8
Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012. A cerâmica "meliana": Contatos entre Grécia e Mesopotâmia no século VII a.C. ANISIO CANDIDO PEREIRA FILHO (*) 1 On a beaucoup essayé d´établir des rapports entre un certain nombre de mythes grecs et des mythes soit hittites, soit babyloniens. Bien que ma connaissance des mythes du Proche-Orient ancien soit très superficielle – j´ai simplement lu les textes – je pense que, s´il y a des ressemblances, elles ne sont pas beaucoup plus grandes que par rapport à d´autres grandes civilisations très différentes – d´Amérique précolombienne ou d´Afrique. Jean Pierre Vernant. L´Orient Ancient et Nous. (VERNANT, 1998: 196) A cerâmica "meliana" é o suporte de muitas pinturas que são um reflexo do universo Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do mar Egeu; além da ilha Tasos e da Cirenaica. Figura 1 - Mapa dos sítios arqueológicos citados. Google Earth, 2012. Há algum tempo atrás renomados helenistas como, por exemplo, Jean Pierre Vernant, ainda não aceitavam as aproximações entre o mundo Grego e a Mesopotâmia. As imagens, que são carregadas pelos vasos gregos orientalizantes, nos mostram que esses contatos foram profundos e marcaram decisivamente a arte grega. Existem mais semelhanças entre o mundo grego e o mesopotâmico do que outras regiões, como a África ou a América pré-Colombiana. 1 (*) Universidade de São Paulo / Museu de Arqueologia e Etnologia. Graduado em Filosofia (FFLCH/USP) e Mestre em Arqueologia (MAE/USP). LARP – Laboratório de Arqueologia Romana Provincial - [email protected] GEA – Grupo de Estudos Acádicos - [email protected]

Jean Pierre Vernant (VERNANT, 1998: 196) · Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do

  • Upload
    hakhanh

  • View
    221

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Jean Pierre Vernant (VERNANT, 1998: 196) · Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

A cerâmica "meliana": Contatos entre Grécia e Mesopotâmia no século VII a.C.

ANISIO CANDIDO PEREIRA FILHO (*)1

On a beaucoup essayé d´établir des rapports entre un certain nombre de mythes

grecs et des mythes soit hittites, soit babyloniens. Bien que ma connaissance des

mythes du Proche-Orient ancien soit très superficielle – j´ai simplement lu les textes

– je pense que, s´il y a des ressemblances, elles ne sont pas beaucoup plus grandes

que par rapport à d´autres grandes civilisations très différentes – d´Amérique

précolombienne ou d´Afrique. Jean Pierre Vernant. L´Orient Ancient et Nous.

(VERNANT, 1998: 196)

A cerâmica "meliana" é o suporte de muitas pinturas que são um reflexo do universo

Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas

Cíclades, que são as ilhas centrais do mar Egeu; além da ilha Tasos e da Cirenaica.

Figura 1 - Mapa dos sítios arqueológicos citados. Google Earth, 2012.

Há algum tempo atrás renomados helenistas como, por exemplo, Jean Pierre Vernant,

ainda não aceitavam as aproximações entre o mundo Grego e a Mesopotâmia. As imagens,

que são carregadas pelos vasos gregos orientalizantes, nos mostram que esses contatos foram

profundos e marcaram decisivamente a arte grega. Existem mais semelhanças entre o mundo

grego e o mesopotâmico do que outras regiões, como a África ou a América pré-Colombiana.

1 (*) Universidade de São Paulo / Museu de Arqueologia e Etnologia. Graduado em Filosofia (FFLCH/USP) e

Mestre em Arqueologia (MAE/USP).

LARP – Laboratório de Arqueologia Romana Provincial - [email protected]

GEA – Grupo de Estudos Acádicos - [email protected]

Page 2: Jean Pierre Vernant (VERNANT, 1998: 196) · Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do

2

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

Possuímos uma documentação em acádico assírio que confirma a existência destes

encontros e isso fortalece as teorias de aproximação iconográfica.

O tablete NL 69 (ND 2370) com inscrições cuneiformes, no idioma acádico, relata o

contato entre os gregos da Jônia e um oficial da Assíria, Qurdi-Aššur-lāmur, o qual habitava

em uma região próxima a Tiro ou Sídon, no Levante.

