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Do “Tout autre” (Lévinas/Derrida) ao “Tout autre est tout autre” (Derrida): Pontos de não-contacto entre “Lévinas e Derrida” 238 Profª. Fernanda Bernardo Do “Tout autre” (Lévinas/Derrida) ao “Tout autre est tout autre” (Derrida): Pontos de não-contacto entre “Lévinas e Derrida” Fernanda Bernardo Professora de Filosofia Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra para Marina Themudo, um rosto da ética«Loi du tact: tout commence, et la fidélité même, et le serment, ar un impardonnable parjure.» (Derrida, Le toucher, Jean-Luc Nancy, p. 108). Esta é a segunda parte do texto de um seminário com o título «Lévinas et Derrida – Fidélité à plus d’un» leccionado, a 6 de Dezembro de 2007, no Collège International de Philosophie (Paris) na sessão do Seminário «Lévinas et Derrida» do Programa de Seminários 2007-2008 do Collège International de Philosophie e da Sorbonne IV/Paris, com o título Emmanuel Lévinas et la Philosophie Française Contemporaine, sob a responsabilidade de Danielle Cohen-Lévinas e de Gérard Bensussan. A primeira parte encontra-se publicada em Espectros de Derrida (org. Paulo Cesar Duque- Estrada, Nau/Loyola, 2008). O texto deste Seminário – do qual se mantiveram os traços de oralidade e a que agora se juntaram grande parte das notas de rodapé com intuitos de fundamentação teórica nesta outra cena de escrita – testemunha igualmente uma investigação em curso afecta ao Projecto da FLUC/FCT/POCI 2004 Jacques Derrida – Língua e Soberania comparticipado pelo Fundo Comunitário Europeu FEDER. ***

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  • Do Tout autre (Lvinas/Derrida) ao Tout autre est tout autre (Derrida): Pontos de no-contacto entre Lvinas e Derrida

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    Prof. Fernanda Bernardo

    Do Tout autre (Lvinas/Derrida) ao Tout autre est tout autre (Derrida):

    Pontos de no-contacto entre Lvinas e Derrida

    Fernanda Bernardo Professora de Filosofia Contempornea na Faculdade de Letras da

    Universidade de Coimbra

    para Marina Themudo,

    um rosto da tica

    Loi du tact: tout commence, et la fidlit mme,

    et le serment, ar un impardonnable parjure.

    (Derrida, Le toucher, Jean-Luc Nancy, p. 108).

    Esta a segunda parte do texto de um seminrio com o ttulo Lvinas et Derrida Fidlit plus dun leccionado, a 6 de Dezembro de 2007, no Collge International de Philosophie (Paris) na sesso do Seminrio Lvinas et Derrida do Programa de Seminrios 2007-2008 do Collge International de Philosophie e da Sorbonne IV/Paris, com o ttulo Emmanuel Lvinas et la Philosophie Franaise Contemporaine, sob a responsabilidade de Danielle Cohen-Lvinas e de Grard Bensussan. A primeira parte encontra-se publicada em Espectros de Derrida (org. Paulo Cesar Duque-Estrada, Nau/Loyola, 2008). O texto deste Seminrio do qual se mantiveram os traos de oralidade e a que agora se juntaram grande parte das notas de rodap com intuitos de fundamentao terica nesta outra cena de escrita testemunha igualmente uma investigao em curso afecta ao Projecto da FLUC/FCT/POCI 2004 Jacques Derrida Lngua e Soberania comparticipado pelo Fundo Comunitrio Europeu FEDER.

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    Se o corao se revela de facto o point de contact entre Lvinas e Derrida, na medida em que reafirma duas singularidades absolutas e, enquanto tal, des-ligadas , ligadas pela radicalidade do seu comum pensamento da separao ou da alteridade absoluta, o corao revelar-se- tambm o lugar daquilo que, nesta proximidade, tambm os separa. Aquilo que os aproxima em termos de pensamento, da radicalidade do seu pensamento, aquilo que dita e magnetiza a pulsao da sua relao de amizade de pensamento e de amizade e de pensamento, e que tambm, reiteremos, o pensamento como amizade ou como hospitalidade ou como responsabilidade , o corao tambm aquilo que irremediavelmente os separar. Aquilo que os separar, sim, certo, mas, e notemo-lo tambm, aquilo que os separar a partir e em nome daquilo mesmo que os aproxima: o prprio corao como metfora da alteridade absoluta ou da singularidade absoluta em substituio.

    Com efeito, lugar da proximidade e da fidelidade ao pensamento de Lvinas, que o mesmo dizer, lugar da reafirmao do pensamento da alteridade de Lvinas, o corao igualmente o lugar de uma resistncia e de um debate sem trguas com o pensamento levinasiano. E desta feita, e diferentemente do que se passar na relao Lvinas-Blanchot, um debate sem trguas nem sequer silenciado1. Como o atestar a prpria entrevista com Alain David, onde se pode ler Derrida a confessar:

    Desde que leio Lvinas, o meu trabalho contou com os seus textos inaugurais sobre Husserl (1930!) e os que se lhe seguiram, antes da guerra e muito tempo antes de Totalit et Infini (1962). E este companheirismo, mesmo quando no deu lugar a textos publicados ou a ensinamentos [], tomou sempre a forma de

    1 Tambm no dilogo com D. Janicaud, Derrida confessa as suas dificuldades com o pensamento de Lvinas. Diz a: Il y a aussi des moments dimpatience. Dans tous mes textes sur Lvinas, il y a des moments ngatifs , critiques , ironiques aussi. Tous. Quelle que soit mon admiration. [] Au fond, quand jessaie danalyser ou dtablir une sorte de typologie de mes rapports avec ceux que je tiens pour les grands penseurs de ce sicle, Heidegger, Lvinas et Blanchot, lgard des trois il y a une violence. Ce nest pas la mme dans les trois cas ; celui qui rsiste le mieux, cest Blanchot., J. Derrida in Dominique Janicaud, Heidegger en France, II, p. 105-106.

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    debates incessantes, de discusses respeitosas mas muitas vezes graves. (DERRIDA in Derrida avec Lvinas in op. cit., p. 31)

    Neste sentido, se o point de contact diz o no-contacto ou

    a separao como condio do justo contacto com Lvinas, assim dizendo o paradoxo da relao ao outro como outro, isto , respeitado ou salvaguardado no absoluto da sua alteridade; por outro lado, o point de contact no deixa tambm de fazer ressoar o contacto algum, o nenhum contacto entre ambos: um no-contacto que, reafirmando a sua respectiva idiomaticidade e portanto a sua diferena, reafirmar tambm o abismo que, na sua proximidade, apesar da sua proximidade e em nome da sua proximidade, os separa tambm. Um abismo que no deixa de revelar que, no corao (ele prprio metfora do abismo do autos e da ipseidade) de Derrida, se cavam outros abismos outros abismos que no apenas o do absolutamente outro (tout autre) na sua condio de prximo, de semelhante ou de irmo, que afinal a condio do rosto e do absolutamente outro do rosto do absolutamente outro e como absolutamente outro no pensamento levinasiano. Uma condio que Derrida ir sublinhar para denunciar as insuficincias e os limites da radicalidade do pensamento da alteridade (tout autre) de Lvinas insuficincias e limites nas quais Derrida vislumbrar uma estranha desateno aos abismos, isto , aos limites, aos fins e aos confins do humano2. Uma desateno sacrificial que revelar o humanismo e o antropocentrismo (o carnofalogocentrismo mesmo) da tica levinasiana. Uma desateno que desencadeia a perplexidade e a inquietude de Derrida, que a marca e denuncia assim:

    Quando Lvinas se interroga sobre o outro do outro [o terceiro, portanto] que no apenas um semelhante e que faz surgir a questo da justia, este no-semelhante permanece um homem, um irmo e no um outro outro, um outro outro diferente do homem, diferente do outro homem que se chama ainda homem, e que no responde seno a este nome (DERRIDA. Lanimal que donc je suis, p. 155). E ainda assim:

    2 Para esta questo, ver J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 30 ss.

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    Mas quando ele [Lvinas] lembra que a melhor maneira de encontrar outrem nem sequer reparar na cor dos seus olhos, ele fala ento do homem, do prximo enquanto homem, do semelhante e do irmo, ele pensa no outro homem, e isso ser para ns [] o lugar de uma grave inquietude. (Lanimal que donc je suis, p. 30) Uma grave inquietude, um diferendo que revelar e

    mostrar que, na loucura da sua hiper-radicalidade, a desconstruo derridiana vai ainda mais longe do que a tica levinasiana, a quem marcar inauditos e surpreendentes limites. Limites que o so em relao ao prprio pensamento, quero dizer, em relao quilo que apela ou d a pensar. Com efeito, no debate que trava com Lvinas, o corao de Derrida bate e bate-se por outras coisas, indo mais longe, bem mais longe no seu combate por um pensamento do mundo e do viver-no-mundo-com-outrem ainda mais responsvel e justo do que o de Lvinas. Porque este debate entre Derrida e Lvinas, entre a tica levinasiana e a desconstruo derridiana enquanto pensamentos da alteridade absoluta (tout autre), tambm um inaudito combate no s por um mundo mais compassivo e justo no podemos esquecer que Derrida definir a desconstruo como justia3 , como por uma humanidade atenta sua prpria an-humanidade e a uma responsabilidade sua altura.

    Um debate, um debate incessante no dizer do prprio Derrida, que passa pela resposta questo ou que dela decorre: Quem o outro, o absolutamente outro (tout autre) da tica levinasiana? Quem o outro que dita e locomove o pensamento? Uma questo a que, sabido, Lvinas responder: o outro homem. O absolutamente Outro, no se cansar o filsofo de dizer, outrem4 o outro homem. Derrida, por sua vez, responder assim respondendo hiper-crtica ou desconstrutivamente prpria resposta de Lvinas: Tout autre est tout autre. Absolutamente outro absolutamente (qualquer) outro.

    3 No esqueamos que em Force de Loi Derrida ousa definir a desconstruo como justia (que o filsofo distingue de direito)/ 4 Labsolument Autre, cest Autrui, Lvinas, Totalit et infini, p. 28. E, p. 67 : LAutre en tant quautre est Autrui..

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    Tout autre est tout autre , de facto, a pedrada que, no dizer do prprio filsofo5, ele atirar ao jardim de Lvinas. Ao jardim de Lvinas, quer dizer, tica levinasiana a quem, apesar da sua grandeza e desejabilidade, lembra a impossibilidade da sua pureza6, assim problematizando, em primeiro lugar, o modo como Lvinas deseja pensar a alteridade a saber, uma alteridade, na sua transcendncia, no contaminada pela imanncia. Uma pedrada que, para alm de concentrar a melancolia do idioma derridiano em toda a sua amplitude e aporeticidade, no deixa de lembrar tambm a sua intraduzibilidade uma intraduzibilidade que a da prpria alteridade ou singularidade absolutas , e que ns mal traduzimos por absolutamente outro absolutamente (qualquer) outro, a fim de tentarmos deixar quase ouvir a homonmia que, para alm da tautologia, abre esta frmula ao enunciado da heterologia mais irredutvel7. Com efeito, para alm de dizer a im-possibilidade da tica levinasiana, lembrando-a sua impossibilidade que o mesmo dizer, lembrando-a inevitabilidade da contradio, da aporia ou do perjrio quase-transcendental e, ipso facto, lembrando o tico, o tico ou 8 o justo inevitvel injustia da sua justia; para alm de tambm significar o ateologismo da desconstruo derridiana ou e num sintomtico dizer do filsofo que o aproxima tanto do lxico como do pensamento levinasianos e que insinua ainda a messianicidade da desconstruo na sua condio de pensamento do evento, da diffrance ou do porvir o seu atesmo

    5 Tout autre est tout autre [] tomba dabord, oserai-je dire, comme une pierre dans le jardin de Lvinas, J. DERRIDA in J. Derrida, C. Malabou, La contre alle, p. 263. 6 Veja-se, sobretudo, Le mot daccueil in dieu Emmanuel Lvinas onde Derrida questiona a violncia da pureza tica a partir da questo do terceiro: Intolrable scandale: mme si Lvinas ne le dit jamais ainsi, la justice parjure comme elle respire, elle trahit la parole dhonneur originelle et ne jure qu parjurer, abjurer ou injurier. Cest sans doute devant cette fatalit que Lvinas imagine le soupir du juste. Quai-je faire avec la justice ? , op. cit., p. 68. 7 Cf. DERRIDA, Donner la mort, cap. 4, Tout autre est tout autre in Donner la mort, p. 114-116. 8 Lembremos que uma certa concepo da justia , em Lvinas, sinnimo de tica: Nous appelons justice cet abord de face, dans le discours, Lvinas, Totalit et Infini, p. 67.

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    que se lembra de Deus9; este sintagma, Tout autre est tout autre, lembra a Lvinas que (o) absolutamente outro absolutamente todo e qualquer outro10: no importa o qu ou quem (quiconque, nimporte qui, enfatizar Derrida11), e no apenas o outro homem na sua condio de prximo, de semelhante e/ou de irmo. Um lembrar que revela o lugar da separao como o lugar do diferendo entre Derrida e Lvinas. Mas, e insistimos, o lugar do diferendo a partir da proximidade e da fidelidade de Derrida ao pensamento de Lvinas, isto , a partir da sua comum paixo pelo absolutamente outro absolutamente outro que, tanto para Lvinas como para Derrida, efectivamente o que apela a pensar.

    Um diferendo que se marca e se revela atravs de um sem nmero de diferenas entre os dois filsofos diferenas que passam pelo corao. Pelos abismos do corao. Diferenas que se manifestam em questes tais como: a questo do feminino e das diferenas sexuais, a questo do humanismo que Derrida grafar humainisme a fim de denunciar a aliana do fonocentrismo e do logocentrismo atravs do privilgio, de um certo privilgio da mo (main), da mo do homem (humain) e da relao da mo linguagem e ao pensamento12 , a questo do perdo, do judasmo e do poltico13. Limitar-me-ei aqui a uma muito sucinta referncia aos dois primeiros pontos deste debate entre Derrida e Lvinas. A saber, ao seu diferendo em torno da questo do feminino e das diferenas sexuais, bem como em torno da questo do humanismo: dois pontos de absoluto no-contacto entre Derrida e Lvinas. E dois pontos atravs dos quais o pensamento de Derrida vai para alm do de Lvinas na sua nsia de justia

    9 DERRIDA. Que faire ? in col., Confessions, p. 21. 10 DERRIDA. Foi et Savoir, Seuil, Paris, 2001, p. 46. 11 DERRIDA. Donner la mort, p. 121. 12 Para esta questo, J. Derrida, La main de Heidegger in Psych, p. 415-451. 13 J. Derrida a Alain David, Derrida avec Lvinas in op. cit., p. 32.

