Textos Peter Gay

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  • 5/10/2018 Textos Peter Gay

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    ESFOR(;OS PARA UMA DEFINj(;AO

    Urn ingrediente preocupante , apesar de por vezes apenas perceptivel, da experienciada burgJJ~sia. do seculo _XIX . foi_ ansiedade com que ela procurou deflnir a si prOpria : suashierarquias Internas, seu statu;, na ,,_oc!~ciad~,sC::_\l_r._c::laciO~{!l].t'Q"~om_aSciem:lis-Glass~S,s~a:>,-~?pcterfsticasn:()r,~"_:._"Lan.;o umapelo a s classes .medias", escrevia Thackeray em-Vanity-Fair [Feira das vaidades],' Porern, conquanto ele e seus leirores julgassem 0 signi-f icado desse apelo perfe itamente claro, nenhum delespodia ter cer tezade que assim fosse .Havia mui ta colsa duv idosa : ideais, pe rspec tiva s e ' ., - numa dose be rn cons ide rave l - 0significado dos termos. As formas das piramides socia is, que alicercavam aspiracoes e con-cessoes, encontravam-se parcialrnente obscurecidas por sutis distincoes .sociais e exigen-cias conflitantes, seus limitessuperiores e infer iores freqiientemente se perdiam na nevoaque -recobria as encarnicadas lutas -dos grupos que procuravamagregar-se a burguesia,desligar-se dela ou ascender dentro deja. Ademais, as lendas que pesavam sobre a hist6riadas classes medias, unidas aos debates que de longa data se travavam sobre sua reputacao,con tribu ir am pa ra ge ra r, em meioa avances impetuosos e a urn ot imismo sobrio, umvagosen timentode ident idade , que por veze s be irava o 6dio a si mesmo: Uma consc ienc ia bur-guesa ampla e opressora transtornou muita gente no seculo XIX, e, no s~culci XX,viria exa-cerbar os e sforcos dos h is to riadore s que procurarn real iz ar um rnapeamento re trospec-tivo.

    Frequenternente , contudo, sao os rnitos, as contradicoes e as distorcoes neuroticasque consti tuem a chave pa ra a s reaIidades hist6r ic as. De Ie s e que surg ir ao, de fa to , os e le -mentos essenciais para qualquer deflnicao Iogicarnente validado que forarn as classes me-dias do seculo XIX. Eu conside ro e ssa s c la sse s como uma fami lia de anse ios e de ans ieda -~. Muitos outros fatores contribufram para dar-lhes uma -;p;;;;;~~i~-d~-~c>esiio-e-unidaaeque era apenas em parte artificial: interesses convergentes, pressoespoliticas, classfflcacoeslegals, percepcoes e sensacoes compartilhadas. Constituiam porern uma grande familia, muitoramificada e briguenta. Os e los que a rnant inham unida e ram f requenternente mais fr acosdo que as tens6es que a desuniam. E os s intomas que ma is c la ramente demons tra rn e ssa stens6es sao os nomes com que as c la sses medias e ram designadas."

    C* ) 0 autor. utiliza aqui 0 [erma middle classes, no plural; a distincao entre "as classes medias" e u~a "classemedia" e exp li cada na primeira secao d es te c ap it ul o, l og o a seguir. (N.T.)

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    1 . DOS NOMES AS COISASAsconfusoes que infestavam, no seculo XIX,O vocabulario relat ivo as classes nao es-

    caparam a observacao de seus contempor aneos, Quando, em 1893, traduzia urn panfletoesc ri to por urn medico a lernao contra a legal izacao da prost itui cao, 0 estudioso norte-americano Charles K.Needham deparou com a palavra Burger' e fez uma pausa para ref le -tic. "0 sentido preciso deste termo" , ruminounuma no ta de r odape, "nao pode traduzir-se pela expressao middle class [cl asse media ], s e bern que ocasionalmente eu a tenha uti li -zado em paginas anter iores, Ascondicoes de vida na Ingla te rra e naAmerica do Nor te dife-rem daque las reinantes na Alemanha, de sort e que na l ingua inglesa nao ha urn termo unlcoque possa expriml r a ide ia".2 Needham t inha a perspicacia neces sa ria para perceber queessas dificuldades linguisticas exprimiam dificuldades essenciais. A terminologia alerna porcerro as reconhecia: diferenciava, sut i! porern claramente, 0 termo Burgerturn do modis-mo importado bourgeoisie. Quando Thomas Mann , ainda em 1918, elogiava 0 Burger edenegria 0 bourgeois, estava t raba lhando dentro de uma t radicao retor ica jasecular . Ale rndisso, Burger era urn r6tulo simultaneamente legal e social: designava 0 c idadao de urn Es-t ado ou 0membro de uma c lasse, uma ambigii idade que escr itores a le rnaes nao deixa ramde explorar. Maisainda, os alernaes usavam nao so 0 termo Burgertum, como tam bern Mit-telstand, e a cur iosa hts tori a l ingi ii st ica des ta ult ima denorninacao ofe rece uma prova adi -cional de que a inst~I?_i!!9..!!gc::...llQJd~Q.J:i

