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8/18/2019 Fernandes, T., Ségolène Aymé (Entrevista) http://slidepdf.com/reader/full/fernandes-t-segolene-ayme-entrevista 1/3 SÉGOLÈNE AYMÉ 'Os pais são os principais afectados' Apesar de ter 30 anos de experiência, a especialista em doenças raras confessa não conhecer ainda a melhor forma de transmitir um diagnóstico à família do doente IAGO FERNANDES S EFEITOS PERVERSOS DA Natureza fazem com que 5% das pessoas sejam, aleatoria mente, atingidos pelas doen ças raras - desde a hemofilia às miopatias. E estas são mui as: estão identificadas entre 6 mil e 7 mil todas as semanas são descobertas mais inco.Algumas são tratáveis. Curáveis, enhuma. Ainda assim, Ségolène Aymé, médica geneticista, continua a sua luta de mais de 30 anos a investigar o modo como tais doenças atraiçoam uma vida e despedaçam uma família. A cientista es teve, recentemente, em Portugal, para apresentar a versão portuguesa de As In- justiças do Nascimento, um livro onde re lata vários episódios profissionais e no qual ficam patentes os vários obstácu los ao trabalho de um geneticista, desde o óbvio quebra-cabeças do diagnóstico à falta de colaboração de outros médicos, passando pelas regras comerciais da in dústria farmacêutica. »• QUEM É Médica geneti cista desde 1972, especializou-se no estudo das anomalias do desenvolvimento e, cm particular, das doenças raras. Foi dos primeiros cientistas a criar uma base sistematizadora de todas estas maleitas e dos seus efeitos. O QUE FAZDirectora de invesfigação do Instituto Francês de Saúde e Investigação Médica (ISERM) e pre sidente da Federação Internacional de Sociedades de Genética Humana (IFGHS). Gestora do projecto Orpha- net, que inclui uma vasta base de dados de doenças raras e sintomas, disponível numa rede europeia de 20 países (incluindo Portugal). ISÃO 31 DE AGOSTO DE 2006

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SÉGOLÈNE AYMÉ

'Os pais são os principaisafectados'Apesar de ter 30 anos de experiência, aespecialista em doenças raras confessa nãoconhecer ainda a melhor forma de transmitirum diagnóstico à família do doente

IAGO FERNANDES

S EFEITOS PERVERSOS DANatureza fazem com que 5%das pessoas sejam, aleatoriamente, atingidos pelas doenças raras - desde a hemofilia

às miopatias. E estas são muias: estão identificadas entre 6 mil e 7 miltodas as semanas são descobertas maisinco. Algumas são tratáveis. Curáveis,enhuma. Ainda assim, Ségolène Aymé,

médica geneticista, continua a sua luta

de mais de 30 anos a investigar o modocomo tais doenças atraiçoam uma vida edespedaçam uma família. A cientista esteve, recentemente, em Portugal, paraapresentar a versão portuguesa de As In-

justiças do Nascimento, um livro onde relata vários episódios profissionais e no

qual ficam patentes os vários obstáculos ao trabalho de um geneticista, desdeo óbvio quebra-cabeças do diagnóstico àfalta de colaboração de outros médicos,passando pelas regras comerciais da indústria farmacêutica. »•

QUEM É Médica geneticista desde1972, especializou-se no estudo dasanomalias do desenvolvimento e, cmparticular, das doenças raras. Foidos primeiros cientistas a criar umabase sistematizadora de todas estasmaleitas e dos seus efeitos.

O QUE FAZ Directora de invesfigaçãodo Institu to Francês de Saúde eInvestigação Médica (ISERM) e presidente da Federação Internacionalde Sociedades de Genética Humana

(IFGHS). Gestora do projecto Orpha-net, que inclui uma vasta base dedados de doenças raras e sintomas,disponível numa rede europeia de20 países (incluindo Portugal).