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    A questo do feminino e das diferenas sexuais

    No sem deixar de saudar a coragem e o mrito insigne de Lvinas por este ter assumido a masculinidade14 da sua assinatura filosfica15 coisa que, apesar da ambiguidade que consigna (uma vez que implica um posicionamento na prpria diferena sexual, que assim se v rasurada), , como muito bem sabemos, rarssima em filosofia! , bem como pelo seu empenho na temtica fenomenolgica de eros e do feminino16, Derrida denuncia no pensamento e na obra de Lvinas a violncia de uma certa dissimetria falocntrica como, entre outros e outras, tambm faro Luce Irigaray17, Hlne Cixous e a prpria Catherine Chlier18: uma muito prxima e uma grande especialista de Lvinas. Uma dissimetria que se manifesta na secundarizao da diferena sexual19 em relao prpria diferena tica tida por originria ou por mais originria. Uma secundarizao que tem no entanto sempre implcita uma secundarizao do feminino: e isto porque a diferena sexual est no pensamento e na obra de Lvinas subordinada alteridade de um absolutamente outro o plano do humano propriamente dito para Lvinas20 situado, de facto, antes e para alm da prpria diferena sexual21 e, enquanto tal, (um absolutamente outro) sexualmente no marcado, sim, certo, mas, na verdade e no fundo, j sempre marcado no masculino: que sempre ele antes de ela, sempre o filho antes de filha, sempre o pai

    14 Derrida assinala-o j em Violence et Mtaphysique, onde na pgina 228 se pode ler: Notons au passage, ce sujet, que Totalit et Infini pousse le respect de la dissymtrie jusquau point o il nous parat impossible, essentiellement impossible, quil ait t crit par une femme. Le sujet philosophique en est lhomme [vir]. 15 J. Derrida, En ce moment mme dans cet ouvrage me voici in Psych, Galile, Paris, 1987, p. 194. 16 Cf. nomeadamente Lvinas, Totalit et Infini, p. 286 ss. 17 Luce Irigaray, Le sujet expos in Exercices de la patience, n 5, printemps, 1983. 18 C. Chlier, figures du fminin, Ed. de La nuit surveille, 1982, p. 97. 19 Lvinas, Autrement qutre ou au-del de lessence, p. 113. 20 Lvinas, Et Dieu cra la femme in Du sacr au saint, Minuit, Paris, 1977, p. 132. 21 Lvinas, Le temps et lautre, p. 77-78.

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    antes de me, sempre o irmo antes de irm, sempre o rosto masculino e magistral antes do rosto feminino22 (equacionado ao Tu de Buber), sempre a mo masculina que toca ou que acaricia e sempre o feminino, a mulher ou a amada, que tocada ou acariciada Sempre, em suma, o masculino antes do feminino23

    Existe, implacvel e hegemnica, no pensamento e na obra de Lvinas uma configurao assustadoramente inquietante que associa o feminino criancice e tontice24, ao mutismo25 e intimidade, animalidade26 e irresponsabilidade27 Uma configurao que inscreve o seu pensamento no rastro do monotesmo judaico que, como Fethi Benslama28 admiravelmente demonstra, se institui sobre o sacrifcio ou sobre repdio originrio do feminino Ainda que, como no sem ironia Derrida amide o lembre, na tradio judaica a schekhina, a saber, a manifestao da presena divina, mantenha os traos de um rosto feminino, pelo que haveria que pensar numa certa feminilidade do Deus judaico por outro lado, transcendente, separado, secreto e ciumento29. Um Deus que nada tem tambm que ver com o Deus dos filsofos.

    So numerosas as marcas do androcentrismo da tica levinasiana. Para nos restringirmos aqui pouco mais do que conceptualizao que anima e opera no pensamento do filsofo, lembremos, no mais do que de passagem, o privilgio outorgado pelo filsofo ao Il e Illit na designao do Absolutamente outro (Tout Autre); bem como a predominncia do pai30, do mestre, do rosto magistral31, do amigo32, do amante, do acariciante e do

    22 Lvinas, Totalit et Infini, p. 166. 23 Lvinas, Totalit et Infini , p. 142. 24 Lvinas, Totalit et Infini, p. 295. 25 Lvinas, Totalit et Infini, p. 128-129 26 Lvinas, Totalit et Infini, p. 128-129. 27 Lvinas, Totalit et Infini, p. 295. 28 Fethi Benslama, Le rpudiation originaire in Idiomes, Nationalits, Dconstructions, Intersignes, nr 13, automne, 1998, p. 113-153. 29 Cf. J. Derrida, Fourmis in colectivo, Lectures de la diffrence sexuelle, des femmes, Paris, 1994, p. 85. 30 Cf. Lvinas, Totalit et Infini, section IV, Au-del du visage, p. 279-318. 31 Ibid, p. 104. 32 Lvinas, Totalit et Infini, p. 80.

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    filho33. Sendo este privilgio da relao pai-filho34 um privilgio que, como sabemos, enraza na poderosssima tradio abramica (judaica, crist e islmica) , indissocivel do privilgio da fraternidade35 no mbito do pensamento levinasiano: uma fraternidade36 subtrada famlia e, portanto, ao biolgico37, sim, certo, mas ainda assim enfeudada a uma terminologia que nada tem de inocente Porqu, neste contexto, o esquecimento da filha? Da filha e da sororidade nesta relao filial que equaciona sempre a criana (enfant) ao filho? A linguagem, demasiado bem o sabemos, no , nem neutra, nem indiferente

    E de nada serve tambm invocar uma pretensa neutralidade, sempre irremediavelmente marcada pela soberania da masculinidade. Uma soberania que Derrida denuncia, dela se demarcando criticamente, nomeada e privilegiadamente em Violence et Mtaphysique, em En ce moment mme, dans cet ouvrage, me voici38 (1980), em Politiques de lamiti (1993), em Le mot daccueil (1996) e em Lintouchable ou le voeu dabstinence em Le toucher, Jean-Luc Nancy (2001).

    Isto por um lado e certamente o lado determinante e hegemnico: em todo o caso, aquele que d o tom ao pensamento de Lvinas nele revelando o seu androcentrismo congnito.

    Por outro lado, Derrida no deixa tambm de sublinhar, nomeadamente em Le mot daccueil, o facto de, paradoxalmente, o pensamento de Lvinas poder tambm ser lido como s Derrida no-lo d a ler a partir da sua ateno ao modus prprio da linguagem como arqui-escrita, isto , minada de silncio como uma espcie de feminismo avant la lettre. Um certo feminismo, em todo o caso um feminismo que interditaria e desconstruiria justamente todo e qualquer ismo das hipteses filosficas, poltico-sociolgicas ou antropolgicas essencializantes. E isto, ao pensar e ao dar a pensar o

    33 Ibid, p. 310. 34 Ibid, p. 311. 35 Ibid, p. 189. 36 Ibid, p. 235. 37 Ibid, p. 310. 38 Cf. J. Derrida, En ce moment mme, dans cet ouvrage, me voici in Psych, Galile, 1987.

