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7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria 1/35
Dados
Internacionais
de
Catalogação
na Publicação CIP)
(Câmara
Brasileira
do Livro, SP, Brasil)
~ : c d da memória
í
Pierre
Achard
... [ct ai.] :
tcJ.dução e introdução José Horta Nunes. -
C
arnpinas. SP Pontes.
1999.
r:)utros autores: Jean Davallon, Jean-Louis
__
. : _ ~ J . \ ichel
Pêcheux. Eni Puccinelli Orlandi
. \nfüse
do discurso 2.
História
3. Linguagem
=
~ i s : ó r i a
.. .
Memória Filosofia)
5
Semiótica
- Sc,2iolingüística
I. Achard.
Pierre. 11
Davallon
. e_r
III Durand.
Jean-Louis. IV Pêcheux. Michel,
- '--1
J S ~
V Orlandi. Eni Puccinelli, 1942 .
'\ r . ~ .
José Horta. Vil. Título.
CDD-401.4
Indices para catálcgo sistemático:
:..:r:gJagern e história
.. O
1.4
J
.E->-;:n 1
~ : r
l J ~ y ~ ~ 1 · 1 D J ü
J
i ; : 1 · r : 1 ~ - r o·i:/t:::
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· ontes
,1999
DEDALUS Acervo FFCLRP
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2 8 22 26
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
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Copyright© 1999
dos
Autores
Direitos
de
tradução gentilmente cedidos para a
Pontes Editores
Coordenação Editorial Ernesto Guimarães
Capa Claudio Roberto Martini
Revisão Equipe
de
revisores
da
Pontes Editores
B \
j ;;.
r;i \ 1 à o S ~
PONTES EDITORES
Rua Maria Monteiro 1635
13025.152 Campinas SP Brasil
Fone 019) 252.6011
Fax 019) 253.0769
e-mail: [email protected]
1999
Impresso no Brasil
ÍNDI E
Introdução ......................... ........................................ ........... 7
Memória e Produção Discursiva do Sentido .......................
A Imagem, uma Arte de Memória ..................................... 23
Memória Grega .................................................................. 39
Papel da Memória ............................................................. .49
Maio de 1968: Os Silêncios da Memória .......................... 59
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
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INTRO UÇÃO
O conjunto de quatro textos que ora apresentamos cons
titui a sessão temática «Papel da Memória» inserida em Histó-
ria e Lingüística
uma publicação das Atas da Mesa Redonda
«Linguagem e Sociedade» realizada na Escola Normal Superi
or de Paris em abril de 1983. Esse colóquio reuniu especialistas
de diversas áreas tendo como ponto de encontro a relação entre
língua e história. O tema particularmente enfocado aqui a me
mória é visto sob diferentes aspectos: lembrança ou reminis
cência memória social ou coletiva memória institucional me
mória mitológica memória registrada memória do historiador.
Atravessando os artigos a questão: o que é produzir memória?
Como a memória se institui é regulada provada conservada
ou é rompida deslocada restabelecida? De que modo os acon
tecimentos - históricos mediáticos culturais - são inscritos ou
não na memória como eles são absorvidos por ela ou produzem
nela uma ruptura ?
Estas questões se desenvolvem nos artigos através de di
ferentes perspectivas disciplinares incluindo-se elementos de
história semiótica sociolingüística análise de discurso. Além
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disso, a memória é analisada em sua materialidade complexa,
com ênfase para a relação do texto com a imagem, para a passa
gem do visível ao nomeado.
Por
um lado, os textos fundadores
de memória: mitos, relatos, enunciados, paráfrases.
Por
outro, a
eficácia simbólica da imagem: a reprodução pictórica, o meio
televisual e até objetos arqueológicos. Ficam expostas ao leitor
diferentes práticas memoriais presentes na sociedade ocidental,
sejam aquelas
da
Grécia antiga, sejam as que emergem
com
as
recentes mudanças tecnológicas.
Analisando a construção discursiva do sentido e o funci
onamento dos implícitos, Pierre Achard mostra que a
memória
não pode ser provada, não pode ser deduzida de um corpus,
mas ela só trabalha ao ser reenquadrada por formulações no
discurso concreto em que nos encontramos. O implícito de um
enunciado (Achard analisa o enunciado: «Neste momento, o
crescimento da economia é da ordem de 0,5 ») não contém sua
explicitação, não se pode provar que ele tenha existido
em
al
gum
lugar
O
que
funcionaria então seriam operadores
linguageiros imersos
em uma
situação, que condicionariam o
exercício de uma regularidade enunciativa. Haveria, deste modo,
a colocação
em
série dos contextos e das repetições formais,
numa
oscilação entre o histórico e o lingüístico. Através das
retomadas e das paráfrases, produz-se na
memória
um
jogo
de
força simbólico que constitui
uma questão social.
Jean Davallon aponta, depois do aparecimento da im
prensa, o desenvolvimento dos meios de registro
da imagem
e
do som como fatores que deslocam a questão da
memória
soci
al, que não se encontraria mais nas «cabeças» dos indivíduos,
mas nas mídias. O autor
esboça
uma reflexão sobre a
imagem
contemporânea como operadora de memória. Pela análise do
registro televisual de um acontecimento (a posse do presidente
Mittetnnd
na França), é questionada a distância que separa a
«realidade» do «fato de significação». Davallon lança a hipóte
se de que os objetos culturais (livros, escritos, imagens , filmes,
8
arquiteturas, etc.),
como
operadores de memória social, traba
lham no sentido de entrecruzar
memória
coletiva (lembrança,
conservação do passado, foco da tradição, monumento de remi
niscência) e história (quadro dos acontecimentos. conhec imen
to, documento histórico).
Do
contemporâneo passamos para o antigo. Jean-Louis
Durand faz
uma
interrogação envolvendo as práticas memoriais
da Grécia clássica. Ele coloca
uma
questão de enunciação im
portante:
quem
fala e com que direito, ao se produzir memória?
No caso da Grécia antiga, a produção da
memória
só se daria na
presença do poeta épico - de Homero - por meio de um texto
produzido fora do domínio da cidade. No entanto, há uma con
tradição na memória,
com
a oposição dos valores de grupo, dos
textos homéricos, aos valores éticos, políticos, sociais
em uma
dada situação. Ao examinar a imagem de um vaso grego, Durand
nota a possibilidade de remissão ao
mesmo
tempo a um herói
da
epopéia e a um simples combatente da cidade, um gueITeiro
anônimo. Se pensarmos nos sistemas atuais de memória, pode
remos ver a relação das práticas memoriais gregas com as me
mórias heróicas estabelecidas
em
nossa sociedade.
Em
seguida o livro, o artigo de Pêcheux faz
uma
retoma-.
da das exposições anteriores, situando-as no contexto das pes
quisas em análise de discurso.
Ele
discute como as questões de
lingüística e de discurso aparecem nos estudos sobre memória,
introduzindo um debate sobre as disciplinas de interpretação.
Nesse sentido, ele pergunta: a lingüística é uma disciplina pura
mente
experimental ou e la tem algo a ver com as disciplinas de
interpretação?
Por
sua vez, a análise de discurso
cada
vez mais
busca
se distanciar, afi rma Pêcheux, das evidências
da
proposi
ção, da frase e da estabilidade parafrástica. Ademais, ela permi
te, após os trabalhos de Benveniste e Barthes com a noção de
«significância», avançar teoricamente e tecnologicamente
na
relação do texto com a imagem.
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'
Os textos aqui reunidos guardam as marcas do debate
em meio ao qual foram concebidos, com o tom um pouco colo
quial e as freqüentes remissões a outros expositores. Como re
sultado dessas discussões, salientamos o seguinte comentário
de Pêcheux: «A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse
debate é que uma memória não poderia ser concebida como
uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históri
cos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado
ao modo
de
um reservatório: é necessariamente um espaço mó
vel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retoma
das, de conflitos de regularização
..
Um espaço de desdobra
mentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos». Pouco mais de
dez anos depois, este é um momento bastante apropriado para
retomar esse acontecimento, atualizá-lo, inseri-lo em nosso con
texto para que produza sentido e memória.
Acrescentamos ainda nessa edição o texto de Eni Orlandi
Maio de 1968:os silêncios da memória'', em que a autora apre
senta uma reflexão sobre a relação entre memória e censura
no
contexto da ditadura no Brasil. Neste caso mostra-se que há acon
tecimentos que não se inscrevem na memória, como se não ti
vessem ocorrido: os sentidos de Maio de 68, entre eles, os rela
cionados à palavra liberdade , são evitados em um processo
histórico-político silenciador, de modo que se estabelece uma
falta na memória.
José Horta Nunes
10
MEMÓRI E PRODUÇÃO DISCURSIV
O
SENTIDO
Se, a partir de uma posição de análise de discurso, que
remos falar do papel da memória,
e
por conseguinte, do estatu
to dos implícitos, logo encontramo-nos em posição delicada.
Mas se este é um ponto em direção ao qual é perigoso se aven
turar - sendo real o risco de uma interpretação psicologista dos
implícitos - é no entanto necessário se preocupar com ele. Ten
tarei então falar sobre isso, considerando que a estruturação do
discursivo vai constituir a materialidade de uma certa memória
social.
Bem entendido
não
se
trata
de avançar
o termo
materialidade como máscara retórica para explicações que
seriam da ordem do inefável ou do inconsciente coletivo, nem
de dar ao termo memória social um valor tal que não teríamos
finalmente outro meio de analisá-lo senão colocá-lo.
Procurarei então mostrar que é possível colocar um cer
to
número de hipóteses concernentes ao funcionamento formal
no discurso, hipóteses a relacionar com a circulação dos discur
sos; esta relação deve permitir que nos afastemos de interpreta
ções psicológicas da memória em termos de realmente-já-ou-
l
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vido , memória fano-magnética ou registro mecânico. Para isso,
apoiar-me-ei sobre alguns exemplos.
Meu primeiro exemplo concerne
ao
funcionamento da
palavra
crescimento no
domínio da Economia Política. Um
enunciado como: Neste momento, o crescimento da economia
é d ordem de 0,5 % faz
apelo a
um
certo número de implíci
tos, dos quais evocarei apenas alguns. O primeiro deles é indu
zido pela pressuposição de que se pode aplicar uma taxa a um
crescimento da economia ,
quer dizer, que a economia pode
ser medida (e não simplesmente verificada , como se diz da
temperatura em física elementar). O segundo implícito, que é
também um implícito segundo (quer dizer, que só toma seu sen
tido em relação ao primeiro), é a equivalência, do ponto de vista
da taxa, entre as diferentes medidas possíveis. Particularmente,
nesse caso, a diferença entre
PIB
e PNB não será pertinente.