I S Ã O 31 DE AG OS TO DE 2 0 0 6

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SEGÎIEENEISYME

VISÃO: O Homem chegou à Lua, dividiuo átomo, descodificou o mapa genéticohumano e não consegue erradicar asdoenças raras. Porquê?SÉGOLÈNE AYMÉ: Elas existem, por

que ainda há espécies a evoluir, cujas mutações fazem com que crianças nasçamcom anomalias. Sabemos, por exemplo,que há doenças que se manifestam no17.° cromossoma, mas não conseguimosevitá-las, pois o problema ou a «mensagem errada» está no interior de cada célula do organismo, o que torna a missãoclínica impossível. Mas, ainda assim, aciência evoluiu muito e hoje é possível,através de fármacos, tratar os efeitos dealgumas doenças, de forma eficaz.

Quais os progressos mais importantes?O genoma humano permitiu-nos, de hádez anos para cá, ter toda a comunidadecientífica atenta à nossa área. E, hoje, jáexistem medicamentos para atenuarcerca de 120 doenças raras. Mas foi nanoção de perspectiva que se deu a grandemudança: quando comecei a trabalhar,pensava-se que não havia nada a fazer eque, por exemplo, uma criança com Tris-

somia 21,

por ter deficiências mentais, devia era ficar em casa e não ir à escola, ondenão conseguiria aprender nada. Aqui, foifundamental a luta dos pais e foram elesque nos mostraram que estes miúdos têmmuitas capacidades. Agora, já não estamospresos aos preconceitos e por mais graveque seja a doença, procuramos sempreestimular as aptidões e melhorar a qualidade de vida dos doentes.

Ainda assim, refere no seu livro que

«nunca nos habituamos a ser testemunhasde um diagnóstico de uma doençadestas»-...Garanto a pior experiência profissional deum médico é anunciar a um casal - que,logicamente, sempre esperou ter um filhonormal - que o seu bebé tem uma deficiência para toda a vida. Nunca encontrei umaboa forma de o comunicar, creio mesmoque não existe. Por exemplo, quanto à síndroma de Williams, é complicadíssimo explicar à família que aquela criança terá umproblema de desinibição total, que a faráseguir seja a quem for e obedecer a toda agente, meter-se no carro com desconhecidos, etc, e que ainda não há solução terapêutica para o caso...

r• Os geneticistasnunca foram

objectode grandeconsideração

por parte dosm outros médicos

Na ausência de esperança, que conforto pode um médico dar a uma família como essa?E muito difícil, até porque devemos ter ummisto de compaixão e profissionalismo. Oimportante é convencê-los de que não são

culpados, de que há erros, na Natureza,que produzem mutações no código genético. Muitas destas mutações são produtode radiações vindas do Cosmos, outras deradiações terrestres, e todas elas descon-figuram o DNA, sem nada se poder fazerpara o controlar. Outra coisa que, para afamília, é importante: que a doença tenha um nome, pois isso permitir-lhe-átrocar experiências com outras famíliasque estejam na mesma situação, criar associações e, assim, enfrentar o drama deforma mais afirmativa.Diz que, através da árvore genealógica dafamília, se pode prevenir uma doença rara.De que forma?Não serão todas, mas a grande maioriadestas anomalias são transmitidas pela família. E a nós cabe-nos explicar às pessoaso modo como a doença passa de uma geração para outra. A hemofilia, por exemplo,só afecta rapazes e é-lhes transmitida pelas mães. Neste caso, torna-se imperiosofazer um diagnóstico pré-natal, durante agravidez, para prevenir que o filho nasçacom aquela deficiência. Mas nem todasas pessoas entendem isto, há preconceitos culturais.

Já lhe apareceram casos em que alguémoculte a verdade ao resto da família?Imensos! Lembro-me de uma mulher,de alta posição social, que, tendo transmitido uma doença ao filho, não contou

nada às suas duas irmãs, com receio deque, ao saber-se que também eram transmissoras dessa anomalia, ninguém quisesse casar com elas. Uma das irmãs teveum filho com a mesma doença; a outra,ignorando a verdade, também deu à luzum bebé doente.

Também nota essa displicência no querespeita ao consumo de álcool, durante agravidez?Essa é outra prova flagrante de quão difícil é fazer passar a mensagem. Desde osanos 80 que está provado ser o síndromade alcoolização fetal o principal responsável pelos atrasos mentais, nas crianças. Eisso irrita-me, pois são doenças perfeitamente evitáveis. Mas, aqui, há forte culpados médicos, em especial nos países doSul da Europa, como França, Itália, Espanha ou Portugal, que não falam a esterespeito com as grávidas. Além disso, nãoexiste uma política de informação pública

destinada a convencer aquelas mulheres anão tocarem numa gota de álcool.

