29
INDICA{'.AO BIBLIOGRAFICA ARON, Raymond. La Philosophie Critique de l'Histoire. Paris, 1950. BOLLNOW, 0. Friedrich. Dilthey: Eine Einjilhrung in seine Philo- sophie. Leipzig, 1936. DILTHEY, Wilhelm. Der tung Dilthey. Hg. C. Misch-Dilthey. G6ttin- gen 1960. ----. Leben Schleiermacher I-II. Berlin 1870 e Berlin-G6ttin- gen 1966. ----. Das Erlebnis und die Dichtung. G6ttingen, 14. Auf., 1965. ----. Einleitung in die Geistes1wissenschaften (Gesammelte Schriften I, Hg. B. Groethuysen). Stuttgart-G6ttingen, 6. Auf.. 1966. ----. Die Geistige Welt (Gesammeltt Schriften V, Hg. G Misch). Stuttgart-G6ttingen, 5. Auf., 1968. ----. Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geistes- wissenschaften (Gesammelte Schrfften VII, Hg. B. Groethuysen). Stuttgart-G6ttingen, 4. Auf., 1965. GADAMER, Hans-Georg. "Diltheys Verstrickung in die Aporien des historismus". In: - Wahreit und Methode. Tiibingen, 3. Auf., 1972. HODGES, H. A. The Philosophy of Wilhelm Dilthey. London, 1952. IMAZ, Eugenio. El Pensamiento de Dilthey. Mexico, 1946. MAKKREEL, Rudolf A. Dilthey: Philosopher of the Human Studies. Princeton, 1975. MARALDO, John C. "Die erkenntnistheoretisch-ontologische Fra- gestellung: Der Zirkel bei Dilthey". In: - Der Hermeneutische Zirkel. Freiburg/Miinchen, 1974.. PALMER, Richard. "Dilthey: Hermeneutics as Foundation of the GeistesWissenschaften". In: - Hermeneutics. Evanston, 1969. SUTER, J. F. Philosophie et Histoire chez Wilhelm Dilthey. Basel, 1960. VICENTINI, C. Studio su Dilthey. Milano, 1974. Para uma indicagao suplementar, consultar De Cerio Ruiz, F. D. W. Dilthey y El Problema del Mundo HistOrico. Barcelona, 1959, XXVI-LV. 26· \ _po ,.oj A EPISTEMOLOGIA FREUDIANA· ,v Sergio Paulo Rouanet INTRODUgAO Como costuma acontecer com tantas de Freud, esta palestra ja comec;a sob uma luz ambigiia, proje-( tada no texto pelo proprio titulo. Em seu sentido proprio e rigoroso, signi- fica 0 estudo critico dos principios, das hipoteses e dos re- . sultados das diversas ciencias, ou de uma ciencia especifica, a fim de determinar sua origem logica, seu valor e seu al- cance objetivo. Ora, nada esta mais longe de minhas in- tenc;6es. Nao pretendo desprender do discurso freudiano as regras de funcionamento da ciencia psicanalitiea, nele con- tidas "em estado pratico", como virtualidades pre-te6ricas ;:.... .que so estivessem aguardando essa investigagao para ace- derem ao estatuto teorieo. Nao pretendo,como Rapaport, livrar a psicanaIise de sua "ganga :rr...istica", retraduzindo suas premissas metafisicas numa linguagem behaviourista, e dotando-a de "observaveis", como eonduta, estrutura e or- ganismo, capazes, finalmente, de inscrever a psicanalise no sistema geral das ciencias do comportamento, nem, como Albert Ems e Peter Madison, reconduzir os enunciados deli- rantes de Freud a sua verdade racional, transpondo-os na linguagem do operacionalismo de Bridgmann. Nao pretendo, enfim, seguir os rastros de Paul-Laurent Assoun, que num livro apaixonante tentou investigar "0 modo de constituigao * Palestra pronunciada no Col6quio "Fundament os da Psicologia e Psi- canalise, Universidade de Camplinas, novembro de 1984. 27

Rouanet, Sergio Paulo - A Epistemologia Freudiana

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INDICA{'.AO BIBLIOGRAFICA

ARON, Raymond. La Philosophie Critique de l'Histoire. Paris, 1950. BOLLNOW, 0. Friedrich. Dilthey: Eine Einjilhrung in seine Philo­

sophie. Leipzig, 1936. DILTHEY, Wilhelm. Der tung Dilthey. Hg. C. Misch-Dilthey. G6ttin­

gen 1960. ----. Leben Schleiermacher I-II. Berlin 1870 e Berlin-G6ttin­

gen 1966. ----. Das Erlebnis und die Dichtung. G6ttingen, 14. Auf., 1965. ----. Einleitung in die Geistes1wissenschaften (Gesammelte

Schriften I, Hg. B. Groethuysen). Stuttgart-G6ttingen, 6. Auf.. 1966.

----. Die Geistige Welt (Gesammeltt Schriften V, Hg. G Misch). Stuttgart-G6ttingen, 5. Auf., 1968.

----. Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geistes­wissenschaften (Gesammelte Schrfften VII, Hg. B. Groethuysen). Stuttgart-G6ttingen, 4. Auf., 1965.

GADAMER, Hans-Georg. "Diltheys Verstrickung in die Aporien des historismus". In: - Wahreit und Methode. Tiibingen, 3. Auf., 1972.

HODGES, H. A. The Philosophy of Wilhelm Dilthey. London, 1952. IMAZ, Eugenio. El Pensamiento de Dilthey. Mexico, 1946. MAKKREEL, Rudolf A. Dilthey: Philosopher of the Human Studies.

Princeton, 1975. MARALDO, John C. "Die erkenntnistheoretisch-ontologische Fra­

gestellung: Der Zirkel bei Dilthey". In: - Der Hermeneutische Zirkel. Freiburg/Miinchen, 1974..

PALMER, Richard. "Dilthey: Hermeneutics as Foundation of the GeistesWissenschaften". In: - Hermeneutics. Evanston, 1969.

SUTER, J. F. Philosophie et Histoire chez Wilhelm Dilthey. Basel, 1960.

VICENTINI, C. Studio su Dilthey. Milano, 1974.

Para uma indicagao suplementar, consultar De Cerio Ruiz, F. D. W. Dilthey y El Problema del Mundo HistOrico. Barcelona, 1959, XXVI-LV.

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\

_po ,.oj

A EPISTEMOLOGIA FREUDIANA·

,v Sergio Paulo Rouanet

INTRODUgAO

Como costuma acontecer com tantas interpreta~6es de Freud, esta palestra ja comec;a sob uma luz ambigiia, proje-( tada no texto pelo proprio titulo.

Em seu sentido proprio e rigoroso, epiBtemolOy~ signi­fica 0 estudo critico dos principios, das hipoteses e dos re- . sultados das diversas ciencias, ou de uma ciencia especifica, a fim de determinar sua origem logica, seu valor e seu al­cance objetivo. Ora, nada esta mais longe de minhas in­tenc;6es. Nao pretendo desprender do discurso freudiano as regras de funcionamento da ciencia psicanalitiea, nele con­tidas "em estado pratico", como virtualidades pre-te6ricas

;:....~..A-'l

.que so estivessem aguardando essa investigagao para ace­derem ao estatuto teorieo. Nao pretendo,como Rapaport, livrar a psicanaIise de sua "ganga :rr...istica", retraduzindo suas premissas metafisicas numa linguagem behaviourista, e dotando-a de "observaveis", como eonduta, estrutura e or­ganismo, capazes, finalmente, de inscrever a psicanalise no sistema geral das ciencias do comportamento, nem, como Albert Ems e Peter Madison, reconduzir os enunciados deli­rantes de Freud a sua verdade racional, transpondo-os na linguagem do operacionalismo de Bridgmann. Nao pretendo, enfim, seguir os rastros de Paul-Laurent Assoun, que num livro apaixonante tentou investigar "0 modo de constituigao

* Palestra pronunciada no Col6quio "Fundamentos da Psicologia e Psi­canalise, Universidade de Camplinas, novembro de 1984.

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L. Lothar C. Hein
Sticky Note
Rouanet, Sergio Paulo. A Epistemologia Freudiana. In Tempo Brasileiro (Modos de Interpretação). julho - setembro de 1985, n 82, pp 27-80.
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genea16gico do saber freudiano", atraves de urna reconsti­tui~ao historica dos "modelos" cientificos - da anatomo­fisiologia afisico-quimic.a - absorvidos par Freud em sua teo­riza~ao. 1 Em todos esses casos, trata-se, realmente, de uma epistemologia da psicanalise: analise critica do saber freu­diana, em seus principios, hipoteses, categorias de analise e criterios de verifica~ao, seja numa perspeetiva descritiva, . mostrandocomo eles funcionam efetivamente na psicana­lise, seja numa perspectiva polemica, corrigindo-os a luz· de uma nova linguagem cientifica, seja numa perspectiva ge­nealogica, determinando a forma de- inser~ao no campo freu­diano de campos teoricos alins.

o que me interessa, aqui, e simplesmente investigar como 0 freudismo concebe 0 processo do conhecimento, a partir de uma analise imanente do seu cor~o te6rico. Mas nesse caso, nao estou me movendo no campo da epistemo­logia, e sim da teoria do conhecimento, ou, para ressuscitar uma terminologia hoje pouco usual, da gnoseologia. Pois em sua acep~ao classica, a teoria do conhecimento e 0 estudo da rela~ao que tem entre si 0 sujeitodo conhecimento e seu objeto, 0 que envolve a questao de saber em que medida o que os homens se representam como verdadeiro corres-. ponde ao que .e, independentement€ dessa representa~ao,

e e exatamente essa teoria, como Freud a compreende, que constltui 0 objeto deste ensaio.

Minha justifica<;ao para 0 usa desse titulo impr6prio e puramente pragmatica. A velha distin~ao entre epistemologia e gnose010gia caiu hoje em desuso,principalmente no mundo anglo-saxonico, e mesmo entre os alemaes a palavra Er­kenntnistheorie abrange, cada vez mais, tanto 0 estudo cri­tico da ciencia como 0 estudo critico do processo de conhe­cimento. Parto desse usocontemporaneo como um dado, e proponho-me, estudar a ep~stemologia freudiana, sem maiores escrupulos terminol6gicos, depois de ter especificado 0 sen­tido precise em que empregarei a palavra.

II

Vista como teoria do conhecimento, a epistemologia de Freud nao parece distinguir-se fundamentalmente, em seu conteudo, de outras epistemologias. Ela tambem investiga

1-. PaUl-Laurent Assoun, Introduction it, l'Epistemo~ogie FreuiLienne, (Paris: Payot, 1981).

a rela9io entre sujeito e objeto do conhecimento, e tenta deterr:w..nar as condi~oes em que a verdade pode ser alean­gada, e dentro de que limites. Nesse sentido, as perguntas de Freud sao as mesmas que as feitas .por Locke, Hume, Berkeley e Kant, e em parte ele chega as mesmas respostas.

Mas exi£te urn ponto precise em que podemos situar a especificidade de Freud, que torna sua epistemologia irre­dutivel a qualquer outra: e 0 estatuto concedido ao erro em sua teoria do conhecimento. Em todos os outros casos, 0 erro e algo de externo ao processo do conhecimento. Em Freud, elee co-substancial a esse processo, e inerente ao proprio funcionamento cognitivo do espirito.

Historicamente, 0 erro sempre foi visto como uma in­terferencia exterior, que distorce um aparelho cognitivo in­trinsecamente competente para conhecer a verdade, ou como o produto de uma incompetencia radicada no proprio apa­relho cognitivo, que impoe limites ao que pode ser conhecido, mas que nao impede 0 acesso a verdade possivel, desde que a razao se movimente dentro desses limites.

A primeira vertente pode ser ilustrada com a psicologia das paixoes, para a qual a busca do saber imparcial e oca­sionalmente obstruida pela interveniencia dos afetos, que funcionam como perturbationes animi. Uma vez afastadas essas interferencias, a raza() pade reassumir seu papel so­berano de conhecer 0 real, em seus verdadeiros contornos. Resumi, em outro trabalho, as varias etapas dessa vertente, de Platao e Aristoteles ate Descartes, Spinoza e Condillac. 2

A segunda vertente, ja esbo~ada pelos sOfistas, encontrou seu desdobramento mais vigoroso no empirismo moderno, com Hume, e sobretudo em Kant. Os sentidos sao faliveis, e as informa~6es que eles nos transmitem sao freqiientemente enganadoras. Mas sao as unicas de que podemos dispor, e ao aventurar-se alem dos limites da experiencia sensivel, a razao esta condenada a ilusao metafisica - 0 reino kantiano da dialetica, dos paralogismos transcendentais, correspon­

.JI dentes a perguntas que a razao nem pode deixar de formular, nem tem condi~6es de responder. 0 importante, em qualquer das versoes dessa vertente, e aue uma vez reconhecido 0 nihil uUerius impasto a razao humana, osujeito podia aceder a verdade, nos limites em que a investiga~ao e legitima ­a que tem por objeto as estruturas 16gico-matematicas e

2 Sergio Paulo Rouanet, Os Limites Ajetivos do, Consct~ncta" revista Tempo Brasileiro, 65/66.

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as estruturas do mundo fisico - e se errava, era por razoes contingentes, removiveis pelo uso dos metodos e principios corretos. Tambem nesse caso 0 erro e uma exterioridade corrigiveL

Ora, 0 ineditismo da epistemologia freudiana esta na absoluta interioridade do erro no processo do conhecimento. o erro e a verdade fazem, parte do mesmo campo psiquico, e se inscrevem numa serie que vai da falsificagao completa a veracidade total - pontos ideais, jamais alcangados, por­que todo ato cognitivo esta sempre num ponto intermedio, dentro de uma escala que tem num dos extremos 0 mundo privado, incomunicavel, em que 0 principio do prazer reina sem partilha, €I constitui a sede do erro absoluto, e no outro extremo 0 mundo publico, regido pelo principio da realidade, e sede da veJ:1dade possivel. A verdade e 0 erro sao partes de uma estrategia cognitiva, formulada par uma instancia que decide quando 0 conhecimento e licito, e quando a su­pressao do conhecimentoe necessaria. SUbordinado a essa estrategia, 0 aparelho cognitivo oscila entre a lucidez" nunca permanente, e a opacidade, em principio superavel.

Descrever 0 processo cognitivo, em Freud, significa por­tanto descrever simultaneamente, em sua imbricagao, a ver­dade e 0 erro, 0 sabido e 0 nao-sabido, a consciencia e a nao-consciencia, ou a consciencia deformada.

Pretendo fazer essa descrigao, num primeiro momento, investigando os tres registros em que se da, em Freud, esse conhecimento que e ao mesmo tempo urn nao-conhecimento, ou uma meconnaissance: 0 da percepgao, ~ do pensamento, e 0 do imaginario. Em termos muito aproximativos, esses tres registros correspondem as tres esferas kantianas da sen­sibilidade, quecapta os dados da experiencia, do entendi­mento, que os ordena segundo as categorias a prriori, e da razao, que opera no campo das ilus6es: transcendentais. Num segundo momento, tentarei explorar as raz6es dessa ambi­val<8:ncia estrutural, e indicar os ca.ninhos da autonomia cognitiva.

o REGISTRO DA PEROEPgAO

Desde a Interpretaqlio dos Sonhos, a consciencia e conce­bida como urn "6rgao sensorial", que permite receber tanto

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as excitagoes oriundas do mundo exterior como as excitagoes internas, que se manifestam sob a forma. qualitativa do pra:­zer e do desprazer. Segundo esse modelo, portanto, as per­cep~5es podem ser externas au internas: apreensao da rea­lidade objetiva, e da realidade psiquica. 3 .

A partir. dos escritos metapsicol6gicos' de 1915, Freud se esforga por especificar a forma pela qual os dois tipos de excitagao confluem para 0 mesmo sistema, englobando a percepgao externa e a interna. Esse sistema - 0 da per­cepgao/consciencia - recebe, em Alem do Principia do Prazer, algo como uma localizagao anatOmica. 0 sistema P-G tern uma superficie orientada para 0 exterior, destinada a re­ceber excitagoes externas, situada na camada mais perife­rica do cortex. Essa camada esta protegida por urn dispo­sitivo para-excitagoes (Reizschutz), que defende 0 organismo contra urn bombardeio excessivo de estimulos externos, fil­tra-os, e deixa passar apenas uma fragao desses estimulos. Mas essa camada cortical recehe igualmente excitagoes in­ternas. Contra elas, nao existe uma defesa anatomica seme­lhante a que protege 0 organismo contral'as excitagoes ex­ternas. Por outro lado, nao existe contra os estimulos in­ternos 0 recurso da fuga, sempre acessivel ao organismo em face de urn perigo objetivo. E:Ssa fragilidade do aparelho psiquico em face dos impulsos internos eespecialmente grave, tendo em vista a tendencia do organismo a subordinar-se ao principio da inercia (Fechner), pelo qual as excitagoes, na ausencia de urn processo inibidor, buscam uma descarga imediata, que assumindo a forma da motilidade, pode ser extremamente disfuncional, e a rigor incompativel com a sobrevivencia organica do individuo. E por isso que no curso da evolugao psicogenetica foi se desenvolvendo um sistema intra-psiquico de defesa, que permite algum tipo de filtra­gem das excitagoes internas, de tal modo que nem todos os impulsos possam encontrar seu caminho para a descarga motriz. Essa fungao de protegao interna, que exclui deter­minadas percepgoes intra-psiquicas, e simetrica a fungao de protegao externa, que somente transforma em pe!rcepgOes do mundo exterior parte das excitagoes totais que dele de­rivam. 4

d'__ "

3 Sigmund Freud, Die Traumdeutung, Gesammelte Werke (Frankfurt; Fischer Verlag) vol. II/III, pag. 621.

4 Freud, Jenseits des Lustprinzips, GW, vol. XIII, pag. 23 e seg.

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Na segunda topica, as :fung5es do sistema P-C passaro em parte a coincidir com as do Ego. Na linguagem entao adotada pOl' Freud, podemos dizer que cabe ao Ego (a) fa­cuItar ao organismo percepgoes externas tao fidedignas quanto possivel, dentro dos limites em que elas nao sejam disfuncionais, e (b) regulamentar as percepg6es internas, admitindo a consciencia aquelas percepgoes, e somente elas, que 0 individuo tenha condic;;oes de registrar.

