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Como Aprendi o Português "Considérer et dêcrire Ia façon dont nous apprenou une /angue c'est un peu conznze obseraer et décire /e déue- /oppenzent et les suitet d'un senlimení arnoureux." t Às v.zes me perguntam como aprendi o português. Respon- do geralmente que não o aprendi e provavelmente nunca hei de aprendê-lo. Mas a pergunta me evoca o meu primeiro encontro com o idioma em que, por circunstâncias de todo imprevisíveis, passei a exprimir-me com naturalidade e atê a pensar. Naquela época eu ensinava latim e italiano num ginásio de Budapeste. Uma vez por semana freqüentava um café onde se reuniam meus amigos lingüistas. Um deles estudava o sogdiano, outro preparava um ensaio sobre os pronomes voguis, um tercei- ro acabara de publicar dois" grossos volumes de contos tcheremis- sos. Só interessados em idiomas exóticos, tinham verdadeira pai- xão pelas línguas difíceis e desprezavam minhas modestas excur- sões no domínio neolatino. - Mas, afrnal, você sabe espanhol? - perguntei certo dia a um deles, perito em lingüística fino-úgrica. - Ora essa! ----- respondeu-me. - Mas sabe mesmo? - insisti. - Ainda não experimentei - replicou altivo, como se se tratasse de andar a cavalo ou de bicicleta. Calei-me, humilhado. Realmente o espanhol não se com- paravacom nenhum daqueles dialetos fabulosos. De mais a mais, erafalado por um número excessivo de pessoas, e os meus ami- gos apreciavam idiomas extintos ou, quando muito, falados por meia dízia de pescadores analfabetos. Assim, nem tive coragem de relatar-lhes que principiara a aprender o português - tanto mais que essa língua me parecia, 1 Valery Larbaud, Oeuures. Bibliothèque de la Pléiade, Paris,1957, píg.915.

Texto 1 Paulo Rónai - Como Aprendi o Português

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Como Aprendi o Português

"Considérer et dêcrire Ia façon dont nous apprenouune /angue c'est un peu conznze obseraer et décire /e déue-/oppenzent et les suitet d'un senlimení arnoureux." t

Às v.zes me perguntam como aprendi o português. Respon-do geralmente que não o aprendi e provavelmente nunca hei deaprendê-lo. Mas a pergunta me evoca o meu primeiro encontrocom o idioma em que, por circunstâncias de todo imprevisíveis,passei a exprimir-me com naturalidade e atê a pensar.

Naquela época eu ensinava latim e italiano num ginásio deBudapeste. Uma vez por semana freqüentava um café onde sereuniam meus amigos lingüistas. Um deles estudava o sogdiano,outro preparava um ensaio sobre os pronomes voguis, um tercei-ro acabara de publicar dois" grossos volumes de contos tcheremis-sos. Só interessados em idiomas exóticos, tinham verdadeira pai-xão pelas línguas difíceis e desprezavam minhas modestas excur-sões no domínio neolatino.

- Mas, afrnal, você sabe espanhol? - perguntei certo diaa um deles, perito em lingüística fino-úgrica.

- Ora essa! ----- respondeu-me.

- Mas sabe mesmo? - insisti.

- Ainda não experimentei - replicou altivo, como se setratasse de andar a cavalo ou de bicicleta.

Calei-me, humilhado. Realmente o espanhol não se com-paravacom nenhum daqueles dialetos fabulosos. De mais a mais,erafalado por um número excessivo de pessoas, e os meus ami-gos só apreciavam idiomas extintos ou, quando muito, faladospor meia dízia de pescadores analfabetos.

Assim, nem tive coragem de relatar-lhes que principiara aaprender o português - tanto mais que essa língua me parecia,

1 Valery Larbaud, Oeuures. Bibliothèque de la Pléiade, Paris,1957, píg.915.

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de início, fácil demais: um desses começos de namoro em qu'erudo corre bem e nadafaz prever as auapalhações subseqüentes.

