questão das rela-ções do Pensamento e do Ser. Nesse sentido, a críticaantimaterialista é, para ele, em parte justificada. A vali-dade dessa crítica não implica, de modo algum, no en-tanto, que se possa desde logo, com toda tranqüilidade,

desenvolver doutrinas da subjetividade empírica outranscendental: o filósofo hegeliano estará então deacordo, ao que parece, com o marxista em observar queessas doutrinas esquecem seu fundamento histórico e ascondições reais de que procedem.

Parece, pois, que, com a solução desse problema da

5 Crítica da filosofia do Estado de Hegel, Obras filosóficas, t. IV,p. 183 (trad. francesa, A. Costes).

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prova, trazida pelo hegelianismo, problema que o con-flito atual do materialismo e do antimaterialismo tinhalevado a formular, aparece ao mesmo tempo a respostaà questão que estava na origem deste trabalho, respos-ta ao mesmo tempo desorientadora e plenamente satis-fatória pois suprime a própria pergunta. O materialismo

e as doutrinas da subjetividade que a ele se opõem cons-tituem atitudes sempre reiteráveis e sempre insuficien-tes. Adotálas e defendêlas atualmente, agora que sualimitação se tomou manifesta, corresponde a revelar,aquém da pesquisa filosófica, apenas uma preferência.

 Tal preferência, principalmente quando se trata da“preferência” materialista, ligada que se acha a movi-mentos sociais tão importantes, está sujeita a uma aná-

lise histórica visando a determinar sua origem e signifi-cação; mas, não poderia pretender constituir, tantoquanto a doutrina oposta, uma nova teoria filosófica.

2

Pela posse do Saber absoluto, 6 homem se conhececomo liberdade; no Estado racional, do qual o saber de-termina a Idéia, alcança a satisfação porque sua von-tade, reconhecida por todos, corresponde objetiva e es-sencialmente à vontade dos outros. Nesse estágio, certotipo de história se encerra: não porque — de acordo comum esquema de interpretação tomado à teleologia cristã

 — tenhamos chegado ao fim dos tempos, e não hajamais “ acontecimentos” . Mas, assim como nada mais háde essenc ia l a saber — quaisquer que possam ser os pro-gressos das ciências — assim também o devenir não maispode trazer mudanças importantes à estrutura do Esta-do: podem ocorrer conflitos, nascer Estados e expan-dirse, outros poderão desaparecer; essas perturbaçõeshistóricas não poderiam modificar o que é o Estado real,

no sentido em que o acabamos de definir. E até é ra-zoável pensar que os novos tempos que engendraram

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essas modernas formas de Estado — dados graças aosquais uma correta determinação da essência objetiva doEstado tornouse possível — verão aparecer formaçõeshistóricas cuja existência empírica irá aproximarse cadavez mais do Estado real, até se confundirem com ele0.O que torna legítima essa esperança, é o fato de que a

realização do Saber absoluto não é vim acidente, umêxito devido ao gênio de um homem, mas o produto deuma época, dessa época que começa com a construção doImpério napoleônico7 e que é “propícia à elevação dafilosofia à ciência” — propícia, em todos os domínios,à passagem da opinião ao conceito8.

 Todavia, que acontece empiricamente com os ho-mens — queremos dizer: que acontece no devenir cole-

tivo dos Estados modernos? E não podemos evitar estaquestão ingênua: a filosofia esforçavase em trazer asatisfação ao homem (àquele que é digno do nome dehomem; ora, doravante, graças à análise hegeliana,àquele que sabe o que é ser um homem); o êxito da filo-sofia deve ser t a m bém , a satisfação efetiva do homemou, ao menos, levando em conta a decalagem — expli-cado pela filosofia — entre a existência empírica e a rea-lidade, esboçar as condições ou as possibilidades da sa-tisfação. Ora, (e tratase de um fato histórico, de um“acontecimento”, tão importante para o destino da von-tade filosófica quanto a condenação de Sócrates ou omalogro siciliano de Platão) a evolução dos Estadosmodernos, e essencialmente, para esse período, da Prús-sia, da Inglaterra e da França, não “confirma” de modo

algum a descrição filosófica. Esse divórcio entre o em-pírico e o real manifestase em vários domínios: antes

6 Cf. Weil, Hegel e o estado  e, em particular, o cap. V, O Caráter do  estado moderno.

7 J. Hyppolite, A significação da Revolução Francesa na “Fenomeno logia” de Hegel, in Estudos sobre Marx e Hegel  e, especialmente, as

pp. 7781.

8 Fenomenologia do espírito, Prefácio, t. I, p. 8.

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de mais nada, acontece que, na realidade, apesar da di-fusão e do êxito da Ciên ci a , a f i l o s o f i a  não ensarilhouas armas. O presente trabalho é uma prova indiretadisso: seria mesmo concebível, se efetivamente a argu-mentação absolutamente convincente tivesse sido for-mulada, de que o debate entre materialismo e antima

terialismo fosse abstrato; de modo geral, é claro que,depois da morte de Hegel e embora tenham tido suasobras considerável audiência, pensadores cuja seriedadeé impossível contestar continuaram a escrever, desenvol-vendo perspectivas que contrariam ou não levam emconta a teoria hegeliana. Essa contestação ou esse des-prezo não provam sem dúvida sua legitimidade; podem

ser o fruto da subjetividade descontente ou da opiniãoempenhada em afirmar sua força; mas, sua própria rea-lidade manifesta a limitação do Saber absoluto, mesmoque fosse absoluto. É possível que Husserl, porque oponto de partida de sua obra era epistemológico, tenhasido levado a negligenciar, no início, os trabalhos hegelianos, p o r m o t i v os c on t i n g en t es ;  é possível que Bergson,(porque na França; nos fins do século XIX, Hegel erapouco conhecido e a situação na qual se encontrava aisso o predispunha), tenha sido levado a adotar comoobjeto de sua reflexão problemas psicológicos. Mas, arealidade é que a epistemologia, a psicologia (mesmoque revelassem sua insuficiência) puderam desenvolverse fora do hegelianismo; e é um fato que filósofos deimportância considerável e de erudição e honestidade

insuspeitáveis — não se trata de limitar a lista a Berg-son e a Husserl — situaramse (com ou sem razão) numaótica diferente da de Hegel (diferente não significa, nocaso, — talvez seja esse o aspecto grave? — contraditó-ria ou oposta). Mesmo que se tratasse, nessas obras, — o que é dificilmente sustentável — de manifestaçõesda ignorância, da parcialidade do poder da empiria,

nem por isso sua existência deixaria de por em questãoo poder de persuasão do Saber absoluto. O hegelianismo,

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portanto, se não é compreendido, deveria também poder justificar essa nãocompreensão.

Essa objeção é, na verdade, excepcionalmente gra-ve: em primeiro lugar o filósofo hegeliano deveria po-der mostrar que toda contestação do Saber absoluto, ounegligência em relação a ele, — levandose em conta as

deficiências devidas a Hegel e ao mundo histórico noqual viveu — leva ou a assumir uma atitude nãofilosófica, sempre possível, mas cujo caráter inumano foi pro-vado pelo sistema, ou a adotar uma perspectiva da qualo sistema mostrou a insuficiência. Mas, mesmo que che-gasse a proporcionar essas provas, deveria ainda mostrara necessidade e a legitimidade (histórica) dessas con-testações e dessas negligências: seria assim compelido arevelar as razões pelas quais o Absoluto não pode, final-mente, ser compreendido e deve ser ultrapassado emalguma empresa posterior. E, se satisfaz a essa segundaexigência, deve reconhecer que o hegelianismo não erasuficiente, não havia tudo “previsto” e desenhava ape-nas uma imagem imperfeita da Ciên ci a . Mas, se chegar-mos a esse ponto extremo, não ficará reduzido a essa

alternativa que, como filósofo hegeliano, lhe é difícilenfrentar: ou bem cada doutrina filosófica exprime seutempo; a de Hegel, nesse sentido, conseguiu pleno êxito,e convém a g o r a  —  d e a c or d o  com a perspectiva defini-da por Hegel, mas que não é uma perspectiva hegeliana(pois Hegel pretende o Saber absoluto) — elaborar o“ absolutodessetempo” ; ou então, chegou a ocasião paraque o Absoluto se revele; Hegel acreditou que a França

de Napoleão ou a Prússia de Frederico Guilherme in eram “propícias à elevação da filosofia ao conceito” ;precipitouse na apreciação; é agora que surge essa épo-ca privilegiada; mas, neste caso, que prova, do caráterdefinitivo de sua revelação, poderá dar tal pensador?Sem dúvida, não poderá dar essa prova. Assim, aquémdas exigências definidas por Hegel para que a filosofiase realize e apesar dessas exigências, mostrarseá uma

oposição tradicional: ou bem o filósofo postula que che-gou ao Saber absoluto e espera que essa postulação seja

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legítima ou bem reconhece que todo saber só tem comoprova a época da qual é o saber, que ele enuncia o rela-tivo, que é uma simples teoria da existência quotidianahistoricamente compreendida e, portanto, que o desejode uma satisfação universal e duradoura é frívolo.

A essa contestação do poder do l o gos pelo desenvol-vimento original do pensamento filosófico, acrescentaseoutra mais grave. De fato, nada anuncia, na históriado último terço do século XIX, a passagem dos Estadosexistentes a uma forma de organização mais adequadaà Razão. Ao contrário, a situação se desintegra continua-mente, na Alemanha, em particular, embora o hegelianismo seja amplamente difundido e considerado, ao

menos por certos círculos dirigentes, como doutrina ofi-cial, e as esperanças de liberalização do regime tornamse cada vez mais ilusórias. Frederico Guilherme m nãotoma providência alguma provando que pretende man-ter sua promessa de 1815 e de 1819; ainda mais, o pro-cesso de Hambach mostra claramente sua oposição aomovimento democrático. Após a morte de Hegel e até oadvento de Frederico Guilherme IV, o rei e o governo,

apesar da permanência de alguns liberais no ministério,reforça o caráter autoritário do regime prussiano: o pro- jeto hegeliano de uma hierarquia de Estados que asse-gurasse a mediação entre o poder e as diversas camadasde cidadãos não encontra nem mesmo esboço de reali-zação. A situação agravase ainda depois de 1840: aopasso que Frederico Guilherme m havia podido, depoisda vitória sobre o império napoleônico, alimentar a es-

perança da outorga de uma constituição, seu sucessor,quase imediatamente após sua ascensão ao poder, adotauma posição francamente “reacionária” ; demite os ad-ministradores liberais, esforçase em eliminar das facul-dades os professores que não sustentam a estrita orto-doxia cristã, submete a imprensa a uma vigilância rigo-rosa, dá à censura poderes exorbitantes e estimula apropaganda religiosa e antiliberal. Assim, o Estado real

cuja estrutura Hegel via surgir no movimento que havialevado os Estados existentes à sua forma moderna, re-

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velase Estado i d ea l , como esperança da Razão. A decalagem entre a realidade do Estado e a experiência queos homens dele têm, longe de atenuarse, cresce a talponto que, para o pensador liberal, o Estado dos Pr i n cí p i o s da F i l o so f i a do Di r ei t o , situase, no reino da Uto-pia, com a Calípolis platônica.

Em face da contestação do conceito pela empiria,quer se trate da discussão do Saber absoluto por dou-trinas que pretendem, com ou sem razão, escapar aoseu império, ou da oposição manifesta no devenir d os  Estados ao devenir d o  Estado, é possível adotar váriasatitudes. Pode, o filósofo, em primeiro lugar, ver nissoa prova da vaidade e da inanidade de uma empresa co-mo a de Hegel — e de toda outra empresa do mesmo ti-po — que pretenda conter toda a riqueza e toda a di-versidade do real nos limites estreitos demais do con-ceito; em tal ótica, o erro de Hegel teria sido o de es-quecer que o conceito se alimenta nas fontes vivas dasubjetividade, termo de referência fundamental, irredu-tível às construções lógicas; o que convém, não é que-rer concederlhe, no e pelo saber, uma libertação que

a subjetividade recusa, mas deixála en q u a n t o t a l , es-forçarse pela liberdade — se lhe for dada — de acordocom sua exigência própria; o que convém, em todo caso,,é renunciar a essa visão utópica segundo a qual a satis-fação pode ser proporcionada pelo l o g o s  : se há uma sa-tisfação, não poderia ser conferida nem universalmen-te nem no universal; e, em particular, é vão esperar queo reconhecimento seja dado no Estado, formação histó-

rica sujeita às flutuações do acontecimento.É possível, ao contrário, sustentar firmemente o di-reito do conceito e defender a perspectiva hegeliana.Essa atitude implica, no entanto, duas posições muitodiferentes. De um lado, com efeito, é possível — comoacabamos de indicar — admitir como irrefutáveis osprincípios que presidiram à elaboração do pensamentohegeliano e verificar, ao mesmo tempo, que, por moti-

vos ou causas a determinar, a obra de Hegel deve serretomada à luz dos novos acontecimentos que ele não

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soube ou não pôde prever. Nessa eventualidade, deacordo com a maior ou menor “fidelidade” a Hegel, opensador se esforçará em reinterpretar Hegel pondo emevidência os aspectos de sua concepção confirmados pe-lo devenir do pensamento e da sociedade e atribuindo àsituação histórica de Hegel ou à sua personalidade as

idéias errôneas que desenvolveu; ou então se empenharáem reconstruir um sistema de tipo hegeliano integrandoos novos elementos surgidos e mostrando também emque e porque a obra hegeliana deve ser superada; nes-se caso, observemos ainda uma vez, pois o assunto é,importante, encontrarseá em face da eventualidade se- ja de reconhecer o caráter historicamente relativo dosaber filosófico (o filósofo é capaz de saber o que é e oque é possível para seu tempo e em seu tempo), seja deafirmar, tentando demonstrálo — mas, o exemplo daobra hegeliana não seria então uma grave hipoteca — que soube desvelar integralmente o Absoluto. Assim,paradoxalmente, o hegelianismo, que deveria encerrara era da filosofia, lhe abriria um novo caminho, dandolhe novas forças. Devemos notar, desde logo, que seme-

lhante defesa do conceito não pode deixar de suscitara ironia antifilosófica que verá nessa floração de siste-mas reinterpretando ou descobrindo o Absoluto umaprova da incapacidade do l o gos de apreender o real e desua ingênua pretensão. E não devemos reconhecer queessa ironia tem procedência?

Há, no entanto, outra maneira de defender e defazer valer o hegelianismo e, com ele, o logos . A defasa

gem existente entre aquilo que o conceito revela comoreal e a empiria, suscita, não uma reação de descon-fiança em relação aos conceitos ou a preocupação deforjar outros mais adequados, mas uma vontade, a derealizar o conceito a q u i  e a g o r a , no seio mesmo da em-piria, por meio de uma ação. Essa resolução é de capi-tal importância e teve historicamente conseqüências

decisivas. Reconheceuse aqui a posição adotada, depoisque se desvaneceram as esperanças liberais na Alema-nha, em face da atitude de Frederico Guilherme III, por

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esse movimento confuso e diversificado dos “Jovenshegelianos” . Não se trata, neste trabalho, que não é his-tórico, de analisar precisamente as múltiplas posiçõesassumidas e as diversas motivações políticas e filosófi-cas que estavam em sua origem. Queríamos simples-mente tentar discernir a significação que pode ter se-

melhante atitude para nós que procuramos ver comclareza o debate entre materialismo e antimaterialismo. É claro, desde logo, que implica uma confiança to-tal na t e o r i a  hegelina, em geral, e, uma vez que o pro-blema político estava no centro do hegelianismo de es-querda, à do Estado racional em particular. Os Jovenshegelianos, como Hegel, e contra a filosofia românticautilizada contra eles, julgam que o Estado é o “divino

na terra” e que é somente nele que o homem pode al-cançar a satisfação; como Hegel também, pensam queimporta criar um regime no qual — de acordo com asnoções desenvolvidas pelos teóricos do século X V III — ointeresse de todos coincide com o interesse de cada um,no qual a vontade individual queira o que é o b j e t i v am e n t e  racional razoável. E aderem, ao que parece, nemsempre aceitando seus pormenores, a essa organizaçãosutil do Estado graças à qual a unidade necessária dopoder se concilia harmoniosamente com a diversidadedos elementos que compõem a nação.

Mais precisamente, em face do caráter reacionáriocada vez mais acentuado do Estado prussiano, parecelhes que o sistema político definido por Hegel, comocorrespondendo à essência do Estado, constitui o tema

cm torno do qual devem travar a batalha liberal. Con-tra o regime de opressão e de autoridade instauradopelo governo, defendem o liberalismo de Hegel e en-contram em sua obra provas e sólidos argumentos. Éum fato, aliás, se considerarmos a situação criada de-pois de 1840, que o projeto hegeliano parece extrema-mente “progressista”. A confiança dos Jovensnegelianos na análise política do mestre harmonizase mui-

to bem com a estratégia política que convém à epoca. Todavia, a essa aceitação dos resultados adquiridos

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pelos Pr i n cíp i o s da F i l o so f i a do D i r ei t o   acrescentasegrave restrição: a insuficiência do hegelianismo — queé, senão uma insuficiência de Hegel, ao menos um er-ro de seus discípulos que se contentam em e n s i n a r   osistema — é de propor e de descrever o Estado racio-nal sem nada fazer para que ele ex i s t a . A satisfação

proporcionada pela compreensão do que é permaneceuma satisfação ideal, vima falsa satisfação; o saberabsoluto é absoluto, sem dúvida, mas continua sendoSaber. O divórcio observado e compreendido pela ciên-cia entre o conceito e a existência empírica não desa-parece pelo fato de ser compreendido; importa aindasuprimilo empiricamente. Para conseguilo, é precisoagir e denunciar a baixeza, a injustiça e o absurdo do

regime autocrático que contradiz o que está realmen-te contido na Idéia do Estado®.

Em suma, o erro do hegelianismo foi supor que,demonstrando que o real é racional e conhecendo adiferença entre o real e a existência empírica, que a sa-tisfação deveria nascer apenas da determinação do queé o Estado em sua essência objetiva. A satisfação deveser também empírica; é preciso, pois, realizar na empiria o Estado racional. Importa, doravante, usar oconceito, não só para compreender o que é, mas parafazer existir o que deve ser. A tarefa teorética da filo-sofia acrescentase, assim, uma missão crítica; o con-ceito que reflete a realidade deve ser também umaa r m a  para aqueles que querem que o real se torne ra-cional. Essa definição do papel da filosofia pela crítica

implica uma dupla dimensão: supõe, não só que a obra

9 “ Penetrados pela doutrina hegeliana e não duvidando da onipotên-cia do Espírito em transformar o mundo, os jovenshegelianos, inca-pazes de travar o combate no plano político e social, permaneciam, emsua luta no plano conceituai, pensando que pelo fato de o desenvolvi-mento das idéias determinar o da realidade, bastava eliminar em teoria os.elementos irracionais incluídos no real para conferir à marcha daHistória um caráter racional”. A. Cornu, Karl Marx e Friedrich En Seis, t. I p. 141.

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teorética tenha sido suficientemente realizada e queconvenha, doravante, utilizar seus resultados, deven-dose, portanto, passar, de certo modo, da ci ên ci a à a p l i  cação dessa ciência10, mas também — e esse é um pontoao qual deveremos voltar — que a ciência como tal éincapaz de trazer a satisfação e que somente sua rea-

lização pode permitir o êxito de suas finalidades últi-mas. Preocupado em desenvolver polemicamente suaperspectiva, o movimento jovemhegeliano despreza, alémdisso, suas implicações filosóficas e se esforça em apli-car o “liberalismo” hegeliano à crítica do Estado atual:utiliza, em particular, o racionalismo, desenvolvendooem direções precisas contra as concepções românticas ereligiosas defendidas pelos partidários da autocracia:

tenta mostrar a que escandalosas falsificações se entre-gam aqueles que fizeram de Hegel um pensador queteria desejado a confusão da autoridade política e daautoridade religiosa; chega a exaltar o papel libertadordos filósofos da A u f k l ä r u n g  que precisamente utilizaramo conceito como arma para denunciar a irracionalida-de de sua época11.

Elaborase, assim, uma “filosofia da p r a x i s ” 1'-  vi-sando eliminar os elementos irracionais da existênciaempírica. Na medida em que é precisamente no nível doque deveria ser a Razão objetivada, no nivel do Estado,que esses elementos se manifestam, essa filosofia assu

10 “Segundo Hegel, a vontade c apenas um modo de ser particular

do pensamento, o que é falso; é o pensamento, ao contrário, que cons-titui um momento da vontade, pois o pensamento que quer realizarseassume a forma de vontade e de ação” . A . von Cieszkowski, Prolego- mena zur historiosophie, p. 120, citado por A. Cornu, ibid., p. 142.

11 Cf. D .F . Strausz, Das leben Jesu  e a análise dessa obra que éfeita, em particular, por A . Cornu, ibidem , pp. 137140.

12 Cf., por exemplo, A . von Cieszkowski, op. cit., p 129: “Tornar

•se um filósofo prático ou, melhor dizendo, da atividade prática, da

Praxis  exercendo influência direta na vida social, desenvolver a ver-dade no domínio da atividade concreta, tal é a função que deverá de-sempenhar, no futuro, a filoso fia” . Cf. A . Cornu, ibid., t. I, cap. III.

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me um caráter diretamente político: “Nossa época só écompreendida pela filosofia, nossa tarefa é ajudar nos-so tempo a fazer de tal modo que não só compreenda afilosofia, mas que a realize... A filosofia transformaseem convicção política, a convicção política em força decaráter, a força de caráter em ação” 13. A tarefa que o

movimento assume, de acordo com a fórmula enérgicado jovem Marx, é chegar a um “devenirfilosofia domundo”14. A empresa não deixa de envolver ambigüida-des filosóficas sobre as quais deveremos insistir. A p r a x i s , iluminada pela razão, propõese acelerar o movimentodo devenir, revelar a racionalidade nele contida e ven-cer a má vontade dos governantes que se recusam acompreender a necessidade e o valor do Estado racional.Aceitando o valor da teoria, negalhe, como tal, eficácia;é pela ação crítica que a teoria “passará para os fatos”.A ciência deixa de ser um resultado para tornarse umprograma, e sua realização repousa doravante naacuidade crítica e na coragem cívica dos filósofos quesaibam denunciar o que está morto e saibam fazer pre-valecer o ponto de vista da Razão. Precisam conquistar

aliados e tornarse propagandistas, militantes da racio-nalidade.

Satisfazer o homem real, aplicando os princípioselaborados pela Ciên ci a , acelerar o movimento da his-tória, usar o conceito para dar à luz a racionalidadecontida no devenir, tal é o programa corajoso da cr ít i ca . É lícito perguntar, no entanto, se tal coragem não sig-nifica uma espécie de regressão em relação às desco-

bertas do pensamento kantiano e do hegelianismo. Nãoimplicará, essa atitude, em graves confusões, que con

13 Anais de Halle, novembro de 1840, A. Ruge, Freiherr von Fio  rencourt und die kategorien der politisclien praxis, 24 de nevembro,pp. 2250 e 2254, citado por A . Cornu, ibid., pp. 172173.

14 Fragmentos  acrescentados à Dissertação sobre a diferença da Filo- sofia da Natureza em Demócrito e Epicuro, trad. Molitor, Obras Filo- sóficas, t. I, p. 76.

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denarão o movimento jovemhegeliano a travar uma po-lêmica inútil, da qual sairá vencido e definitivamenteesterilizado? Não levará, de fato, a pretexto de preten-der tornar reais as conquistas hegelianas renunciar aelas? Verificase, com efeito, em primeiro lugar, que aidéia de uma aplicação prática da ciência compromete

gravemente sua noção tal como a definiu Hegel15. Se épreciso tornar o real racional, utilizando os conceitoselaborados pela ciência filosófica, é evidentemente por-que esta última, saber d o racional, não é saber d o real;seu objeto não é, pois, como dizia Hegel, o Ser na tota^lidade de suas determinações, mas apenas um aspectodo real — no sentido mais banal e mais geral — , o as-pecto racional. Se importa lutar pelo “devenirfilosofia

do mundo”, é porque subsiste uma separação entre a fi-losofia e o mundo, uma cisão entre o l o gos e o Ser. Ateoria não pode mais ser considerada visão fiel — refle-xo ou reflexão — da integralidade do dado: tornaseapreensão de uma parte do dado, aquela que precisamen-te não é dada imediatamente e que se esconde sob a di-versidade, a confusão e a irracionalidade do existente.Sem dúvida, o hegelianismo de esquerda retém a for-mulação célebre do Pr efáci o dos Pr i n cíp i os da\ F i l oso f i a  d o D i r e i t o :   “O real é racional (ou razoável)” ; mas, suainterpretação dessa tese destrói, ao que parece, seu al-cance e sua significação. Enquanto a realidade é, paraHegel, a unidade dialética da essência e da existência,nessa perspectiva, fracionase novamente em duas de-terminações estranhas uma à outra: de um lado, o nú-

15 Cf. Anais de Halle, A . Ruge, E .M . Arndt: Erinnerungen aus  dem ausseren leben, 8 outubro 1840, p. 1931: “É verdade que Hegelnão permaneceu fiel ao princípio de desenvolvimento, ao verdadeiroidealismo e à dialética que anima sua filosofia do espírito, nem nodomínio da religião, nem no da política nem, do modo mais geral, noda história, e que sua polêmica contra o “Deverser”, dirigida nãocontra o dogmatismo, mas contra a crítica, que é o elemento determi-

nante do processo histórico, assim como sua sabedoria especulativa econtemplativa de brâmane, constituem a renegação de todo idealismoprático” , citado por A. Cornu, ibid., p. 164.

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cleo da realidade, racional e conhecido pela filosofia e,de outro, o existente cuja irracionalidade é revelada pe-la crítica que o considera suscetível de racionalização.Na verdade, essa relação estabelecida entre a essênciae a existência, revelase ambígua: por um lado, os doistermos diferem absolutamente — como o racional do ir-

racional — , mas, de outro, em certa medida, o existen-te, uma vez que é efetivamente “ racionalizado” , guar-da alguma coisa das determinações da essência. Tratase, em todo caso, de uma ruptura total com a perspecti-va hegeliana e de um retorno às concepções tradicionaisda metafísica: a filosofia, graças aos processos que lhesão próprios, descobre o ser o c u l t o  e i m p o r t a n t e ;  e o fi-lósofo, homem que sabe o valor da Razão, esforçase em

transformar o mundo em função de sua descoberta. Todavia, o que distingue a cr ít i ca  do pensamento

préhegeliano, é que ela se consagra integralmente àsua tarefa de transformação, admitindo que, em rela-ção ao mais importante, a tarefa da filosofia está cum-prida de modo satisfatório10. Salienta, pois, o caráter es-sencial da existência empírica, a satisfação dos indiví-duos em sua vida quotidiana. Embora mantenha o “va-lor” do logos , insiste na necessidade de uma praxis quetorne o dado “ lógico” ; esforçase, pois, contrariamentea Hegel (que mostrava a ligação dialética dos dois ter

16 É assim que E. Weil interpreta todo o pensamento de Marx:“ Quanto ao essencial (para M arx), tratase de tirar de uma  filosofia  uma ciência  e lima técnica, de optar pela realização daquilo que a fi-

losofia enuncia como pura necessidade hipotética, e de procurar paraisso os meios conceituais c políticos disponíveis e indispensáveis, detraduzir o idealismo da filosofia (e de toda a ciência teorética) emmaterialismo histórico e político” . Hegel e o estado , p. 114. Essa in-terpretação corresponde, ao que parece, ao pensamento de Marx “jovemhegeliano” (que se manifesta — já com certas aberturas para ofuturo — na Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel); tentaremos, nas páginas seguintes, mostrar de que modo Marx tentousair dos impasses a que o levava semelhante atitude, e de que modo,

respondendo às perguntas que se propõe precisamente E. Weil, ( op. cit., pp. 114115) descobriu o caminho da verdadeira Aufhebung  (su-peração) da filosofi»

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mos) em preservar i n i c i a l m e n t e  sua diferença a fim de,em seguida, igualar o dado empírico e o serrefletido.Ao mesmo tempo, designa esse termo como i d ea l . O quea ciência demonstra como sendo o racional é tambémaquilo que é preciso fazer existir e que, portanto, ao mes-mo tempo, determina uma missão e estabelece suas mo-

dalidades. Assim, o serracional afastase ainda um pou-co mais da empiria; opondose a ela como a essência àexistência — conforme a condição — , dela difere comoo ideal do real, o objeto da vontade do dado da percep-ção. A vocação filosófica, agora que a ciência está com-pleta e que revelou, ao mesmo tempo, sua perfeição eempiricamente sua insuficiência fundamental, reduzsea q u e r e r  o racional. Esboçase, assim, como foi muitas

vezes salientado, um retorno a Kant e a Fichte. A t e o r i a ,  a visão, requer a prática. Ainda aí, a oposição a Hegelé manifesta; este sempre insistiu, precisamente porquese propunha mostrar as falhas da filosofia da reflexãoe do voluntarismo fichtiano dela decorrente, no absur-do que representa para o filósofo, preocupado com aciência, indicar o que deve ser: “A filosofia é o fundamen-to do racional, é a inteligência do presente e do real enão a construção de um além que se encontraria sabeDeus onde, ou antes, sabemos bem onde se encontra: noerro, nos raciocínios parciais e vazios”17; ao que, acres-centa: “Para dizer ainda uma palavra sobre a preten-são de ensinar como deve ser o mundo, observaremosque, de qualquer maneira, a filosofia chega sempre tar-de demais” 18. Ciência do Ser, a filosofia hegeliana con-

sidera a moral, na significação habitual do termo, comoum fato do qual importa descobrir a realidade: “quequerem os homens?” e não como um conjunto de.pres-crições individuais e coletivas: “que deveriam querer?que devo querer?” Para o filósofo, é absurda a ambi

17 Princípios da Filosofia do Direito, Prefácio, p. 29.

18 Ibid.,   p. 32.

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ção de impor um dever, porque nada pode justificar oconteúdo desse dever senão aquilo que é, aquilo que já é desejado pelos homens: “O que o conceito ensina, a his-tória o mostra com a mesma necessidade” 19. A missão daciência filosófica é elevar ao conceito o que é (e, por is-so mesmo, o que é possível). Contra essa atitude, ao

mesmo tempo modesta e altiva, a cr ít i c a desenvolve efe-tivamente, nas polêmicas que trava, uma doutrina quesomos obrigados a qualificar de moralizante: e, para-doxalmente, essa doutrina resulta, para encurtar pala-vras, da superestimação e da incompreensão do hegelianismo. De um lado, a filosofia política de Hegel, corri-gida no sentido exigido pela época, parecelhe conter oalfa e o ômega de todo pensamento político; de outro

lado, é considerada abstrata, descrição de uma racio-nalidade que não é real. Aos olhos dos jovenshegelianos,Hegel diz o que é verdade, mas que não é;  adotam entãouma solução que repugna à estrutura do hegelianismo:o autor dos Pr i n cíp i o s da F i l o so f i a do D i r ei t o  descreve oi d ea l .

E, ao mesmo tempo, com certa ingenuidade, a c r í 

t i c a  se prepara para “atravessar o Ródano” 20. Retorna às

perspectivas tantas vezes denunciadas por Hegel comoinaceitáveis, características dos pensadores da Idade dasLuzes.21 O filósofo recupera seu estatuto e seu privilé-gio de indivíduo que tem a ocasião de possuir a Razão

19 ibid.

20 Empregamos, por comodidade, essa expressão já habitual em lín-gua francesa embora interprete de maneira errônea a fórmula antiga“ saltar o Rubicon” .

21 Sobre a influência da Aufklärung  na esquerda hegeliana, cf., porexemplo, Koppen, Friedrich der grosse, p. 35: “A Aufklärung  foi o

Prometeu que trouxe para a terra a luz celeste a fim de iluminar oscegos, o povo, e libertálos de seus preconceitos e de seus erros. Queos filósofos que pregam um novo caminho de salvação e com tão boa

vontade declaram guerra ao Racionalismo abstrato do século  xvii i, queiram pensar sobre isso e que assim procedendo prejudicamse a simesmos”, citado por A Cornu, ibid., p. 174.

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e que, como tal, tem o doloroso e exaltante encargo deensinála. Tudo se passa como se o fato de mostrar quea empiria está desprovida de racionalidade levasse a iso-lar a Razão, a promovêla juiz e a conferir àqueles quea possuem a obrigação de fazêla triunfar. A consciên-cia do jovemhegeliano é, ao mesmo tempo, infeliz e

confiante: infeliz porque experimenta o divórcio entreo que sabe ser bom e racional e o que existe; confianteporque conhece a solução para os males da humanidade

 — solução que lhe traz Hegel “ reinterpretado” — e por-que esse conhecimento lhe dá a “ convicção prática” . Se-rá necessário, para o presente trabalho, determinar osentido dessa situação contraditória do hegelianismo deesquerda e verificar sua validade filosófica. É importan-

te, agora, observar a oposição profunda existente entrea Ciência hegeliana e a decisão daqueles que queremrealizála. Tratase de uma posição que, por mais con-fusa que seja historicamente, traz uma contestação de-cisiva ao próprio exercício da filosofia, por mais bem su-cedido e científico que seja.

O rejuvenescimento do hegelianismo implica, por-

tanto, na realidade, uma discussão dos princípios e dosresultados da obra hegeliana. Seria muito fácil atribuiressa contestação à ininteligência è à paixão partidária:se desprezou certos aspectos do sistema que nos parece-ram decisivos, foi, sem dúvida, porque a cr ít i ca  nãopôde chegar, apesar de suas afirmações, a uma perspec-tiva r a d i c a l ;  mas, a dúvida que suscitou, a propósito dovalor do sistema e de suas ambições, tem como origem

a situação da Alemanha e, talvez, da Europa no segun-do terço do século X IX : situação tal que não é mais pos-sível pretender que apenas o logos , por mais bem suce-dido, por mais incontestável que se possa mostrar emseu desenvolvimento e em seus resultados, proporcionea satisfação. De fato, no sistema completo, idêntico aopróprio Ser que se compreendeu, a alteridade desapare-ceu e o Pensamento experimenta sua livre plenitude.Nem por isso, no entanto, o homem empírico está satis-feito: continua infeliz e submetido à opressão. Livre co-

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dos filósofos franceses da Idade das Luzes puderamtransferirse para a realidade, foi pela ação  revolucio-nária e não em virtude de sua autoridade ideal; o re-gime alemão só se transformará se for executada umaação crítica destinada a mudálo: à revolução filosóficahegeliana deve acrescentarse uma revolução histórica23.

Essa crítica do hegelianismo, que é também umacrítica da filosofia e que resume, afinal, as objeções tra-dicionais do Bom Senso e do pensamento técnico contraa ambição do filósofo, não será alvo, por sua vez, de ar-gumentos já desenvolvidos pela filosofia e perfeitamen-te elucidados por Hegel? Não estaremos novamente emface de um debate no qual cada um dos participantespode, com todo direito, manter suas posições? A filoso-

fia hegeliana tem, com efeito, o direito de censurar acrítica por privar o Saber de seu sentido, atribuindolhepor missão refletir (ou “meditar”), não o Ser no con-

 junto de suas manifestações, mas o Ser oculto; se as-sim é, que prova de sua verdade pode apresentar seme-lhante saber? Que legitimidade poderá reivindicar? Es-tabelecendo novamente um corte entre o essencial e oexistencial, não condenará novamente a filosofia a ape-lar para o privilégio de uma revelação excepcional? Oretorno a uma ótica análoga, em conjunto, à da Idadedas Luzes, reitera os erros do racionalismo abstrato.Mais precisamente e na esfera política, a posição de umaordem racional, elaborada conceitualmente e dotadaapenas de realidade ideal, não leva a supor a realidadede um d i r e i t o n a t u r a l   ou i d e a l  ? Ora, Hegel mostrou afalta de seriedade de tal suposição que trata o problemado Estado como se o direito positivo e o direito naturalfossem opostos por natureza, como se não houvesse “ain-da existido Estado algum, nenhuma constituição polí-

23 K. Marx, Con t r i bu i ção  à crítica  da  filosofia  d o  direito de Hegel, Obras filosóficas, t. I, p. 87: “ Em luta contra esse estado social, a críti-ca não é uma paixão da cabeça mas a cabeça da paixão. Não é umbisturi, mas uma arma. Seu objeto, é seu inimigo, que ela quer, nãorefutar, mas destruir” .

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tica sobre a terra, (como se) não existissem atualmen-te”24.

Esse retorno aos aspectos mais superficiais do racionalismo abstrato é acompanhado, na medida em quesemelhante raciocinação sente sua falta, de uma exorta-ção romântica que apela para a boa vontade dos gover-nantes, para a coragem subjetiva do filósofo, para suafirmeza política. E esse movimento jovemhegeliano queexalta a p r a x i s  não utrapassa finalmente, porque suacontestação do hegelianismo é f i l o s o f i c am e n t e   insufi-ciente, as perspectivas políticas empíricas que eram asde Hegel. A crítica, com efeito, em sua ação política, nãovai além da polêmica; esforçase em influenciar a opi-

nião pública cultivada, convencer os governantes; masnão organiza, a bem dizer, u m a ação h i s tó r i ca efe t i va .  Hegel dirigiase, na medida em que pretendia desem-penhar um papel político, aos cidadãos, às autoridadespolíticas e administrativas para ensinar como o Estadodeve ser conhecido, abrindolhes, de certo modo, um cré-dito de confiança; a cr ít i ca  argumenta contra as deci-sões governamentais; mas apela, também, para a Ra-

zão dos dirigentes e admite como evidente o poder per-suasivo dos discursos. A contradição entre as duas ati-tudes é apenas aparente: somente a época mudou e nãoa concepção da ação política do filósofo. A cr ít i ca  con-tentase assim em opor, numa polêmica, as idéias “justas”às idéias “ errôneas”. O racional concebido ao irracionalexistente. Contra este, quer lutar com a arma dos con-ceitos; isso porque, no fundo, julga que o predomínio

das falsas doutrinas — as do absolutismo e do direitodivino fundadas na ortodoxia cristã — é responsável pe-la “ desordem” do Estado e da Sociedade. A Razão tri-unfará no dia em que os governantes e a opinião públi-ca forem convencidos da falsidade das i déi a s  que estãona origem do mau regime atual.

A atitude do hegelianismo de esquerda, apesar de

24 Idem, p. 24.

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sua ambição de ser simples e simplesmente “ativa”, épois de grande ambigüidade. De um lado, a crítica sali-enta com razão a ineficácia empírica do l o g o s  ; insistelegitimamente na necessidade de satisfazer o indivíduo,de proporcionarlhe uma liberdade que não seja apenasuma liberdade do l o gos n o l ogos ;  manifestase como ve-

rificação do malogro do hegelianismo; e, na medida emque considera o sistema hegeliano completo e bem su-cedido, discute, com justa razão, ao que parece, o “ valorempírico” da filosofia e sua possibilidade de realizar, ca-so permaneça teorética, a vontade de promover univer-salmente a satisfação. Todavia, essa decisão de realizara filosofia, isto é, de agir para que a preocupação filosó-fica seja empiricamente efetivada, por mais justa quepossa ser, operase em tal perspectiva que conduz t a n t o   à ingenuidade teórica q u a n t o  à ineficácia prática. Teo r i c am e n t e , o hegelianismo de esquerda mostrase inca-paz de sair dos dilemas e das dificuldades que condena-vam a metafísica às discussões intermináveis; na medi-da em que a ciência não é ciência do real enquanto semanifesta, mas saber da essência ou do ideal, tornaseincapaz de justificar sua ótica; fica reduzida a apre-sentar o alvo de sua ação como objeto da vontade de ho-mens resolutos e que sabem. P r a t i c a m e n t e , o hegelia-nismo de esquerda erra ao considerar suficiente umapolêmica que, em atmosfera de completa desconfiança,confia nos poderes e acredita na conversão intelectualgraças à qual os indivíduos e, em particular, os gover-nantes começariam a raciocinar corretamente.

Rigidamente inscrita nos quadros do hegelianismoporque considera pacíficos os resultados da política hegeliana, pouco preocupada com a significação filosóficarevolucionária da obra, a cr ít i c a  não vê que sua idéiade realizar a filosofia é uma “idéia do entendimento”,abstrata, parcial e vazia. Se o Saber absoluto exige umarealização, é porque não é absoluto; se não descreve asituação dos homens que desesperam do regime de Fre-

derico Guilherme IV e não encontram na Europa espe-rança alguma de transformação, não é porque tenha si-

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do traído pela falta de sorte ou a má vontade dos indiví-duos: é porque não refletia exatamente a realidade. Omalogro, que, empiricamente, é claro, deve ser tambémuma fraqueza da ciência. Ora, a ciência filosófica, comHegel, chegou a tal grau de acabamento que é sua pró-pria idéia que se deve contestar. De fato, segundo o pró-

prio Hegel, uma atitude ou categoria só exige e lograsua realização quando é, ao mesmo tempo, negada e su-perada. A realização corajosa da racionalidade, deseja-da pelo movimento hegeliano, só pode assumir signifi-cação se o pensamento compreender que é compelido,ao mesmo tempo, a suprimir e a “sublimar” até a no-ção de racionalidade tal como é definida pela filosofia,submetendo a rigorosa investigação o exercício da pró-

pria filosofia.