II

A capacidade de identificar percepg6es externas e, para Freud, urn desenvolvimento tardio do aparelho psiquico, tanto ao nivel ontogenetico como fHogenetico.

No inicio, 0 individuo nao distingue as fronteiras entre o mundo exterior e 0 interior. 'E a fase do narcisismo primi­tivo, na qual 0 Ego se comporta como um mere agente do principio do prazer, em sua forma mais radical: e 0 Lust­Ich. Para esse iEltgo-Prazer, 0 sujeito coincide com 0 que e agradavel, e a mundo exterior com ° que e desagradavel. Mais tavde, ainda sob 0 dominio do principio do prazer, 0

Ego conhece um novo desenvolvimento. Assimila, na medida em que sao fontes de prazer, alguns objetos do mundo ex­terior, e expulsa, na medida em que sao fontes de desprazer, certos elementos da vida psiquica. E uma primeira diferen­ciagao entre exterior e interior, mas segundo criterios pu­ramente internos, que nao levam em conta a realidade. 0 Ego-Prazer se transforma num "E'go-Prazer purificado". En­fim, numa terceira :fase, 0 principio do prazer se modifica, assumindo a forma do principia da realidade, que nao anula a primeiro, mascria condiC;;5es para um prazer mais seguro, compativel com a sobrevivencia do organismo. Nessa etapa, o Lust·lch e suhstituido pelo Real-Ich, que e forgado a dis­tinguir corretamente 0 interior e 0 exterior, de acordo com criterios objetivos, mesmo que constituam uma fonte de des­prazer. Nao se trata mats, como na fase narcisista, de in­corporal' ou expelir urn objeto segundo constitua uma fonte de prazer ou desprazer, e sim de determinar se uma repre· sentagao corresponde au nao a realLdade, se tem uma reali­dade objetiva ou meramente psiquica. E pol' isso que uma das fungoes essenciais do Re'Gl·lch e a prova da realidade, a Re,alitiitsp'1'ujung, atividade pela qual 0 Ego determina se uma percepgao externa e um fato objetivo, ou se tem carateI'

alucina.t6rib, isto e, se constitui simplesmente a reativagao de urn trago mnemico correspondente a uma antiga per­cepgao, sohreinvestida pelo desejo; eque como tal adquire a inten,sidade caracteristica de uma verdadeira percepgao. 5

Mas se 0 principio da realidade e uma simples modifi­cagao do pri~ipio do prazer, e se este, em ultima instancia, e que impulsiona 0 Ego em sua tarefa de exploragao da rea­lidade, pode-se concluir que a autonomia do Ego nessa fungao explorat6ria e sempre relativa. Em outras palavras, 0 pas­sado - 0 Lust-Ich - pode se infiltrar no E:go maduro, le­vando-o a perceber 0 mundo segundo as categorias do prin­cipio do prazer. Podemos falar, nesse caso, em uma percepgao externa imaginaria.

Uma das formas assumidas pOl' essa percepgao imagi­nariae a falsa identificagao dos riscos externos. Como ve­remos mais tarde, Freud ve nesses riscos', reconhecidos pelo Ego, a fonte principal do recalque: ao observa-los, 0 Ego envia do aparelho psiquico urn sinal de angUstia, que de­flagra 0 automatismo do prazer-desprazer, e inibe a perceI>' gao da representac;;ao que incorpora 0 desejo disfuncional, e cuja gratificagao tornaria reais os riscos antecipados. Ora, freqiientemente 0 Ego se deixa influenciar, em sua avaliagao des riscos externos, pela reminiscencia de antigas situag6es de angUstia, associadas a riscos que deixaram de ser atuais, como a ameaga da castragao, na fase faHca, inco~porada no Super-ego e ainda ativa, apesar do seu arcaismo. A per­cepc;ao da realidade externa e assim condicionada pela re­memorac;;ao dos perigos passados. 6 Em consequencia, os sinais de angUstia sao emitidos erroneamente, e .0 impulso e repri­mido desnecessariamente. Em outras palavras; a mem6ria; incontrolada, deforma a consciencia. 0 material mn&mico irrompe na instancia encarregada da percepc;ao externa, e a distorce, levando-a a descobrir perigos irreais, 0 que esta de acordo com a tese freudiana de que a consciencia e a me~

m6ria sao ate certo ponto incompativeis. 7

A percepgao imaginaria ocorre, tambem, nos fenomenos de psicologia coletiva. A hip6tese central dessa psicologia e que 0 individuo passa a perceber seus companheiros, 0 lider

5 Fre~, Triebe und Triebeschicksale, OW, vol. X, p:l.g. 228. 6 Freud, vide Neue Folge der Vorlesungen zur EinfilhrUfng in die Psycho­

analyse, GW, vol. XV, e Hemmung, Symptom und Angst, GW, vol. XIV. 7 Freud, Jenseits des LustP'Tinzips, op. cit., e Notiz ilbei' dem Wunder­

block, GW, vol. XIV. .

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E\ no limite toda a gama de id€das, valores e instituigoes que constituem a c"liltura, e que sao simbolizados pelo lider, se­gundo uma estrutura narcisista arcaica, que eprojetada para oexterior, e torna esse exterior intangivel e imune a critica, ja que ele representa a soma das perfeigoes que 0 Ego nar­cisistaencontrava em si mesmo. Tudo se passa como se a "prova da realidade" fosse confiada, nao ao Ego, mas ao Id, ou a esse herdeiro do Id que e 0 Super-ego. 0 que 0 individuo percebe, portanto, nao e 0 presente, mas 0 passado, nao 0

exterior, mas 0 interior, nao 0 real, mas 0 imaginario sob a forma do real. 8

Uma terceira forma de falsificagao da percepgao externa pcorre no fenomeno da denegagao (Verleugnung) , cujo pro­t6tipo e encontrado no fetichismo. Ele se enraiza na recusa infantil de aceitar a realidade da "castragao" feminina. A crianga, ao contemplar 0 corpo da mulher, recusa-se aver o fato da inexistencia do penis: mais exatamente, nao se trata de uma nao-percepgao, e s1m da percepgao, vivida como real, de uma falsa presenga. Ao mesmo tempo que uma Darte do sujeito nega a percepg~o real,. ou afirma a percepgao alucinat6ria, outra parte, submissa ao principia da reali­dade, e forgada a admitir a ausencia objetiva. 0 fetichismo surge como urn compromisso entre essas duas tendencias. :Ii: escolhido urn objeto-fetiche que representa. 0 faIus mas nao e identico a ele, 0 que permite ao individuo negar e aceitar a realidade da castragao. A denegagao, em geral, caracteriza uma forma de percepgao baseada no entrelaga­menta de duas tendencias: a vontade de ver, e a vontade de nao ver. 0 lEigo que denega percebe a ausencia como pre­senga, 0 vazio e investtdo com 0 pleno do desejo, a ameaga de castragao anula acastragao real; mas em seguida essa presenga fantasmatica ecancelada por urn novo olhar, que instaura uma nova visibilidade, e restitui ao vazio sua obje­tividade original. A negagao delirante da ausencia e abolida por uma negagao da denegagao. Mas na medida em que essa nova visibilidade e geradora de angustia, ela suscita a .contra-tendencia corretiva, e 0 primeiro olhar, reprimido, volta a predominar, expulsando 0 segundo, e reinstalando no centro do campo visual a percepgao impossivel. No fe­tichismo, esses dois tempos sao reduzidos a urn s6: os dois olhares se, condensam num unico, que ve ao mesmo tempo

8 Freud, Massenpsychologie und Ich-Analyse, OW, vol. XIII.

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a carencia e sua anulagao imaginaria. Podemos notar, de passagem, uma certa analogia entre 0 conceito freudiano d~ fetichismo, €I 0 marxista, 8em nenhuma tentativa de sugerir uma semelhanga interna entre duas estruturas tao claramente heterogeneas. Nos dois casos, a percepgao fe­tichista se baseia na dialetica da presenga e da ausencia: a substancia'material do objeto fetiche serve de suporte para o significante falico denegado, da mesma forma que a subs­tancia material da mercadoria-fetiche serve de suporte para as relagoes de produgao ausentes. Mas se nao e possivel in­sistir nessa analogia,e possivel, em todo caso, dizer que a denegagao, enquanto forma de remanejar a realidade exter­na, tern urn alcance que ultrapassa sua aplicagao psico-pa­to16gica. Assim como 0 Ego foge, pelo recalque, de uma per­cepgao interna ameagadora, ele foge, pela denegagao, de uma percepgao externa traumatizante. Ele deixa de registrar as­pectos da realidade exterior, capazes de gerar desprazer. Ao mesmo tempo, a supressao nao e completa. Tambem aqui 0

olhar que denega, recusando a percepgao externa, se associa a outro, que a aceita. 9

Seria facH encontrar em Freud outros exemplos de fal­sificagao ou eliminagao da percepgao externa. Mas podemos dar maior generalidade a nossa analise, se dissermos que via de regra esse processo deformador obedece ao mesmo mo­vimento, que e a extroversao para 0 exterior de dinamismos e conteudos internos. Tanto no caso da falsa identificagao dos riscos externos, como na avaliagao defeituosa, em con­digoes de psicologia coletiva, dos contornos do mundo social, como no bloqueio, pela denegagao, da realidade exterior, 0 processo e 0 mesmo: 0 passado psiquico prevalece sobre 0

presente, submetendo as suas categorias a percepgao do mundo hist6rico. Essemovimento nao e outro que 0 da pro­jegao. Fuga diante do desprazer, ela supoe, em todos os casos, uma suspensao ou falsificagao da prova da realidade, seja que uma percepgao alucinat6ria seja considerada real, seja que uma percepgao real seja dada por irreal, e em todos os casos, a dinamica e a mesma: uma extroversao de pro­cessos internos, que resulta numa percepgao regressiva, em que 0 Lust-Ich usurpa as fungoes do Real-Ick, os' processos primarios interferem com os proces&Os secundarios, e 0 prin. cipio do prazer se infiltra no principio da realidade.

9 Freud, Derl FetischimVJS, OW, vol. XIV.

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III

Assim como regulamenta as percep<;;6es externas, 0 Ego deve, tambem, regulamentar as percepg5es internas. E ele que controla 0 acesso a consciencia dos conteudos psiquicos, os quais sao percebidos sob a forma de representag6es (Vars­tellungen). Entre as representag6es, estiio as reminiseencias de antigas pereepgoes externas, de antigas vivencias, de an­tigas 'fantasias, e ate de antigos processos inteleetuais. E estao as representag6es atuais, sobretudo as representac;6es de fim (Zielvorstellungen) , que servem de veieulo aos im­pUlsos, ja que estes sao ineognosciveis como tais, e precisam associar-se as representag6es, para se tornarem eonseientes. As representag6es mnemicas e as atuais sao estreitamente interligadas, pois grande parte delas corresponde a antigas ;representagoes de fim, e estas sao freqiientemente alimen­tadas pelas reminiscencias, sob ° impacto das eireunstaneias presentes.

A tarefa reguladora do Ego, ao nivel da percepgao in­terna, eonsiste em admitir a consdeneia certas representa­g6es, exCluindo outras. Nessa tarefa, ele mantem inconsei­entes determinadas reminiseencias, correspondentes a impul­sos anteriormente reprimidos ou a antigas experiencias trau­maticas, e torna ineonscientes, desinventindo-as, as represen­tag6es de fim que incorporam impulsos censurados.

A supressao ou deformagao se realiza por meio dos me­canismos de defesa, e em primeira insta-ncia pelo recalque (Ver'drangung) .

o recalque consiste em impedir 0 acesso a consciencia de uma representagao ou complexo de representag6es, que servem de veiculo ao impulso. Pois assim como este e em si mesmo incognoscivel, ele nao e em si mesmo tecalcavel: e a representagao que e conscientizada, e e ela que e recal­cada. 0 recalque ocorre quando a gratificagao do impulso 'seria geradora de desprazer. Embora tal gratifieagao pu­desse ser agradavel, ela entraria em confUto com outras rei­vindieac;oes e outros objetivos do aparelho psiquieo. Dessa forma, a condigao economiea do recalque esta em que 0 des­prazer total provocado pela gratifie~gao seja superior ao pra­zer espeeifico resultante dagratificagao do impulso. 0 re­calque se daquando a repreS'entagao loealizada no incons­ciente - 0 sistema Ies da primeira t6pica - tentando forgar a censura do pre-consciente - 0 sistema Pcs - e reconhe~

8~

cida por1este como indesejavel, e repudiada atraves',oevU* retira,da do investimento des~e ultimo sistema. Mas- 's·e~p.o inv€stimento Pes e retirado, a representagao continuaCal'lol regada com 0 investimento. Ics original, e a representa~ continua viva, a espreita de novas oportunidades paraf6r~alJ1 a barreira da censura. E por isso que 0 desinvestimento ;Pgs' tem que se completado por um contra-investiniento, tam~, bem oriundo do sistema Pes, e a hip6tese de Freudeqtle. esse contra-investimento e alimentado precisamehte· com :a;. energia retirada a representagao indesejavel, eujo investi­mento Ics e assim contrabalanc;ado pelo contra-investimentb Pcs. lO .

Como podem as representagoes recalcadas tomar-se conscientes? Como podem as representag6es conscientes ou pre-conscientes serem rechagadas para 0 Ics? A resposta de Freud nunca variou: pela mediagao da linguagem. A difE!'­reni;a entre uma representagao inconscientee a pre-cons.­ciente esta em que a segunda se associa a uma representagao verbal, trago mnemioo de uma antiga representagao acus­tica. Be analisarmos mais de perto a Vorstellung, a repre­senta~ao, veremos que ela tem dUM fases: uma represen­tagao de coisa, visual, (Sachvarstellung) e uma represen­tagao de palavra, aCUstica (Wortvorstellung). 0 recalque consiste em dissociar as palavras e as coisas, e a tomada de consciencia implica em sua jungao. A representagao cons­ciente compreende a representagao de coisa mais a repre­sentagao de palavra que the corresponde, ao passo que a representagao inconsciente e constituida exclusivarnente pela representagao de coisa. Vimos que 0 recalque implicaem retirar da representagao censurada seu investimentD: Pcs. Podemos agora precisar essa ideia, dizendo que tal desi:iives­timento significa privar a representagao de sua expressao verbal, que fica retida no sistema Pes. Inversamente, a tp-' mada de eonscieneia signifiea que a Sachvorstellung recaF cada no Ies e sobreinvestida com a Wortvorstellung 'respec­tiva, e com isso adquire a intensidade necessaria para atra­vessar a barreira da censura. 11

Resta saber a que forgas obedece 0 r~caJ.que.· Desde 0 inicio, Freud atribui uma importa.ncia decisiva a reaUdade exterior como forga geradora do recalque. Jt das institui<;5es. sociais, e espeeialmente da moral sexual, que provem a nor­

10 Freud. Die verdrangung, GW. vol. X. 11' FreUd. Das Unbewusste, GW. vol. X.

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matividade em cUjo nome a p,ulsao e reprimida. 12E em nome das "exigencias da civilizagao" que 0 sistema Pes rechaga para 0 sistema lcs a representagao socialmente proibida. Ao introduzir a segunda topica, Freud complica a deserigao di­namica do recalque, ecom isso pareee desenfatizar 0 papel da realidade exterior. 0 agente imediato do recalque e agora a angUstia. A principio, esta era vista como 0 subproduto do reealque: privada do seu suporte representacional, a pul­S3JQ pode transformar-se em afeto difuso, e especialmente numa forma particular de afeto, que e a angtistia. Mas a observagao clinica, e sobretudo 0 exame de alguns casos de fobia, levaram Freud a inverter essa hip6tese. 13 Nao e mais o recalque que provoca, a angUstia, e sim a angtistia que provoca 0 recalque. 0 Ego pressente que a satisfagao de urn determinado impulso provocaria uma situagao de risco. A fim de paralisar esse impulso e inibir a descarga correspon­dente, ele permite, em bases experimentais, que a gratifi­cagao se inicie, 0 que gera de imediato uma sensagao de angUstia, a qual funciona como urn sinal, que deflagra 0

automatismo do prazer-desprazer, e consuma 0 recalque. 14 As situagoes de perigQ identificadas pelo Ego podem provir au do Id, ou da realidade exterior, ou do Superego, 0 que permite distinguir tres tipos de angUstia, respectivamente: a neurotica (neurotische Angst), a real (Rea:tangst) e a moral, ou social (Gewissensangst). A realidade exterior perde, a primeira vista, seu papel privilegiado como fator etio16gico do recalque. Na verdade, essa perda e relativa. Aos poucos, Freud vai diluindo a import~ncia do Id como fonte do recalque. E 0 que ocorre, por exemplo, quando re­examina a fabla do pequeno Hans, e conclui que 0 perigo antecipado nao e libidinal, associado ao desejo incestuoso, e sim externo, associado ao medo da castra~ao. Quanto ao superego, sabe-se que ele surge na fase da liquidagao do Edipo, quando 0 desejo incestuoso e substituido por uma identificagao com 0 pai, sob 0 efeito de uma ameaga ex­terior - a castragao. 0 Superego e assim 0 pai introjetado, e como tal a instancia que incorpara a lei - desde seu nllcleo basico: "se assim, como teu pai, e nao sejas assim, como teu pai" - ate as normas da sociadede global, interiorizadas

12 Freud, Die kulturelle Sexualmoral Wlil aie Moaerne Nervositat, OW, vol. VII.

13 Freud, Hemmung, Symptom una Anghst, op. cit. 12 Freud, D,ie kulturelle Sexualmoral una aie Mod-erne Nervositilt, OW,

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por idemificagoes sucessivas com im:agines e sucedaneos da autoridlt.d:e paterna. Se assim e, nao somente 0 papel da reaLidade exterior nao se reduz, como ele se reforga, paisa realidacte exterior, atua duas vezes como fonte do recalque: diretamente, e por intermedio do Superego, gerado por um risco externa, e agindo como veiculo da normatividade ex· terna. 15

IV

Como se verifica, a verdadeira e a falsa percepgao estaq de tal maneira entrelagadas, tanto interna como externa,;, mente, que e virtualmente impossivel tragar uma linha di­vis6ria entre ambas. A percepgao externa pode ser consj;.. derada fidedigna quando 0 Ego consegue tragar da realidade externa urn mapa que reproduza os seus verdadeiros con:' tornos. A percepgao interna seria confiavel na medida em que todas as representagoes, passadas e presentes, pudessem aflorar a eonsdencia, mas sabemos que a pr6pria sobrevi­vencia do organismo exige que apenas uma parte dessas representag6es venha a tornar-se consciente. Assim, enquanto a 'falsa percepgao externa pode ser considerada efetivamente anomala, a nao-percepgao interna, ou a falsa percepgao, e vista como necessaria, e nesse caso 0 erro nao somente nac e acidental, como e deeretado pela pr6pria instancia en­carregada de gerir as rela~6es do individuo com 0 mundo exterior. 0 Ego perceptivamente competente nao e portanto o que percebe corretamente a realidade externa e interna, e sim 0 que e capaz. de observar com exatidao 0 mundo' exterior, e a luz dos dados obtidos, administrar a vida psi­quica de modo a admitir a eonsci'encia as representag6es, e somente elas, que incorporem impulsos compativeis COm

15 Freud nunea se definiu com clareza quanto ao papel respectivo da realidade exterior e do Superego na produ~ao do recalque. Em lnibiqao, Sintoma e AngUstia ele diz que "0 reealque trabalha sob influ.encia da l'ealidade exterior." (OW, vol. XIV, pag. 122) .Em 0 Ego e 0 la, esereve que "0 Egoefetua a maioria dos recalques por conta do Superego, e em lugar dele," (Das lch und aas Ec, OW. vol. XIII, ps,g. 281). Nas Novas Con!erencias Introdut6rias, repete essa afirma~ao. "0 reealque e obra do Superego, e se realiza diretamente por ele, ou pelo Ego, obedecendo as suas ordens." (Neue Folge ... op. cit., pag. 75). A luz da distingao entre Realangst e Gewissensangst, entl'etanto, na.o ha por que optar: 0 recalque e efetuado pelo Ego, obedecendo a rea­lidade exterior, no primeiro caso, e ao Superego, no segundo.