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    feminino para alm do gender39 como outro do outro um outro do outro, de todo inconceptualizvel, que dita e assina pelo avesso o prprio texto levinasiano: uma espcie de voz que sussurra baixinho, ao rs do silncio, por entre as altaneiras do Dito, como Derrida o dir j no terminus de En ce moment mme, dans cet ouvrage, me voici40, sublinhando a heterogeneidade das vozes (mais de uma, portanto) que entretecem o texto levinasiano que, como qualquer outro, fala a mais de uma voz, nele detectando, como que em surdina, as marcas desta singular precedncia de uma voz feminina: marcas que se manifestam numa outra escuta e numa outra leitura (a de Derrida, exclusivamente) da concepo levinasiana do feminino em termos de acolhedor por excelncia, de acolhedor em si, de linguagem sem ensino, de linguagem silenciosa, de entendimento sem palavras e de expresso no segredo41 Marcas privativas e denegativas (como sero tambm todas aquelas que serviro a Emmanuel Lvinas42 para pensar o animal sem tica, sem rosto, sem logos, sem linguagem, sem o poder de morrer) que, como mostra a leitura de Derrida, esto no entanto bem longe de serem simplesmente negativas: com efeito, elas do a escutar, a quem as souber escutar, justamente, a quem tiver ouvidos para as escutar, o murmurar do prprio silncio que, notemo-lo no mais do que de passagem, reenvia para o silncio tico-potico, antes referido 39 Levinas, Totalit et Infini, p. 169. Escrevemos a palavra gender em ingls porque, como sabido, nesta lngua que ela surge imediatamente conotada com a questo da dita diferena sexual. Como Peggy Kamuf bem o sublinha no seu Book of Addresses, Standford University Press, 2005, p. 7: But genre is not gender if one means by that a sexual classification. The French noun sexe is the closest translation to what Anglophones have generally intended by the word gender, especially in recent times. Genre and gender form a pair of what translators commonly call faux amis or false friends. 40 ELLE NE PARLE PAS LINNOMME OR TU LENTENDS MIEUX QUE MOI AVANT MOI EN CE MOMENT MME OU POURTANT SUR LAUTRE CT DE CET OUVRAGE MONUMENTAL JE TISSE DE MA VOIX POUR MY EFFACER CECI TIENS ME VOICI MANGE ~ APPROCHE-TOI ~ POUR LUI DONNER ~ BOIS, J. Derrida, En ce moment mme dans cet ouvrage me voici in op. cit, p. 202. 41 Cf. Lvinas, Totalit et Infini, p. 166. 42 Cf. Lvinas, Nom dun chien ou le droit naturel in Difficile Libert, A. Michel, Paris, 1976, p. 233.

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    (cf. 2), como vspera e interrupo da prpria linguagem/Dito: um silncio que dita, interrompe e ritma a linguagem do Dito ou como Dito. Um silncio que, anterior aos signos verbais, semntica e prpria lgica sintctica, o Dizer de uma linguagem que, classificada como sinceridade, bondade, amizade, hospitalidade e expresso, Lvinas tem como a prpria ex-posio e aproximao arquioriginrias de outrem. Numa palavra, como a orientao do prprio pensamento para-outrem da parte de um sujeito que pura substituio pelo outro. E neste sentido, o feminino impe-se na obra levinasiana como a origem pr-tica da prpria tica.

    No obstante, apesar da ousada, surpreendente e cuidada ateno ao feminino desde muito cedo presente e a operar no pensamento e na obra de Emmanuel Lvinas na verdade desde as suas primeiras obras, desde De lexistence lexistant (1947)43 e de Le temps et lautre (1947)44, justamente, onde ele pensado e apresentado como a figura por excelncia da alteridade , uma tal ateno, que, como Derrida salientar45, faz dele a origem pr-tica da prpria tica, no exclui no entanto sempre, e em ltima instncia, dir-se-ia, a manobra de uma estranha sujeio palavra viril do rosto, ele tambm, viril ou magistral46 Como o testemunhar tambm o requerido e assumido humanismo da sua tica.

    ***

    43 lautre par excellence, cest le fminin, Lvinas, De lexistence lexistant, Vrin, Paris, 1990, p. 145. 44 Cf. Lvinas, LEros in Le temps et lautre, PUF, Paris, 1979, p. 77-89. 45 J. Derrida, dieu Emmanuel Lvinas, p. 83. 46 Cf. Lvinas, Totalit et Infini, p. 166.

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    A questo do Humainisme

    Lanimal me regarde

    DERRIDA Lanimal donc que je suis, p. 85

    Il faudrait se demander dautre part aprs quoi

    se met en mouvement un discours sur la trace de lautre (ce discours au cours et dans la course duquel jai crois Lvinas selon ce quil a

    appel un chiasme) et pourquoi il devrait inscrire lui la trace de lautre comme animal, comme

    animot (DERRIDA, Lanimal donc que je suis, p. 82)

    Lanimal

    que donc je suis, la trace, et qui relve des traces, qui est-ce ? ,

    (DERRIDA, Lanimal donc que je suis, p.83)

    E o androcentrismo impenitente do pensamento de Lvinas reiterar-se- e manifestar-se- tambm ainda no humanismo da sua tica uma tica no normativa, em sentido tradicional, uma tica para quem o outro, o outro homem constitui a norma de todas as normas, o valor de todos os valores, a lei de todas as leis. Uma tica intempestiva, inquieta e da inquietude que, a si mesma, se declara o humano enquanto humano47. Que, mais precisamente, a si mesma se declara um perscrutar da incondio do humano enquanto humano.

    E isto porque, criticando48, na peugada do anti-humanismo49 contemporneo e/ou das cincias sociais e humanas do sc. XX, os humanismos clssicos, em razo de terem defraudado

    47 Lvinas, Philosophie, Justice et Amour in Entre Nous, p. 127 48 Cf. Lvinas, Humanisme et an-archie in Humanisme de lautre homme, p. 71-92. 49 Lvinas, Dieu et lonto-thologie in Dieu, la Morte et le Temps, p. 213.

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    o seu ideal, ao no terem sabido ser suficientemente humanos, e de no terem por isso sabido estar altura de um humano verdadeira e exigentemente humano, Lvinas redefinir eticamente o seu humanismo como um humanismo do outro homem ttulo, alis, de uma das suas obras dos anos 70: s humano, dir, o humanismo do outro homem50. Isto , notemo-lo: um humanismo do outro enquanto humano (e o antropocentrismo da tica levinasiana!), e do humano enquanto homem (e o seu androcentrismo: o seu falogocentrismo impenitente!)

    O que dizer que pergunta quem o outro?, o absolutamente outro da tica levinasiana, diante de cujo rosto o eu est imediata e incondicionalmente obrigado a responder, o filsofo responde: o outro homem ou o outro como humano: no to surpreendente esquecimento do animal do vivente animal. Com efeito, jamais o dito animal tido como um outro. Ou mesmo como um outro do outro e, enquanto tal e segundo a lgica da tica levinasiana do terceiro, como um outro outro. Ou seja, jamais o animal , na tica levinasiana ou para a tica levinasiana, um rosto51 ou mesmo um terceiro, diante dos quais preciso igualmente responder responsavelmente. Uma responsabilidade que, como sabemos, constitui, para Lvinas, no tanto o prprio mas a incondio do humano enquanto humano.

    Razo pela qual Lvinas que, no obstante, subverte forte e inovadoramente a concepo tradicional e ontolgica do sujeito acaba por reproduzir ainda o discurso cannico-hegemnico da ocidentalidade filosfico-cultural, greco-(epiprometeico52)-judaico-islmico-cristo sobre o animal (no homem, como o limite abissal do homem, e anterior e diferente do homem, como o insinua a homonmia do ttulo Lanimal que donc je suis) - um discurso que vai da Bblia, de Scrates e de Aristteles at ele, Lvinas, passando tambm por Descartes, Kant, Hegel, Heidegger e Lacan. Um discurso denegador e sacrificial do animal que institui, nesta denegao, o prprio do homem, da relao a si de uma humanidade

    50 Lvinas, Dieu, la Mort et le Temps, p. 213. 51 J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 147. 52 Veja-se a este propsito Plato, Protgoras, Inqurito, Lisboa nomeadamente a passagem relativa narrativa de Protgoras da fbula de Prometeu e de Epimeteu, p. 26-36.