Lembro-me ainda do dia em que o primeiro livro portuguêsme veio ter às mãos. Foi a antologiazinhaAs Cem Me/hores Poe-sias Líicas da Língua Portuguesa, de Carolina Michaëlis. Possuí-ra outras antologias da mesma coleção: a francesa, a italiana, aespanhola. Inferi que devia haver uma portuguesa também emandei-a vir da Livraúa Perche, de Paris.

O livrinho chegou-me às nove da manhã num dia das fériasde Natal. As dez, já eu tinha descoberto o único dicionário por-tuguês existente nas livrarias de Budapeste , o de Luísa Ey, comtradução alemã. Âtirei-me então às poesias com sôfrega curiosi-dade. As três da tarde, o soneto "Sonho Oriental", de Antero,estava tnduzido em versos húngaros; às cinco, aceito por umarevista, que o publicaria pouco depois.

De todos os escritores húngaros que eu conhecia, DesidórioKosztolányi era o único que se aventurara a abordar o estudo doportuguês. Certavez falou-me nesta língua, que lhe parecia ale-gre e doce como um idioma de passarinhos. A mim, sob seu aspec-to escrito, dava-me antes a impressão de um Ìatim falado por criançasou velhos, de qualquer maneira gente que não tivesse dentes. Seos tivesse , como haveria perdido tantas consoantes? E olhava es-pantado parapalavras como /ua, dor, pessoa, ueìa, procutando apa-nhar o que nelas restâva das palavras latinas, cheias e sonoras.

F.ra aliâs justamente a pronúncia que me causava algum medo.As nasais, tão numerosas, arrepiavam-me, tanto mais que a

gramãtica, arcan'1ada não sei onde, as cercava do maior mistério.E impossível, diziam Gaspey, Otto e Sauer, explicar a pronúnciade tais sons; a única maneira de aprendê-la era pedir a um natu-ral do.país que os prohunciasse grande número de vezes. Mascomo ia eu ananjar em Budapeste um natural de Portugal? Eentrei a me ditar sobre enigmas fonéticos , como , p . ex. , os diver-sos valores do x, que em húngaro nem existe e mesmo nas outraslínguas não passa de uma letrinha à toa, ao passo que em portu-guês se encarnava de quatro maneiras diferentes.

Lembro-me ainda de algumas reações minhas ante os fenô-menos do novo idioma. Foi com certa impaciência que acolhi ilo-gismos que ela me oferecia, totalmente esquecido dos que engo-

lia sem protestos, a cada instante, na minha própria língua. Nãome conformava, em particuÌar, com o gênero feminino dapalavracrìança. Nem queria admitir que nomes tão francese s como clta-pêu oupa/e/ó pudessem ser incorpoÍados ao português sem maisnem menos. Mas reconhecia com alvoroço palavras cuidadosamenteguardadas da velha estirpe latina e que outros idiomas românicostinham malbaratado: /ar e ônus vinham familiares, embelezadaspela longa tradição. Vozes em que reencontrava vestígios da for-mação latina, como bebedouro e nascedouro, e mesmo /torrendoe n efan do, sorriam-me. Os vocábulos de origem ãrabe se apresen-tavam solenes, muito mais presos à origem do que realmente são;parecia-me até impossível que uma/faìate cortasse paletós e calçaspelo modelo inglês, em vez de só fazer a/bornozes.

Não so'mente o vocabulário: fenômenos sintáticos tambémme provocaram reações sentimentais. Â descoberta do infinitivopessoal foi uma surpresa e abalou-me bastante o orgulho patió-tico, pois julgava-o riqueza exclusiva do húngaro. Afeiçoei-melogo às formas mesoclíticas dos verbos: falar-te-eì, /embrar-nos-íanzos apresentavam-me como que em corte anatômico palavrasjáfureparavelmente fundidas no francês ou no italiano, e faziamsupor dotes de análise e síntese em todos os que as empregavam.Admirei também a sâbia economia que se manifestava em ex-pressões compostas de dois advérbios, como denzorada e pacìen-tem.ente, só imagináveis numa língua que teimasse em não seafastar de suas raízes etimológicas.