Nesta carta, endereçada ao rei Tiglath-pileser III (744-727 a.C), o oficial relata uma

batalha e a expulsão dos gregos jônicos. Além disto, nos fornece pistas sobre o transporte de

mercadorias, pois afirma que “not anything did they (the Ionians) carry away”, ou seja, eles

saqueavam a região e levavam o que podiam para a Jônia.

Este artefato faz parte das Cartas de Nimrud2 (NL=Nimurd Letters), que são parte do

trabalho de H.W.F. Saggs em escavações de 1952. Uma parte deste material foi publicada na

revista Iraq, entre 1950 e 1960.

Vamos ao artefato:

Figura 2. Tablete ND 2370 = NL 69, Museu Britânico; fotografia de Greta Van Buylaere.

Tradução da face principal do tablete,

proposta por Rollinger (ROLLINGER, 2001: 237):

NL 69 (ND 2370)

To the king my lord,

your servant Qurdi-Aššur-lamur:

2 Nimrud foi uma das cidades mais importantes da Assíria, juntamente com Nínive e a sagrada Ashur, muitas vezes capital do império.

Page 3: Jean Pierre Vernant (VERNANT, 1998: 196) · Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do

3

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

The ‘Ionians’ have [a]ppear[ed].

They have battled at the city of [Samsim][uruna?],

at the city of Hari[u], and at the ci[ty of …].

A ca[valryman] [c]ame to the city of [Dana][bu?] (to report this to me).

I gathered up regular soldiers and conscripted men

and went after them. Not anything

did they (the Ionians) carry away. As soon as they [sa]w

my soldiers they [fled] on their boats. In the midst of the sea

they [disappeared]. After my [ …. ]

Tradução3 para o português:

NL 69 (ND 2370):

Para meu rei, meu senhor,

seu servo, Qurdi-Aššur-lamur:

Os ´Jônicos´ apareceram.

Eles lutaram na cidade de [Samsim][uruna?],

na cidade de Hari[u], e na ci[dade de …].

Um ca[valeiro] [v]eio da cidade de [Dana][bu?] (para relatar isso para mim).

Reuni soldados regulares e recrutei homens, fui depois deles.

Eles (os Jônicos) não levaram nada. Assim que [vi]ram

meus soldados, eles [entraram] nos seus barcos. No meio do mar,

eles [desapareceram]. Depois do meu [ …. ]

Podemos perceber que estes gregos, jônicos, eram já conhecidos pelo oficial Qurdi-

Aššur-lamur e eram inimigos dos assírios. Os assírios controlavam a região do Levante, nas

cidades de Sidon e Tiro, portanto, esses saqueadores eram sempre rechaçados pelos exércitos

do rei.

Outra questão é o fato de fugirem para o mar, o que nos possibilita pensar também nas

ilhas do Egeu, próximas a costa da Turquia e no centro deste mar, nas ilhas Cicládicas.

Talvez, se as teorias sobre a tradução do termo “Jônicos”, em acádico “Ia-ú-na-a-a”,

estiverem corretas, estamos com primeira aparição dos gregos na história. Este é,

provavelmente, o primeiro texto que nos informa sobre os gregos que, neste momento,

estavam iniciando sua escrita.

3 Tradução de minha autoria.

Page 4: Jean Pierre Vernant (VERNANT, 1998: 196) · Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do

4

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

Não só percebemos o contato e o transporte de mercadorias e bens luxuosos, mas, e

isso é algo significativo, temos informações nestes textos assírios sobre estes jônicos, coisa

que não iremos encontrar na Grécia, ainda praticamente iletrada, do mesmo período.

Portanto é de fundamental importância o conhecimento dos textos assírios. Apesar de,

Grécia continental ser uma região periférica do império Assírio, a Jônia, o Levante e ilhas

como Creta e Chipre, atestam a passagem dos Assírios.

Temos duas questões principais, a cerâmica grega “meliana” e os textos em acádico

assírio.

O contato entre assírios e jônios, comprovado neste texto em acádico, é uma

importante fonte documental, pois fortalece a hipótese da presença de elementos

iconográficos mesopotâmicos assírios nas imagens pintadas sobre os vasos gregos

orientalizantes, principalmente os de tipologia “meliana”, datados entre 670 e 580 a.C.