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a realidacte observada. Somente, vimos que a intrusao de processos internos freqiientemente deforma a pel',cepgao ex­terna, levando 0 Ego, no exercfcio da prova da realidade, a considerar real 0 que tern uma existencia meramente psi­quica, ou a considerar irreal 0 que de fato existe. Surge

'I

assim urn novo tipo de erro, agora indesejavel: a observagao !II externa erronea acarreta uma censura interna desnecessaria. '!!I) A -falsa percepgao e assim um processo ate certo ponto cir­

cular, a que, significa nao somente que 0 EgO deforma as II percepgoes internas em nome do real, e as percepg6es ex­

ternas em resposta a press5es psiquicas, mas tamMm que!III

as duas distorgoes sao em parte interd~pendentes, pais e em

11,,\

1

II I fungao de urn real ja deformado que 0 Ego inibe as per­1

\1' cepgoe.s internas, e em fungao de exigencias internas incom­preendidas que ele deixa de perceber a reaIidade exterior.

lill 11

II I,;'h

II o REGISTRO DO PENSAMENTO I,ll"I

1,:11

!II

i,l A percep<;ao e apenas 0 primeiro estagio do processo do conhecimento. Piela percepgao externa, 0 Eigo recebe as ex­

Iii citagoes procedente.s do mundo exterior, e pela percepgao III interna toma consciencia de determinados conteudos psi­

qUicos, que incluem au as representagoes associadas a im­Iii pulsos atuais, ou os tragos mnemicos de antigas percepgoes, ,II de carateI' visual ou acustico, depositados tia memoria. Esses ''I' dados constituem urn pressuposto para 0 conhecimento, mas i,1 "I' nao sao ainda 0 conhecimento. E,les precisam ser processados

pelo pensamento, que se encarrega de coordenar as percep­III III goes externas com as tragos mnemicos de antigas experien­

cias, a fim de produzir, POl' via associativa, modelos cogni­'[ tivGS que reflitam adequadamente a realidade.

~ II Geneticamente, 0 pensamento surge quando se da a di­ferenciagao entre os processos primarios, dominados pelo

i!I!1 principia do prazer e pela tendencia a descarga imediata ,I das excitagoes, e os processos secundarios, regidos pelo prin­

cipio da realidade, forma modificada do principio do prazer, e que tern como fungao inibir e regulamentar os processos primarios, impedindo uma descarga imediata, disfuncional para 0 individuO. as processos secundarios exercem essa fungao ou pOl' mecanismos automaticos - a defesa, e em

4,0

'--­

prhne.wM l'1Il.\9tancia 0 recalque - ou par atos intencionais, atll~Yi~ -do pensamento. A defesa inibe a descarga disflin", 9iO:nreJ pelo desinvestimento da representagao que incor­por-alO impulso perigoso, cuja gratifica<;ao entraria em con­flitocom 0 mundoexterior, expondo 0 individuo a si­tuag5es de risco. Ela funciona sobre 0 modelo da fuga ~

o aparelho psiquico pressente que a satisfagao. do impulso seria geradora de de desprazer, e foge, pela defesa, da repre·, sentagao perigosa. 0 pensarnento, aocontrario, intercala urn adiamento entre 0 desejo e a agao, coordena a percepgao externacom os tra90s mnemicos de antigas percepg5es, de­cide seo impulso pode ou nao ser atendido, e a luz dessa decisao inibe ou autoriza a descarga, nao segundo os auto­matismos do prazer e do desprazer, mas segundo atos cons­cientes de julgamento.

Assim como os processos secundarios se distanciam dos processos primarios, mas neles se enraizam, 0 julgamento, forma essencialmente racional de atuagao dos processos se­cundarios, emcontraste com sua atuagao automatiea atra­yeS da defesa, representa 0 grau maximo de distanciarnento corn rela<;ao aos processos primaries, mas neles se origina. Os dois aspectos fundamentais do jUlgamento - 0 ato de afirmar, e 0 de negar - tern sua origem no processo de transforrnagao do Lust-Ich no Real-Ich. 16 0 prot6tipo da afirmagao e0 gesto narcisista de incorporar uma propriedade do mundo exterior, e 0 da nega<;ao, 0 gesto igualmente nar­cisista de rejeita-Ia, segundo a propriedade seja uma fonte de prazer ou de desprazer. 0 julgamento e a metarnorfose racional da assimilagao e da expulsao narcisista. "Na lin­guagem dos mais antigos impulsos orais: comerei e.ste objeto ou ocuspirei ... Flcara em mim, oufora de rnim. .. 0 estudo do julgamento abre-nos pela primeira vez a possibilidade de compreender 0 surgimento da fung5D intelectual a partir do jogo dos impulsos primarios. 0 julgamento e a continua­gao teleologiea (weckmlissig) dos atos de assimilagao ao Ego, ou de expulsao, sob 0 reino do principia do prazer." 17

Continuidade e deseontinuidade: sao os dois aspectos da atividade do pensamento, concebido como genes:e -e como corte: ele deriva des processos primarios, e nesse sentido e desejo, mas deles se destaca, e nesse sentido e realizat;ao de

16 - Freud, Formulierungen uber die :/lwei Primlipien deB P81/chischen Ges­chehens, GW, vol. XIII. •

17 Freud, Die Verneinung, GW, v,ol. XIX, paS. 18-1&.

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desejo. Mas se 0 pensamento e teleologico, se ele e zweck­miissig, e preciso dar um passoalem, e em indagar qual e esse telos, e em que ele se distingue dos processos primarios. Quanto a este, Freud e perfeitamente claro: 0 objetiva dos processos primarios e a descarga, e esta segue as vias abertas

~ pOl' uma experifulcia original de graJtiftcagao. No mundo ~ da energia livre, todo encontro e sempre urn reencontro, todo I conhecimento e um reconhecimento, e 0 contata com 0 ob­

jeto e sempre mediatizado pela memoria de objetos grati­~ ficadores originais. Vale dizer que seu modo de funciona­\ mento e 0 sempre-igual e que 0 principio do prazer, pelof qual a tensao tende a anular-se, coincide com 0 Wiederho­

lungszwang, pelo qual 0 psiquismo quer reviver 0 ja vivido.J o pensamento, ao contrario, entra em contato com 0 objeto,~ nao para reencontra-Io, mas para conhece-lo. TamMm ele e movido pela mem6ria da gratificagao original, pelo desej 0~ de restabelecer a identidade com 0 objeto gratificador pri­

~I' mitivo, mas essa identidade e agora a identid,cjJde do pens'a­mento. Sob a egide dos processos primarios, 0 psiquismo tende ~ ao reencontro, mesmo alucinatorio, com 0 objeto original,

~ pelas vias mais diretas. Esse mesmo reencontro e buscado I.l.,I pelo pensamento, mas pOl' vias mais longas, pois ele sabe '1'1r que os caminhos topicamente mais diretos nao sao os psi­~.III qUicamente mais adequados. 0 pensamento precisa inves­il[1

~

tigar as melhores vias internas que conduzam a convergen­cia da nova percepgao, reconhecida como real,com 0 trago~ mnemico, investido pelo desejo, da antiga percepgao. Nessa atividade exploratoria; ele nao pode deixar-se desviarpela in­tensidade das representagoes, pois de outra 'forma se estabele­ceriam vias associativas determinadas pOl' tais intensidades, e Ii nao pelo objetivo principal, que e a produgao da identidade

iili, real entre 0 trago mnemico e a percepgao. E pOl' isso que 0 pen­I samento tem que se dissociar do principio do prazer, evitando I, ao mesmo tempo a tentagao de ceder a gravitagao dos in­1:1" vestimentos de desejo - tras;os rnnemicos da gratificagao ',I'I original - e a tentagao da fuga diante das associa<;;oes pe­

nosas, que e a opgao da defesa. Ele e obrigado a seguir as melhores associag6es, sem se deixar atrair pelo desejo, nem mudar sua rota diante da ameaga representada pela remi­niscencia penosa. Deve lutar contra as forgas desorganiza­doras do inconsciente, que atraves da condensagao e do des­locamento querem obrigar as correntes intelectuais a mudar seu percurso, desviando:as do seu objetivo Ultimo, que e produzir a identidade do pensamento. Mas se 0 pensamento

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tem··e~mo·objeto a produgao do conhecimento navo,como podeele sell' reconduzido ao esquema da busca da identidade? De· que vale emancipar 0 pensamento da influencia do prin­cipio .do prazer, se ele em ultima anaIise visa 0 mesmo obje­tivo que os processos primarios, embora pOl' vias mais se­guras: 0 reencontro do ja conhecido? A dificuldade vern do texto excessivamente elfptico em que Freud desenvolve 0

conceito de identidade do pensamento - algumas frases isoladas, contidas na Interp1'etac;6Jo dos Sonhos. 18 Nesse ponto, como em tantos outros, 0 esbogo de 1895 - 0 Entiourf - ajuda a compreender a concepgao de Freud. Esse texto deixa claro que 0 pensamento, longe de constituir um sim­ples itinenirio em diregao ao Mesmo, e urn verdadeiro tra­balho do Espfrito, ern que novas percepgoes sao integradas com as antigas, com vistas a produgao de uma identidade que passa necessariarnente pelo nao-identico. Segundo a psi­cologia do Projeto, a atividade do pensamento tern inicio nao quando se produz 0 encontro entre a percepgao real e ° in­vestirnento de desejo (provisoriamente inibido para impedir a alucinagao) mas quando esse encontro e somente parcial. Na linguagem do primeiro FreUd, tal situagao ocorre, pOl' exemplo, quando 0 investimento de desejo se inscreve nos dois neuronios ihterligados a + b, enquanto a percepgao cor­responde 810 grupo neuronico a + c. A atividade! do pensa­rnento consistiria, primeiro, em adiar a descarga, enquanto se da 0 trabalho de investiga<;:ao, e segundo, ern orientar essa investigagao de modo a compreender a diferen<;:a entre a percepgi10 e a reminiseencia, 0 que e feito investindo 0 ele­mente desconhecido c, tentando, a partir dele, fazer BurgiI' na percepgao 0 elemento ausente b. E 0 que ocorre, pol' exemplo, quando 0 recem-nascido percebe 0 seio materno (neuronio a) mais os rnamilos vistos de lado (neuronio c), ao passe que que a imagem mnernica e a do seio materno, mais os mamilos vistos de frente (neuronio b, ausente da percepgao). A tarefa que se coloca e a de fazer 0 complexo perceptivo coincidir com 0 investimento de desejo, reencon­trando, na percepgao, 0 elemento b. Para isso, a crianga, recordando-se de tel' executado, no passado, um movimento pelo qual a visao frontal se transformava em visao late'ral, executa 0 movimento oposto, e consegue perceber 0 neur6nIo procurado: 0 elemento b, presente apenas na mem6ria, passa a existir tambem na percepgao. Atraves do pensamento, e da

18 Freud, Die Traumdeutung, op. cit., pig. 607.

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ac;aoespecifica correspondente, a identidade e restabelecida, mas hesse processo nao hoU\re apenas uma redescoberta, mas tambem urn verdadeiro conhecimento. Nao houve somente o reencontro de a e de b, mas tambem, como pressuposto para esse reencontro, 0 conhecimento de c, e mais ainda, a tomada de consciencia de que tanto b comoe sao atri ­butos de a. Em suma, houve -urn julgamento, queconsiste em imputar uma propriedade a uma cOisa, ou seja, foi pos­sivel chegar a coisa, nUcleo constante que reaparece em diferentes atos perceptivos, atraves do exame dos atributos; sempre varhiveis. Na busca da identidade psiquica, ° pensa­mento acaba chegando a uma identidade no sentido 16gico, pressuposto de todo conhecimento: 0 conhecimento explkito de que a + b = ,Qj + 0, e 0 conhecimento simetrico de que a + c e diferente de a + b. 19 Desse modo, se 0 pensamento mantem, em ultima instancia, 0 objetivo basico dos processos primarios - a bu.sca da identidade - ele atinge esse obje­tivo atraves de desvios que re.sultam no conhecimento de novos objetos e de novas propriedades. Num caso, 0 psiquismo se move continuamente do igual ao igual,obedecendo, cega­mente, a compulsao da repetic;ao, e no outro 0 retorno ao mesmo passa pela produc;ao do novo. No pensamento, 0 pont;) de partida e a diferenc;a - a divergencia parcial entre a perceNao e 0 trac;o mnemico - e nao 0 identico, ou a per­cepc;ao vivida, alucinatoriamente, como identica. Ausente a diferenc;a, 0 pensamento nao se inicia. Cessando a diferenc;a, o pensamento nao continua. Mas como 0 mundo exterior propoe continuamente novas percepc;oes, q:ue coincidem ape­nas em parte com as imagens mnemicas de antigas per­cepc;oes, 0 pensamento esta continuamente confrontado com a diferenc;a, e com 0 imperativo de elimina-Ia, produzindo o conhecimento.

II

o Projeto de 1895 contem uma sugestiva distinc;ao entre varios tipos de pensamento, que nao reaparece na obra pos­terior de Freud. Nesse texto, ele discrimina entre 0 pen­samento pratico, 0 cognitivo e 0 critieo.

o pensamento pratico eo que mais se aproxima do modo de funcionamento dos processos primarios. Seu obje­

19 Freud, Entwurj einer Psychologie, em Aus den Anjangen der Psycho~ analyse (Frankfurt: Fischer, 1975.

44

~

tivo eo de produzir 0 mais rapidamente possive! a identidade istore,' 0 reencontro com 0 objeto gratificante. Quando 0 investimento perceptivo, penetrando no sistema neuronicb, coincide com 0 investimento mnemonico de desejo, a des­carga pode produzir-se, e cessa a necessidade de pensar. 0 problema que secoloca para 0 pensamento pratico e so­mente 0 de impedir que 0 trajeto que conduz da percepc;ao para 0 investimento de desejo seja perturbado pilla d'orc;a de atrac;ao de outros investiment,os de desejo, irrelevantes para 0 fim imediato que se coloca. Por outro lado, 0 pensa­mento pratico tende a evitar qualquer elemento, suscetivel de provocar desprazer, que se encontre em seu itinerario.

o pensamento cognitivo, ao contrario, nao pretende des­cobrir uma via determinada, mas explorar todas as vias. Ele nao Qode se deixar desviar, nesse trajeto explorat6rio, nem pela atrac;ao dos investimentos de desejo nem pela forc;a repulsiva das reminiscencias penosas. Enquanto 0 pensa­mento pratico busca as vias mais diretas para atingir 0

investimento de desejo, 0 pensamento cognitivo tenta inves­tigar todos os caminhos, ampliando ao maximo 0 ambito da rede associativa.

Enfim, 0 pens.amento critico entra em jogo quando se produz urn erro 16gico ou psicol6gico. A rim de identificar 0 erro, 0 pensamento regride ao longo de toda uma cadeia associativa, ate encontrar as conexoes deficientes. E uma forma de pensamento analoga ao pensamento cognitivo, por nao ter urn objetivo imediato, e ao pensamento pratico, por­que sua intenc;ao Ultima, ao retificar 0 erro, e permitir que a gratificac;ao impedida pelo erro venha, afinal, a concre­tizar-se.

o interesse ci.essa distinc;;ao esta no estabelecimento de uma hierarquia entre varios tipos de pensamento, conforme sua maior ou menor distancia com relac;ao ao principio do prazer. No ponto mais baix;o da hierarquia situa-se_ 0 pen­samento pratico, cujo objetivo e 0 prazer - 0 reencontro Com urn objeto gratificador original - e que s6 coloca fora de circuito 0 principio do prazer na medida estritamente necessaria para que esse reencontro se de de uma forma nao-alucinat6ria. E urn tipo de pensamento de tal modo vol­tado para a ac;ao imediata que e forc;ado a renunciar a re­flexao totalizante e relacional, por urn lado inutil porque 0

objetivo que ele se prop6e pode ser alcanc;;ado sem tal re­flexao, e por outro impossivel, porque sua vulnerabHidade a. influencia do desprazer inibe determinadas associac;oes. 0

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II

pensameIito cognitivo e 0 critico, ao contrario, ..,........, 0 pen­samento te6rico - situam-se num ponto de afastamento maximo com rela~ao ao principio do prazer. a pensamento te6rico esta livre para realizar sua ambi~ao de ir tao longe quanto possivel, explorando todas as conexoes, au revendo­as crit1camente, porque nao se deixa inibir pelo carater agra­

fllI, davel ou desagradavel das associa~oes. 20

E esse pensamento te6rico, a servi~o de fins pUlsionais, ,II mas "em ultima instancia", que preenche, na epistemologia

freudiana, a fungao de produzir 0 conhecimento abstrato.