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    em primeiro lugar preocupada e ciosa do seu prprio. Uma humanidade que se diz soberana, porque a si mesma se define em termos de poder: detentora do poder do logos (zoon logon ekhon), do poder da linguagem, do poder de responder, do poder de poder, e etc. O que no deixa de constituir um limite, um grave, perturbante e surpreendente53 limite da tica levinasiana do outro ou do absolutamente outro porventura a tica mais radical, mais radicalmente exigente da contemporaneidade. Em todo o caso, a mais ciosa de alteridade. Um limite que atesta o seu humainisme profundo e que, como Derrida refere e demonstra, no obstante ele submeter o sujeito a uma heteronomia radical, fazendo dele um sujeito sujeito lei da substituio (como a metfora do corao to bem o testemunha), acaba por o inscrever ainda na tradio cartesiana do ego cogito, que , no por acaso, uma tradio greco-judaico-crist-islmica. que, como Derrida to bem o demonstra, a dita questo-do-animal ou da animalidade no uma questo qualquer no simplesmente, apesar da simpatia que possam ou devam mesmo suscitar, e justamente merecer, uma questo dos amigos dos animais ou das sociedades protectoras dos animais. antes uma questo indissocivel da dita questo do humano uma questo que d a pensar os fins ou os confins do humano. Uma questo que, como tambm Elizabeth de Fontenay o sublinha54, pe a humanidade (do homem) prova bem como a compaixo e a responsabilidade que a definem ou pelas quais ela deveria definir-se. Com efeito, e como incansavelmente Derrida tambm sublinha, o dito animal constitui um limite obscuro, enigmtico, intocvel e indelimitvel enquanto tal, como todo e qualquer verdadeiro limite , a partir do qual se levantam um feixe de questes imensas e

    53 Tambm Elizabeth de Fontenay no seu admirvel Le silence des btes (Fayard, Paris, 1999) se espanta pela desconcertante indiferena de Lvinas para com a questo animal e pergunta: Levinas na-t-il pas manqu la nudit et la vulnrabilit absolues de tout vivant, telles quelles se manifestent dans la gorge palpitante de la bte prsente au couteau du sacrificateur ou celui du boucher, dans le gibier hors dhaleine traqu la chasse, telles aussi quelles se donnent plus ordinairement regarder dans la tressaillante robe fleur de peau du cheval et dans cette continuit de lextrieur et de lintrieur, dans cette motive bande de Mbius en quoi consiste tout animal ?, op. cit., p. 683. 54 E. de Fontenay, Avant propos a Le silence des btes, p. 13.

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    imensamente inquietantes (tais como: a questo do viver e do morrer, do falar, do ser e do mundo, do ser-no-mundo, do ser-com e do ser-diante, do ser-a-seguir, do ser-antes e do ser-depois, ), e a partir do qual se formulam os conceitos destinados a delimitar o prprio do homem, a essncia e o porvir da humanidade, a tica, a poltica, o direito, os direitos humanos, o crime contra a humanidade, o genocdio, e etc.

    Razo pela qual, apesar da sua to justa reivindicao de respeito para com os animais, a prpria Declarao Universal dos Direitos do Animal55 (datada de 1989 e instituda pela Liga Internacional dos Direitos do Animal) no deixa de reiterar ainda este discurso hegemnico da nossa ocidentalidade filosfico-cultural (seno mesmo o discurso hegemnico da mundialidade!). E da a problematicidade deste texto jurdico. Uma problematicidade que, em primeiro lugar, no pode deixar de no colocar a questo de saber se a nossa relao com os animais deve, em primeiro lugar, ser colocada em termos de direito. Uma problematicidade que decorre igualmente do facto de este texto no ter tambm fora de lei ora, na peugada de Kant (cf. Introduction la doctrine du droit, E), Derrida no se cansa de nos lembrar que no h direito que no implique nele mesmo, a priori, na estrutura analtica do seu conceito, a possibilidade de ser enforced, de ser aplicado pela fora.56.

    Em segundo lugar, esta problematicidade decorre tambm, em sede derridiana, do estatuto do seu direito e do sujeito de direito57 que pressupe. Com efeito, e tendo em conta que, na

    55 Cf. Florence Burgat, Animal, mon prochain, Odile Jacob, Paris, 1997. 56 J. Derrida, Fora de lei, trad. Fernanda Bernardo, Campo das Letras, Porto, 2003, p. 12. 57 O projecto de Peter Singer e de Paola Cavalieri (The great ape Project. Equality beyond humanity, Saint Martins Press, New York, 1994) vai muito alm destes direitos, uma vez que no se limita a querer proteger os animais da crueldade da violncia humana, outorgando-lhe direitos, mas pretende conceder aos grandes macacos no humanos os direitos do homem. Veja-se, a este propsito, o debate entre Paola Cavalieri Les droits de lhomme pour les grands singes non humains?, Le Dbat, 108, jan-fev 2000, p. 156-162 - e Elizabeth de Fontenay, Pourquoi les animaux nauraient-ils pas droit un droit des animaux ?, Le Dbat 109, mars-avril 2000.

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    histria do direito e do conceito de sujeito de direito, aos direitos deste sujeito correspondiam sempre, salvo raras excepes, deveres, no poder ento deixar de se perguntar: no ser, pelo menos, imensamente problemtico reconhecer direitos a sujeitos isentos ou incapazes de deveres como por norma o so os animais?

    Em terceiro lugar, esta problematicidade decorre tambm ainda da conceptualidade fundamental do texto desta Declarao, bem como das definies e dos axiomas que, implicitamente, o redigem: a ttulo de exemplo, e para comear, o prprio conceito de animal, de unidade da vida, de direito natural, de morte, necessria, instantnea, cruel (art. 3), de personalidade jurdica do animal (art. 9), de respeito (respeito pelos animais inseparvel do respeito pelos homens entre si), de liberdade (direito de viver livre no seu meio natural), O que, e sem deixar de ter em conta a infinita perfectibilidade do Direito, dizer que estender aos animais um conceito do jurdico, prprio dos direitos do homem, uma ingenuidade simptica, sim, sem dvida, mas insustentvel. E isto porque, no fundo, acaba por reproduzir a lgica da violncia do discurso filosfico-logocntrico para com o animal.