    Essarelutancia nao pode ser desprezada como urn mero chauvinismo lingufstico. Afmalde contas, foram os marxista,L~U!

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    dore s se v iram obrigados a lancar mao de c ri te rios a lterna tlvos, e conomic os ou soc ia is .Aumentando a inda mais toda esta confusao, em meados do seculo passado osprole-tarios parisienses utilizavam bourgeoise para designar respeitaveis e pacatas donas-de-casadas classes trabalhadoras, temidas por seus .maridos.!" Nao era menos diffc il c lassif icar osproprie tarios de terras que nao tinham titulos nobiliarquicos, estivessem eles engajados em.neg6cios,servindo como rnagistrados na cidade ou vivendo das rendas de seus investimentosrurais. . t inham urn envolv imento Int imo e continuo com os assuntos urbanos, bern comoacesso ao pode.r politico. Estes proprie taries - par ticularrnente numerosos e inf luentes naFranca e na Prussia , pelo menos ate meados do seculo - eram os que menos se encaixa -yam no estere6tipo do burgues, "Ningue rn quer v ive r em sua propr iedade no campo" , de-clarou 0 conde. de Ville le , urn brilhante f inancista e primeiro-ministro da Franca nos iilti-mos tempos da Restauracao. "Todos osnossos gentilshommesest~()~~t~;ln,fQrm:ando em.bourgeois, moram~a cid;ts!~-,q_~-saSQuiiQY~ 1l,1~s.e.~j:>()L~f19a:Jimle.~P~()\,~i~?r.!JvidasOciaJ,os-cOnfortOs ~ asfac~idades. paraeduca~.t: coJbc::irseu~ mhos, :'II.Para a maioria dosQt;;eivadores, 0 i)Ur~_s....enUimig!!p:;tL!!~~..2]roprietarios rurais sem titulo,porem, fre-quentemente apresentavam tantas das caracteristicas que normalmente se associama bur-gues ia que asvezes e ram c la ss if ic ados no mesmo grupo dos pequenos indus triai s e prof is-sionais liberais.Em vista de todo esse emaranhado, os contemporaneos passa ram a faze r uso de adje-tivos descr itivos para demarcar subdivis6es eacornpanhar movimentos no inter ior da bur-guesia: haute, bonne, petite bourgeoisie [alta, boa.ipequenaburguesia], classe media altae classe media baixa. Mas nem todos esses qualificativos, a inda que utels, foram sufic ientespara formar uma malha bastante f ina para capturar todas assutis distincoes e os efervescen-tes conf litos que em toda pa rte impregnavam as c la sses media s, originando sucess iva s on-das de agitacao e rnudancas. Por volta de_!.)2J,.0 via jantee cronista Michel Chevalier , urnpequeno Tocqueville que mais tarde vir ia a ser urn eminente administrador publico na Franca,publicou urn livro de ref lexoes sobre os Estados Unidos, no qual comparava asinstituicoesnorte-americanas asde seu proprio pafs.Na America do Norte , observ()uele,a. .c lasse mediaera uma entidadecoesa e abrangenteCJufCom:preenara-iTfndll~triais;comerdanie~:~:4YQ&a-dos~-medic(is;';bem-como ' ' ' : i l g u n s P O U C D S agriCl il tor~st ' pe ssoa s dedicadas~_! t: t.~ a s'~rtes~'. J~na Franca, a "numerosa classe media" estava nitidamente dividida entre "a classe-ativa", engajada no "cornercio, na industr ia , na agricuItura e nas profissoes Iiberais" ,eaburguesia "ociosa", formada por "homens sem ernprego ativo, proprie taries que auferemrendimentos de 500 ou 1500 l ibras pelo aluguel de suas propriedades ou atraves da divisaoda producao com os agricul tor es, sem todavia ten ta rem aumentar a produ tividade". Essasduas "divisoes" da classe media "diferem essencialmente entre si" , prossegueChevalier,e rnbora na pagina seguinte, com solene desprezo por qualquer coe renc ia , a cre scente que"e la s nao estao totalmente nem nit idamente sepa radas ent re s i",12 Obviamente , a defini- Embora nao the falte humor e argucla , essa classif tcacaoapenas reve la 0 e rnba raco gera l que envoi v ia a de finicao d is c la sses medias. Em prime iroll_Jgar ,a classe media alta jamais se mostrou totaltnente coerente, raramente apresentando