3

O “malogro histórico” do heçelianismo, as falências

do movimento crítico mostram, ao que parece, que é inú-til pretender realizar teórica e praticamente a filosofiasem, ao mesmo tempo, tentar súprimila e superála. O“viraser mundo da filosofia”, que dizer, o esforço paraestabelecer uma ordem humana que traga ao homemuma satisfação t a m bém  empírica, implica o “virasermundo da filosofia” , isto é, o emprego de um modo depensar e de agir radicalmente novo que, de fato, impli-

que a negação do exercício da filosofia e sua elevaçãoa um nível superior5. Todavia, para obter êxito, essaoperação difícil de “sublimação” (A u f h e b u n g  ) deve ser

25 Essa idéia aparece em Marx em um momento no qual a ótica“jovemhegeliana” ainda é, em muitos aspectos, dominante. Cf., entreoutros, a Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel : “Na

luta atual, esse partido, o partido político teórico viu apenas a lutacrítica da filosofia contra o mundo alemão; não percebeu que a própriafilosofia faz parte desse mundo do qual é o complemento ideal. Crítico

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unitária: é capital, para ela, manter a unidade dialéti-ca dos três momentos que a constituem e, em particular,não favorecer a realização com referência à negação ouinversamente. Todo desenvolvimento unilateral de ummomento ameaça falsear o conjunto do movimento paralevar, não além, mas aquém da filosofia. O' exemplo que

acabamos de evocar resumidamente, do hegelianismode esquerda, prova bem que dificuldades implica a deci-são de somente realizar a filosofia. Sem dúvida, tratasede fazer existir empiricamente essa racionalidade queo filósofo procura e atinge no nível do l ogos ; tratase detrazer a satisfação ao homem em seu ser empírico poruma organização do mundo humano em que cada um,desejando seu interesse particular, chegue à plenitude

duradoura e seja, ao mesmo tempo, livremente reconhe-cido por todos, como homem que procura e atinge le-gitimamente a plenitude. Tal posição, no entanto,acumula as obscuridades e é, a justo título, contestadapela reflexão filosófica: assim como já foi observado, oSaber tornase incapaz de provar sua validade uma vezque tem por objeto não o sermanifesto, mas o serocultoque, além disso, nessa perspectiva, assume a figura doideal; e, a própria realização desse ideal cai na esferada contingência, pois é entregue à convicção e à cora

em relação a seu adversário, não fo i em relação a si mesmo: tomou,com efeito, como ponto de partida, as hipóteses da filosofia; mas, ou seateve aos resultados por ela proporcionados ou foi procurar alhuresexigências e resultados para apresentálos como exigências e resultados

imediatos da filosofia , embora não se possa — suposta sua legitim ida-de — obtêlos, senão pela negação da filo so fia tal qual fo i até hoje,quer dizer, da filosofia enquanto filosofia... Seu principal equívocopode ser assim resumido: imaginava poder realizar a filosofia sem suprimila”. Obras filosóficas, t. I, pp. 9495. A partir da Ideologia alemã, a superação do hegelianismo de esquerda está consumada: “Os mais jovens dentre eles (o s ideólogos jovemhegelianos) encontraram aexpressão exata para sua atividade quando declararam que combatemapenas contra frases. Esquecem simplesmente que, a essas frases, não

opõem eles próprios, senão frases e que não combatem de modo algumo mundo existente realmente, ao combater somente as frases desse mun-do” . Idem , t. IV pp. 152153.

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gem individuais. Não há mais diferença alguma entreessa atitude e a atitude platônica.

Esse esquema que concede todo o privilégio à r e a l i  

zação encontrase nessas concepções que denunciamos nocapítulo primeiro como interpretações errôneas do pen-samento marxista. O objetivismo cientista, com efeito,

adota exatamente a mesma ótica: admite, de umaparte, que a verdade é dada no nível de um conhecimen-to científico admitido como isento, por natureza, de con-testação; esforçase, por outro lado, em descobrir a co-ragem individual e coletiva que será capaz de a-p l icar aciência, de denunciar a covardia ou a ignorância inte-ressada; de um lado, será dogmático e terá dificuldadeem responder às objeções tradicionais da filosofia; de

outro, será compelido à moralização e será posto emquestão por doutrinas que têm o mesmo direito de rei-vindicar o “Valor” autêntico. Nessa ótica, a aridez dog-mática tem, por assim dizer, como complemento obriga-tório, o lirismo da exortação moralizante. Assim, o quea insuficiência do hegelianismo de esquerda permite sa-lientar, é a vaidade de todo esforço de qualquer saber,seja qual for, — quer se apóie em uma revelação de or-dem metafísica, em uma estrutura formal perfeitamen-te ajustada, nas lições das disciplinas experimentais oumesmo na posse de um instrumento de inteligibilidadeprivilegiado, a dialética, por exemplo20, — em pretenderir além do que é dado e indicar o que deve ser. A filo-sofia, como tal, não pode “atravessar o Ródano” : é ab

26 N a obra de H. Lefebvre (e, principalmente, em O materialismo dia- lético  e Para conhecer o pensamento de Marx)  cuja importância eoriginalidade convém salientar, que soube mobilizar contra o dogma-tismo das “filosofias gerais marxistas" todos os recursos da sutilzca eda cultura e opor ao “subjetivismo de classe” a exigência científica deobjetividade, é freqüentemente admitido, como ponto pacífico, que omaterialismo está “ fundamentado” porque possui o instrumento daverdade. O “objetivismo” , a esse respeito, embora represente uma

compreensão mais profunda da tarefa teórica do marxismo, revelasetão pouco justificado quanto o “subjetivismo de classe” e o “messianis-mo do proletariado” .

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surdo querer “mover a roda da história” em nome deum fim que seria descoberto pela Ciência ou pelas ciên-cias: “ a única lição da história é que a história não temlições”27. Também não é necessário salientar novamen-te a carência das concepções, segundo as quais o mar-xismo consistiria em efetuar a promessa que está con-

tida na existência do proletariado, classe por essênciaprivilegiada, possuidora da virtude de saber e de agircomo convém; embora essa interpretação se tenha re-velado historicamente em oposição à do objetivismo (fi-losófico ou cientista), essa interpretação se reduz a umesquema análogo. Há, de um lado, um conhecimentoexato por natureza, que é dado, desta vez, não por ummodo de conhecer, mas em um modo de ser que espera,

além disso, as boas vontades capazes de atualizála. Adiferença existente entre uma e outra interpretações li-mitase à natureza desse saber: o objetivismo admite ovalor incondicionado do conceito ou das ciências — con-forme se inspire no hegelianismo de esquerda ou no po-sitivismo — , o “subjetivismo de classe” recebendo, porseu turno, o absoluto do sentimento da existência. Emambos os casos, tratase de a p l i c a r   uma revelação, depropor um ideal, confiando ao homem ciente, informa-do ou de boa vontade, o cuidado de completar a tarefainconclusa do demiurgo.

É impossível realizar efetivamente a filosofia semsuprimila, isto é, sem fazer incidir, em primeiro lugar,uma dúvida radical sobre o próprio alcance do saber talcomo é definido pelo filósofo e tal como se degrada na

perspectiva positivista. Todavia, a idéia de supressão oude negação da filosofia não deixa de envolver, por suavez, ambigüidades. Facilmente se passa da recusa de suasolução filosófica à invalidação dos problemas propos-tos pela filosofia. Se for verificado que a satisfação pro-curada pelo filósofo só é alcançada em idéias, é porque,talvez, o projeto de propiciar a satisfação é absurdo.

27 Lições sobre a filosofia da História, p. 21.

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Assim sendo, a supressão da filosofia significaria que,no “êxito” da filosofia — a obra hegelina — e em seumalogro histórico — salientado pelo movimento crítico — revelase racionalmente, para o homem, a inviabilida-de do direito à satisfação; a história da filosofia teriamostrado que é frívolo e ingênuo reivindicar o conten-

tamento empírico, mesmo quando aquilo que demonstrasua capacidade de satisfazer não contenta efetivamen-te e deixa o homem na mesma situação de infelicidadee de alienação. Além da dúvida sobre a vontade filosó-fica, seria posta em questão a preocupação com a satis-fação, desejo ingênuo da humanidade presa da aliena-ção que não compreende que esse é o seu destino e quedeve viver na infelicidade que lhe foi reservada. A am-

bição de suprimir a alteridade, de assegurar a plenitu-de do pensar só se efetua no discurso, nas frases e pelasfrases: aquém (e além), há o indivíduo esmagado pelafinitude: a história seria, nessa perspectiva, a história deuma grandiosa aberração. Não é esta a oportunidade desalientar a incerteza de semelhante atitude que, aliás,

 já encontramos em suas linhas gerais no capítulo ante-rior. Tratase, no caso, seguramente, de uma negaçãonãodialética do exercício da filosofia que, verificando omalogro desse exercício, afirma o absurdo da problemá-tica que está na sua origem. A crítica é radical, masabstrata, pois não explica a existência da filosofia, a nãoser apontandoa como resultado de um erro.

Essa decisão de suprimir a filosofia pode tambémconsistir na retomada e no aprofundamento das atitu-

des tradicionais da antifilosofia. Não se negará, então,que a satisfação possa ser alcançada pelo indivíduo:mas, no “malogro” do hegelianismo verseá a prova deque a satisfação não poderia ter os caracteres que lheeram atribuídos pela filosofia. Para esta, só é efetiva asatisfação universal, calcada no reconhecimento de ca-da um por todos; ora, a ordem humana que permitiriasemelhante reconhecimento é apenas ideal; constitui uma

espécie de voto piedoso. Assim sendo, é preciso resolverse a compreender a satisfação como o produto da sor

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te, do trabalho ou da vontade individual: alguns indiví-duos a alcançam, outros não o conseguem, tal é a “li-ção da história”. A reflexão, no que lhe diz respeito, temcomo única tarefa determinar em que condições e porque processos os interesses de tal indivíduo poderão “ terêxito” e dar ao “interessado” o contestamento que, sin-

gularmente, ele procura. A discussão sobre os fins da hu-manidade é absurda, porque vã e estéril; é mantida poraqueles cujos medíocres interesses e débeis paixões in-timidam; o único problema que se apresenta — e nãoestá provado que se apresente necessariamente pois, nes-se domínio, é admissível que a espontaneidade apaixona-da seja melhor juiz — é o da escolha dos meios de obteros valores presentes nos próprios indivíduos e que variam

de acordo com cada um. Suprimir a filosofia é percebernão a impossibilidade da satisfação, mas a inanidadeda ambição de definir e proporcionar a satisfação u n i  ve rsa l . Essa “ refutação” da filosofia situase, também,na perspectiva de uma negação abstrata que, como tal,é suscetível, em tese, de ser retomada a propósito de ca-da sistema filosófico, mas que, por outro lado, é incapazde provar que constitui a superação real da filosofia.

 Tal superação — para ser uma verdadeira A u f h e -   b u n g  — deve atender a uma série de exigências aparen-temente opostas. Se a operação que consiste em superara filosofia tem sentido e pode promover um modo depensar e de agir absolutamente original, deve, antes demais nada, ser capaz de trazer efetivamente — deven-do ser determinada a natureza dessa efetividade — uma

satisfação em pír i ca  (poderemos dizer doravante: real,pois fica excluído o risco de confusão com a “realidade”,tal como Hegel a definia) e u n i v e r s a l ;  em outros termos,deve assinalar e promover — o sentido da conjunção de-vendo também ser determinado — uma ordem humanana qual o indivíduo, em seu serempírico, possa ser sa-tisfeito de modo duradouro, na qual se instaure um li-vre reconhecimento de cada um por todos, no nível da

própria empiria. Tratase, realmente, como o desejavao movimento crítico, de fazer existir h i c et n u n c  a ra-

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cionalidade e de manter, na perspectiva tradicional dafilosofia, a idéia de vima satisfação universal. Todavia,contrariamente à ótica jovemhegeliana e com a preo-cupação, recebida de Hegel, de banir toda metafísica etodo moralismo, importa apresentar a teoria científica,não como apreennsão de um ideal, mas como inspeção

fiel do real, e, a prática que lhe corresponde, não comodecisão subjetiva da vontade, mas como força objetivaagindo concretamente. Convém pois recusar duplamen-te o idealismo: contestando que uma satisfação reduzi-da ao contentamento do Pensamento, que apreende noSaber absoluto seu infinito poder, seja suficiente, e re-

 jeitando a concepção segundo a qual a missão da ciên-cia seria determinar um deverser, entregue, aliás, pela

sua realização, à contingência: coragem dos indivíduosou acaso do vira^ser. A superação efetiva da filosofiareduzse assim a elaborar, c om  o hegelianismo de esquer-da, uma filosofia da prática e, c o n t r a  ele, a compreen-der essa “ teoria da ação” como visão racional de umaação já existente.

É necessário insistir, desde já, no duplo aspecto des-sa luta contra o idealismo: este, tomado em sua gene-ralidade, deve ser considerado como êxito da filosofia.Mais precisamente, se mantivermos a problemática queestá na origem da decisão de filosofar e o modo peloqual o filósofo quer resolver essa problemática, o idea-lismo, — quer dizer, a doutrina segundo a qual o Ser(essencial ou considerado na totalidade de suas deter-minações) se reduz (imediata ou finalmente) ao Pen-

samento (ou ao pensar) — constitui a única maneiraconveniente de responder. Todavia, e os parênteses quefomos obrigados a abrir são disso um sinal, é claro, à luzdas análises precedentes, que essa redução se efetua emduas direções diferentes: é possível, de um lado, mostrarque o dado empírico é apenas um falsoser, que o Ser ver-dadeiro está alhures e já possui todas as dimensões doPensamento; é o idealismo de estilo platônico que, no en-

tanto, é compelido a propor a si mesmo o problema dasatisfação aqui neste mundo, porque essa questão se

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acha implícita na própria vontade filosófica e que se  contenta em opor à confusão da existência quotidianaa pura imagem de uma Cidade onde triunfa a ordem eonde reina a satisfação. Combater semelhante perspec-tiva, é mostrar a insuficiência dessas descrições do Esta-do ideal que simulam esquecer que este foi elaborado e

construído a partir do dado empírico e contam para mo-dificar a empiria com as convicções que podem nascerda apresentação do que deveria ser; é, com Hegel, er-guerse contra a pretensão da filosofia a ensinar. Mas,por outro lado, o idealismo, aprofundando sua ótica eempenhandose em superar essa dificuldade, pode recu-sar o divórcio do Ser (empírico) e do ideal, e concebero l ogos como expressão daquilo que é ou como Ser sa-

bendose a si mesmo. O que importará, então, denunciar,é o caráter ilusório da satisfação proporcionada peloexercício da filosofia, a insuficiência dessa atitude que,para chegar a pensar a vida, chega a reduzir a vida aopensamento da vida, e, ao mesmo tempo, à vida do pen-samento. Condenar a utopia sem absolver o presente,exigir a realização de um mundo racional sem apoiarse em um ser ideal, tal é a dupla, tarefa que deve ser si-multaneamente assumida por uma verdadeira supera-ção da filosofia.

Isso significa que esse modo original do pensar deveser capaz, teórica e praticamente, na esfera da demons-tração e na da construção real, de assinalar nos fatosempíricos, de acordo com as circunstâncias próprias, istoé, nos acontecimentos, como a satisfação empírica é em-

piricamente possível e realizável, de mostrar que o re-conhecimento de cada um por todos não é nem um votolegítimo e inacessível (uma “tarefa infinita”), nem umarealidade que para existir precisa de uma chance ouda convicção de alguns, mas um problema efetivo que ohomem se propõe e propõe, além disso, de modo clarono momento em que as forças reais são dadas para quesua solução advenha. Em outros termos, tratase de con-

 jurar o idealismo utópico apoiandose — no estilo hegeliano — na descrição daquilo que é; e de conjurar o

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racionalismo por demais satisfeito, compreendendo a sa-tisfação como satisfação empírica. É claro, além disso,que tal maneira de conceber a tarefa do pensar exigeque se possa mostrar também não só porque a antifilosofia tradicional não pode ser aceita — a esse respeito,a filosofia acumulou argumentos importantes — , mas

também porque pôde nascer a exigência da filosofia. De-verá mostrar por que razão (talvez se trate de mostrarcomo?) a problemática filosófica apareceu, por que ra-zão se revelou decisiva e por que razão a filosofia foi in-capaz de resolvêla. Somente realizando essa tarefa éque provará — ao ver do próprio filósofo — que não énegação abstrata, mas “ sublimação” . E essa obrigação,cuja importância histórica é, ao que parece, hoje em dia,

considerável, não é a mais fácil de realizar. Todavia, apresentando assim a operação de supera-

ção, como realização, supressão e “sublimação” da filo-sofia, quer dizer, do idealismo, correse constantementeo risco de retornar às perspectivas de conjunto daquiloque se pretende superar. Tratase, para que a operaçãotenha alcance, de encontrar o conteúdo graças ao qual

essa exigência, expressa até agora de maneira formal,possa tornarse vontade efetiva. De fato, a descobertadesse conteúdo constitui a “refutação” real do exercícioda filosofia. A libertação trazida pela filosofia é inicial-mente a d o l ogos;  é, ao mesmo tempo, libertação pe l o  l o gos ;   tentamos mostrar que era libertação no logos . Ora, o filósofo julga que, quando sua empresa é bem su-cedida, isto é, quando consegue elaborar o discurso que

faz desaparecer, no próprio discurso, o o u t r o , diferentedo discurso e do Pensamento, o homem alcança a sa-tisfação. Que a satisfação consista na supressão da alteridade, que o homem pleno seja aquele que venceu aalienação e que experimenta sua liberdade no fato deexistir como ser nãolimitado, parece que a filosofiaacumulou a esse respeito argumentos decisivos; que ofim do homem seja a satisfação e, precisamente, essa  

satisfação, isso também parece incontestável. Em outrostermos, o problema proposto pela filosofia e a solução

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determinada época, correspondia a certas exigências, epesou consideravelmente no desenvolvimento do pensa-mento filosófico, dandolhe por assim dizer seu estilo,quaisquer que tenham sido as solicitações para sair dessequadro por demais estreito, oriundas do viraserreal oude outras “disciplinas” . Os sociólogos falariam em um

fenômeno de sobrevivência; será preciso indagar sobresua possibilidade histórica. Por enquanto, devese ten-tar, aquém das causas, descobrir as razões dessa “natu-reza” da realidade humana tal como a filosofia a apreen-de. Parece que a situação grega permite compreendero processo dessa constituição. A diversidade das doxas , como vimos, é o sinal dos antagonismos humanos indi-viduais e coletivos, a oposição dos conteúdos dessas d o x a s   é a expressão da contradição dos interesses. O discursode opinião — por sua confusão e disparidade — revela,sobre a Ágo r a   e o Senado (Boule), a existência de umconflito permanente que se resolve, como se verifica pelahistória da Cidade, mediante a violência, uma violênciaque destrói o vínculo social e impede de querer uma sa-tisfação universal. O filósofo esforçase em salvar a Ci-

dade, apresentando o quadro estável de uma vida huma-na feliz: elabora o discurso que seja razão e superaçãodas d o x o i ;   considerase satisfeito desde o momento emque realiza semelhante discurso, que vença os argumen-tos da opinião e, vencido, seja ainda triunfante comodiscurso. A empresa, pois o problema que visa resolverse apresenta no nível da linguagem, situase toda nalinguagem: o que é oculto, ou revelado pela linguagem,

é logo esquecido. Pois, na realidade de fato, tratase deinteresses reais, o fundo da d o x a  é a paixão: a de Alei*bíades que queria dominar, a de Crítias procurando con-fusamente a grandeza dos tempos arcaicos e a de Anitosque, discípulo ingênuo de Aristófanes, sonha com os “bonstempos” e com as virtudes cívicas e religiosas de seusavós. Nenhuma solução situada na esfera dos interes-ses é, no entanto, capaz de triunfar; então, o filósofo,que pôde pensar o universal, que soube superar a pai-xão e avaliar os interesses, define a única resposta con

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cebível nessa perspectiva histórica limitada: a que contacom o poder do discurso lógico coerente para reconciliaros indivíduos e os grupos mutuamente. Muito cedo, semdúvida, essa coerência “ lógica” revela insuficiência: o fi-lósofo esforçase em dai*lhe todo o peso do Ser, tentaf u n d á-l o . Mas, no momento mesmo em que sua deter-

minação parece mais próxima dos “fatos”, conserva apressuposição original, a de uma solução que, reveladana esfera do l ogos , apresenta, ao mesmo tempo, implí-cita e efetivamente, o homem como ser lógico, comorealidade cuja essência é o pensar (ou o falar — o quedá na mesma). Se há uma revolução hegeliana — eesperamos ter mostrado nas páginas anteriores a impor-tância que lhe atribuímos — é menos porque o sistema

pretenda atingir a s o f i a  do que, visto pretendêlo, revelaa essência do exercício da filosofia.

A verdadeira superação — exigida pelo propósito derealizar a aspiração da filosofia e que é também a preo-cupação profunda do homem — consiste inicialmente emretornar a essa origem e em compreendêla à luz preci-samente da interpretação que dela Hegel nos apresenta. Tratase, com efeito, de reencontrar a problemática pro-funda a partir da qual se ergue a vontade filosófica .ieapreender o conflito dos interesses como o horizonte noseio do qual se desenha necessariamente o problema dasatisfação: tratase de retornar ao homemempírico2S.O l o gos  filosófico só abstratamente superava a d o x a :   substituiu o homemapaixonado pelo homemracionai; eisso mesmo em Hegel e embora o autor da F e n o m e n o -  

28 “ Essa maneira de considerar não está isenta de pressupostos. Par-te de pressupostos reais e não os abandona um só instante. Os pres-supostos são os homens, não os homens acabados e fixados de modoimaginário qualquer, mas os homens em seu real processo de desen-volvimento, fazendose cm condições determinadas, e empiricamenteobserváveis .. . A í onde cessa a especulação, na vida real, começa poisa ciência real, positiva, a representação da atividade prática, do proces-

so de desenvolvimento prático do hom em ... Pela representação darealidade, a filo so fia independente perde seu meio de existência” . Itleo  iogia Alemã, idem, pp. 158159.

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l o g i a d o Espír i t o  tenha feito da paixão o material daRazão. Importa superar efetivamente a d o x a   situan-dose em seu terreno, compreendendo o indivíduo comopaixão, reconhecendoo, fundamentalmente, como ele-mento da natureza, substituindo à visão do homem ló-gico, a do homem “antropológico”, o caráter pleonástico

da expressão indicando um r e t o r n o  ao terreno da expe-riência nãofalsificada. A operação A u f h e b u n g  só podeganhar sentido nessa perspectiva: esse sentido, aliás, éa filosofia, em seu malogro, que o revela. Essa desco-berta não teria sido possível — fora das causas histó-ricas que a explicam — , se, na “ordem das razões” , asmúltiplas implicações da filosofia não tivessem sido de-senvolvidas, se não tivesse sido levada ao extremo limi-

te a procura da satisfação no e pelo l ogos . Porque, pormais fundamental que seja a realidade empírica, restaque o homem é pensamento, fala com outros homens eque é isso que o distingue.

O hegelianismo de esquerda, aliás, havia percebidoesse aspecto do problema quando se empenhava em cri-ticar a religião e em marcar sua oposição à filosofia.Seu propósito, fora dos objetivos políticos precisos quebuscava, era denunciar a ilusão de uma satisfação hu-mana universal que negligenciasse o serempírico do ho-mem e combater a substituição ilegítima da existênciareal pela comunidade espiritual. Aprofundando a aná-lise, Feuerbach (que rompia com os hábitos de simplespolêmica do movimento) havia mostrado que o homemda religião, o homem reduzido à espiritualidade, ao pen-

samento puro, é, no conteúdo mesmo que lhe conferem,a transposição idealizada do homem existente e que ostemas religiosos são, em seu pormenor, caricaturas dodado empírico que se pode então “esquecer” de consi-derar. Tratavase, em suma, de mostrar que o “homemverdadeiro” da religião é não só um ser imaginário, mastambém o resultado de uma projeção reveladora daquilodo que é projeção. Mas, ao que parece, em Bauer e

Riige, como em Feuerbach, a filosofia era oposta à reli-gião como órgão da verdade ao instrumento do erro.

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De fato, parece que a religião limitase a exprimir inge-nuamente aquilo que a filosofia pressupõe em seu estilotradicional29: a essencialidade do homem como pensa-mento, apenas. Ao denunciarse o malogro da religião,deve ser denunciada a insuficiência da filosofia que secontenta em substituir a satisfação “ real” , no além, por

uma satisfação aqui, mas em pensamento.Foi, portanto, ao preço de uma revolução — mais

radical do que a operada por Hegel, pois recusa o pres-suposto constante da filosofia — a retomada do proble-ma que se encontrava na origem da vontade filosóficae que ela não soube e não pôde resolver. Expresso sim-plesmente, o conteúdo dessa revolução pode parecer

exíguo. Na realidade, de que se trata? De retornar aohomem empírico, às questões apresentadas pela passi-vidade humana, pelo conflito dos interesses, pela vio-lência. Não será uma regressão às atitudes defendidaspelos chamados técnicos da existência quotidiana? Sim,se esse modo original do pensar — de que Marx e Engelsforam os iniciadores — se achasse situado simplesmente

na perspectiva da antropologia: o que quer ser, é umaA u f h e b u n g  da filosofia que leva em conta os resultadosadquiridos pelos filósofos e, em particular, os trazidospela doutrina mais bem sucedida: as descobertas hegelianas. E, mais precisamente, vima dimensão que deve-rá ser integrada nessa nova ciência: a do homem consi-derado em suá universalidade como ser histórico e so-cial, da existência humana compreendida como produto

e como fonte do devenir, da satisfação para o homem en-tendida como satisfação procurada, conquistada ou man-tida no seio de uma comunidade humana. Será preciso,depois, esforçarse em justificar semelhante dimensão:nós a evocamos simplesmente para mostrar o que deveser a “sublimação” efetiva da filosofia: consiste em uma

29 Cf. Ideologia Alemã, idem, pp. 150151.

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reposição geral do “sistema” da filosofia “sobre seuspés” — de acordo com uma fórmula célebre que foi in-terpretada tantas vezes de modo infeliz como retorno aqualquer “ingenuidade materialista” .

Vemos aqui o que significa i n i c i a l m e n t e  o materia-lismo: constituise como tal, em ' p r i m e i r o l u g a r , comorecusa de toda solução ideal (hegeliana) ao problema dasatisfação. Apóiase, a princípio, no fato de que os dis-cursos filosóficos, por mais importantes e admiráveisque sejam, não conseguiram, embora tenham consegui-do converter indivíduos e sabido exprimir sua época,proporcionar o que, por vocação, por assim dizer, pre-tendiam, a satisfação universal r e a l :  esses discursos de-finiram a satisfação e seus requisitos, mas s em p r e   seencontraram, f i n a l m e n t e , em uma situação de inferiori-dade em relação aos seus adversários que mostravam quea satisfação ou é uma palavra sem conteúdo efetivo oubem o produto do acaso ou da habilidade individual. Asatisfação para permanecer verdadeiramente satisfação,deve ser universal e empírica ou, se preferirem, mate-rial: não é apenas o homem reduzido ao pensamento — à sua essência — , é também o homem considerado emseu ser fundamental, como passividade, como produtonatural e social, como necessidade, homem na sua ma-terialidade, que deve ser satisfeito. O problema apre-sentado ao materialismo é de grande dificuldade: deve,por um lado, manter a idéia capital do filósofo, a satis-

fação possível, a qual só é possível na medida em que éuniversal (ou universalizável), em que implica o reco-nhecimento de cada um por todos; deve, por outro lado,recusar como fuga da empiria toda solução ilusória fun-dada na idéia de que a satisfação em pensamento é di-ferente de uma satisfação pensada. Tratase, para ele,em suma, de reconciliar, superandoas, as atitudes opos-

tas do Bom Senso e da filosofia.Cálicles tem razão: Sócrates foi vencido e morto,

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anunciando por sua morte o fim da formação políticana qual confiava. Cálicles está errado: o tirano queapresenta como exemplo do êxito é infeliz. O materia-lismo — aquele de que Marx e Engels abriram os cami-nhos — deve partir dessa contradição e delinear a face

autêntica da felicidade concreta humana.

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IV 

O Caminho da Superação: A Apreensão do Homem 

em sua Realidade Empírica

i

T a l v e z   s e j a   necessário fazer o inventário dos re-sultados adquiridos, mesmo que seja apenas para veri-ficar se temos o direito de falar em resultados. Pergun-távamos qual deles, se o materialismo marxista ou o

antimaterialismo contemporâneo, em sua formulaçãomais geral, podia reivindicar a verdade. O antimateria-lismo, em sua crítica, invocava a impossibilidade em quese encontra o marxismo de provar f i l o s o f i c am e n t e  sualegitimidade; a atitude assumida pelo materialismo emface desse argumento havia obrigado — na medida emque se havia suposto a seriedade de ambas as posições

 — a examinar mais precisamente a idéia da prova.

Percebemos, em primeiro lugar, que essa idéia é carac-terística do exercício da filosofia e que a vontade dofilósofo visa elaborar um discurso tão completamente

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 justificado que nenhuma contestação possa comportar,e no qual cada um possa reconhecer o discurso verda-deiro, aquele que, trazendo a propósito do real e do ho-mem vima visão sensata e coerente, indique a maneirade ser, de conduzirse, de pensar (relações de disjunção,de implicação ou de conjunção sendo estabelecidas entre

esses diversos termos de acordo com as doutrinas) quepermita ao homem ficar satisfeito ou contente. Tenta-mos mostrar, em seguida, que essa questão da prova sópode ser resolvida no momento em que é superada eque convém, sem preocupação pela “ adequação do Pen-samento e do Ser”, ou pelo método para evitar o erro edescobrir a verdade, construir o discurso que, sendo emseu conteúdo, e em sua ordem imanente, o sistema detodos os discursos, seja, por definição, irrefutável. Ve-rificamos que o hegelianismo, mesmo que, no pormenor,pudesse conter incertezas, havia definido as condiçõesfilosóficas de semelhante discurso, o qual, desde então,devia poder proporcionar essa satisfação universal cujaprocura está na origem da decisão de filosofar. Ora, oêxito da filosofia não parecia ser o êxito do homem. Foi

preciso, porque nos havíamos convencido, pela filosofia,contra a antifilosofia tradicional, da importância dessanoção de satisfação universal, por em questão o modopelo qual a compreendia a vontade filosófica: percebe-mos que o filósofo, embora tenha tido inicialmente apreocupação de fazer desaparecer o infortúnio da huma-nidade empírica, jamais deixara de conceber o homem

como pensamento e que, preso pela lógica de sua von-tade, (lógica cujas causas deveremos tentar definir) nãohavia desejado finalmente senão promover a satisfaçãodo Pensamento. Seu êxito era o êxito do homem en-quanto pensamento. Pareceu, pois, indispensável, paramelhor compreender a posição do marxismo, entendêlocomo esforço para superar essa concepção limitada dohomem, para chegar ao homem empírico e definir as

condições teóricas e práticas de uma satisfação univer-sal e empírica (ou real).

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É evidente que, nesse nível da análise, muitos pon-tos permanecem obscuros. Devemos perguntar o queacontece com essa noção da prova da qual reconhece-mos toda a importância. Mesmo admitindo que a ên-fase deva ser posta no que se chamou de homemempírico, resta que o homem fala e que o que diz a respeito

de si próprio deve ser justificado. Em outros termos,nessa nova perspectiva, o problema da prova subsiste.A própria idéia do homem empírico não é clara: nas pá-ginas precedentes, nós a definimos negativamente, comosupressão dialética do h omo - p h i l o s o p h i c u s ;  mas, perma-nece constante o risco de que se trate de uma supressãoabstrata: importa precisar o que contém semelhante no-ção. Será necessário, também, a esse propósito, voltar aoconceito da satisfação até agora utilizado sem que suasignificação tenha sido bem determinada.

Esses diversos problemas são de extrema dificulda-de: para poder enfocálos em condições que permitamapontar sua solução, pretendemos — pedindo que nosperdoem essa facilidade — examinar de modo mais pre-ciso o conteúdo da A u f h e b u n g  da filosofia numa esfera

determinada e particularmente favorável, a esfera po-lítica. Esta, desempenhou papel histórico decisivo: e, aseu propósito, Marx compreendeu a amplitude e a novi-dade da tarefa que doravante se apresentava ao pensa-mento . Sem pretender esgotar essa questão histórica dasrelações entre a política hegeliana e a política marxista

 — questão a propósito da qual numerosos e belos livros

foram escritos1 — , nós a tomaremos como ponto deapoio para indicar o alcance e o sentido da passagem,

1 Cf., em particular, as obras já citadas, de K . Lõwith, A realização  da filosofia clássica por Hegel e sua dissolução em Marx e Kierkegaard ,in Recherches philosophiques , 19341935, pp. 232267; E. Weil, Hegel e  o estado; J. Hyppolite, Marxismo e filosofia  e A Concepção hegeliana  

do estado e sua crítica por Marx, in Estudos sobre Marx e Hegel, pp.107 ss. e G. Gurvitch, A sociologia do jovem Marx, Cahiers interna tionaux de Socciologie, vol IV , 1948, pp. 3 ss.

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de concepção filosófica do homem, àquela da qual Marxe Engels elaboraram os princípios.

2

A determinação da relação existente entre a ciênciafilosófica, considerada em sua generalidade, e o pensa-mento político, suscita difíceis problemas. É claro que afilosofia política tem um objeto particular: o homemenquanto age (ou deve agir) como elemento de uma so-ciedade histórica e que, como tal, é uma “parte” ou umaaplicação do saber filosófico; parece, no entanto, que seconsiderarmos a maior parte das grandes doutrinas,constitui, de fato, não uma “parte” que, a rigor, poderiaser negligenciada, um acréscimo exterior e por assim di-zer contingente, mas uma peça essencial, e muitas vezeso coroamento, o desfecho do trabalho filosófico. Parecemesmo que são necessárias circunstâncias excepcionais,as que encontrou Descartes, por exemplo, para que o filó-

sofo possa legitimamente afastarse do problema político.A razão profunda de tal implicação é que — sem preten-der esgotar semelhante questão cujas,modalidades histó-ricas deveriam ser estudadas minuciosamente — o filósofovisa trazer a satisfação universal e que esta, na maioriados casos, exige t a m bém , no mínimo, a solução dos proble-mas apresentados pela organização da sociedade huma-na. Hegel insistia no fato de que a Calípolis platônica

não era uma utopia, mas a solução (ideal, sem dúvida)das dificuldades da Cidade grega no começo do séculoIV; tentamos, em outro trabalho, mostrar até que pontoessa preocupação histórica do platonismo influi no con-

 junto da doutrina2. Estabelecendo que não se poderiaser justo na cidade injusta e ligando, além disso, a idéia

2 O nascimento da História, Ensaio sobre a formação do pensamcn  to histórico na Grécia; cf., cm particular, o Cap. III.

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de justiça à idéia de justeza do pensamento e da ação,Platão colocava no centro da problemática filosófica aquestão “particular” da ordem política. Desde então, osfilósofos não mais puderam negligenciar a reflexão sobrea sociedade e o Estado; e foi preciso, devemos repetir,que ocorressem as circunstâncias excepcionais do século

XVII francês para que um pensador importante tives-se com razão a oportunidade de não enveredar nessa re-flexão .

Na realidade, parece que o sistema hegeliano ilu-mina de modo definitivo as relações da Ciência e da re-flexão política. Salientando o vínculo necessário, exis-tente entre a satisfação e o reconhecimento de cada um

por todos, mostra que a racionalidade só encontra suarealização na comunidade humana refletida. No capí-tulo precedente, consideramos, para simplificar, esse vín-culo como ponto pacífico, julgando equivalentes a libe-ração do homem no e pelo l ogos e a realização do Estadoracional. Na realidade, as coisas são mais complicadas:o que o Saber demonstra — e é necessário para que essa

demonstração tenha um sentido que a realidade a elacorresponda — , é que o homem só pode ser livre e satis-feito se todos o forem ao mesmo tempo e se cada umreconhecer a liberdade e a satisfação do outro como li-berdade — isso é tranqüilo — e como satisfação — issonão é tranqüilo — humanas. Em outros termos, a filo-sofia só tem êxito quando a ordem racional da sociedadeé real. E tratase ainda de saber em que consiste essaordem, sendo conveniente definir a idéia do Estado. OSaber como tal é completo, mas exige, precisamente por-que é completo, a determinação do que o homem querobjetivamente. Em outras palavras, ainda, a ciênciamostra, sem possibilidade de contestação, que o “ objeto”da vontade humana é o Estado racional e desvenda oque visa o indivíduo ao querer semelhante objeto. A ta-

refa da reflexão política é elucidar a natureza desseobjeto, determinar a essência desse Estado objetivamente

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desejado pelo homem (o que não significa: subjetiva-mente procurado pelo indivíduo)3.

Não se trataria de acompanhar, no pormenor, adescrição hegeliana do Estado racionalreal, quer dizer,da Idéia do Estado. Queríamos apenas discernir aqui otema geral da demonstração, apoiandonos em estudos

relativos ao assunto. Se nos limitarmos ao problemapropriamente político — pondo entre parênteses, de mo-do um tanto arbitrário a análise moral que o precede— ,parece que o ponto de partida do pensamento político deHegel é o fato empírico do conflito (que já se encon-trava na origem da reflexão platônica). A SociedadeCivil, definida em primeiro lugar como “sistema das ne-cessidades” 4 na qual os indivíduos são pessoas privadasque têm por fim seu interesse próprio, será, ao mesmotempo, o domínio da oposição, das contradições entre osinteresses dos indivíduos. Sem dúvida, na medida emque cada um determina sua vontade e seu saber, emfunção do sistema das necessidades de todos os indiví-duos, visa a universalidade e procura uma ordem quesupera a particularidade de seu desejo e de seu poder.Foi exatamente isso o que demonstraram os economis-tas aos quais Hegel se refere de modo explícito: Smith,Say e Ricardo5. “O objetivo da necessidade é a satisfa-ção da particularidade subjetiva, mas o universal nelase afirma na relação com a necessidade e com a vontadedos outros” 0. E não só, essa universalidade d e f a t o  ma

3 “Assim, nosso tratado, apresentando a ciência do Estado, nada querapresentar senão um ensaio para conceber o Estado como algo deracional em si. É um escrito filosófico e nada está mais longe de suasintenções do que construir um ideal de Estado tal como deve ser. Se con-tém uma lição, essa lição não se dirige ao Estado, ensina antes como oEstado, que é o universo moral, deve ser conhecido”. Princípios da fi- losofia do direito, Prefácio, pp. 3031.

4 Idem, § 189, p 157.

5 Idem.

6 Idem.

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nifestase no nível da reflexão, na jurisdição que esta-belece entre os indivíduos definindo a propriedade e a“ relação recíproca das necessidades e do trabalho” 7 emostra a necessidade na lei conhecida e reconhecida portodos. Assim também, a administração — a que Hegelconhece e que existe como estrutura dos Estados adian-

tados da Europa — tem por missão ordenar, de acordocom as circunstâncias, esse sistema de necessidades e ascorporações têm por encargo zelar pela honestidadedessa organização.

 Todavia, a Sociedade civil, se é livre engendra ne-cessariamente “caso se encontre conflito num estado deatividade sem entraves” 8, o que ocorre quando a consi-deramos como o todo da organização social, quando per-manecemos nesse estágio analisado pela ciência econô-mica liberal como sendo o fato irredutível do Estado.Acentuando a divisão do trabalho, impede os indivíduosde fruir da plenitude das habilidades humanas; desen-volve “a miséria e a dependência da classe presa ao tra-balho (particular)” ; de outro lado, permite que “oacúmulo das riquezas aumente” 9. Criase, assim, uma

plebe que “perde o sentimento do direito, da legitimi-dade e da honra de existir por sua própria atividade eseu próprio trabalho” 10; e, ao mesmo tempo, manifes-tase “maior facilidade de concentrar em poucas mãosriquezas desproporcionadas” . É inútil supor que se pos-sa exigir dessas “ riquezas” que mantenham “ a classe namiséria” : isso seria “contrário ao princípio da Sociedadecivil e ao sentimento individual da independência e da

honra” 11. Assim sendo, a Sociedade se acha impelida“para fora de si mesma” . E isso, em duplo sentido: deum lado, enquanto permanece Sociedade civil, é levada

7 Idem, § 199, p. 161

8 Idem  § 243, p. 183.

9 Idem.

10 Idem, § 244.

11 Idem, § 245, p. 184.

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a procurar no exterior “ consumidores e meios de sub-sistir em outros povos” 12; procura “um novo mercadopara seu trabalho” 13 na colonização; mas, por outrolado, tende a ultrapassarse a si mesma num tipo deorganização mais profundamente refletido, capaz de re-mediar esses conflitos e impedir que o. bem social se rea-

lize em detrimento dos indivíduos14.E difícil não admirar a profundidade e a justeza

de tal reflexão que, embora datando de 1821, apresentaem surpreendente resumo a essência do regime capita-lista. O problema da sociedade burguesa é claramenteformulado e em termos de conflito: todavia, o Estadotem por fim fazer desaparecer esse conflito, instituirmediações tais que os erros da Sociedade Civil, defeitosque é incapaz por si mesma de suprimir, deixem de cons-tituir um perigo para os cidadãos. Tratase, em suma eesquematizando, de demonstrar que o Estado é a essên-cia da sociedade humana e não como pensava a econo-mia liberal, a Sociedade Civil, que não passa de mani-festação, de maneira de aparecer do Estado15. E é essaobrigação de remediar os vícios da ordem econômica que

explica, ao que parece, a complicação da ordem políticade que Hegel se faz o defensor. Tratase de determinaro Estado como “necessidade externa e . .. poder maisalto, à natureza do qual serão subordinadas as leis dafamília (do direito privado) e os interesses da SociedadeCivil” ; mas, também é conveniente que seja respeitadaa liberdade concreta e que “ a individualidade pessoal eseus interesses particulares recebam pleno desenvolvi-

mento e o reconhecimento de seus direitos” 10. Tal é oprincípio dos Estados modernos, que têm “esse poder e

12 Jdem, § 246.

13 Idem, § 248, p. 185.

14 Idem , § 249, p. 186.15 “ O fim da corporação, que c limitado c finito, tem sua verdade

no fim universal emsi e porsi e em sua realidade abso luta ... a esfe-ra da Sociedade civil conduz portanto ao Estado” . Idem, § 256, p. 189.