Há, sem dúvida, continuidades do período denominado geométrico na arte e nos

artefatos gregos, mas, o movimento “orientalizante” do século VII a.C. irá marcar de forma

decisiva o imaginário grego.

Figura 3 - Cerâmica "meliana". Detalhe da Ânfora de Apolo. Grifo sobre a cabeça dos cavalos alados. Fotografia de Anisio Candido. Museu Nacional de Atenas.

Grifos, cavalos, flores de lótus, etc., aparecem inundar e modificar o antigo e estável

padrão geométrico. Muitos preenchimentos ocupam toda a superfície dos vasos “melianos”,

esses preenchimentos podem ser figuras humanas, divinas, animais, flores, guirlandas,

meandros, pontos, pingos, cruzes, e, se misturam num campo poluído de imagens. Em alguns

lugares onde vemos alguns traços posteriormente ocorrerão as primeiras inscrições da língua

grega na cerâmica. Estes preenchimentos, e alguns são provenientes do período geométrico,

parecem balbuciar códigos incompreensíveis. Não pensamos, jamais, em qualificações como:

Page 5: Jean Pierre Vernant (VERNANT, 1998: 196) · Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do

5

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

decorações, ornamentos. Se assim pensássemos estaríamos procurando entender algo que foge

da nossa compreensão e, o que é pior, falar em “ornamento” é remover um significado que

não conhecemos, é diminuir a importância do que ali está pintado. Uma flor pintada entre as

patas de um cavalo pode não ser um ornamento, pode ser algo importante para o artificie que

produziu a obra.

Na Ânfora de Apolo, abaixo, notamos a presença de grifos, cavalos alados,

instrumentos musicais, entre outros elementos. Quando pensamos no contato entre o mundo

grego e a mesopotâmia e concluímos que algumas imagens seguem um padrão comum.

Podemos também pensar, por hipótese, que a música e a arte da guerra também eram algo a

ser adaptado para o modo grego.

Se, nos cavalos pintados na cerâmica grega orientalizante são encontrados os mesmos

atributos, no caso da Ânfora de Apolo, um grifo sobre a cabeça do cavalo, então podemos

pensar que, talvez, as técnicas militares também eram percebidas e absorvidas pelos gregos.

“… for many it would be unacceptable to think of Hellenic warriors depending on

Semitic prototypes even in their language. Still, from a historical point of view, the

militarization of the Assyrians preceded the Greek polis, and, as far as the

technology of weaponry is concerned, in particular the hoplite shield, the influence

of the East is obvious” (BURKERT, 1998: 40)

Figura 4 - Cerâmica "meliana". Ânfora de Apolo, Museu Nacional de Atenas. Fotografado por Anisio Candido (2004).

Page 6: Jean Pierre Vernant (VERNANT, 1998: 196) · Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do

6

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

A tese de Akurgal sobre os paralelos entre o oriente e o ocidente, e aqui pensamos no desenho dos cavalos dos relevos assírios e nos vasos orientalizantes gregos, é interessante e coincide com as pesquisas realizadas, ele diz que: “Les grandioses ourvres qui décoraient les palais assyriens devinrent pour tour l´Orient le modele classique que les peuples voisins imitèrent” (AKURGAL: 1969, 18).

Figura 5 - Revelo assírio. 875-860 a.C. Nimrud. Rei Ashurnasirpal carrega duas flechas com a mão direita. Museu Britânico. Fotografia de J. E. Curtis.

A Grécia do séc. VII a.C. adota algumas características da arte e técnica mesopotâmica. As imagens são lateralizadas, são dispostas em faixas, possuem afrontamentos e não encontramos frontalidades. A frontalidade na Mesopotâmia será uma exceção e só aparecerá na Grécia a partir do século VI a.C.

Se, num primeiro momento das pesquisas eram negadas as relações linguísticas entre o acádico e o grego, hoje temos algumas palavras comuns que são fundamentais. Uma delas é “mnea/mna”, “mina”, a unidade básica de medida. Outra é “deltos”, que significa tablete com inscrição. Segundo Burkert, estas palavras “…provide the clearest evidence one could want for the traffic of trade, craftsmen, and writing in the orientalizing period” (BURKERT: 1998, 34).