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    o que chamariamos de uma l inha de f rente unida ; e a spersonagens definidas por Zola co-mo os commercants, a bourgeoisie, e 0 grand monde t inham objetivos e valores frequen-temente conflitantes, a inda que em parte coincidentes. Advogados bem-relacionados e ser-v idores publ icos graduados, c le rigos proeminentes e medicos i lustr es, nao ra ro se a fa sta-yam de uma camada da c lasse media para se aproximarem de outra. Diante desses fatosda vida soc ia l, os a le rnaes enriquece ram seu vocabular io soc io logico c riando nomes paragrupos que exigissem uma consideracao diferenciada com 0 pretexto de possuirem pro- .priedades outitulos acadernicos. falava-se emBesitzburgertum e em Bildurtgsburgertum, * ~'\),s~ambas categorias bastante sugestivas, se bern que sobremodo abrangentes. Par ticularmeQ;. , ~te a Bildung, ou seja, 0 do~...Tio~e;:m'!..~l!..-\'!.,~..9~.RQL.~,~s",.,apco"s-a Sl)a e~Qi; __:;;.c- percebida ate mesmo pelos proprios burocratas. Em suas mem6rias, t.o aristocrata Rudolf von Delbruck, que ocupava urn cargo publico em Bedim, relembravaque "os cfrculos burocraticos, espremidos entre a fech.adissima sociedade da corte, por \.u rn lado, e a comunidade burguesa por out ro , t inham uma vida propr ia " ,16 Em outros pai-ses , como na Belgica ou na Franca, e sse t ipo de iso lamento pa rece ter s ido menos acentua - Jdo; a a lienacao dos func iona rios. em re lacaoa v ida da c1assemedia pa rece ter s ido menos ____. /'~ 'compieta do que nos Estados alernaes. No entanto existia..e era desagradavel. ' .

    Amesma fluidez e consequenternente a mesma controversiaassinalarn a divergencia fdos argumentos com os quais piramides burguesas r ivais buscavam proeminencia. 0 di- _.-~~_r_;t_zia .2F0der,~~ liI'!hageIIl_taIT1b~Il1;_Illasinheiro e Iinhagem naoeram nece~ ~mente coincidentes. Na() obstante,era possIvei fazercorn que coincidissem,_~ frequente-mente: e-raisso o - q ; : ; e - - o c o ~ ; : ; a : a s 'negociacoes mitri;U:oni'ais entre famfllas -;bast~das e-rami-'i i a s - d e estIipe"'nobrepodYam- assumir a importancia de verdadeiras negociacoes diplomati-cas entre Estados. Havia cer to grau de mobilidade no inter ior das elites das classes medias,como tambern em suas fronteiras. 0dinheiro podia ser purifica.do at~aves c12.m?gil'IlClnio~f!U!.tg~_l;loa .u!1b_a_g~m,_aosso que a nobreza poclIa'reatasteceiseus- cofres unindo-sea uma faIIl!lig,Ji,c;:.a.ais alia;;