III

a principio do prazer-desprazer, cuja exclusao e a con­digao necessaria para 0 pensamento normal, pode a todo instante infiltrar-se nele, sabotando sua objetividade. "E por isso que 0 principio do desprazer ... perturba 0 pensamento na busca da identidade. Sua tendencia deve sempre ser a de liberar-se da regulagao exclusiva pelo principio do des­prazer, e de reduzi-Ia ao minimo, que possa ser utilizado como sinal. Este refinamento ... e atingido muito raramente, mesmo na vida mais normal, e nooso pensamento carre sem­pre 0 risco de ser falsificado pelo principio do desprazer." 21 Quando isso ocorre, 0 pensamento deixara de realizar as conex6es exatas, fugindo do desprazer, e realizara falsas co­nexoes, atraido pelo investimento de desejo depositado em certas representag6es.

Varios mecanismos de ded'esa, identificados por Freud, preenchem exatamente esse papel de desorganizagao rela­cional. ­

E 0 caso da racionalizagao, tipo de defesa que perturba o pensamento em sua tarefa de estabelecer relagoes causais entre ideias, atitudes e comportamentos, por urn lado, e suas forgas motrizes, por outro. a pensamento, arrastado pelo rd, escapou a hegemonia do Ego, e a razao, movida pelo desejo, Iii

I!I incapaz de estabelecer a conexao entre ato e motivo, prop6e uma falsa correlagao, atribuindo ao ate motivagoes psiquica e socialmente aceitaveis, extraidas dos valores oficiais, con­

:11 tidos na ideologia. 22 0 termo racionalizagao pode ser usado

20 Freud, Entwurj . .,., op. cit. 21 FreUd, Die Traumdeut'Ung" oP. cit., pag. 608. 22 VIde especialmente Ernest Jones, Rationalization in Everydaru Dije, em

Papers on Psychoanalysis.

.....,

tambem em outro sentido: tentativa de dar coerenaia.q~ teligibilidade a fen6menos .cujas interrela~6es reais niOjr.l~ compreendidas. 23 Podemos dizer que a racionalizagao. neee sentido, ocorre sempre que 0 individuo produz formag6es dis" cursivas que nao levam em corrta a realidade, e deixam-se impregnar, em graus variaveis, pelo principio do prazer. Auto­centrado, preso as suas estruturas narcisistas, ele nao con­segue transitar para 0 principio da realidade, e em vez de adaptar seu pensamento ao mundo exterior, adapta 0 mundo exterior ao seu pensamento. Foi a caso do primeiro sistema filos6fico construido pela humanidade, 0 animismo, numa fase camcterizada pela "onipotencia das ideias": 0 primitivo projeta seus processos mentais para 0 exterior, sob a forma de deuses e dem6nios. Foi tambem 0 caso da religiao, mundo supra-sensivel construido a partir de exigencias pulsionais. E 0 caso de certos sistemas filos6ficos, que sob certos asp-ectos sao herdeiros do animismo, e que tambem derivam da crenga narcisista na onipotencia das ideias. Em todos esses casos, o Ego, incapaz de aceitar os sacrificios exigidos, seja pela trans,formagao da realidade, seja por sua compreensao cien­Ufica, independentemente do carater agradavel ou desagra­davel do saber adquirido, refugia-se num estilo de pensa­mento que pode, em alguns casos, ter uma forma conceitual altamente elaborada, mas constitui, na verdade, um falso pensamento, porque influenciado, no todo ou em parte, pelo desejo.

autra defesa, 0 isolamento, produz 0 mesmo efeito. Pelo isolamento, as relagoes associativas sao reprimidas ou rom­pidas. Quando 0 individuo "isola uma impressao au ativi­dade por meio de uma pausa, esta nos dizendo, simbolica­mente, que nao quer que os pensamentos a ele relativos se toquem associativamente uns com os outros." 24 Pelo iso­lamento, 0 pensamento e proibido de incluir uma percepgao na rede associativa, 0 que 0 impede de levar em conta todos os elementos da realidade, mesmo quando os elementos "iso­lados" permanecem conscientes.

Urn terceiro exemplo e a projegao, que fals,inca 0 pen­samento na medida em que a relagao entre causas e efeitos se inverte. Assim, 0 6dio em que se converteu a amor homos­sexual do Presidente Schreber e projetado para a exterior: quem odeia e a medico, e por isso ele persegue Schreber.

aa FreUd, Totem und Tabu, aw, vol. IX. a, Freud, Hemmung ... , op. cit., pag. 152.

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o que Ihe da 0 direito de odM.-lo, COmO uma simples COn­sequencia dessa perseguic;ao. A causa do processo - 0 6dio de Schreber pelo medico - e vista como efeito do odio de medico pOl' Schreber. 25

Varios outros mecanismos de defesa ilustram a falsifi­cac;ao do pensamento pelo principia do prazer-desprazer. Mas os exemplos citados bastam para mostrar a analogia entre a falsificac;ao perceptiva e a falsificac;ao do pensamento. Vimos que a deformac;ao da percepgao externa ocorre quando cer­tos conteudos do Id irrompem no Ego, levando-O a perceber o real de acordo com esses conteudos. No caso que nos in­teressa agora, tudo se passa como se houvesse urn extrav'a­samento, nao dos conteudos do Id, mas de suas regras for­mais de juncionamento. A partir da analise dos sOnhos, dos sintomas, e de certas formas nao-patol6gicas pelas quais 0

inconsciente irrompe na consciencia, como 0 humor, Freud conclui que 0 deslocamento e a condensac;ao constituem as formas privilegiadas de funcionamento dos processos pri­marios. Nelas se resume a gramatica do inconsciente. A con­dic;ao economica do deslocamento e da condensac;ao e a ener­gia movel dos processos primarios. E porque neles a energia circula sem entraves, que a intensidade de uma represen­tagao pode ser transferida a outras, pelo deslocamento, e que as intensidades de varias representac;5es podem concen­trar-se numa linica, pela condensagao. Normalmente, essa gramatica privada deveria estar sUjeita a pUblica, represen­tada pela l6gica dos processos secundarios, e s6 pode mani­festar-se quando 0 dispositivo inibidor do sistema Pes relaxa sua vigilancia, como durante 0 sonho, ou e obrigado a com­por-se com 0 Ics, como no caso dos sintomas.

Ora, 0 que parece ocorrer no caso da d'alsificac;ao do pen­samento e que 0 Ego abre aos processos primarios uma via de acesso pam que essa gramatica privada passe a reger a atividade intelectual. 0 trabalho associativo passa a reali­zar-se, em parte, segundo a sintaxe que prevalece nos pro­cessos primarios ,e nao segundo a sintaxe dos processos se­cundarios, condicionada pelo principio da realidade. Depois de tel' auxiliado 0 Ego a· censurar a percepc;ao externa, ofe­recendo-lhe seus conteudos, 0 Id 0 ajuda a censurar 0 tra­balho intelectual, pondo a sua disposic;ao a gramatica do

25 Freud, Psychoanalytische Bemerkumgen ilber einen autobiographisch bescriebenen Fall von Paranoia, GW, vol. III.

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inconsCiente. Surge urn estiIo de pensamento hibrido, for­mac;ao de compromisso entre 0 Ego e 0 Id, com 0 grau de estruturac;ao formal caracteristico dos processos secundarios, mas obedecendo a u,ma l6gica que n3,o coincide com a 16gica publica. Influenciado pela condensagao e pelo deslocamento, o trabalho associativo produziria conexoes incorretas, e dei­xaria de realizar as conexoes necessarias. Como 0 pensamento consiste, em ultima analise, na coordenac;3,o' de percepc;oes, atuais e passadas, segundo urn principia de selec;ao deter­minado pelo valor intrinseco de cada representac;3,o para 0

atingimento dos objetivos realistas do Ego, independente­mente dos investimentos de desejo, tal selec;ao sera viciada se incidir sobre representac;oes inadequadas, au se levar em conta representac;6es incompativeis, transgredindo 0 prin­cipio da nao-contradic;ao, ou estabelecer relag5es causais in­corretas, obtendo modelos cognitivos incapazes de dar conta da realidade. Old pode desviar a atenc;ao da consciencia, pelo deslocamento, de representac;oes importantes, ou atrai-Ia, pela condensac;ao, para representac;oes superfluas, indepen­dentemente da validade, para a produc;ao de ideias veridicas, das representac;oes escolhidas. Derivando sua dinamica de urn universo interno em que nao existe nem tempo, nem espac;o, nem causalidade, 0 pensamento produz associac;oes inexatas, em que nem a relac;ao parte/todo, nem a relac;ao antecedente/consequente, nem a relac;ao causa/efeito sao plenamente levadas em conta .. Sujeita a essa l6gica priva­tizada, a consciencia se comporta. muito mais como 0 pri­mitivo de! Levy-Bruhl,cuja mentalidade pre-l6gica permite a afirmac;ao simultanea de teses incompativeis, que como 0

indigena de Levi-Strauss, cuja "pensee sauvage" nao e essen­cialmente distinta do pensamento l6gico do civilizado. Mas essa estrutura "pre-l6gica" nao e transparente, porque a participac;ao do Ego em sua genese assegura, pela elaboragao secundaria, uma coerencia externa que dissimula 0 substrato irracional das conexoes propostas.

Reproduz-se, ao nivel do pensamento, a modelo identi­ficado para a falsificac;ao da percepc;ao. Confrontado com ideias geradoras de desprazer, 0 Ego se recusa a pensar, da mesma forma que, confrontadocom percepc;6es penosas, se recusa a permitir seu acesso a consciencia. 0 Ego fage do desprazer da percepc;ao penosa, suprimindo-a ou dissimu­lando-a, assim como foge do desprazer da ideia penosa, blo­queando 0 trabalho cognitivo que ela exige para concretizar'-se.

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As considevag5es precedentes se referem a limitagoes im­postas ao pensamento do ponto de vista de sua objetividade: as associagoes se fazem incorretamente, e as ideias produ­zidas nao sao validas. Mas se retomassemos a distingao do jovem Freud entre 0 pensamento pratico e 0 teorico· pode­!tiamos introduzir urn segundo tipo de limitagao: a que afeta, hao a objetividade do pensamento, mas 0 alcance do trabalho associativo. Optando pelo pensamento pratico, 0 Ego e capaz de pensar, mas nao e capaz de levar suficientemente longe sua atividade exploratoria. No caso anterior, a atividade intelectual e deformada pela intrusao dos processos primarios, que pas­sam a co-determinar 0 seu itinerario. Neste caso, e1a man­tern a sua integridade, e 0 principio do prazer permanece ~xcluido, condigao essencial a qualquer tipo del pensamento, mas como 0 objetivo do Ego e apenas obter gratificagao pelas vias mais diretas, 0 pensamento cessa antes que se estabe­legam as relag5es abstratas necessarias a uma compreensao totalizante do real. Enquanto 0 pensamento teorico permi­tiria ao sujeito chegar a urn conhecimento descontextuali­

.zado, e portanto a uma visao mais geral de sua propria rea­lidade circundante, 0 pensamento pratico 0 autoriza a al­cangar apenas 0 saber necessario para que pudesse mover-se com facilidade dentro do seu contexto, mas nao 0 suficiente para ultrapassa-lo, por uma reflexao mais abrangente. 0 Ego suspenderia 0 seu trabalho associativo sempre que 0 apro­fundamento e ampliagao da atividade do pensamento ex­pudesse 0 individuo a situagoes de desprazer, que assumi­riam, no caso, a forma de ideias capazes de problematizar a insergao espontanea do individuo em sua circunstancia social. A dicotomia praz,er/ desprazer seria mobilizada, nao para a produgao de conex6es inexatas, mas para inibir 0

pensamento em sua vocagao de "seguir todas as vias", e para impedir, pela liberagao de desprazer, que todos os caminhos internos fossem seguidos.

IV

De novo, confirma-se a interpenetragao da verdade e do erro. 0 Ego intelectualmente competente seria aquele capaz de coordenar percepgoes externas e internas com vistas a gerir a vida puLsional atraves de atos intencionais de jUlga­mento, 0 que significa, no caso do pensamento teorico, a produgao de conhecimento novo. Mas 0 pensamento e fragil,

/

pois derive. de uma simples mutagao dos processes primarl:Os, e como tal esta constantemen.te sujeito as investidas do prin­cipio do prazer/desprazer, que por urn lado levam a pro­dugao de conexoes ine)mtas, e por outro limitam 0 alcance do trabalho associativo. Em cOllS€lqiiencia, a regulamentagao da vida pulsional continua a fazer-se, em grande parte, atra­YeS dos automatismos cegos da defesa, e da opacidade cog­nitiva qUie ela acarreta, e 0 conhecimento resultante dQ trabalho associativo e freqiientemente falso, subordinando-se menos ao principia da realidade que ao principio do prazer.

o registro do imaginario

A inclusao do imaginario num ensaio dedicado a epis­temologia freudiana pode surpreender. Pois sabemos que a fantasia, quase por definigao, esta ligada, nao ao real, mas a urn universo que se afasta mais ou menos explicitamente do real. Te.nho duas justificagoes. A primeirae que estou descrevendo uma teoria do conhecimento em que 0 sabido e 0 nao-sabido se interpenetram organicamente, e a fan­tasia e urn agente decisivo no processo de ocultagao do sa­ber. A segunda, mais importante, e que a fantasia, apesar de ser uma formagao irreal,e a servi<;:o da desrealizagao, contem, nao obstante, urn vetor cognitivo.

A fantasia, com efeito, e uma :forma de pensamento ­Freud fala em phantasrierendes Denken - que ao contrario do pensamento propriamente dito, que pode falhar em seu contato com 0 real, mas quer conhecer 0 real, apoia-se nas percepgoes e reminiscencias, nao para organiza-Ias com vis­tas ao conhecimento da realidade, mas com vistas a estru­turagao de cenarios irreais. Esses cenarios contribuem par sua vez para reforgar a defesa, em seu papel de ocultagao da realidade interna e externa. Nesse sentido, 0 imaginario e a sombra do conhecimento: infiltrando-se na esfera cog­nitiva, ele concorre para obscurece-Ia. Ao mesmo tempo, na medida em que preserva, de alguma forma, a memoria da frustragao que 0 originou, ele pode constituir uma via para a recuperagao do passado. Na medida em que 0 irreal que ele visa pode ser apenas uma das dimensoes do virtual, ele aponta para uma verdade possivel, situada alemda visibi­

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lidade existente. E:nfim, na medida em que ele contribui para a rememoragao do passado e para a liberagao do futuro vir­tual, ele e urn caminho para' a plena compreensao do pre­sente.

Passo a descrever, portanto, (a) a estrutura e 0 funcio­namento da ['antasia, segundo Freud, (b) seu papel anti.. cognitivo, sob a influencia do principio do prazer, e (c) seu papel cognitivo, em nome do principio da realidade.

II

o tema da fantasia aparece desde a pre-hist6ria do n1ovimento psicanalitico. Assim, Breuer se propunha, com seu metodo catartico, esvaziar sua paciente, Anna 0., de ('sua reserva de fantasias acumuladas." 26 Da mesma forma, em suas cartas a Fliess, Freud discute 0 conteudo de varias fantasias histericas. Mas a guinada decisiva que daria ao tema uma posigao central do dispositivo psicanalitico foi ~. descoberta de que as cenas de sedugao, narradas pol' pra­ticamente todas as histericas,nao correspondiam, na maioria !ios casos, a epis6dios efetivamente vividos, mas a cenas ima­ginarias. Na primeira fase, a sedugao real, ocorrida no pas­sado, era a condigao necessaria para a eclosao da crise mor­bida; com a percepgao do papel da fantasia, 0 fator etiol6gico passou a ser, nao a vivencia verdadeira, mas a vivencia fan­tasiada. Pouco a pouco, 0 mundo da fantasia veio a equi­parar-se, virtualmente, com 0 conjunto da .realidade psiquica, transformando-se no objeto proprio da pratica psicanalitica: seu objetivo seria, essencialmente, desvendar a estrutura imaginaria inconsciente, trazer a tona as fantasias recal­cadas, a [,im de leI', nelas, 0 desejo proibido, simbolizado nos sintomas. Be estes eram, no inicio, 0 "simbolo mnemico do trauma", a transcric;ao organica das reminiscencias pato­genicas, passaram a ser, nessa segunda fase, a simbolizagao de fantasias, que substituiam vivencias Teais pol' falsas re­minicencias.

A partir dessa experiencia clinica, e com base no pos­tulado de que as fantasias dos neur6ticos nao diferem, em sua natureza, das fantasias dos individuos normais, Freud desenvolve uma teoria do imaginario em que este e visto,

26 J. Breuer, Anna 0., em: Breuer e Fr,eud. Etudes sur l'Histerie (Paris: PUF, 1967) Vag. 21.

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geneticamente, como 0 fruto de uma cisao, quando 0 prin­cipio do prazer e sUbstitui.do pelo principio da realidade. Uma parte do pensamento se volta para 0 real, a fim de contribuir, pelo conhec.imento do nl.undo exterior, para sua transformagao ativa, e para a realizagao nao-alucinat6ria do desejo,' e outra permanece regida pelo principio do prazer: e 0 "reino intermediario da fantasia".27 Nesse reino, nao vale a prova da realidade; 0 prazer e sua lei suprema, e 0

recalque, acionado pelo principio do prazer-desprazer, cons­titui a unica forma de regulamentar 0 acesso a conscMncia dos conteudos psiquicos, em contraste com 0 julgamento, que passa a reger a parte do psiquismo submetido ao princip\i.o da realidade.

A fungao do pensamento imaginario e compensar 0 in­dividuo pOl' todas as renuncias, quer as impostas pela rea­lidade (VerziC'ht) quer as exigidas pelo desenvolvimento psi­cogenetico. Cada objeto perdido e substituido pOl' uma for, magao imaginaria, cada fase ultrapassada, no percurso que vai da ['ase oral a genital, deixa tragos no psiquismo: fan­tasias nas quais se conserva, alucinatoriamente, 0 objeto desaparecido, a pUlsao parcial superada. A fantasia e 0 cor­relato intra-psiquico da renuncia e da perda. E a anulagao imaginaria do sofrimento. Pois "pode-se dizer que 0 homem feliz jamais fantasia; so 0 faz quem e infeliz. Os desejas irrealizados sao a forga motriz da fantasia, e cada umdeles e uma forma de corrigir uma realidade insatisfatOria".28

Podemos portanto classificar as fantasias conforme a fonte dos "desejos irrealizados". Podemos usar, para esse rfim. a Ultima teoria freudiana das pUls5es: a que opoe Eros (abrangendo as puIs6es libidinais e as de auto-conservac;ao. as unicas admitidas na primeira teoria) a Tanatos, a vida a morte. A realidade, opondo-se a realizac;ao dos impulsos libidinais, gera a fantasia er6ticla; opondo-se a realizac;ao dos impulsos de auto-conservagao, gera a fantasia material; e opondo-se a realizac;ao das pulsoes da marte, gera a fantasia agressiva.