Em terceiro lugar. pressupõe-se implicitamente que esse cresci
mento seja calculado dentro do prazo de um ano, prazo consi
derado como evidente. Enfim, numa ordem um pouco diferen
te, o local desse crescimento não é indicado; isto implica que
me situo em um universo descritivo nacional, e que falo por
conseguinte do crescimento da economia francesa - ou, mais
exatamente, do crescimento da economia que concerne à nação,
ao país no qual a enunciação se situa.
É
o que dá a este implícito
um estatuto diferente dos precedentes,
já
que ele remete mais à
situação que à ''memória . A memória intervém,
no
entan
to, para enquadrar implicitamente a situação no espaço nacio
nal, pela falta. Esse enquadramento pode ser explicitamente
deslocado (podemos falar de crescimento da economia mun-
dial ) ou utilizado
no
seu nível abstrato através da retomada em
um percurso
( em média, no mundo, o crescimento foi .. ).
A representação usual do funcionamento dos implícitos
consiste
em
considerar que estes são sintagmas cujo conteúdo é
memorizado e cuja explicitação (inserção) constitui uma pará
frase controlada por esta memorização -
no
nosso exemplo,
2
memorização de uma forma máxima completa. Além disso. esta
memorização repousaria sobre um consenso. Ora.
se
olhamos
mais de perto, a explicitação desses implícitos
em
geral não é
necessária a priori, e não existe em parte alguma
um
texto de
referência explícita que forneceria a chave. Essa ausêncie:
rião
faz falta, a paráfrase de explicitação aparece antes como
um
trabalho posterior sobre o explícito do que como pré-condição.
O que é pressuposto, esse consenso sobre o implícito, é somen
te
uma representação.
Um outro exemplo desse fato foi discutido na oficina
sobre os manuais escolares : ainda que se considere que eles
constituam urna vulgata em relação a textos mais elaborados ,
o exame dos manuais concretos e sua confrontação permite co
locar em evidência não somente que eles estão sujeitos à crítica,
apresentam variações consideráveis
de um a
outro,
são
insatisfatórios para o que se espera deles, mas ainda que é ao
nível dos próprios implícitos supostos por eles que eles chegam
a constituir a dita vulgata. Em suma, eles constituem a ilustra
ção do fato de que, enquanto um registro discursivo supõe urna
vulgata
para
funcionar, a tentativa de esclarecimento, de
explicitação desta vulgata, jamais contém o que seria neces
sário para funcionar na retomada, e constitui na melhor das hi
póteses uma primeira retomada da vulgata.
Do ponto de vista discursivo, o implícito trabalha então
sobre a base de um imaginário que o representa como memori
zado, enquanto cada discurso, ao pressupô-lo, vai fazer apelo a
sua (re)construção, sob a restrição ''no vazio de que eles res
peitem
as
formas que permitam sua inserção por paráfrase. Mas
jamais podemos
provar ou supor
que esse implícito
(re)construído tenha existido em algum lugar como discurso
autônomo.
Se levamos em conta os elementos enunciativos que es
ses implícitos comportam, podemos ver em que esse problema
3
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de (re)construção dos implícitos corresponde também àquele
que Robert Lafont, em O trabalho e a língua, designa como
regulagem do praxema • Com efeito, o funcionamento do dis
curso (e é nisso que a noção de discurso se distingue da de fala
no sentido do CLG)' supõe que os operadores linguageiros só
funcionam com relação à imersão
4
em uma situação, quer dizer,
levando-se em consideração as práticas de que eles são porta
dores. De outro modo, o passado, mesmo que realmente memo
rizado, só pode trabalhar mediando as reformulações que per
mitem reenquadrá-lo no discurso concreto face ao qual nos en
contramos.
Pelas necessidades da análise, vamos supor um funcio
namento linguageiro
que
comporta apenas
um
registro
discursivo, e colocar aí o problema do sentido de uma pala
vra . Admitiremos (como hipótese lexicológica) que o que ca
racteriza a palavra é sua unidade, sua identidade a
si
mesma,
que permite reconhecê-la em seus diferentes contextos. De ou
tro modo, colocarei aqui a palavra como uma unidade simbóli
ca cujo reconhecimento a identificação permite definir em ter
mos de repetição. Cada nova co-ocorrência dessa unidade for
mal fornece então novos contextos, que vêm contribuir à cons
trução do sentido de que essa unidade é o suporte. Mas para
poder atribuir um sentido a essa unidade, é preciso admitir que
suas repetições - essas repetições - estão tomadas por uma regu
laridade' .É uma regularidade desta ordem que supomos com o
termo ''crescimento no registro econômico. Essa regularidade,
no entanto, não se deduz do corpus, ela é de natureza hipotética,
ela constitui uma hipótese do analista. No caso do crescimento,
a hipótese de análise que utilizei consistiu em supor que cres-
cimento é um termo operador que comanda um certo número,
fixo, de posições. O aparecimento em diversos textos das dife
rentes posições me permite fazer um inventário delas e estabe
lecer suas regularidades, e me permite em seguida designar, lá
onde elas não são explicitamente instanciadas, os tipos de im
plícito por que elas clamam.
14
Para ilustrar de maneira menos elementar a dialética en
tre repetição e regularização, utilizarei, de modo metafórico,
um imaginário topológico. Creio que esta analogia é relativa
mente bem fundada. Tomemos uma série numérica, que seja,
para utilizar um exemplo simples, a série O 1/2, 2/3, 3/4, ( .. ).
Dizer que esta série tende a 1 pode ser formulado dizendo que
toda vizinhança de 1 contém toda a série exceto um número
finito de termos. Assim, se admitimos que o termo geral da série
é da formas= n - l)/n, vemos que a vizinhança de 1 definida
como o conjunto dos números compreendidos entre 999 999
999/l 000 000 000 e 1 000 000
001 l
000 000 000 compreende
todos os termos da série exceto um número finito de termos (os
1 000 000 000 primeiros). Bem entendido, só posso reconhecer
que esta série tende a 1 porque substituí a enumeração dos pri
meiros termos pela regra que permite formular o termo geral.
Sem esta formulação, nada garante que, com relação a
uma vizinhança suficientemente pequena, o número das exce
ções continue finito. E como existe certamente uma infinidade
de séries que começam pelos mesmos termos, nenhuma obser
vação empírica do começo de uma série nos permite deduzir a
regra. Em termos lingüísticos, isso corresponde a constatar que
o corpus nunca é suficiente para fundar a gramática, e que a
regularização repousa sobre um jogo de força. Acrescentamos
aqui que o jogo de força pode designar o sentido como limite
6
•
Um procedimento desta ordem parece necessário se que
remos abordar a semântica de outro modo que não como uma
semântica dos enunciados, que seria baseada em uma lista uni
versal de traços semânticos pré-existentes e em sua combinatória.
A hipótese de uma construção discursiva do sentido é certa
mente discutível, mas parece frutífera, pela abertura às práticas
que podemos estudar ao nível da dialética entre repetição e re
gularização. Com efeito, o fechamento exercido por todo jogo
de
força de regularização se exerce na retomada dos discursos e
constitui uma questão social. Se situamos a memória do lado,
15
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não da repetição, mas da regularização, então ela se situaria
em
uma oscilação entre o histórico e o lingüístico, na sua suspensão
em vista de um
jogo
de força de fechamento que o ator social ou
o analista vem exercer sobre discursos em circulação. Este even
tual
jogo
de força é suportado pelas relações de formas, mas
estas são apenas o suporte dele, nunca estão isoladas. Elas estão
eventualmente envolvidas em relações de imagens e inseridas
em
práticas.
A regularização se apóia necessariamente sobre o reco
nhecimento do que é repetido. Esse reconhecimento é da or dem
do formal, e constitui um outro jogo de força, este fundador.
Não há, com efeito, nenhum meio empírico de se assegurar de
que esse perfil gráfico ou fónico corresponde efetivamente à
repetição
do
mesmo significante. preciso admitir esse
jogo
de
força simbólico que se exerce no reconhecimento do mes mo e
de sua repetição. Por outro lado, uma vez reconhecida essa re
petição, é preciso supor que existem procedimentos para esta
belecer deslocamento, comparação, relações contextuais. nessa
colocação em série dos contextos, não na produção das superfí
cies ou da frase tal como ela se dá, que vemos o exercício da
regra.
e
outro modo, é engendrando, a partir
do
atestado
discursivo, paráfrases, a considerar corno derivações de possí
veis
em
relação ao dado, que a regularização estrutura a ocor
rência e seus segmentos, situando-os dentro de séries. O que
desempenha nessa hipótese o papel de memória discursiva são
as valorizações diferentes,
em
termos por exemplo de familiari
dade ou de ligação a situações, atribuídas às paráfrases, que
entretêm então, graças ao processo controlado de derivação, re
lações reguladas com o atestado.
Na
hipótese discursiva, pois,
ao contrário do modelo chomskiano, o atestado constitui um
ponto de partida, não o testemunho da possibilidade de uma
frase, e a memória não restitui frases escutadas no passado mas
julgamentos de verossimilhança sobre o que é reconstituído pelas
operações de paráfrase. Estas considerações deslocam o estatu
to do que é provável historicamente, porque a operação de reto-
16
mada
se localiza nesse nível.
O que distingue então o analista de discurso do sujeito
histórico não é uma diferença radical mas um deslocamento. A
análise de discurso é uma posição enunciativa que é também
aquela de um sujeito histórico seu discurso, uma vez produzi
do, é objeto de retomada), mas de um sujeito histórico que se
esforça por estabelecer um deslocamento suplementar em rela
ção ao modelo, à hipótese de sujeito histórico de que fala. O
que proponho neste texto é um modelo de trabalho do analista,
que tenta dar conta do fato de que a memória suposta pelo dis
curso é sempre reconstruída na enunciação. A enunciação, en
tão, deve ser tomada, não como advinda do locutor, mas como
operações que regulam o encargo, quer dizer a retomada e a
circulação do discurso. Entre outras conseqüências desta con
cepção, levaremos
em
conta o fato de que um texto dado traba
lha através de sua circulação social, o que supõe que sua
estruturação é uma questão social, e que ela se diferencia se
guindo urna diferenciação das memórias e uma diferenciação
das produções de sentido a partir das restrições de uma forma
única.