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    sarmen, na Alemanha, 0 Bicrgertum per fazia, em 1861,9 por cento dapopulacao, abran-do desde homens economicamente poderosos, num ext remo, a te 0 ameacado Mittels-d, no outro: 46 anos mais tarde, em 1907, esta porcentagem ja ascendia a mais de 23uos , s e bern que os acrescimos mais impressionantes t ives sem ocorr ido, cornpreensi -nente , nos escaloes infe riores da sociedade. E mesmo este aumento relat ivamente rno-to do numero de integrantes das c lasses medias nao era de modo a lgum general izado:Bochum, uma das princ ipai s c idades da regiao "side rurgica" do Ruhr , a proporcao dos'ger apr esen tou incremen to s min imos en tre 1858 e 1907, passando de pouco mais depara cer ca de 16,5 por cento , sendo que 0 verdade iro sai to ocorreu , t al como em Bar-il, ent re os escaloes mai s baixos dos funcionar ios publi cos e dos t raba lhadores de cola"10branco. No entanto , t ai s lu tas compensavam 0 imenso d ispendlo de energ ia e pa-rcia, a despeito de reveses arrasadores e freqiientes . NaGra-Bretanha, 0numero de con--uintes com renda anual de 200 l ibras est er linas pra ti camente dupli cou em duas deca-,p assando de pouco menos de 9 mil em 1851 para aproximadamen te 17 500 em 1871 .ec resc imento ace le rado se manteve relat ivamente constante a te a tingi r 0 n ivel de 800'as, quando passou a apr esen tar u rn declin io acentuado; no mesmo in tervalo de vin te)s, 0mimero de contr ibuintes que percebiam 2 mil libras anuai s ou mais c resceu de 235a 356, ou seja, lig eiramente acima de 50por cen to. Na Gra-Br etanha de meados do se-D, enquanto ascamadas inferiores e sobretudo as classes medias razoavelmente prospe-iam diminuindo ligeiramente a dis tancia que as separava dos burgueses mais abastados,verdade iramente r icos permaneciam inacess fvei s, uma fonte de fantasi as e invejas .Alguns3~~r:t.t

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    de armamentos, se t ransformaram em lendas, chamar de "burgueses " a esses magna tas pa-rece tirar do termo todo e qualquer sentido.!"

    Tampouco e possive l recuperar urn sent ido para 0 termo "burgues" examinando-seos modOsde corriportarnento, notadarriente rio que tange a busca dasamenTaa-ae-s-tfI::ri"S"Te"-finadasda Vida, pols tambern esta secaracterizava peiasmaisgritantes-varia~oes."Osvurg-hers queviviam nas cortes ri6rteavam:se-peTos~gostos~p;;-b~~~iiic~lJ:ciadascasas reinan-tes. Por ou tr o lado, os burghers que viviam nas cidades-l ivres ou em capitais comerciaismost ravam-se tao a tivos no campo cultural quanta na pol ft ica, a lcancando seus objet ivosquase exclusivamente atraves de associacoes voluntarias, as quais dedicavam a mesma energiaperseveran te que de ordinar io empenhavam em ganhar d inheiro . Na Munique do seculoXIX, 0 teatro , a opera, a o rquestra sinfonica, os r nuseus, a universidade, tudo foi cr iado ese man teve gracas ao mecenato dos Wittelsbach. Os Burger de clas se media se reuniamem circulos informais . para ler dramas e comedias, exibir pinturas, executar pecas para quar-t etos de cordas. E , quando queri am, podia rn tambem pressionar os funcionar ios publi c osencar regados da a lt a cultura na Bavie ra , formando urn lobby em favor de suas preferenciasartfs ticas, que demonstravam lotando certas casas de espetaculos e afastando-se de outras.Essencialmente , contudo, e ra a casa rea l que dava 0 tom e fo rnecia os r ecu rsos para tudoo que de melhor havia em Munique na musica, no teatro, n as artes p lasticas e na un iversi-dade. Uma hist6ria diferente e a de Manchester. Sua famosa Orquestra Halle, suas bibliote-cas requ in tadas, sua un iversidade, seu conservat6 rio e sua galeria de arte sao todos em-preendimentos particulares fundados e mantidos por doacoes privadas. Os beneffcios soli-c it ados a rea leza vir iam mui to mai s t arde e se riam puramente decorat ivos . A conduta dosc idadaos de c lasse media em busca de cul tura nao era entretanto in te iramente previ sfve l:embora Bedim fosse a .capit al do Reino da Pruss ia e , a par tir de 1871, do Imperio unificadoda Alemanha, embora todos os seus magnffi cos museus tenham sido const ru idos ascustase sob as o rdens dos Hohenzollern, a esplend ida Orquestra Filarmonica de Bedim foi fun-dada em 1882 como urn empreendimento particular. * Havia bavaros dotados de arrojosdignos de urn Ingles, a ssim como ingleses que ter iam pre fe rido ver as a rt es dir ig idas pelarea leza , mas de modo geral a dis tincao e val ida. Quando da inauguracao daAl te P inakothekem Munique , a placa de cobre comemorat iva enumerava as mai s impor tantes colecoes quea li s eencont ravam e conclufa, agradec ida: "ABavie ra deve este predio e os tesouros a rt ist i-cos nele contidos a nobre disposicao de seus governantes, a Casa de Wi tt el sbach" . Algunsanos mai s ta rde, os fundadores da Galer ia de Arte de B irmingham colocaram urn memor ia lcomemorat ivo no saguao da ent rada princ ipal de seu museu, l ancando urn est ilo burguesintei ramente diverso , mai s l aconico e mais e loquente . "Com os ganhos da Indus tr ia", d iz iaa inscr icao , "promovernos a Arte" .19