A sexualidade eo terreno eletivo para a origem da fan­tasia, porque a libido e menos facilmente educavel para a realidade que ° que Freud denominava, na primeira teoria, as pUlsoes do Ego. Conseqiientemente, ela nao se resigna a frustragao, e repelida pela realidade, refugia-se no imagi­

27 Freud, Formulierungen ... , op. cit., pag. 235. 28 Freud, Der Dichter und dCUl Phantasteren. GW, vol. VII, pag.216.

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I~ jl­

nario. Podemos ir mais longe, e dizer que e atraves do ima­il ginario que 0 sujeito advem para a sexualidade; enquanto I nos primeirosanos de vida, a pulsao erotica se apoiava no 'II instinto alimentar (Anlehnung) , no estagio seguinte, que

e 0 do auto-erotismo, 0 individuo perde esse objeto parcial, que e 0 seio materno, e e levado pelo imaginario a buscarI

I,I uma satisfagao alucinatoria na representagao mental do ob­

jeto perdido: nao satisfagao (Befriedigung) mas realizagaoill de desejo (Wunscherfiillung). Em todos os demais estagios II ocorre 0 mesmo processo: cada objeto perdido revive no re­I'i gistro da fantasia. Freud da inlimeros exemplos dessas fan­

,I' tasias er6ticas, que ele associa especialmente ao psiquismo I!

feminino: (fantasia de vida intra-uterina, de volta ao utero, de observagao da copula paterna, de prostituigao, e fantasias

\! sexuais diretas, representando 0 ato sexual (hetero ou ho­flfl!1 mossexual). Elas remetem, em ultima analise, a fantasias

I!! auto-eroticas, modificadas par toda uma serie de ramificag6es r imaginarias posteriores. Ii A fantasia material - que Freud chama de "fantasia

de ambigao" - deriva da frustragao sofrida pelas pUls6es do IEgo. Ela ocorre, par exemplo, quando um adolescente pObre, a caminho do seu novo emprego, fantasia que se torna indispensavel a seu empregador, casa-se com sua mha, e

:1:

I ocupa 0 seu lugar. 29 Num estudo sobre urn caso de n~urose demoniaca no seculo XVII, em qUJe urn pintor pebre se

IIII imagina ligado ao diabopor um pacto, Freud interpreta al­gumas de suas vis6es como a objetivagao de fantasias geradas '

I pela frustragao das suas necessidades de sobrevivencia ma­terial: "fantasias de desejo do homem pobre, faminto de prazer, degradado. .. salas suntuosas, vida de luxo, baixelas de prata... " 30 Mas as fantasias materiais nao sao autono­mas. E na libido, esfera privilegiada do imaginario, que elas vaG buscar sua forga motriz. Mesmo quando elas ocupam 0

primeiro plano, derivam sua intensidade de fantasias er6­ticas pre-existentes, e "assim como em retabulos antigos en­contramos num canto 0 retrato do doador, podemos desco­brir na maior parte das fantasias de ambigao... a dama por quem seu autor realiza seus feito.s her6icos, e a cujos pes deposita todos os seus sucessos".31

29 Freud, ib. 80 Freud, Eine Teutelsneurose im XVII Jahrhundert, GW, vol. XIII, p. 350. 81 Freud, Der Dichter ... , op. cit., pag. 217.

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Enfim, as putsO~s da morte, frustradas, geram fantasias agressivas, como as de carater sado-masoquista, e que parecem ocorrer, sobretudo, na fase de liquidagao do Edigo e da for­magao do Superego, que e~ge a liberagao das puls6es da morte,para que elas passam fazer face a libido.

Essas !fantasias nao se encontram em estado puro. Vimos que as fantasias materiais se mesclam as eroticas, e no caso das fantasias agressivas ha claramente uma intersecgao com as libidinais. E dentro do mesmo tipo, existem, em situag6es concretas, varias fantasias que se amalgamam: assim, 0 mesmo sintoma histerico pode representar, par condensagao, duas ou mais fantasias de natureza sexual.

III

o cenario fantasmatico gerado pela frustragao desem­penha um papel importante na distorgao cognitiva, tanto ao nivel da percepgao, externa e interna, como ao nivel do pensamento.

Vimos, no que se refere a percepgao externa, que ela e deformada quando ocone uma extrojegao de conteudos in­ternos. Podemos agora dar mais um passo, e dizer que esses conteudos sao em grande parte estruturados sob a forma da fantasia. 0 individuo remodela 0 real a partir de suas fan­tasias: a realidade insatisfatoria e corrigida pela tecnica de extrair do mundo interior certas fantasias, e transp6-las para o exterior, retificando-o segundo a logica do imaginario, que e realizagao de desejo. E 0 que acontece com 0 fetichista, que teatraliza suas fantasias, encenando espetaculos em tudo semelhantes aos montados pelos Cesares romanos para dra­matizar suas fantasias perversas. 32 E e 0 que acontece com o psicotico, que recorre ao tesouro (Vorratskammer) de suas fantasias para recriar uma realidade externa delirante. 33

'Mas podemos ir alem do campo clinico, e dizer que a de­formagao projetiva pela qual a realidade exterior deixa de ser percebida em seus verdadeiros contornos, como ocorre nos fenomenos de psicologia de massas, resulta da trans';' posigao para 0 mundo exterior de um universe imaginano. Uma au varias fantasias se mesclam, sao projetadas,e trans­formam-se em objeto de percepgao externa. Como toda fan­

82 FreUd, Drei Abhandlungen zur Sexualtheorte, GW, yolo V. 83 Freud, Der Realitaetsverlust bei Newrose Und P81/ChOSe, GW, yolo xm.

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tasia, a fantasia projetiva resulta da frustra<;ao, e visa a corregao de uma realidade insatisfatoria. Mas, ao contrario da fantasia interna, que aparece como irreal na consciencia do sUjeito, a fantasia exteriorizada se apresenta sob a forma da realidade: uma realidade em que desejo e realizagao ja coincidiram, e em que 0 presente, retilficado, deixa de se opor ao passado.

Mas e como agente de deforma<;;ao da percepc;ao interna que 0 papel da fantasia e determinante. Nisso, ela tem afi­nidades especialmente estreitas com· a defesa. Em certas pas­sagens, Freud chega ao ponto de dizer que ela propria cons­titui uma defesa. Assim, numa carta a Fliess, ainda na fase em que a cena de sedUl;ao era considerada real, Freud diz que 0 papel da fantasia e 0 de dissimular a cena trauma­tiea. 34 Com a descoberta da sedugao como narrativa ficticia, e a propria sedug5Jo que e vista como fantasia - nao reali­dade a ser encoberta pelo imaginario, mas imaginario alu­dindo a uma realidade que nao houve. Tambem aqui a fan­tasia e defesa: It fantasia de seducao se destina a dissimular a recorda<;ao de experiencias auto-:'eroticas, ocorridas na pri­meira infa-ncia. Apesar disso, parece mais exato dizer que a fantasia nao e ela propria uma defesa, mas 0 produto da defesa, e agente coadjuvante da defesa.

Vimos que a fantasia e um subproduto do recalque. Quando totalmente eficaz, 0 recalque leva a elimina<;ao com­pleta da representac;ao vetada. Quando 0 recalque e imper­feito, a representac;ao sUbsiste, sob forma de uma reminis­ceTIcia inconsciente, que como tal nao pode aflorar a cons-· ciencia, mas pode faze-Io indiretamente, atraves da fantasia. Nessa perspectiva, 0 papel deformador da fantasia nao esta na supiessao da memoria (tarefa do recalque integral) mas em sua falstficagao. E 0 que ocorreu nos exemplos citados por Freud: a reminiscencia correspondente as vivencias cen­suradas (sedugao, na primeira teoria, onanismo infantil, na segunda) nao pode se tomar consciente enquanto reminis­cencia, mas pode se tomar consciente enquanto fantasia.. A memoria nao e abolida, mas metamorfoseada em narra­tiva imaginaria. A fantasia ajuda 0 Ego, cooperando para falsificar 0 passado, ja que ele falhou em sua tentativa de aboUr, pelo amnesia, esse passado. Com isso, 0 individuoe expropriado de uma parte de sua historia, percebendo como fantasia 0 que constituiu um capitulo de sua autobiografia.

34 . Freud, carta a Fliess, n.O 61, em Aus den Anjfingen . .. , op. cit.

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o que se evapora, com 0 -trabalho do imaginario, noo sio apenas os epis6dios traumaticos ou as cenas conflitivas, trans­formadas num romance da "bibllotheque rose", e sim, muito mais radicalmente,a historicidade desses fatos e traumas. Quem corrige 0 passado, suprimindo os acontecimentos pe­nosos,ou reescrevendo capitulos inaceitaveis, tem pelo menos algum controle sobre esse passado, e percebe a hist6ria como hist6ria; transformando-se em (fantasia, a hist6ria se dissipa, e em vez de se oferecer a percepgao interna como uma se­quencia de acontecimentos (ainda que distorcidos) oferece­se como uma sequencia de nao-objetos: os nao-objetos que constituem 0 objeto proprio do imaginario. _

Mas a fantasia contribui para a falsificagao do passado ainda de outra maneira: ela nao e somente 0 substituto de uma reminiseencia proibida, mas tambem 0 ponto de partida para a produc;ao de falsas mem6rias. 0 processo e reversivel, e funciona nos dois sentidos. A fantasia e correlato da amne­sia, mas pode exercer um papel ativo, engendrando remi­niseencias falsas. No primeiro caso, ela e representante da reminiscencia, e no segundo, e a reminiscencia que e a re­presentante da fantasia. E 0 que ocorre quando a fantasia, gerada pela repressao, e ela propria reprimida, convertendo­se numa pseudo-recordagao. A recordagao, nesse caso, e uma simples fantasia retrospectiva - um Rilckphantasieren. Pertencem a esse tipo certas reminiscencias tipicas, como a da observagao, aos dois ou tres anos de idade, do coito pa­terno, e que muitas vezes sao fantasias de adolescentes, pro­jetadas para 0 passado sob a forma de falsas recordag6es. 35

Outro tipo de produc;ao de uma falsa reminiscencia a partir da fantasia e 0 fenomeno do "deja vu", ou da "fausse re­connaissance." A explica<;ao de Freud e que a sensagao do "deja vu" deriva da recordac;ao de uma fantasia inconsciente, ocorrida no passado. Incapaz de lembrar-se dessa fantasia, porseu carater censuravel (desejo da morte de um parente, por exemplo) 0 individuo julga lembrar-se de ter estado em determinado local, ou de ter vivido determinada eena. Para que a "fausse reconnaissance" se produza, basta que haja algum ponto de contato entre a vivencia presente e a fan­tasia passada : semelhanga de situag6es, au de objetos, OU de personagens. Tambem aqui ocorre 0 "retorno do recal­cado", sob a forma de uma reviveseencia alucinat6ria do esquecido. Como no exemplo precedente, a fantasia nao subs­

35 Freud, Vber Deckerinnerungen, aw, vol, I.

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titui 0 recalcado, mas e ela propria recalcada, e volta a su. perficie sob a forma de uma vivencia que jamais ocorreu.

o curiosa conceito de proto-fantasia (Urphantasie) e um exemplo sui generis da rela<;ao entre a fantasia e a re­minisoe'llcia. A proto-1fantasia designa a classe das fantasias tipicas, como a da sedu<;ao infantil ou a da castra<;ao, que em vez de aludirem a recorda<;oes individuais, aludem a vi­vencias filogeneticas. Essa ideia, lamentavelmente seme­lhante ados arquetipos junguianos, e das mais singula­res, porque parece representar urn retrocesso a pre-historia da psicanlilise, quando a realidade da sedu<;ao era aceita inquestionadamente. Tudo se passa como se Freud, desespe­rando de encontrar, no plano ontogenetico, uma base real para a fantasia da sedu<;ao, resolvesse recorrer as experien-:­cias da especie. Seja como for, essa ideiacontestavel, segundo a qual a fantasia, em vez de ser urn Ersatz da reminiscencia individual, seria urn Ersatz de reminiscencias do genero hu­mano, contem um tema que merece nossa aten<;ao: 0 de umaestrutura imaginaria trans-individual, que Freud con­cebe segundo 0 modelo kantiano do esquematismo, e em que ela funciona como organizadora da experiencia sensivel. Tais fantasias constituem "esquemas filogeneticamente transmi­tidos, que como as categorias filosoficas se encarregam de acolher as impressoes vividas. Minha concep<;ao e que eles representam a sedimenta<;ao da historia da civiliza<;ao. 0 complexo de Edipo, que abrange a rela<;ao da crian<;a com os seus pais, pertence a esses esquemas... Quando as vi­vencias nao se ajustam ao esquema hereditario, elas sofrem uma reformulagao (Umarbeitung) na fantasia... Sao jus-· tamente esses casos que apontam para a existencia autonoma do esquema. Podemos observar freqiientemente que 0 es­quema triunfa da vivencia individual, como quando 0 pai se transforma num castrador ... apesar de urn complexo de Edipo invertido".36 Atras dessa formulagao mitologizante, Freud parece estar a busca de alga mais serio, que seria algo como a lei estrutural do imaginario. 37 Reduzida a seu "nu­cleo racional", a teoria de Freud significaria na verdade que o individuo absorve da cultura um repertorio de temas ba­sicos - as esquemas - que sao interiorizados, e passam a ordenar as produgoes do imaginario. Dessa forma, a reali..

36 Freud, Aus cl;er Geschichte einer infantilen Neurose" GW, vol. XII, pag. 155.

37 Cf. Laplanche e Pontalis, Fantasme Originaire, Fantasme des Origines, Origine du Fantasme, Les Temps Modemes, abril de 1964.

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dade exterior interferiria duplamente nas operag6es da fan­tasia. Por urn lado, a Lebensnot, a escasSez e a dominaQao, geram uma frustragao, uma Versiagung, que provocam a fan­tasia individual; por outro lado, os cenarios que ela constr61 sao em parte ordenados segundo os esquem.as derivados da cultuia. Sofrendo, 0 individuo conta historias a si mesmo, mas as historias que ele conta derivam de temas produzidos pela cultura - 0 inconsciente estrutural dos antrop6logos, com a diferenga de que nele se depositam temas e topoi, e nao, como para os estruturalistas, regras de permutagao para a organiza<;ao dos temas. A8 fantasias sao da ordem da palavra, mas sua organizagao depende de urn codigo - 0

sistema - que rege com sua estrutura significante os signi­ficados aparentemente aleatorios do imaginario. Em nossa perspectiva, isso signirficaria, simplesmente, que a falsifica­<;00 da memoria produzida pela fantasia nao e arbitraria; ela implica efetivamente num Rilckphantasieren, na pro­dugao de reminiscencias erroneas, mas nao em quaisquer reminisoencias: ao organizar suas falsas memorias, 0 sujeito teria a sua disposigao nao somente suas proprias vivencias, como vivencias grupais, sedimentadas nos esquemas - frag­mentos de cenas reais, individuais e ooletivas, que serviram de materia prima para 0 trabalho do imaginario.

Em suma, a falsificagao da memoria pode ocorrer em duas dire<;oes. Enquanto substituta da reminiscencia proi­bida, a fantasia, por urn lado, idealiza 0 passado, eliminando os seus momentosconflitivos, e por outro, esvazia a hist6ria psiquica, dissolvendo a biografia no mito, e a realidade na fabula. E enquanto produtora de falsas memorias, ela produz cenas infantis que nunca ocorreram, faz reviver 0 que nunca foi vivido, eleva 0 individuo a recordar-se de vivencias que nao the pertencem. Em qualquer das duas dire<;5es, a falsi­ficac;ao resulta da Versagung, da frustra<;ao das aspirac;oes a felicidade. Na primeira, a frustragao gera 0 recalque, que produz a fantasia; na segunda, a pr6pria fantasia, compen­sagao ilusoria da renuncia, sucumbe ao recalque, transfor­mando-se numa falsa mem6ria. A fantasia ofererec·e urn con­solo imaginario pela perda real, e a falsa memoria, um con~ solo imaginario pela perda da fantasia. Na primeira direc;ao, ela ocupa 0 lugar das verdadeiras memorias - quem nao pode rememorar, fantasia - e na segunda, produz memo­rias - quem nao pode fantasiar, rememora - mas as me­m6rias que ela propoe sao puramente qUimericas.

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Alerildo recalque, a fantasia esta associada a outros mecanismos de defesa, como a regressao, a inversao, 0 re~ torno sabre a pessoa pr6pria, a identifica~ao, e a raciona­lizagao. Nao posso mostrar, nesse ensaio que se pretende sintetico, como a fantasia se articula com todas essas de­fesas, para coadjuva-Ias em sua fungao de censurar a per­cep~ao interna, impedindo que as representa~6es acedam a consciencia sob sua verdadeira forma. Basta dizer, sem maior,es comproval,;6es, que a fantasia e mobilizada de uma ou outra forma sempre que. 0 Ego, fugindo de uma repre­senta~a,o penosa, recorre a cortina protetora da defesa. Sub­metida a gravita~ao do principio do prazer, ela tern afini­dades especiais com os processos pelos quais 0 Ego, ten­tando proteger 0 individuo da percepgao disfuncional, afasta do seu horizonte perceptivo certas representl;t~6es, atraves dos mecanismos do prazer/desprazer. Fuga diante do des­prazer, a defesa tern rela~6es naturais com a !fantasia, for­magao compensat6ria do desprazer. A reversibilidade da re­la~ao defesa/fantasia e uma conseqiiencia desse fundamento comum. 0 desprazer resultante da frustragao e compensado pelos cenarios da fantasia, em que a frustra~ao e abolida; obedecendo a sua tendencia imanente, que e 0 prazer, a fantasia p6e-se a servi~o do Ego para facilitar a defesa, estra­tegia psiquica destinada a tornar invisiveis as represental,;oes que servem de suporte para impulsos cuja satisfa~ao seria geradora de desprazer.