Pierre chard
7
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BIBLIOGR FI
LAFONT, R 1978),
Le travail et
l
tangue
Flamarion, Paris
SAUSSURE,
F
1964),
Cours de linguistique générale
publ.
por charles Bailly e Albert Secheye, com a colab. de A.
Riedlinger, Payot, Paris Ira. ed. 1915)
19
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NOT S
1 (NDT) As oficinas, exposições e textos do colóquio citados neste livro
encontram-se publicados em Histoire et Linguistique Pierre Achard,
Max-Peter Gruenais, Dolores Jaulin (Orgs); Éditions de la Maison des
Sciences de l'Homme,
Paris, 1984.
2. Lafont, 1978.
3.
Saussure, 1964.
4 . A noção de imersão ( plongement ) - que, nas matemáticas. é um con
ceito - supõe ao mesmo tempo a possibilidade de
um
ponto de vista
intrínseco, e propriedades induzidas pela consideração da situação no
espaço da imersão.
5. Esse efeito, aliás, é reforçado sobretudo pela existência de vários regis
tros articulados nos discursos reais. Por exemplo, em economia da edu
cação, o discurso econômico desenvolve o papel de um registro maior
no qual são retomados e m1iculados
os
registros da pedagogia, registros
de considerações tecnológicas, políticas, etc., tomados como englobantes
ou englobados, conforme o caso, o que faz com que haja sempre, na
retomada metafórica das palavras, um deslocamento de uso que só pode
repousar sobre a regularização suposta do funcionamento da palavra no
registro fonte.
6. Bem entendido, os matemáticos não se interessariam tanto pelas séries
se elas convergissem sistematicamente a números, como 1 á definidos
em outro lugar. É na medida em que as séries permitem definir novos
números que elas são interessantes. Do mesmo modo, a perspectiva que
proponho por analogia tem essencialmente por interesse propor pers
pectivas para uma semântica que não se limite a uma combinatória de
semas pré-existentes.
21
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A IMAGEM UMA RTE DE MEMÓRIA
O aparecimento da imprensa parecia
á
ter tornado fora
de uso as artes da memória antigas e medievais
• Com razão
mais pertinente, o desenvolvimento dos meios
de
registro d
imagem e do som (essas extensões de nossos sentidos, se acre-
ditamos em Me Luhan), que permitem estocar depois restituir o
saber quase tão bem quanto os acontecimentos, parece hoje nos
afastar definitivamente da necessidade de situar uma parte da
memória social na cabeça dos (ou de certos) sujeitos sociais:
a memória social estaria inteiramente e naturalmente presente
nos arquivos das mídias.
Uma tal concepção tecnicista da memória social, que
em muitos pontos assimila esta à memór ia do computador,
supõe resolvidas duas questões maiores. A primeira é bastante
ingênua: registrar, descrever, representar a realidade (saber ou
acontecimento) é suficiente para produzir memória? Ou ainda:
a partir de quando, e do que, um acontecimento constitui me-
mória? A segunda é sociológica: o que ocorre, nessa redução
tecnicista, com os processos de manutenção da coesão social;
3
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com a instituição/re-instituição societal de que o funcionamen
to da memória é o lugar, e mais particularmente ainda, com a
reprodução das relações sociais e políticas fundada sobre a
dominância desse funcionamento da memória social
?
Pensemos, a propósito, numa cerimônia política como
aquela da posse do Presidente da República: com os múltiplos
jogos que surgem entre a referência, de um lado, a uma memó
ria social á existente o Panteão, os heróis republicanos) e, de
outro lado.
à
produção
de
uma nova memória. Pois o registro do
..acontecimento·· deYe constituir memória, quer dizer: abrir a
dimensão, entre o passado originário e o futuro, a construir, de
uma comemoração
2
.
Com esta alusão rápida a um exemplo político contem
porâneo, vemos que entre o simples registro da realidade e a
memória social; que entre a reprodução de um acontecimento e
a função social de instituição/re-instituição do tecido social atri
buída à memória, há toda a distância que separa a realidade
do fato de significação . Faria essa distância pensar, em suma,
que a memória,
como fato social,
comportaria uma dimensão
semiótica e simbólica que lhe seria intrínseca
?
Assim. é em \·ista dessa dupla dimensão da memória so
cial (como fato societal e como fato de significação) que gosta
ria de esboçar aqui uma reflexão sobre a imagem contemporâ
nea como operadora de memória, mas convém antes indicar com
algumas palavras o que é preciso entender por memória social
quando nos interessamos pelos objetos culturais
3
•
24
:\ Iemória social e produções culturais
Uma primeira constatação se impõe imediatamente: para
que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber
registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insig
nificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder
posteriormente fazer impressão. Porque é essa possibilidade de
fazer impressão que o termo lembrança evoca na linguagem
corrente. Um sociólogo um pouco esquecido hoje, é verdade,
mas que uma sociologia do conhecimento não poderia ignorar -
a saber, M. Halbwachs - caracterizaria aliás a memória como
o
que ainda é vivo na consciência
o
grupo para o indivíduo e
para a comunidade
•
Uma segunda constatação complementa a primeira: lem
brar um acontecimento ou um saber não é forçosamente mobili
zar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de que o
acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretu
do, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de
noções comuns aos diferentes membros da comunidade social.
Esse fundo comum, essa dimensão intersubjetiva e sobretudo
grupal entre eu e os outros especifica, diz-nos Halbwachs, a
memória coletiva
5
• Mas a contrapartida seria que a memória
coletiva só retém do passado o que ainda é vivo ou capaz de
viver na consciência do grupo que o mantém. Por definição, ela
não ultrapassa o limite do grupo •
Estas duas constatações convidam a salientar o caráter
paradoxal da memória coletiva: sua capacidade de conservar o
passado e sua fragilidade devida ao fato de que o que é vivo na
consciência do grupo desaparecerá com os membros deste últi
mo. Aliás, em páginas que mereceriam uma outra atenção e uma
outra apresentação, que estas rápidas e alusivas evocações não
permitem, Halbwachs pode assim opor a memória coletiva
à
25
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1
história o foco da tradição ao quadro dos acontecimentos
7
,
a lembrança (corrente de pensamento contínua no seio do gru
po social) ao conhecimento (descontínuo e exterior ao pró
prio grupo). Em compensação, a história resiste ao tempo; o
que não pode a memória.
Se a distinção efetuada por Halbwachs entre memória
coletiva e história permite desse modo compreender melhor
por que registrar ou ainda lembrar um acontecimento não é obri
gatoriamente ipso facto um fato de memória social, ela nos in
troduz acima de tudo em uma problemática dos objetos cultu
rais considerados como operadores de memória social. Eu me
explico.
Evoquemos
novamente
o
exemplo da emissão
televisionada que representava a posse do Presidente da Re
pública. Compreenderemos muito facilmente a questão política
e a importância sociológica que estão ligadas à possibilidade de
casar história e memória coletiva: de entrecruzar, de aliar a
resistência ao tempo que caracteriza uma e o poder de impres
são - vivacidade - da outra. Assim, o acontecimento, como acon
tecimento memorizado poderá entrar na história (a memória
do grupo poderá perdurar e se estender além dos limites físicos
do grupo social que viveu o acontecimento); mas enquanto his
tórico . ele poderá se tomar, em compensação, elemento vivo
de uma memória coletiva. Esta última adquirirá então uma ou
tra dimensão: aquela, se podemos dizer, de
uma
memória
societal.
Como esse entrecruzamento se opera? Qual é o seu
instrumento? O acontecimento - no caso, a cerimônia do Panteão
- por ser representado (o que é mais e outra coisa do que ser
simplesmente registrado ou difundido), tomará o valor de uma
espécie de ponto originário da comunidade social: o aconteci
mento se dará em um momento singular do tempo; mas a essên
cia do ato se encontrará para sempre na própria estrutura do
objeto que o representará (a emissão televisionada, por exem
plo) . Ele se tornará indissociavelmente documento histórico e
26
monumento de recordação.
Por conseguinte, apoiando-nos sobre essa oposição en
tre memória coletiva e história para considerar os objetos
culturais, poderíamos adiantar, a título de hipótese. que ~ s t s
últimos vão no sentido não de um antagonismo, mas antes de
urna conjunção, de um entrecruzamento, de uma síntese entre
memória coletiva e história.
Trata-se aí de uma simples hipótese de trabalho, mas ela
não me parece sem interesse no quadro de uma reflexão sobre o
papel da memória. Ela torna com efeito a adiantar que os obje
tos culturais abrem a possibilidade de um controle da memória
social; que esse controle está de fato estreitamente ligado ao
funcionamento formal e significante desses objetos; e que, por
último, ele é um fato social não desprezível. Eis, a meu ver, o
que merece ser examinado; embora não seja questão de preten
der encarar, no estado atual, a verificação dessa hipótese, seria
em compensação uma atitude bastante heurística voltar-se so
bre aquilo que autoriza sua formulação.
o que veremos a propósito da imagem.
A imagem operador de memória social
Por que a imagem? Porque ela oferece - ao menos em
um campo histórico que vai do século XVII até nossos dias -
uma possibilidade considerável de reservar a força: a imagem
representa a realidade, certamente; mas ela pode também con
servar a força das relações sociais (e fará então impressão sobre
o espectador).
L. Marin aliás mostrou muito bem como, por exemplo,
no funcionamento do poder absoluto na idade clássica, o retrato
do rei
expõe
em uma viva pin tura as qualidades reais descritas -
27
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. ... . ---------------------------------------·············
contadas - no relato de suas ações; de tal maneira que estas se
transformam em substância real. Do relato desse acontecimento
à imagem do rei, o que era o menos representável, o menos
memorizável (a força), torna-se o mais presente na ocasião da
representação do personagem histórico do rei. Posso somente
aqui remeter às análises de Marin no que concerne ao modo
como esse uso das imagens se apóia sobre seu próprio funcio
namento9.