    Asclas ses medias, ass im~ nao se mos travam unanimes nem mesmo em suas a ti tudescom r~la

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    eramfrequentemente muito talentosas, por vezes emeritas pianistas. * Em 1884 , a r evistainglesa Musical Opinion relatava que a Alemanha podia orgulhar-se de ter cerca de 424fabr icas produz indo cerca de 73 mil pianos por ano, sendo que estes pianos e ram efe tiva -mente bern rocados.P Aspretenso:s das classesrnecliasa erudi\;a.oconstit~_~mpgi urn in-areciiente rna~

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    guardas a rt fst icas, apenas est abelec iam os padr6es que se ri am seguidos pela cultura mai sampla . Aconsc ienc la de c lasse , que emergiu aos t rancos inici almente , e de modo cada vezmais agressivo no fim do seculo XVIII e ao inic io do seculo XIX, venerava tal caricatura: umamistura de realidades sociais e necessidades inconscientes .

    Deixando simplesmente a margem qualquer evidencia complicadora, eliminando su-mariamente quaisquer duvidas e empregando 0 que supunham ser indicadores objet ivose impress6es subjetivas, tudo igualmente problernatico, jornalistas , polit icos e romancistasdo seculo XIX fal avam e escreviam como se a burguesia fos se uma entidade social sa lida ,unica, definivel e imensamente importante. Suas definicoes desafiavam fates inconvenien-tes tais como 0 de que a consc ienc ia nao-conformist a na Ingla ter ra tendia a produzi r urnt ipode burgues diferente daque le originado da consc ienc ia catol ico- rornana na Toscana:ou que as familias da classe media superior de Lille arranjavam os casamentos de suas fl-lhas, enquanto familias igualrnente respeitaveisdeWashington permitiam que elas se casas-s em por amor: ou que a lguns burgueses viam nos indust ri ai s seu ideal moderno, enquantooutros os desprezavam por considera-los arrivis tas grosseiroes ,

    Todos , porern, ou quase todos, s e uti lizavam da l inguagem de c lasses com natural i-dade. Em seu estudo f idedigno da burgues tapari si ense da primeira metade do seculo XIX,Adelin e Daumard narraum episod ic divertido que demonstra a maneira pela qual tal lin-guagem se irnpos mesmo aqueles que com maior ferocidade negavam sua utilidade.Dir ig indo-se a Camara dos Deputados em 1847, Gamier-Pages a rgumentava que "em nos -so pais nao existem mais classes" e denunciava as "detestaveis" teorias de Guizot, segundoas qua is havia "clas ses diferentes, a burguesia e a pobrezaTE prosseguia,com toda a ino-cencia: "Vejo aqui presentes rnuitos burgueses". 0 plenario recebeu 0 discurso com garga-lhadas.P Ao que parece , a forca des se vocabular io e ra i rres is tive l.