Enfim, a fantasia contribui para reIativizar a objetivi­dade do pensamento. Sabemos que 0 pensamenta precisa co~

locar fora de circuito 0 principio do prazer, para exercer corretamente sua fun~ao de coordenar perce~6es e remi­niscencias segundo as exigencias da realidade. Mas quanta maior a virulencia da flora imaginaria que brota no incons­ciente e no pre-consciente, maior a probabilidade de que 0 pensamento se deixe desviar da sua voca~ao essencial, que e a produ~ao de ideias veridicas. Em seu trabalho de coor­dena~ao das percep~6es atuais e passadas, 0 pensamento se­lecionaria as representa~5es que tivessem alguma rela~ao as­sociativa com as contidas na fantasia, e nao aquelas que corresponflessem as exig,encias do principio da realidade. 0 imaginario pode, no limite, submeter 0 pensamento aos au­tomatismos do prazer e do desprazer, 0 que significa que ele seria capturado pelo imaginario, submetido a seu modo de funcionamento, e relativizado ou destruido enquanto ativi­dade intelectual autonoma. Mais: se os objetos perdidos se

preservam postumamente na fantasia, pode ocorrer que1.... desejos ffuseis, sobreviventes de fases ultrapassadase ~"dl vivencias esquecidas, venham a assumir 0 controle sobre 0 pensamento, levando 0 Ego a pensar 0 presente segundo &I categorias do passado psiquico. A submissao do pensamento aoimaginario eevidentemente variavel, podendo oscHar desde uma simples influencia que nao 0 desqualifica totalmente em sua objetividade, ate uma subordina~ao completa. Po~ demos falar, nesse caso, de uma verdadeira fantasia discur­siva, que conserva do pensamento a forma da linguagem con­ceitual, mas nao seu vinculo com a realidade.E 0 que acon­tece com certas fantasias patol6gicas, que em vez de assu­mirem a forma de uma narrativa, assumem a forma de urn sistema te6rico, e que Freud ilustra com uma novela, Grad,,'iva, cujo personagem, urn jovem arque610go, da as suas fantasias o aspecto de uma hip6tese cientlfica. 38

IV

Temos agora que explorar 0 outro lado dos processos imaginarios. Vimos que pela fantasia 0 Ego tern sua capa­

'cidade perceptiva reduzida, pois deixa de registrar certas reminiscencias, transformando-as num cenario ficticio. E no entanto podemos perguntar-nos se a fantasia, apesar de tudo, nao exprime, a sua maneira, uma percep~ao autentica, e se nao traduz, de algum modo, uma genuina atividade intelectuaL

Quanto a percep~ao, a resposta e clara. Freud diz ine­qUivocamente que a fantasia e a representante da reminis­cencia p:z:oibida. 0 representante nao e 0 representado, e nesse sentido 0 imaginario e falsificador, dissolvendo a rj.­queza da hist6ria real na estereotipia de uma narrativa kitsch, mas e somente nele que 0 representado pode se ,ma­nifestar: espa~o de oculta~ao, mas tambem de manifestao10, Husao, Schein, mas ilusao real: realer Schein. Se assim 6, a fantasia e urn arquivo de vivenciaspassadas -lacunar e trun­cado, mas que permite, a quem souber l@-lo, remontar do texto manifesto a seu conteudo latente; que e 0 traoo mn@­mico da vivencia abolida. Donde a importAncia clinica da fantasia: 0 objeto da terapia nao e a realida.de material, mas o que Freud chama de "realidade ps,1qui,ca", essa "reserva

88 FreUd, Der Wahn una die T,raume in W. JenseM Gra4'va, aw, vol. VII.

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natural"~ subtraida it tirania do principio da realidade, jar­dim de Bosch habitado par fantasias incorruptiveis, cuja de­cifra~~o ~bre 0 caminho para a recupera~[o da hist6ria. Gomo as lendas e sagas de um povo, essas fantasias remetema verdade : "apesar de todas as deformagoes e mal-entendidos, elas representam a realidade do passado".39 Lidas as fanta­sias - ou diretamente, nos casos das fantasias conscientcs e pre-conscientes, ou indiretamente, atraves dos seus "des­cendentes" (Abkommlingen), no caso das que se tornaram inconscientes ou que jamais foram conscientes - 0 trabalho da defesa se desfaz, e a percep~ao interna se enriquece: ela tem agora a seu dispor toda uma riqueza de conteudos ate entao inacessiveis.

A resposta e menos evidente no caso do pensamento. A fantasia e urn tipo de pensamento que imita 0 verdadeiro pensamento na medida em que tamMm ele parte de uma percep~ao externa - 0 Anlass, a ocasiao deflagadora da (fantasia, como uma impressao acu.stica ou visual - e se relaciona com certas representa~oes internas associativa­mente vinculadas a essa percep~ao. Mas e um Phantasierendes Denken, uma simples caricatura do pensamento auMrntico, porque seu objetivo nao e utilizar essas representa~5es para a produ~ao de ideias adequadas a realidade, e sim corrigi-Ias, purifica-Ias do seu potencial de desprazer, para que sob essa forma passam ingressar em cenarios fraudulentos, a servi~o

da realiza~ao do desejo. Ao mesmo tempo, e licito indagar se assim como a

percep~ao censurada conseguiu, bem ou mal, sobreviver na fantasia, urn pensamento censurado, por ser gerador de des­prazer, nao esta presente, de uma ou outra forma, nas pro­du~5es do imaginario. Freud fala em processos intelectuais jaestruturados (bereits rationell gewordene Denkvorgiin­ge) 40 que sao recalcados, e sucumbem ao inconsciente. Mas e concebivel que 0 pensamento inconveniente, em vez de desaparecer, seja transformado, por regressao, num texto redigido na linguagem caracteristica dos processos primarios - a linguagem figural, em que os conceitos sao substituidos pelas imagens. Nesse caso, a fantasia nao seria apenas a repre­sentante deformada da percep~ao, mas tambem a represen­tante deformada do pensamento.

39 Freud, Eine Kindheitserinnerung des Leonardo ria Vinci, aw, vol. VIII, pag. 152.

40 Freud, formuJierungen ... , op. cit., pag. 235.

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.podemos encontrar Um. primeiro fundamento para essa suposi~ao em certas fantasias tipicas, como as sado-maso­quistas, e a da concep~ao masculina. Tais fantasias podem alimentar-se de teorias sexuais infantis, como a teoria sadica (segundo a qual 0 ato sexual e urn ato de violencia) e a teoria cloacal (segundo a qual as crian~as nascem pelo anus.) Freud nao deixa duvidas quanto ao carater racional de tais teorias. Se elas parecem absurdas, nao e por deficiencia in­telectual dos seus autores, ou par falta de rigor no encadea­mento dos fatos observados, mas porque os dados disponiveis sao insuficientes, em vista da relutancia dos adultos em ofe­recerem as informa~oes adequadas. As duvidas e rumina~5es

que estao na raiz dessas teorias 'constituem 0 paradigma de todo 0 trabalho posterior do pensamento".41 Nesse sentido, as fantasias que derivam de tais teorias constituem substi­tutos e representantes de processOiS intelectuais genuinos. Nao obstante, subsiste 0 fato de que esse saber e falso, pelo menos em parte. Pois as teorias sexuais infantis sao urn produto do pensamento, mas de urn pensamento influenciado em seu rumo pelos determinismos do desejo. A motivac;ao principal nao e a busca da verdade, mas a constru~ao de hip6teses condicionadas por interesses libidinais. A questao esta em saber se a fantasia pede, igualmente, expressar verdadeiros processos intelectuais, cristalizados em conhecimentos real­mente objetivos.

Uma fantasia de Leonardo da Vinci - urn Rilckphanta­sieren, vivenciado pelo artista sob a forma de uma reminis­cencia de infancia - parece enquadrar-se nessa categoria. Seu conteudo e conhecido: Leonardo 'recordava-se" de que um abutre introduzira a cauda em sua boca, durante a pri­meira infancia. Gomo toda fantasia desse genero, ela sim­bolizava vivencias e recordac;5es reais: a amamenta~ao, re­presentada pelo contata entre a boca e a cauda, e a ex­periencia biografica do menino ilegitimo, que ate a idade de 5 anos teria sido criado apenas pela mae, 0 que e repre­sentado na fantasia pela imagem do abutre, que segundo a mitologia e a hist6ria natural dos antigos, retomada com fins apologeticos pelos doutores da Igreja, seria urn passaro exclusivamente feminino, podendo conceber sem a interven­~ao do outro sexo. Freud argumenta convincentemente que Leonardo, leitor infatigavel de todos os escritos da Antigiii­dade, e que de resto sempre revelou especial interesse cien­

41 Freud, Vber infantile SexuaUheorien, aw, vol. VII, pig. 181.

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tifico pelo vOo e anatomia dos passaros, teria conhecimento dos autores classicos, como Estrabao, Horapollo e Plutarco, em que essa teoria e descrita. AB reminiscencias de leitura teriam fornecido os "restos diurnos" para que a ausencia do pai fosse simbolizada sob a forma do abutre. Ate agora, por­tanto, a fantasia de Leonardo corresponde ao esquema nor­mal da fantasia. Ela substitui e representa a reminiscencia da relac;ao erotica com a mae, tal como ela se manMestava nos primeiros anos de vida (libido oral) e alude a vivencia do vazio do pal. Pol' outro lado, como qualquer fantasia, a de Leonardo vai buscar a forma apropriada para exprimir-se no estoque das informac;oes disponiveis: aqui 0 acasa da leitura sugeriu 0 simbolismo do abutre, como teria sugerido outro, em circunstancias autobiograJicas distintas. Mas a fantasia se cornplica quando levamos em conta que a cauda e tambem urn penis, 0 que significa que a mae e urn sel' an­drogino. Apesar da freqiiencia com que a mitologia antiga representava seres hermafroditas, Freud supoe que essa parte da fantasia nao deriva das leituras de Leonardo, esim da. teoria sexual infantil que atribui a mulher a posse de um faJus. Ja teriamos aqui uma primeira intervenc;ao de pro-: cessos intelectuais, mas vimos que os contidos nas teorias, sexuais infantis nao podem ser considerados conclusivos. E e aqui que a fantasia de Leonardo traz urn elemento novo: se a cauda eum penis, sua introduc;ao na boca do menino nao simboliza apenas a amamentac;ao, mas a fellatio. Nesse caso, a fantasia faz mais que aludir a antigas percepc;6es e antigas teorias: ela e a expressao de um jUlgamento causal sobre a origem do homossexualismo de Leonardo. Ela representa uma' tentativa de explicar esse fato, correlacionando fenomenos dis­cretos, segundo as leis do pensamento logico. Com essa fan­tasia, Leonardo esta sendo freudiano aVlant la lettre: esta afirmando que seu homossexualismo pertence ao tipo em que a escolha homossexual de objeto deriva da identificac;ao com a mae, produzida pela ausencia ou fraqueza do pal. "Em conseqiiencia, a vida amorosa de Leonardo revela-se per­tencer ao genero de homossexualismo cujo desenvolvimento psiquico pudemos identificar, e 0 surgimento da situac;ao homossexual na fantasia do abutre se tornaria compreensivel, porque ela permite a tradu<;ao: tornei-me um homossexual atravesda relaqao er6tica com minha mae". 42 Be essa analise e verdadeira, a fantasia de Leonardo nao se limita a evocar

42 Freud, Eine Kindheitserinnerung ... , op. cit., pag. 177.

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vivencias passadas, mas vai alem, e propOe urn julgamento te6rico. Pe'la imagem do abutre, Leonardo se recorda de sua ligac;ao erotica original, atraves da amamentac;ao, e se re­corda da infancia, vivlda sob 0 signo do pai ausente; mas pelo ato fantasmatko da introduc;ao da cauda, ,ela transcende a simples rememorac;ao, e estabelece um vinculo entre duas cenas: a cena infantil da amamentac;ao, a cena adulta da fellatio. 0 imaginario, em sua linguagem caracteristica ---..:. nao conceitos, mas imagens - quer significar, edificando uma ponte entre as duas cenas, que elasestao causalmente cor­relaeionadas. 0 tempo da fantasia vincula os dois tempos - 0 infantil e 0 adulto - mostrando entre eles a existencia de uma relac;ao de causa e efeito. Be quisermos manter a analogia com os processos perceptivos, podendo dizer que tambem nesse caso a fantasia tern a funC;ao de salvar da amnesia uma representac;ao esquecida - aqui urn velho saber, e nao uma velha percepc;ao. A fantasia traria a tona antigos julgamentos causais, imediatamente reprimidos. Mas poderiamos dizer igualmente que ela representa urn juIga­mento atual, que devido a seu carater penoso so pode en­contrar seu caminho para a consciencia atraves da simbo­lizaC;ao fantasmatica. Em qualquer caso, a fantasia nao e apenas urn falso pensamento, a servic;o da falsificac;ao do pensamento: ela e tamb€im uma formac;a:o de compromisso que permite, seja a rememorac;ao de antigos processos i11­telectuais, seja a expressao de processos intelectuais contem­poraneos.

Resta que esse pensamento por imagens e deficitario. Ele nao pode comparar-se em eficacia ao pensamento con­ceitual. Freud e explicito: "0 pensamento pOl' imagens cor­responde ... a uma conscientizac;ao imperfeita". 43 Ao mesmo tempo, apesar da especificidade de sua tarefa clinica, que Impunha a Freud a necessidade de considerar a fantasia sobretudo em sua dimensao patologica, como urn refugio neurotico contra as exigencias da realidade, ele em nenhum momento perdeu de vista a func;ao cognitiva do imaginano, e em certos momentos chega ao extrema de atribuir a ima­ginac;ao uma func;ao criadora superior a do entendimento. Assim ele reproduz, na Interpret,agfio dos Sonhos, a seguinte citagao de Schiller: "0 motivo (da falta de criatividade) parece residir na coac;ao que 0 entendimento impOe a ima­ginac;ao... Nao me parece litil que 0 entendimento sUjeite

43 FreUd, Das len und £Las Es, OW, vol. XIII. pag. 243.

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it sua disciplina as ideias que afluem, como urn guardHlo que impede a entrada a uma porta. Num espirito criador .. , 0 entendimento suspende sua vigilancia diante da porta, as ideias irrompem de roldao, e somente entao pode ele super­visionar e avaliar 0 conjunto".44 Em outro trecho, Freud nao hesita em comparar sua pr6pria atividade especulativa ao trabalho da fantasia: "Sem uma especulaC;;ao e uma teorizaC;;ao metapsicol6gica - quase diria, sem uma atividade fanta­siadora - nao poderiamos avanc;;ar um passo".45 Dessa forma, Freud, que jamais havia negado a influencia da fan­tasia sobre a aqao (para ele os homens "energicos e ambi­ciosos" utilizam a fantasia, nao para fugir da realidade, mas para transforma-Ia, com vistas a realizaC;;ao nao-alucinat6ria do desejo) parece atribuir-Ihe um efeito positivo tamhem sobre 0 conhecimento. E niiJo apenas 0 conhecimento intui­tivo, tal como 0 incorporado nas obras de arte e na lite­ratura, que Freud sempre considerou vias e.specialmente va­liosas para a analise da realidade psiquica, mas 0 proprio. conhecimento sistematico. Mas qual a dimensao do real vi­sada pelo imaginario? Podemos arriscar uma resposta: sua dimensao virtual. me visa ao novo embutido nD real, 0 futuro aprisionado no presente. Pois na fantasia, "0 desejo utiliza a ocasiao presente para desenhar, segundo 0 modelo do pas­sado, uma imagem do futuro. (Zukunftsbild)". 46

MaS nao e tamMm 0 que ocone com 0 sonho, que como a fantasia coordena tIles tempos - os restos diurnos do pre­sente, 0 desejo passadoe 0 telos futuro, visado pelo desejo - e ao qual Freud jamais atribuiu uma funC;;ao especial-, mente divinat6ria? Ha uma diferenc;;a importante: 0 sonha implica numa percepc;;ao alucinat6ria, ao passe que na fan­tasia a realizac;;ao de desejo passa por ideias, imagens, re­presenta<;:5es, que pelo menos no caso dos sonhos diurnos, das fantasias consciente.s, nao sao confundidas com a reali­dade. "0 individuo nao alucina nada por meio delas, mas representa-se algo (stellt sich etwas vor); ele sabe que fan­tasia, nao ve, mas pensa".47

. Esse pensamento nao e objetivo, porque esta sujeito it gravitac;;ao do desejo. Mas pode associar-se ao pensamento objetivo, propondo-Ihe fins situados alem do horizonte do

44 FreUd, Die Traumdeutung. op. cit., pag. 107. 45 FreUd, Die endliche u~i. die unendliche Analyse, aw, vol. XVI, pag. 69 46 FreUd, Dfff Dichter ... ,. op. cit., pag. 218. 47 Freud, Vorlesungen zwr Einfi1.hrung in die psychoanalyse, aw, vol. XI,

pag. 95.

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j.a conhecido. Assim como a fantasia e·coadjuvante· 'do mgo em sua fungao anti-cognitiva (defesa) ela pode coadjuva-lo como sede do pensarrt~nto prospectivo. Enquanto dura' esss. atividade de explorac;;ao'do novo, 0 imaginario como tal tem que ser posta fora do circuito, porque sua intervenc;;ao des­truiria a objetividade do trabalho exploratorio. Mas ele esta presente no inicio do processo, como impulso para 0 conhe­cimento, e no fim, sob a forma de urn telos, que representa o conhecimento novo a ser alcanc;;ado.