16 Idem, § 260, p. 195.

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essa profundidade extremos de deixar o princípio dasubjetividade realizarse até o extremo da particularida-de pessoal autônoma e, ao mesmo tempo, de reduzilo àunidade substancial e assim manter essa unidade nessemesmo princípio” 17. Percebese como a terceira seçãoda terceira parte dos Pr i n cíp i o s de F i l o so f i a d o D i r e i t o   

esforçase em fixar tecnicamente uma ordenação consti-tucional que atenda a esses princípios: prevê, entre opoder do príncipe, no qual se encarna o poder do Estado,e as vontades particulares, uma hierarquia orgânica de“estados” em que são representados os interesses parciaisdas coletividades: essas “assembléias de ordem” , man-tendose entre “o governo em geral, e o povo dispersoem esferas e em indivíduos diferentes” 18, “ têm por mis-

são promover a existência do interesse geral não apenasem si mas também por si, quer dizer, dar existência aoelemento de liberdade subjetiva formal, a consciênciapública como universalidade empírica das opiniões e dospensamentos da massa” 19. Por sua mediação, “ o poderdo príncipe não aparece como vim extremo isolado nem,conseqüentemente, como simples dominação nem comobei prazer” ; do mesmo modo, os “ interesses particularesdas comunas, das corporações e dos indivíduos tambémnão se isolam” 20. Formam, por assim dizer, o movimentoascendente que aproxima a Sociedade Civil do poder so-berano, assim como a administração constitui o movi-mento descendente graças ao qual a autoridade se ma-nifesta na esfera das necessidades e dos interesses par-ticulares .

De tal sorte, e atribuindo importância considerávelà “classe universal” 21, a dos funcionários, Hegel pensapoder afastar o perigo de conflito, implícito na própria

17 ldem.

18 Jdem, § 302, p. 234.

19 ldem, § 301, p. 233.

20 ldem, § 302, pp. 234235.

21 ldem, § 303, p. 235.

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Sociedade Civil. Deveremos insistir no sentido dessa so-lução que visa manter a ordem interna da comunidadehumana refletida. Mas, mesmo admitindo que essa or-ganização seja realmente a que convém, isso não signi-fica que se estabeleça um reconhecimento universal e,conseqüentemente, uma completa satisfação da huma-

nidade. Outro tipo de conflito subsiste: o que opõe osEstados uns aos outros, conflito esse que, de certo modo,

 já se acha indicado no nível da Sociedade Civil, quandoHegel observa a exigência que se apresenta ao sistemainterno das necessidades, de conquistar mercados es-trangeiros pela guerra ou pela colonização. Na oposi-ção dos Estados uns aos outros, embora cada um delesreconheça o outro como soberano, nenhum poder su-

perior é concebível que possa resolver as questões e de-cidir da legitimidade desta ou daquela vontade, pois éda essência do Estado, de cada Estado, ser soberana-mente autônomo. Ora, “ em suas relações uns com osoutros, os Estados se comportam como particulares. Emconseqüência, é o jogo mais móvel da particularidadeinterna, dos interesses, dos fins, dos talentos, das vir-tudes, da violência, da injustiça e do vício, da contin-gência exterior elevada à mais alta potência que possaassumir esse fenômeno. É um jogo em que o próprio or-ganismo moral, a independência do Estado, estão expos-tos ao acaso” 22. Em tal jogo, que se assemelha a essapartida cruel em que se defrontam os interesses indivi-duais no seio da Sociedade Civil, a única solução é aguerra: “o fim da conduta em relação aos outros Estados

e o princípio da justiça das guerras e dos tratados nãoé um pensamento universal (filantrópico), mas a rea-lidade do bemestar diminuído ou ameaçado em sua par-ticularidade definida” 23.

O conflito interior dos Estados, que só pode ser re-gulado por uma constituição adequada, repercute, pois,

22 Idem, § 340, p. 255.

23 Idem, § 337, p. 254.

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por assim dizer, na escala da humanidade inteira, atra-vés do conflito entre os Estados. A oposição subsiste eisso mostra que, segundo Hegel, a humanidade aindanão está, de modo algum, reconciliada consigo mesma *.A Ciência mostrou que essa reconciliação, por meio daqual foi possível estabelecer a essência do Estado real e

a relação que entretém essencialmente com o ser políticodo homem, é doravante conhecida; e, se é absurdo fazerconjecturas sobre a natureza dos sentimentos do indi-víduo pertencente ao Estado racionalreal, este, no en-tanto, é claramente concebido. A história promoverá suarealização empírica, mas nada acrescentará ao seu con-ceito. Essa frase que acabamos de escrever, no futuro,deixa entender — e é esse, ao que parece — o pensa-

mento de Hegel — que o devenir deve dar à luz essa épo-ca em que a satisfação não seja apenas universalmenteconcebida, mas se apresente também como efetiva. Os  Pr i n cíp i o s da F i l o so f i a do D i r ei t o  concluem com um re-torno à Filosofia da história e não é por acaso que oparágrafo 314, que resume os princípios da Filosofia dahistória, vem logo em seguida a um parágrafo que sa-lienta a “ contingência” — dirseia atualmente: o absur-do — dos conflitos históricos entre os Estados. Verifi-case, de fato, que Hegel supõe, e não se trata de merahipótese, mas d a  maneira filosófica de conceber o real,que a concepção, apenas , da natureza profunda do con-flito existente entre os homens e pelos homens é o sinale a prova de que esse conflito  já está superado, a ca-minho de solução histórica; parece, na perspectiva do

que se poderia chamar de modéstia hegeliana, ser ne-cessário que o devenir já tenha esboçado suficientementeo processo que deve levar à satisfação, o reconhecimentode cada um por todos, para que um pensador tenha apossibilidade de desenvolver de modo racional estas no-

24 Retomamos, aqui, a tese admiravelmente defendida por E . W eil

op. cit., que pode ser resumida nesta última frase do cap. IV , p. 71:“A teoria hegeliana do Estado é correta porque analisa corretamente

o Estado real de sua época e da nossa” .

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ções: “o pensamento do mundo... só aparece quando arealidade realizou e concluiu seu processo de forma-ção” 25.

Parece, como estamos vendo, que as discussões sobreo caráter “reacionário” ou “progressista” da política hegeliana, sobre o “empirismo” (de direita) ou sobre o

“utopismo” (de direita ou de esquerda) de Hegel, são,enquanto discussões de história da filosofia, estranhas.É claro que o autor da F i l o so f i a d o D i r ei t o  não visa jus-tificar, pura e simplesmente, o regimen de FredericoGuilherme tal como se apresenta em 1821 (e muito me-nos o de FredericoGuilherme IV a partir de 1840, aoqual se faz referência a maior parte das vezes): por que,se o quisesse, apresentaria, com abundância de porme-nores técnicos, uma “constituição” sensivelmente dife-rente da que vigorava na Prússia, nessa época? A apo-logia que faz, precisamente para esse tempo, da monar-quia constitucional é uma tomada de posição liberal. Aprópria defesa da idéia de Constituição, à qual se dedica,é o sinal de que desaprova a noção de um direito divinodo soberano. Hegel esforçase em conceber o sistema

político que julga convir à sua época: tenta pensar arealidade política de seu tempo e levála à racionalidadede que é capaz. Isso equivale a dizer que sua posiçãonão é revolucionária, no sentido tradicional do termo;vê que os Estados empíricos de sua época, a França napoleônica inicialmente, e a Prússia em seguida, consti-tuem a realidade a partir da qual se assinala a idéia doEstado. A Prússia não é o Estado racional: nela se obser-

va, no entanto, o que é o Estado moderno, ao que tendee o que não pode deixar, com exclusão da Prússia pre-cisamente, de realizar o viraser: o Estado universal noqual a oposição desaparece e onde a satisfação no reco-nhecimento de cada um por todos é possível.

Ê nesse nível que a “refutação” do hegelianismo temsentido. A crítica que se tem o direito de fazer ao siste

25 Princípios da filosofia do direito, Prefácio, p. 32.

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ma, não é por encarar o problema político em determi-nada ótica que teria sido escolhida pelo autor sob a in-fluência de alguma paixão, mas de apresentar o proble-ma em termos tais que só pode receber uma soluçãoideal, uma solução do pensamento e para o pensamento.Na verdade, a saída proposta por Hegel, uma ordem de

Estado na qual o conflito essencial à Sociedade Civilnão envolve mais oposições no interior da comunidaderefletida e uma ordem da história pela qual se constituio Estado universal, é realmente a desejada pelo indiví-duo desde o momento em que sabe o que quer realmen-te . Mas, isso equivale a supor que o fato de saber o quese quer é “ livre” , que esse fato é o resultado de umaorientação adequada do pensamento ou de uma boa edu-

cação (pela filosofia ou pelo rei que se tornou filósofo);é supor que o homem, que o indivíduo, é pensamentolivre em potência e que deve simplesmente transformarse no que já é sem o saber. Em suma, Hegel afasta efi-cazmente o utopismo platônico, substituindo à análisedo conteúdo ideal do querer a do seu conteúdo real: re-velou o que o indivíduo efetivamente procura desde omomento em que visa uma satisfação humana. Admi-tiu, porém, como ponto pacífico, o fato de que a satis-fação deve surgir dessa revelação: supôs que o homemencontravase sempre em condições de querer uma cons-tituição racional — e desde o instante em que lhe mos-trarem o que é essa constituição — e o Estado univer-sal — na medida em que é apresentado como “sentido dahistória” . Levando em conta a paixão no modo de for-

mular o problema, de certo modo a esqueceu na solução.E por isso, com certa razão, seus discípulos “de esquer-da” pretenderam utilizar a paixão, a “ convicção políti-ca”, a “coragem” para realizar a Razão.

Para tornar mais clara essa “insuficiência” do hegelianismo, devemos perguntar o que mostra a experiênciahistórica, “tribunal do mundo” . Devemos insistir no fa-to — recentemente salientado, com razão — que o

26 E. Weil, op. cit., e a análise proposta na Filosofia política.

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viraser do Estado moderno de modo algum invalida asperspectivas estritamente políticas de Hegel: é evidenteque o poder sobsrano racional, quer dizer previdente,interfere constantemente no governo das nações evoluí-das a fim de dirimir os conflitos da Sociedade Civil; éclaro também que, na idéia refletida do Estado, está im-

plícita a idéia de equilíbrio dos interesses das diversascoletividades, que organismos múltiplos delas represen-tativos são convocados em testemunho pelo governo, quea administração desempenha papel considerável na or-ganização da comunidade; que a noção de um Estadouniversal ou, ao menos, de uma jurisdição mundial capazde resolver as pendências entre os Estados consideradosem sua particularidade, está presente no espírito de to-dos os políticos contemporâneos. Nesse sentido, a des-crição hegeliana é “bem sucedida” : apreendeu correta-mente a essência do Estado moderno. Mas, — e esse éo fato decisivo — , nem por isso a satisfação universal éempiricamente real; no interior dos Estados, a alienaçãonão desapareceu e a “previdência” do soberano não su-primiu o conflito de classes (da “plebe” e da “riqueza” ) ;

a colonização, permitindo, em certos casos, “o retorno aoprincípio familiar” 7 para o povo colonizador, provocougraves atentados a esse mesmo princípio nos povos colo-nizados; a conquista dos mercados estrangeiros, dese-

 jada pela Sociedade Civil, continua a fazerse pelas guer-ras qúe ameaçam a vida e a dignidade das nações semque nenhum tribunal possa mostrarse realmente eficaz.

Em outros termos, embora o programa político de Hegelesteja, em parte, realizado, o programa filosófico do quala política é a objetivação, permanece sem efetivação. OEstado racional não passa da supressão ideal dos con-flitos que perturbam as comunidades e alienam o indi-víduo; ele existe, levando em conta o descompasso entrea realidade e a empiria e contrariamente ao que pensava

27 Princípios de filosofia do direito , § 248, p. 185.

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o movimento crítico, mas só parcialmente cumpre suamissão libertadora.

Assim, o Estado real definido por Hegel e realizadoem ampla medida no mundo contemporâneo é conside-rado pelo filósofo como o A u f h e b u n g  do conflito dos in-teresses: a superação das contradições econôm icas se faz

pelo seu reflexo na esfera p ol ít i ca . Essas contradiçõesnão desaparecem; perdem sua poderosa periculosidade esão reduzidas a simples diferenças; são consideradas porHegel como pertencentes necessariamente à SociedadeCivil; assim sendo, a solução só pode consistir em umaelevação da essência da comunidade a um nível supe-rior no qual se introduzem as mediações indispensáveis.

 Tal perspectiva implica duas dimensões: supõe, inicial-mente, assim como acabamos de observar sumariamente,que o indivíduo enquanto indivíduo é constantementecapaz de conhecer e de querer o Estado como soberaniamediadora; não secusa sua previdência e que, em parti-cular, não se insinuam na “ciasse universal” dos fun-cionários os representantes dos interesses privados, em-penhados em favorecer esta ou aquela coletividade; se-

ria, pois, necessário que os indivíduos compreendessemque suas decisões particulares só têm ensejo de realiza-ção durável pelo m e d i u m  do Estado, considerado comoessência objetiva da comunidade. Essa perspectiva su-põe também que a reflexão da Sociedade Civil no Estadoé eficaz, que a Sociedade Civil se mostra simples mani-festação do Estado e que as desordens que poderiam serobservadas na Sociedade Civil apresentamse como con-

tingências normais que não atingem o tranqüilo orde-namento do Estado. Esclareçamos novamente: não setrata de condições necessárias à existência do Estadoracional, mas de condições para que o Estado racionalpromova a satisfação.

Ora, a realização do Estado racional não implica asátisfação real. É preciso, pois, que a análise hegelianapeque de algum modo. Não, como já vimos, por ser utó-pica; nem porque uma falta de oportunidade históricaa impeça de provar sua capacidade; nem, enfim, por-

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que o Estado descrito, só na aparência, seja racional.A falha deve situarse em outra parte. De acordo com oque acabamos de observar, parece que a questão impor-tante é a seguinte: como pode o indivíduo não querer oque quer o soberano? Como subsiste o conflito não sóna Sociedade Civil, mas repercuta também na própria

esfera do Estado? Por que a paixão e o interesse con-tinuam a suscitar contradições que acarretam a insa-tisfação e a alienação dos homens no próprio seio daordem política moderna? A esses problemas, parece queMarx, embora em texto apressado e incompleto, dá umaresposta decisiva. A Cr ít i c a d a F i l o so f i a d o Es t a d o de  H e g e l  28 — redigida em 184142 — comenta, parágrafopor parágrafo, os textos dedicados por Hegel à estrutura

da Constituição racional. O espírito que animava o hegelianismo de esquerda nela se encontra, com seu ardorpolêmico e suas insuficiências. Marx, nessa obra, aindanão se revela de posse dos elementos fundamentais quelhe permitirão elaborar sua perspectiva de conjunto.Dedica, além disso, a pontos que hoje parecem muitoespeciais, certos desenvolvimentos: assim, esforçase emmostrar o caráter arbitrário e, por assim dizer, passio-nal do alcance que Hegel atribui à monarquia consti-tucional hereditária na qual a soberania do Estado seencarna em um indivíduo determinado pelas circuns-tâncias e lugar de seu nascimento -9. Permitamnos queponhamos entre parênteses muitos aspectos dessa crí-tica, embora tenham importância na história da forma-ção do pensamento marxista, para reter apenas, desses

textos, os elementos que já assinalam, nessa esfera par-ticular e capital da política, a superação da maneira doestilo filosófico.

Essa falha da análise hegeliana que se pretende pro-curar, Marx a descobre na falsa relação estabelecidapelos Pr i n cíp i o s da f i l o s of i a do d i r ei t o  entre o Estado e a

28 Obras filosóficas , t. IV.

29 Cf. o comentário do § 279, pp. 52 ss.

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Sociedade Civil. A C r i t i c a  — sem dúvida porque nessaépoca Marx pensava poder refutar Hegel aplicandoseapenas ao domínio político — incide apenas na Consti-tuição e no Estado interno; visa revelar as obscuridades,as contradições, o “misticismo” do sistema político des-crito por Hegel em uma série de anotaçõss também,

muitas vezes, obscuras e disparatadas. O sentido da re-futação marxista parece, no entanto, muito claro: He-gel, arrastado pelo seu “panlogismo” n0, transformou osujeito real — ao mesmo tempo: o homem empírico, oindivíduo, a Sociedade Civil e a família — em simplesmanifestação do Estado, que erigiu em sujeito real, querdizer, em realidade substancial e em fim último da von-tade humana; de tal sorte, falseou a relação efetiva exis-tente entre os indivíduos, as “coletividades” , de um la-do, e a realidade constitucional, de outro. Não têm assim,na perspectiva hegeliana, a Sociedade Civil e a Família,nenhuma existência por e para elas mesmas: são ape-nas o aspecto finito dessa realidade infinita: o Estado,distribuindo seu “material” , seu conteúdo de acordo coma necessidade que lhe é própria: “o fim de sua existên-

cia não é a própria existência” 31 mas alguma razão quelhes é exterior; “ o fato empírico, em sua existência em

30 “ Não é a filosofia do direito, mas a lógica que constitui o ver-

dadeiro interesse. O que constitui o trabalho filosófico, não é que

o pensamento se encarne em determinações políticas, mas que asdeterminações políticas existentes sejam volatizadas em pensamentos

abstratos. O que constitui o elemento filosófico, não é  a lógica dacoisa, mas a coisa da lógica. A lógica não serve para provar o Esta-

do, é, ao contrário, o Estado que serve para provar a lógica” . Idem, p. 42.

31 “ O fim de sua existência não é a própria existência, mas a idéia

senarada de si, essas pressuposições “ para sair de sua idealidade como

um espírito real infinito por si” , quer dizer, o Estado político não po-

de existir sem a base natural da família e sem a base artificial da

Sociedade civil; são para ele uma condição sitie Qua non; mas a con*dição é posta como o condicionado, o determinante como o determi-

nado, o producente como o produto de seu produto” , pp. 2425.

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pírica, tem uma significação diferente dele próprio” 32.“Hegel sempre faz, da idéia, o sujeito, e, do sujeitorea l... o predicado” 33: o serempírico — enquanto tal — é por ele considerado desprovido de razão, de sentido,enquanto não encontra no Estado essa necessidade quelhe falta. Isso equivale a dizer que não existe ou só exis-

te como manifestação daquilo que não é ele34.Ora, na determinação do papel político dos Estados,

Hegel não pôde deixar de assinalar a oposição existenteentre o Estado e a Sociedade Civil. A Sociedade Civil,por sua própria contingência, está referida ao Estado;mas, como tal, deve estar presente (ou representada) noEstado (caso contrário, não seria manifestação do Esta-do) . Não é possível, porém, que, entre os representantesda Sociedade Civil — os delegados das corporações — e os do Estado — os funcionários — não se manifesteuma oposição: “ assim como os burocratas são os dele-gados do Estado junto à Sociedade Civil, os estados sãoos delegados da Sociedade Civil junto ao Estado. São,pois, sempre transações entre duas vontades opostas” 33.Ora, é aí que aparece a insuficiência da conciliação queHegel se propunha efetuar: pelo fato de que a SociedadeCivil só encontra sua verdade fora de si mesma, não tem

 — como Sociedade Civil — estatuto político30; seus re-presentantes só na aparência têm função política; de

32 Idem,  p. 26.

33 “ O importante é que Hegel faz sempre da idéia o sujeito, e do sujei-

to real, propriamente dito, tal como a disposição “ política” , o predi-cado”, Idem, p. 29.

34 . .essa relação real, do Eslado com a Sociedade civil, com oindivíduo, é anunciada pela especulação como uma manifestação, um

 fenômeno . . . A realidade não c expressa enquanto si mesma, mas en-quanto uma realidade outra” , p. 22.

35 Idem,  p. 139.

36 “O elemento constituinte é a significação política do Estado  privado,do Estado não político, uma contradiclio in adjecto... O Estado pri- 

vado  faz parte do ser da política desse Estado. Confere a ele, conse-qüentemente, uma significação política, quer dizer, uma significação di-

ferente de sua significação real” , p. 148.

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fato, toda a administração da comunidade está reser-vada aos funcionários, únicos que possuem, por defini-ção, o poder universal37. Assim sendo, a supressão dosconflitos da Sociedade Civil que se faz no e pelo Estadosempre se opera, finalmente, em d e t r i m e n t o  da SociedadeCivil. O Estado não consegue suprimir as contradições

do interesse privado senão fazendo desaparecer o homemprivado, o homemempírico38. As alienações oriundas dasmúltiplas oposições dos desejos e das vontades indivi-duais somente são superadas pela instauração de umaalienação mais profunda, mais grave e mais geral: a dohomem que, por ser ci d a dão, encontrase paradoxalmen-te despojado de seu ser privado e submetido à onipo-tência da “classe universal” dos funcionários. Porque oser concreto do homem está separado de si “ como umser puramente exterior, material” , o “conteúdo do ho-mem não é mais sua verdadeira realidade” 38. Essa re-flexão da Sociedade Civil no Estado só podia ter sentidoquando “a Sociedade Civil era ainda política e o Estadopolítico a Sociedade Civil” : na IdadeMédia40. A idademoderna, pelo fato de ter separado os dois termos, tor-

nou impossível a união do ser privado e do “serpolítico” ,a não ser pe’o subterfúgio da cidadania, pura determi

37 “ A burocracia tem em sua posse o ser do Estado, o ser espiritual

da sociedade, é sua  propriedade privada. O espírito geral da burocra-

cia é o segredo, o mistério, guardado em seu seio pela hieíarquia, e

exteriormente pelo seu caráter de corporação fechada” , p. 102.

38 “ Para comportarse, pois, como cidadão real do Estado, adquirirsignificação e atividade política, c obrigado a sair de sua realidade cí-

vica, a dela fazer abstração, a retirarse de toda essa organ;zação em

sua individualidade; pois a única existência que encontra para sua qua-

lidade de cidadão do Estado, é sua individualidade  pura e simples, pois

a existência do Estado enquanto governo é completa sem ele, e sua

existência na sociedade civil é completa sem o Estado” , p. 162.

39 Idem,  p. 170.

40 Idem, p. 151.

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nação formal e prolongamento passivo de um querer uni-versal exterior ao indivíduo empírico.

Na Crít i ca da F i l oso f i a d o Es ta d o de H egél , Marxnão aprofunda essa dialética. Em obras ulteriores e jána “Introdução” dessa Cr ít i ca , publicada em 184441, levasua análise mais adiante e se desprende da ótica feuer

bachiana, que adotara em 18411842. No texto cujostemas acabamos de evocar sumariamente, Marx deixavaquase completamente na sombra o problema apresenta-do pela estrutura real do Estado e o conteúdo efetivo davontade soberana; embora a propósito do morgadio4,tenha feito observações sobre o alcance político da pro-priedade privada, admite, em suma, a noção hegelianado Estado considerado em seu puro ser político. O que

critica é a apropriação do Estado pela “classe univer-sal” , recrutada, de fato, por simples cooptação. É o despojamento do indivíduo de simesmo; mas, não indagaainda sobre a significação econômica da onipotência ad-ministrativa ™. A pesquisa histórica à qual pôde entre-garse, a partir do momento em que operou essa revolu-ção da qual traçamos o esquema no final do capítuloanterior, permitirá que aprofunde e torne mais concretaainda sua crítica. O Estado domina à Sociedade Civil epriva o indivíduo de sua realidade empírica, nele reco-nhecendo apenas seu serformal: a cidadania. Mas, in-versamente, a Sociedade Civil — esfera econômica — determina a esfera política41. O soberano, o governo, a

41 Obras filosóficas, t. I. pp. 83 ss.42 Cf. o comentário do § 306 dos Princípios de filosofia do direito, pp. 199 ss.43 A não ser assinalando o caráter supérfluo ou suspeito da vontadedos Estados e declarando que “ os estados provêm do ponto de vistaprivado e dos interesses privados. Na realidade, 6 o interesse privadoque constitui seu negócio geral e não o negócio geral que constituiseu interesse privado” , p. 134.

44 “Tratase de desenhar o quadro da surda pressão que todas asesferas sociais fazem pesar reciprocamente umas sobre as outras, deüm desacordo geral e precário, de uma estreiteza de espírito tão pre-

tensiosa quanto mal informada, o todo colocado no quadro de umsistema de governo que vive da conservação de todas as insuficiênciase não passa da insuficiência no governo” , op. cit., t. I, p. 88.

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administração pretendem, com efeito, querer o univer-sal: mas, se considerarmos seu poder efetivo, percebsremos que suas decisões favorecem não ao “ interessegeral” , mas visam assegurar, ampliar e reforçar o poderda classe que, no conflito econômico, mostrouse a maisforte45. O viraser dos Estados modernos mostra clara-

mente, ao que parece, que, sob a aparência da universa-lidade da Constituição, da lei, das decisões governamen-tais, escondese o mais sórdido particularismo40. Se, emvez de fazer do Estado, como Hegel, um objeto místiconós o considerarmos em seu ser histórico verdadeiro, ve-remos que se tornou o apanágio da “riqueza” e queconstitui um aparelho destinado a manter a predomi-nância econômica daqueles que possuem e a prevenir

toda tentativa de rebelião da “plebe” . A “ classe univer-sal” — funcionalismo, polícia e exército permanente — é um instrumento de coação graças ao qual vontadesparticulares aumentam seu poder e se esforçam em dis-simular seu particularismo invocando a universalidadevazia da Constituição (é importante observar, a pro-pósito, que as circunstâncias históricas podem fazer que,em certas épocas, haja coincidência entre o “ interessegeral” e a vontade da classe no poder e que, em outrasépocas, os proprietários sejam incapazes, compelidos arespeitar a lei que estabeleceram e só se mantendo namedida em que violam essa própria l e i ) . Assim, no oupelo Estado (burguês, aquele que melhor realiza a idéiado Estado correspondente a uma Sociedade Civil domi-nada pela realidade do conflito), a opressão econômica

afivela a máscara da legalidade e a Constituição temcomo conteúdo efetivo o domínio mantido e ampliado da“riqueza” sobre a “plebe” . O Estado “hegeliano” nãosuprime as contradições econômicas profundas senão emi déi a ; empiricamente, as reduplica, elevando ao plano do

45 ldem, p. 101.

46 . .um belo dia nossos cavaleiros do algodão c nossos heróis doferro se viram transformados em patriotas” , p. 91.

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direito a violência exercida de fato pelos proprietáriassobre os não proprietários.

Caberia insistir na profundidade e nas riquezas his-tóricas da crítica desenvolvida pelos fundadores do mar-xismo contra a doutrina hegeliana do Estado. Importalimitarse aqui aos dois aspectos que tornarão mais cla-

ro o significado dessa superação da filosofia (idealista)pelo materialismo. Voltamos a encontrar aqui, de ummodo talvez mais preciso, no entanto, um tema evo-cado, em sua generalidade, ao longo do capítulo ante-rior. Considerando a Sociedade Civil como um momentodo movimento que leva ao Estado, o ser privado simplesmanifestação do ser político, ele próprio reduzido à formada cidadania, contentandose em dirimir os conflitos dacomunidade e os que surgem entre as comunidades pelasimples elevação ao conceito: vontade universal do “po-vo” e sentido da história, Hegel particulariza em deter-minada esfera o princípio que se acha na raiz de todoseu sistema: o homem reduzido em sua essência objetivaao pensamento. Para apreender devidamente o queMarx condena na política hegeliana, o que o materialis-

mo critica na ótica filosófica tradicional, é preciso, antesde mais nada, compreender tudo o que lhe concede.Hegel, em primeiro lugar, de acordo com Marx, descrevecorretamente o Estado de seu tempo (que ainda é, emparte, o Estado do nosso tempo); apreende, em seguida,de maneira suficiente, embora muito geral, a naturezaprofunda da Sociedade Civil; finalmente, define de ma-neira adequada o que se espera do Estado quando sequer o Estado47. A pesquisa hegeliana, no entanto, éfalseada na medida em que o que deve ser posto em pri-meiro lugar é posto apenas em segundo, tornandose,assim, de certo modo contingente. A lógica se antepõe

47 Cf., por exemplo, este texto: “ A crítica da filoso fia do direito e

da filosofia política alemã, à qual Hegel deu a fórmula mais lógica,mais rica, mas mais absoluta, é ao mesmo tempo a análise crítica do

Estado moderno e da realidade que a ele se acha l i gada. . p. 195.

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A u f h e b u n g  que não seja ideal — no Estado racionalreal — mas empírica — na própria Sociedade Civil. Seme-lhante A u f h e b u n g , no entanto, supõe a apreensão daestrutura profunda desse homem que a simples cidada-nia não satisfaz, aquele homem que vimos chamando,sem maior rigor, de homem empírico.

3

Porque se trata, realmente, de uma noção vaga. Émuito simples, sem dúvida, apelar para a experiência afim de explicar o ser empírico do homem e definilo.O mal é que a noção de experiência oferece tamanhadiversidade de conteúdos que é inútil dela esperar o me-nor rigor: não pretendeu, cada doutrina, na história dopensamento filosófico, referirse a alguma prova, a seusolhos essencial, que considerava como experiência deci-siva? Convém, assim, evitar um primeiro perigo, o queconsistiria, para alcançar a realidade humana em sua

verdade empírica, em escolher arbitrária e subrepticiamente um significado privilegiado da experiência que sequalificaria de científica ou de efetiva. Se assim fosse,o alcance da revolução materialista seria bem reduzido:limitarseia a opor ao abuso do desenvolvimento con-ceituai um dogmatismo do provado (subjetivamente:“ eu sinto quotidianamente a exterioridade e a prece-dência da matéria” , por exemplo) ou do experimentado

(objetivamente: “ as ciências provam com a maior evi-dência que. . . ” ) e, sob a capa de um retomo aos fatos,reiterar as mais obscuras doutrinas da intuição. Já in-sistimos suficientemente nesse ponto, no começo destetrabalho, para que seja necessário a ele voltar. Deve-mos observar desde logo, porém, que o ser empírico doqual pretendemos, na senda dos fundadores do marxis-mo, delimitar os contornos, já possui, como noção, umestatuto conceituai: apresentase como superação do serideal que a filosofia estava acostumada a considerar.

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Desde então, um fio condutor é oferecido e a análise deMarx sobre as insuficiências da política hegeliana é ca-paz, apesar de seu caráter muitas vezes prémarxista, deprevenir contra as tentações do dogmatismo.

Há outro perigo. Na tentativa de fixar os traçosprincipais do homem real, ameaça surgir constantemen-

te, em forma levemente modificada, outro dogmatismo:o que se apóia em uma noção da n a t u r eza h u m a n a  queKant e Hegel tão energicamente denunciaram. Uma daslições mais importantes da Fenom en o l o g i a d o Es pír i t o   é, sem dúvida, a de que o Absoluto não pode ser consi-derado, na plenitude, como substância: a fórmula deveser entendida não só como refutação de duas doutrinasopostas: a filosofia teológica e o materialismo natura-lista do século XVIII, mas também como crítica de todosubstancialismo que, interpretando o homem, seja comomatéria, seja como espiritualidade, o imobiliza numa de-terminação ontológica eterna e menospreza sua consti-tuição fundamentalmente histórica. Não se trataria — depois de Kant, depois de Hegel, e depois também quea ciência histórica e as chamadas ciências humanas pu-

seram em evidência o devenir como traço fundamentalda realidade — pretender circunscrever de maneiraexaustiva (conceitualmente) e definitiva (historicamen-te) os predicados que pertenceriam onitemporalmente aohomem. Seria opor ao que Marx chama o “misticismológico” de Hegel outro misticismo de feição positivista.Ainda a esse respeito é importante, a fim de que as idéiasestabelecidas pelo filósofo sejam efetivamente superadas,

que sejam também mantidas. E o que devemos ter cons-tantemente presente no espírito — empregamos essa ex-pressão vaga para bem salientar que não se trata de mo-do algum de uma prescrição metodológica abstrata, querdizer, exterior à coisa estudada — é que nenhuma “re-velação” , mesmo “ científica” , permite negligenciar otraço fundamental da realidade humana: a historici-dade.

 Traduzse, essa exigência, em particular, no fato deque nenhuma determinação descoberta como constitutiva

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do serempirico do homem pode ser considerada em suaessência e em suas manifestações como ahistórica. Écerto que a análise operada pelos pensadores marxistasde que nos propomos aqui apresentar alguns aspectos,reterá certas dimensões como características do homemem seu “sergenérico” . Importa, no entanto, lembrar

que o pensamento marxista quando assim procede tra-balha por “abstração modal” — para falar como Descar-tes — e não pretende de modo algum descobrir os pre-dicados que, de toda eternidade e de toda necessidade,estão inscritos no sujeito. Mais precisamente, aprendeua distinguir entre o que é fundamental (duradouro eque se manifesta com nitidez em circunstâncias deter-minadas) e o que é histórico (e que aparece de acordocom a necessidade própria da história humana). É fun-damental, por exemplo, que o homem é (e não se ja , poisnão se trata de uma condição, mas de um fato) neces-sidade; mas, essencialmente, a necessidade assume estaou aquela determinação segundo a ordem histórica e éabstrato falar de necessidade em geral se não se sabeao mesmo tempo o que é imperiosamente necessário

disto ou daquilo. A dialética hegeliana da essência (ofundamental, a esse iespeito) e da manifestação (o his-tórico, nesse caso) deve ser levada às últimas conse-qüências para que sejam afastados os erros do substancialismo naturalista.

Isto quer dizer que toda análise geral — do tipo pre-cisamente daquela à qual a exigência do presente tra-balho deve conduzir — é perigosa, porque abstrata. Não

poderia haver, para o marxismo (a não ser quando seesforça em prevenirse em relação à tradição ou quandose limita a uma tarefa pedagógica) exposição de con-

 junto do “sistema” . Não há análise marxista da “me-mória” ou da “ vontade” ; não há concepção marxista doVerdadeiro, do Belo, do Bem4í'. Como e por que o ho-

49 Entendamos bem: não deveria haver, em loJa compreensão darevolução teórica realizada por Marx e pelo marxismo.

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mem — realidade histórica — pôde chegar a considerarhistoricamente o passado como seu  passado, a compre-enderse como sujeito de seus atos e como responsável,tais são as questões do psicólogo marxista (mas, como éainda possível empregar o termo ‘psicologia’? Como epor que pôde indagar o que significava a a d eq u a t i o r ei   

e t i n t e l l e c t u s  ou o que impelia os homens a quereremfazer obras capazes de “agradar” a outros homens, taissão os problemas que se propõe a filosofia marxista (mas,não haverá certa facilidade em utilizar esse termo ‘filo-sofia’ do qual a história do pensamento acabou por fa-zer um uso tão rigoroso?). Com mais razão, o pensadormarxista deverá recusarse a responder à pergunta: queé o homem? Deveria poder perguntar, porque só o con-teúdo lhe interessa: sobre que homem interrogam: o deCromagnon ou o que participa do Estado moderno?Aprendeu, no entanto, que, refugiandose em tal pru-dência, expunhase a todos os que desprezam o concei-to e querem abolir o conhecimento e dissolvêlo numamultiplicidade de conhecimentos diversos. Desde então,aceita o risco de falar do homem em geral, embora sai-

ba que a totalidade humana é históricodialética, quetal determinação em uma época limitada, apesar de ma-nifestarse como dimensão essencial, é o resultado efe-tivo de um devenir anterior e não deve sua essencialidade à ligação com outros traços humanos que o tempotornou menos importantes.

 Tudo isso equivale a dizer que, na discussão com ofilósofo, o materialista encontrase em posição difícil,

pelo menos formalmente. Sua resolução constante emdefinir a realidade empírica do homem, de constituiruma nova “antropologia” rompendo não só com o espi-ritualismo (o homem como alma, quer esse termo signi-fique p n e um a , p s y k h e  ou n o u s ) , mas também com oidealismo (o homem como l o gos ) , o levam freqüente-mente a adotar, em seu vocabulário e sua sintaxe — quenão poderia, no estado atual, tomar à tradição — o es-tilo do naturalismo. Contra o perigo de que essa formavenha a determinar o conteúdo do pensamento materia

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lista, nenhuma prescrição metodológica, insistimos, po-deria ser eficaz. Somente a atenção, sustentada peláidéia de que se trata de elaborar uma perspectiva radi-calmente nova, refletindo a “seriedade da vida” em seuconteúdo empírico e superando — na significação dialé-tica do termo — as descobertas da filosofia, pode permi-

tir afastar esse risco. É preciso, pois, chegar a esse con-teúdo, por mais esquemática que possa ser a análise àqual aqui nos dediquemos... Observemos, aliás, que naspáginas seguintes tratarseá menos de “definir” o ho-mem empírico que de oferecer os elementos capazes decontribuir para a solução do problema limitado que nospropusemos.

O primeiro e único pressuposto de que deve partira concepção materialista do homem é um fato: a exis-tência de indivíduos humanos™. Na verdade, trataseinicialmente de definir o que significa essencialmenteesse fato da vida humana em sua dimensão empírica talcomo nos é dada: tratase de descrevêla tal como semostra, deixando ao prosseguimento da análise a in-cumbência de mostrar porque semelhante descrição é

exata e suficiente e como é capaz de legitimarse a simesma. A propósito, pedimos ainda permissão para pro-ceder a uma rápida ordenação dos temas sobre os quaisrepousa a revolução teórica operada pelo marxismo, de-sejando que o leitor concorde em considerar as separa-ções que seremos levados a fazer como simples “abstra-ções modais” e não como cortes concretos e que espereas páginas seguintes para apreender a justificação efeti

50 “ Os pressupostos pelos quais começamos não são arbitrários, nãosão dogmas. São pressupostos reais dos quais só se pode fazer abstra-ção na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condiçõesde existência material, quer já existentes, quer produzidas pela suaprópria ação. Ésses pressupostos são observáveis por via puramente em-pírica. O primeiro pressuposto de toda a história dos homens, é natu-ralmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro er.tado

de coisas a constatar, é, pois, a organização corpórea desses indivíduose a relação em que isso os coloca com o resto da natureza” , hieolo *gia alemã, Obras filosóficas, l. V I, p. 154.

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va que delas pode dar o marxismo. Apresentar a vidahumana empírica, é antes de mais nada reconhecêlacomo vida que se mantém no elemento da natureza quelhe é indicado pela sua própria origem: é considerálainicialmente como materialidade51. É certo que toda fi-losofia concederá o fato dessa existência sensível do ho-

mem : mas, voltará logo à carga, empenhandose em des-cobrir a essência desse estatuto sensível: perceberá, porexemplo, que é preciso concebêlo como aparência oucomo inessencialidade ou como resultado de uma cons-tituição que tem origem na atividade perceptiva ouconstituinte do próprio sujeito. Berkeley, por exemplo,não nega que haja um sersensível do homem: mas, lo-go o reduz ao fato de que o corpo humano, do mesmomodo que o dado corpóreo em geral, é percebido e que,como tal, supõe um espírito percipiente que o faz “ exis-tir” tal qual é. O que o materialismo marxista afirma, éque o desenvolvimento de semelhantes análises já su-põe a existência empírica da humanidade — em suaprópria contingência —, que as elaborações teóricas de-vem admitir o f a t o  da vida humana como um dado irre-dutível.

E é isso que exige, inicialmente, a superação da fi-losofia: a simples verificação de que toda operação dopensamento, por mais admirável que seja, implica, co-mo condição real, a existência natural da humanidadeà qual se oferecerá então, e somente então, a possibili-dade de refletir sobre sua própria condição. Se há umaquestão que pode apresentarse a propósito do homem

e de seu destino, é sem dúvida porque o homem é pen s a me n t o . Mas, o próprio pensamento, como fato que in-

51 A tarefa que consistiria em fazer figurar, em relação às frases quevamos propor, uma citação de Marx, de Feuerbach, de Engels, é fasti-diosa. Essas referências existem; mas é possível achar, nas obras dos

fundadores do marxismo, fórmulas que indicam outro caminho. O

importante não é colocarse à sombra de Marx, mas tentar compreen-der o mundo contemporâneo, e a tarefa que atualmente incumbe àteoria, à luz das descobertas feitas por ele.

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terroga, pressupõe, por sua vez, a vida humana enquan-to vida e enquanto humana. Não se trata, pois, para omaterialista, de modo algum, de negar que o pensamen-to, — como abertura e reflexão sobre o que é — consti-tua aquilo em que e por que os traços mais distintivosda humanidade se manifestem: a “Alma” , a linguagem,

a “Razão”, quer dizer, a interrogação sobre si mesmo, aexposição de si mesmo face a outrem e a aspiração àuniversalidade do discurso e da conduta. Mas, esse serdiferencial pressupõe como sua condição real um ser fun-damental a partir do qual a diferença, precisamente,possa aparecer e manifestarse. O fato de chegar, final-mente, ao que condiciona todo pensamento, ao que per-mite que o pensamento seja, de encontrar a “seriedade

da vida”, não enquanto tragédia refletida, mas enquan-to tragédia real em que se joga a possibilidade mesmade que se fale de tragédia e que se queira ir além, rumoà felicidade, tal é a significação da revolução teórica ope-rada pelo marxismo.

Ora, a vida humana tomada em sua realidade em-pírica, aparece inicialmente — insistimos em que serápreciso, em seguida, legitimar essa concepção — comovida natural desenvolvendose nesse domínio imposto eúnico que é a natureza. A referência a conceitos tãoelaborados como o de “natureza” poderá surpreender emum trabalho no qual se pretende dispensar todo pres-suposto. De fato, por esse termo entendemos apenas olugar de habitação do homem ou horizonte empírico noqual é dado existir. Dizer que o homem vive aí, é dizer

que daí retira sua vida. Toda carência objetiva elemen-tar, a deterioração fisiológica, a diminuição vital que re-sulta da privação de alimento, por exemplo, toda satis-fação objetiva elementar — a recrudescência de vitali-dade, o desenvolvimento e o crescimento — são falta d e  algum “ fragmento” da natureza que lhe conviria, possee utilização desse “ fragmento” . Em outros termos, a re-lação imediata do homem com seu domínio — que não

é nem jardim de Éden, nem habitação de Tântalo — éa determinada pela constituição corpórea da humani-

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dade. Por isso, devemos entender, não que todas as di-mensões passadas e presentes do homem estejam conti-das na estrutura do corpo e do sistema nervoso, mas quea manutenção e o desenvolvimento da vida empíricaconstituem a relação originária do homem e da f i s i s . A presença verdadeira da humanidade em seu meio con-

siste não na representação — que constitui um estágioelaborado e ulterior — , nem mesmo na apresentação — que é imediatamente, mas não fundamental — , mas napresença efetiva, quer dizer, na falta ou na posse realtraduzindose por uma diminuição ou um desenvolvi-mento da vida natural52.