Fala da importância da f etopatologia paraprevenir o nascimento de bebés doentes,mas é ou não verdade que, em muitoscasos, a doença permanece oculta, duranteanos?Sim, embora isso não retire o valor à importância da análise dos fetos mortos.Uma vez que pelo menos 1% das crianças nado-mortas apresentam doenças raras, esse exame pode despistar uma futuragravidez dramática da mãe. É verdadeque algumas dessas doenças só se manifestam muito tarde, como o síndroma deDuchenne, em que a criança é perfeitamente sã até aos 5 anos. Depois, começaa perder a força nas pernas e, até aos 20anos, perde-a também nos membros superiores. Então, morre. E nada podemosfazer, pois o diagnóstico surge, inevitavelmente, numa fase muito adiantada.

Refere haver pouca sensibilidade dosoutros clínicos aos assuntos relacionadoscom a genética. Em que medida issocomplica o seu trabalho?Os principais afectados, até nisto, são

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os pais. Lembro-mede um miúdo comosteogenesie imper-fecta, uma doençararíssima em que

os ossos ficam moles e se quebramconstantemente,cujos pais eram vistos como agressorespelos pediatras, porquea criança ia muitas vezes ao médico com

:-^ as pernas e os braços partidos. Jánoto, hoje, maior interesse dosoutros médicos pelo nosso trabalho, mas a verdade é que muitos

' nem sequer colocam a anoma

lia genética como hipótese, nosseus diagnósticos, não encaminhando os doentes para nós. Eisso faz com que muitas doenças raras fiquem por detectar ecom que a vida de muitas crian

ças se torne um martírio.

Como interpreta essa atitude?( )̂ fonoticistas nunca foram ob

jecto de grande consideração por partedos outros médicos,dado que eles diagnosticam e tratam,enquanto nós nos limitamos, dizem, aoblá, blá, blá de analisar as consequências. Nunca nosviram como socialmente líteis e nãopercebem o quãoingrato é o nossotrabalho. Há unstempos, um homem veio ter comigo, no final deuma conferênciaque dei sobre umadoença hereditária recessiva, adquirida atravésdos pais. Aos 50anos, não tinha

filhos por sempre ter pensadoque, se tivesse,lhes transmitiriaa doença. Qualquer geneticistalhe teria explicado que não,

t mas como nãofoi encami

nhado para nenhum de nós...

Diz que existe muitacompetitividade entre oscientistas......Porque todo o sistema as

senta nisso. Como é que se avalia umcientista? Pelo niimero de artigos qupublica, em revistas especializadas. Scomentar o trabalho em grupo, há o riscode um colega se antecipar e ficar com o

louros. É um campo onde surgem desonestidades: há 15 anos, enviei um artigopara uma certa revista e, três meses, depois foi-me devolvido. Remeti-o a outrpublicação que o aceitou sem qualquereparo. Tive, depois, a surpresa de ver meu artigo publicado ao mesmo tempque o de um investigador alemão, precsamente sobre o mesmo tema, na revistque inicialmente me fechara as portasHá uns anos, o alemão admitiu-me tesido um dos especialistas a quem ess

revista pedira para rever o meu artigo.E isto continua a acontecer, tudo devidao sistema de avaliação.

nO importanteé convencer

os pais deque não sãoculpados IDada a lógica comercial da indústriafarmacêutica, como é que esta secomporta perante um rácio de poucosdoentes por anomalia?

Não se pode esperar destas multinacionais que invistam dinheiro sem perspectivas de obterem lucro. No caso de umdoença que afecte 300 pessoas o preçpor medicamento terá de ser forçosamente elevado, na casa dos 300 mil euros anuais, por paciente. É dramático, éuma fortuna, e tenho pena de ainda nãse terem encontrado mecanismos parsubsidiar tais custos. Há um grande debate em torno desta questão, mas muitosão contra a solução de o Estado financiarestes tratamentos devido ao seu elevadcusto. E o meu receio é que, estando falidos muitos sistemas de saiide, não consigamos pagar as novas terapêuticas quforem surgindo. •

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