Adicionemos que poderíamos, em contraponto a essa
análise e de um modo comparável, mostrar como a publicidade,
desta vez, utiliza a imagem em complementar idade com o enun
ciado lingüístico para apresentar - tornar presentes - as qualida
des de um produto e conduzir assim o leitor a se recordar de
suas qualidades, mas também a fazê-lo se posicionar em meio
ao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a
se representar esse lugar. No entanto, desenvolver essas análi
ses nos levaria longe demais e demandaria muito tempo; note
mos então somente que esses dois exemplos indicam
para cer
tos períodos e segundo diferentes modalidades, a eficácia da
imagem em poder se inscrever em uma problemática da memó
ria societal.
Eis o que nos conduzirá talvez a encarar a imagem sob
um prisma particular: menos a nos interessar pelo que a imagem
pode representar (os objetos do mundo), ou ainda pela informa
ção que ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo corno ela
efetua um ou outro desses processos, do que a prestar atenção à
maneira como certa imagem concreta é urna produção cultural -
quer dizer, a levar em consideração sua eficácia simbólica. Com
efeito, aquele que observa uma imagem desenvolve urna ativi
dade de produção de significação; esta não lhe é transmitida ou
entregue toda pronta. Esse estado de coisas abre, como aliás
insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpreta
ção o que quer dizer que o conteúdo legível , ou antes dizível ,
pode variar conforme as leituras); mas o que faz também - e não
28
se poderia esquecer este ponto - com que 2 isager:-_
c , : ' . ' . ' - r : ' ~ ' e
um programa de leitura: ela assinala um cert•J lugar ao ópe -
dor (ou melhor: ela regula uma série com a pc:ss::g.:m ce uma a
outra posição de receptor no curso da
recep,;-2.: e: ;e:2 :: ::>é .e
rentabilizar por si mesma a competência semiócic 2 e: : . : ::·
desse espectador
10
•
Este é um fato bastante conhecido peleis
publicitários.
Se procuramos o que serve de fundamento à eficácia sim
bólica da imagem, duas caracter ísticas semi óticas parecem en
tão bastante consideráveis.
Em primeiro lugar, urna imagem pode ser compreendida
ou recebida segundo dois níveis diferentes. Cada um desses dois
níveis possui regras de funcionamento que lhes são, ao menos
parcialmente, próprias. Por exemplo, os códigos perceptivos
mudam menos rápido que os códigos iconológicos: por isso,
ficamos sensíveis a c.ornposições ou representações de quadros
da Renascença (ou de publicidades do início do século) de que
ignoramos parcialmente a significação: a potência perceptiva
perdura, enquanto as significações se perdem. Resta urna orga
nização formal que continua a constituir um dispositivo.
Sabemos, desde o artigo em muitos aspectos fundador
de E. Benveniste, aparecido em
Semiótica
em 1969, que exis
tem dois modos de significação: um semiótico fundado sobre o
reconhecimento de unidades de significação previamente defi
nidas (eu reconheço o sentido das palavras), outro semântico e
meta-semântico, fundado sobre a compreensão do sentido do
texto em sua totalidade (eu compreendo o sentido do conjunto
de uma frase, por exemplo) e que inclui os mecanismos da
enunciação. Benveniste adianta que a imagem funciona antes
de tudo sob o modo semântico e que ela não pode conjugar os
dois modos de significação (somente a língua poderia operar
essa conjunção) e há um largo acordo entre os sernioticistas para
reconhecer que a imagem depende de uma abordagem textu-
29
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al
11
•
De minha parte, resumirei as coisas como segue: existe
uma espécie de aproximação entre as oposições formais (de for
ma, de cor e de topologia) e a instância textual e enunciativa: na
publicidade, por exemplo, certa relação de cor ou certo contras
te de forma retém o olhar e, ao mesmo tempo, quer nos dizer da
qualidade que distingue um produto dos outros. Essa aproxima
ção escamoteia - se posso dizê-lo - um nível intermediário que
teria por homólogo na linguagem o nível das palavras; a lingua
gem supre aliás essa escamoteação (pode-se sempre descrever
uma imagem)::. Em compensação, essa aproximação possui a
vantagem de trabalhar sobretudo com os sistemas de oposição e
simultaneamente com
as
relações entre emissor, receptor, men
sagêm ê contexto. É porque a imagem é antes de tudo um dispo
sitiYo que pertence a uma estratégia de comunicação: dispositi
vo que tem a capacidade, por exemplo, de regular o tempo e as
modalidades de recepção da imagem em seu conjunto ou a emer
gência da significação
13
• E é um dispositivo, lembremo-nos, que
por natureza é durável no tempo.
Em segundo lugar
a
imagem
é
um operador
de
simbolização. Conviria observar, a esse propósito, que a difi
culdade, conhecida por todos os semioticistas da imagem, em
segmentar esta. se deve menos a sua má-formação semiótica do
quê
à
aproximação que eu assinalava logo acima entre oposi
ções
formais
e
instância
textual e
enunciativa entre
a
matêrialidade e o sentido. Entrecruzando esses dois níveis, a
imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a
compõem em uma totalidade.
É
porque compreenderíamos o
sentido global antes de reconhecer a significação dos elemen
tos; e atingiríamos primeiro o efeito dessa integração; estaría
mos sob o charme desse efeito formal, estético; toda imagem
pareceria assim se apresentar como única origem dela mesma
assim como de sua significação; e enfim, ela introduziria uma
diferença de natureza, um salto qualitativo entre os componen
tes (os que a análise pode repertoriar) e ela mesma considerada
em sua totalidade.
30
Esse apagamento da passagem dos componentes à tota
lidade tem por conseqüência essencial interditar que se reen
contre a maneira como o efeito estético e significante é produzi
do. A gênese se apaga; a (re )construção de uma origem mítica é
aberta, com mais um efeito de força viva. Então, começa aderi
va indefinida e não infinita) que caracteriza toda interpretação
de imagem; não obstante, se nos volvemos para essa deriva,
percebemos que essa busca, essa reprodução da significação
do dispositivo, se faz segundo o próprio programa trazido pelo
dispositivo Do mesmo modo que a recitação do mito ou os ges
tos litúrgicos seguem a estrutura do mito ou do ritual, cada lei
tura é em si mesma uma pequena recitação. Momento central,
ato que fornece à imagem sua razão de ser, que está fora do
espaço da imagem, assim como, aliás, o acontecimento memo
rizado.
onclusão
Eis então o que leva a pensar a imagem como um opera
dor de memória social no seio de nossa cultura. Assim, volte
mos a nossa hipótese. Com efeito, se a imagem define posições
de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir
ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos,
isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade -
um acordo - de olhares: tudo se passa então como se a imagem
colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros
espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista.
Domes-
mo modo como - explicava Halbwachs - a reconstrução de um
acontecimento passado necessita, para se tornar lembrança, da
existência de pontos de vista compartilhados pelos membros da
comunidade e de noções que lhes são comuns
14
;
assim a ima
gem, por poder operar o acordo dos olhares, apresentaria a ca
pacidade de conferir ao quadro da história a força da lembran
ça. Ela seria nesse momento o registro da relação intersubjetiva
e social.
31
, . ) .
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Restaria, então e enfim, considerar como a imagem in
tervém concretamente no estabelecimento de uma forma de
memória societal própria
à
nossa época e
à
nossa sociedade; e
sobretudo, qual é a relação que se instaura entre o que podería
mos chamar "a memória interna (aquela situada nos membros
do grupo) e "a memória externa (aquela dos objetos culturais),
mas isto seria perguntar sobre as características das estruturas
mentais de nossa cultura e se engajar na psicologia histórica
15
•
Jean Davallon
32
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34
NOT S
1 . Como assinala Yates, 1966. Lembremos que o autor define assim a arte
da memória: Esta arte visa permitir a memorização graças a uma
técnica de 'lugares' e 'de imagens' que impressionam a memória .
2. Penso particularmente na cerimônia da memória que se desenrolou
durante as jornadas de posse de F. Mitterand, em 21 de março de 1981.
O que está então em jogo, para além da referência declarada ao cerimo
nial republicano herdado em grande parte das festas revolucionárias
(ou ao menos de sua ideologia), é o estatuto que se atribui aos meios de
difusão e de representação do acontecimento - no caso:
à
emissão
televisionada desta cerimônia.
3. Entendo por objetos culturais o conjunto dos objetos concretos (li
vros, escritos, imagens, filmes, arquiteturas, etc.) que resultam de uma
produção formal e que são destinados a produzir um efeito simbólico.
Sobre esse ponto ver Davallon, 1983.
4. Halbwachs, 1950, p. 70.
5. Ibid., p. 13: Não basta reconstruir peça por peça a imagem de um
acontecimento passado para se obter uma lembrança. preciso que
essa reconstrução se opere a partir de dados e de noções comuns que
se encontram tanto em nosso espírito quanto no dos outros, porque
eles passam sem cessar destes àquele e reciprocamente, o que só é
possível se eles fazem e continuam f zer parte de uma mesma socie-
dade. Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa
ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída .
35
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-
-c
::-:emória coletiva:
é
uma corrente
de
pensamento contínuo, de uma
.
·:.-C ::iidade
que não tem nada de artificial, pois ela só retém
dopas-
_ que dele ainda é i·irn ou capa:
de
viver na consciência do
_ ~ - q u e o
mantém Ibid., p 70.
Did..
pp. 74-79.
Na
seqüência da exposição. empregarei o termo es-
pectador um movimento que ultrapassa a simples compreensão do es-
Detáculo proposto e se faz produtora de sentido. Composição, monta-
gem,
ritmo conduzem da visão à compreensão , F
Albera, 1980,
p.
9.
S. Assim acontece com a representação do
juramento
no
momento
da
Revolução Francesa ou ainda
com
a representação do herói revolucio-
nário: J. Davallon, 1981.
9.
De um lado, então, um ícone que é a presença real e 'viva' do monar-
ca; de outro, um relato que é seu túmulo subsistindo para sempre. A
representação como poder, o poder como representação são um e ou-
tro um sacramento na imagem e um 'monumento' na linguagem, onde,
cambiando seus efeitos, o olhar deslumbrado e a leitura admirativa
consomem o corpo radioso do monarca, um recitando sua história em
seu retrato, o outro contemplando uma de suas perfeiçües no relato
que eterniza a manifestação . L. Marin, 1981, p.