O texto em acádico assírio nos fornece pistas importantes sobre os encontros entre os gregos da Jônia, que era a forma como esses gregos eram vistos pelos assírios. Estes Jônicos são também importantes na criação das imagens presentes nos vasos orientalizantes “melianos”.

Page 7: Jean Pierre Vernant (VERNANT, 1998: 196) · Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do

7

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

A Ânfora de Apolo parece refletir estes contatos e tem características do período geométrico como, por exemplo, as alças em forma de chifres. Há o traço no desenho, com linhas bem marcadas, semelhante ao traço dos relevos assírios, principalmente na composição dos cavalos e seus atributos. A Babilônia e a Pérsia também estiveram em contato com o mundo grego, contudo, num período posterior. Além disso, este autor considera ser o Império Assírio do século VII a.C. o último grande império da Mesopotâmia. O império medo-babilônico e, posteriormente o império persa, não possuem uma longa duração e parecem herdar o império da derrotada Assíria.

Os gregos, contudo, não irão simplesmente copiar, mas sim, adaptar essas tecnologias e formas de compor imagens para seu próprio gosto. São ainda inovadores, mas, os ingredientes utilizados para a elaboração de sua arte necessitam destes elementos mesopotâmicos. Se um dia, num passado quase distante, se defendeu a tese de uma Grécia milagrosa e totalmente inovadora, hoje pensamos em uma dependência de alguns acontecimentos históricos que foram fundamentais no início do que denominamos de forma tão frágil como “clássico”.

Figura 6. Relevo Assírio. 875-860 a.C. Nimrud. Detalhe de grifo sobre a cabeça dos cavalos. Revelo assírio. Museu Britânico. Fotografia de Anisio Candido.

A arte, os artefatos, estão sempre mudando, mesmo nos momentos de grandes continuidades, e recebendo contatos. O giro orientalizante do séc. VII a.C. é mais um momento na história. Da mesma forma, o tal “Renascimento” não é um momento de busca de uma perfeição “clássica”, mas sim, apenas, outro giro da história.

Como bem diz Phippe Bruneau:

"l´art, dans l´acception ancienne et latine du mot, est donc pour nous l´objet propre de l´archéologie", Artistique et Archéologie (BRUNEAU: 1997, 45).

Page 8: Jean Pierre Vernant (VERNANT, 1998: 196) · Orientalizante do século VII a.C. Ela é encontrada na região da Jônia, atual Turquia; nas Cíclades, que são as ilhas centrais do

8

Anais do XXI Encontro Estadual de História –ANPUH-SP - Campinas, setembro, 2012.

Referências

AKURGAL, Ekrem; “Orient et Occident – La Naissance de l´Art Grec”. Editions Albin

Michel, Paris, 1969.

BOTTÉRO & HERRESCHMIDT & VERNANT ; “L´Orient Ancien et nous. L´écriture, la

raison, les dieux”. Hachette Littératures. Paris, 1998.

BRUNEAU, Phiippe & BALUT, Pierre-Yves. “Artistique et Archéologie”. Mémories

d´Archéologie Générale 1-2. Presses de l´Université de Paris-Sorbonne. Paris, 1997.

BURKET, Walter; “The Orientalizing Revolution – Near Eastern Influence on Greek Culture

in the Early Archaic Age”. Harvard University Press, London. 1998.

PEREIRA FILHO, Anisio Candido; “Ânfora de Apolo: um estudo sobre cerâmica grega

cicládica ´Meliana´ do séc. VII a. C.”. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) -

Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/71/71131/tde-05062012-

133937/>.

READE & CURTIS. “Art and Empire - Treasures from Assyria in the British Museum. The

Trustees of British Museum”. Publicado por The Metropolitan Museum of Art, Nova

York, 1996.

ROLLINGER, Robert; “The Ancient Greeks and the Impact of the Ancient Near East. Textual

evidence and historical perspective (ca. 750-650 BC)”, Helsinki: The Neo-Assyrian

Text Corpus Project, 2001, pp. 233-64.