    O que s revela a triste sorte dos animais! Por um lado, em razo da violncia infinita do poder que, desde sempre, desde o Gnesis mais precisamente, foi dado ao homem exercer sobre eles o poder de os sujeitar, primeiro, o poder de os nomear, depois. Por outro lado, porque at os discursos que se erguem para protestar contra esta imemorial violncia o fazem a partir dos mesmos axiomas e dos mesmos conceitos em nome dos quais esta violncia se exerce e, no fundo, desde sempre se exerceu mesmo quando, sublinha Derrida58, tais protestos partem de uma Declarao Internacional dos Direitos do Animal, de uma cultura ecolgica ou vegetariana, cuja histria to rica quanto antiga. E isto porque, como tambm Derrida o lembrar, um certo conceito do sujeito humano, da subjectividade humana ps-cartesiana, est de momento no fundamento do conceito dos direitos do homem [] O conceito moderno de direito depende massivamente deste momento cartesiano do cogito, da subjectividade, da liberdade, da soberania, etc.. E o filsofo acrescenta:

    58 Cf. J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 125.

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    O texto cartesiano no , certamente, a causa desta grande estrutura, mas representa-a numa poderosa sistematicidade do sintoma. Pelo que, conferir ou reconhecer aos animais direitos, uma maneira sub-reptcia ou implcita de confirmar uma certa interpretao do sujeito humano, que ter sido a alavanca da pior violncia perpetrada contra os viventes no humanos (DERRIDA, De quoi demain, p. 109-110). Denunciado por muitos por Plutarco, Porfrio,

    Montaigne59, Bentham, Adorno, , este discurso hegemnico da ocidentalidade filosfico-cultural teria em Derrida a grande excepo. Uma excepo que o prprio filsofo faz questo de assumir. Diz:

    digo-vos eles, aquilo a que eles chamam um animal, para bem marcar que sempre eu me exceptuei deste mundo e que toda a minha histria, toda a genealogia das minhas questes, na verdade tudo o que sou, penso, escrevo, trao, apago mesmo, me parece nascido desta excepo, e encorajado por este sentimento de eleio. Como se eu fosse o eleito secreto daquilo que eles chamam os animais. a partir desta ilha de excepo, a partir do seu litoral infinito, a partir dela e dela que eu falarei. (DERRIDA, Lanimal que donc je suis,p.91). Uma excepo decorrente do facto de este filsofo se ter

    visto visto pelo dito animal, que o precede, nele vendo por isso uma alteridade absoluta por excelncia mais outra do que qualquer outra. Mais outra do que a alteridade do outro como prximo, semelhante ou irmo. E isto numa absoluta diferena com Lvinas, para quem, como vimos, o outro sempre o outro como humano. Para Derrida, diferentemente, o absolutamente outro (tout autre) absolutamente todo e qualquer outro (Tout autre est tout autre) o vivente em geral. Da o prprio filsofo se confessar uma ilha de excepo no seio da tradio filosfico-cultural, uma espcie de eleito secreto daquilo a que eles [eles, isto , toda a tradio: bblico-filosfico e dxico-potico-literria] chamam os animais. Escutemo-lo: 59 Cf. Michel de Montaigne, Apologie de Raymond Sebond in Essais II, cap. XII, Gallimard, 1950, p. 498, um dos mais significativos textos pr-cartesianos e anti-cartesianos sobre o animal.

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    Eu tambm gosto de ver dormir aquilo a que eles chamam um animal, quando este vivente respira de olhos fechados, porque nem todo o animal vidente. E eu digo-vos eles, aquilo a que eles chamam um animal, para sublinhar que secretamente eu me exceptuei sempre a tal mundo e que toda a minha histria, toda a genealogia das minhas questes, na verdade tudo quanto sou, penso, escrevo, trao, apago mesmo, me parece nascido desta excepo, e encorajado por este sentimento de eleio. Como se eu fosse o eleito secreto daquilo que eles chamam os animais. a partir desta ilha de excepo, a partir do seu litoral infinito, a partir dela e dela que eu falarei. (DERRIDA, Lanimal que donc je suis, p. 91) Uma ilha de excepo que toda a sua obra testemunha. Com efeito, num assumido bestirio filosfico, todo o seu

    corpus assediado pela dita questo do animal desde a aranha, a abelha e as serpentes (de Freud et la scne de lcriture) de Lcriture et la diffrence (1967) ao ttulo do seu ltimo seminrio na EHESS, La bte et le souverain, sem esquecer o ourio de Che cos la poesia?, bem como o bicho-da-seda de Un ver soie; os lobos de Fors (Le verbier de lhomme aux loups) e de Le souverain bien; o cavalo do Parergon (La vrit en peinture) e o cavalo de Espanha que corre no meio de Glas; o burro (no rastro do Ja Ja de Zaratustra), a lebre e o cisne negro de Politiques de lamiti; os pssaros amigos de Laguna Beach e as galinhas brancas da sua infncia sacrificadas aquando do Pards, em Circonfession; os peixes em +R (em La vrit en peinture) e em Dailleurs Derrida; o co hipcrita em Otobiographies; a esponja, a andorinha, a ostra e o camaro de Signponge; a formiga e o formiguito de Lectures de la diffrence sexuel; a serpente de Voyous e de Lanimal que donc je suis; o macaco de La main de Heidegger (in Psych) e de La contre-alle; o cordeiro e o carneiro de Bliers e de Donner la mort; a toupeira de Spectres de Marx, o gato (Setembrino, de seu nome) e a gata de La contre-alle e de Lanimal que donc je suis respectivamente; a pomba e os monstros do apocalipse do Souverain bien, etc. etc, etc,

    Mas, como bem sabemos, nem s a obra de Derrida testemunha a excepcionalidade do filsofo nesta matria: tambm a

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    conceptualidade a operar no seu pensamento e na sua obra o atestam. Como o caso do quase-conceito de trace (rastro), elaborado pelo filsofo em De la Grammatologie quase-conceito que, como comemos por avanar em 1, constitui um dos pontos do contacto no corao do quiasma do filsofo com Lvinas. Mas, e diferentemente do que acontece em Lvinas, para Derrida este quase-conceito de rastro (tal como os seus quase-sinnimos de marca, de grafema, de escrita e de diffrance60) estender-se-ia a todo o vivente61, prpria relao (an-econmica) vida/morte, para alm dos limites antropolgicos da linguagem falada para alm portanto do fonocentrismo ou do logocentrismo que se fiam sempre num limite simples e oposicional entre o dito Homem e o dito Animal. Fonocentrismo e logocentrismo de que Derrida sempre tambm nos lembrou que eles continham, implcita, uma tese sobre o animal62. E fonocentrismo e logocentrismo que e renem naquilo a que Derrida chamar carno-falogocentrismo (carno-phallogocentrisme) para significar o sacrifcio carnvoro no fundamento da nossa cultura (desde o episdio bblico de Abel e Caim, no qual o prprio Deus preferiu o sacrifcio (animal) oferecido por Abel) e do nosso direito. Um sacrifcio que associa o comer carne com a virilidade e a racionalidade.

    Mas nem s a obra e a conceptualidade que nela opera atestam a excepcionalidade da ateno de Derrida para com o vivente animal. Tambm o seu pensamento que, como sabemos, o filsofo faz questo de distinguir de filosofia ditado ou solicitado e assediado pela questo do vivente animal na figura sem figura do tout autre. E isto porque, e diferentemente de Emmanuel Lvinas para quem o tout autre sempre o homem, o outro homem na sua condio de prximo, de irmo ou de semelhante, para Jacques Derrida Tout autre est tout autre. Quer dizer o tout autre, o absolutamente outro no sentido de infinitamente outro e, portanto, no sentido de separado ou de abissalmente secreto absolutamente todo e qualquer outro, no importa quem, e portanto todo e qualquer vivente, humano ou no. E portanto sobretudo o animal

    60 J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 144. 61 J. Derrida, De la Grammatologie, Minuit, Paris, 1967, p. 19-20. 62 J. Derrida, De quoi demain, p. 108 ; J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 48.