10.
Esta
particularidade
da imagem
foi notavelmente bem estudada pela
semiologia do cinema. Como indicaF A Ibera, é ela que S. M. Eisenstein
:i:: s:;:: ..2.
~ e ~ . :
te:ra: : e . n ; . : . ; : - i s m o : ·· que caracteriza
efetivamente
es-
J •
e : ~ = : _
~ . : ; S é r c n ~
Toulouse-Lautrec
Van
Gogh.
36
.._
.::·:_:-...:. ::.. ~ : _ , : : . : = ~ ~ _
es:;ldar para compreender esta
no
~ ; , , e
5;,,;
consrrnção impüe ao espectador um
-e··
- · : . : ; - . : s . > : ~ a simples compreensão do espetáculo pro-
,-, _ . : ~
;;rc
âwora
de
sentido. Composição, montagem, ritmo
1:c::1:em da l'isão
à
compreensão , F Albera, 1980, p. 9.
11. Esse artigo de E. Benveniste foi retomado em Problemas de lingüística
geral, t. 2., 1974.
Essa
dominância
do
modo semântico e meta-semân
tico foi reconhecida bem cedo pela semiologia
(J
.L. Schefer, 1969; R.
Barthes, L. Martin, etc.), depois apoiada e corroborada pelas análises
da
semiótica visual
que
se referem à teoria
de
A.
J. Greimas.
12. Este ponto exigiria
uma
análise precisa e circunstanciada. Encontrare
mos uma primeira e indispensável abordagem em Metz, 1975.
l
13. Par a a análise detalhada, ver: Davallon, 1983.
14. Halbwachs insiste várias vezes sobre a partilha
de
um ponto
de
vista e
sobre a comunhão dos dados de referência como fundamentos
da
me
mória coletiva, por exemplo: op cit, pp. 3, 48-53, 61, etc._
15.
om
relação à
memória
coletiva. a memória individual estaria na ver
tente oposta àquela
em
que se situa o objeto cultural. Uma abordagem
que se refira à psicologia histórica seria então possível (Meyerson, 1948).
37
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MEMÓRI GREG
, , ~ - • · ' ' ' :
Escolhi propor-lhes, para introduzir o debate desta ma
nhã, não uma descrição de nossas próprias práticas memoriais,
uma análise de nossa própria gestão da memória, mas uma in
terrogação envolvendo aquelas da Grécia antiga, da Grécia clás
sica. Observar em que posição particular os gregos se coloca
vam com relação à sua própria memória, à gestão que eles podi
am fazer dela. Serei rápido, portanto esquemático, e aqueles
que conhecem esses problemas queiram desculpar a brutalida
de deste esboço grosseiro. A discussão permitirá, espero, voltar
a todos os pontos que se desejar que eu retome.
Os gregos apresentam um problema com sua memória,
um problema muito simples. Não é possível para o não-grego,
digamos, para o bárbaro (o que não é um termo necessariamen
te negativo), reconhecer-se grego sem referência a toda uma
série de relatos com todo seu peso, seu valor normativo, sejam
eles retomados coletivamente ou não, e sejam eles fixados ou
não m formas literárias precisas: o Mito. Mas o mito é tam
bém algo de muito organizado,
m
uma forma codificada, diga-
39
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
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mos, a epopéia. E imediatamente coloca-se o problema funda
mental. Falo certamente aqui situando-me como observador em
uma Atenas do século V sempre tão mítica e sempre tão neces
sária.
Se, como esse menino grego, sou educado através da
salmodia de Homero, ou se, como grande diva percorrendo as
cidades gregas, interpreto o poeta durante manifestações coleti
vas, festas que organizam e estruturam o grupo, não produzo
uma epopéia. Quero dizer com isso que aquele que recita o tex
to épico pode apenas retomar indefinidamente uma memória
organizada em um texto que se tornou fechado e em relação ao
qual ele mantém
uma
relação que podemos ch amar demoníaca,
que ultrapassa então as estruturas da memória humana,
uma
re
lação que o faz entrar em contato, de maneira quase possessória,
com o próprio poeta ou alguma coisa que resta dele e se trans
mite por sua palavra. Por quê? Porque o poeta, ele mesmo, o
aedo, não possui fala própria. No momento em que recita as
proezas dos heróis, o aedo só o faz porque a Musa fala através
dele,
por
ele. Quer dizer que não há possibilidade de produção
da memória na cidade fora da presença do poeta épico, diga
mos, para ser breve, de Homero. Os gregos apresentam, então,
como principal meio de reconhecimento de si mesmos, um dos
textos que se produziram e se fixaram fora de seu domínio e que
eles são forçados a repetir sem meios de modificá-los em fun
ção de novas exigências sociais. Textos que lhes fornecem as
categorias de percepção do mundo no qual se encontram. O
garoto educado em Atenas aprende música, recita a epopéia, e
sabe assim definir o mar
em oposição
à
terra, a tempestade
em
oposição ao céu sereno, etc. Ele recebe toda uma série de meios
de categorizar o real, que o situam como grego. Em contraste
com os vizinhos persas, que possuem calças, modos de viver
diferentes, que percebem as coisas diferentemente, etc. O pro
blema
aí
não é maior, isso funciona de modo bastante imediato.
Mas a partir do momento em que olhamos não mais as categori
as de percepção da realidade, mas o sistema de valores éticos,
40
em resumo, valores políticos e sociais, no qual nos situamos, as
coisas se apresentam de outro modo e a contradição aparece.
Se pretendemos, por exemplo, fazer a guerra, a guerra
da cidade, como o fazia Aquiles, arriscamos com os nossos nas
piores dificuldades. Observemos o modo como as coisas se pas
sam nesse texto célebre (analisado por
P
Vida Naquet)
1
a cena
dos escudos em os Sete contra Tebas
2
• O guerreiro do mito é
atingido pelo menos esse furor que possui sua alma e o rende.
Ele é invadido pela ira de matar, orientado para realizar os gran
des feitos que são objeto do canto épico. Isto o coloca em con
tradição total com as regras do grupo social no quadro da cida
de, regras que supõem uma guerra racional e democrática. A
igualdade dos combatentes é
aí
fundamental: não se trata de
combater para se fazer ilustre no combate mas de defender a
cidade
com
os companheiros de linha, cada um solidário um
com o outro, na falange. Há verdadeiramente uma contradição
inevitável em
uma
memória que estabelece ao mesmo tempo o
sistema categorial que nos define como partidários de nosso
grupo, e valores sociais que nos colocam
em
oposição a ele.
Isto teve como efeito imediato na produção cultural, para reto
mar a fórmula proposta logo acima, a tragédia. A tragédia na
qual vemos estabelecidas ao mesmo tempo a necessidade
do
mito e as dificuldades que ele provoca. Não podemos nos livrar
do Édipo nem se acomodar com ele. e onde a necessidade de
interrogar o mito
em
função
do
sistema de valores da cidade
contemporânea, já que não podemos levá-lo tal qual
em
consi
deração.
Por outro lado, existe a necessidade de se produzir
uma
memória, um memorável válido para o tempo da cidade, e, de
certa forma, nos trabalhos de memória, estamos sempre em ri
validade
com
Homero. Quando, por exemplo, as primeiras prá
ticas historiadoras aparecem
(F.
Hartog, ausente da França, es
taria melhor posicionado do que eu para falar disso), vemos
bem que a necessidade da pesquisa vem da necessidade de fa-
41
~ ~ ~ e -
c ' : i ~ . ' í ~ i ; l i l i i 1 1 i l i i 1 1 1 1 1 U l ü U í l i i i i í í i l i i i i i i l i i i i i i i i i í i i i l i i i i i i i i
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
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bricar um memorável adequado ao mundo dos contemporâne
os. Ao mesmo tempo coloca-se a questão da enunciação. Quem
fala e com que direito? O poeta com suas garantias não está
mais aí para fazê-lo em meio aos seus. Aquele que produz o
memorável para a cidade, assim, tem sempre, de certo modo, a
nostalgia da epopéia definitivamente impossível. Quando a ci
dade produz um discurso adequado pelo qual ela se funda, fa
bricando seu próprio memorável mítico, quando ela pratica a
oração fúnebre, ela o faz em referência aos valores do epos (N.
Loraux, de novo aqui, seria bem melhor que eu para falar dis
so). O orador oficial narra então a grandeza de Atenas pela gran
deza de seus guerreiros mortos ao modo dos heróis, incorporan
do os valores que servem a isso.
Para não multiplicar os casos de figura, gostaria agora
de observar o modo como a imagem pode se inserir nesse dis
positivo de produção (seguindo desta vez F. Lissarrague que
não pode estar aqui hoje. Espero não trair ninguém, enfim não
muito, fazendo falar tantos amigos ausentes ). A imagem possui
uma vantagem fundamental: ela representa e ao mesmo tempo
produz sentido. De outro modo, quando a imagem é representa
ção, ela pode representar um guerreiro da cidade, o hoplita car
regando o corpo de seu companheiro morto. Através de alguns
elementos do dispositivo icónico, é possível mostrar que o guer
reiro morto é um herói parecido com o da epopéia, com o guer
reiro épico: a forma do escudo, o tipo de penteado, por exem
plo. A imagem pode conter nomes, Aquiles, Ajax, com uma
referência evidente aos dados épicos. Ela é representação ou
motor de discursos, ocasião assim de reatualizar a memória para
retomar o que estava dito antes, a memória dos valores do epos.
Em uma cena desse gênero, podemos introduzir Atena. A deu
sa, sabemos, mantém uma relação específica com
os
heróis do
ciclo troiano: ela pode então fazer parte dessas representações.