O homem é passividade; encontrase no estatuto dadependência. O que conquista e cria, o obtém a partirde uma sujeição natural que está ligada à sua situaçãode fato como serempírico, submetido a determinaçõesque não dependem nem de sua opinião nem de sua de-cisão. Que um homem queira morrer de fome para ma-nifestar sua “independência” em relação às exigênciascorpóreas, o simples fato de que saiba que morrerá eque decida adotar essa conduta precisamente por essarazão, prova sobejamente o caráter fundamental dessasujeição. Seja qual for a vontade do indivíduo, seja qualfor a referência extranatural que o grupo possa esco-lher, resta que o homem está mergulhado no sernatural como em seu meio obrigatório. Querer abolir a coer-ção da necessidade é exaltar o ser que vive a si concretamente como necessidade e que, por motivos culturais,sofre com isso e aspira a outro lugar que lhe é

recusado. Essa sujeição manifestase inicialmente nofato, muitas vezes considerado simples, de que o homemdepende das mesmas leis que regem qualquer outro cor-

52 É justo referirse aqui à obra muito importante de Dionísio Mascolo, O Comunismo, que, embora tenha acrescentado elementos con-tingentes à análise, salientou com um rigor, uma clareza e uma inten-

sidade de estilo notáveis, o fato de que a necessidade, como realidade ecomo noção, é o elemento decisivo graças ao qual uma compreensioda teoria e da prática marxista se torna possível.

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po e qus também pertence ao registro implacável doo b j e c t u m . Importa darse conta disso e dizêlo an tes . Nenhuma prática, por mais inventiva que seja, permi-te sair diretamente dessa determinação, a não ser empensamento, supondo algum m éd i u m  espiritual em queo pensamento é livre de querer abstratamente a insatis-

fação, a incoerência vital e a morte. Mais geralmente, édada a dependência do homem enquanto corpo sofredor,enquanto pertence, ele também, à p h y s i s  e se acha, des-de então, ligado a processos irreversíveis e impostos, demanutenção e de devenir. É inútil interpretar o ‘deverser’ de modo lírico, pois é imediatamente ‘deverser’ vivoque se manifesta.

É importante esclarecer que essa definição do esta-

tuto fundamentalmente natural do homem não impli-ca, de modo algum uma r ed u ção da existência humanaa qualquer ordem fisiológica substancial da qual o com-portamento seria a manifestação. Quando se indica aneces s i dade como relação primordial do homem com suasituação, designase uma relação originária a partir daqual o devenir humano se elabora e não algum termono qual tudo estaria contido como os predicados em suasubstância. A interpretação ontológica da concepçãomarxista comprometeu freqüentemente a revolução teó-rica operada por Marx como puro e simples retorno auma doutrina psicofisiológica, segundo a qual a h i s t ó r i a   é a simples concretização de uma natureza d a d a p r ev i a  m e n t e  . Por fundamental que seja, a necessidade só podeser compreendida, para o materialismo marxista, como

necessidade em determinado estágio da evolução: se de-vemos concebêla, inicialmente, como necessidade pro-priamente corpórea que tivesse, em última instância, epor fim, a satisfação elementar do homem em seu ‘sernatural’, é importante também verificar que o conteúdoda necessidade está ligado, historicamente, à evoluçãodas capacidades e dos desejos efetivos da humanidade53.

53 “ Cada uma dessas relações humanas com o mundo: ver, ouvir,farejar, degustar, tocar, pensar, sentir, querer, agir, amar, em suma,

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Em outros termos, é preciso partir desse estatuto origi-nário se quisermos dar conta das estruturas profundasda existência humana; não é suficiente fazêlo54, pois odevenir próprio da civilização cria, em circunstânciasdeterminadas, que podjem ser empiricamente estuda-das, novas necessidades que excedem amplamente as ne-

cessidades elementares, mas nunca poderiam suprimilas.

Assim também, devemos notar, contra as tentaçõese as falsas clarezas do materialismo abstrato, que pre-tende encontrar na estrutura corpórea a causa de to-dos os aspectos da atividade do homem, que na noçãoda necessidade humana, por mais elementar que seja,está imediatamente implícito o próprio fato da cons-

ciência. Como foi salientado pela maior parte dos psicó-logos contemporâneos, é abstrato separar inicialmentecomportamento e consciência e procurar saber, em se-guida, como se reúnem os dois termos. Quando se tratado homem, precisamente, a verificação empírica nosmostra que o lugar de habitação é não só o domínio deonde vêm os estímulos e onde se efetuam as reações,mas também horizonte presente. A propósito das objeções formuladas contra o ateísmo, incapaz, segundo seusadversários, de explicar o aparecimento do mundo, Marxobservava com ironia: “se perguntam a respeito da na-tureza e do homem, fazem abstração do homem e da

todos os órgãos de sua individualidade, que são imediatos em sua forma de órgãos comuns, são, em sua relação objetiva, ou em seu com-portamento face ao objeto, a apropriação da realidade humana; o mo-do pelo qual se comportam em face do objeto é a manifestação darealidade humana. Essa manifestação é tão múltipla quanto as deter- minações e as atividades humanas , a atividade humana e o sofrimento  humano.. Obras filosóficas , t. VI, p. 29.

54 É o motivo pelo qual uma análise econômica que, não levandoem conta transferências históricas de necessidades, utilizando, porexemplo, pontos de referência (como o consumo do vinho e da car-

ne), a título de critério absoluto  da pauperização, situase, não naótica marxista, mas na ótica, tão criticada, do “ materialismo mecanicista” .

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çam os homens a se distinguirem dos animais a partirdo momento em que começam a p r o d u z i r  seus meios desubsistência, operação que é condicionada por sua or-ganização corpórea. Produzindo seus meios de subsis-tência, os homens produzem indiretamente sua própriavida material”60. O comportamento animal, considerado

em sua generalidade, caracterizase pela repetição, pelaestagnação no nível natural ou ainda pelo fato de queo sergenérico permanece o que é, e que as modificaçõessupervenientes se produzem no seio do gênero natural.A conduta humana, ao contrário, é capaz de c o n s t r u i r :   ao domínio que lhe é imposto, substitui, por sua paciên-cia e seu engenho, um domínio que ele constrói progres-sivamente e que se torna assim seu  domínio. Essa no*ção do trabalho suscitou, ao longo dos últimos anos, nu-merosos desenvolvimentos líricoexistenciais de caráterpseudodialético; permitirão, a fim de evitar semelhantesexcessos, que nos limitemos a algumas anotações espar-sas, pois os únicos informes sérios de que nos utilizaría-mos seriam os resultantes de um estudo histórico ob- jetivo das modalidades do trabalho e das concepções que

suscitam em tal época e em tal civilização. Digamos,simplesmente, na senda dos fundadores do marxismo,que, enquanto ‘sertrabalhador’, o indivíduo humanomanifestase como poder efetivo de libertação de si mes-mo e da humanidade; revelase agente da transforma-ção de seu lugar de existência e criador das novas con-dições de vida. No e pelo trabalho, a “coisa natural”transformase em “objeto humano;” as leis que a go-

vernam se encontram dominadas, pelo simples fato desua utilização. A alteridade real, a do dado que se dá emsua ameaçadora estranheza, mostrandose às vezes co-mo fonte inacessível da satisfação, é parcialmente redu-zida e se torna alteridade que convém ao homem: aoposição do homem e da natureza transformase em re-lação de complementaridade. Domínio da habitação e

56 Ideologia alemã, Ob. Filos. t. y i , pp. 154155.

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do desejo, o meio aparece como meio do trabalho, comolugar da obra, do construir e da satisfação renovada. A “coisa”, recolhida pela atividade humana e por ela mo-delada, transforma sp em “valor de uso”. A “natureza”se transforma no setor submetido ao trabalho, em natu-reza para o homem.

Se não receássemos abusar das exposições dialéti-cas, diríamos que o mundo forjado pelo trabalho é a A ufhebung do dado natural: é sua realização na medi-da em que a satisfação da necessidade nele se torna efe-tiva e onde o desejável deixa de ser objeto de procuraindefinida e fonte do sofrimento para tornarse conviteà obra; é também sua negação, pois o universo artificialse opõe à realidade natural — que nos é tão difícil deconceber, a menos que, como dizia Marx, imaginemosalg um arquipéJago polinésico recentemente surgido57 —como o dominado ao não dominado, o humano ao inu-mano; constitui, finalmente, sua sublimação porque oresultado do trabalho, a obra, participa dos dois regis-tros e se apresenta, ao mesmo tempo, como produto davontade do homem, de seu desejo e de sua coragem e

como fato submetido ao devenir próprio e inumano dodado. É, em suma, o lugar em que se defrontam e se or-ganizam efetivamente, e não apenas no pensamento, anegatividade humana e a pura positividade natural. A propósito, seria talvez necessário salientar o papel de-cisivo desempenhado pela realidade do utensílio em quese reúnem as diversas mediações contidas na atividadedo trabalho. Mas, essa realidade é tão rica e tão comple-

xa que nos perdoarão por não analisá la em seus múl-tiplos aspectos e remeter, não somente às preciosas ano-tações fornecidas, a respeito, por Marx e Engels, masainda às pesquisas da etnografia, da sociologia e da psi-cologia contemporâneas.

O trabalho, atividade de transformação da nature-za, é também processo de formação do homem. No ní-

57 Cf. a crítica de Feuerbach, nas Teses e na Ideologia alemã, emparticular, pp. 161 ss.

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vel da “pura necessidade” :— aquele que se pode apre-ender no comportamento animal — o ser se acha sub-metido à repetição: está condenado a procurar a “coi-sa”, sempre a mesma, que aplaca seu desejo e, se temhistória, ela consiste numa evolução que lhe é impostae o determina do exterior. Pelo trabalho, o círculo natu-

ral da necessidade é rompido. Hegel mostrou, admira-velmente, de que modo a consciência se cultiva e se cons-trói, por sua reflexão, em uma exterioridade que inicial-mente não sabe ter criado, mas que descobre em segui-da como obra sua. Desenvolvia se, essa dialética, no pla-no da consciência de si e o caráter algo misterioso decertas passagens da Fenomenologia do Espírito, postoem evidência, em particular, nos Manuscritos de 1844, 

revelava o a priori conceituai que freqüentemente a do-mina. A formação do homem real — materialidade, ne-cessidade e consciência — operase, de fato, no próprionível da atividade sensível. No objeto fabricado, o ho-mem encontra a marca de seu poder: descobrese comoprodutor de novas realidades. No ato do trabalho, enri-quece sua “natureza” dada; cada gesto é como uma pro-va que o afirma, reforça sua eficácia, levao a maior per-feição e também a superarse em algum gesto mais bemsucedido; sua sensibilidade se afina e aprende a desco-brir na realidade uma infinita diversidade de objetos ede significações. De fato, a humanização da natureza —sempre nessa perspectiva parcial e abstrata freqüente-mente adotada neste trabalho e que será preciso corri-gir — é acompanhada de uma real humanização do ho-

mem que lhe permite subtrair se cada vez mais ao seuestatuto animal.‘Ser trabalhador’, o homem, considerado em sua

existência genérica, é também e fundamentalmente ‘sersocial’. Dizer que o homem é fundamentalmente sersocial, é recusarse a considerar qualquer dimensão de sua“natureza” ou de sua cultura como produto de sua “in-dividualidade pura”; é compreender inicialmente sua

existência como ligada à de uma coletividade; tampou-co quanto a necessidade (e a consciência da necessida-

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de), tampouco quanto o trabalho (e a consciência doser trabalhador), a socialidade não pode ser um predi-cado acrescentado do exterior à realidade humana. A vida social, como a vida “sofredora” ou a vida trabalha-dora, é o pressuposto obrigatório de toda existência hu-mana. Não só é irrisória a pretensão de deduzir a socia-

lidade, mas também é absurdo o esforço em determinaro que essa socialidade traz ao homem. Essas idéias, aliás,achavam se implícitas no próprio exercício da filosofiae, a seu respeito, o pensamento tradicional acumulou,devemos repeti lo, conhecimentos muito importantes.

 A contribuição do marx ismo é de outra ordem: con-siste no vínculo estabelecido entre essa dimensão e asdemais dimensões fundamentais do homem. A esse res-peito, a revolução que realizou é capital: o fato socialnão é mais considerado simplesmente como relação dehomens que falam — como em Platão — ou de homensque querem (ou podem saber o que querem) — comoem Hegel —. A relação humana é apreendida em seuconteúdo profundo como relação material de indivíduossubmetidos à necessidade, produtores de seus meios de

existência e que, como tais, colaboram em sua lutacontra a natureza ou se opõem na posse dos bens de con-sumo e dos utensílios. Que essa relação também se ex-prima na linguagem, que é, para o homem, um fatotão “natural” quanto a consciência , que possa não sercompreendido tal qual é, não impede que seja funda-mentalmente relação material. E, é nesse nível, talvez,que se revela mais nitidamente a oposição do materia-

lismo e do modo de pensar filosófico: este jamais ne-gou que a realidade humana seja social, a não ser talvezno período chamado metafísico de sua história no qualesse fato, sem ser negado, era posto em segundo plano;

58 “A linguagem é tão velha quanto a consciência — a linguagem é a consciência prática, existindo igualmente para outros homens, logo

existindo também para mim mesmo, real, e a linguagem só nasce, comoa consciência, na necessidade, da necessidade do comércio com outroshomens*’. Ideologia alemã, pp. 168169.

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concebia, porém, o vínculo social (ou político) como re-lação ds consciência a consciência, de vontade a vonta-de; esquecia que o homem é, antes de mais nada, pai-xão e desejo., e situava se em uma esfera ideal ds univer-salidade na qual a comunicação se faz tranqüilamente.E porque negligenciava o fato de que o domínio primor-

dial das trocas entre os indivíduos e o das trocàs de bensmateriais, que a relação humana supõe uma relaçãocom a natureza, que não poderia ser “pura relação hu-mana” e, conseqüentemente, que remete ao que permi-te uma atividade natural eficaz: a conservação dos ins-trumentos de produção. Desde então, a vida social apa-rece numa perspectiva inteiramente nova: deixa de mos-trarse como coletividade, cujo equilíbrio é difícil de es-

tabelecer, porque é feita de indivíduos que sabem ede indivíduos que não sabem, de “insensatos” e de“razoáveis”. É reduzida ao seu conteúdo empírico: aoposição entre aqueles que se acham em situa-ção que lhes permite satisfazer seu “desejo vital” eos que precisam, para conseguir tal satisfação, submeterse aos outros. Isso não significa que a oposição entre“razão” e “sem razão” não seja essencial: apesar disso,não é fundamental e encontra fundamento na materia-lidade humana.

Essas dimensões fundamentais da existência hu-mana considerada empiricamente — a necessidade, otrabalho e a sociabilidade — permitem definir com maisrigor o que se deve entender por praxis. Esse termo pre-tende designar a vida do homem na totalidade de suas

determinações reais: veremos, na seção seguinte, que olaço efetivo graças ao qual essa exigência de totalidadepode ser respeitada é o próprio fato da historicidade. A consideração, constante e constantemente lembrada, doviraser evita o risco de atribuir arbitrariamente a umadessas dimensões um privilégio exorbitante, e garante,de certo modo, contra o dogmatismo que decorreria ne-cessariamente desse arbítrio. A história do pensamentocontemporâneo permite, aliás, perceber os desvios re-sultantes dessas interpretações unilaterais da praxis.

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pria técnica e da função que, como tal, desempenhavana Cidade. A referência à estrutura social não signifi-ca, enfim, que se possa considerar, à maneira da socio-logia de inspiração durkheimiana, a organização da so-ciedade como a chave da história humana. Se é verda-de que a relação fundamental entre os homens é deter-

minada pela sua situação na produção dos meios deexistência, essa mesma situação deve ser considerada emsua base histórica e geográfica: o fato, por exemplo, deque os “pequenos brancos” dos países coloniais sejamexplorados do mesmo modo que o povo colonial, não con-funde objetivamente sua situação com a dos autócto-nes encontram se, por motivos históricos, separados da-queles que exercem na produção a mesma função queeles; não se trata apenas de suas opiniões, de seus pen-samentos, mas também de sua situação real: participamem grau irrisório, talvez, porque vêm de outro país epertencem, de fato ou legalmente, à nação dos conquis-tadores, da exploração do colonizado pelo colonizador.

Desejamos, com essas anotações fragmentárias eesses breves retoques, mostrar que não pretendemos, de

modo algum, ao salientar esses traços fundamentais daexistência humana empírica, reduzir o homem a umanatureza antecipadamente dada. A humanidade, consi-derada em sua prática sensível, não pode ser oposta,termo a termo, ao homem tal como o define o filósofo.

 A revolução teórica marx ista nos convoca a retornar,finalmente, à vida banal e grandiosa, a essa luta inces-sante e engenhosa que a humanidade trava para alcan-

çar a satisfação, para deixar de ter medo e de ter fome,para distinguir se do animal, não só em sua atividade,mas em sua satisfação. Essa revolução implica que sedeixe de ver o homem tal como o pensam aqueles aosquais é dada a possibilidade de pensar, quer dizer quese o considere tal como é; um ser natural que sofre, aoqual é dado modificar suas condições de existência, umser dependente ao qual se revela, no próprio seio de suadependência, a possibilidade efetiva de construir umaCidade, sua obra empírica real, na qual o desejo será a

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promessa da satisfação e a presença do outro homem aeventualidade de uma amizade.

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 A fidelidade à empiria exige, como já salientamos,o reconhecimento da historicidade como traço funda-mental da realidade humana *°. De fato, há poucasdoutrinas, atualmente, que não admitem como evidên-cia o caráter essencialmente histórico do homem e nãocompreendem o devenir como o lugar em que o existen-te humano indica, manifesta ou forma seu ser profun-

do. Todavia, essa assunção do ser histórico se faz, fre-qüentemente, contra a vontade: admite se o devenirpara melhor negá lo em seguida, seja mostrando suainconsistência ontológica em relação a algum termoatemporal ou onitemporal, seja dissolvendo suas deter-minações reais em dimensões da subjetividade empíricaou transcendental. Nas páginas seguintes, procurare-mos voltar a esses diversos pontos. No momento, gos-taríamos de esclarecer que a consideração da histori-cidade, entendida como historicidade real, quer dizer,como encadeamento dos res gestae, aquela com a quala ciência histórica se preocupa para dela constituir umsaber, não pode, em caso algum, ser uma cláusula deestilo ou o protocolo de uma pesquisa constantementeadiada. O viraser não se acrescenta de fora à reali-

dade humana: a prática — a não ser que nos situe-mos no nível dessa abstração limite que é a vida hu-mana natural — é imediatamente histórica, no duplosentido de que é situada historicamente e de que é elaprópria o visaser fazendo se. Eis por que foi precisoser tão breve no parágrafo anterior a respeito da defi

60 “Não conhecemos senão uma ciência, a ciência da história” , ldem, p. 153.

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nição do trabalho, da sociedade e mesmo da necessida-de. Qualquer esforço para determinar mais precisa-mente esses fatos é impossível: o único aprofundamen-to sério consistiria em analisar o viraser do trabalho(e da consciência que tal sociedade ou tal grupo hu-mano tem de seu trabalho e também do trabalho), da

necessidade (e da consciência sofredora), do vínculosocial (e da maneira como os indivíduos o vivem nessa época e nesse país) . Eis por que as gêneses que se pro-cura determinar, de tal conceito, de tal sentimento oude tal instituição, a partir do fato geral da prática, pa-recem tão abstratas e tão irrisórias. O pensamento efe-tivo é histórico: não se realiza em alguma zona neutra,não situada e não datada. A construção da axiomáticageométrica euclidiana, a decisão de elaborar um relatohistórico, a própria vontade de filosofar, não resultamda prática em geral, nem apenas da necessidade ou dequalquer exigência do Espírito, mas constituem fatosde cultura que surgem em determinada época e civili-zação e só podem ser compreendidos em suas relaçõescom elas.

Essa referência, na medida em que é pesquisa his-tórica precisa, é mesmo o único meio de penetrar noconteúdo real da vida humana empírica. As anotaçõesgerais, como as que acabamos de fazer a respeito dasdimensões e dos aspectos da realidade humana, úteisno caso presente, uma vez que se trata de indicar emque perspectiva de conjunto o marxismo se opõe à filo-sofia, não constituem, de fato, senão o índice de estudos

que só poderão tornar se rigorosos, não pela excelênciado método, mas pela fidelidade aos acontecimentos es-tudados. Nesse sentido, é dificilmente concebível quepossa ser construído, a não ser na ótica simplificada deuma pedagogia, um manual de filosofia geral marxista:semelhante manual seria levado, não só a isolar aspec-tos que só têm sentido por sua ligação dialética com o

conjunto, mas também a substituir, ao devenir efetivodo conteúdo, gêneses abstratas às quais a tradição filo-sófica facilmente poderá contrapor os argumentos clás-

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sicos dirigidos contra as diversas formas de empirismoe de naturalismo.

 A historicidade de fato manifesta se, pois, como olugar em que se articulam as determinações essenciaisda realidade humana. Importa, no entanto, precisarsua noção. J á indicamos que, por historicidade, não

pretendíamos entender outra coisa além do devenir talcomo a ciência histórica moderna o estuda. Todavia,ao longo do século XX , introduziram se tantos proble-mas e obscuridades na idéia do tempo histórico, que énecessário talvez voltar a algumas observações simples,apoiando se precisamente na técnica histórica. Essatécnica, ponto decisivo no qual devemos insistir desdelogo, só alcançou seu estatuto científico ao longo doséculo X IX 61. Por mais notáveis e belas que sejam asobras dos historiadores gregos e latinos, por mais enge-nhosos que tenham sido os processos elaborados pelaerudição italiana do Renascimento, seja qual for a be-leza e a elevação que contenham os trabalhos da histo-riografia oficial, só a partir de Leopold von Ranke eNiebuhr é que ss pode falar de ciência histórica. É o

motivo pelo qual as críticas dirigidas ao que se costu-ma chamar as “filosofias da história” — de Bossuet,de Vico, de Herder e mesmo de Hegel — segundo asquais esses autores teriam traído a verdade histórica,são anacrônicas: supõem que a noção de verdade his-tórica tinha para eles a significação que possui atual-mente, o que não nos parece legítimo. Na verdade —e sem voltar aos difíceis problemas suscitados pelos re-latos dos escritores da Antigüidade e pelos clássicos daIdade Média e do Renascimento —, a leitura de Bos-suet (e a referência à fonte agostiniana), de Vico, deHerder, e, em sentido diferente, a leitura de Voltaire,

61 Para o que se segue, permitimo nos remeter o leitor a nosso ensaio*

O nascimento da História, Introdução, e ao artigo do Jornal dc Psico-logia, julho setembro de 1956, O Tempo da História e a Evolução da Função histórica, pp. 355378 e às referências dadas nesses dois textos.

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de Condorcet, e, ainda em outro sentido, de Hegel, mos-tra que é leviano censurar esses pensadores por falsifi-carem, com pleno conhecimento de causa, o próprioviraser. Seria preciso, para que essa imputação tives-se sentido, que a noção de uma ciência histórica tives-se, para eles, um alcance preciso. Ora, é bastante claro

que essa eventualidade, a menos que se lhes atribuauma frivolidade dè que suas obras não dão testemunho,deve ser rejeitada. Para esses escritores, o passado hu-mano não é concebido como objeto de um saber exatoe controlado, e permanece o pretexto para desenvolvi-mentos em relação aos quais basta que se justifiquemfilosoficamente (ou “teologicamente”) .

Para o pensamento cristão em geral — pensamen-to que encontramos na origem de toda filosofia da his-tória — o viraser humano, embora concebido comodevenir, como lugar efetivo de originalidades e domí-nio da formação, não constitui no entanto objeto deuma ciência. O que revela, de acordo com uma ordemque lhe é própria, é, finalmente, a organização de umaProvidência: a esse respeito, o pensamento agostinia

no, com sua profundidade e suas ressonâncias, apresen-tase como um modelo. Para esse pensamento e para ateologia cristã em seu conjunto, o esquema do destinohistórico do homem é proporcionado, de um lado, pelo Antigo Testamento que narra o nascimento do Tempo,a origem da infelicidade humana e as etapas sucessi-vas percorridas pelo Povo que recebeu o privilégio e adesgraça de reunir em sua história a sorte do homem

e, de outro lado, pelo Novo Testamento que oferece, nosurpreendente destino do Cristo e na fundação da Igre- ja, o meio para cada um de dominar o devenir, de orde-ná lo na medida de sua vida de modo favorável e deajudar, na escala da humanidade toda, a realização dopropósito previsto e pretendido por Deus. Finalmente,a inteligibilidade da história profana não está em simesma, mas fora dela, na Revelação. O tempo histórico,

assim concebido, possui, em relação às perspectivasdos historiadores da Antigüidade, o privilégio de conter

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originalidade e ser o lugar no qual o indivíduo, senhorde seus atos, constrói seu destino e participa de umatarefa; continua, no entanto, sendo a manifestação doQuerer que o criou e que o suprimirá quando for che-gada a hora. Não se mostra como dimensão natural dohomem; é aquilo em que Deus quis que a alma se ex-

perimente e se tempere, Deus que, também, decidiuque o devenir seja ao mesmo tempo o domínio do Pe-cado e do abandono e o da Redenção e da recuperação.

Em semelhante perspectiva, não se trata de ocuparse com o pormenor da história profana: contam ape-nas os acontecimentos que manifestam a Providênciadivina; tratase de confirmar um sentido do tempo arespeito do qual nenhuma dúvida é possível, sentido

que o mistério dos caminhos de Deus pode provisoria-mente obscurecer aos olhos de um espírito ignorante. Odevenir real — na significação moderna da palavrareal — é finalmente um pretexto (sem que se devaatribuir a esse termo um sentido pejorativo) à demons-tração que se sabe dever apresentar. A evolução dos co-nhecimentos, a novidade dos objetivos políticos pòdemlevar os pensadores de inspiração cristã a grandes com-plicações: Bossuet não pôde tratar com tanta facilidadequanto Santo Agostinho a história romana. Vico desco-briu na “filologia” provas suplementares que o obriga-vam a complicar o conjunto do sistema, e a diversidadedos elementos conservados colocava a paixão herderiana'diante de tuna tarefa da qual só se desincumbe graças asucessivos golpes de força, confusos e emocionantes.

Mas, em todos os casos, a prova da verdade histórica ésecundária: basta, para falar como Tucídides, “que sejaprovável que tenha sido assim” .

 A esse respeito, o pensamento hegeliano — na me-dida em que tem como ponto de partida, não só a dou-trina cristã, mas também a reflexão sobre a Cidade gre-ga e os acontecimentos decisivos que foram a RevoluçãoFrancesa e o aparecimento do Estado moderno02 — re

62 Cf. J . Hyppolite, "Introdução à Filosofia da História de Hegel,

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presenta um progresso considerável no sentido de umaconcepção mais científica da história humana. Não queHegel tenha atribuído importância maior aos documen-tos históricos: mas, na medida em que os conhecia, esforçava se em compreendê los sem referir se a qualquerrevelação não histórica que assegurasse sua inteligibili-

dade; e, por insuficiente que possa ser o conhecimentohistórico do autor das Lições sobre a filosofia da história, resta que o princípio graças ao qual o devenir adquiresua racionalidade é imanente a esse próprio devenir. Seexiste uma teleologia no sistema hegeliano, encontrafundamento no que Hegel julga ser o movimento próprioda cultura humana. O Espírito não é historicamenteanterior à sua formação: nela manifesta a necessidadede seu aparecimento, jamais, porém, a precede nem aexcede. A revelação que se efetua na história constituiuma revelação da história antes de ser uma revelaçãopela história. A temporalidade não é mais concebida co-mo o domínio no qual se desenha uma essência já feita;a originalidade que faz aparecer não se deixa reduzir aqualquer modelo, seja qual for: é originalidade real,

inesperada, fruto da vontade humana à procura de umasatisfação que se esforça em conquistar contra a alteridade. O homem se realiza na história, não na medidaem que simplesmente nela se mostraria, mas porquenela se constrói e se completa. O fim da história não éconsiderado como fim do Tempo, momento em que aessência humana a histórica e liberada se manifestaria,mas como momento em que, no e pelo Tempo, o homem

consegue ser o que jamais deixou de querer ser: umser temporal e satisfeito.Resta que a Filosofia da história, em seu conteúdo

histórico preciso, embora contenha resumos admiráveis,visões surpreendentes, não pode de modo algum ser qua-lificada de científica, no sentido moderno do termo, pois

e o artigo “A significação da Revolução Francesa na “Fenomenologia”de Hegel, incluído nos Estudos sobre Marx e Hegel, pp. 45 ss.

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a exata determinação dos acontecimentos e de seu enca-deamento, o estudo histórico justificado, não interessama Hegel. E não porque, como se disse muitas vezes, des-preze semelhante técnica, mas porque essa técnica, emsua época, ainda não se achava constituída. Constituise, nessa primeira metade do século X IX , por motivos e

razões múltiplas, entre as quais devemos também incluiros caminhos abertos pelo hegelianismo. Essa negligên-cia em relação aos fatos está ligada, mais profundamen-te, à estrutura de conjunto do sistema: na medida emqus o homem é considerado em seu ser essencial comologos, o que se considera importante no viraser é asucessão dialética dos princípios ideais em que a huma-nidade procura reconhecer se. Assim, quando a Fenome  

nologia do espírito se refere aos acontecimentos da his-tória real ou a atitudes existenciais, é menos para co-nhecê los em si mesmos do que para neles descobrir amanifestação da passagem necessária da Consciência aoEspírito. Assim também, as Lições sobre a filosofia da história utilizam o dado histórico para por em evidênciao movimento interno que, através do gênio e as ações dosdiversos povos, levou a conhecer e querer o Estado ra-cional cuja realização se esboça no presente do Impériogermânico: “que a história universal seja o curso dessedesenvolvimento e o devenir real do Espírito no espetá-culo mutável de suas histórias — essa é a verdadeiraTeodicéia, a justificação de Deus na história. Somenteessa luz pode reconciliar o Espírito com a história uni-versal e a realidade, mostrando que o que aconteceu e

acontece quotidianamente não só não está fora de Deusmas é ainda essencialmente sua própria obra” 0:1. Essafórmula final das Lições define bem o que opõe e o queune a filosofia cristã da história e a de Hegel. Para aprimeira, o devenir efetivo é a ocasião de fazer apare-cer o princípio a histórico da história; para a segunda,é a manifestação de uma ordem histórica, sem dúvida,

63 P. 409.

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mas que permanece ordem “ideal” . O Espirito se fszhistória; esta, porém, ainda não adquiriu esse estatutode realidade “exterior” a reclamar um estudo objetivo.

 A passagem ao homem empírico, tornada necessária pelo“malogro” da filosofia, se faz acompanhar nesse domíniopela promoção de uma história puramente profana. Se-

ria esquemático pensar que Marx e Engels foram os úni-cos autores dessa revolução; já salientamos suficiente-mente a importância do hegelianismo a esse respeito e

 julgamos desnecessário insistir novamente em seu cará-ter decisivo. Deveríamos, também, insistir no papel datradição da erudição histórica que, depois da escola deBlondus, desenvolveuse lentamente e de modo oculto esó eclodiu no século X IX . Marx, aliás, mostrou muito

bem tudo o que devia à técnica histórica propriamentedita 04. Esta — cujos métodos atualmente progridemsem cessar e cujos resultados se tornam cada vez maisimportantes — recusase a formular questões filosóficasprévias: como toda ciência, considera o saber que pre-tende elaborar como conhecimento de um objeto em si,com um modo de existência próprio, implicando um mo-do original de apresentação. Nessa ótica, a história rerum gestarum nada poderia revelar senão os res gestae e os princípios — se é que existem — que governam suasucessão; além do acontecimento limitado, podem ape-nas projetar ss outros acontecimentos mais amplos oumais importantes. Em outros termos, a ciência históri-ca, por decisão, por assim dizer, considera a atividadehumana como essencialmente profana e histórica; tem,

pois, imediatamente como objeto o homem empírico.Talvez se explique, assim, porque, na superação da filo-sofia, desempenhou o desenvolvimento da história papeltão considerável.

Sem dúvida, a constituição de tal disciplina suscitaquestões metodológicas de extrema dificuldade; sem dú-

64 Cf. sobre esse ponto, em particular, as observações de G . Plékhanov,  Augustin Thierry e a Concepção materialista da história, em Ques  tõcs fundamentais cio marxismo, pp. 179 195.

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vida, obriga a enfrentar problemas que a filosofia costu-ma formular. O que exige, no entanto, a ciência histó-rica, é que essas interrogações, por mais justificadas quesejam, não levem a trair seu estatuto próprio e sua prá-tica efetiva. Nesse sentido, é lícito, atualmente, que re-pila como destituídas de seriedade histórica as filosofias

da história, que a maioria das vezes são filosofias sobre ahistória, que emita dúvidas sobre o valor das explica-ções gerais que substituem o estudo do conteúdo poresquemas de inteligibilidade pressupostos. Não se per-mite explicar um acontecimento a não ser por outroacontecimento também situado historicamente e susce-tível, por isso mesmo, de explicação histórica. Que talprograma apresente dificuldades técnicas consideráveis,

não há dúvida; que a prática histórica veja sua tarefacomplicada ainda pelo fato de que o conhecimento quevisa é indireto, que a própria situação histórica do pes-quisador interfira e contribua para falsear as perspecti-vas, isso é evidente. Mas, seria uma leviandade exigirdo historiador, como fazem freqüentemente os filósofos,que alcance desde logo a determinação integral, enquan-to é perfeitamente admissível, aliás, que as ciências danatureza apresentem de seu objeto um conhecimentoexato e aproximativo. O que é importante e o que reivin-dica a história moderna em suas próprias produções,além das preocupações metodológicas legítimas e dos es-crúpulos excessivos suscitados por reflexões filosóficaspor demais preocupadas com a eternidade, é que seuobjeto, o passado humano em sua efetividade, seja con-cebido como um dado existente independentemente da-quele que o estuda, uma reatidade passada e não pre-texto para moralizar, ocasião de “provar” princípiospreestabelecidos ou construção de um sujeito historizante. Uma coisa é considerar o devenir como o domínio noqual se forma a humanidade e que me esclarece sobremeu próprio destino, outra é acreditar que fabrico o

passado humano em função de meus desejos e de minhasituação atual.

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Esse reconhecimento da realidade do passado comopassado real e inteligível (suficiente e aproximativamente) constitui elemento importante na elaboração do con-ceito do ‘homem empírico’. Um dos aspectos da “repo-sição nos pés” da dialética hegeliana“5 — que provocoutantas interpretações formalistas — consiste, ao que pa-

rece, em substituir à noção metafísica de uma essênciahumana onitemporal, ou à idéia hegeliana de uma evo-lução ideal da consciência fazendose Espírito, a pers-pectiva de um devenir ao longo do qual o homem, emsua atividade sensível, forja sua própria realidade. Assimcomo a historicidade confere conteúdo ao conceito damaterialidade, assim também a consideração da mate-rialidade, da dialética do trabalho e da necessidade, per-mite apreender a evolução da humanidade em seu mo-vimento efetivo. O materialismo histórico em seu prin-cípio não diz outra coisa: compreende se, antes de maisnada, como oposição e superação do idealismo históricode tipo hegeliano que interpreta a história como deve-nir do logos: o agente histórico não é o homem que pensae fala, mas aquele que produz e reproduz as condições

de sua existência sensível, que maneja o arado, o chicoteou a espada, que troca os produtos de sua atividade ouque vende a força de seu trabalho e, isso, apesar daopinião que pode ter sobre a sua própria situação, suaação ou seu ser. O móvel fundamental da mudança nasmodalidades da existência humana é, pois, o homem emseu ser diferencial: como pensamento, mas o homem emseu ser fundamental; como necessidade e como trabalho,

como necessidade social e como trabalho social. A rela-ção decisiva é a da atividade humana sensível com a“natureza”: entre os dois termos, o devenir vai forjaruma série de mediações reais ou ideais, mas o fundo darelação permanece o problema da satisfação empírica ede sua reflexão pela consciência. Finalmente, quer di-zer, em última análise, a prática humana, tal como a

65 O Capital, Posfácio da 2? edição alemã, t. I, p. 29.

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tentamos definir em suas modalidades históricas, é oacontecimento pelo qual o processo de formação do ho-mem empírico — quer dizer, o próprio homem — tor-nase inteligível em suas determinações reais00.

 A prática humana, porém, é prática social: desdeque atinge certo estágio de desenvolvimento técnico, re-

quer a divisão das atividades humanas. Ora, essa divisãodo trabalho, permite a certos homens, os mais fortes, osmais hábeis, os mais bem situados pelo acaso, utilizar otrabalho dos outros para obter a satisfação; frustramaqueles que trabalham — pela violência ou por um di-reito que seu poder lhes permite impor como ordem“natural” — de uma parte dos produtos de sua ativi-dade; porque conseguiram apoderar se dos instrumentosde produção: terras, gado e, de modo geral, utensílios,compelem os outros a trocar toda sua força de trabalhopor uma satisfação reduzida à estrita manutenção davida. Criam se, assim, duas classes de homens: a dosproprietários — na medida do progresso técnico as mo-dalidades da posse se complicam e se diversificam — qusse esforçam, desde que o Estado se constitui como reali-

dade refletida, em ocupar os postos de governo, as fun-ções religiosas e que utilizam as forças coercitivas: oexército e a polícia, para assentar seu domínio, e o dostrabalhadores que dispõe de um único recurso para as-segurar sua simples sobrevivência, a locação de sua forçade trabalho. De um lado, uma classe que, no ritmo doacréscimo do poder humano sobre a natureza, multiplicaos objetos de sua satisfação, de outro, uma classe redu-

zida a estagnar na triste dialética quotidiana da neces-sidade e do trabalho; de um lado, os “Filhos do Céu”,que neles podem realizar a humanidade, que podempensar; de outro, os “Filhos da Terra”, reduzidos à ani-malidade e privados de um futuro propriamente huma-no. A sociedade escravista grega e Esparta, em parti

66 Para tudo o que se segue, cf., em particular, o Manifesto Comu-nista.

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cular, cuja história é uma espécie de resumo dessa cisãode mundo humano em dois grupos absolutamente dis-tintos, constitui o exemplo mais claro dessa situação.Sem dúvida, entre as diversas camadas de proprietários,podem surgir conflitos, e ambições pessoais podem per-turbar provisoriamente essa ordem: mas, em caso de

perigo, a solidariedade dos exploradores rapidamente serecompõe e não tem dificuldade em triunfar. A sociedade grega, no entanto, — e as sociedades

orientais que a precederam — representam uma espéciede limite. As circunstâncias históricas e o baixo níveldas forças produtivas impediram que, nessas sociedades,a classe explorada se erguesse contra os proprietários a

não ser em revoltas de pequeno alcance. De fato, o es-tudo histórico, confirmando a análise do homem comomaterialidade ativa, mostra que o desenvolvimento dastécnicas, a acentuação da divisão do trabalho, a inten-sificação das relações entre os homens, ligado ao pro-gresso das trocas comerciais e à multiplicação das guer-ras de conquista, o aumento dos bens embora continuea beneficiar principalmente os proprietários, repercutem,

de fato, na totalidade da sociedade e das relações so-ciais. Por uma série de causas, cuja natureza deve serestudada em cada caso histórico em especial, os explo-rados tomam uma consciência confusa de sua situaçãocomum; grupam se espontaneamente em torno de temasideológicos que exprimem freqüentemente, de maneirabem obscura, suas reivindicações reais na luta contra a

opressão, para disputar com os proprietários o poder po-lítico e retomar a posse dos produtos de seu trabalho. As “jacqueries”, as revoltas camponesas e burguesas, os“regicídios”, as revoluções, manifestam o fato de quetoda a história é “história da luta de classes” . Mais pro-fundamente, e excluindo esses episódios de violência,cuja interpretação adequada, repetimos, supõe uma aná-lise rigorosa das circunstâncias em que se produziram, o

movimento do devenir humano em seu conjunto, expli-case pela oposição entre a classe daqueles que detêm a

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propriedade dos meios de produção e a classe daquelesque possuem apenas sua força de trabalho.

Para o homem, o meio de libertar se da alienaçãonatural é a atividade trabalhadora; ora, a constituiçãohistórica da sociedade em classes engendra outro tipo dealienação, histórica, artificial, por assim dizer, que con-

dena a maior parte da humanidade à estagnação ani-mal e a impede de aproveitar plenamente a multiplica-ção dos objetos da satisfação resultante do progresso dastécnicas de trabalho, que retarda também esse progressoe, assim, freia o desenvolvimento e o enriquecimento danatureza humana: o meio de libertação que então seapresenta é a luta política contra a classe dominante.Entendamos bem: assim como o trabalho, a luta de clas-ses é um fato fundamental revelado pelo estudo da his-tória. Não é um instrumento forjado pelo filósofo ou pe-la política com o propósito de suprimir a alienação:existe como móvel efetivo da história desde d momen-to em que a elevação do nível das forças produtivas per-mite ao homem tomar consciência mais exata da estru-tura da vida social. Esse último ponto mereceria ser es-clarecido e aprofundado: embora não se trate aqui, deanalisar a natureza das “ideologias” e o papel desempe-nhado pelo “pensamento” no desenvolvimento da his-tória humana, é importante, no entanto, notar — paradefinir a relação do materialismo com o idealismo histó-rico — que o fato da tomada de consciência é considera-do decisivo pela concepção marxista. Todavia, o momen-to da tomada de consciência e o conteúdo próprio da

consciência são também determinados historicamente pe-las condições de ex istência: era, sem dúvida, pela “fal-ta de compreensão” das estruturas sociais reais que osescravos não se revoltavam na Grécia; era também pordeficiência científica que Aristófanes propunha comoremédio para os males da Cidade “o retorno aos bonstempos”, que Tucídides esperava o advento de um che-fe da envergadura de Péricles, que Platão edificavauma Calípolis ideal: mas, essa passividade da classe ser-vil, esse “idealismo” do pensamento helénico compre

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endem se pelo nível das forças produtivas da época, pelabase política e econômica da Cidade grega. A decisãotomada por Tucídides de fazer história, a de Platão defilosofar — como a de Lutero de travar a luta contracertas estruturas feudais — só se tornam inteligíveis emrelação com a problemática efetiva que se apresentava

a esses pensadores no quadro de sua sociedade, proble-mática essa determinada pela situação concreta dessasociedade.