!Esse vetor prospectivo da fantasia foi destacado por Ernst Bloch. Para ele, opensamento verdadeiramente diale­tieo e 0 vinculado ao desejo, it esperanc;;a, ao sonho para a frente (triiumen nach vorwarts). Seu modelo e a fantasia, o sonho diurno, que constroi castelos no ar, mas com ma­teriais extraidos do futuro, em contraste com 0 sonho no­turno, que se limita a reproduzir conteudos arcaicos. 0 in­consciente da fantasia, para Bloch, e distinto do inconsciente do sonho. Enquanto este mergulha suas raizes no passado, aquele esta voltado para 0 futuro. 0 conteudo do incons­ciente onirico e 0 material recalcado - 0 ja vivido que se perpetua subterreaneamente. 0 conteudo do inconsciente da fantasia e 0 ainda nao vivido. A consciencia voltada paI:~ o ainda-nao-consciente e a consciencia antecipante, queconstitui 0 organon da e.speranc;;a ut6pica. A esperanc;;a, no

l

sUjeito, e 0 suscetivel de ser esperado, no objeto, constituem os dois palos da dialetica da emergencia. A fenomenologia da conscH~ncia antecipante tem como correlato uma onto­logia do ainda-nao-ser. A sede psiquica da esperanc;;a e a fantasia. Seu suporte e urn Ego diurno, que ao contrario do Ego noturno do sonho, e uma instancia que em nenhum momento perde 0 controle sobre seus devaneios, e e capaz de transforma-Ios em realidade. 48

Essa distinc;;oo entre dois inconscientes e inadmissivel; e empobrece a dialetica freudiana, infinitamente mais sutil, pela qual 0 imaginario e s'~mult,aneamente 0 arcaico e 0 novo, a consGiencia retrospectiva, voltada para a ocultagao do passado, e a consciencia antecipante, voltada para 0 des­vendamento do futuro. De resto, a utopia nao e 0 forte de Freud. Em seu implacavel realismo, ele sabe que 0 Lustptrinl!Jtp, que submete 0 homem it treva psiquica, e mals forte que 0 Prinziphoffnung, que Ihe promete, no registro da fantasia,

48 Ernst Bloch, Das Prinzip Hojjnvmg (Frankfurt: Suhrkamp) vol. I, pags.45-46.

'.,.. 6.7.

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o advento de alvoradas ut6picas. Ao mesmo tempo, Freud pode admitir uma utopia mais modesta: 0 futuro e alean­gavel, na medida em que a agao passa converter a fantasia em realidade, e 0 pensamento racional possa transformar a fantasia em conhecimento. A fantasia pode contribuir para criar uma realidade nova, e para criar urn conhecimento novo, desde que nao transborde dos seus limites, e se limite a pro­por fins e a servir de forga motriz, saindo decena enquanto o verdadeiro pensamento prossegue sua dura tarefa, a ser­vigo do principio da realidade. Durante 0 calvario do conheci­mento, via crucis cujas etapas sao assinaladas pelas perdas de objeto e pelas ameagas de castragao, a fantasia nao pede aparecer como figurante, e tern que resignar-se ao papel de espectadora. .

A POLfTICA DA RAZAO

Nos tres registros, 0 processo do conhecimento, para Freud, e uma unidade indissociavel de momentos verdadeiros e de momentos faIsos. A percepgao externa esta voltada para a observagao da realidade, mas essa ohservagao pede I ser viciada pela intrusao de contelidos internos. A percepgao in­terna deve ter acesso a esses conteudos, mas nao a todos --' as represent~tl;Oes disfuncionais precjsam ser excluidas - e. mesmo essa exclusao pode fazer-se incorretamente, quando a observagao da realidade exterior se der de modo inexato. o pensamento deve coordenar percepc;;6es externas e internas para a produc;;ao de ideias veridicas, mas nao somente essas percepgoes sao freqiientemente deformadas, como se viu pela analise do registro perceptivo, como 0 trahalho associativo pede ser desviado dos seus verdadeiros fins, ainda que os dados da percepc;;ao sejam confiaveis, pela agiio perturba­dora dos processos primarios sobre os secundarios. Enfim, o imaginario distorce apercepgao e 0 pensamento, mas pode exprimir percepc;;6es e pensamentos genuinos, e abrir 0 ca­minho para 0 conhecimento novo.

Essa ambigiiidade e em parte explicavel se se leva em conta a fragilidade do Ego, instfulcia encarregada do pro­cesso do conhecimento. 0 IEgo se comporta, de fata, "como uma monarca constitucional, cuja sanc;;ao e necessaria para

que uma lei po.ssa entrar em vigor, mas que hesita e reflete muito, antes de vetar urn projeto do Parlamento".49 Esse monarca em grande parte nominal tern seus poderes limi­tados por tres grandes tiranos, que co:"determinam 0 que sera conhecido, e de que formal a realidade, 0 Superego e old. Sua capacidade cognitivpl e assim condicionada por sua maior ou menor aptidad em conciliar as exigencias muitas vezes contradit6rias desses tres despotas. "Em suas tentativas de arbitrar entre old e a realidade, 0 Ego e muitas vezes obrigado a camuflar as ordens Ics do Id com suas ~a­eionalizac;;6es Pes, ocultar os confUtos do Id com a realidade) fingir, com astueia diplomatica, ter levado em eonta a rea-\ lidade, mesma quando 0 Id se manteve rigido e incapaz de ceder. Por outro lado, e observado em cada urn dos seus movimentos por urn Superego estrito, que fixa padr5es de eomportamento, sem levar em conta as dificuldades do Ego em suas relac;;5es com 0 Id e com a realidade, e castigando-o, se suas exigencias nao sao obedecidas, com sentimentos de culpa e de inferioridade". 50

Inscrita nesse sistema de dependencias, a regulac;;ao cog­nitiva exercida pelo Ego e necessariamente precaria. E urn Ego somente em parte consciente que decide 0 que deve se tornar consciente; um Ego em grande parte irracional que resolve se e ou nao racional, do ponto de vista da sobrevi­vencia do individuo, transformar em a<;ao determinados im­pUlsos; e e urn Ego submetido a press5es internas mais OU menos perturbadoras que tern que exercer sua .func;;ao de explorac;;ao da realidade exterior, de estabelecer pelo pensa­mento, as conex6es apropriadas entre percepc;;5es e trac;;os mnemicos, e de gerir 0 imaginario de modo a tolera-lo, quando inofensivo, ou de reprimi-lo, transformando as fantasias conscientes e pre-conscientes em fantasias inconscientes. A ambivalencia do processo cognitivo estaria explicada. 0 Ego nem pode deixar de visar ao conhecimento - por que a isso e impelido pela realidade - nem atingir 0 conhecimento, 'na medida em que a regulamentac;;ao cognitiva tem que levar em conta, igualmente, os imperativos do Id, que quer submeter os processos cognitivos a forc;;a de SUCC;;ao dos pro­cessos primarios, e os imperativos do Superego, instancia pu­nitiva, "cultura pura da pulsao da morte", herdeira do Id,

49 FreUd, Das lch una das Es, op. cit., pag. 285. 50 Freud, Neue Folge .... op. cit., pag. 84.

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que impoe recalques desnecessarios, e sujeita consequente­mente a percep<:;ao interna a bloqueios superfluos. Quando o Ego consegue impor sua vontade ao Id e ao Superego, levando em c-onta primariamente as exig€mcias da realidade, esta sendo cognitivamente competente, mas essa competen­cia inclui a obriga<:;ao de suprimir certos impulsos internos, em nome da mesma realidade, e nesse caso 0 erro e funcio­nal. Quando nao 0 consegue, esta sendo incompetente, e nesse caso 0 erro e indesejado. Em qualquer caso, a ambi­valencia cognitiva parece ser 0 destino do homem. A tirania exercida pela realidade obriga 0 Ego a conhecer 0 que e necessario, e a desconhecer, ou meconnaUre, 0 que nao deve ser conhecido, mobilizando para isso, como seus auxiliares, o Id e 0 Superego, que de tiranos se transformam em cola­boradores. A tirania exercida par essas duas ultimas instan­eias for<:;a 0 Ego a voltar-se contra a realidade, levanda-a ao erra disfuncianal e transformando a realidade, de tirana, em vitima, ou escrava. Mas como, na ipratica, as tres instancias interagem, em qualquer ata cogn~'tivo concreto, em nenhum momento 0 sujeito do conhecimento esta livre da ambigili­dade, que inclui, em doses variaveis, tanto 0 erro a servi<:;o da realidade, como 0 erra contrario a realidade. Em qual­quer hipotese, a responsabilidade pela ambivalencia estaria , localizada no Ego, essa instancia infinitamente fragH, recern-· ehegada numa economia pulsional muito mais antiga, du­rante tanto tempo dominada pOl' processos primarios que 0

Ego tem agora a arrogancia de querer subjugar. Mas urn reexame da natureza dos tIles "tiranos" talvez

nos leve a redefinir 0 lugar e 0 estatuto da ambivalencia eognitiva, e ao mesmo tempo a relativizar a distin<:;ao sim­plista entre erro "funcional" e erro "disfuncional".

o Id parece ser a principal fonte da distorgao cognitiva, porque e nele que a hegemonia do principio do prazer e mais incontestada. Ele contribui para a distor<:;ao da percep<:;ao externa, infiltrando-se no Ego; da percep<:;ao interna, con­tribuindo para 0 recalque pela for<:;a atrativa exercida pelos investimentos lcs sobre as rep~6senta<:;6es conscientes e pre­conscientes e par associar se$ conteudos as forma<:;5es de compromisso gragas as quais a defesa torna incognosc;ivel uma parte da vida psiquica do sujeito; do pensamento, pela intrusao da sintaxe pUlsional na sintaxe dos processos se­eundarios; e do imaginaria cognitivo, ao eolaborar para re­calca-Io. Mas 0 que e' 0 1d, senao um deposito de represen­

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ta<:;5es censuradas pela realidade? E ela que fornece ao 1d todos os seus conteudos, e dela que ele depende para sua existencia e seu funcionamento. Se e assim, a "tirania" do Id nao e primaria: em seu trabalho de oculta<:;ao cognitiva, ele se subordina a realidade exterior, e e:x:erce urn. peder de­rivado.

o mesmo podemos dizer do Superego. El(;l contrlbui pfi,ra o processo de oculta<:;ao, na medida em que inteJ:1~e com a atividade explorat6ria do lEgo, levando-o a perceber 0 mundp exterior de acordo com exigencias narcisistas arcaicas, e e dele que 0 Ego recebe, em grande parte, as diretivas para fechar as comportas da consciencia para as excitag6es en­dogenas, limitando a percepgao interna. Ora, esse Superego tao autoritario, se deriva suas energias do Id, recebe seus contelidos normativos da moralidade externa. E pOl' iS80 que ele e 0 agente da tradi<:;ao, e 0 rel,ais gra<:;as ao qual a ideo... logia externa se interioriza, contrlbuindo para 0 recalque, pois e em nome desses valores introjetados que 0 Superego da instru<:;5es ao Ego para acionar a defesa. Tambem a "tirania" do Superego revela-se secundaria, e remete em ul­tima instancia a realidade exterior.

E para ela que nos conduzem todos os caminhos. A ver­dadeira fonte da ambivalencia esta na realidade externa: e ela que administra 0 Ego para funcionar de uma. forma am­bivalente. Essa administra<:;ao e incerta, porque 0 projeto anexionista pelo qual a realidade externa tenta colocara seu servigo as instancias psiquicas e muitas vezes frustrado pela natureza essencialmente antagonistica da rela<:;ao ex­terior-interi9r. Mas se os sinais pelos quais 0 Ego e induzido aoconhecimento e ao nao-conhecimento podem nao ser obe­decidos, e freqiientemente nao 0 sao, resta que eda realidade exterior, direta ou indiretamente, que partem esses sinais. E esse 0 paradoxa central da epistemologia freudiana. A rea­lidade quer 0 conhecimento, e nao quer 0 conhecimento. E dela que 0 Ego recebe instrug5es tanto para conhecer como para nao conhecer. Ate agora vimos a realidade externa principalmente em sua dimensao cognitiva, como 0 correlato objetivo do principio da realidade, ao qual obedece0 apa­relho psiquico para superar as deformagoes induzidas pelo principio do prazer. Vale a pena acentuar agora a sua se­gunda dimensao, pela qual ela maneja 0 Ego como agente do naa-conhecimento, mobilizando para issa a principio do prazer.

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II

Sabemos que a percepc;ao externa e falseada sempre que o !Ego, sob a pressao de impulsos incompreendidos, percebe a mundo, projetivamente, segundo exigencias internas, de carater pulsional, e nao segundo os imperativos do principia da realidade. Mas essa percepc;ao projetiva, pela qual 0 exterior passa a ser percebido segundo as .estruturas do interior, nao se origina necessariamente do interior. :E a que se torna evidente na deformac;ao da percepc;ao externa que se verifica Dum contexto de psicologia de massas. Sem duyida, e atraves da

'f· exteriorizac;ao de uma estrutura interna - os residuos do narcisismo infantil - que a individuo-massa, expropriado do seu Superego, percebe lideres e instituigoes, simbolos e valores culturais, visualizando-os, nao em si mesmos, mas na otica do desejo. Mas a dinamica da exteriorizagao e co­mandada pela realidade exterior. Sao processos sociais, cris­talizados por determinadas configuragoes historicas,. que poem em movimento a extrojegao narcisista. A "prova da reali­dade", pela qual 0 Ego deve explorar a mundo social, e posta fora de circuito sempre que esse mesmo mundo social mo­biliza 0 aparelho psiquico para que ele passe a perceber as estruturas externas segundo a logica dos processos primarios. o exterior programa 0 interior para que 0 exterior se torne invisivel: ele organiza sua propria invisibilidade, impondo uma forma de visao que nao e adequada para a percepgao de suas estruturas reais.

A influencia da realidade exterior e mais clara ainda na deformac;ao da percepc;ao interna. Pais Freud nao hesita em atribuir ao mundo exterior, mediata au imediatamente, a res­ponsabilidade principal na deflagrac;ao da defesa, e especial­mente do recalque, forma por excelencia pela qual 0 psi­quismo dissimula de si mesmo suas proprias operag6es. Se 0

mundo ideacional do sujeito (Vorstellungs'welt) e parcial­mente inacessivel a consciencia, e porque 0 Ego, obedecendo a sinais do mundo exterior, decreta a invisibilidade de certos conteudos psiquicos. E em obediencia aos sinais de anglistia emanados do mundo exterior, diretamente (Realangst) ou indiretamente, pela mediagao do Superego (p.ewissensangst) que 0 Ego recalca as representac;6es associadas a certos mo­vimentos pUlsionais, presentes e passados, \suprimindo im­pulsos atuais e inibindo a recordac;ao de antigas viv,encias.

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\

Em condic;6es normais, essa distorgao e realista: os sinais de anglistia sao emitidos em fungao de uma realidade externa corretamente observada. Vimos que nem sempre e esse 0

caso: a percepgao externa e deformada, e a recalque e im­pasto, segundo criterios nao-realistas, em func;ao de riscos erronamente identificados. Ate agora supus que esse erro fosse contingente, e nao desejado pela realidade. Mas se e verdade, como vimos no topico anterior, que ~ deformagao da percepc;ao pade ser concebida como um! ato ate certo ponto intencional, induzido pela propria realidade, segue-se que a censura interna correspondente nao e obrigatoriamente aleatoria. Ela seria uma consequencia desse ato intencional, e nesse caso seria deseja4a pela realidade. Num caso, 0 re­calque se efetuaria a partir de riscos externos reais,. e no outro, a partir de riscosexternos irreais, mas os resultados seriam os mesmos. 0 Ego nao teria falhado em nenhum dos dois casos, e teria cumprido competentemente a missao que lhe foi confiada pela realidade. Nao e indispensavel que seja assim, porque 0 controle da realidade sobre a vida pulsional esta longe de ser completo, e as duas distorc;oes cruzadas ­a da percepc;ao externa, e a censura interna resultante ­podem eifetivamente ter ocorrido contrariamente aos desejos da realidade. Mas podemos conceber situac;6es em que elas ocorram segundo as interesses da realidade. E 0 que se da quando 0 Ego observa as instituic;oes sociais segundo antigos prototipos de submissao a autoridade paterna, vendo 0 risco na simples desobediencia a essas instituic;6es, e poe em mo­vimento a defesa em func;ao desse risco, suprimindo os im­pulsos associados a revolta. A percepc;ao externa nao foi fi­dedigna, porque nao ocorreu em func;ao de criterios atuais; e sim de antigas situac;6es de risco, hoje superadas, e conse­quentemente foi acionada uma censura individualmente des­necessaria. Mas a que e desnecessario do ponto de vista do individuo, pade ser funcional do ponto de vista da realidade, como transparece no exemplo citado. Se a realidade tem in­teresse na censura, pade promove-Ia pela deformac;ao da per~ cepc;ao externa, sempre que nao conseguir promove-la pelas vias normais - a observagao correta do mundo exterior. Pois essa observac;aopoderia, ao contrario, levar 0 Ego a supor que a risco estaria, nao na desobediencia as instancias sociais, mas na submissao a elas.

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Tambem no pensamento a interven9ao da realidade pode .ser decisiva. Sabemos que a objetividade do pensamento pode ser destruida quando as regras de funcionamento dos pro­cessos primarios se infiltram na esfera dos processos secun­darios, subordinando os processos intelectuais a sintaxe pUl­sional, baseado no deslocamento e na condensa9ao. 0 papel da realidade exterior, nesse caso, seria induzir 0 Ego a abrir uma via de acesso a essa gramatica privada, para com isso blo­quear a produgao de ideias veridicas. Se levassemos a serio a distingao do jovem Freud entre ° pensamento teoriGo, cuja vocagao e a reflexao totalizante, e 0 pensamento :bratico, cUjo objetivo e a a9ao imediata, poderiamos conceber outro tipo de intervengao da realidade exterior: a que leva 0 Ego a optar pelo pensamento prlitico, quando a situa~a.o exigiria o pensamento teorico, ou, 0 que vale 0 mesma, a 8uspender o trabalho do pensamento, sempre que 0 fim imediato fosse atingido, interrompendo 0 processo de abstrac;ao que poderia levar a emergencia de ideias problematizadoras. (,

Enfim, a realidade exterior intervem na genese, no\{un­cionamenta e no controle do imaginario. Na genese, porque a fantasia e a correlato intra-posiquico do sofrimento imposto pela mundo exterior: 0 individuo compensa-se, pelo imagi­nario, da renuncia real, imposta ao desejo, em suas varias modalidades, pelas leis e institui90es. No funcionamento, porque 0 imaginario, produta da renuncia, e mobilizado para estabilizar a renlincia, ou para coadjuvar a imposi9ao de· novas renuncias. E:le e fruto da defesa, e e, secundariamente, veiculo da defesa. Nesse papel, a fantasia colabora na de­forma9ao da percep9ao e do pensamento. Enfim, no con­trole, porque a realidade externa, tendo gerado 0 imaginario, e levando-o a funcionar como agente no processo de defesa, reprime-o, quando ele se torna disfuncional. E 0 que ocorre quando a fantasia, ultrapassando urn certo limiar de in­tensidade, impulsiona 0 pensamento em dire9ao a tomada de consciencia de conteudos esquecidos, e a uma reflexao prospectiva capaz de compreender a realidade virtual encrus­tada na realidade existente. 0 Ego, que sob os impulsos da realidade externa contribui para gerar a fantasia e para utiliza-la como coadjuvante da defesa, recalca-a, agora, sob a influencia dessa mesma realidade, que num primeiro mo­menta tornou necessaria a fantasia, como consolo pela pri­vagao, e num segundo momenta priva-o desse consolo, re­calcando a fantasia.