Se suprimimos as indicações de nomes, Atena continua reco
nhecível graças aos elementos que a definem (armas, coruja,
etc.) mas o guerreiro carregador ou carregado, torna-se simples-
4
mente um guerreiro em presença de Atena. O que faz com que
uma representação desse gênero seja ao mesmo tempo válida
para o herói e para a situação na qual o combatente da cidade, o
hoplita, é declarado comparável aos heróis, com uma verdadei
ra metaforização interna à imagem. Podemos ir ainda mais lon
ge, nesse sentido, adicionando por exemplo no dispositivo car
regador/carregado, em presença de Atena, um leão que desfila
com os personagens da imagem, ao fundo do conjunto. O valor
metafórico da imagem é assim assinalado do interior do próprio
dispositivo, o leão não tendo outra significação possível em um
contexto como esse. Aliás, o ritual dos funerais públicos não
tinha rigorosamente nada o que fazer com o que era representa
do nas imagens desse tipo (eu deveria, desculpem, tê-lo dito no
começo), quer dizer com esse transporte individual do cadáver
incluído no universo épico. Os mortos celebrados pelo ritual
ateniense são anônimos, coletivamente honrados, etc. e disso a
imagem não diz nada. Podemos assim ver como a imagem pode
jogar nessa estratégia da memória onde as margens de mano
bras são bastante reduzidas. Visto que as questões de enunciação
não se colocam mais no interior do novo conjunto onde a ima
gem joga com suas condições específicas de produção, torna-se
possível praticar uma política de memória mais flexível nesse
mundo, somando-se tudo, tão complexo que é o domínio gre
go. Penso que seria necessário desdobrar um pouco mais tudo
isso diante de vocês.
E isso para remeter, certamente, dentro de uma perspec
tiva antropológica, que eu defendia ontem em uma outra ofici
na, à nossa própri:i prática memorial, no sistema com memória
institucional que é o nosso. Temos historiadores, universidades
onde se ensina a história. Gostaria simplesmente que nos inter
rogássemos, enquanto produtores de memória, com relação ao
funcionamento grego da prática memorial. E gostaria, para ter
minar e à guisa de incitar a discussão, de me perguntar se o fato
de que a primeira memória heróica produzida no curso do esta
belecimento de nossa história republicana gire em torno de per-
43
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria 22/35
sonagens como Vercingétorix ou Joana d Are, que eu diria
massivamente míticos
à
grega, é um acaso
ou
se isso coloca
questões sobre nossa própria gestão da memória no quadro da
instituição que a produz.
Jean-Louis Durand
44
BIBLIOGR FI
VIDAL-NAQUET,
P
(1978), Les boucliers des héros ... ,
Revue des Études grecques no XVI.
ESCHYLE. Les Sept contre Thebes texto elaborado e traduzi
do por Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, la ed., 1963; re
vista em 1966.
45
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria 23/35
NOT S
1.
Vidal-Naquet
P.
1978. Les boucliers des héros
. . Revue des Études
grecques
no
XVI.
2.
Eschyle.
Les Sept contre Thebes
texto elaborado e traduzido por Paul
Mazon Paris Les Belles Lettres
l
ed. 1963 revista em 1966.
47
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria 24/35
P PEL D MEMÓRI
Não pretendo fornecer um levantamento exaustivo do
trabalho da manhã, nem resumir as três apresentações de que
nos beneficiamos. Gostaria simplesmente de dar a tonalidade
delas, acentuando o que me pareceu ser as nervuras principais
do debate.
De início, uma observação de conjunto sobre
as
três apre
sentações: Pierre Achard trabalha em sociolingüística e
m ná-
lise de discurso, Jean Davallon em semiótica e sociosemiótica
do espaço e Jean-Louis Durand efetua pesquisas semióticas so
bre o gestual na antiguidade ateniense clássica.
Corríamos o risco então de ter discussões agradavelmente
paralelas, sem ponto de contato: por exemplo, uma sobre os
textos e os discursos, e outra sobre a imagem. De fato, a questão
do papel da memória permitiu um encontro efetivo entre temas
a princípio bastante diferentes. Esta questão conduziu a abordar
as condições mecanismos, processos ) nas quais um aconteci
mento histórico um elemento histórico descontínuo e exterior)
49
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria 25/35
é suscetível de vir a se inscrever na continuidade interna, no
espaço potencial de coerência próprio a uma memória.
Memória deve ser entendida aqui não no sentido direta
mente psicologista da memória individual , mas nos sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita
em práticas, e da memória construída do historiador. O risco
evocado de uma vizinhança flexível de mundos paralelos se deve
de fato à diversidade das condições supostas com essa inscri
ção: é a dificuldade - com a qual é preciso um dia se confrontar
- de um campo de pesquisas que vai da referência explícita e
produtiva à lingüística, até tudo o que toca as disciplinas de
interpretação: logo a ordem da língua e da discursividade, a da
linguagem , a da significância (Barthes), do simbólico e da
simbolização
Não é de se admirar, nessas condições, que a idéia de
uma fragilidade, de uma tensão contraditória no processo de
inscrição do acontecimento no espaço da memória tenha sido
constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que de
sempenhou o papel de ponto de referência:
- o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega
a se in'screver;
- o acontecimento que é absorvido na memória, como se
não tivesse ocorrido.
No que concerne aos múltiplos registros evocados aci
ma, que formam uma continuidade problemática entre a lingüís
tica e as disciplinas de interpretação (restando saber em que
medida a própria lingüística é ou não uma disciplina de inter
pretação), um acordo muito amplo se manifestou, nas apresen-
50
rações e na discussão, sobre a especificidade da ordem propria
mente lingüística (definida por exemplo como a da variação
combinatória, à qual J.-C. Milner se referiu em sua apresenta
ção), em relacão à ordem do discursivo, e afortiori em relação
às
do icônico, do simbólico ou da simbolização.
O fato de que possa existir localização de traços distinti
vos e de oposições pertinentes na esfera do icônico, por exem
plo, não conduziu ninguém a supor que, mesmo para um
sincronia dada, haveria universais do icônico (pessoalmente, a
impensabilidade de uma sintaxe do icônico me parece marcada
pela inexistência da negação e da interrogação no interior da
imagem). A questão de uma possível combinatória culturalmente
determinada dos segmentos gestuais (a propósito da qual J.-L.
Durand mencionou certos trabalhos etnológicos americanos re
centes) coloca provavelmente um problema bem diferente, mas
não desemboca mais em impossíveis universais gestuais.
Concebemos desde então que o fato incontornável da
eficácia simbólica ou significante da imagem tenha atraves
sado o debate como um enigma obsediante, e que, por seu lado,
os fatos de discurso, enquanto inscrição material em uma me
mória discursiva, tenham podido aparecer como uma espécie
de problemática-reserva. Essa negociação entre o choque de um
acontecimento histórico singular e o dispositivo complexo de
uma memória poderia bem, com efeito, colocar em jogo a nível
crucial uma passagem do visível ao nomeado na qual a imagem
seria um operador de memória social, comportando no interior
dela mesm um programa de leitura, um percurso escrito
discursivamente em outro lugar: tocamos aqui o efeito de repe
tição e de reconhecimento que faz da imagem como que a reci
tação de um mito. Na transparência de sua compreensão, a ima
gem mostraria como ela se lê, quer dizer, como ela funciona
enquanto diagrama, esquema ou trajeto enumerativo. Refiro
me a tudo o que Jean Davallon adiantou a esse respeito.
51
illll ill
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Tocamos aqui um dos pontos de encontro com a questão
da memória como estruturação de materialidade discursiva com
plexa, estendida em uma dialética da repetição e
da
regulariza
ção: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que
surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os implíci
tos (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elemen
tos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua
leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio
legível. Ora, acontece que esta é uma das questões cruciais atu
almente abordadas pela análise
de
discurso: uma discussão aberta
a esse respeito, que - sem ser puro 11egócio de butique - reveste
apesar de tudo
um
caráter relativamente técnico . A questão é
saber onde residem esses famosos implícitos, que estão ausen
tes por sua presença na leitura da seqüência: estão eles dispo
níveis na memória discursiva como em um fundo de gaveta, um
registro do oculto? P Achard levanta a hipótese de que não en
contraremos nunca, em nenhuma parte, explicitamente, esse dis
curso-vulgata do implícito, sob uma forma estável e sedimentada:
haveria, sob a repetição, a formação de um efeito de série pelo
qual uma regularização (termo introduzido por
P.
Achard) se
iniciaria, e seria nessa própria regularização que residiriam os
implícitos, sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos
de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da cons
trução dos estereótipos). Mas, sempre segundo
P
Achard, essa
regularização discursiva, que tende assim a formar a lei da série
do legível, é sempre suscetível de ruir sob o peso do aconteci
mento discursivo novo, que vem perturbar a memória: a memó
ria tende a absorver o acontecimento, como uma série matemá
tica prolonga-se conjeturando o termo seguinte em vista do co
meço da série, mas o acontecimento discursivo, provocando
interrupção, pode desmanchar essa regularização e produzir
retrospeciivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar
o aparecimento de uma nova série que não estava constituída
enquanto tal e que é assim o produto do acontecimento; o acon
tecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associa
dos ao sistema de regularização anterior.
52
Haveria assim sempre um jogo de força na memória, sob
o choque do acontecimento:
- um jogo de força que visa manter uma regularização
pré-existente com os implícitos que ela veicula, confortá-la como
'boa forma , estabilização parafrástica negociando a integração
do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente dissolvê-lo;
- mas também, ao contrário, o jogo de força de uma
desregulação que vem perturbar a rede dos implícitos .
m relação com a questão da regularização, a da repeti
ção (dos itens lexicais e dos enunciados) prolongou o debate: a
repetição é antes de tudo um efeito material que funda comuta
ções e variações, e assegura - sobretudo ao nível da frase escri
ta1 - o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica pro
duzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa
identidade material.
Mas a recorrência do item ou do enunciado pode tam
bém (este é um ponto introduzido por Jean-Marie Marandin na
discussão) caracterizar uma divisão da identidade material do
item: sob o mesmo da materialidade da palavra abre-se então
o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação
discursiva .. Uma espécie de repetição vertical, em que a pró
pria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em
paráfrase.
Esse efeito de opacidade (correspondente ao ponto de
divisão do mesmo e da metáfora), que marca o momento em
que os implícitos não são mais reconstrutíveis, é provavel
mente o que compele cada vez mais a análise de discurso a se
distanciar das evidências da proposição,
da
frase e da estabili
dade parafrástica, e a interrogar os efeitos materiais de monta
gens de seqüências, sem buscar a princípio e antes de tudo sua
53
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significação ou suas condições implícitas de interpretação.