Entre as condições de existência, cujo conteúdo émuito complexo, e a decisão ideológica e política, as me-diações são numerosas. Variam no conteúdo e na orga-nização de acordo com as épocas e nenhum esquema dasmediações necessárias pode ser estabelecido de uma vezpor todas67. O que o materialismo histórico afirma, quan-do apresenta a consciência como determinada pelas con-dições de existência, é o fato de que o conteúdo da cons-ciência encontra sua origem e explicação no conteúdoda situação histórica. Mas, o segundo pode ser determi-nado pelo primeiro de diferentes maneiras: assinalemos,por exemplo, que uma doutrina como a platônica cons-titui a expressão exata de uma situação, a da Gréciaapós a Guerra do Peloponeso e a condenação de Sócra-tes, situação na qual nenhuma solução efetiva para oproblema humano da satisfação e da violência pode serconcebida e aplicada: a fuga no imaginário é impostapor um estado econômico e político tal que força algu-ma é capaz de promover a organização conveniente; nes-se sentido, a perspectiva platônica, que tão leviana e

anacronicamente se qualificou de reacionária, é universalista. Opõese, nesse sentido, à de Aristófanes que ado-ta o ponto de vista particular dos proprietários ruraisarruinados pela Guerra do Peloponeso e que só vê comoremédio para as desordens da Cidade a exaltação, ain-da mais abstrata, da vida simples e alegre dos ancestrais.

67 Para a justificação dos ex emplos aqui apresentados e a ex plicaçãodo conceito de “decisão”, cf. O nasemento da História, Conclusão.

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Platão só atinge a universalidade refugiando se na uto-pia; Aristófanes adota uma posição de classe (tambémirrealizável aliás) na medida em que sustenta os inte-resses daqueles que são arruinados pela guerra da de-mocracia ateniense contra a oligarquia espartana, fun-dada economicamente no desenvolvimento do artesana-

to, da “indústria”, do comércio, da colonização. Teriasido necessário, para que uma solução satisfatória fos-se dada ao problema da Cidade e, mais geralmente, aoda violência, que um pensador pudesse conceber a sig-nificação da escravatura; ora, tal concepção, precisa-mente, não poderia nascer numa época em que a clas-se servil não estava constituída como classe, em que obaixo nível das forças produtivas não permitia compre-

ender a função da atividade trabalhadora.Esses dois simples exemplos talvez bastem paramostrar a que grau de complexidade é preciso levar ateoria da determinação a fim de atribuir lhe alcance ex-plicativo. Poderíamos mostrar como, nos tempos moder-nos, uma situação histórica e econômica permita apre-ender a verdade das relações humanas e o papel deter-minante da luta de classes, mas também como a pres-

são da classe dominante, o mundo das “idéias” e dos “va-lores” de que se envolve, contribuem — sem que se tratesempre da parcialidade dos pensadores — para promo-ver ideologias que deformam a realidade, a interpretamparcialmente ou obscuramente e assim a falseiam. Deve-ríamos, também, salientar o fato de que os acontecimen-tos reais — políticos, econômicos, descobertas científicas— interferem para introduzir nessas ideologias parciaiselementos positivos e provocam sua evolução no senti-do de interpretações mais exatas da situação. Resta que,por mais numerosas que sejam as mediações que devaminterferir, por maior que seja a ductilidade que conve-nha adotar, e a importância que se deva atribuir à to-mada de consciência, à decisão histórica e ideológica,que o termo último da explicação, visto que constitui ofundamento da vida humana empírica, é a produção ea reprodução dos meios de existência e, por isso mesmo,a luta de classes (ou de camadas sociais, caso em que a

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classe trabalhadora não participa diretamente do devenir histórico) que a propósito se estabelece.

 Assim, o homem, em sua realidade fundamental, re-velase como materialidade ativa em luta contra a na-tureza, como ‘ser histórico’, quer dizer, a um tempo co-mo agente da história e como nela se forjando, que pro-

cura a satisfação — termo geral que não indica apenas, mas em todo caso, antes, a satisfação empírica (cujopróprio conteúdo evolui historicamente em função do en-riquecimento da “natureza” humana devido ao progres-so da técnica) —, que se acha logo empenhado numaluta social e que exprime em seus atos históricos, emsuas produções ideológicas, seja direta, seja indireta-mente, os problemas reais implícitos na luta contra a

natureza e na sociedade. É à luz dessa concepção que de-vem ser repensadas as perguntas capitais da filosofia;retomada em sua formulação e em seu conteúdo e nãoafastadas — como julga o positivismo —, não apenasresolvidas — o que seria abstrato e representaria graveempobrecimento da revolução operada pelo marxismo—, nem simplesmente realizadas — como pretendia ohegelianismo de esquerda.

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Não teria cabimento, na perspectiva que procura-mos definir, pedir ao materialismo histórico que deter-minasse o fundamento no qual se apóia para desenvol-

ver e defender a sua concepção da realidade. O únicofundamento, a única legitimação que pode pretenderreivindicar, é o próprio conteúdo da concepção que pro-põe, na medida em que essa concepção é capaz de tor-nar inteligível o passado e o presente do homem e defi-nir a ação correta correspondente às forças sociais reaisem luta contra a alienação e a insatisfação. O marxis-mo compreende, nesse sentido, o problema da legitima-

ção e do fundamento como o compreendia Hegel: não po-de interessar ao marxismo, procurar algum fato último,

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ou alguma zona neutra e prévia, a partir dos quais todoproblema, tornando se claro, se acharia proposto e re-solvido, nem recorrer a qualquer espécie de intuição.

Já salientamos o fato de que a referência a uma in-tuição moral, interpretada como apreensão do “valor”,deve ser considerada estranha ao pensamento materia-

lista: tal referência faria toda a doutrina resvalar paraa contingência e a exporia a responder somente porafirmações arbitrárias às afirmações gratuitas daque-les que escolheram recorrer a outra “transcendência”ou a outro “valor”. A vontade lúcida e resoluta de su-primir a sociedade de classes, sociedade que está na ori-gem da alienação, não poderia justificar se apenas pelofato do sofrimento histórico, da insatisfação empírica,do não reconhecimento e pelo caráter moralmente es-candaloso desse fato; e também não basta dizer que temsua raiz na luta efetivamente travada pelas forças so-ciais empenhadas em suprimir a exploração do homempelo homem; na verdade, já é essa luta enquanto suaexpressão lúcida. A propósito, é importante distinguirvárias perspectivas: é sempre lícito perguntar a um pen-sador marxista por que preferiu adotar uma posição ma-terialista e revolucionária; as respostas serão múltiplase é concebível que, entre essas respostas, algumas façamreferência à noção de um “valor” humano (a justiça, asolidariedade, o humanis mo); nesse ponto.' porém, areflexão só pode apresentar formulações inconsistentes evagas. Na ótica da reflexão séria, com efeito, o pensa-mento materialista revolucionário não pode conceberse

como o resultado de uma opção exterior ao devenir que,livremente, optaria entre as forças históricas, pela queconvém à sua preferência moral. O marxismo é, comotal, um elemento objetivo, historicamente situado, da lu-ta real travada pela humanidade contra o fato históri-co da alienação e da insatisfação. Assim como, para ohegelianismo, o fundamento do sistema se encontra nodevenir do Espírito cujo êxito é o Sabsr absoluto, assimtambém, para o materialismo marxista, a legitimação éconstituída pelo combate do homem empírico que, a par-

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tir de certa época, é capaz de elevar ao conceito o queprocurava confusamente e de determinar claramente ateoria e a prática capazes de realizar sua vontade.

É evidente que o recurso a um dado “gnosiológico”,ao qual se atribuiria o valor de uma prova, é tambémexcluído pela estrutura da teoria marxista. Ocorre fre-

qüentemente a pensadores marxistas, absorvidos pelatarefa pedagógica ou compelidos pela exigência polêmi-ca, simplificar sua perspectiva e apresentá la como ten-do fundamento no fato perceptivo, que teria assim oprivilégio de mostrar tanto a materialidade do mundoquanto o estatuto sensível do homem. J á insistimos nes-se ponto: por mais justa que seja, essa interpretação dapercepção não pode de modo algum constituir um argu-mento suficiente para fundamentar o marxismo; ela oreduz ao nível mesmo das doutrinas metafísicas que seesforça em combater e superar na medida em que chegaa opor abstratamente a um tipo de intuição — a que osujeito tem de si mesmo e de sua própria atividade —outro tipo de intuição, a intuição sensível. Devese con-fessar que, mesmo situando se nesse terreno, o materia-lismo se coloca em posição difícil e deve logo entregaras armas às filosofias da subjetividade. J á se demons-trou, com excessiva clareza, de Descartes a Husserl, quea atividade perceptiva permanece incompreensível senão for fundamentada num “eu penso” que lhe confiraalcance e significação para que se tenha o direito deapoiar se, simplesmente e como se não houvesse proble-ma, sobre a “evidência sensível” em estado bruto. Tam-

bém mostramos, no começo deste trabalho, as reservasque convém fazer a propósito da referência às ciênciaspositivas; essa referência, plenamente compreensível naótica da revolução operada por Marx, não poderia repre-sentar justificação filosoficamente aceitável. A intuiçãoepistemológica é tão pouco probante quanto a intuiçãosensível e a intuição moral: ao mesmo título que estasúltimas, no propósito de uma justificação definitiva, in-clina o conjunto da doutrina no sentido do injustificadoe reduz sub repticiamente o saber à opinião.

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Numa perspectiva desenvolvida por Hegel e da qualele próprio havia demonstrado a justeza, a única legiti-mação exigível consiste na legitimidade do conteúdo. Oproblema do fundamento, como procura de um fato quefosse anterior e exterior à exposição e à realização daciência, deve ser rejeitado como desprovido de sentido.

Quer isso dizer que a verificação da concepção marxistaseja idêntica à que se emprega, de acordo com o posi-tivismo, nas ciências particulares? Essas ciências apre-sentam, como prova da validade de seus enunciados, aspossibilidades de previsão e de ação correta que propor-cionam: não há, para eles, problema do fundamentoporque consideram essa questão fora do âmbito de suacompetência. Seria tentador interpretar o marxismo na

mesma ótica: o que o justificaria, no nível da teoria, se-ria o fato de que assegura a inteligibilidade do devenirhumano e, no nível decisivo da prática, o seu êxito efe-tivo. Assim, é comum apresentar se como 'prova da jus-teza das idéias de Marx o desenvolvimento histórico apósa publicação do Manifesto comunista, salientando acon-tecimentos como as lutas operárias, a Revolução de Ou-tubro, a construção do socialismo na União Soviética eos progressos do regime da propriedade coletiva dos meiosde produção no mundo. A concepção marxista constitui-ria uma hipótese de trabalho que os fatos confirmam eda qual se poderia dizer agora, mais ainda do que notempo de Marx, que é verdadeira, dessa verdade que opositivismo atribui às ciências experimentais.

Há certa ambigüidade nessa maneira de apresen-

tar o “fundamento” do materialismo. Afirmar que a le-gitimação é dada no próprio conteúdo, é dizer que a justificação última se encontra nos fatos que o conteú-do reflete; e é verdade que os acontecimentos evocadosconfirmam a justeza da análise marxista. O problema,no entanto, permanece: como se explica que o marxis-mo tenha conseguido tornar sua época inteligível, quetenha descoberto conceitos capazes de assegurar a cla-

reza da história, que tenha proporcionado às forças so-ciais revolucionárias perspectivas e palavras de ordem

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que tenham permitido alcançar vitórias? A solução detal problema é importante: constitui a resposta àsimputações que se fazem freqüentemente ao marxismode ser apenas a expressão de certa vontade de poder, ade determinado grupo histórico, que, tendo encontradohábil e maquiavelicamente fórmulas “explosivas”, obte-

ve êxito dos quais se prevalece para apresentar se comoverdade absoluta. Em outros termos, é capital desfazero equívoco implícito na noção de confirmação ou de jus-tificação da teoria pela prática: é claro que tal noçãopode ser facilmente interpretada numa ótica pragmáti-ca ou cínica e tornar se, então, a oportunidade de umedulcoramento do marxismo e de uma possibilidade cons-tante para seus adversários de refutá lo vitoriosamente.

Tudo se esclarece a partir do momento em que se com-preende o marxismo, a um só tempo, como conhecimen-to da sociedade moderna altamente industrializada ecomo produto objetivo do desenvolvimento dessa socie-dade. De fato, é na existência desse regime capitalistaque ela combate com tanto vigor que a concepção ma-terialista encontra sua justificação histórica. A socieda-de industrial moderna possui estruturas tais que mani-festa, no nível da existência quotidiana, o homem emsua realidade efetiva. O enorme desenvolvimento das

forças produtivas, a partir do século X IX , especialmente,o crescimento concomitante do domínio do homem so-bre a natureza, a socialização do trabalho, a constitui-ção de um mercado mundial, a transformação contínuaque o capitalismo, para sobreviver, deve introduzir nas

relações de produção, todos esses fatores fazem apare-cer objetivamente, no seio da atividade sensível, os ele-mentos que desempenham e, de certo modo, revelam ahumanidade a si mesma. A sociedade industrial, desdeo momento em que atinge suficiente estágio de desen-volvimento suficiente, suscita condições novas que evi-denciam, por si mesmas, o estatuto humano concreto:suscita, pelo mundo que cria, a possibilidade de conhe-

cer a verdade e de determinar conceitos gerais válidospara o conjunto da história.

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com a vida simples e natural, com a “presença” : deve-mos crer que essa presença não o satisfazia pois quisoutra coisa e escolheu, para atingir a satisfação, não oelemento da natureza, mas a vida histórica.

 Assim, o mundo moderno, enquanto é o mundo noqual o poder do homem sobre a natureza assume am-

plitude suficiente, reúne as condições do êxito desse es-forço tendente à satisfação universal que a filosofia, comas possibilidades de que dispunha, tentava definir e pro-porcionar. O homem liberto da servidão da necessidadee que, no entanto, nada suprime de sua riqueza natu-ral e que é capaz de abolir efetivamente a alteridadetransformando a coisa em objeto humanizado, não é ohomem religioso que só alcança a plenitude no momen-to em que deixa precisamente de ser homem; não é tam-pouco o filósofo que pensa a satisfação mas não conse-gue vivê la e deve constantemente escolher entre o com-promisso e a morte. O domínio das forças naturais e oaumento considerável dos meios técnicos postos à suadisposição, devem tornar possível a realização dessehomem. E na medida em que lhe é possível, satisfazen-

doo, distanciar se de seu ser sensível, descobre seu ca-ráter fundamental; na medida igualmente em que setorna agente de sua história, percebe seu estatuto his-tórico. A sociedade industrial possui portanto um pri-vilégio: o de trazer os meios de tornar efetivo o que ohomem jamais deixou de querer no sofrimento histó-rico: a constituição de um mundo humano08.

68 “A sociedade burguesa é a organização da produção mais desen-volvida e mais complexa da história. As categorias que exprimem suascondições, a compreensão de sua estrutura, lhe permitem, ao mesmotempo, compreender a estrutura e as condições de produção de todasas formas anteriores da sociedade, sobre cujos elementos e ruínas elaprópria se edificou, da qual continua a arrastar algumas relíquias, daqual alguns elementos embrionários atingiram agora seu pleno desen-

volvimento, e tc... A anatomia do homem dá a chave da anatomia domacaco”. Contribuição à Crítica da Economia Política, apêndice III, p.295.

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E esse privilégio repercute na concepção que o re-flete corretamente. A obra essencial de Marx é O Capital; uma obra importante de Lênin é O Imperialismo, está-gio supremo do Capitalismo. O conteúdo desses dois li-vros é a analise de uma situação de fato, característicada sociedade industrial em dois estágios determinados

de sua evolução. Ambas se esforçam em descrever exa-tamente o estatuto da humanidade revelando suas es-truturas profundas: cumprem, de certo modo, o progra-ma que se propunha Hegel ao afirmar que a única ta-refa deixada ao pensamento era descrever o que é —tarefa que não pôde levar a bom termo porque se dete-ve no biombo da vida política e não determinou suasraízes empíricas. Essa descrição exata, no entanto, per-mite forjar conceitos que — como fio diretor do estudoe somente assim — constituem princípios de alcance■universal e podem ser aplicados a outras sociedades alémda sociedade industrial em sua fase capitalista. A análi-se do regime capitalista enquanto representa — em cer-ta medida — o êxito da sociedade industrial e enquantotambém faz surgir em toda clareza as crises profundasque podem atingi lo, proporciona os elementos capazesde assegurar a inteligibilidade do pâssado humano. A utilização desses elementos exige as maiores precauções:é evidente que  jamais podem autorizar a desconhecer ospróprios fatos ou a desqualificá los como desprovidos deimportância. São numerosíssimos os exemplos de pensa-dores que, inspirando se nos textos dos fundadores domarxismo, imaginaram ser suficiente, para dissipar os

enigmas da história, aplicar, por exemplo, o conceito daluta de classes, substituindo assim à vida concreta dahumanidade esquemas rígidos e sem verdade. Essas con-trafações, no entanto, não permitem rejeitar princípiosgerais de inteligibilidade propostos pelo marxismo —não como axioma, não como hipótese de trabalho — masantes como princípios reguladores da pesquisa, funda-dos no fato de que o mundo moderno, fazendo existirrealmente e trazendo à luz o que até então era e perma-necia simplesmente oculto, suscita também uma con-

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intensivos, a revolucionar constantemente as forças pro-dutivas, a conquistar novos mercados pela guerra e pelacolonização. Em suma, o capitalismo é levado, para so-breviver, a transformar continuamente as relações deprodução. E só resolve as crises que seu mecanismo sus-cita recorrendo à violência; sem dúvida, esses dados da

ciência econômica sobre os quais nos permitimos nãoinsistir, já descobertos pelos mais audaciosos liberais,apresentam se atualmente com aspecto diverso. Umaorganização científica do regime permitiu resolver al-gumas dessas contradições internas e atenuar os efeitosde algumas outras: a noção de crise econômica, em par-ticular, deve ser estudada de um novo ponto de vista emfunção do planejamento na cúpula, instituído pelos pro-prietários dos principais meios de produção; a conquis-ta dos recursos e dos mercados dos países subdesenvolvi-dos não é mais acompanhada necessariamente pela vio-lência militar. Deveríamos insistir também nas trans-formações trazidas não apenas pela intervenção do ca-pitalismo bancário, o papel cada vez mais importantedesempenhado não só pela intervenção do Estado nospaíses capitalistas, mas ainda pela utilização de novasfontes de energia, o aperfeiçoamento de processos deprodução; deveríamos insistir, outrossim, no fato de queo desenvolvimento das lutas operárias provocou impor-tantes modificações nas leis que, no tempo de Marx, go-vernavam o mercado de trabalho. Mais profundamente,é claro, ao que parece, que os progressos consideráveisrealizados pelas forças, produtivas, a partir do começo

deste século, tiveram efeitos assinaláveis no âmbito dopróprio capitalismo, na organização de conjunto do re-gime.

Resta que, sejam quais forem as acomodações quetenham sido feitas e que são concebíveis, sejam quaisforem as modificações introduzidas na gestão capitalis-ta, uma violência permanece, uma violência essencial. Ocapitalismo, precisamente porque se faz acompanhar deenorme crescimento das forças produtivas, porque so-cializa o trabalho, porque mundializa as trocas, aumen

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ta ainda mais a opressão que a propriedade dos meiosde produção faz pesar sobre os trabalhadores. As relaçõesde produção revelam se em sua verdade e a exploraçãoé decuplicada, estendendo se doravante ao conjunto dasociedade humana. Pela sua situação na produção ospróprios produtores são parcialmente excluídos da frui-

ção dos bens de produção. As vitórias que sua coragemlhes permite conquistar são capazes de limitar a explo-ração; esta, porém, só poderá desaparecer com a su-pressão completa e efetiva da sociedade de classes. A ma-nutenção do capitalismo não se traduz necessariamen-te por uma intensificação absoluta e linear da condiçãooperária (perspectiva que corresponde ao esquema in-gênuo e mecanicista segundo o qual a condição humanamelhora constantemente, linearmente e sem problemasem regime socialista); mas implica que os que fabricamobjetos, os que trabalham e estão na origem do desen-volvimento técnico, são necessariamente frustrados dasatisfação que lhes poderia ser proporcionada. A socie-dade industrial, que permanece sociedade de classes —enquanto sociedade industrial — reúne as condições

reais da satisfação empírica universal e, no entanto,impede sua realização enquanto sociedade de classes.Nesse estágio, a humanização da natureza não conduza essa humanização dos homens empíricos que seria noentanto possível: e a causa profunda é a permanênciada propriedade dos meios de produção que desempe-nhou importante papel histórico na construção da so-ciedade industrial, mas que, atualmente, freia seu de-

senvolvimento e impede a humanidade de beneficiar seefetivamente de seu trabalho09.O capitalismo é o tipo da sociedade de classes, em

que mais claramente se manifesta a violência constan

69 Isso não significa, de modo algum, que a abolição da propriedadeprivada dos meios de produção, condição necessária, seja a condição 

suficiente da sociedade desalienada. A ex periência histórica contempo-rânea mostra que nos Estados em que foi instaurada a propriedadecoletiva dos meios de produção, outras formas de exploração, e por

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te exercida por aqueles cuja situação econômica põe naposse dos instrumentos de produção contra os que nãopossuem senão sua força de trabalho. Esse fato se apre-senta ao economista que está, de certo modo, alertadopelo historiador (se é que essa separação conserva al-gum sentido para o pensamento marxista). A análise

dos acontecimentos qus balizam a construção do capi-talismo industrial, o surto do imperialismo, mostramque a opressão imposta aos trabalhadores suscita umaforça social antagônica, a dos oprimidos, cada vez maisconscientes das raízes econômicas da exploração. A épo-ca da constituição do que Marx chama “a grande usi-na” é também a época em qus a resistência operária sedesenvolve em larga escala; essa resistência apenas cres-ce e se organiza constantemente. Assim também, e paratomar apenas esse exemplo, a colonização provoca o des-pertar dos povos explorados e engendra, por processoscomplexos e diversos, de acordo com os países, o adven-to de consciências nacionais. A história do desenvolvi-mento capitalista é também a história das lutas operá-rias; pois o movimento de resistência à exploração assu-me rapidamente conteúdo determinado; na medida emque o regime capitalista penetrou a sociedade toda, emque o Estado está nas mãos da classe economicamentedominante, a luta dos trabalhadores visa suprimir a es-trutura economico social capitalista inteiramente, a que-brar o aparelho de Estado burguês; o objetivo é, pelasupressão do capitalismo, fazer desaparecer a sociedadede classes, suprimir a propriedade privada dos meios de

produção; de recolocar a posse e a gestão dos meios deprodução nas mãos dos produtores e restituir à socieda-de industrial a possibilidade indefinida de satisfação queoferece à humanidade.

T al objetivo não se manifesta em estado de tendên

tanto, outras formas de alienação surgem; em particular, as que en-

gendram o autoritarismo burocrático e a constituição de uma classeou camada social de managers que detem os poderes políticos e eco-nômicos.

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cia ou de ideal no conhecimento da sociedade capitalis-ta por parte do economista; não constitui somente umaextrapolação do historiador que prolonga, por variaçãoimaginária, um movimento apenas esboçado. Existe co-mo objetivo, atualmente presente, na consciência deci-dida dos trabalhadores em luta. É a existência de sua

vontade que representa, em suma, a prova da validadeprática do marxismo. Tratase, para este, graças à ciên-cia econômica e aos conhecimentos históricos que o devenir real e a evolução simultânea da cultura permiti-ram elaborar, de tornar lúcida essa vontade a fim de au-mentar sua eficácia, facilitar sua vitória nos menoresprazos e com a menor violência possível. A política mar-xista não está fundamentada nem numa axiologia, nemnuma filosofia messiânica da história: apóia se numfato observável, a luta da classe operária e, de modo maisgeral, dos explorados contra os regimens econômicos que,por sua essência, mantém o fato da não satisfação uni-versal. O fim visado por essa política não é de ordemideal; a supressão da sociedade de classes foi efetivamen-te desejada por organizações operárias antes mesmo que

se pudesse supor uma penetração suficientemente im-portante dos princípios econômicos de Marx nas mas-sas; essa reivindicação, no entanto, adquire novo peso,encontra perspectivas de ação mais justas e mais efica-zes na medida em que a análise econômica e a histórialhe fornecem elementos de informação mais exatos emais sólidos. “O marxismo é a fusão do socialismo cien-tífico e do movimento operário”70. A fórmula é de grande

importância. Mostra claramente que a perspectiva mar-xista não se compreende nem como Teoria que, de forae porque se apresentaria como justa, imporia algum fimao devenir, nem como simples “reflexo” da consciênciaoprimida. A economia política histórica marxista trans-formase imediatamente em política, quer dizer, em teo-ria da prática da luta operária; ao mesmo tempo, em

70 Cf., neste tr abalho, cap. I, p. 51, nota 116.

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prática ligada à análise teórica do combate proletário;quanto a essa unidade, realiza se no seio do partido oudos partidos revolucionários.

Poderão objetar, sem dúvida, que o fato, para o pen-sador, de aliar se aos que, procurando o fim da explora-ção, lutam pela satisfação empírica universal, implica

uma opção moral. J á esboçamos a resposta a essa obje-ção: insistamos que não compete à reflexão descobrirporque tal indivíduo prefere esta atitude àquela: não éda sua competência e não é seu propósito fazer psicolo-gia ou moralizar. A escolha é problema de cada um e étarefa da propaganda, e não da reflexão sobre o que é,inclinar em favor disto e não daquilo. O único problemaque, nesse domínio, pode reter a atenção, é o seguinte:por que procura o homem a satisfação empírica univer-sal? A solução encontra se no próprio enunciado daquestão. A prova de que o homem quer a satisfação empí-rica, é toda sua história real, a história de sua luta con-tra a morte, a fome, a doença. É possível, sem dúvida,devemos também repetir, considerar essa história umaperda e deplorar que o homem tenha preferido a satis-fação à “presença”, fosse ela “insatisfeita”; o fato dodevenir real e de seu progresso não é nem suprimidonem desqualificado porque nós o designamos como “his-tória superficial” ou decadência. Se o homem quer queessa satisfação seja universal, é porque verificou que aexistência de um indivíduo, ou de um grupo, cuja insa-tisfação é devida à ordem social, é geradora de violên-cias e de desgraça para toda essa sociedade. Tais fatos

só recentemente se tornaram claros — se excetuarmosas numerosas intuições filosóficas que anunciavam suacompreensão —: nem por isso deixam de ser fatos a res-peito dos quais é difícil duvidar.

Objetarão, também, que acabamos de desenhar umcírculo vicioso: não utilizamos referências a fatos paralegitimar, a seu modo, o marxismo; a sociedade indus-trial, o capitalismo, a luta operária, qualificados de his-

tóricos ao mesmo tempo em que os analisávamos e osdefiníamos em função da perspectiva cuja validade de

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veríamos provar? Como acontece em microfísica, comoé freqüente no exercício da ciência histórica, não háuma ação do observador (e de sua situação) sobre o sis-tema observado que, assim sendo, corre o risco de trazeruma confirmação ilusória? Os economistas que adotaramo ponto de vista dos proprietários dos meios de produção

não apresentaram também uma análise do regime que opropunha, como único meio de atingir a satisfação uni-versal empírica? O problema não pode ser evitado; umaresposta completa implicaria a plena elucidação da di-fícil noção de objetividade, que será considerada no ca-pítulo seguinte. Desde já, no entanto, é possível indicaros elementos de uma solução. Devese reconhecer, emprimeiro lugar, a existência de um círculo vicioso: é

verdade que o marxismo justifica sua concepção de con- junto, tanto teórica quanto prática, pela referência aacontecimentos analisados graças a essa própria con-cepção. Esse método que utiliza, não lhe parece, no en-tanto, constituir uma dificuldade de direito que o inva-lidasse; envolve apenas, para ele, dificuldades de fato, cu, mais precisamente, dificuldades referentes ao con-teúdo científico de sua análise. Em outros termos, o pro-blema, a esse respeito, é unicamente o do rigor cientí-fico da descrição que apresenta da situação capitalis-ta, da justeza das perspectivas que define no combatepela edificação de uma sociedade sem classes. É claro quese mostrarem que os acontecimentos da história econô-mica do século X IX não correspondem de modo algumà analise marxista, que o conceito de imperialismo, no

começo do século X X , não corresponde de modo algumà realidade do imperialismo (ou remete a uma realida-de imaginária), o sistema em sua generalidade estariacaduco. Voltamos, pois, à formulação inicial desta seção:é o conteúdo que prova e o aprofundamento do conteú-do implica freqüentemente “círculos”, que a metodolo-gia formalista apontará como dirimentes. O problemareduzse, assim, à seguinte banalidade que, nem por is-so, deix a de ser importante: o estudo histórico e econô-mico ao qual se consagraram os fundadores do marxis

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mo torna inteligíveis os acontecimentos tais quais umahistória, uma história “dos acontecimentos”, pode esta-belecêlos? Parece difícil, se observarmos os resultadosda ciência histórica atual, responder negativamente aessa interrogação, sejam quais forem os complementos,os aprofundamentos, os matizes trazidos pela pesquisa

contemporânea. Se este estudo é correto em sua genera-lidade, então os princípios que acabamos de definir as-sumem seu devido alcance.

 A verdade da concepção de conjunto do marx ismoestá “fundamentada” na verdade das análises principaisrealizadas por Marx e Engels. Isso não significa, de mo-do algum, que todo estudo ulterior deva repetir, “adap-

tando os”, os resultados obtidos pelo O Capital. O úni-co critério continua a ser o respeito pelo acontecimento.Nesse sentido, o materialismo, em seu conteúdo jamaisé definitivamente “fundamentado”. Que Marx tenha fi-xado corretamente os traços da sociedade capitalista ecaracterizado, ao mesmo tempo, com exatidão, em suageneralidade, os traços de toda sociedade de classes, issonão quer dizer que os conceitos que elaborou sejam au-

tomaticamente aplicáveis a todo estágio ulterior da lutade classes e que o devenir dos regimes de exploração se- ja a repetição da situação histórica em que se encontra-va Marx por ocasião de sua morte. A evolução faz nas-cer conjunturas originais; na medida em que o capita-lismo que Marx tinha diante de si salientava os traçosmarcantes do regime, é justo referirse como a um guia

às categorias estabelecidas; esse guia, porém, não pode-ria ser considerado uma luz que, doravante, trouxesse ainteligibilidade. O marxismo convertese em dogmatis-mo precisamente a partir do momento em que substi-tui ao estudo objetivo dos acontecimentos a vontade deneles encontrar a confirmação dos princípios nos quais“acredita”. J á observamos: nenhuma prescrição meto-dológica pode ser válida a esse respeito. A prova é dada,

e só pode ser dada, por uma pesquisa científica aprofun-dada, à qual as análises principais do marxismo pro-

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porcionam, por motivos compreensíveis, uma perspecti-va correta, mas nunca soluções prontas.

O risco que corre assim toda empresa marxista — eesse risco se aplica tanto à determinação da linha polí-tica em circunstâncias dadas quanto à pesquisa teórica— nada tem em comum com qualquer espécie de desa-

fio. A idéia de que a escolha do marxismo, como métodocientífico e como perspectiva moral, constitui, em úl-tima análise, uma opção arbitrária em favor da racio-nalidade e da felicidade, foi desenvolvida recentementecom muito brilho71. Não parece corresponder nem à óti-ca de conjunto do materialismo nem à técnica políticadefinidas pelos chefes revolucionários marxistas. É ver-dade que toda ação, toda obra implica uma aposta, su-põe um êxito que não está dado, visa um objetivo qu3lógica alguma poderá dizer se será ou não alcançado. A idéia, aliás, de uma previsão a longo prazo é estranhaà análise marx ista concreta. Mas, trata se precisamen-te, para o pensador ou o político, de reduzir tanto quan-to possível essa zona de indeterminação por meio de umconhecimento exato e completo do que é dado, conheci-

mento que se tornou possível pelo elevado estágio de de-senvolvimento alcançado pela prática da sociedade in-

71 E a idéia desenvolv ida por L. Goldmann em seu trabalho teóricoCiências humanas e filsóficas em um estudo histórico preciso. O Deus oculto. Não parece que tal idéia corresponda à compreensãoefetiva da revolução teórica operada por Marx e que o marxismo pos-sa ser interpretado como uma solução corajosa da “trágica” problemá-

tica do homem, apreendida por Pascal, Racine e Kant. Importa, noentanto, salientar que os resultados obtidos por L. Goldmann, na edi-ficação de uma interpretação marxista da cultura, são de importânciaconsiderável. Contra as aproximações, os esquemas, contra as críticasexteriores e dogmáticas, o autor do Deus oculto, soube desenvolveruma análise que leva em conta a complexidade da situação históricaconsiderada, mostra as mediações e faz aparecer o elemento: a deci-são do pensador que, face a determinada problemática, deve “optar”por uma solução que envolv a a sorte da humanidade. A o contrário —

mas não é o contraditório — das “f ilosofias gerais marxistas” , L . G old-mann preocupa se com o conteúdo: nesse sentido, sua obra assume, naatual conjuntura ideológica, alcance considerável.

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dustrial. Sem dúvida, a ação singular que for empreen-dida, nesta ou naquela conjuntura histórica, pode ma-lograr, porque a informação a respeito do poder das for-ças sociais foi insuficiente, porque a análise não foi le-vada até onde era necessário. Engels confessa erro se-melhante em seu Prefácio aos artigos de Marx dedica-

dos à luta de classes na França entre 1848 e 187072. Semdúvida, e ainda aí Marx assinala claramente essa even-tualidade: a realização da sociedade plenamente satis-feita empiricamente poderá ser constantemente adiadae a oposição subsistir, em diversas formas, na comuni-dade humana? Mas, não se trata de modo algum deapostar, no sentido em que Pascal convida a apostar navida eterna. Trata se, apenas, de conhecer e de agir emuma situação de fato a fim de realizar aquilo que o ho-mem jamais deixou de desejar, o que quer com maisviolência ainda desde que o acréscimo das forças produ-tivas consolidou seu poder e desenvolveu a consciênciade seu ser fundamental.

O “fundamento” do marx ismo, de sua concepçãodo homem e da ação, é pois a existência de uma forma-

ção econômica produzida pelo devenir real: a sociedadeindustrial em seu estágio capitalista. Esta revela o ho-mem em sua verdade e desvenda o fim da atividade hu-mana. Sem dúvida, a história permanece o lugar obs-curo onde se defrontam a coragem e a paixão indivi-duais, onde o gênio luta com a fraqueza e o interessecom a generosidade; mas, além desse caos, desenhasea procura audaciosa e constante na qual o homem se

empenha, a de um mundo em que a satisfação empíri-ca se torne possível, em que a humanidade possa, do-minando a natureza e a sua natureza, libertar se daalienação e abrir as perspectivas grandiosas de uma his-tória da liberdade. Essa preocupação da plenitude e da

72 Cf. a Introdução de Engels à série de artigos de Marx, publicadosna Nova Gazeta Renana, a partir de março de 1850 c reunidos sob otítulo  A luta de classes na França (18481850).

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liberdade — essa paixão que o homem tem por si mes-mo — já opera no trabalho que muda a coisa em objeto,no esforço para descobrir as técnicas que façam desa-parecer a ignorância e a impotência humana; manifestase, mediatamente, nas tentativas feitas para instau-rar um pacto entre os indivíduos e as comunidades,

pacto que expulse a violência política e militar e im-plante uma ordem em que cada um seja reconhecido portodos; esse propósito encontra sua mais alta expressãona especulação filosófica que tenta, pela Teoria, abolira alteridade e substituir as incoerências da aparênciapela ordem do pensamento. O marxismo é, antes de maisnada, o conhecimento lúcido do “sentido” da históriahumana; compreendè se como o elemento objetivo gra-

ças ao qual esse sentido se torna claro a si mesmo e des-cobre as condições reais de sua efetuação.Participa, ao mesmo tempo, da luta contra os en-

traves à realização de uma sociedade universal empiri-camente satisfeita; não escolhe estar ao lado das forçassociais revolucionárias: já está aí, como expressão, atu-almente a mais alta e mais completa, da preocupação

do homem e de sua luta para sair da pré história, paraconquistar a verdadeira .liberdade e abrir o mundo aosrecursos indefinidos do indivíduo liberado da servidãonatural e da alienação social.

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 V 

O Caminho da Superação: As Tarefas do Pensamento

Teórico Atual

i

E po ssí v e l , agora, voltar ao problema proposto nocomeço deste trabalho: o do sentido e do alcance, parao pensamento contemporâneo, da oposição entre o ma-terialismo marxista e o que chamamos, por convençãopessoal, a crítica do estilo filosófico. Desde o primeirocapítulo, e a continuação confirmou esse fato, ficou cla-ro que essa oposição permanece estéril se compreendida

apenas como contradição de duas doutrinas que se de-frontam no seio de um domínio comum e participandodo mesmo estilo de pensar. Se o materialismo se opõeao não materialismo como um sistema filosófico a outrosistema filosófico, o confronto permanecerá confuso e,finalmente, sem sentido; chegaremos a respostas ambí-guas, cada perspectiva empenhando se em mostrar quea outra não compreende as noções tais como devem serentendidas e, como já salientamos, logo chegaremos a

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verificar a irredutibilidade das posições e o fato de quecada uma encontra na outra, ao mesmo tempo, seu li-mite, sua refutação e sua verdade. O antimaterialismo— especialmente na forma de filosofia da subjetividade— não terá dificuldade em mostrar o caráter arbitrárioe superficial da atitude materialista; esta, por sua vez,

ironizará a falsa profundidade de um pensamento quefinge esquecer suas preocupações e suas origens modes-tamente materiais. A discussão, desenvolvida nesse pla-no, contribuirá para tornar extremamente insípidas am-bas as doutrinas e comprometer o desenvolvimento deum autêntico materialismo. O ponto de oposição entreo marxismo e a filosofia não se situa no interior da filo-sofia: a teoria marx ista não se opõe à de Hegel ou à deHusserl como se opõe, por exemplo, a perspectiva car-tesiana à de Gassendi ou a filosofia de Hegel à de Fichte.O marxismo quer trazer, justificando sua pretensão demodo absolutamente novo, uma concepção original dastarefas do pensamento e da ação. Pode, sem dúvida, de-senvolver seus temas na ótica e no vocabulário da filo-sofia: mas., assim procedendo, corre constantemente orisco de perderse e de fazer desaparecer toda sua radi-cal originalidade ou parte dela; provocará, então, a jus-to título, uma total incompreensão e se entregará, semdefesa, aos golpes do adversário.

Quererá isso dizer que a oposição da qual procura-mos determinar o significado seja a oposição da antifilosofia tradicional à filosofia e que, finalmente, haja amesma relação entre Marx e Hegel que entre o Cálicles

e o Sócrates do Gorgias? Devemos confessar que certasobras de propaganda do marxismo parecem justificar se-melhante interpretação; devemos reconhecer que taisobras são contrafações. Quando o marxismo protendesuperar a filosofia, acusando a de que chegou a esque-cer o homem tal qual é, empiricamente, em sua vidaquotidiana, não o faz, de modo algum, com o propósitode substituir à universalidade vazia do sistema os dadosmúltiplos e mutáveis das experiências particulares to-madas em sua imediatez. Sua decisão de aufheben a fi-

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losofia implica também a vontade de assumir os proble-mas humanos que o filósofo propôs mas não conseguiuresolver. Não se trata, de modo algum, substituindo ohomo philoscrphicus pelo existente empírico, de dissol-ver a problemática humana na multiplicidade de casossingulares, mas de determinar e de realizar a ordem

universal na qual o indivíduo poderá alcançar a satis-fação empírica e a plenitude. Cálicles está aquém da fi-losofia; o marxismo procura estar além.

Não poderia, aliás, esse esforço, entender se comosimples tentativa de realização científica e prática da-quilo que a filosofia mais completa houvesse estabeleci-do teoricamente. Tentamos mostrar, tomando como

exemplo o hegelianismo de esquerda, do qual Marx es-teve muito próximo durante sua fase de formação, quea superação da teoria não poderia ser compreendida ape-nas nesse sentido. A exigência de realização, nos pró-prios fatos empíricos, daquilo que o saber filosófico, naacepção hegeliana, determinou conceitualmente, e, emconseqüência, a necessidade de estudar cientificamentea situação cuja estrutura foi elucidada por esse mesmo

saber, encontram se na origem do marxismo. T odavia,desde o momento em que a doutrina se desenvolve siste-maticamente, suscita uma dúvida não somente sobre oconteúdo da teoria, mas também sobre o fato mesmo deque. o problema proposto — o de uma sociedade univer-sal empiricamente satisfeita — o seja apenas de modoteórico. Se a teoria não tem imediatamente conseqüên-cias práticas, é porque é insuficiente teoricamente; e

também porque — enquanto saber filosófico — não éteoria da prática efetiva. A exigência de realização dosaber transforma se, por si mesma, em crítica desse sa-ber, em contestação da pretensão de qualquer saber, co-mo tal, de propor e resolver o problema da satisfação. Omarxismo é, sem dúvida, uma ciência, no sentido dasciências positivas, e uma prática: todavia, afirma queretoma, transformando as, as questões e os temas atéagora considerados apanágio da filosofia.