Aos poucos, sem ainda saber ler em voz alta, ia adivinhan-do no português uma melodia nova e diferente, e continuavafamìliarizando-me com o volumezinho das cem poesias. Tradu-zi "Os Cinco Sentidos", de Almeida Garrett, a romança da "NauCatrineta", e um punhado de quadras, das quais a começadapor "O anel que tu me deste" ainda hoje me pârece um milagrede simplieid ade patêtica.

O problema consistia em arranjar outros livros. De Estras-burgo consegui um exemplar de Or Lusíadas, na Biblioteca Ro-mânica. Graças a uma boa tradução húngara e a reminiscênciasde Virgílio e de Tasso, pude lê'los scm grande dificuldade. Masainda não tinha conseguido um texto contemporâneo, um do-cumento de português vivo.

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Fìoi quando um dos livreiros, alertado por mim, desensebouum volume roto e sujo, de um autor português moderno - SamuelRibeiro, se bem me lembro. Aí a coisa ficou ruim, pois logo na pri-meira págin^ apa;ÍeceÍaÍn vinte palavras não registradas por LuísaEy. Era uma história rústica, provavelmente meio regional, e o autorparecia divertir-se em chamar os bichos e as plantas pelos seus lin-dos mas incompreensíveis nomes alentejanos ou minhotos. Âlguém.ao saber do meu embaraço, me apresenrou a um funcionário dõ Con-sulado do Brasil a quem mostrei apâ.ginarebelde. Examinou-a comatenção e declarou-me que ou aquilo não era português, ou enrãono Brasil se falava out ralíngua. Em compensação, pronunciou paramim várias nasais, que procurei imitar sem muito êxito.

Deixei de lado o livro de Samuel Ribeiro e pus-me a ler poe-tas brasileiros.

_Meu primeiro livro brasileiro foi uma Antologìa de poeïasP_aulistas, ananjada por intermédio de uma livrariã húngara deSão Paulo, cu.io endereço obtivera por acaso. Lembro-mé aindadesse volumezinho, de apresentação péssima, muito mal organi-zado (e que depois nunca mais consegui encontrar aqui no Bra-sil). Continha os reffaros horrorosos de trinta poeras de Sao pau-lo _e uma poesia de cada um deles, geralmente um soneto. Asdificuidades começavam pelo título, pois o lï/òrrerbuch de LuísaEy, naturaÌmenre, não continha a palavra paulista.

Se não cheguei a enrender a maioúa dos poemas, adivinheio sentido de alguns e acabei traduzindo um pó.meto de CorreiaJúnior, que publiquei numa revisra. Ao reler a minha versão, al-guns anos mais tarde , jâ aqui no BrasiÌ, descobri humilhado umenorme contra-senso. O poeta falava da rede na qual descansavaa aguatdar os sonhos; pois eu, que nuncâ tinha viìto semeÌhantegbjeto, julguei tÍataÍ-se de uma imagem poética e pus no rexrohúngaro "a rede dos sonhos tecida pelaìmagin^çào" .

Em seguida "adivinhei" e verti mais alguns poemas do li-vro. Salvo uma única exceção, eram todos, .o-o -ãiu tarde veri-fiquei com espanro, de aurores que no Rio deJaneiro ninguémconhecia. Um acaso fez cair uma dessas tradufões nas mããs doentão cônsul do Brasil em Budapesre, que me ihamou, me deuum volume de Bilac, outro de Vicente de Carvalho e três núme-ros antigos do Coneìo da ManhA,

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A este jornal mandei, com breve carta, um recorte da "pri-meira poesia brasileira venida para o húngaro". Nunca recebiresposta a essa carta, mas um dia, com grande surpfesa minha,chegou-me um envelope voÌumoso coberto de selos exóticos echeio dos poemas, ainda inéditos, de um jovem poera carioca,o qual, depois de ter lido no Correìo um tópico a respeito deminha esquisita mania, me julgara a pessoa mais idônea para emi-tir a ptimeira opinião aceÍca de suas composições clandestinas.