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    que Derrida tem por mais outro do que qualquer outro63. Com efeito, depois de dizer que a dita questo do animal sem idade, que ela tem no fundo a velhice do nosso mundo, a velhice da, no homognea mas hegemnica, concepo onto-teolgica do nosso mundo e que, portanto, ela no s nos precede como nos persegue, marcando os nossos fins e os nossos confins, o filsofo afirma em Lanimal que donc je suis: O animal olha-nos, concerne-nos, e ns estamos nus diante dele. E pensar comea talvez a.64

    E numa outra passagem da mesma obra que, para alm de revelar a sua dimenso autobiogrfica, a dimenso autobiogrfica da (sua) escrita, no deixa de salientar tambm o seu diferendo de fundo com Lvinas e isto porque uma passagem que descreve a cena de um Derrida sob o olhar de um/a outro absoluto , o filsofo reitera:

    O animal est a antes de mim, a perto de mim, a diante de mim que sou a seguir a ele. [] Ele tem o seu ponto de vista sobre mim. O ponto de vista do ontro absoluto, e nunca nada me ter dado tanto a pensar esta alteridade absoluta do vizinho ou do prximo seno nos momentos em que me vejo visto nu sob o olhar de um gato. (DERRIDA, Lanimal que donc je suis, p. 28). Mas assim no acontece com Lvinas. Com efeito, nada na

    sua obra atesta que o filsofo se tenha alguma vez visto visto pelo animal: apenas o viu, a ele! Como nada na sua obra atesta tambm que ele alguma vez tenha visto o olhar de um animal como o olhar de um rosto nu e vulnervel, de que escrever pginas e pginas admirveis: um rosto que, como Lvinas advoga, para bem o ver, isto , para o ver como rosto e no como fenmeno ou como mera fachada, haveria mesmo que esquecer a cor dos seus olhos e o desenho dos seus lbios V-lo seria j no o ver como rosto. V-lo seria teoriz-lo! E Derrida lembra a filiao do eidos

    Por outro lado, se s h mal diante de um rosto e em relao a um rosto, que , ele, vulnerabilidade e resistncia absolutas, ento, tudo aquilo que no tem rosto um lugar de pura indiferena O que justifica talvez a desconcertante indiferena da tica levinasiana para com o animal, uma vez que para ele o animal no um rosto.

    63 J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 29. 64 J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 50.

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    E da a demarcao crtica, hiper-crtico-desconstrutiva de Derrida (e de alguns outros65). Uma demarcao que, e pelo essencial, passa pela denncia do humanismo66 da tica levinasiana um humanismo que Derrida sintomaticamente designar de Humainisme e no qual salienta dois traos fundamentai de todo imbricados: por um lado, o supra-referido antropo-falogocentrismo em razo de o absolutamente outro (tout autre) da tica levinasiana ser o outro homem , por outro, aquilo que o filsofo designar de carno-falogocentrismo (carno-phallogocentrisme) para salientar, a par da virilidade desta tradio antropo-teocntrica, a sua dimenso trgica e assumidamente sacrificial: O mal do animal o macho dir Derrida jogando com a homofonia da palavra francesa mal (mal) e mle (macho). O mal vem ao animal pelo macho67. Isto , pelo homem pela virilidade humana.

    Com efeito, nunca o outro da tica levinasiana o vivente em geral mas to-somente o vivente humano. E um vivente que, critica Derrida, um homem num mundo onde o sacrifcio possvel, e onde no interdito atentar contra a vida em geral mas to-somente contra a vida do homem. O sexto mandamento bblico, o No matars! o 5 no seio da cristandade , que, para Lvinas, o primeirssimo, um mandamento multimodalmente declinvel no fars mal, no fars sofrer, coisa que por vezes pior do que a morte, etc. etc. no se enderea seno ao outro homem como prximo, semelhante ou irmo, que alis j pressupe68. Jamais ao vivente em geral! Jamais o No matars! se enderea ao animal, por exemplo por isso um grande esquecido pela tica levinasiana do tout autre69.

    65 O esquecimento e a secundariedade do animal no seio do pensamento de Lvinas igualmente salientada por J. Llewelyn, The Middle Voice of Ecological Conscience : A Chiasmic reading of Responsibility in the Neighbourhood of Levinas, Heidegger and Others, St. Martins Press, NY, 1991. 66 J. Derrida, Il faut bien manger ou le calcul du sujet in Points de suspension, Galile, Paris, 1992, p. 293-294. 67 J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 144. 68 Lvinas, Philosophie, Justice et Amour in Entre Nous, p. 128. 69 J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 152-153.

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    Um esquecimento que, sublinha Derrida, filia Lvinas na tradio epiprometeica-judaico-islmico-crist, na qual o poder do logos, a virilidade e a crueldade sacrificial andam de mos dadas. Lembremos aqui de passagem que Derrida nos lembra que, na primeira narrativa gensica, Ado, o homem-mulher, que recebe de Deus o poder para sujeitar os animais. Enquanto que na segunda narrativa (do Brshit) ser o homem s, ser Isch que, antes da mulher, antes de Icha, recebe de Deus o poder de nomear os animais. Que o mesmo dizer, recebe de Deus o poder para sujeitar os animais ao seu prprio poder E isto, para nada aqui dizer do sacrifcio do animal (a Deus) na cena bblica de Abel e Caim (Gen. 4; 1-16) que na leitura derridiana contm uma crtica ao quase-conceito de fraternidade de Lvinas70, apesar de este j o repensar em termos meta-biolgicos e na cena do dito sacrifcio de Isaac (Gen. 22; 1-19).

    Impossvel no ver que esta tradio sacrificial que a tica levinasiana reedita uma tica assumidamente sacrificial71. Com efeito, apesar da perturbante, mas contraditria, narrativa de Bobby, le dernier kantian de lAllemagne nazie72, e do no menos perturbante e no menos contraditrio comentrio de Lvinas ao episdio bblico de Gnesis 24; 15-22 que narra como Rebeca ter dado de beber no s ao viandante sedento, mas tambm aos seus camelos que no sabem pedir que se lhes d gua73 , ensinando e apelando hospitalidade incondicional para com o primeiro chegante, seja ele, ousa Lvinas dizer, um pouco camelo74, a verdade que, para Lvinas, no s o animal no tem ou no um rosto75 nem mesmo um terceiro , no sendo nunca portanto um primeiro chegante, como a responsabilidade tica, enquanto incondio do humano, no vale diante do vivente em geral76 mas 70 Ibid, p. 29 71 Lvinas, Autrement qutre, p. 18-19. 72 Cf. Lvinas, Nom dun chien ou le droit naturel in Difficile Libert, p. 213-217. 73 E. Lvinas, lheure des nations, Minuit, Paris, p. 156. 74 Lvinas, La Bible et les Grecs in lheure des nations, Minuit, Paris, p. 156. 75 Lvinas, Totalit et Infini, p. 216. 76 Lvinas, De lutilit des insomnies in Les imprvus de lhistoire, Fata Morgana, Montpellier, 1994, p. 201.

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    to-somente diante do vivente humano. E da a crtica de Derrida a Lvinas. Quem a ouvir?