Não querendo ser apenas doutrina filosófica entre

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as demais, nem aplicação dos resultados do saber filo-sófico, e ainda menos expressão de protesto do bomsenso, do apetite ou do sentimento contra o poder exor-bitante do conceito, o pensamento marxista só se definedialeticamente, como novo modo do pensar superando omodo de pensar filosófico. Isso equivale a reconhecer que,

entre a filosofia e a teoria marxista, só existe, como zo-na comum, precisamente a da passagem de uma a outra,constituída pelos diversos momentos da superação. Opresente estudo — com suas dificuldades, obscuridadesterminológicas e as contradições que seria fácil apon-tar — é uma exploração dessa zona onde ainda é lícitofalar de uma e outra atitude num duplo registro. O pon-to de oposição procurado é, pois, um ponto de ruptura:

uma dedução linear que levasse do pensamento primiti-vo ao pensamento científico de Marx, passando pelo pen-samento filosófico é, ao que parece, estranha à óticamarxista. Forçando um pouco as coisas, e supondo queo modo de pensar filosófico nada tomou às ciências po-sitivas, poderíamos dizer que há tanta diferença entreo pensamento mítico e o pensamento filosófico quanto

entre este e a perspectiva marxista. É, sem dúvida, amesma problemática humana que se apresenta a umase outras: todavia, cada uma a propõe, a compreende ea resolve do modo que lhe é próprio e que engloba, trans-formando o profundamente, o modo precedente. Talvezfosse conveniente notar, a esse propósito que, assimcomo o recurso ao mito é, para o pensamento filosófico,uma regressão e uma confissão de impotência, assim

também o fato de querer tratar como materialista asquestões tradicionais da filosofia — as relações da almae do corpo, a existência do mundo exterior e muitas ou-tras — constitui evidente sinal de fraqueza e abandonode posições conquistadas.

 A esterilidade e a confusão dos resultados a que che-gamos no primeiro capítulo, compreendem se agoramais facilmente: a rigor, não poderia haver entre a fi-losofia e o marxismo confronto propriamente filosóficoque fosse fecundo. Para o marxismo essa impossibilida-

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de não representa uma derrota, pois espera ter demons-trado, apoiando se, em seguida a Kant, nos “dilemas dametafísica” e referindose de modo especial à obra hegeliana — que a legitimação filosófica, finalmente, sem-pre se realiza, e na melhor hipótese, como legitimaçãodo discurso pelo discurso e no interior do discurso. Ssm

dúvida, não menospreza, de modo algum, a empresa que,a seus olhos, constitui uma etapa decisiva na conquis-ta da universidade; verifica, no entanto, que seu êxitorepresenta também um malogro uma vez que não propor-ciona, e não pode proporcionar, aquilo que os filósofos,desde Sócrates e Platão, dela esperavam. Assim, o mar-xismo, porque isso se tornou historicamente possível paraele, descobre sua justificação, não mais no fato de quea teoria elaborada seja irrefutável,' mas na análise dahistória real da humanidade. Descobre, ao mesmo tem-po, a razão que impede o modo de pensar filosófico deaceder a outra coisa que não seja a universalidade dopensamento; torna inteligível a emocionante grandezada decisão filosófica a qual, contra o silêncio, a tradiçãoou o cinismo, soube compreender a universalidade do

problema humano e lutar contra a violência e a bestia-lidade, mas desvenda também sua fraqueza essencial. As mesmas razões que apresenta para explicar as pos-sibilidades que oferece ao conhecimento e à ação, as le-va em conta para explicar a beleza e o malogro da fi-losofia.

 A decisão filosófica — por mais diversas que tenhamsido suas obras — desenvolvese no seio de uma pro-

blemática de conjunto que teve na história relativa per-manência. O horizonte no fundo do qual se ergue a von-tade de filosofar — quer dizer, de elaborar um pensa-mento comunicável, um discurso tal que, nele e por ele,porque esse discurso diz o que é importante, o homemde boa fé possa encontrar a satisfação e a liberdade —é o horizonte da violência; mais precisamente, manifes-tase como mundo em que o indivíduo permanece sub-metido à sujeição natural, onde os deuses estão distan-tes e a perda do divino cria um vazio em que se debate

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a humanidade temerosa e frágil; aquém, a comunidadeestável dos primeiros tempos foi destruída e a lembran-ça da tranqüilidade patriarcal subsiste; além, há a es-perança de uma ordem em que o homem escaparia daanimalidade e de seus males; aqui, há a doença, o so-frimento, a paixão, a morte, e, além disso — e essa é a

invenção capital da filosofia e graças à qual descobriráo caminho do universal — há o fato de que a infelicida-de humana se apresenta como tendo também sua cau-sa na própria ação do homem, nas desordens da socie-dade, nas brutalidades da história, nas paixões do indi-víduo. O que foi apresentado nos capítulos precedentescomo contradições da áoxa é, de fato, oposição feroz dosinteresses das camadas ou das classes sociais que dispu-

tam o bem estar sensível e o poder. J á insistimos no ca-ráter exemplar da guerra do Peloponeso que, no seioda mesma civilização, socializa, por assim dizer, a vio-lência e faz aparecer, em sua fria crueldade, a impor-tância do interesse. A procura filosófica de um lugar on-de triunfasse, aos olhos de todos, a universalidade, é aprocura de um mundo repousado onde a violência his-tórica confessasse sua estupidez, a paixão sua mesqui-nharia e, o interesse, sua parcialidade criminosa. A de-cisão de filosofar nasce no mundo do conflito e se desen-volve enquanto a tradição revela sua impotência e o ci-nismo dos violentos prova, por seus repetidos malogros,sua absurda pretensão.

O exercício da filosofia supõe, com efeito, não só oconflito (revelandose conflito resultante da ação huma-

na, conflito histórico), mas também o fato de que esseconflito tem um caráter dramático aberto e que nenhu-ma força real parece capaz de resolvêlo. Em outros ter-mos, a contradição entre os interesses dos indivíduos edas comunidades deve ser tal que se manifeste ao mes-mo tempo como devendo ser superada e como impossí-vel de ser superada pelos “meios habituais” : arte de vi-ver, técnica política, bom senso moral, violência histó-rica. .. A esse respeito, parece que as análises do mate-rialismo histórico consideraram freqüentemente, sim-

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plificando as em excesso, as relações existentes entre aluta de classes e ou as camadas sociais e sua expressãonas doutrinas filosóficas. É fácil dizer, ao que parece, queessas doutrinas, em determinado momento, representamou refletem o ponto de vista da classe dominante ou daclasse em ascensão. É impossível, na perspectiva de um

estudo objetivo dos textos, considerar o sistema platô-nico como “reflexo” dos interesses da aristocracia ate-niense ou a obra hegeliana como a tradução fiel dospropósitos da administração prussiana. De fato, a par-tir do momento em que uma força social se torna sufi-cientemente poderosa para impor realmente seu poder,a procura filosófica se torna menos rica e menos pro-funda; usurpa freqüentemente o vocabulário e a apre-

sentação filosófica, mas desce ao nível da técnica ou daedificação, é um instrumento. Mas esse é o caso das filo-sofias medíocres — sendo o critério de julgamento o datradição filosófica, ao qual não podemos deixar de recor-rer — : limitam se a um ponto de vista parcial, expri-mem apenas as aspirações deste ou daquele grupo ou as“manias” de um indivíduo. As filosofias importantes,que constituem etapas decisivas na história do pensa-mento, têm outro conteúdo e alcançam outro êxito. Ne-las, exprimese, universalmente, a problemática huma-na, em seu conjunto, em determinada época; apreen-dem, de maneira abstrata, sem dúvida, a essência dosproblemas que apresentam ao homem sua relação como objeto, suas relações com os outros homens, seu dese-

 jo jamais satisfeito de plenitude e de liberdade. A Calí

polis platônica é, de fato, a estrutura política que con-viria ao cidadão grego: a ética spinozista determina con-venientemente a conduta que permitiria viver na paixãosem ser passivo; o Estado hegeliano constituiria a solu-ção do problema político se o problema do Estado se li-mitasse ao da Constituição.

 A insuficiência filosófica é diferente e mais profun-da: reside no fato de que a universalidade assim cons-

tituída só resolve os problemas em pensamento. A solu-ção universal, proposta pelo filósofo, solução que domi-

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na o conflito, o ilumina, o compreende, só conquista suauniversalidade deixando subsistir o conflito real. Opõeà particularidade do infortúnio, da alienação, da servi-dão, a representação de um apaziguamento universalmas ideal. Poderíamos mostrar, a propósito, de que mo-do os grandes momentos da evolução do pensamento fi-

losófico, tomados em seu conteúdo, resolvem em tese, e aipenas em tese, os problemas que o processo históricode tal modo complicou que deixaram de ser problemasdeste ou daquele grupo para tornarem se problemas detoda a humanidade (ou daqueles que nessa época sãoconsiderados parte da humanidade). A filosofia, portan-to, como decisão e como obra, situase muito além doque se costuma chamar de “ideologia”. Poderíamos di-zer, esquematizando, que ela se coloca entre a obra emque se exprime a particularidade dos interesses e dosideais de determinada comunidade e a concepção deuma teoria e de uma prática que compreende universal-mente a problemática humana e se constitui, ela pró-pria, em solução efetiva e universal dessa problemática. A filosofia recusa a parcialidade da doxa; só a supera,

no entanto, no nível do pensamento, na esfera límpida eideal do logos. Corresponde, de modo mais geral, a umafase da história humana em que o homem já está par-cialmente liberto da servidão natural por certo desen-volvimento de seu poder e pela organização política, emque pode dispor de “lazeres”, para retomar a admirá-vel análise aristotélica1, e desprender se de seu ‘sersen

sível’ e de sua inserção nas comunidades ditas naturais,conceberse em seu ‘ser diferencial’, como pensamento,mas em que a fraqueza de seu domínio sobre a nature-za, a própria organização política e a inexistência de umaforça social efetiva que permitisse tornar prática a teo-ria, lhe impedem de apreender o pensamento a não sercomo meio de elaborar uma especulação cuja realização

1 Metafísica, A, I, 981 b 20.

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moderno, tal como Hegel o vê, fruto de uma forma so-cial que aumentou em proporções consideráveis o poderhumano e revelou ao homem o que ele é realmente, é oquadro universal abstrato no interior do qual irá desen-volverse a sociedade industrial, em sua fase capitalista,e aparecer a força social capaz de construir a sociedade

da satisfação empírica universal e, assim, de resolver oproblema que estava na origem da decisão filosófica.É evidente que essa análise da constituição histórica

da filosofia peca por sua extrema generalidade, além decomportar múltiplos matizes. Admitimos, em particular,,que a vontade filosófica estava isenta de qualquer con-tribuição de outras disciplinas; é freqüente, principal-mente a partir do Renascimento, que à procura da uni-versalidade no e pelo pensamento se acrescentem consi-derações de ordem científica e técnica que interferemcom o projeto propriamente filosófico. A obra cartesianaé um exemplo dessa dualidade: a prova da validade queapresenta encontra se nas Meditações metafísicas , mastambém está na última parte do Discurso do método enos três opúsculos a ele acrescentados. Essa interferên-

cia — seremos levados a voltar a esse ponto — tem muitaimportância: manifesta o vínculo que se estabelece con-fusamente, entre o propósito filosófico do universal e aprocura prática da felicidade empírica. Falta tambémum elemento a esse breve estudo do estatuto da filoso-fia: não mencionamos o fato de que a decisão filosófica,uma vez instituída, tornada hábito da cultura, subsistecomo tal, ao passo que a situação real não determina

necessariamente uma problemática que implique sua ma-nutenção e seu desenvolvimento. Há uma tradição dareflexão filosófica que se prolonga e sobrevive enquantoestilo do pensamento. Eis por que, nem sempre, é lícitoquerer descobrir, a propósito de qualquer doutrina, o ho-rizonte econômico e social que explique seu nascimento:esse horizonte pode ser de tal ordem que deixe ao pensa-mento a possibilidade de desenvolver abstrata e “livre-

mente” seus conceitos sem referirse a qualquer proble-mática política, seja qual for. E isso, que parece ser a

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dade, acrescenta se um trabalho de elaboração teóricaque visa tornar claro, em cada momento da situaçãoideológica, a posição do materialismo. Não se trata, pois,de modo algum, de opor, às filosofias atuais, outra filo-sofia, mas de manter, por uma atenção concentrada e emligação com o devenir histórico, a superação constante

da filosofia pelo marxismo.

2

É nessa perspectiva, e somente nessa perspectiva,que é possível conceber a retomada dos problemas dei-

xados sem solução ao término do primeiro capítulo. Deum lado, o marxismo deve continuar a falar de filosofiacom os filósofos; fecharse em seu sistema de referên-cias, abrigar se atrás de uma postulação, equivaleria adesconhecer que existe uma passagem teórica concebívelda filosofia ao marxismo, que a oposição das duas con-cepções é dialética e que, atualmente, na história real, oconflito entre o antigo e o novo subsiste dramaticamen-te, que a vida nova se constrói, mas não está desde jáconstruída. A esse respeito, o materialismo tem por ta-refa reelaborar constantemente essas formulações, res-ponder às objeçõas que, com razão, lhe são apresentadaspelas doutrinas filosóficas, enfrentar, com seriedade esem limitar se ao que seus adversários chamam, com tododireito, suas “certezas”, às questões que os fatos susci-

tam continuamente, quer se trate de acontecimentos oude posições ideológicas diferentes. Mas, por outro lado,seria cegueira de sua parte imaginar que, exprimindo seno estilo da filosofia, triunfaria das doutrinas nãomaterialistas, que as refutaria, no sentido habitual da expres-são: a passagem da filosofia ao marxismo implica emmudança na técnica da prova. O filósofo poderá conti-nuar, com todo direito, a considerar insuficiente o “fun-

damento” invocado pelo materialismo: o que pode fazero teórico marxista, a esse respeito, é procurar atrair a

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atenção do filósofo para o fato de que, recusando a pro-blemática estabelecida por Marx, despreza aquilo que é,para a maioria dos homens de hoje, o mais importante,afastase da prática humana e do que ela visa efetiva-mente e, afinal, do mundo em que vive. Mas, isso é ape-nas um argumento: desde então, importa a esse novo

teórico, ao menos, não convencer — querendo conven-cer, arriscarseia, na melhor hipótese, a apenas persua-dir —, mas expor e reexpor o processo da superação.

Para a crítica antimaterialista contemporânea, oessencial das objeções incide, como já vimos, no caráterilegítimo das formulações fundamentais e das referên-cias adotadas pelo marx ismo. Funda se o materialismoora em considerações do senso comum — “o pudim quese come” —, ora em argumentos psicológicos — a ori-gem da sensação encontra se na realidade que impres-siona os órgãos dos sentidos, ora em fatos tomados àsciências positivas — geologia, paleontologia, fisiologiagenética e muitas outras — . Em todos os casos, a con-fiança atribuída aos resultados experimentais é ilimita-da: o teórico materialista não indaga se não é necessá-

rio, para explicar a validade das ciências, recorrer a umaexperiência mais profunda, mais autêntica ou mais deci-siva que, validando as ciências, remetesse, por exemplo,a um fato que pusesse em questão a “crença” materia-lis ta. Muitas vezes para enfrentar essas objeções, o ma-terialista recorre à dialética: mas, ainda assim, utili-zase de uma noção que não elucidou e que emprega atodo propósito e que bem poderia ser um deus ex machina 

destinado a introduzir nas situações inextricáveis a so-lução de uma falsa inteligibilidade.Parece que as respostas a essas críticas às quais nos

limitamos no começo deste estudo, formuladas, em par-ticular, a propósito dos trabalhos materialistas destesúltimos trinta anos, carecem de clareza e reduzem a re-volução operada por Marx a nível muito baixo. Assim,no presente estudo, em face da confusão a que se havia

chegado, fomos obrigados a fazer uma digressão paratentar retomar o problema em uma perspectiva mais

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ampla. Será possível apreciar os resultados obtidos aolongo do caminho? Talvez; em todo caso, será possíveldeterminar, em relação a esse ponto preciso, o que nãopode ser a atitude do marxismo? Verificase, em primei-ro lugar, que, esforçandose em constituirse como con-cepção geral do mundo, calcado no modelo das doutri-

nas filosóficas, o marxismo se reduz a ser apenas, nodomínio teórico, único que aqui nos interessa, umaon t o l o g i a d ogmát i c a  rudimentar e pobre que se apresen-ta, sem defesa, aos argumentos bem elaborados da tra-dição 3. Freqüentemente, movidos por uma preocupaçãopedagógica de simplicação, tomamos ao pé da letra a ex-pressão “materialismo dialético” . E, apesar das declara-ções de princípio, contentamonos em aceitar, de umlado, a definição da matéria proposta pelo materialismofilosófico — considerado de modo elementar — paratentar, em seguida, “dialetizar” a concepção acrescentandolhe alguns caracteres. O materialismo “mecanicista” declara que existem somente seres materiais oucorpóreos, o “marxista” se contentará em acrescentarque esses seres corpóreos estão em movimento. O' pri-meiro esforçase em deduzir, de acordo com o princípiolinear da identidade, os fatos da consciência, o segundoconsidera esclarecedor afirmar que a dedução, para serprobante, deve ser interpretada como dialética; e queaerora, além desses existentes materiais, em razão doprocesso necessário de seu desenvolvimento, depois quefoi forjado, naturalmente, o cérebro humano, há outrarealidade cujo substrato continua a ser a matéria, mas

que a supera: a consciência, precisamente. Tornarseia, assim, possível desenhar um quadro

concordante do pensamento no interior do qual se distri-buiriam automaticamente os traços característicos dasduas posições em confronto e isso, em virtude de umadeterminação: o idealismo colocaria em primeiro lugar

3 Em relação ao que segue, remetemos o leitor às referências apresentadas no capítulo I.

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o Espírito, o materialismo, a matéria em devenir. E todoo resto seria literatura. Situase, assim, evidentemente,o pensamento nãomaterialista no nível dos mais insí-pidos manuais “cousinianos” e, ao mesmo tempo, colo-case o materialismo nesse mesmo nível. E torna insí-pido, até a falsificação, o sentido da transformação ope-

rada por Marx. Não se trata de opor aos enunciados deuma ontologia espiritualista, expressão de uma crença,os enunciados contraditórios de uma ontologia materia-lista, expressão de outra crença, e de substituir as formu-lações deste tipo: “Deus (ou a Alma) existe antes da ma-téria (ou mais do que ela)” , estas frases: “A matériaexiste antes do Espírito (e o produz)” , os termos sendoempregados nos dois casos, no mesmo sentido. É lamen-tável, a esse respeito, que pensadores como Engels eLênin tenham sido levados a empregar terminologia tãosimplista, que, invocada em exposições posteriores, apre-senta do marxismo uma visão singularmente vazia e in-conseqüente 4. É claro, por exemplo, que um texto comoeste — extraído das obras de Stalin — : “ .. .o materia-lismo filosófico marxista parte do princípio de que a

matéria, o ser, é uma realidade objetiva que existe forae independentemente da consciência; que a matéria éum dado primeiro, pois é a fonte das sensações, das re-presentações, da consciência, ao passo que a consciênciaé um dado segundo, derivado, pois é o reflexo da ma-téria, o reflexo do ser; que o pensamento é um produtoda matéria, quando esta atinge em seu desenvolvimentoalto grau de perfeição; mais precisamente, o pensamento

é o produto do cérebro e o cérebro o órgão do pensa-mento; não é possível, conseqüentemente, separar o pen-samento da matéria sob pena de incidir em erro gros-seiro . . . ” 5, constitui uma contrafação e acumula os ab-surdos, as postulações e as ingenuidades; provoca, com

4 Cf. o artigo publicado por Kostas Axelos cm Arguments, n? 4, ju

nhosetembro de 1957, “Há uma filosofia marxista?’’ 

5 Materialismo dialético e Materialismo histórico, p. 10.

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toda razão, a recusa dos filósofos; deve provocar, porparte do teórico marxista, uma recusa igualmente enér-gica, embora motivada de outra maneira; pois, paraeste, o que importa, não é opor ao materialismo o re-torno a qualquer doutrina da consciência empírica outranscendental, mas desenvolver até suas últimas con-

seqüências o sentido da luta que a humanidade trava àprocura da liberdade efetiva.

Pois é disso que se trata: a “apresentação ontoló-gica” do marxismo, que pretends fazer dele uma filoso-fia geral, implica o desconhecimento do caráter histó-rico e prático do materialismo contemporâneo; inter-preta de modo superficial as relações entre o que se

convencionou chamar de “materialismo histórico” e “ma-terialismo dialético” . Já mostramos que nada autoriza-va a separar os dois termos e que dificilmente se pode-ria aceitar a validade do primeiro sem situarse, ao mes-mo tempo, na perspectiva do segundo. Mas, é freqüentecompreenderse mal sua relação. Em muitas exposições,apresentase, inicialmente, o materialismo dialético comogeneralização ou extenção do materialismo histórico; em

seguida, considerase o materialismo dialético como ofundamento filosófico do materialismo histórico; final-mente, economizando uma etapa, fazse do materialismohistórico a aplicação de uma concepção geral da reali-dade a um domínio limitado. Na verdade, se considerar-mos a obra de Marx, dificilmente veremos em que mo-mento nasce a idéia do materialismo dialético (diferenteda idéia do materialismo histórico); e não será fácil

classificar nesta ou naquela rubrica textos como L u d w i g   Feu er ba ch , O es ta d o e a r evo l u ção ou o J o v em H e g el . Aidéia de uma d i f e rença r ea l de ob j e t os entre os dois ter-mos parece estranha ao densamento marxista: não im-plicaria, essa idéia, que se pudesse falar, de um lado (eparcialmente) do devenir humano e, de outro, (e geral-mente), do ser em geral? Nessa separação consiste pre-cisamente a ontologia cujos perigos acabamos de salien-tar: considerar que há uma doutrina do ser, implicandouma “gnosiologia” , que seria possível especificar poste-

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riormente; haveria assim um materialismo histórico, ummaterialismo psicológico e — a idéia de “ciência proletária” e de “realismo socialista” realizou essa possibi-lidade — um materialismo físico e um materialismo ar-tístico .

Inserindose, assim, nos quadros construídos pelo

pensamento prémarxista, e sem refletir no fato de queesses próprios quadros, especialmente quando se trata dedisciplinas referentes à realidade humana, são a expressão do conteúdo desse pensamento, o marxismo se perdena insipidez e na esclerose. O materialismo, esforçan-dose em tornar intelígivel o devenir humano, a partirda dialética real da necessidade e do trabalho, já impli-ca a determinação do homem como sernatural, submetido a leis e engajado em um universo independentedele, que age sobre ele e sobre o qual ele age. E o mate-rialismo dialético é impensável se, na noção de dialética,não estiver imediatamente implícita a de uma histórianatural e humana. De tal sorte que, se a expressão ‘ma-terialismo dialético’ tem sentido, quer dizer: tentativa,constantemente retomada pelo teórico do materialismo,

de esclarecer e aprofundar, em determinada situaçãohistórica e ideológica, as perspectivas de conjunto domarxismo e pela pesquisa objetiva, elucidar os pontosobscuros ou ainda desconhecidos; em suma, tentativade definir, a cada momento, o marxismo, em seu aspectoteórico, como elemento real da luta do homem pelaconstrução de uma sociedade empiricamente satisfeita.

A partir daí, a resposta que proporemos aos argu-

mentos da crítica antimaterialista não trará novidades;limitarseá a retomar os temas já desenvolvidos nos doi"capítulos anteriores. Não poderá constituir senão umaanálise da pas sagem , quer dizer, uma apresentação pou-co diferente desse movimento que leva de Hegel a Marx.Que significa o fato de definirse o marxismoleninistacomo ma t e r i a l i s t a ?  Que conteúdo convém dar a essa qua-lificação? Tratarseá, desde logo, de afirmar uma crençaanáloga, em sua forma, às crenças espiritualistas? Para-doxalmente, é afastandose da ontologia materialista que

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Marx — em um texto difícil e ainda mal elaborado, equantas vezes comentado — permite responder a essasquestões: “O principal defeito do materialismo de todos osfilósofos — inclusive o de Feuerbach — é que o objeto,a realidade, o mundo sensível são por ele consideradosna forma de ob j e t o , ou de intuição, mas não enquanto

a t i v i d a d e h um a n a con c r et a , enquanto 'p rát i ca , de modosubjetivo” 6. Não se trata de considerar essa fórmula oresumo ou a prefiguração de tudo o que será desenvol-vido pelo pensamento de Marx e de seus continuadores.Permite, no entanto, rejeitar qualquer tentação de inter-pretar o materialismo marxista em termos de ontologiaou de teoria do conhecimento. A realidade — e, em lugardessa palavra, poderíamos dizer: t ò f a i n óm en o n , o  que

se mostra; o b -j ec t u m , o   que está posto na frente; ouainda: o dado — deve ser entendido inicialmente, nãocomo objeto de intuição, mas como o lugar em que seefetua a prática humana, onde se desenvolve a dialéticada necessidade e do trabalho. Em outros termos, acaracterização inicial “do objeto, da realidade” deve seroperada a partir do fato fundamental e objetivo da prá-tica em seus diversos aspectos e em seus diferentes ní-veis de complexidade: a intuição sensível dos filósofose dos psicólogos não pode ser concebida senão como mo-mento dessa prática; e o objeto, enquanto objeto p u r o   da sensibilidade, também é apenas aspecto parcial que,isolado de seu contexto, é um ser abstrato cujo estatu-to real ou essência é falacioso procurar deduzir7.

O “defeito” do materialismo tradicional é também

o defeito do idealismo subjetivo. Ambas as atitudes, na

6 Teses sob re Feue rbach , in Ob ra s f i l o só f i c a s , t. VI, p. 141.

7 “ Ele (Feuerbach) não vê que o mundo sensível que o cerca não éuma coisa que lhe seja dada diretamente de toda eternidade, sempreigual a si mesmo, mas o produto da indústria e do estado social, nosentido de que é, em toda época histórica, o resultado, o produto da

atividade de toda uma sucessão de gerações, que se ergueram umassobre os ombros das outras, modificando a ordem social de acordocom as necessidades modificadas” . Ideologia alemã, idem, p. 161.

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medida em que se esforçam em determinar a naturezada realidade (ou então, do que existe principalmente)a partir do fato primordial da sensação, da relação teó-rica com o objeto, são levadas inevitavelmente a favore-cer o aspecto “objetivo” ou o aspecto “subjetivo” , sem

 jamais conseguirem libertarse completamente da falsa

dialética que remete indefinidamente de um ao outro.Ora se fará da “representação” a cópia ou o reflexo in-terior da realidade “objetiva” , ora, com a preocupação deconsiderar apenas o que é experimentado, reterseáapenas o dado imèdiato da consciência considerandoocomo fato primeiro e fundamental. Assim, o pensamen-to será ora considerado decalque do “mundo exterior” ,ora o “mundo exterior” será considerado expressão to-

tal ou parcial do pensamento. Nesse intercâmbio, e aoremeterse constantemente de um termo a outro,Kant mostrou claramente que não há razão algumapara escolher esta atitude e não a outra. O desenvolvi-mento unilateral de um momento abstrato da práticaleva a construir argumentos vãos, fundados no privilé-gio excessivo concedido a uma parte apenas da expe-riência, isto é a uma experiência falsificada.

O idealismo objetivo escapa a essas dificuldadesporque reconhece inicialmente o caráter decisivo daatividade humana na constituição da objetividade, por-que se recusa a formular o problema do estatuto do ob jeto em termos de representação, e porque afasta comoinsuficiente a oposição do interior e do exterior. Toda-via, “ esse aspecto a t i v o   foi desenvolvido pelo idealismo

em oposição ao materialismo, mas apenas abstratamen-te, pois o idealismo não conhece naturalmente a ativi-dade real, concreta como tal”8. O lugar em que o homemmanifesta seu poder criador é o domínio puro do pen-samento, do Espírito: o resultado dessa atividade é umadecisão ou um discurso, a ordem ou a inteligibilidadeintroduzida deixando intata a empiria; o homem conce-bido essencialmente como pensamento tem por tarefa

8 Teses sobre Feuerbach, ideni.

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essencial pensar e seu trabalho ou sua realização con-sistem em forjar um l ogos graças ao qual o inconcebívelse conceba, o inexplicável se explique. Era preciso que opoder empírico do homem, pelos êxitos que obteve brus-camente e pelos problemas práticos que suscitou — apa-recesse no seio da existência humana para que a ativi-

dade pudesse descobrirse em seu estatuto real. A ma-nifestação primordial da relação com aquilo que nãoé ele e existe diante dele é a necessidade (e seu corre-lato, o desejo) e o trabalho (e sua implicação, desde queo trabalho alcança determinado nível, a organização so-cial e política).

Os problemas propostos pelo materialismo e peloidealismo revelamse, assim, falsos problemas; e a supe-

ração realizada pelo idealismo objetivo, uma soluçãoilusória. No domínio da necessidade e do trabalho, a rea-lidade que aí está se mostra como existindo à p a r t e da-quele que dela tem necessidade e que trabalha paraobtêla, como se obedecesse a processos independentesdo desejo humano, como sendo em-s i , oara usar o voca-bulário tradicional. O “realismo” naturalista do mar-xismo, salientado pela crítica antimaterialista, encontraraiz profunda no estatuto atribuído ao homem, como serque sofre e que trabalha : o que acontece com o homemé encontrarse em um meio cuja natureza é igual à sua,o qual, de acordo com as leis que lhe são próprias, oconstrange, suscita seu desejo renovado e se oferece aele como objeto a transformar. A “existência exterior”da materialidade não tem outra justificação além do

fato, desde o momento em que o homem passa a consi-derarse em seu ser fundamental como trabalhador, dainumanidade do meio em que existe. A exterioridadedeve ser assim compreendida, não como a diferença da-da entre o ser e a representação que se elabora “no” cé-rebro — o aue é a rigor ininteligível —, mas como o cor-te d e f a t o  existente entre o aue é imediatamente obieto do desejo e a realidade desenvolvendo suas determi-

nações fora da necessidade, entre a acão paciente, dolo-rosa e ençenhosa do homem, modelando a realidade pa-ra atingir a satisfação e a recusa (recusa interpretada

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ora como oposição da contingência da h y l e  à ordem dasessências, ora como oposição da necessidade natural àinvenção e à liberdade) dessa realidade a deixarse sub-meter. A independência da matéria apresentase inicial-mente no fato de que muito pouco é dado à humanida-de, que só possui o que conquistou pelo seu esforço, que

há um registro do o b - j e c t um  ao qual ela não está ime-diatamente adaptada. A obrigação para o homem de sertrabalhador atesta, de certo modo, a exterioridade e aindependência, em relação a ele, do domínio que habita.

Perguntarão, no entanto, com que direito o marxis-mo compreende esse domínio como sermaterial, admi-tindose que esse termo designe a realidade corpórea ouespacial cujos caracteres cabe às ciências positivas des-cobrir experimentalmente. Não seria mais legítimo aterse às formulações habituais do pensamento contempo-râneo nãomaterialista que reconhece ou propõe a trans-cendência do emsi, mas não admite considerálo comoser material? Não se estará aqui resvalando (como as-sinalávamos no primeiro capítulo) do que é dado à ex-periência humana, o trabalho entrando em lugar da per-cepção, ao que constitui o resultado da pesquisa cientí-fica? Nada prova, ao que parece, que o lugar da práticaseja idêntico a esse objeto estudado pelo físico, pelo geó-logo e pelo biólogo. A ph y s i s , habitáculo do homem, po-derá ser identificada com o mundo físico? Será justoconsiderála como a verdade da p h y s i s  e apresentar osdecretos da ciência positiva como únicos aceitáveis, úni-cos capazes de trazer, no que se refere à realidade, de-

terminações corretas?A resposta a essas perguntas é de grande importân-cia na medida em que pode esclarecer a oposição do mar-xismo às doutrinas contemporâneas que se incluem nacorrente que se convencionou chamar de “filosofias daexistência”, e compreender em que ótica admite, comodecisivos, no que se refere ao dado natural, os resultadosexperimentais. Por que o marxismo “acredita” na ciên-cia? Essa “crença” não pode, de modo algum, tornarseinteligível se permanecermos na problemática habitual

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da teoria do conhecimento. Esta supõe que haja, de umlado, um objeto a conhecer e, de outro, um sujeito quepossui a propriedade de conhecer; fixa inicialmente aexistência de uma representação subjetiva ou internaque entretém certa relação com a realidade da qual é arepresentação; e perguntase como, ou por que proces-

so (caso tenha pretensões normativas) a representaçãoé representação verdadeira dessa realidade. Ela se co-loca, pois, na perspectiva em que a relação privilegiadado homem e do dado é de ordem teórica, uma “contem-plação” — quer seja essa contemplação concebida comosensação, visão intelectual, afeto ou qualquer combina-ção desses diversos termos. Com outras palavras, a teo-ria do conhecimento em geral, admitindo com ponto pa-

cífico o fato de que a relação importante com o objetoé cognitiva e que o resto — a ação, por exemplo, — oué de outra ordem, ou constitui apenas uma preparaçãoou aplicação dessa relação essencial. Esse é um pressu-posto que Hegel criticou vivamente e no qual julgamosnecessário insistir.

Procuramos mostrar, no segundo capítulo, por viasdiferentes e suscitando outros problemas, que, se o pro-blema da relação com o objeto é proposto em termos teó-ricos, não pode receber solução teoricamente satisfató-ria do conhecimento em geral, admitindo como ponto patirmos da separação entre a representação subjetiva doobjeto e o objeto, seremos levados ou ao dogmatismo ouao relativismo. A diferença entre essas duas atitudesconsistiria simplesmente em que a primeira acredita tér

encontrado um sinal adequado da representação objeti-va, ao passo que a segunda procura em vão esse sinal e,não o encontrando, é levada a admitir a relatividade doconhecimento. Sem dúvida, o filósofo imaginou muitasvezes sair do dilema e julgou ter demonstrado os víciosdos dogmatismos que o precederam e as insuficiênciasda crítica cética. Se continua, no entanto, a propor oproblema nesses termos está condenado a cair sob os

golpes de um novo ceticismo: que prova poderá jamaisapresentar de que a representação que julga verdadeirao é efetivamente, que sua certeza é também verdade,

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uma vez que se situa no nível de uma representação que,como tal, permanece presa necessariamente ao sujeito?Será necessário dar algum golpe de força, apelar parao consensus , para Deus, ou para uma convergência depensamentos; precisará ascender ao transcendental, cons-tituirse ele próprio em i n t e l l e c t u s a r c h e t y p o s   o qual,

por graça ou habilidade, soube, ao mesmo tempo, per-manecer representação e juiz da qualidade da repre-sentação. Será sempre um cético ou um historiador quemostrará, com todo direito, que o sujeito permaneceuempírico e que suas evidências, longe de apreender oAbsoluto, ou as condições do Absoluto, dependem deuma situação empírica: preocupações individuais, at-mosfera ideológica, problemática de conjunto em deter-

minado momento...De fato, a luta entre o dogmatismo e o ceticismo

leva a formular o problema transcendental, a perguntarem que condições é possível um conhecimento efetivo.Esse problema, no entanto, por maior profundidade queo pensamento lhe atribua, permanece tributário da di-ficuldade que o suscitou; tratase sempre de perguntar

sobre o direito que tem um sujeito de conceber a reali-dade tal como a concebe, de conhecêla como a conhe-ce. Cada um afirmará que apreende as coisas em si mes-mas, que as vê “em pessoa” , que realizou os aprofun-damentos últimos: não poderá, diante dos céticos, dostécnicos da vida quotidiana, senão apelar para o teste-munho daqueles que partilham a mesma graça. Assim,dois pensadores de grande profundidade esforçaramse,

no século XX, em superar a problemática gnosiológicatradicional. Bergson e Husserl, em óticas muito diferen-tes, recusaram essa separação da representação subje-tiva e do objeto. O primeiro negou que seja necessáriopartir da noção de uma co i sa exterior e estranha da qualseria preciso forjar a representação adequada; o segun-do afastou a idéia de que o sujeito seja a sede de repre-

sentações passivas que seriam cópias do objeto. Situamse, um e outro, em uma perspectiva mais elaborada emque a dualidade do refletido e do refletor tornase ab

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surda, em que o dado já é dado como apto a ser conhe-cido tal qual é, contanto que se operem as reduções con-cebíveis e que se apreenda o que é v e r d a d e i r am e n t e   dado . No mundo das imagens de Ma tér i a e Mem ór i a , naLeben swe l t  husserliana, o que se apresenta é mostradocomo se exibindo em sua verdade e não podendo mos-

trarse senão assim. A oposição do subjetivo e do obje-tivo, no nível do próprio conhecer, é abolida. A crítica(cética, antifilosófica ou marxista) voltará à carga, ecom razão ao que parece: dirá que essa oposição já ha-via sido superada por Hegel e de modo muito mais pro-fundo e satisfatório; procurará mostrar, em todo caso,que a supressão é operada precisamente porque se abo-liu totalmente o estatuto da objetividade e o problema

de seu controle. Toda licença não é dada doravante aopensador de propor como dado autêntico o que ele pró-prio experimenta como sendo autêntico? Essa problemá-tica interna da história do pensamento filosófico, a daa d a eq u a t i o r ei et i n t e l l ec t u s, não é resolvida somenteporque se suprimiu da questão a co isa, reduzindoa a es-se vivido do qual cada um terá o direito de afirmar queé o único efetivo. Restará como prova apenas o assenti-mento dos homens de pensamento, convencidos de quese trata, no caso, da “esfera primordial” , do “dado ime-diato” : abremse, assim, as portas a todas as ironias deCálicles, e a preocupação de salvar o homem da aberra-ção empírica o entrega sem defesa à contingência deuma opinião que acredita encontrar, na própria pru-dência e sutileza, o sinal de que é saber.

Não parece, pois, seja qual for o gênio dos pensado-res, que uma solução ao problema da prova da verdadee de um enunciado possa ser descoberta no nível da teo-ria do conhecimento, e o marxismo, aceitando situar adiscussão nesse nível, colocase numa posição insustentá-vel. O materialismo que ele adota o leva a situarse naspiores perspectivas da ontologia realista: precisará per-

guntar como o sujeito, situado materialmente, quer di-zer, segundo o marxismo, biológica, histórica e indivi-dualmente pode forjar uma representação objetiva de tal

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realidade que aí está, e isso a partir do conteúdo inicialda sensação. Deverá, acumulando os materiais de umaenciclopédia, preencher o imenso vazio existente entrea relação imediata com o objeto e o conhecimento ela-borado, proporcionado pelas ciências experimentais. Acada momento de sua tarefa, verá surgir o dilema do

dogmatismo e do relativismo. Se admite, com efeito, quea relação fundamental com o objeto é de ordem subje-tiva e sustenta, por outro lado, que todo sujeito se achasituado materialmente num contexto histórico que de-termina o conteúdo desse conhecimento, aproximarseáde Protágoras e de todo humanismo cético. Só por umgolpe de força poderá defender sua opção pelos resul-tados das disciplinas positivas, afirmando assim sua

crença; ao homem religioso, ao poeta, oporá pura e sim-plesmente a opinião segundo a qual a ph y s i s , para ele,é idêntica ao mundo físico. E não poderá apresentar ou-tros argumentos além de sua convicção, a menos quemascare a fragilidade de sua certeza colecionando ele-mentos das ciências experimentais recolhidos aqui e ali.Mais ainda, estará desarmado desde o momento em quea questão do fundamento do que afirma lhe for pro-

posta: só pela fuga escapará do problema transcen-dental.

A ruptura do marxismo com a filosofia situase emnível mais profundo: não se trata apenas de oporuma teoria do conhecimento materialista a uma gnosiologia idealista, nem se trata de contradizer a onto-logia espiritualista com uma ontologia da materialida-de. Deterse nesse ponto corresponderia a situarse noestágio de uma polêmica infrutífera. A revolução queMarx operou no pensamento situase, devemos repetir,no nível da concepção do homem e das tarefas do pen-samento: ao homem abstrato da filosofia que, no en-tanto, chegou à concepção mais profunda e mais elabo-rada, importa substituir a consideração do homem emsua realidade empírica, como ser prático e histórico. Ésomente a partir dessa radical mudança de ótica que sepode compreender o chamado “cientismo” marxista. As-sim como é vão, a menos que nos resignemos a defen

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der apenas uma opinião, fazsr propaganda, querer trans-formar o materialismo em filosofia geral do Ser, assimtambém é falacioso pretender fundar a assunção mar-xista dos resultados das ciências positivas em uma teo-ria geral do conhecimento.

Se o marxismo identifica a p h y s i s  e o mundo físi-

co, se declara descobrir a verdade do mundo percebidoe vivido nos enunciados das disciplinas experimentais,não é em virtude de uma postulação, mas porque veri-fica um f a t o :   a prática humana, atualmente, em seuaspecto fundamental, enquanto produção e reproduçãodos meios de existência, não só pressupõe a materiali-dade “exterior” , no sentido em que acabamos de defi-nir a exterioridade, mas considera fato incontestável que

esse dado possa justificarse por uma análise objetiva,proporcionada pelas ciências positivas. A atividade maisimportante do homem, aquelas graças à qual se man-tém em vida, desenvolve sua humanidade aumentandoseu poder real e se liberta da alienação, realizase, nasociedade industrial, considerando decisivos os enuncia-dos pelas pesquisas experimentais. O reconhecimento davalidade da ciência é constante na prática: não exige,

portanto, demonstração alguma; impõese ao mesmo tí-tulo que se impõe o fato da civilização industrial. A fá-brica, onde os homens criam os bens e os instrumentosgraças aos quais aumenta o império da humanidade, on-de se prepara, graças à invenção sempre renovada, a co-lonização sempre mais ampla e mais profunda do dado,está ligada — materialmente ligada — ao centro de es-tudos e ao laboratório. A pesquisa científica manifesta

se, atualmente, como aquilo por intermédio do que umainteligibilidade é dada, de tal ordem que orienta e ilu-mina a ação sensível do homem à procura da satisfa-ção. A verdadeira questão não é portanto por que o teó-rico marxista “ acredita” na ciência e nos seus resulta-dos? mas “por que o homem foi levado a reconhecer, emcerto modo de considerar a natureza que, após tersemanifestado confusa e parcialmente em certas épocase em setores limitados, desenvolvese a partir do Renas-cimento e se atualiza plenamente no século XX aquela

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que convém à realização de sua exigência fundamental:a humanização do dado e a libertação satisfatória dasujeição à natureza?” Tratase, em suma, de compreen-der por que uma ligação de fato se estabelece entre o de-senvolvimento das ciências positivas e o crescimento dopoder prático do homem.