III

A expressao "realidade exterior" foi ate aqui usada de forma tao inespecifica- que ela acabou assumindo as caracte­risticas de· uma divindade negativa: urn "dieu trompeur" malevolente, cUja preocupagao obsessiva e a de enganar os homens e leva-los a iludir-se sobre si mesmos e sabre a muildo.

E tempo de dar a essa expressao urn conteudo menos demoniaco: ela designa, simplesmente, 0 espa90 social, em sua dimensao politica, economica e cultural. A ilusao e a auto-ilusao nao resultam, em principia, de nenhuma perver­sidade inerente ao espago social, e sim das caracteristicas de uma especie humana dotada, por urn lado, de uma certa es­

.trutura pulsional, e par outro, condenada a satisfaZJe'-la num contexto que impoe limitagoes ao desejo, em todas as suas modalidades. A insta-ncia economica e regida Pat: Ananke, pela necessidade, pela escassez, que exige que parteaas ener­gias pulsionais sejam canalizadas para a trabalho; a instan­cia estatal incorpora as leis e instituigOes destinadas a impor, pela violencia legitima, os sacrificios pUlsionais necessarios; e a instancia cultural contem as representagoes coletivas, como a religiao e as doutrinas politicas, que justificam esses sacrificios na consciencia dos protagonistas, e permitem a manuten9ao, pel0 consenso, das relagoes sociais.

A preservagao da ordem social, assim concebida, exige ao mesmo tempo, processos cognitivos ajustados a realidade, e uma certa censura sobre esses processos. Dai a ambiva­H~ncia do aparelho cognitivo: ele precisa ser gerido de tal forma que possa produzir as percepgoes e as ideias indispen­saveis para que os individuos desempenhem competentemente os seus papejs sociais, em sen proprio beneficia e em bene­ficia coletivo, e censure as ideias e percepgoes contrarias a esse objetivo. A mesma instancia exerce as duas ~fun90es:

atendendo a esses dois imperativos da realidade externa, a .Ego e ao mesmo tempo a sede do conhecimento, e a sede dos mecanismos defensivos, que obscurecem au suprimem a conhecimento.

Em condigoes ideais,a renuncia a gratificagao anti-social poderia realizar-se pelo julgamento racional. Chegados a ma­turidade psiquica, os homens poderiam decidir, a luz do es­tagio de desenvolvimento das forgas produtivas, que sacrHf­cios continuam sendo necessarios, e em que medida seria possivel ampliar a faixa de gratifica9ao socialmente possivel.

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A vida social nao exigiria, necessariamente, a falsifica~ao

da consciencia. Mas nas condi~5es que tem prevalecido historicamente,

esse desid,eratum ainda esta longinqiio. Os homens precisam ser protegidos de si mesmns, e nisto consiste, essencialmente, a defesa, mecanismo infantil, correspondente ao infantilismo do psiquismo humano, e que funciona sohre 0 modelo da fuga: confrontado com impulsos que poderiam, se atendidos, expor 0 individuo e a sociedade a situa~6es de risco, 0 Ego foge do desprazer antecipado, e aciona dispositivos inibidores que tornam invisiveis as representa~6es associadas aos im­pulsos vetados, e bloqueiam 0 trabalho intelectual que po­deria resultar em esquemas cognitivos justificadores da a~ao disfuncional. Eissa aute-prote~ao, que coincide com a prote­~ao da ordem social, assume assim a forma de uma falsifi­ca~ao da consciencia, tanto ao nivel da percep~ao como do pensamento. 0 sujeito deixa de perceber uma parte da reali­dade exterior e uma parte do seu universo psiquico, e esta sujeito ao Denkverbot, a proibi~ao de pensar.

A repressao (externa) e a defesa (interna) sao assim correlativas. Cada uma das tres instancias contem mOfllentos repressivos, que ajudam a impar 0 comportamento· social­mente desejado: a iustancia economica suhmete 0 individllO a riscos de sangao material, a iustancia estatal a riscos de san~ao violenta, a instancia ideologica a riscos de san~ao moraL Ao mesmo tempo, 0 espago social, em conjunto e em seus suhsistemas, contribui para os processes defensivos: fuga diante da percepgao e diante do pensamento. 0 risco de sangao material e 0 que provem da violencia de :&stado . provocam a ReaZangst, assim como 0 risco moral provoca a Gewissen8!angst, que pOem em movimento os processos de­fensivos internes. A repressao condiciona as estruturas da agao, e a defesa as estruturas cognitivas. 0 pre~o da civili­zagao - ate que despante no horizonte a utopia do sacri­ficio consentido - e uma limita~ao da liberdade, no plano da a~ao, e uma limitac;;ao da consciencia, no plano cognitivo.

Se a analise de Freud parasse aqui, nao teriamos pOl' que objetar a esse estado de coisas. A faLsifica<;ao da cons·· ciencia seria racional: um mal· necessario, considerando a realidade da escassez, e as puls6es agressivas e eroticas, que desencadeadas tornariam impossivel a vida social. Enquanto durasse seu infantilismo, a humanidade nao teria outra al­ternativa senao aceitar uma disciplina cognitiva essencial­mente· iIllfantil.

Mas Freud, esse arqui-conservador, e tamMm urn in­flexivel realista. A "realidade externa", para ele, esta longe de ser 0 reino da justiga e da igualdade. Ela e aquela reali­dade social "cujos regulamentos, leis e institui<;6es. .. nao somente visamefetuar uma certa distribuigao da riqueza, mas a manter essa distribuigaQ". 51 E uma realidade em que as priva<;5es nao se repartem igualmente por todas as classes sociais: "0 primeiro passe e distinguir entre as privag6es que afetam todos os individuos e aquelas que somente afetam grupos, classes e individuos isolados".52 E uma realidade em que "as pessoas oprimidas desenvelvem uma intensa hosti­lidade a uma civiliza<;ao cuja exisbencia eles possibilitam gragas a seu trabalho, mas em cuja riqueza tem uma par­ticipagao reduzida ... Dma civiliza<;ao que deixa insatisfeita uma proporgao tao elevada dos seus participantes, nem tem perspectivas de dural', nem merece durar".53 E e, enfim, uma realidade que precisa ser transformada materialmente, e nao s6 eticamente: "uma mudan<;a nas relagoes de pro­priedade dos homens seria mais util que quaisquer man­damentes eticos".54 A realidade externa que 0 Ego leva em conta, ou a qual obedece, ao acionar os mecanismos de con­trole cognitivo, nao e assim uma categoria abstrata, mas algo de perfeitamente diferenciade. Ela exige uma dose de sacrificio legitimo, necessario a toda ordem social, e uma dose de sacrWcio ilegitimo, impasto por uma ordem que "nao somente visa efetuar uma certa distribuigao da riqueza, mas a manter essa distribuigao".

Nao precisamos, assim, recorrer a Marcuse para cons­truir 0 conceito de sobre-recalque. 55 Freud diz da forma mais explicita que alem do recalque generico, indispensavel a qualquer sociedade, existe um recalque adicional, imposto para assegurar a sobrevivencia de urn sistema social ba­seado no poder ilegithno.

Se todo recalque, como vimos, e tamMm uma distorgao cognitiva, segue-se que 0 conceito de sobre-recalque tem um complemento necessario, que e 0 de sobre-distorgao: a fal­s~ficagao da consciencia nao justificada pelo estagio de de­senvolvimento material ja alcangado. 0 individuo e expro­

51 Freud, D1!e Zuikumjt einer Illusion, OW, vol. XIV, pag. 327. 52 Freud, ib., pag. 331. 53 Freud, ib., pag. 333. 54 FreUd, Das Unbehagen in der Kultur, OW, vol, XIV, pag. 504. 55 Herbert Marcuse, Eros and Civilization, (B.::>ston: Beacon Press, 1955).

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priado de parte de sua vida psiquica, porque a percepgao integral seria perigosa, nao para a sociedade in abstracto, mas para os grupos privilegiados. E 0 Denkv1erbot imposto ao pensamento e ao imaginario cognitivo nao se destina a proteger a ordem social em si, mas individuos e grupos que derivam sua dominac;ao da impossibilidade de outros grupos de pensarem sua situagao de forma totalizante.

Be essa deformagao excedente deriva, nao das exigencias genericas do homem socializado, mas das exigencias espe­cificas de uma certa forma de organizar as relagoes huma­nas, segue-se que ela e em principio superavel. Mas iss9 nos confronta com 0 paradoxa de que a autonomia cognitiva de­pende de uma transformag8io social cuj a necessidade sopode ser compreendida por quem ja alcangou essa autonomia. E a sobre-distorgao e imposta precisamente para impedir a percepgao dessa necessidade. E a aporia classica dos te6ricos daescola de Frankfurt: na sQciedade atual, a faLsa consci­encia se generalizou, e tendo se generalizado, apagou ate mesmo a consciencia de que existe algo contra que rebelar­se. Mas essa tese so e admissivel se aceitarmos, como Adorno,56 que 0 aparelho psiquico ja foi integralmente ane­xado pela sociedade global, que agora prescinde do jogo das instancias internas para assegurar a integragao social, e que decide, sem a mediagao dessas instancias, 0 que pode ou nao ser conhecido. Mas sabemos que numa perspectiva freudiana a tese do confisco pelo todo da psicologia indi­vidual e insustentavel. Ela e 0 simples reflexo invertido, como pesadelo, de uma utopia funcionalista: 0 ajustamento per­rfeito da realidade interna a externa. Admiti-la, seria privar de sua dialetica 0 pensamento de Freud, que nao se baseia na harmonia, e sim na contradigao, e sabe que a vida puI­sional nao e domesticavel, por mais refinados que sejam os mecanismos do consenso unidimensional. Dizer que a realidade externa comanda 0 processo de distorgao cognitiva nao significa dizer que esse processo e invariavelmente bem sucedido, do mesmo modo que dizer que as instancias in­ternas sao mobilizadas pelo mundo exterior nao significa dizer que elas perderam toda autonomia. Hoje como on­tem, a realidade exterior tenta ditar sua vontade ao Ego, para que ele se distancie do principio do prazer na medida em que 0 conhecimento e necessario, e a elese submeta

56 Adorno e Horkheimer, DialeJctik der Aujkliirung (Frankfurt: Fischer Verlag, 1973).

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quando 0 conhecimento e indesejavel, mas essa tentativa pode fracassar nas duas diregoes. Vimos que 0 Ego pode de­cretar uma censura superflua do ponto de vista individual, ainda que ela possa ser :util para a preservac;ao da sociedade hierarquica, mas podemos admitir tambem um erro desne­cessario do proprio ponto de vista dessa sociedade: a Ego pode tel' sido instruido a obter um conhecimento genuino, compativel com 0 principio da realidade existente, e falhar nessa tarefa, por uma interferencia (nao desejada) do prin­cipio do prazer. Inversamente, 0 Ego pode chegar ao conhe­cimento, apesar dos sinais em contrario emitidos pela rea­lidade exterior, dependendo da forga relativa das instancias em jogo. POl' ex~mplo, 0 Superego pode censurar 0 desejo, pode ser contrario ao modelo paterno introjetado, mas pode tambem, pela mesma razao, censurar 0 social, admitindo 0

conhecimento que este estava tentando bloquear. A realidade externa pode pretender a supressao completa da represen­tagao perigosa, e no entanto ela renasce, em conseqiiencia de um recalque imperfeito, no registro da fantasia, abrindo o caminho para a anamnesis, e servindo de forc;a motriz para o pensamento prospectivo.

E pol' issa que Freud. pode dizer, sem contradigao, que a vida social depende da regulamentagao pulsional pela defesa, e Mirmar que "0 tempo provavelmente ja amadureceu para que possamos ... substituir os efeitos do recalque pelos resultados da operagao racional da inteligencia".57 A agM da defesa e necessaria, porque sem ela uma ordem social baseada na dominac;ao ilegitima nao poderia sobreviver. E a agao da inteligiencia e possivel, porque estao dadas as con­dig6es objetivas - 0 progresso material ja alcangado pela humanidade - e as sUbjetivas - apesar de todos os esforgos de gestao da consciencia pelos aparelhos sociais, nao foi eliminado 0 espac;o para 0 pensamento critico.

A frase citada sugere que Freud ja considera possivel substituir inteimmente a defesa pelo julgamento, como via para 0 controle pulsional. Talvez essa avaliagao seja dema­silidamente otimista: a hist6ria recente nao parece encorajar uma fe excessiva no poder da razao para controlar os im­pulsos destrutivos. Mas e possivel, pelo menos, reduzir ao maximo a ambivalencia que at~ agora tem caracterizado ° processocognitivo, pela ampliac;ao da faixa ocupada pelo conhecimento, e redugao correlativa da faixa ocupada pelo

57 Freud, Die ZUkunjt ... , op. cit., pag. 368.

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nao-conhecimento. Basta, para isso, visar a elimina~ao da sobre-defesa, e da sobre-distor~ao correspondente: a opaci­dade superflua, a cegueira excedente, que condena as ope­ra~6es da consciencia a uma escuridao nao legitimada pelo es~agio do desenvolvimento da espec!e. Essa sobre-distor~aG,

que nao e exigida pela vida civilizada como tal, esimpor uma forma especifica de civiliza~ao, pode ser abolida, pelas transforma~6es externas correspondentes, antes mesmo que a humanidade como um tQdo aceda ao tel08 da autonomia completa, que tornaria desnecessarias, em geral, as defor­ma~5es da consciencia. 0 Ego autonomo, nas condi~6es atuais, e aquele capaz de reconhecer 0 caminho que ainda resta a percorrer ate que a humanidade em seu conjunto atinja essa autonomia; mas e tambem aquele capaz de iden­tificar as heteronomias superfluas, e de formular uma po­litica da raz,ao passivel, contra a politica, formulada pelo poder, da irracionalidade programada.

IV

A epistemologia freudiana desemboca na sociologia. E o faz, evitando todo sociologismo. Eia mergulha no maia fundo da vida psiquica, pando entre parenteses 0 social, e o reencontra no fim do percurso. Tentei reproduzir esse itinerario. Em nenhum momento procurei sociologizar a epistemologia de Freud: pois ela ja e sociol6gica em sua essencia. Mas essa essencia s6 pode ser alcan.~ada par quem tem a disciplina necessaria para prosseguir em seu caminho interno, numa investiga~ao rigorosamente imanente, ate chegar aos confins do seu objeto, ponto extremo em que a epistemologia revela 0 seu segredo, que nao e outro que 0

de sua articula~ao com 0 social.

o PROCESSO DA FRAGMENTAf;A10

Donaldo Schuler

1. CAMPO DE OBSERVAQAO

A fal ta de estilo caracteriza a arte do seculo XX na opiniao de Ortega y Gasset. De fato, as dire~5es divergentes dos movimentos p6s-romanticos contrastam com a unidade­alcan~ada no Renascimento, no Barroco e no Neoclassicismo. Be padr6es rigorosos tolhiam a liberdade inventiva em outros tempos, op~6es amplas se oferecem agora. 1

Entretanto, a liberdade nao desarmou 0 estilo. Hugo Friedrich mostrou que as polaridades cerebralismo e sonho, rigor e dissolu~ao, 8em romperem a unidade estilistica, indi­cam os limites da produ~ao artistica. 2

Os avan~os desta centuria nao foram notaveis. Apesar das freqtientes insubordina~6es, as modelos da modernidade permanecem os do seculo XIX: Poe, Baudelaire, Flaubert, Mallarme,Dostoiewski, Machado de Assis. Este fato nao di­minui 0 vigor das cria~5es dos anos novecentos. Te6ricos e leitores bem informados convergem na admira~ao de Pessoa, Kafka, Proust, Joyce, Eliot, Pound, Lorca, Drummond. Nao se percebe neles, porem, 0 abismo que se abriu entre a arte do seculo XVIII e a arte do seculo XIX. Continuamos a nos mover na unidade dos illtimos 150 anas. A argumenta~ao de um movimento de vanguarda como 0 concretismo brasi­

1

2

PRAZ, Mario. Literatura FRIEDRICH, Hugo. Die s1956, p. 107.

e tru

artes visuais. S. paulo, Cultrix, 1982, p. -165. ktur der MatXerv,en Lrurik. Hamburg, Rowohlt,

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TEMPO ,BRASllEIRO 82

JuIho-Setelllbro de 1985

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MODOS DE· INTERPRETAfAO

Neste numero, a interpre· taqao, tomada em c'hiversos dngulos, desd;obra-se em al­guns dos seus muitos modos possiveis: lnicialment,e, apa­reoe pensada como nuoleo vi­tal, fen6meno de muUiplas i1!"­plicaq6es. Mais adiante, con­figura-se no exercicio coUdia­no de vivencia da condigao presente.

Em DiUhey, interpretar, Bamo "processo hermeneutico" que desvenda as manijesta­{Joes da vida, ao permitir a reconstituigao da experiencia do outro, possibilita 0 conhe­

. cimento da hist6ria para quem a vive. Na epistemologia jreu­diana, se a ambivalencia cog­nitriva parece ser 0 destino do homem,a perspectiva do "ego aut6nomo, nas condiq6es atuais", aponta tambem para. o caminho do reoonhecimento 40 outro, visto como "0 espa­go social, em sua dimensao poUtica, ,econ6mirJa Ie 'cul­tural".

As tentativas de compreen­sao desse espaqo concretizam­se, aqui, pela abordagem de quest6es como 0 processo ria montagem, na criaqao artis­tiea da modernidade' e 0 con­ceita de "literatura reces'siva", no contexto das sociedades de massa.

Finalmente, se 1tnterpretar e recriar u7na nova dimensao do real, pela assimilaqao da substdncia do outro, nooa me­lhor que 0 debate sobre as vias poeticas de Clarice Lispector

. e Ma1\io de Andrade para enraizar o.~orizonte do pro­blema.