Trata-se, de outro modo, de retirar-se provisoriamente,
taticamente, da questão do sentido, sabendo ao mesmo tempo
que a questão da interpretação é incontornável e retornará sem
pre. A esse propósito, devo fazer um esclarecimento a respeito
da fala de Sylvain Auroux, que me atribuiu uma controvérsia
com J.-C. Milner sobre a questão de saber se ele se estimava ou
não ser colega de Beauzée: parece-me útil explicar um pouco
de que se trata A questão concerne de fato ao estatuto da lin
güística frente
às
disciplinas de interpretação. Eu tinha pergun
tado a Vidal-Naquet (a partir da alusão ao artigo de Nicole
Loraux ''Tucídides não é um colega", muito citado
no
decorrer
dessas jornadas), se, para ele, Tucídides, sem ser seu colega, era
não obstante um historiador; questão à qual
P
Vidal-Naquet res
pondeu: "Sim, certamente ", o que implica que não há começo
histórico assinalável para a disciplina histórica, na medida em
que a história é uma disciplina de interpretação: para um físico,
por exemplo, o problema de saber se Aristóteles é um colega
não se coloca. Aristóteles não é para ele nem um colega, nem
um físico. Minha questão a J.-C. Milner concernia então de fato
à posição da lingüística a respeito da interpretação. Perguntar
se se há ou não um momento histórico assinalável em que se
pode dizer de alguém ''é um lingüista'', não é então colocar um
mero poblema de datação, mas levantar a questão de saber se a
lingüística é uma disciplina puramente "experimental", ou se
ela tem necessariamente algo a ver (de modo complexo, equí
voco, ambíguo mas algo a ver) com
as
disciplinas de interpre
tação, desde a história até a psicanálise.
Fecho este parêntese para retornar à questão da interpre
tação em análise de discurso:
P
Achard caracterizou esse movi
mento de retirada provisório da questão do sentido e da vontade
de interpretar, lembrando o provérbio chinês "Quando lhe mos
tramos a lua, o imbecil olha o dedo". Com efeito, por que não?
Por que a análise de discurso não dirigiria seu olhar sobre os
54
gestos de designação antes que sobre os designata, sobre os pro
cedimentos de montagem e
as
construções antes que sobre
as
significações? A questão da imagem encontra assim a análise
de discurso por um outro viés: não mais a imagem legível na
transparência, porque um discurso a atravessa e a constitui, mas
a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memória
"perdeu" o trajeto de leitura (ela perdeu assim um trajeto que
jamais deteve em suas inscrições).
A imagem muda é por exemplo o choque opaco de uma
imagem de vaso grego: a arquelogia possui apenas o olho, quer
dizer, imagens e textos, sem coincidência, e não, como a antro
pologia de hoje, o a mais" do ouvido (a voz, a "trilha sonora").
O que evoco aqui remete à apresentação de J.-L. Durand, que
mostrou como a epopéia heróica grega fazia irrupção nas cenas
visuais da democracia ateniense (em particular as cenas funerá
rias), através de telescopias burlescas por seu anacronismo (mais
ou menos como se mostrássemos Vercingétorix a bordo de um
avião a jato).
No outro extremo, o choque opaco do acontecimento
televisual é também algo que não se inscreve, na medida em
que está sempre "já lá", no retorno de um paradigma pesado
que se repete no interior de sua aparição instantânea: por exem
plo (intervenção de Maurice Mouillaud), a história do submari
no soviético perdido no Báltico, quando este vem à superfície
da tela de TV; o submarino está sempre lá, não necessariamente
no fundo do mar, mas nas profundezas de
um
paradigma que
estrutura o retorno do acontecimento sem profundidade.
Reencontramos assim, para finalizar, a questão da rela
ção entre a imagem e o texto: no entrecruzamento desses dois
objetos, onde estamos, tecnologicamente e teoricamente, hoje,
com relação a esse problema que, após Benveniste, Barthes de
signou com o termo "significância"?
55
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
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Em que pé estamos com relação a Barthes? Barthes era
tanto lingüista dos textos como teórico das imagens, ou de pre
ferência não era nem um nem outro quer dizer, nem lingüista,
nem semiólogo, nem analista) mas antes de tudo o esboço con
traditório de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele
soube agenciar
à
sua maneira talvez única, quer dizer, em pes
soa - logo também, e de maneira equívoca: como pessoa?
A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse deba
te é que uma memória não poderia ser concebida como uma
esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e
cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo
de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de di
visões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de con
flitos de regularização .. Um espaço de desdobramentos, répli
cas, polêmicas e contra-discursos.
E o fato de que exista assim o outro interno em toda
memória é, a meu ver, a marca do real histórico como remissão
necessária ao outro exterior, quer dizer, ao real histórico como
causa do fato de que nenhuma memória pode ser um frasco sem
exterior
Michel Pêcheux
56
NOT S
1 Assinale-se a esse propósito uma intervenção de Françoise Madré,
problematizando a relação escrito/oral do ponto de vista da repetição e
da memória.
2 Penso nas teses desenvolvidas por Paul Veyne, que poderiam bem ilus
trar esse pantextualismo que foi designado como risco constante no
decorrer dos debates. O último livro de
P
Veyne Les Grecs ont-ils cru
à leurs mythes dá uma idéia desse frasco ideal do relativismo absoluto.
57
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http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria 29/35
MAIO E 1968: OS SILÊNCIOS DA MEMÓRIA
ntrodução
Falando de história e de política, não há como não consi
derar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de si
lêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silên
cios e de silenciamentos.
Os sentidos se constróem com limites. Mas há também
limites construídos com sentidos. E quando penso maio de 68, o
que vem
à
frente da cena - política e histórica - é o silenciamento,
são os sentidos que impõem limites. A tortura, a censura, a agres
são da ditadura à sociedade, à cidadania.
Mais do que ver
o
acontecimento maio-68 a constatação
dess
violência, interessa vê-lo, enquanto contecimento
discursivo, justamente, como fato desencadeador de um pro
cesso de produção de sentidos que, reprimido, vai desembocar
na absoluta dominância do discurso neo)liberal. No entanto,
enquanto tal,
o
momento em que apareceu, maio-68 abria para
uma nova discursividade, produzindo efeitos metafóricos que
afetavam a história e a sociedade, de maneira explosiva, em várias
59
para significar. E é isso a materialidade discursiva, isto é,
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria 30/35
direções: politicamente, culturalmente, moralmente. E o que vai
se dar com essa discursividade no futuro? O que significa maio
de 68 hoje?
Para trazermos essa questão para a reflexão, podemos
referir o texto de M. Pêcheux (p. 33 aqui mesmo), no qual ele
procura compreender, junto a lingüistas, semioticistas e histori
adores, a fragilidade no processo de inscrição do acontecimen
to no espaço da memória que, segundo ele, joga em uma dupla
forma:
a.
o acontecimento que escapa à inscrição, que não che
ga a inscrever-se, e b. o acontecimento que é absorvido na me
mória como se não tivesse ocorrido.
O caso que estou apresentando não se enquadra nem na
primeira, nem na segunda possibilidade. uma nuance entre
elas: é como se não tivesse ocorrido (b
,
não porque foi absorvi
do mas, ao contrário, justamente porque escapa à inscrição na
memór ia (a). este, penso eu, o caso da censura em geral. Nes
se sentido, embora eu explore aqui uma situação particular de
censura, essa minha reflexão pode contribuir para a compreen
são da relação entre memória e censura em geral.
m
pouco de teori
já conhecido, na análise de discurso, que há interpela
ção do indivíduo em sujeito pela ideologia. assim que se con
sidera que o sujeito se constitui em sujeito por ser afetado pelo
simbólico. aí seu assujeitamento, ou seja, para que o sujeito
seja sujeito é necessário que ele se submeta à língua. E é por
estar sujeito à língua, ao simbólico, que ele, por outro lado, pode
ser sujeito de.
Além disso, é preciso que a língua se inscreva na história
60
linguístico-histórica. a interpelação do indivíduo em sujeito
pela ideologia resulta a forma-sujeito histórica. Em nosso caso,
a forma-sujeito histórica capitalista corresponde ao sujeito-jurí
dico constituído pela ambiguidade que joga entre a autonomia e
a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e
deveres. Podemos dizer, então, que a condição inalienável para
a subjetividade é a língua, a história e o mecanismo ideológico
pelo qual o sujeito se constitui.
Por outro lado, esse sujeito, uma vez constituído, sofre
diferentes processos de individualização (e de socialização) pelo
Estado. Assim, se temos o indivíduo como ponto de partida para
o assujeitamento ao simbólico - e, quanto a este assujeitamento
o sujeito não tem controle pois ele se passa antes, em outro
lugar e independentemente - temos sobre esse sujeito proces
sos que o individualizam e que derivam das diferentes formas
de poder. E aí as Instituições e o Poder constituído têm um
papel determinante. nessa instância que se dão as lutas, os
confrontos e onde podemos observar
os
mecanismos de imposi
ção, de exclusão e os de resistência.
Pois bem, é assim, partindo dessa posição teórica, que
procuraremos compreender o que tenho chamado de proces
sos de de-significação que estão presentes
em
discursividades
como as que incidem sobre maio de 68. Portanto, não tratare
mos o sujeito como algo que se trabalha do ponto de vista de
uma sua essência, mas pensando sua existência como constituí
da
pela sua relação com a língua e com a história onde se con
frontam o simbólico e o político.
E a nossa questão é: o que aconteceu com os sentidos
que constituem o evento maio-68?
Para falar disso retomamos o fato de que falar é esque
cer. Esquecer para que surjam novos sentidos mas também es-
61
quecer apagando os novos sentidos que
á
foram possíveis mas
cusa a uma vida reduzida a regras e a um trabalho que, por sua
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria 31/35
foram estancados em um
processo histórico-político silenciador.
São sentidos que são evitados, de-significados.
Formações iscursivas e Esvaziamento de Sentido
A definição de formação discursiva diz que ela delimita
"aquilo que pode e deve ser dito por um sujeito em uma posição
discursiva em um momento dado em uma conjuntura dada"
(Haroche, Henry, Pêcheux, 1975).
No modo como o político se simboliza nos anos 60 há
todo um possível dizer da sociedade, da cultura que coloca os
sujeitos em medida de uma transformação histórica e social de
grande dimensão. Essa possibilidade eclode nos movimentos
de 68 tendo a palavra
liberdade
como carro-chefe. No mundo
todo há manifestações de rua em que uma discursividade can
dente trabalha os muitos sentidos postos na reivindicação das
liberdades concretas necessárias à sociedade em suas novas
posssíveis formas.