A resposta a essa questão não poderia situarse emuma perspectiva teórica: seria voltar, indiretamente, àótica da teoria do conhecimento perguntar, em virtudede que natureza onitemporal do Espírito e do objeto,o racionalismo científico é o modo geral de apreensãocorreta e eficaz do dado geral. É a partir do estudo his-tórico da prática do objeto e da situação social a ele li-gada que pode tornarse inteligível a conexão, de fato

existente, entre essa prática e a constituição de uma pes-quisa experimental sistemática. O problema é de gran-de dificuldade: sua solução implicaria que se conseguis-se mostrar de que modo, a partir de um vagaroso cres-cimento, lentamente preparado, das forças produtivas,descobremse para o homem possibilidades práticas ra-dicalmente novas, acarretando ao mesmo tempo a for-mação de uma classe consciente pelo fato de que seutransformarse está ligado ao enriquecimento do poderhumano empírico, o aparecimento de uma técnica deinvestigação de que Bacon e Galileu fixaram as normase o surgimento de uma concepção revolucionária danatureza que é justo chamar, de acordo com a admi-rável análise de HusserP, de gálileucartesiana. Devería-mos mostrar, também, como o transformarse das for-ças produtivas e das relações sociais após o Renasci-mento permitiu a atualização e a universalização dostemas teóricos e práticos descobertos nos séculos XVe XVI. Somente estudos históricos rigorosos são capa-zes de tornar clara a ligação existente entre ciência e

9 A crise cias ciências européias e a fenomenologia transcendental, 

uma introdução à filosofia fenomenológica;  cf. as páginas traduzidas nosEtudes piliilosophiques, n° 2 e n° 34, abriljunho e julhodezembro de1949 c as análises de  J. Wa h l , em seu curso sobre a Crise   (CDU, 1957).

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técnica científica, de um lado, e a prática do objeto,de outro, em determinado momento da história da hu-manidade. Não se trata de considerar aqui tal proble-ma: tratase apenas de compreender, nesse estágio dapresente pesquisa, por que razão o marxismo decide en-campar a ciência experimental como portadora da mais

profunda inteligibilidade.Essa razão encontrase na conversão revolucioná-ria operada por Marx: considerar o homem em sua prá-tica real, em sua relação efetiva com o dado. Se é preci-so privilegiar os enunciados científicos em relação àslições do sentir, da consciência que o sujeito tem de simesmo, da impressão vivida, da reflexão transcenden-tal, é porque a prática lhes confere esse privilégio. A su-

perioridade que apresentam decorre apenas do fato deque a prática da sociedade industrial, da qual são o mo-mento teórico, revelase superior às práticas e às con-cepções da relação com o objeto que até então surgiramna história humana. Sua validade deriva de um fatohistórico: o fato de que, na civilização industrial, a hu-manidade se encontra na posse dos instrumentos graçasaos quais é capaz de resolver um problema crucial que

a obcecava, o da sujeição à natureza. Nesse sentido, talvalidade pode ser considerada absoluta, na medida emque é pouco concebível que um tipo de conhecimento di-ferente do conhecimento experimental proporcione umainteligibilidade mais profunda; assim sendo, é poucoprovável que outro tipo de sociedade, além da sociedadeindustrial, possa atualmente proporcionar ao homem asatisfação empírica universal, levandose em conta o fa-to de que a sociedade industrial atualmente existe e es-tá longe de ter resolvido os problemas de sua organiza-ção.

Sem dúvida, é possível lamentar essa preeminênciada sociedade industrial e do reconhecimento da validadedas ciências que ela implica: podese desejar um retor-no ao tempo — mítico ou real? — em que o homem viviana presença da p h y s i s  e se entregava à simplicidade darelação imediata com o dado; é sempre possível sonharcom a ingenuidade da infância (ou da pseudoinfância)

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e erigir esse sonho em saber ou esperança. Resta que asociedade industrial existe com seus problemas doloro-sos, seu transformarse, as possibilidades que oferece eas lutas que provoca. Na verdade, privilegiar o vivido emrelação à ciência, é, atualmente, abolir, no pensamentoa problemática real proposta pela realidade contempo-

rânea ou, na melhor das hipóteses, apresentar para essaproblemática uma solução que apela para o acaso oupara a boa vontade; é resolverse, por preocupação deconforto, a ignorar o que é ou prepararse, mais corajo-samente, para “ atravessar o Ródano” . Ao contrário, ad-mitir o valor absoluto do racionalismo científico, no sen-tido que acabamos de definir, é apenas reconhecer o fa-to que está presente na existência quotidiana de cada

um, que a penetra inteiramente e que, aliás, é vividoefetivamente pelo filósofo desde o momento em que apa-nha sua canetatinteiro e liga o interruptor de sua lâm-pada elétrica: a ciência positiva como momento da prá-tica da civilização contemporânea.

Verificase, assim, que o problema da significaçãoque convém atribuir aos enunciados da geologia, da pa-leontologia, da cosmologia científica, revelase, ao mes-

mo tempo, secundário e resolvido. É importante, no en-tanto, observar que a formulação desses enunciados érelevante na medida em que implica ou não um retornoàs perspectivas caducas da ontologia. Já observamos queenunciados como: “a matéria existe antes do Espírito”ou então: “a materialidade é cronologicamente ante-rior à consciência” encerram ciladas que levam direta-mente ao dogmatismo. Se devemos levar a sério a ciên-

cia, importa fazêlo seriamente e não generalizar seusresultados por extrapolações terminológicas. Estabele-ceram, a geologia, a paleontologia, a cosmologia cientí-fica, que, anteriormente à existência do homem, houveum devenir natural efetivo desenvolvendose de acor-do com leis, que é possível observar regendo a naturezaatual e produzindo organizações materiais cada vez maiselaboradas; que essa história natural não implica, de

modo algum, a aceitação de uma finalidade que a tenhaorientado em seu desenrolar, nem qualquer criação ex

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tranatural do homem cuja gênese, a partir das forma-ções animais, é, senão conhecida, em suas minúcias, aomenos claramente estabelecida; que se exige mesmo da-queles que sustentam a necessidade, seja de uma cria-ção ex n i h i l o  da natureza, seja uma criação extranatural do homem, de provar cientificamente sua afirmação,

o que não é de modo algum exigível dos cientistas quese apóiam em observações e experiências controladas.Em outros termos e ainda mais banalmente, o que pro-va experimentalmente a ciência, é que as perspectivasde que nos permitiremos chamar de ontologia teológi-ca fundamse num tipo de experiência limitada e indi-vidual ou em uma simples afirmação que contradiz edestrói a técnica experimental. O absurdo, — a ausên-

cia de significação, atualmente ao nível da civilizaçãoindustrial — das afirmações segundo as quais ex i s t e  uma realidade espiritual transcendente ao dado e que oengendrou, é apenas isso que provam a geologia, a pa-leontologia e a cosmologia; essas disciplinas invertem oproblema tradicional: era de praxe reclamar do ateísmoque provasse a não existência de Deus; com mais mode-ração e liberalismo, essas disciplinas verificam que nada

manifesta tal exigência, que o fato de nela crer é umaopinião, mas que seriam necessárias outras justificações,além de sentimentos ou de simples afirmações, para eri-gila em verdade.

Às múltiplas crenças que podem suscitar as incli-nações de cada um, às infelicidades individuais, às sobrevivências sociais, as ciências positivas substituem fa-tos controláveis e pedem que nunca se vá além do quepode ser controlado; ao irracionalismo das preferências,opõem, não uma racionalidade abstrata e, como tal,constantemente posta em questão pela vida quotidia-na, mas um racionalismo aplicado10: continuam, em su-

10 Não é por acaso que nos ocorre uma expressão que é o título deuma obra de G . Bachelard; a obra epistemológica de G. Bachelard

parece constituir uma análise objetiva da prática científica contem-porânea além das oposições de escola entre “ materialismo” e “ idea-lismo”.

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ma, no que se refere aos diferentes tipos de objetos quese apresentam, a superação efetiva das do x o i   diversase contraditórias, capazes de desenvolverse. O programada ontologia tradicional é realizado positivamente poressas ciências, e não poderia haver outro conteúdo parauma teoria de conjunto da natureza além do sistema dos

resultados confirmados que chegaram a estabelecer. Nãohá pois outra prova da existência de um caráter atri-buído à realidade em geral senão a que se pode extrairdos resultados da experimentação científica, dentro doslimites em que essa experimentação se impõe.

É nessa perspectiva que convém formular a famosaquestão: há uma dialética da natureza? Vimos, a esserespeito, em que confusão se travava a polêmica do ma-

terialismo e do antimaterialismo. Este sustentava queestá implícita na noção de dialética a idéia de negatividade a qual, por definição, é estranha à natureza, cujosprocessos se efetuam no seio de uma plena positividade,e concluía que a dialética é introduzida na natureza peloolhar humano; o materialismo, em resposta, multipli-cava os exemplos dos fatos científicos que implicam con-tradições, oposições, lutas internas. Nesse nível, é claroque nenhuma solução é mais legítima do que a outra. Aambigüidade decorre do fato de que as duas partes si-tuamse em óticas diferentes. O antimaterialismo colo-case na perspectiva de um Cog i t o , em que a experiên-cia fundamental é a do vivido e onde o mundo físicoaparece como uma construção a partir desse vivido précientífico: é evidente, então, que todo fato científico re

reconhecido como dialético deve receber esse caráter dopróprio olhar que o reconheceu, constituiu ou construiu.O materialismo marxista, ao contrário, sustenta que nãose trata, de modo algum, de fundar a validade das ciên-cias experimentais, que são legitimadas pela prática dasociedade industrial: o que lhe permitiria afirmar quehá uma dialética dá natureza é o fato de que o mundofísico, experimentalmente, manifestase como tal: é con-veniente, para compreender a posição marxista, reali-zar o desvio indispensável e tornar clara a necessidade

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da passagem da filosofia ao racionalismo, tal como foidefinido por Marx.

Ainda assim, mesmo que se tenha aceito essa tran-sição como legítima e se considere necessária a supera-ção da filosofia, a noção de dialética da natureza é pou-co clara. Constitui, com feito, uma determinação ge-

ral referente à realidade natural: a esse título, signi-fica, em primeiro lugar, que há um devenir da naturezaconsiderada em seu conjunto, que há uma história na-tural e que as leis universais que a governam fazemsurgir assim formações originais, mais ricas e mais ela-boradas do que as formações anteriores. Opõese, por-tanto, nesse sentido limitado, ao substancialismo dos fi-lósofos criacionistas que consideram a natureza como

a soma de entidades separadas que repetem invariavel-mente seus traços característicos. Além disso, na idéiade uma dialética da natureza está implícito o fato deque o devenir é dramático, que opera, não como progres-so linear, mas como luta, que o novo resulta da supera-ção do antigo e que a realidade deve ser apreendida comosistema complexo e movediço de tensões, oposições, con-flitos. Parece, a esse respeito, que os resultados da físi-

ca em geral, confirmam semelhante ótica: o que se sa-be atualmente sobre a formação do sistema solar, a his-tória da terra, a gênese vagarosa da animalidade, mos-tra que devemos rejeitar tanto a perspectiva criacionista quanto a do progresso linear por acúmulo. Tratase,porém, de uma verificação que só é legítima porque seapóia em enunciados experimentais confirmados; não éde modo algum uma demonstração que deduzisse o fatodialético do conceito da natureza. Orà, parece que pen-sadores marxistas — caindo na cilada da ontologia — pretenderam, a partir dessas observações, e das que sefizeram no campo da história humana, fazer generaliza-ções e submeter assim as pesquisas científicas a precei-tos metodológicos que lhes seriam impostos pela n a t u r e  za do se r . Essa extensão parece totalmente abusiva:quando o teórico marxista pede ao historiador que voltesua atenção para um fato que se mostra decisivo na es-trutura da sociedade atual, o da luta de classes, propõe

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sem dúvida uma concepção do devenir humano; mas,de um lado, demonstra por que razões lhe parece lícitoconsiderar as revelações trazidas pela sociedade indus-trial princípios de pesquisa válidos para formações his-tóricas anteriores e, por outro lado, a proposição queapresenta só pode ter validade se for confirmada pelo

acontecimento analisado cientificamente. No que se re-fere ao mundo físico, uma demonstração desse tipo é ina-ceitável. O que prova a prática da sociedade industrialé apenas que, a propósito do dado natural, a inteligibi-lidade mais profunda é a proporcionada pelo conjuntodas ciências experimentais. Por isso mesmo, o encargode determinar a estrutura do mundo físico é integral-mente confiado a essas ciências: não há outra n a t u r e z a   

d o ser além da que é descoberta pela experimentação. Toda extrapolação é perigosa e conduz ao formalismo:leva — e o desenvolvimento da ontologia materialista apartir da D ia lét i ca d a n a t u r eza de Engels o mostra — a procurar, a todo preço, nos enunciados científicos, for-mulações dialéticas, a atribuir arbitrariamente impor-tância maior aos que se conformam com o esquema ló-gico e, finalmente, a interpretar a própria dialética de

maneiras diversas e igualmente contingentes. A esse res-peito, as críticas de pormenor do antimaterialismo es-tão plenamente justificadas: vêse mal, por exemplo, quedialética encerra o simbolismo matemático enquantosistema axiomatizado e que relação existe entre a “opo-sição” do pólo positivo e do pólo negativo em eletricida-de e a “contradição” do ácido e da bese nos aminoácidos.Que seja necessário, contra o criacionismo, contra o pro

videncialismo teológico ou naturalista, defender, fun-dandose constantemente nos resultados efetivos obti-dos, a idéia de um devenir dramático da realidade na-tural, isso parece pressuposto pelo novo racionalismo doqual o marxismo se tornou o promotor; é cair na “ilu-são transcendental” pretender atribuir antecipadamen-te às regiões objetivas que se oferecem à pesquisa cien-tífica um caráter dialético do qual nenhuma definição

clara, aliás, foi até agora apresentada.Assim, o materialismo dialético, contanto que re-

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nuncie à ambigüidade, que se recuse a constituirse, deacordo com os hábitos do pensamento filosófico, em on-tologia ou em teoria do conhecimento, que aceite a ta-refa que lhe é atualmente atribuída, enquanto elementode luta pela instauração de uma prática visando a sa-tisfação humana empiricamente universal: ser a teoria

da passagem do racionalismo filosófico abstrato ao racionalismo concreto, não passa, no conteúdo, da respos-ta, a um tempo constante e renovada, aos argumentosda paixão individual e do interesse de classe e às cons-truções sérias daqueles que, empolgados pela beleza epela grandeza da tradição filosófica, desprezam a reve-lação que, sobre a realidade humana, trouxeram a revo-lução industrial e as transformações políticas que a

acompanharam. Como tal, a propósito do dado físico,em particular, não está de modo algum obrigado a apre-sentar uma concepção geral e sistemática da natureza:sua missão consiste apenas em f a z er v a l e r  os resultadosexperimentais confirmados contra as elaborações abs-tratas; em sua perspectiva, o físico não pode estar er-rado contra o filósofo, porque precisamente o materia-lismo significa, antes de mais nada, que os fatos cienti-

ficamente estabelecidos jamais estão errados. Quanto àidéia de fazer da teoria marxista uma “suma” dos resul-tados experimentais, de defender a ciência vulgarizan-doa e pretendendo sistematizála tirando as conseqüên-cias de tal sistematização, semelhante idéia perdese nainsipidez e na ingenuidade. As ciências dispõem de su-ficientes armas teóricas e práticas para revelar seus re-sultados: o que resta estabelecer, é por que se tornou

atualmente necessário, pelas mesmas razões que deter-minaram outrora a decisão de filosofar, considerar asciências e a pesquisa experimental únicas capazes de tra-zer a verdadeira inteligibilidade.

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Vemos, pois, o que significa o m a t e r i a l i s m o  da con-cepção marxista: não se trata, de modo algum, para es-

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sa concepção, de construir uma nova ontologia, de apre-sentar uma nova teoria do conhecimento, e, ainda me-nos, de constituirse como uma enciclopédia das ciên-cias. O que visa, mostrando porque o visa, é mostrarque a humanidade não pode realizar sua exigência fun-damental: a da satisfação empírica universal, implican-

do o acréscimo do poder do homem sobre a natureza, aimultiplicações das necessidades humanas, a possibilida-de de satisfazêlas e a abolição definitiva da violênciahistórica, senão reconhecendose ela própria, em seuserfundamental, como materialidade ativa lutando con-tra um mundo material cuja inteligibilidade é doravan-te proporcionada pelas ciências experimentais. Essademonstração, renovada em função da situação ideoló-

gica e dos acontecimentos históricos, constitui a tarefahistórica do marxismo. Com efeito, na atual fase histó-rica, no momento em que a sociedade industrial procurao caminho que lhe permitirá deixar de ser um regime deexploração, multiplicamse as vias oferecidas à paixão,à ilusão, e ao fanatismo. Essa época vê crescer a violên-cia. Alguns pregam a conversão moral; as filosofias abs-tratas preconizam soluções ideais. O marxismo, como ele-

mento objetivo na luta pela satisfação, empenhase, emseu aspecto teórico, na análise científica dessa situaçãodramática: tem por missão opor às doutrinas da paixãoe do interesse, às construções imaginárias, às contrafa-ções dogmáticas, a própria realidade no conjunto de suasdeterminações, tal como lhe é possível descobrir apoian-dose nos princípios de pesquisa que lhe forneceram Marxe seus continuadores.

A esse respeito, parece que as construções ontoló-gicas, os sistemas da natureza, as teorias do homem e desua consciência, são outras tantas maneiras de evitara questão essencial e desviar a pesquisa das verdadeirastarefas da atualidade. O teórico marxista deve resignarse; encontrase no momento da transição e a teoria quepode fazer é a da transição. É inútil querer imaginar oque poderá ser a reflexão teórica quando for instauradaa sociedade empiricamente satisfeita. Atualmente, im-porta — com exclusão das tarefas de cultura e, em par-

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ticular, dos trabalhos históricos graças aos quais a gê-nese dos atuais modos de pensar e de agir pode tornarseinteligível — garantir à humanidade um conhecimentotão claro e completo quanto possível de sua situação. Aobra essencial de Marx é O Ca p i t a l , a de Lênin não éMa t er i a l i sm o e em p i r o cr i t i c i sm o , que um dia deverá ser

considerada medíocre, mas o Est a d o e a r evol u ção ouQu e f a z er ?  Essa teoria da passagem pode ser desenvol-vida em vários níveis: pode tratarse de tentar tornarclara a necessidade teórica da passagem do racionalismo filosófico abstrato à concepção defendida pelo mar-xismo; o presente trabalho não tinha outro objeto e suainsuficiência, suas obscuridades, mostram à saciedadeque a empresa deve ser constantemente aprofundada e

ampliada; é possível, também, que se trate de análisesmais precisas a respeito das circunstâncias históricas dapassagem: tarefas de considerável amplitude apresen-tamse então ao teórico, tarefas essas que suscitam pro-blemas universais concretos em substituição aos que ofilósofo costuma formular abstratamente. Qualquer enu-meração seria irrisória: digamos, no entanto, que a pro-blemática atual da humanidade revela como essenciais

 — não a relação da alma e do corpo, a existência de Deus,o fato da dialética no interior de tal setor da química oua realidade de um segundo sistema de sinalização —,mas questões como, por exemplo, a da função da teoriarevolucionária na transição para a sociedade industrialcorretamente organizada, da relação dessa teoria comas diversas forças sociais em determinado país, das pos-sibilidades apresentadas pela organização da Sociedadecivil que permita, no entanto, uma “deterioração” doEstado, da compreensão e da orientação das lutas em-preendidas pelos povos das regiões subdesenvolvidas, dosentido que convém atribuir, de um ponto de vista cien-tífico, aos combates dos explorados de acordo com as si-tuações particulares em que se encontram.

Nisso precisamente, e apenas nisso, pode consistira “posição de partido” . Essa posição, em ultima análise,reduzse a salientar a importância de certos tipos de pro-blemas, a afastar como vãs ou ilusórias as interrogações

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abstratas, a recusar as soluções que não impliquem apossibilidade de solução efetiva no nível da existênciaquotidiana, e isso sem jamais prejulgar respostas que sóa análise objetiva pode impor. É claro que tal tomadade posição diz respeito especialmente às ciências huma-nas cujo estatuto de objetividade deve procurar estabe-

lecer. Parece, nesse sentido, que a revolução marxistanesse domínio — revolução continuada não só pelos se-guidores de Marx, mas também por cientistas não mar-xistas, etnólogos, sociólogos, economistas, médicos, geó-grafos, historiadores — pode ser comparada à que ope-raram, no domínio das ciências da natureza, os filósofos,os experimentadores e os matemáticos nos séculos XVIe XVII. Esses fixaram as condições graças às quais tor-

navase possível atingir o dado natural em seus caracte-res próprios, de tornar inteligível o sistema dos fenôme-nos, de exprimilo por um conjunto organizado de leise de permitir o desenvolvimento das técnicas de apro-priação. De maneira análoga, admitindo como necessá-rio considerar o homem em sua realidade empírica, con-siderar seu devenir como devenir da prática, o marxis-mo fixa as condições de desenvolvimento das disciplinas

objetivas graças às quais pode tornarse inteligível tan-to quanto possível em determinada época, a situação, re-solvendo realmente as questões vitais, por ela apresenta-das. Tratase, pois, de “ tomar partido” pela objetividadenão só admitindo como válidos apenas os fatos e osacontecimentos estabelecidos e controlados pelas técni-cas adequadas, mas ainda de esclarecer que tipos deproblemas e que maneira de considerálos permitem es-

perar a descoberta das estruturas profundas.da reali-dade humana.

Aquilo a que nos convida a concepção marxista — tendo mostrado, aliás, por que razões culturais e causashistóricas: o malogro do racionalismo abstrato da filo-sofia e a constituição da sociedade industrial —, é pona considerar como essencial certo estilo de problemáti-ca teórica, o que exprime e reflete, no nível da elabora-ção conceituai, a problemática real da humanidade. To-mar partido significa, desde então, apreender o fato de

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que a teoria, para constituirse em teoria que respondaao que é exigido da teoria, deve ser, antes de mais nada,teoria da prática humana efetiva de produção e de re-produção dos meios de existência.

Essa “prescrição legitimada” não poderia entrar emmais minúcias metodológicas: pretende apenas fazer

valer — no estado atual da cultura — a necessidade dapassagem do homemabstrato da filosofia (e tambémda economia liberal, da sociologia positivista, da histó-ria espiritualista) ao homem real, definido como, antesde tudo, produtor e reprodutor de seus meios de exis-tência no seio de uma sociedade humana. Deve entre-gar — e é o simples bom senso que o aconselha — .ao gê-nio de cada pensador e à particularidade de cada situa-

ção o cuidado da descoberta: não lhe cabe impor, entreoutros, um método do tipo daqueles freqüentemente de-senvolvidos pelas pedagogias marxistas, métodos que de-sembocam — a pretexto de dialética — em um forma-lismo irrisório. Também não poderia antecipar os resul-tados da pesquisa: a experiência da evolução do mar-xismo teórico, nos últimos trinta anos, mostra a que er-ros grosseiros conduzem semelhantes antecipações, subs-

tituindo ao estudo da realidade esquemas previamenteconstruídos, seja por analogia seja por decisão políticasubjetiva. Em outros termos, o partidarismo não con-cerne nem ao método — entendido como conjunto detécnica de investigação —, nem aos resultados que de-veriam ser interpretados desta e não daquela maneira(as questões de método devem ser entregues aos técni-cos e a idéia de uma interpretação dos resultados está

em contradição com a idéia de análise objetiva), mas àconcepção de conjunto que convém adotar quando sepretende apreender a realidade em sua mais completae mais profunda inteligibilidade. Semelhante partidaris-mo só é tomado porque, graças a ele, a teoria pode dei-xar de ser a expressão hábil do interesse ou da paixãoou construção harmoniosa mas ilusória; tal teoria é ca-paz de alcançar o fim implícito na vontade que se achana origem da constituição da própria teoria: a organi-zação de uma vida humana desalienada.

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O fundamento real de tal concepção do exercícioteórico encontrase, como já vimos, na situação históri-ca do homem que pertence à civilização industrial, e éessa mesma situação histórica que explica porque, to-mando o partido da objetividade aprofundada, o “ teó-rico” marxista colocase no ponto de vista do proletaria-

do. Essa expressão, como a de “posição partidária emfilosofia” é, na verdade, profundamente deplorável e in-troduz confusões às quais voltaremos brevemente naslinhas seguintes. Sua significação, no entanto, é menosobscura quando consideramos o movimento de conjun-to, cultural e histórico, que está na raiz da constituiçãodo marxismo. A necessidade para o teórico de situar aproblemática humana em seu nível empírico e a possi-

bilidade que lhe é oferecida de ajustar a aparelhagemconceituai, graças à qual lhe é dado elaborar soluções aum tempo efetivas e universais, tem por origem a mes-ma situação de fato que confere à prática seu estatutoverdadeiro e engendra uma classe social cujo interessea orienta no sentido da realização de uma sociedadena qual o indivíduo seja liberto da sujeição natural e daviolência histórica. O teórico não adota o “ponto de vis-

ta do proletariado” como se adota, após deliberação,uma religião ou como se escolhe ir para a esquerda e nãopara a direita: é sua vontade de alcançar a objetividademais profunda em relação à realidade humana que o le-va a considerar particularmente importantes as posi-ções adotadas por aqueles cujo lugar na sociedade indus-trial predispõe a lutar contra todos os obstáculos histó-ricos que se antepõem à realização da sociedade univer-sal. Assim, de um lado, o teórico que reconheceu comonecessária a passagem à concepção do homem definidapor Marx e as organizações revolucionárias proletárias,são aliados “naturais” (deveríamos dizer: históricos) e,por outro lado, o teórico, em sua pesquisa, é levado adedicar especial atenção às lutas, às palavras de ordemdessas organizações na medida mesma em que travamo mesmo combate que ele.

Não é o momento de mostrar de que modo o conhe-cimento dessa conjunção de fato acarretou a constitui-

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ção de partidos revolucionários no seio dos quais o conironto dos resultados adquiridos pela análise objetivados fatos e a situação histórica, em determinado momen-to das diversas forças sociais empenhadas na batalhapela abolição da sociedade de classes tem por fim a fixa-ção de uma linha estratégica e tática graças à qual a

passagem da sociedade industrial de seu nível capitalis-ta a seu nível socialista poderia ser efetuada em condi-ções mais humanas, em condições menos dolorosas paraos indivíduos. Também não é o momento de analisar osprocessos históricos pelos quais as falsificações teóricasdo marxismo — de que demos alguns breves exemplos — provocaram erros graves relativos à organização do par-tido revolucionário e permitiram a determinação de li-

nhas políticas erradas que tornaram mais difícil ainda apassagem ao socialismo e levaram a recorrer a violênciasinúteis.

O que é importante assinalar, no entanto, porquese trata de uma questão propriamente teórica, são asinterpretações falsas suscitadas pela noção de “posiçãode partido”. Já no primeiro capítulo, indicamos que ofundamento do materialismo não se pode encontrar nem

numa intuição moralizante, nem, tampouco, numa con-fiança sem limites concedida ao exercício teórico comotal. A digressão que fizemos permite compreender me-lhor o erro freqüente que se acha na origem dessas duasinterpretações opostas. O “subjetivismo de classe” e oobjetivismo — que nos permitam assim designar provi-soriamente a atitude de acordo com a qual somente areflexão teórica permite a introdução da verdade — su-põem um e outro que há uma escolha a fazer; o primei-ro escolhe o marxismo porque “reflete” o “ponto de vis-ta do proletariado” ; o segundo o adota porque é verda-deiro. Nenhum dos dois, porém, prova, de modo algum,porque se deve escolher o proletariado, nem porque omarxismo é verdadeiro. Um admite, implicitamente, umamística do operário, o outro, e devemos salientar queesse erro é infinitamente menos grave em suas conse-qüências teóricas e práticas do que o precedente, quehá uma espécie de objetividade ahistórica que emana-

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ria do emprego do conceito em simesmo. Aquele se des-prende do relativismo histórico por um golpe de forçaefetivo — a consciência operária enquanto tal é sábia

 — este, libertase por uma referência ao poder ahistórico do intelecto. Nos dois casos, é desconhecido o alcan-ce propriamente científico de obras como o O Cap i t a l   

e O Im p er i a l i sm o , estág i o su p r em o d o Ca p i t a l i s m o  : o“objetivismo” esquece que a verdade desses textos resul-ta não do emprego da dialética ou de qualquer concei-to seja qual for, mas do fato de que repousa em umaanálise histórica objetiva de situações dadas; o “subjetivismo de classe” afirma — o que é mais perigoso — quesua verdade resulta do fato de que Marx e Lênin dis-seram o que a classe operária pensava. A concepção

marxista é verdadeira: não porque soube — por que mi-lagre? — empregar conceitos adequados, mas porque aprática da sociedade industrial lhe permitiu descobrira perspectiva de acordo com a qual é necessário, quan-do se quer chegar a qualquer resultado teórico ou prá-tico, considerar a realidade humana; é também revolu-cionária porque, de acordo com a admirável expressãode Gramsci, “ a verdade é revolucionária” e todo conhe-

cimento aprofundado da situação é uma arma nas mãosdos que combatem pela liberdade efetiva.

Aparece, assim, claramente o sentido da ligação en-tre a teoria e a prática. A teoria é o elemento objetivoda luta prática da humanidade pela satisfação empíricauniversal porque é a teoria dessa prática. Não há queperguntar o que torna prática a teoria: se a teoria érealmente análise objetiva da situação do homem lu-

tando para sair da sujeição natural e abolir a violênciahistórica, já se constitui como fator objetivo dessa luta.O que faz a verdade de O Cap i t a l , não é nem o desen-volvimento do movimento operário a partir da morte deMarx, nem as vitórias do proletariado mundial, nem aformação de Estados que pretenderam ou pretendemter realizado (parcial ou totalmente) a sociedade semclasses: é a exatidão da descrição que apresentou daprática da sociedade industrial no nível do capitalismomais desenvolvido que conhecia. Porque essa descrição

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era exata e porque, aliás, esse estágio do capitalismo éparticularmente revelador, as leis que descobriu pude-ram fornecer princípios de pesquisa relativos aos dife-rentes níveis da sociedade industrial e auxiliar as lutasoperárias. Em outros termos, as verdades que revelounão esperavam confirmação alguma: porque eram ver-

dadeiras, foram confirmadas, levandose em conta aevolução da sociedade industrial, que Marx não podianem pretendia prever.

Em outros termos ainda, a prova da validade dasanálises de O Ca p i t a i   encontrase não no século XX,mas no século XIX. E, se os estudos relativos à socie-dade contemporânea confirmam em grande parte osde Marx sobre o mundo capitalista, é porque esse mun-

do constitui um momento privilegiado que salienta ostraços fundamentais da civilização industrial e mani-festa, ao mesmo tempo, as contradições e as forças so-ciais reais que provocarão seu pleno desenvolvimento.A objurgatória dirigida aos filósofos: “de que serve oque vocês fazem?", não é marxista. A única prescri-ção que um teórico pode permitirse formular, é pedirque lhe digam a verdade e toda a verdade, sem deterse

no caminho, sem limitarse ao homem que pensa, masdizendo também e principalmente o que se refere aohomem em luta contra a necessidade, contra a violên-cia histórica, contra as estruturas econômicas, políticase sociais que o mantêm na alienação.

As observações que acabamos de fazer e as queapresentamos no capítulo precedente tornam enfim

sem objeto, ao que parece, as discussões que se trava-ram entre as filosofias da subjetividade e a interpre-tação ontológica do marxismo. A crítica antimaterialista acusava o materialismo histórico de conceber odevenir humano como submetido a um determinismomais complexo, análogo, no entanto, em sua essência,ao determinismo físico, de considerar a relação da si-tuação e do ato como uma relação de causa e efeito, em

suma, de negar a função da subjetividade e desconhe-cer a liberdade humana. Insistia, além disso, numa

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contradição flagrante que lhe parecia perceber: de umlado, como teoria, o materialismo considera o ato ou arepresentação como um p r o d u t o  das circunstâncias, e,de outro, como política, não hesita em formular jul-gamentos morais nem convocar os indivíduos para agirdesta ou daquela maneira; de um lado, postula uma

rigorosa determinação; de outro, supõe uma liberdadede escolha e de decisão. Devemos dizer, desde logo, queessas críticas são plenamente justificadas quando diri-gidas a essa interpretação ontológica do marxismo daqual já salientamos outras insuficiências. Se conside-rarmos (no seio de uma caracterização geral e formalda natureza humana) a relação das “condições de exis-tência” com a “consciência” como determinação causal

simples, somente subterfúgios podem permitir que sereintroduza essa latitude, essa possibilidade de escolher,implícita em todo esforço para convencer os outros. Denada adianta, em particular, duplicar essa causalida-de simples sustentando que a consciência reage ems egu i d a   sobre as condições de existência (pois, ou hámais na consciência determinada do que na situaçãoque a determina — e, nesse caso, não se pode mais

fazer do conteúdo da consciência nem um efeito sim-ples, nem um reflexo — ou bem a consciência é puroreflexo e a “ reação” sobre a situação é então comple-tamente ilusória). De nada serve invocar a dialética deum termo ao outro, se não se define com rigor o sen-tido dessa palavra. De fato, tratase, no caso, de formu-lações que procedem de uma metafísica da naturezahumana estranha ao marxismo.

As análises objetivas, econômicas e históricas, dosteóricos materialistas, permitem compreender o quesignificam as expressões famosas segundo as quais “ascondições de existência determinam a consciência” .Não querem, evidentemente, dizer que em certo momen-to os pensamentos e os atos de tal pessoa são determi-nados — no sentido físico do termo — pela situaçãoobjetiva na qual essa pessoa se encontra: podese sus-tentar, sem dúvida, tal opinião; podese sustentar aopinião oposta e invocar a irredutibilidade do livre ar-

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bítrio. Após as demonstrações dadas por Hegel, após arevolução teórica efetuada por Marx, verificase que estainterrogação: “o homem é ou não livre?” é desprovidade significação, que não chega nem mesmo a ser umainterrogação pois é possível responder a ela de uma oude outra maneira sem que nenhum partido seja capaz

de impor sua verdade. A afirmação de que as condiçõesde existência determinam a consciência significa, maisconcreta e universalmente, que o devenir da humani-dade só pode encontrar sua inteligibilidade profundana consideração do homem em sua realidade empírica,como ser material compelido a resolver — com os ins-trumentos que lhe são dados, as estruturas sociais quelhe são impostas, o grau de saber que lhe é transmi-

tido pelo seu passado, sua situação em relação ao obje-to e aos demais homens, e o horizonte ativo que essasituação implica — questões de ordem vital que dizemrespeito à manutenção, ao desenvolvimento e à perdade seu serempírico. A solução que traz é uma decisãoque emana de si; é sua obra. A metafísica do livrearbítrio diria que é livre. Mas, o que é em si mesmo,a situação objetiva na qual se encontra, os meios à sua

disposição, e o grau de seu saber, lhe são dados. Oque faz “livremente”, o faz p a r a   evitar a morte com  recursos que não dependem dele: a partir daí, sem dú-vida, inventa ou não inventa. A experiência da histó-ria prova que grupos humanos inventaram onde outrossimplesmente receberam, tateando ou repetindo, parasobreviver, as lições aprendidas.

Esse fato da invenção — que aqui preferimos cha-mar de d eci são, para melhor salientar seu caráter deli-berado e ativo — não pode, no entanto, erigirse, comotal, em traço característico do ser humano em geral,traço a partir do qual o devenir se explicaria (ou antesdeixaria de ser explicável). O que é importante — semignorar que se trata de uma invenção, de um a t o  — é aplicarse ao c on t eúdo  das invenções humanas. Aciência histórica parece mostrar — e seu estatuto dedisciplina científica digna de interesse está ligado àpossibilidade de fazêlo — que esse conteúdo, embora

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inventado, é função da situação objetiva em que sur-giu: a solução que tal indivíduo, integrado em tal camada ou classe social, propõe teoricamente ou realizapraticamente, manifestase como inteligível em seu con-teúdo quando a compreendemos como solução des te  indivíduo, desse grupamento social colocado em tal pro-

blemática e vendo seu futuro desenharse de t a l  modo.Nesse sentido, a situação — e esse termo deveria serdefinido em cada caso, de acordo com o que significa:situação particular fechada em si mesma, situação par-ticular aberta à problemática de conjunto da sociedadeou situação particular capaz de confundirse com essaproblemática por um tempo limitado ou por um perío-do mais amplo — determina o ato humano em seu

conteúdo. Já apresentamos, neste trabalho, alguns bre-ves exemplos dessa perspectiva de estudos. O m a t e r i a  l i s m o  histórico consiste, nesse sentido, em substituir ainteligibilidade histórica radical, implícita na idéia deuma liberdade tal que cada um decidiria fazer o quelhe convém ou de pensar e de viver o dado como esco-lheu, a experiência de uma inteligibilidade estabelecidaa partir dessa noção de que o ato, a solução inventada

e, conseqüentemente, o vivido, podem ser apreendidoscomo ato como solução, como vivido implícito em talproblemática vital que pode ser obietivamente estu-dada nelas técnicas Drónrias das ciências humanas. Areferência à realidade humana empírica — como refe-rência a determinado couteúdo da vida em dado mo-mento — permite, desde então, compreender norque talsolução é adotada, tal modo de viver a situação é escolhido. sem que seja necessário por isso negar que essaescolha, cme evS.sa solução seiam invenções devidas à de-cisão dos indivíduos ou dos grupos.

O que o materialismo histórico quer mostrar, é quehá uma inteligibilidade do passado humano, contantoaue façamos referência ao homem como realidade empí-rica e não apenas ao homem como pensamento (ou

f'omo criatura realizando seu destino de ser criado).Não se trata, de modo algum, de negar a funcão dosujeito histórico na história, mas, ao contrário, de con

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siderálo, finalmente, como sujeito histórico, compelidoa  resolver problemas determinados, em situações eperspectivas dadas. Verifica que a análise do complexohistórico lhe permite compreender, por exemplo, por-que, em determinada época, prevalecem soluções nãoinventivas, soluções que “ inventam” repetir o passado

e porque, em outras, decisões surgem que permitem,seja a construção de soluções coerentes, mas imaginá-rias, seja o preparo de uma ação revolucionária. E amelhor prova que pode apresentar da justeza de suaperspectiva, é o fato de seu próprio surgimento. Sabemostrar que esse aparecimento é devido à formação dedeterminada estrutura econômica, social e política.Essa estrutura engendra as condições históricas, as for-

ças sociais anunciando sua supressão e sua realizaçãoe. também, a concepção que é a teoria dessa A u f hébu n a .  Constantino fundou Bizâncio l i v r e m e n t e   ou não? Oimperador, se revivesse, deveria travar duras batalhasfilosóficas para dar a essa pergunta uma resposta sériaque convencesse a todos. O que é certo, é que realizouum a t o , e que, assim agindo, tomou uma d ec i são  queresolvia um problema d a d o , problema que descobria e

apreciava com os elementos de que lhe era d a d o  dispor.

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Muitas questões subsistem. Respondemos, muitasvezes, aos problemas apresentados no primeiro capítu-lo, de modo superficial e insuficiente. Cada uma dasteses propostas, para assumir todo seu valor, deveriaser desenvolvida e justificada por uma análise precisadas obras e dos acontecimentos aos quais só nos foipossível fazer alusão. O que dissemos da lógica da pro-va ou do fundamento no interior do pensamento espe-culativo, da estrutura da sociedade industrial, dos des-

vios e das contrafações que comprometeram o signifi-cado da revolução operada por Marx, todos esses pontosdeveriam ser retomados e esclarecidos por estudos his-

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tóricos. Tais insuficiências e obscuridades são imputá-veis ao autor: são também devidas ao fato que, apesarda abundância das obras inspiradas pelo marxismo, oproblema essencial da realização e da supressão da fi-losofia continua sendo até hoje um domínio inexplora-do; é preciso decidirse a apresentar esboços, mesmo

que apenas para suscitar as críticas graças às quais asolução desses problemas poderá ser definida e apro-fundada. O que desejaríamos, é ter mostrado que talproblema é o problema teórico atualmente importante,que deve ser tratado em seus diversos aspectos e que aelaboração dessa nova concepção das tarefas do pensa-mento pode ajudar muito a tornar menos dramático edoloroso o acontecimento capital do mundo moderno:

a transição da sociedade industrial do estágio capita-lista para o estágio socialista.