Essa mensagem foi seguida de outras, escritas por outros leito-res do jornal, todos poetas. Daí a pouco recebia regularment e fanacorrespondência do Brasil: cartas com versos datilografrados ou re-cortados de jornais, revistas, livros. Estes me chegavam sem nenhumsistema, mandados por algumas repartições, por amigos e desco-nhecidos. Havia entre eles uns valiosos, outros reguÌares e algunsfracos. Mas faltava-me o fìo condutor para me orientar naquela muÌ-tidão de nomes novos e estabelecer uma escala certa de valores.

De ceftos poetas, tradicionalistas na expressão e na forma,não sabia se eram de 1810 ou de hoje. Ao mesmo rempo, roma-va por originalíssimos alguns poeras de quinze anos (de quemrecebia os inéditos), por lhes desconhecer os modelos. Assim,quando afinal obtive um volume deJorge de Lima, a obra destegrande poeta não me deu mais a surpresa feliz de uma descober-ta, pois já conhecera vârios de seus discípulos.

Ao lado dessas incertezas, havia as dalíngua, pois ainda con-tinuava com o dicionariozinho da sra. Ey, e um português-francês,não muito melhor, de Simões da Fonseca, ambos feitos na Euro-pa, e que por isso ignoravam totalmente os brasileirismos. Aí ti-nha de recorref de novo ao sistema arriscado da conjetura.

Nem todas eram fáceis. No "Acalanto do Seringueiro", deMário de Ândrade , o uìrapuru só podia ser pássaro. Mas quantotempo não levei para atiny que o cabra resìstente do mesmo poe-ma não designava bicho, mas homem.

Nouüos casos, a falta de noção equivalente no meio centro-europeu toÍnava a tradução quase impossível. Tive de dar tratosà loJa pala fabricar um rermo composro de três palavras (ÃaucsuÃfacsapo/ó)para vefter o próprio nome do serìngueiro, Não meaffevi a empregá-lo senao dèpois de experimenrá-lõ em vários poe-tas amigos e verificar-lhes a reação favoúvel.

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O que, porém, me atrapalhava sobretudo eram as p-alavras

mais corriquêiras, mais simples. Os sábios glotologistas do meucafé, embo?a com relutância, tiveram de concordar comtgo quandolúes'mostrei que uma das palavras brasileiras mais difíceis de tra-duzir e encaixar num versà húngaro erz dezembro' O nosso de-tiiOrr, etimologicamente idêniico, mas que evocava noções de

selo. neve e misãria, não poderia sugerir á nenhum leitor hún-i^ro ^

imagem de um Naial carioca, tórrido e abafado' Ou en-

iao, qrr. silnificava apzlavtaNordesïe?,F.oi necessário uma lon-íi ,^it^d.hib.iro Couto (então-secre tã'1.o daLegação do Brasili" Hol""d") para dar-me uma idéia aproximativa do complexosentido grogràfrro, antropológico, sociológico e, sobretudo, poé-ti.o d.rí" dïnominaçao.-Com sua compÍeensiva inteligência, o

ooeta de proaíncia.iboçon um sucinto retrato espiritual da re-

iiao "ota.ttina, da qud, a falta de outra documentação, me de-

íenhou um maPa esquemático. Tive menos sorte com um jovem,a.pro da poesia sociàl em cujos poemas encontfafa inúmeras alu-sões aos nzolros caflocas. Pensando que eu não entendesse.a pa-i"ui", r.rpondeu à minha consula cõm um" lista de sinônimos:*,í1"n, oïrciro etc. Só depois de nova troca de cartâs,cheguei a