São assim enunciados que funcionam em suas relações
parafrásticas, relacionando-se em suas diferentes formulações
ao que pode significar "liberdade":
a. É proibido proibir ".
b. "Faça amor e não faça guer ra " que deriva ainda para
"Paz e Amor ".
c.
"Boulot, Metro, Dodo " em português: "Trabalho,
Condução e Cama ".
Que, em suas diferentes formas de dizer, afirmam a re-
62
vez, reduz o homem em suas possibilidades de vida.
Uma paráfrase agora, com o tempo
á
deslocado, mostra
a conversão desse discurso em um processo que o de-signifi
cou. Essa paráfrase aparece, em maio de 1998, em um poster
de propaganda no metrô de Paris: um casal nu, tatuado com
flores
no
peito, dirigindo-se a uma exposição,
e
embaixo, os
dizeres "Entrada livre. Isso faria sonharem seus pais
..
".
Esse enunciado por sua vez mostra a forma como os sen
tidos concretos e explosivos de liberdade, que estavam levando
à
uma revolução social e cultural, a novos sentidos para os su
jeitos e para
à
história, foram barrados violentamente pelo status
quo. Pelas instituições, pelo poder. E, no caso do Brasil, mais
violentamente ainda porque estávamos em uma ditadura e era
bem diferente dizer
É
proibido proibir" aqui em uma rua de
São Paulo e em uma rua de Paris
..
No poster dos anos 90 "entrada livre" e gratuita reduz o
sentido de liberdade ao preço de um parque de diversões.
O interditado que toma a forma do impossível
Então, sentidos possíveis, historicamente viáveis foram
politicamente
interditados
E tornaram-se inviáveis. Essa im
possibilidade, posta pela censura e pela força, se naturaliza e
funciona como
um
pre-construído restritivo a certos sentidos de
liberdade, de tal maneira, que eles parecem
impossíveis
Foram
assim desmoralizados, amolecidos, inviabilizados, de-signifi
cados, postos fora do discurso. E a palavra "liberdade" aparece
feito florzinha que se prende com um bottom numa roupinha
maneira .. Ao mesmo tempo, pela outra mão, a da direita, nesse
mesmo processo, se estabelecem
as
bases do discurso neo-libe-
63
ralem que se individualiza a questão da liberdade, destituindo
ª
da força concreta histórica que ela tinha na outra formação
e esquecidas, ao longo do tempo e de nossas experiências de
linguagem que,
no
entanto, nos afetam em seu esquecimento .
7/24/2019 PÊCHEUX, Michel. et. al. Papel Da Memória
http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-michel-et-al-papel-da-memoria 32/35
discursiva - a da esquerda, em que o partido comunista propu
nha em seu programa a necessidade de construção de uma de
mocracia fundada nas liberdades concretas necessárias para
as
novas formas sociais - em que haviam se alocado sentidos ex
plosivos de liberdade. E o que é silenciado em uma formação
discursiva é acolhido em outra formação discursiva, esta, domi
nante, que corresponde ao
viés pragmático e empresarial da
política neo-liberal desembaraçada dos sentidos mais corrosi
vos, transformadores do político. Essa liberdade sem determi
nações concretas, agora generalizada, pode ser reivindicada,
individualizando-se, até pelos neo-nazistas que, em nome dela,
exigem o direito de usar a suástica em suas roupas opressivas.
O que é isto companheiro
Não é nada disso, companheiro, diz uma paráfrase de
José Simão que, com seu humor, evoca o jogo discursivo que
atravessa esse enunciado em sua memória, agora transformada
de romance em filme.
E a questão é sem dúvida uma questão de memória. No
sentido discursivo, A memória - o interdiscurso, como defini
mos na análise de discurso - é o saber discursivo que faz com
que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se consti
tui pelo já-dito que possibil ita todo dizer.
Pois bem como
dissemos
no
início
o
sujeito
é
assujeitado, pois para falar precisa ser afetado pela língua. Por
outro lado, para que suas palavras tenham sentido é preciso que
já tenham sentido. Assim é que dizemos que ele é historicamen
te
determinado, pelo interdiscurso, pela memória do dizer: algo
fala antes, em outro lugar, independentemente. Palavras
já
ditas
64
Assim como a língua é sujeita a falhas, a memória também é
constituída pelo esquecimento; daí decorre que a ideologia, diz
M. Pêcheux (1982), é um ritual com falhas, sujeito a equívoco,
de tal modo que, do já dito e significado, possa irromper o nm
o
o irrealizado. No movimento contínuo que constitui
os
sentidos
e os sujeitos em suas identidades na história.
Ainda em M. Pêcheux (aqui mesmo, p. 36) temos: uma
espécie de repetição vertical, em que a memória esburaca-se,
perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase . O que dá, se
gundo esse autor (idem, p.39), a idéia de memória como um
espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e
de retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de des
dobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos (1).
Memória e Censura
O que acontece com maio-68 porém é de outra ordem. A
falha é constitutiva da memória, assim como o esquecimento.
No entanto o que acontece com os sentidos de 68 é que eles não
falham apenas nessa memória, eles foram silenciados, censura
dos, excluídos para que não haja um
já
dito, um
já
significado
constituído nessa memória de tal modo que isso tornasse, a par
tir daí, outros sentidos possíveis. Há faltas (2) - e não falhas -
de tal modo que eles não fazem sentido, colocando fora do dis
curso o que poderia ser significado a partir deles e do esqueci
mento produzido por eles para que novos sentidos aí significas
sem. Há, assim, furos , buracos na memória, que são luga
res, não em que o sentido se cava mas,
ao
contrário, em que o
sentido falta por interdição. Desaparece. Isso acontece por
que toda uma região de sentidos, uma formação discursiva, é
apagada, silenciada, interditada. Não há um esquecimento pro-
65
duzido
p r
eles, mas sobre eles. Fica-se sem memória. E isto
impede que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos.
to
a repressão porque resvala para o que, hoje, se considera como
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Como a memória
é
ela mesma, condição do dizível, esses sen
tidos não podem ser lidos.
Para observarmos isso basta pensarmos nos sentidos dos
nossos companheiros de maio-68 trucidados pela tortura e pela
repressão militar. Eu vi, em meu silêncio, muitos de meus cole
gas com suas fotos afichadas como perigosos guerrilheiros em
pilares da rodoviária de São Paulo toda vez que ia tomar ôni
bus. Eram lidos, vistos, pensados como perigosos terroristas.
Por onde passam
os
sentidos
do
terrorismo? Por onde passam
os sentidos da resistência política de 68? Os sentidos de liber
dade?
Acontece que estes sentidos - excluídos, silenciados -
não puderam e não podem significar, de tal modo que há toda
uma nossa história que não corresponde a um dizer possível.
Não foram trabalhados socialmente, de modo a que pudésse
mos nos identificar em nossas posições. Do mesmo modo ficam
sem ser politicamente significados
os
feitos da tortura e
do
que
resultou dela na nossa política. Toda vez que vamos votar, mes
mo que nem pensemos nisso, o fato de que o Brasil é um país
que tortura os dissidentes políticos faz parte de nossa memória
e de nossos gestos políticos. E isso não mereceu ainda sua
explicitação política (3).
Está fora da memória como uma
sua margem que nos aprisiona nos limites desses sentidos.
que está fora da memória não está nem esquecido nem foi traba
lhado, metaforizado, transferido. Está in-significado, de-signi
ficado (4).
Em conseqüência, a discursividade política tem seus
pontos de tensão nos indícios desses silenciamentos. Hoje, dis
cursos como os do MST, que são uma ruptura no discurso polí
tico neo-liberal, têm dificudade de significar-se nessa margem
em que muitos sentidos não podem fazer o sentido do político,
onde palavras como movimento podem significar algo sujei-
ilegal, indo na direção
do
que se considera mobilização soci
al , ilegal, e que, em maio-68, estava absolutamente dentro das
espectativas do político.
Para tenninar, eu gostaria de dizer que o real histórico
faz pressão, fazendo que algo irrompa nessa objetividade mate
rial contraditória (a ideologia). O que foi censurado não desa
parece de todo. Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso,
in-significados e que demandam, na relação com o saber
discursivo, com a memória do dizer, uma relação equívoca com
as
margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites.
ni
P
Orlandi
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Uma primeira versão deste texto foi apresentada em Santa Maria
(RS),
no
Colóquio Utopias e Distopias' ', em maio de 1998.
Agradeço a Amanda Scherer a oportunidade e a convivência com os
que estiveram
no
evento.
1 As teses de Bethania C
S
Mariani, sobre o discurso
do
Partido
Comunista no Brasil (1997), a de Suzy Lagazzi Rodrigues sobre o
discurso do Assentamento ( 1998) e a de Maria Onice Payer sobre
memória da língua, na situação da imigração italiana (em curso),
trabalham todas elas esses aspectos de cristalização, de apagamento,
ou de ruptura e resistência.
2
Estou aqui fazendo uma distinção - falha
CCll1stitutiva
e falta por inter
dição - que corresponderia, em paralelo,
à
distinção que faço entre não
sentido (que aponta para o sentido que poderá vir, o irrealizado) e o
sem-sentido (o que
já
significou e que não faz mais sentido). No caso, a
falha é o lugar do possível, do sentido a vir: e a falta, é o que foi tirado
do sentido, o que não pode significar. Essas formas se indistinguem e,
na maior parte das vezes, não é fácil separá-las. E está aí justamente, do
ponto de vista da ideologia, a eficácia de seus efeitos.
3
Mais recentemente, há referências públicas
à
tortura, mas que permane
cem à margem, como acasos sem história, violência que não aparece
como parte da política mas à parte dela. Transferida para a polícia.
4
Conferir - a respeito da falta de trabalho da memória, da dificuldade de
dizer, de se identificar e de transferir (metaforizar) sentidos que se pode
perceber na falta de palavras, na tensão dos gestos, dos olhares e do
silêncio constrangido (e constrangedor para nós cidadãos brasileiros )
dos corpos - o filme 15 Filhos : a imaterialidade da morte (sob tortura,
fabricam-se
os
desaparecidos,
a
morte fica sem corpo
... ) é a
imaterialidade da vida diz um dos, ou melhor, uma das filhas.
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