O que também desejaríamos, é ter mostrado que anecessidade da superação da filosofia está fundada, nãono desprezo ou subestimação, mas no reconhecimentoda importância histórica e humana da decisão filosó-fica; que o novo modo de pensar que o marxismo seempenha em criar, não só considera essencial a filoso-fia passada, mas também não poderia terse constituí-do sem apoiarse nos resultados decisivos por ela con-quistados; que o “malogro” da filosofia tem como razãoprofunda um fato: a situação histórica do homem du-rante um longo período, que lhe permite conceber aliberdade mas não realizála, perceber a função do pen-samento universal, mas não tornálo prático, propor as

soluções para os problemas da alienação natural e so-cial. mas não agir para que essas soluções se tornemefetivas; que, atualmente, a filosofia, se mantém gra-ças à própria dificuldade da transição para a sociedadeindustrial plenamente bem sucedida. Para o marxismo,a filosofia, como estilo de pensar, repousa numa infe-rência análoga, em sua forma, a que Kant denunciavaa propósito do argumento ontológico: que o pensamen-

to universal da satisfação ou que a satisfação universalpensada implica a realidade da satisfação universal.Contra o particularismo afirmado pelas paixões indivi

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duais, pelas crenças coletivas, pelos interesses dos gru-pos, o filósofo reivindica legitimamente a exigência deuniversalidade, mas considera suficiente ter provado emque condições a universalidade pode ser concebida demodo coerente. Entrega ao acaso, à boa vontade indi-vidual, à graça, à ação divina, o cuidado de realizar um

mundo ou uma sociedade em que cada um — tratasede cada um, de todo homem — possa ser livre, querdizer, capaz de ser si mesmo, de não viver na estranhezae na hostilidade do domínio que habita, de não maistemer a violência histórica. Tratase, pois, na épocahistórica que torna pensável e realizável tal vontade,de efetuar, nos fatos, o que essa época concebeu: umasociedade no seio da qual o indivíduo possa libertarse

da sujeição natural pela satisfação das necessidadesimediatas, existir como homem e não como animal, emque possa querer o que pretende fundamentalmentesem constituirse em adversário e concorrente dos de-mais homens, querer sua própria realização e, simulta-neamente, o reconhecimento dessa realização como hu-mana, em que escape das alternativas perigosas e dolo-rosas: dominar a outrem ou ser dominado (pois domi-

narse é uma ingenuidade orgulhosa ou uma saída fal-sa), ser satisfeito provisoriamente oprimindo e conside-rando constantemente o sobressalto do ser oprimido ouser oprimido sendo infeliz e temendo um acréscimo deopressão.

A negação da filosofia é, assim, a realização de seuobjetivo mais profundo. Importa fazer existir na pró-pria empiria a vida universal concebida pelo filósofo e.para fazêlo, manifestar inicialmente a insuficiênciada solução abstrata, não para recair no desespero, nocinismo ou na habilidade, mas para levar o universal aoseu maior desabrochamento, realizandoo. E essa pró-pria negação só é possível por uma revolução na con-cepção do homem a respeito de si mesmo, de sua pró-pria história e de seu querer: tratase, para permitir

a solução da problemática humana da satisfação, decompreender o homem como sendo i n i c i a l e f u n d am en  t a l m e n t e  realidadematerial, de apreender o problema

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da satisfação como primeiramente a da satisfação em-pírica, de fazer aparecer a raiz da violência histórica,não na natureza maligna da humanidade — subme-tida à p h y s i s  ou ao pecado original — não somente naignorância do verdadeiro Bem, devida à paixão ou aopredomínio dos interesses individuais, mas na estru-

tura real da sociedade. A partir daí, um caminho seabre a desenhar novos horizontes para a pesquisa teó-rica: e esse caminho tornase por si mesmo e nestacondição, o caminho da solução prática das questõesvitais apresentadas ao homem pela sua existência quo-tidiana. Mais precisamente, a teoria se transforma porsi mesma em prática pelo fato de ser a teoria da prá-tica e considerar como questões essencias as que o ho-

mem encontra na sua vida empírica.Nesse sentido, a concepção proposta pelo marxismoé o momento teórico da revolução prática histórica quese opera no mundo contemporâneo: é a teoria da lutapor uma sociedade empiricamente satisfeita e, conse-qüentemente, luta, de fato e enquanto é fiel às suasorigens, com os meios científicos que são os seus, con-tra toda concepção da realidade que desconhece o ser

fundamental do homem e contra a manutenção dequalquer regime, seja qual for o nome com que o bati-zem, que freie ou impeça a passagem da civilizaçãoindustrial para seu estágio de plena realização. Temdiante dos olhos um mundo no qual se apresenta a pos-sibilidade da libertação humana da sujeição natural,em que a violência histórica se mostra claramente comoresultado de certa organização da sociedade, em que os

homens — e, singularmente, uma classe de homens,aqueles que sofrem mais diretamente com essa organi-zação — tomaram consciência desse fato e lutam paraque desapareça tal situação. Sabe a que a sociedadeempiricamente satisfeita é possível; sabe também quenada é definitivamente conquistado, que são numero-sos os riscos de erro, que a passagem pode ser constan-temente adiada ou realizarse com tamanhas violên-

cias que dela a humanidade sairia ferida; em face dessaesperança e desses perigos, atribuise como tarefa guiar

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e organizar, pela análise das situações dadas, essa lutados homens pela liberdade efetiva, esse combate doqual ela própria é um momento.

Encontramos aqui dificuldades, no entanto, quenão seria lícito deixar de mencionar. Parece, de mo-do especial, que um aspecto decisivo não foi menciona-

do e que essa negligência pode constituir uma contes-tação dirimente da tese defendida. O marxismo, comodissemos, realizando a vontade dos filósofos, combate aalienação e, conseqüentemente, luta pela instauração deuma sociedade universal empiricamente satisfeita. Nãohaverá, nessa dedução, uma postulação ilegítima? Nãosupomos, aqui, implicitamente, porque nos fundamen-tamos em obras filosóficas como as de Platão e de

Hegel, que a vitória sobre a natureza e a satisfação dasnecessidades empíricas, que a abolição da violência his-tórica, que o reconhecimento de cada um por todos quedisso deve resultar, bastam para realizar a liberdadeefetiva, para desalienar o indivíduo? Não haverá, parao indivíduo, precisamente, uma alienação mais profun-da e mais grave, a f i n i t u d e  em seus diversos aspectos?Dar ao homem os meios para viver na plenitude empí-

rica, suprimir o sofrimento por todas as descobertastécnicas que quiserem, abolir a possibilidade da violên-cia, permitirá também tornar amado aquele que não oé? Será, principalmente, por mais que se imagine pro-longar a vida, suprimir a sujeição natural mais' apa-vorante, a m o r t e?  Mesmo que se admita, com o mar-xismo, que as limitações humanas tradicionalmente re-conhecidas pela análise filosófica: o sofrimento físico,

o medo, a insegurança, a ignorância, a estupidez, otédio, a estagnação, o crime, possam desaparecer pelaorganização da sociedade humana, pelo desenvolvimen-to dos meios de apropriação da natureza, pelo enrique-cimento do patrimônio cultural da humanidade, restaum fato empírico cuja supressão é inconcebível’ e queconstitui a limitação absoluta: o homem é mortal e opensamento da morte lhe é presente. E é tanto maispresente quanto mais consegue o homem eliminar suascrenças num além, apreender a irrealidade das soluções

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filosóficas, e descobrirse como fundamentalmente serempírico: se o h o m em éf u n d a m en t a l m en t e em p i r i a , amorte é finitude radical e o pensamento da morte pro-voca a incurável insatisfação11.

Assim, a descrição que tentamos fazer da realida-de humana, como dialética da necessidade do trabalho

no seio de uma sociedade histórica, talvez seja insufi-ciente: deveríamos acrescentar que o homem envelhe-ce e morre. Ora, para esse fato, nenhum remédio uni-versal empírico é concebível. Sem dúvida, posso lutarcontra a morte como acontecimento singular que podeocorrer, posso, sem dúvida prevenirme contra o “aci-dente” e organizar uma sociedade humana em que asdoenças, os riscos seriam eficazmente combatidos, em

que a vida poderia ser prolongada e protegida. Taisprovidências, no entanto, não permitem afastar o fatoda morte. A insuficiência do positivismo consiste, emsimular ignorálo, dele se afastando com uma falsa co-ragem e exaltando como único positivo o fato da vida:por entre parênteses a morte como dimensão do serempírico do homem, é, ao mesmo tempo, reduzir o al-cance e a seriedade do retorno à empiria e, a pretexto

de “boa saúde”, escolher arbitrariamente, entre os da-dos positivos, o que causa menos desprazer; é recusarpor um artifício — a simples omissão — o que as reli-giões — admitindo como ponto pacífico a imortalidade — se empenham também em negar: a finitude radicaldada. O problema é de importância capital: se é fatoque o ser mortal e, mais banalmente, o ser imperfeitosão características empíricas da existência humana real.que despertam no indivíduo uma insatisfação que ne-nhuma prática pode abolir e nenhuma disposição em-pírica suprimir, não teria razão o filósofo em definir ohomem fundamentalmente como pensamento, uma vez

11 Evocando essas idéias, não pensamos apenas em Kierkegaard, mas

também e principalmente na obra de Heidegger, da qual salientamos &importância no que se refere à noção de “ passagem” , em que nos apoia-

mos neste capítulo.

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que, em relação ao pensamento, pode pretenderse quepossua a imortalidade ou, ao menos, a onitemporalidade? Não deveríamos, antes, orientar a reflexão no sen-tido de uma meditação sobre a finitude humana e suasconseqüências últimas, conceber o devenir histórico emfunção desse destino profundo? Não deveremos, em to-

do caso, substituir aos esforços técnicos de organizaçãoda vida, que se mostram irrisórios, uma investigação“moral” visando a tornar possível no seio da limitaçãoradical, a posse de uma sabedoria, e trazer o esqueci-mento ao homem perdido em face da finitude ou, maisprofundamente, darlhe a segurança e a coragem ver-dadeiras? Um ressurgimento da religião e da filosofia,da “moral” , nesse estágio último, revelarseia necessá-

rio?12 A coisa é impensável, desde que consideremos justos os resultados obtidos até aqui; tal renovação cons-tituiria, de fato, uma crítica total da concepção mate-rialista na medida em que admitisse que o homem é,ape sa r de t u d o , fundamentalmente, pensamento e que aconservação da alma é, f i n a l m e n t e , mais importantedo que a organização da existência empírica. Quantoà idéia de uma justaposição — o marxismo como teoria

da prática histórica e a filosofia da alma como medi-tação sobre o homem individual —, permanece aquémda seriedade exigível e só poderia ter surgido nessaépoca da transição que, como já assinalamos, acumulaas ambigüidades e as confusões.

Seja como for, resta que o marxismo, hoje em dia.não pode deixar de explicarse sobre esse ponto. Qual

é sua atitude diante da finitude humana, não comoproblema abstrato, mas como dimensão empírica do in-divíduo, dimensão que é, no mínimo, tão decisiva quan-to a necessidade e o trabalho? A essa questão, é impos-

12 Renovação de lima filosofia que renuncia, em particular, como des-

pido de significação, ao conceito da satisfação universal, renovação

de uma reflexão que visa simplesmente valorizar o pensamento indi-vidual, lúcido e corajoso, a Razão, contra as a.berrações dos grupos,

contra a paixão e contra a estupidez.

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sível responder aqui de modo suficiente: uma respostacompleta exigiria um estudo aprofundado das doutri-nas que, depois de Kierkegaard e Nietzsche, puseram aênfase no fato da finitude e em sua significação, no seiodesse mundo da passagem em que nos encontramos.

 Tal estudo não caberia no quadro limitado e programá-

tico que atribuímos ao presente trabalho. Que nos per-mitam, ainda nesse nível, fazer apenas algumas obser-vações. Devemos salientar, inicialmente, a tal ponto ahipoteca do positivismo e do praticismo e, mais geral-mente, da propaganda política de vistas curtas, trans-posta em sistema e em visão do mundo, pesou sobre odesenvolvimento do pensamento marxista ao longodestes últimos trinta anos, que nenhuma solução de

tipo moralizante pode ser aceita por uma análise obje-tiva. A idéia da felicidade ulterior dos homens, a no-ção do indivíduo que se transcenderia em um sergenérico ou geral — conjunto dos descendentes, classe, par-tido — não poderiam ser aceitos como “consolações”que permitissem a esse homem esquecer que é mortal eque nada, para ele, subsistirá de seu projeto e de suaação: essas são idéias religiosas que só se compreendem

no quadro da religião. Se há alguma mediação que per-mita transpor tais dificuldades que atualmente nos de-têm, só pode provir da lucidez e não de qualquer trans-posição das místicas antigas.

Na verdade, a consideração da empiria exige queseja reconhecida essa dimensão trágica da existênciahumana. Descobrindose como existente singular, cujoser, inteiro, limitase à vida prática sensível, apreen-dendose finalmente tal qual é, como individualidadeentregue a si mesma, o homem contemporâneo, que viveo período da passagem e o compreendeu, encontrasepreso numa contradição: de um lado, concebese comoativo, como ser cujas condutas são levadas em conta:pensase como ligado a essa história da humanidade daqual é um resultado e como responsável pelo mundo deque participa; pensase como ser histórico, isto é, comoser que se quer e se sabe livre — libertável — ; mas,por outro lado, essa descoberta que fez de si mesmo lhe

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revela seu destino de finitude inelutável e a absolutacontingência de sua existência. Essa contradição, ne-nhum artifício poderia desfazer: não posso querermeplenamente vivo — em meu sersensível, em minhas re-lações concretas com outrem, em minha tarefa — se-não sabendo também que estou votado à morte e ata-

cado por uma doença incurável faça eu o que fizer, se- jam quais forem os progressos que se realizem nas ciên-cias do corpo, seja qual for o voto que eu formule.

A poesia do nuncamais, a meditação sobre a mor-te, deverão, pois, prevalecer e a lucidez revelar irrisórioo esforço para organizar a vida? Não parece que possaser assim: o problema que se apresenta é o de saber omodo de aparecimento atual da morte e da imperfei-

ção no seio da prática real da humanidade. O ser mor-tal, a limitação individual, manifestamse ao homemempírico que tomou consciência de seu estatuto sensí-vel como um f a t o , significativo do trágico inelutável daexistência? Tem o homem a liberdade de apreender suaprópria: vida como destino de finitude, individual e con-tingente de que tem o encargo? E possível que pensa-dores, enquanto pensadores, atinjam essa liberdade; a

humanidade, porém, que se sabe livre, experimentasesofredora e humilhada; para ela, a tragédia está fal-seada e se apresenta com o aspecto confuso e sem gran-deza dos dramas terríveis nascidos da desordem dos ne-gócios humanos, do infortúnio (um infortúnio superfi-cial que é o contrário do destino profundo) ou da mávontade. O t r ág i c o a t u a l m en t e éim pu r o . Não se mani-festa como conflito entre uma situação de finitude e

de imperfeições fundamentais e a liberdade de um in-divíduo; apresenta a face absurda e caricata do “aci-dente” . A morte, para aqueles que estão empenhadosna determinação da necessidade e nas hostilidades dahistória, é apenas um acontecimento; tem um nome:chamase fome, miséria, guerra, polícia; não passa deum aspecto e como que um resultado da vida sofre-dora. Este morre na guerra; e morre porque a históriae o ignóbil infortúnio armaram uma conjuntura emque o assassínio tornase legítimo e normal: não en-

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frentou a morte; aconteceulhe como ocorre um acon-tecimento. A coragem trágica, atualmente, na prática,é interdita ao homem, porque o homem não é livre; oque lhe é dado é a coragem histórica de libertarse, defazer desaparecer, tanto quanto possível, esse sofrimen-to e essa humilhação que o alienam.

O que seriam a morte e a imperfeição para o ho-mem libertado da sujeição natural e da violência, é vãopretender imaginálo. Mas, em todo caso, não é lícitopedir à humanidade que exerça sua liberdade enfren-tando resolutamente o fato da morte, pois não é livree, ao que aspira, é simplesmente viver e evitar oacontecimento que mata; o mundo da passagem é tam-bém o do drama histórico; e, para o homem que nele

se encontra, todas as dimensões da existência adquirema cor desse drama. É, sem dúvida, permitido ir alémdessa situação, considerar o homem como já libertado,mas, assim fazendo, não trairemos a vocação do pensa-mento da realidade humana em seu movimento pelaconquista de si mesma? Não se trata, de modo algum,de negar a finitude, nem de ignorar sua “importância” :o mundo contemporâneo, mostrando o caráter empí-rico da existência, o revela claramente; a finitude,como tal, porém, não é o elemento determinante daproblemática humana atual; só poderá vir a sêlo nodia em que o homem livre puder pen s a r  seu destino e,não como hoje, empenharse em f a z e r  sua história.

Se assim é — e tratase apenas, ainda uma vez, deuma observação — talvez seja porque a alienação pela

morte e a imperfeição sejam de outra ordem que a alie-nação que resulta da sujeição natural e da violênciahistórica. Entre a vida que nos é dada, mortal, e asofredora, existe, ao que parece, uma diferença profun-da, diferença de fato que se manifesta na prática atualda humanidade. A alienação pela morte, porque é dadade modo radical, porque não pode ser objeto de nenhu-ma solução efetiva na realidade empírica, constitui me-nos um problema do que um fundo permanente im-posto à existência humana. Só enquanto acontecimento

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é que posso lutar contra a morte; desde o momentoem que a p e n s o  como uma característica geral, é umfato que me angustia, que talvez me paralise, mas deixade me interessar praticamente. A vida sofredora é ooposto da plenitude; uma e outra se concebem dialeticarnente. A morte não tem relação dialética com a vi-

da: não tem conteúdo algum. Desde já imagino, conce-bo mesmo, a sociedade universal empírica satisfeita oua caminho da satisfação; não sei o que é a vida imor-tal. O fato da morte pertence pois à esfera do que épuro dado a propósito do qual se pode dizer, entusias-marse, lamentarse, mas não saber realmente e fazer.Constitui uma dimensão existencial irredutível do mes-mo modo que a existência em geral, que o f a t o  da exis-

tência em geral. Dizer que é irredutível, é dizer quenão pode ser modificado e que se acha abandonado àsua contingência, pura e brutal: como f a t o , é um objetodo pensamento exercendose no interior de si próprio.Só poderia ser plenamente compreendido, se é que issotem sentido, por um pensamento libertado e senhor desi mesmo. O pensamento, no momento da transição,encontrase apenas em estado de libertação: para ele,

há inicialmente acontecimentos que deve enfrentar; sea alienação pela morte é, a seus olhos, menos “grave” ,é porque está mergulhado na vida sofredora e exprime,antes de mais nada, a vontade dos homens que sabe terconquistado os meios reais para alcançar a vida em suaplenitude. Devemos repetir, como o pensamento com-preenderá a essencia mortal do homem (e sua imper-feição essencial), é absurdo procurar concebêlo. Atual-

mente, o problema do homem se apresenta em termosnão de destino, de “ fato” ou de essência, mas de his-tória .

Esse primado da historicidade empírica que se ma-nifesta na produção social dos meios de existência, en-contra seu “ fundamento” na própria situação que édada ao homem contemporâneo, vivendo na sociedadeindustrial na época da passagem. Tal situação exige,de acordo com o marxismo, a constituição de um modode pensar novo que supere a universalidade abstrata

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reivindicada e alcançada pela filosofia. Mas, os pensa-dores que salientam o que, para simplicar, chamamos otrágico da existência humana — em perspectivas di-versas: existencial, ontológica e mesmo visando ir alémda ontologia — sem dúvida não reconhecerão que oA u f h e b u n g  operado pelo marxismo seja a única conce-

bível; contestarão sua radicalidade. A rigor, fora domaterialismo, depois de Kierkegaard e de Nietzsche, amorte da filosofia foi muitas vezes proclamada e a ne-cessidade para o pensamento de voltarse finalmentepara o importante — o existente humano em sua rea-lidade, como esse ser pelo qual, na angústia de ser,advém toda questão e toda vontade — foi também pro-clamada muitas vezes. Essa corrente encontra sua ex-

pressão mais alta e mais difícil na obra de Heidegger.Não pretendemos aqui apresentar os temas dessa obranem tampouco determinar qual é a resposta do marxis-mo, pois o presente trabalho tem por fim apenas indi-car o que é a A u f h e b u n g  materialista e porque é dessemodo. Mas, seríamos incompletos se não observásse-mos, de um lado, que o marxismo não é o único modode superação proposto e que, de outro, a análise dessa

outra superação é para ele de grande importância, fazparte de suas tarefas primordiais no momento atual namedida em que lhe permitiria precisar sua posição ecompreender, com mais profundidade do que até agora,as dificuldades do pensamento na hora da passagem.

Esses pensadores que também verificam o “malo-gro” da filosofia e concebem a obrigação de abrir umnovo caminho, apresentam ao marxismo uma questão

séria: pretender afastar essa questão — como fizeramvários doutrinários de inspiração marxista, a pretextode que essas reflexões são irracionalistas — é frívolo,pois o objeto da pergunta é precisamente o do estabele-cimento da razão. Essa questão é tanto mais séria quan-to Heidegger reconhece a importância do marxismo 1:!

13 Cf., em particular, a Cana sobre o humanismo, trad. Municr. pp.

99 ss.

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e, se toma outro caminho, é, ao que parece, porquecontesta que a superação operada por Marx seja sufi-ciente. Para Heidegger, não é apenas a filosofia quedeve ser posta em questão, mas a própria civilizaçãoindustrial e os modos de pensamento que correspondemà “civilização planetária” 14. O marxismo compreendeu

o mundo moderno, mas não o fez com bastante pro-fundidade; não viu que o que está na sua origem éuma “perda” , a perda do sentido do ser em sua inte-gridade: o homem, desde Platão, esforçouse em cons-truir uma (representação adequada da realidade, emaprisionar o dado na rede das determinações lógicascada vez mais finas e sutis; consagrouse a uma açãoespiritual, a uma ação de transformação, esquecendo

que o único verdadeiro devenir é o da p h y s i s  originária.A civilização técnica e seu infortúnio são o desfechodesse “erro” fundamental: porque jamais chegava aelaborar a representação adequada que a satisfizesse in-teiramente, a humanidade abandonouse à vontade depoder que a conduziu ao “niilismo” atual. Assim sendo,toda tentativa para fazer dessa perda um ganho está con-denada ao fracasso: o que importa, é tentar inclinarse

à escuta do ser, interrogar aqueles que a preocupaçãoda lógica e da técnica, no sentido moderno dessas ex-pressões ainda não tornou surdos e tentar, por um inter-rogatório constante, apreender o momento originário noseio do qual seja dada a fusão real do que é e do que édito, onde a alteridade do pensamento e do ser mostresecomo tendo sido sempre absurda, onde o lugar a mora-dia já seja o da presença e da razão. Tratase de chegar

a essa presença em que a p h y s i s  e o l o gos surgem de simesmos confundidos. A problemática autêntica não sesitua nem no mundo ahistórico das essências, nem nahistória: encontrase rumo à origem... O “niilismo” dostempos modernos é o anúncio talvez de uma época emque se assinala a possibilidade desse voltar à escuta doser, a esse retorno fundamental ao acontecimento que

14 Cf. J. Wahl, Rumo ao fim cia ontologia.

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está na própria fonte do ente e que permitiria ouvir aresposta que está implícita na questão que o homem sspropõe a respeito de si mesmo e do ser.

O que exige, em suma, ao que parece, um pensa-mento desse tipo — contanto que se possa em observa-ções tão breves e exteriores unificar seus temas e entre-

ver sua profundidade — é uma radicalização total daquestão referente ao homem. A insuficiência do mar-xismo consistiria então em aceitar a historicidade hu-mana como fato que dispensa qualquer elucidação, emesquecer que, além dos problemas postos n a  historici-dade, há o fato do próprio destino histórico que remetea um momento originário em que esse destino se tra-çou. O que semelhante pensamento condenaria no ma-

terialismo contemporâneo é considerar indiscutível a es-trutura da existência humana, sem procurar garantirsua inteligibilidade, enclausurandose no ente sem ten-tar compreender porque é assim e não de outro modo.Que o fato da necessidade e do trabalho tenha deter-minado o sentido da história e tenha levado à formaçãoda civilização técnica, que permitiu tomar consciênciadesse fato como decisivo, isso é claro, e, a respeito, a per-

gunta é a um só tempo técnica (como isso aconteceu pre-cisamente?) e prática (como é preciso pensar e agir paraque essa civilização alcance seu pleno desenvolvimento?).Mas, poderemos pensar em qualquer resultado com sen-tido se não explicarmos o fato do trabalho e da necessi-dade como estrutura necessária da existência? Ora, pararesponder a essa questão, é preciso sair desses proble-mas limitados e voltar à questão sempre proposta e quea metafísica, pelos pressupostos que aceita, fica impe-dida de resolver: de que se trata, a propósito do ser?

 Já indicamos qual é, em tese, a resposta do mar-xismo. Consiste em negar que haja outros tipos de per-guntas e de soluções, referentes à estrutura dada darealidade tal como é dada, além das que podem ser pro-postas pelas ciências positivas. Assim como não precisa-

mos demonstrar que o homem é trabalho, também nãoprecisamos provar que é consciência ou ser mortal: tra-tase apenas de mostrar cientificamente que é assim.

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E, essa apresentação só pode remeter a outros fatos e aoutros acontecimentos. O “ fundamento” da história hu-mana é a história natural. À pergunta leibniziana: “porque há isto e não aquilo?” o marxismo responde deixandoa palavra às disciplinas positivas. E, à questão mais am-pla e mais profunda que tal pergunta suscita: “por que

há alguma coisa e não o nada?” , opõe o fato de que talquestão, para ter sentido, supõe que possamos nos colo-car nessa esfera indeterminada que seria prévia à exis-tência; sem dúvida, podemos nos colocar nessa esfera,mas em imaginação, e as soluções que traremos serãotambém do domínio do imaginário, do domínio dapoesia.

Que haja angústia diante da morte e da existência,

é um fato; que essa angústia suscite sentimentos e pa-lavras, isso também é dado como particularmente carac-terístico do homem que vive os dramas da época da pas-sagem. Podese, certamente, afirmar que a revelaçãodessa angústia é o acontecimento importante da época econstitui precisamente o elemento no qual deve desen-volverse o modo de pensamento que superará a filoso-fia. Essa afirmação, porém, por mais legítima que seja,corre hoje o risco de ficar aquém da prática da huma-nidade. Pois, para o marxismo, o que determina o sen-tido e o conteúdo da interrogação teórica, é a problemá-tica prática do homem, compreendida esta como ato deprodução social dos meios de manter e desenvolver a vi-da humana e enriquecer suas possibilidades. Podese la-mentar o advento da civilização técnica, considerar o devenir do homem como uma “perda” e aspirar à tran-qüilidade que, no infortúnio contemporâneo, se recusae se anuncia. Mas, para o teórico marxista, não é demodo algum operar uma radicalização entregarse, a par-tir dessa nostalgia, a uma procura que permita ao pen-samento colocarse à escuta do ser: pois, a seus olhos,tratase, ainda aqui, de uma tentativa que pretende rea-lizar a vocação do pensamento apenas no pensamento.A pesquisa verdadeira radical é a que visa compreendera promessa de uma satisfação que se acha contida navida atual a agir para que essa satisfação se torne efe-

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tiva. Não se trata, de modo algum, de eliminar os esfor-ços para abrir ao pensamento um caminho diferente dnquele que é proposto pelo materialismo marxista, quali-ficandoos de irracionalistas, de místicos ou de “reacio-nários” . É preciso antes definir as relações que entretémcom o modo de pensar filosófico e perguntar se a supe-

ração que pretendem efetuar não passa da retomada — em modalidades diferentes, no seio de outra problemá-tica ideológica e em dado momento da passagem — dasolução que, em seu tempo, Hegel havia elaborado.

Não se trata, de modo algum, como vemos, de pre-tender que os problemas individuais, que o problema es-sencial do indivíduo, sua imperfeição, sua angústia e suafinitude, não tenham importância ou sejam resolvidos

pela construção de um mundo humano realmente coe-rente. Ao contrário, o que o marxismo afirma, ao qu^parece, é que esses problemas só poderão ser resolvidos

 — de que maneira? seria ingênuo querer profetizar — em um universo onde o indivíduo se encontre finalmenteem liberdade, na riqueza de suas determinações singula-res. O que importa é conhecer a problemática atuál dahumanidade e participar lucidamente do combate queela trava para que se instaure uma sociedade que per-mita o desenvolvimento indefinido das potencialidadeshumanas, que faça existir o homem como homem, querealize a liberdade efetiva; uma sociedade em que o pen-samento seja liberto da sujeição natural e do temor, emque a poesia — no duplo sentido do dizer e do fazer indi-viduais — da vida e da morte tenha sua livre eclosão:em que o indivíduo seja capaz de formular e de resolverpessoalmente seus problemas pessoais; em que nenhumbiombo mascare mais a presença à natureza e à vida dacultura.

Marx dizia isso de um modo ao mesmo tempo maistécnico e mais beloin: “O reino da liberdade começa on-de acaba o trabalho determinado pelas necessidades e osfins exteriores: pela própria natureza das coisas, está

15 Cf. O Capital , L . II I, cap. X L V II I, trad. Molitor, t. X IV pp.

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fora da produção material. O civilizado deve, assim co-mo o selvagem, lutar contra a natureza para satisfazersuas necessidades, deve fazêlo em todas as formas desociedade e em todos os modos possíveis de produção.Com seu desenvolvimento, ampliamse, ao mesmo tempo,o reino da necessidade natural e as necessidades: mas

as forças produtivas ampliamse na proporção mesmaem que satisfazem essas necessidades. A liberdade, nes-se domínio, só pode consistir no seguinte: o homem emsociedade, os produtores associados, regulam racional-mente essa troca material com a natureza, submetemnaa seu controle efetivo em vez de serem dominados porela como por um poder cego; realizamna com os esfor-ços mais reduzidos que é possível, nas condições mais

dignas de sua natureza humana e as mais adequadas aessa natureza. Mas, um reino da necessidade subsistesempre. É além desse reino que começa o desenvolvi-mento dos poderes do homem, que é para si mesmo seupróprio fim, o verdadeiro reino da liberdade, que, no en-tanto, só pode desabrochar apoiandose no reino da ne-cessidade. A r ed u ção da j o r n a d a de t r a b a l h o éa cond i  ção f u n d a m en t a l ” .

 Talvez devêssemos acrescentar10 que a conquistadessa liberdade individual, possível por um domínio maisamplo da natureza, só poderá ser efetiva se a atividadetrabalhadora, fonte e meio da liberdade, for, ela própria,livre, se os trabalhadores tiverem o poder político real deorganizar e gerir eles mesmos sua produção, de controlarseus produtos, fazendo desaparecer assim totalmente, damais alta atividade humana, o trabalho, toda servidão etoda alienação e fundindo em uma só e mesma práticatriunfante a -poièsi s e a p r a x i s .

16 Cf. P . Chaulieu, Sobre o conteúdo do socialismo, in “Socialisme

ou Barbarie” , n? 22, julhosetembro 1957, pp. 174,

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Apêndice

A r edação de L o g o s e Pr a x i s  — apresentada àSorbonne como tese complementar para doutorado em

abril de 1959 — foi concluída no fim do inverno de 1958.Desde então foram publicados quatro livros, sobre o pro-blema da superação da filosofia. A s om a e o r es t o  deHenri Lefebvre; In vest i g a ções d i a lét i ca s de Lucien Goldmann; o tomo I da Cr i t i ca da r a zão d i a lét i ca , de J.P.Sartre e Ma r x , p en sad o r da técn i c a , de Kostas Axelos.

O primeiro desses livros propõe, em suas análises teó-

ricas, perspectivas semelhantes às que aqui apresentamos.Mostra como a dupla crise que atinge, ao mesmo tem-po, a filosofia e o marxismo, é significativa da situaçãocontemporânea que exige, tanto uma readaptação da fi-losofia aos problemas do mundo moderno, quanto umarenovação em profundidade do marxismo. Sobre esseúltimo ponto, fiel a seu “objetivismo” (ver, neste livro,cap. IV, nota 1, e cap. V), H. Lefebvre estuda cer-

to número de conceitos capazes de “desobstruir” o mar-xismo, de desqualificar o “subjetivismo de classe” e

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seu correlato, o dogmatismo, e de restituir ao conjuntodo método seu caráter científico. Parece que, nesse sen-tido, a solução proposta carece da radicalidade. Procurase mostrar precisamente que a degenerescência atual domarxismo oficial não está somente ligada ao empregode conceitos erroneos, mas a um desconhecimento total

da revolução teórica operada por Marx. Tornandosedoutrina oficial de Estados e de partidos institucionali-zados, o “materialismo dialético” escamoteia sistematica-mente o que há de fundamentalmente revolucionário ecrítico na obra de Marx, da qual só retém os aspectos ex-teriores, os mais “metafísicos” e fabrica uma doutrina“confortável” cujo poder de contestação foi reduzido aomínimo. Assim, à crítica constante da sociedade indus-

trial e de sua organização, desejada e desenvolvida porMarx, substituise um pálido e insípido racionalismo utilitarista. Não será elaborando novos conceitos metodológi-cos que se poderá lutar contra semelhante falsificação,nem tampouco apelando para as inquietações e a ironiada subjetividade insatisfeita. A verdadeira contestação,no nível teórico, deve operarse em dois planos: pela aná-lise histórica do processo político, e econômico de dege-

nerescência (a esse respeito as revistas Soc i a l i smo ou  1ba r bár i e e A r g um e n t o s  trouxeram, em óticas diferentes,preciosos elementos) e pela redescoberta do novo modode pensar definido e aplicado por Marx. É a esta segun-da tarefa que se aplica o presente trabalho.

As mesmas observações poderiam ser feitas a pro-pósito das I n vest i g a ções d i a lét i ca s de L. Goldmann emque o autor de Deus o c u l t o  revela os princípios meto-

dológicos que lhe permitiram estudar, sob perspectivamaterialista e dialética, as obras de Kant, de Rascinee de Pascal. Não se trata, aqui, de julgar tais inves-tigações (ver cap. IV). Quaisquer que sejam, no en-tanto, seu valor e seu interesse, implicam uma inter-pretação do marxismo muito contestável: este não seapresenta mais como um método particularmente fe-cundo — mais fecundo que o da “história literária” .

Face à história idealista que só considera os indivíduos,há a história materialista que define “visões do mundo”

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e as integra dialeticamente em seu contexto econômicosocial. A revolução teórica operada por Marx é conside-rada apenas uma conversão do pensamento por umacompreensão melhor do próprio pensamento. De fato,essa interpretação do marxismo prendese à ótica hojedefinida como “materialismo dialético”, concebido como

teoria geral do Ser e do Conhecer implicando certo mé-todo aplicável nos diversos domínios do conhecimento eda ação. L. Goldmann, — porque tal é a sua “especia-lidade” — o utiliza a propósito da história da cultura,como outros podem fazêlo em outros domínios: arte,ciência ou política. O sentido fundamentalmente práticorevolucionário do marxismo é posto entre parênte-ses e a teoria se aplica aos seus objetos habituais; a mu-

dança radical de interesse desejada por Marx não é rea-lizada. Assim, L. Goldmann — Como J.P. Sartre quan-do admite discutir Flaubert — situase na perspectivadefinida por Garaudy e entra no recinto fechado ondese desenrolam esses debates irrisórios e essas lutas deescola em que se trata de saber quem é mais “ forte” , omaterialismo “ortodoxo”, o materialismo “aprofundado”,o “existencialismo ou a história tradicional” de inspira-

ção cristã.O livro de J.P. Sartre, Cr ít i ca da r a zão d i a lét i ca , situase em perspectiva muito diferente: ocorre que —  julguemos válidos ou caducos os resultados que obtém — uma obra desse tipo inaugura um novo modo de pen-sar — na filosofia francesa ao menos —; a preocupaçãodo conteúdo e de seu movimento é constante: aos argu-mentos de escola se substitui uma análise reflexiva e

dialética que incide sobre a própria experiência. A con-clusão de Qu est ões d e mét od o é, a esse respeito, signifi-cativa: constitui aparentemente uma transição entre ostextos publicados em Tem p s m oáer n es  e a Cr ít i ca da  r a zão d i a lét i ca ;  assinala, com efeito, uma ruptura. AsQu est ões de mét od o consideram os problemas na perspec-tiva da filosofia tradicional. A Cr ít i ca d a r a zão d i a lét i ca  situase, desde logo, além dessa perspectiva: deixando

de lado a polêmica inútil, que sistematizamos em nossocapítulo I, toma por objeto de sua reflexão crítica a pró-

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pria p r a x i s . Realiza precisamente essa radical conversãodo interesse reclamada por Marx: o objeto da teoria nãoé mais a Matéria, o Espírito, a preeminência do econô-mico ou do individual, mas o homem enquanto se cons-titui historicamente no seio de determinada formaçãosocial. Nesse sentido, situase já no nível da superação

da filosofia e indica os objetos e os problemas aos quaisdeve aplicarse a teoria se quiser deixar de ser especula-ção abstrata. Todavia, a maneira de encarar esses pro-blemas e considerar esses objetos difere sensivelmente daque foi descoberta por Marx e que o último capítulo dopresente trabalho tenta redefinir. J.P. Sartre, fundan-dose na experiência crítica — experiência que poderiaser a de “qualquer um” no período pósstalinista (p.

141) — propõese a lançar as bases de “prolegômenos atoda antropologia futura” (p. 153) isto é, reunir os ele-mentos de uma “antropologia estrutural e histórica”(p. 9, p. 156). Propõe assim certo número de “modelos”dinâmicos: modelos da relação interhumana fundamen-tal, da socialidade, do grupo e de seus desenvolvimentos.Define, assim, uma gênese ideal que vai da p r a x i s  indi-vidual à História, gênese que faz aparecer as categorias — as “essências” — graças às quais o devenir aventu-roso do homem poderá ser apreendido do interior de suanecessidade. Procede, pois, como Rousseau no D i s c u r s o   sob r e a o r i g em d a d esi g u a l d a d e  e no Co n t r a t o soc i a l   ese refere explicitamente à análise abstrata a que pro-cede Marx no começo de O Ca p i t a l . A propósito de talatitude, a questão não é de legitimidade, mas de legiti-mação. Que prova se pode dar da validade universal desemelhantes modelos? O problema deve ser proposto nomomento em que, de todos os lados, nas ciências huma-nas, surgem “modelos estruturais” com a pretensão deuniversalidade. Esses modelos e o que é proposto por

 J.P. Sartre, apesar de sua amplitude e de sua riqueza,não escapam a essa crítica, e só podem invocar como fun-damento exemp l o s , tomados aqui e ali no devenir da hu-

manidade. Pelo temor de fazer concessões excessivas àrazão positivista (a que preside à elaboração da históriacientífica, por exemplo) esse gênero de reflexão chega

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a outro positivismo, menos controlado e menos perigosotalvez: a escolha livre do pensador que isola as ilustra-ções que convêm à sua demonstração. Quando Marxanalisa abstratamente a natureza da troca, situase semdúvida fora da história: mas, o que então estuda, é umacondição inerente a todo homem enquanto produtor e

reprodutor de sua existência. O “modelo” proposto valeapenas na medida em que revela um estatuto fundamen-tal comum à “humanidade genérica” . Não é certo, aocontrário, que a relação ternária estivadorjardineirocantoneiro ou que a análise das jornadas de julho de1789 permitam apreender o conteúdo prático da relaçãoGregoBárbaro no século V ou o retorno triunfal de Trasíbulo à frente de suas tropas após a tentativa de

Crítias. Não há, sem dúvida, antropologia estrutural ouhistórica: mais precisamente, uma antropologia h i s t ó -   r i cà não poderia ser estrutural, no sentido em que desco-brisse estruturas universais. As estruturas que revela sótêm alcance e valor heurístico nos limites de determina-da época; e, se ocorre que as estruturas reveladas porMarx em O C a p i t a l   têm significação particularmenteampla, é porque a realização da sociedade industrial, es-tudada por Marx em sua fase capitalista, revela o as-pecto fundamental, até então oculto, da existência hu-mana. O modelo marxista — em sua generalidade — permite encarar com um fio condutor toda a civilização,sendo claro que essa generalização indica apenas umadireção de pesquisas, não de resultados. É de recear queo modelo sartriano, pelo fato de dizer muito e não pro-var suficientemente, tenha apenas um sentido circuns-tancial. Bastará, no entanto, nesta fase da transição,que o modelo seja circunstancialmete correto?

K. Axelos em Ma r x , pensa d o r da técn i c a , pretendereencontrar, além da degenerescência pósmarxista, amensagem autêntica de Marx. Ora, para apreender talmensagem, importa, antes de mais nada, compreendêlac om  suas contradições. Marx, teórico da p r a x i s  da so-

ciedade moderna, constrói um humanismo prático quenega e supera a metafísica ocidental; esse humanismo,no entanto, cçn§erva alguma coisa daquilo que pretende

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superar; desenvolvendo um materialismo e um realismosimplistas, permanece na ótica da filosofia tradicional;trabalhando pela supressão' de todas as alienações, negli-gencia — embora pressentindo — a alienação funda-mental, a dilaceração e a negatividade; convoca o homempara a conquista do mundo e vê na técnica o meio de

realizar a humanidade, mas sabe também que toda téc-nica é fragmentária e despojadora. E o universo quequer construir aparece ora como ser na plenitude de suasdeterminações, ora como supressão de toda determina-ção, como n i h i l . Esse diálogo com Marx — alimentadopelo pensamento nietzscheano e heideggeriano — res-taura toda a profundidade e complexidade de uma con-cepção que as apologias sociaisdemocratas, e em segui-

da stalinistas, que as exposições críticas de inspiraçãocristã freqüentemente apresentaram como “sistema” su-perficial e linear. Conquistado esse ponto, e também aidéia de que Marx, homem do século XIX, era tributáriodaquilo contra o que lutava (metafísica ocidental, progressismo, política, positivismo cientista), resta umaquestão que põe em jogo toda a interpretação dada porK. Axelos: é possível colocar no mesmo plano textos

como a Con t r i bu i ção à cr ít i ca da f i l osof i a d o Est a d o de  Hege l , os Manus c r i t o s de 1844  e O Cap i t a l ?   O pontode vista que aqui sustentamos é que O Cap i t a l  e a açãopolítica constituem, em forma e conteúdo, a resposta àsquestões propostas naquilo que se convencionou, naFrança, chamar de “obras filosóficas” . O Cap i t a l , obracientíficocrítica, momento teórico da prática aue Marxvê desenvolverse em sua época pretende ser. pelo objeto

e proieto, a superação efetiva da especulação filosóficae do economismo positivista (e, o que é desnecessáriodizer, do estreito praticismo político): inaugura — descobre , diria L. Althusser em notável artigo publicadono n<? 96 da revista Pen sée  (marçoabril de 1951, pp.326) — um novo modo de pensar que, na época da so-ciedade industrial em realização, deve substituirse aoSaber dos filósofos e ao empirismo parcelar dos cientis-

tas. Podese lamentar que Marx tenha assim resolvido aquestão do homem moderno e pensar que as perguntas

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