;;;.;â; que, contrariaminte ao que se dava na minha cidade'onde os -óttot, cobertos de luxuosos palacetes, só abrigavam. gente

rica, no Rio eles eram sinônimo de favelas, isto é, "conjuntosãì t Jir"çoes populares roscamenre construídas e desprovidas de

recursos higiênicos".À pubïicaçao em jornais e revistas de algumas desas tradu-

çoes de poesiastrasileiias motivou e.pisódios curiosos' Numa das

*i"fr"tï"tas de latim, por exemplo, um aluno me pediu' no

-.i" ã" ..pecrariva zonìbeteira d-e seus colegas, que lhe expli-."rr. .r- esìranho poema lido por ele na véspera e pôs-'se.a reci-tar "No Meio do Ôaminho", ãe Cados Drummond de Andra-de . Embora não gostasse de interromper as minhas aulas' dessa

vez não resisti à õntaçao e citei o'troi versos do poeta' Falei daiconoclastia necessária da poesia moderna, da salutar reação ao;;úa;i.;".estereotipado, ão valor profundo das sensações pri-mltlvas e vfgens; m'ostrei como as exigências do lirismo e da ló-gica são difeïentes; insisti sobre o poder emocional do elemento

!rot.r.o; disse da importância da colaboração do leitor com o poe-

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ta. Â explicação transformara-se, nessa altura, em animada con-versa, e por fim meus alunos concordaram comigo em que cadaépoca tinha a sua expressão literâria, diversa das anteriores. Che-gâdos a esse resultado, pudemos voltar à leitura deHorâcio. Jâentão os meus discípulos leram com interesse muito maior a odeem que o poeta romano, considerado

^tê, então por muitos deles

um versificador de lugares-comuns, se desculpava da ousadia re-volucionária com que introduzira na literatura latinaformas e ex-pressões "nunca antes divulgadas".

O aparecimento das traduções num volume intitulado Men-sageru do Brasìl foi acòlhido pela crítica com o interesse que omomento permitia. (Estávamos em agosto de 1939.) Pela primeiravez n^ Europa Central liam-se versos brasileiros e se podia entre-ver a existência no Brasil, atê então só conhecido como produtorde café, de uma civilização digna de estudo e mesmo de admira-ção. O críticoJorge Bálint - que mais tarde os nazistas haviamde assassinar - deu a seu artigo este título: "O Brasil chegou-separa mais perto".

Foi essa, realmente, a minha impressão durante três dias.No quarto dia, os tanques alemães ciuzavam a fronteita da Polô-nia. Uma cortina de fumaça passou a esconder o Brasil, a poesia,a alegúa de viver.

Entretanto, ao cabo de quinze meses. cujos sofrimentos eangústias não cabe rclatar aquí, lâ estava eu de malas pfontas paraconhecer o Brasil, de perto. A viagem tinha de ser feita atravêsde Portugal, única saída da Europa j6, em chamas. Rumei paraLisboa com todas as preocupações do exiÌado, mas algo consola-do pela interessante experiência lingüística à minha espera. QuemaÌ me podia acontecer, se já conhecia as formas mesoclíticas eo infinitivo pessoal?

Sofri, porém, decepção tremenda. Passei seis ser-nanas emLisboa sem que conseguisse entender patavina da língua falada.Pegava do jornal e compreendia-o perfeitamente; o porteiro dohotel ou o garção do café diziam três palavras, e eu me via outravez no mato sem cachorro. Humilhação ainda maior: os intelec-tuais portugueses, aos quais fui apresentado, depois de uma ten-tativa frustrada de {alarcm a sua língua comigo, recorreram aofrancês. Assisti à representação de uma peça de tearro (de Carlos

t,

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Selvagem, se bem me lembro), e saí tonto, sem ter compreendi-do o ãnredo ; a úm2' aula de colégio, sem saber se os alunos ti-;ú;;;tt;dido bem ou mal; ^íry defesa de tese na Faculda-