    Ora, mesmo se Lvinas inflecte a herana, mesmo se ele inverte o que se poderia descrever como a tendncia tradicional e ontolgica do sujeito, mesmo se ele o faz de forma forte, original e, digamos, subversiva [], mesmo se ele submete o sujeito a uma heteronomia radical, mesmo se ele faz do sujeito um sujeito sujeito lei da substituio, mesmo se ele diz do sujeito que ele antes de mais um hspede [], mesmo se, do sujeito, ele nos lembra que ele refm [], este sujeito da tica, o rosto, permanece primeiramente e somente um rosto humano e fraterno. [] Trata-se de pr o animal fora do circuito da tica. (DERRIDA, Lanimal que donc je suis, p. 147). Com efeito, questo de saber se o sujeito tico

    responsvel diante do vivente em geral, a tica levinasiana, que a este nvel partilha o ponto de vista hegemnico ou cannico das metafsicas e das religies77 ocidentais, responde pela negativa. Como Derrida bem o demonstra em Lanimal que donc je suis (1997 e 2006) um Derrida para quem o dito animal (e, como bem sabemos, este singular j uma asneira! E isto porque pressupe a existncia de uma identidade geral do animal no esquecimento das diferenas estruturais entre diferentes tipos de animais78) o ponto de vista do outro absoluto [] do absolutamente outro, mais outro

    77 O antropocentrismo da ocidentalidade data da narrativa gensica. Depois de ter criado, ao quinto dia, os animais (Gen. I, 26-28), Elohim deu a Ado o poder de os nomear. Cena que se repete na segunda narrativa do Genesis onde a Isch antes de Ischa que dado o poder de nomear os animais, no entanto criados antes do homem e do tempo do homem (Gen. 2, 19-20). Um poder sacrificial que se traduzir depois na preferncia de Deus pela oferenda animal de Abel contra a de Caim que havia permanecido agricultor e sedentrio e, portanto, mais fiel ao arqui-mandamento vegetariano de Deus. Ora, como no notar tambm que o protesto de Lvinas, o pensador da separao ou do atesmo, contra o sedentarismo e a sacralizao do lugar o colocaria inevitavelmente do lado de Abel, o criador de gado que oferece os primeiros nascidos a Deus no oitavo dia do seu nascimento? 78 J. Derrida, Lanimal que donc je suis, p. 73.

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    do que qualquer outro79 e, ipso facto, na sua incomensurabilidade, uma medida para atestar o grau de responsabilidade e de humanidade do vivente humano, uma vez que a dita questo do animal indissocivel da questo da dita identificao subjectiva , como Derrida bem o demonstra em Lanimal que donc je suis (1997 e 2006), dizamos, Lvinas situa-se ainda na linha dos filsofos80, dos pensadores e dos poetas81 que, desde o Genesis e do zoon logon ekhon de Aristteles, nunca se viram vistos pelos animais. Apenas os viram!

    Tal a asneira (btise) cometida contra os animais (btes), e que Derrida denuncia. Derrida para quem, lembro-o tambm ainda de passagem, o poema repensado atravs do ourio (hrisson, palavra que contm 3 letras do nome de Derrida) com a inteno de 79Lanimal autobiographique, Galile, Paris, p. 261-262. 80 Desde o zoon logon ekhon de Aristteles Stummheit, Benommenheit, Spraschlosigkeit de Heidegger (SZ, 68) e de W. Benjamin, passando por Descartes, Kant e Lacan, a questo do animal repete o seu impoder, enigmaticamente decretado pela narrativa gensica, como sendo o poder prprio (soberano e sacrificial) do homem. Buber ter olhado com ateno e estima o animal, mas o seu olhar trai ainda uma viso antropomrfica: Les yeux de lanimal nous parlent un grand langage [] Je regarde parfois ma chatte au fond des yeux. [] Il est incontestable que le regard de cette chatte, allum au contact du mien, me demandait dabord : Est-il possible que tadresses moi ? [] Est-ce que jexiste ?, Buber, Je et Tu, Aubier, Paris, 1969, p. 142-143. A grande excepo J. Bentham que deslocou a questo do animal do registo do poder poder de pensar, de raciocinar ou de falar para o impoder de sofrer: can they suffer? pergunta Bentham, recolocando a questo ao nvel da sua finitude ou da sua mortalidade e apelando compaixo para com os animais que tm, de comum com os viventes humanos, este poder. Outra excepo Montaigne, que outorgou ao animal o poder de responder. En combien d sortes parlons nous nos chiens? Et ils nous rpondent, Montaigne, Essais, II, cap. XII, Pliade, Gallimard, Paris, 505. 81 Rilke, por exemplo : assim ele parece disfarar dentro de si/ todos os olhares que jamais nele pousaram, / para sobre eles, ameaador e agastado, /se fechar num arrepio e com eles dormir./ Mas subido, como que desperto, volta o rosto para ti e contempla-te nos olhos:/ e ento encontras o teu prprio olhar no mbar/ amarelo das pedras redondas dos seus olhos, /inesperadamente: incrustado e fssil/ como um insecto de remotas asas., Gato preto in Poenas I, trad. Paulo Quintela, Atlntida, Coimbra, MCMLXVII, p. 244-245.

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    aproximar a experincia potica da experincia do animal e da autobiografia. Derrida para quem o pensamento do animal, se existir, s pode mesmo ser, como o da hospitalidade, um pensamento potico82. Derrida para quem o poema aquilo que ensina ou aquilo que inventa o corao83. Corao que, notemo-lo tambm, algo partilhado por todos os animais por todos os viventes animais. Acaso no consignar o corao, estoutro corao um apelo compaixo? Porque, como Derrida to bem o demonstra em De lanimal que je suis, a questo do animal tambm uma luta sem trguas pela compaixo: can they suffer? perguntou Bentham. E quem duvida? Uma luta sem trguas pela compaixo na qual se joga a responsabilidade de um humano finalmente digna do seu nome.

    Em suma. A desconstruo dos limites da tica levinasiana por excelncia ilustrados pelo seu antropocentrismo , uma desconstruo que tambm a reafirmao da singularidade e do esprito de justia que anima a desconstruo derridiana, levada a cabo atravs do sintagma intraduzvel Tout autre est tout autre a pedrada84 atirada ao jardim levinasiano do Tout autre, e que, no dizer do prprio Derrida, rene e a fidelidade e a resistncia possveis ao discurso levinasiano85. Uma resistncia na fidelidade a partir da fidelidade, justamente. Uma fidelidade que se manifesta na sua adeso incondicional hiper-radicalidade do pensamento levinasiano do tout autre este aquilo que, de cada vez, e para Lvinas e para Derrida, apela ou d a pensar. A resistncia nesta fidelidade ou nesta proximidade manifestar-se- na declinao do tout autre: um tout autre que, em Lvinas, se limita ao humano enquanto humano. E no ao vivente em geral. Uma resistncia que assinala um importante diferendo entre estes dois pensadores do outro e/ou do porvir. Um diferendo portador do sonho de uma outra responsabilidade e de um outro habitar-o-mundo-com-outrem a responsabilidade de uma humanidade incondicionalmente obrigada 82 J. Derrida, Lanimal que donc je suis in colectivo, Lanimal autobiographique, Galile, Paris, 1999, p. 258. 83 J. Derrida, Che cos la poesia ? in Points de suspension, p. 306. (trad. port. Che cos la poesia ?, trad. de Osvaldo Silvestre, Angelus Novus, Coimbra, 2003). 84 J. Derrida, Carta de 26 Janeiro de 1998 a C. Malabou em J. Derrida, C. Malabou, La contre-alle, p. 263. 85 Derrida, Derrida avec Lvinas in op. cit., p. 33.

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    a responder diante do apelo, audvel ou silencioso, do vivente em geral humano ou no! Uma responsabilidade que, nestes tempos de grande bouffe e de grand massacre, como to justamente lhes chama Elisabeth de Fontenay, selaria uma outra arca de No quero dizer, o contrato para um outro modo de, homens e animais, viverem juntos no mundo. Um sonho para amanh? Um sonho sem amanh?

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