ã. ã" rlót"fia, sem descobrir até o ltmqual fora o assunto foca-

li;^dt ú" candidato. Que diriam os filólogos de Budapeste ' se

me vissem em tais aPuros?Durante a minhã permanência na caprtal portuguesa costu-

mava tomar diariamenìe determinado bonde e saltar no mesmo

fo",o, onde o mesmo condutor lançava o mesmo grito' Sentava-'-. p."o do homem, apurava os ouvidos para entendê-lo' tudo

"À uao. Poderia p.rg.tÁ,"r, é claro, mas não seriafoir p/ay.: pre-i.ri" ,"tot .nu.rgorr"h"do e infeliz, até que, na véspera da mi-ntt, prttidr, ueiJa revelação. .O condutor gritava era Resíaara-

dorrr;apenas, suprimia três das vg9ais.d.a palavra' caïega1l:.ro, ,, e iibila.tdo os ss, Fui correndo ve rificar na placa da esqut-nr, tinhn acertado! Mas iá era tarde' No dia seguinte embarqueino Cabo de Hornos com destino ao Rio de Jane iro' atormentadopor negíos Pressentimentos.'"^ õf,.g"èi.r,t, vinte dias depois' Que alívio logo de entrada!

O Brasil ïecebia-me com uma littg'"gtm clara' sem mistérios'Ainda não desemb arcar^, e iá não perãia nenhuma das palavras

ãá .ãi*À"aor, que , em comp-en,alão,.perdeu uma das minhas;;5 Éï;;ndi igualmente o funtiã nâtro da alfànò'ega; e ' de tão

satisfeito, nao lhã rebati a surpreendente afìrmação de que o por-tuguês e o húngaro eram línguas irmãs'. Oìeslumbramento con-

tiúou narúa, no primeiro táxi, no hotel' O idioma que eu apren-

dera em BudapesÌe era mesmo o português!

rg44-1948

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As Línguas que não Aprendi

São duas mil, três mil ou mais? De qualquer maneira o seunúmero é exatamente igual ao das que nunca hei de aprender.Confissão triste e humilhante para quem desde menino sente pelosidiomas uma espécie de paixão e que, ainda hoje , cada vez quena Íua ouve pessoas falar uma língua desconhecida, tem estre-mecimentos de inveja.

Quando, pela primeifavez em minha vida, vi uma cédulágraúda - podia ter meus sete anos - provavelmente experi-mentei o desejo de possuí-la, como qualquer um. Se o tive,esqueci-o. Mas lembro-me nitidamente da inquieta curiosidadecom que me pus a dectfrar as duas palavras - CEM COROÂS

- que aquela nota ostentava flas oito línguas da desde entãofinada monarquia austro-húngara.

Adolescente, alimentei em segredo a esperança de assenho-rear-me, com o tempo, do maior número possível de idiomas:vinte , trinta , talvez ainda mais. Um de meus professores assegu-rava-me que só os quinze primeiros eram difíceis. E, nos meuspasseios pelos sebos da Europa, ia apanhando caàa livro esquisi-to para delefazer uso depois, em lazeres que não poderiam dei-xar de vir: uma gramática ladina ou reto-romana com a chave dapronúncia; o malgaxe em vinte lições; um livro de leitura parao segundo ano primário das escolas de La Valetta, Malta, sem umaúnica vogal no títuÌo; um manual da língua sueca para italianos...verdadeiro bazar de alfarrábios disparatados que os livreiros viamenvelhecer na última prateleira e me empurravam quase de graça.

Mas o te mpo pâssou , os laze re s não vie ram, a minha bibliote -ca dispersou-se definitivamente no assédio a Budapeste e todosaqueles idiomas continuam intactos, não revelados, a troçar de mim.Outro terá aprendido, em meu lugar, o malgaxe em vinte lições.E limito-me a sonhar com as oportunidades maravilhosas que perdi.

Num livro islandês teria talvez encontrado resposta às mi-nhas dúvidas; o poeta que melhor exprimiu as minhas angústias