    Poe tas e romanci stas nao eram menos inequfvocos ad escolherem suas palavras. Noensa io "Lutezia" , escr ito j a em sua matur idade, He inri ch Heine gracejava sobre 0 "novomundo dos filisteus" que v ia a sua volta "numaera industrial e burguesa" ; Henryjamesse refer ia livremente a "gordos sofas burgueses" ; Marce l P roust fez com que 0 seu perso-nagernjanota, Bloch, renunciasse ao relogio de bolso e ao guarda-chuva por serem "insipi -dos implementos burgueses". 32 Pode ser inconveniente que todas essas uti li zacoes do ad"jet ivo "burgues" , ass im tornadas em conjunto, nao result em num ret ra to coerente, e las naocaracterizam nem satirizarn os mesmos aspectos, Mas isso nao pareceu incomodar ninguem.Henry James , como sabemos , escolh ia suas palavras com 0maximo cuidado, ass im comoHeinrich Heine, Marcel Proust ou Alexis de Tocquevil le. Outros, menos fastidiosos , Ianca-yam mao de epi tetos menos l imit ados . E nenhum deles, apesar disso, t eve qua lquer dif icul -dade em fazer -se compreender. Os burgueses podiam ser vistas na Camara dos Deputadosda Franca, nos gordos sofas burgueses, com insfpidos guarda-chuvas burgueses: ass im erapossfvel ter-se urn significado claro, com limites nitidamen te def in idos, do que era 0"burgues".

    E nao era verdade que o burgues jae ra visive l havia seculos? Urn dos carninhos usa -dos pelos estudiosos do burgues na tenta tiva de def in i- lo foi 0 de t ri lhara sua his tori a. Pa -rece ser urn procedimento bastante razoavel, particularmente tendo-se em vista que as evo-:cacoes e carac te rl zacoes dos burgueses no seculo XIX pouco tinham em comum, alern dofato de que todas as seguravam haverern e1es for rnado uma c1asse .Mas esse caminho t inhatarnbern os seus problemas. Pois 0 que os his toriogra fos f izeram com 0 passado dos bur-gueses, tanto com 0 remoto quanta com 0mais recente , foi s implesmente desenvolver al enda popular mais duravel, persuas iva, e per tinaz, a da burgues ia em ascensao. 0 espeta-culo de uma classe de burghers que se a firmavam, sem qua lquer a lt ru isrno e sem qua lquervergonha do seu mercant il ismo, abr indo caminho a cotove ladas e galgando as escadas dopoder e da riqueza atraves dos seculo s, deve ser a explicacao h istorica mais popu lar ja in-ventada. Ela abreviou inurn eras investigacoese simplificou muitas respostas , 0 que tornoi]

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    essa expli cacao par ti cula rmente sedutora e 0 f ato de que ela e de todo falsa, No en tan to ,por ser muito versa til e lindamen te vaga, f oi posta a service da necessidade de explicarurn per iodo de mais de seis s eculos de his t6ri a ocidenta l: a erne rgencia das cidades medie -vais, 0nasc imento do capit al ismo, a Reforma protes tante, a expansao europeia para a lern-mar, aconsolidacao dos Estados absolut is tas, a Guerra Civil inglesa, a vertiginosa carreirado pensamento cientfflco, e, naturalmente, 0 Iiuminismo do seculo XVIll. Quante ao secu-10 XIX (pa ra prosseguirmos acompanhando esse acrobata das expli cacoes a te seus sal tos-mortais mais recentes), a burguesia costuma-se atribuir 0 credito, ou a culpa, pela Revolu-c;:aoIndustrial, pelas revolucoes pol ft icas que var reram a Europa a par ti r de 1789, pela as-censao do gosto mediocre e pelo moderno imper ia li smo. Todas asvul tosas rea lizacoes doseculo XIX: urbanizacao, industrializacao, mecanizacao - revolucoes menos dramatic~s po- _.r~~~~~~!l9ic:f~~~~is~d_q~c:i~~arr.'icadas~coiisiruf(iaspor opeiirios e trabaihiClo~'res e as constiruicoes rascunhadas po r politicos - sao , conforme nos vern sendo dito, 0--~es\,Jlta(jod~obr-is-da'burgtleSia;-quenaiuralmente-t:amb~m-meiflorarimasu-asjtua~ao':N;ioe por acaso que 0 conhec ido rela to de Charl es Moraze sobre 0 seculo XIX33 leva 0 titulode 0 triunfoda burguesia, Difici lmente poder ia t er escolh ido out ro t itulo.Conforrne sugere a lenda popular , ta l t riunfo nao se rest ringia as esferas poli ti ca oueconomica. Os burgueses conqui st adores parec iam tao ir resi st ivei s no ambito do gosto edas ideias quanta 0eram na legislatura ou na bolsa de valores. I1!lJ2un!:laI1:!eus pehsamen-tos e sent imentos as c lasses super iores e infer iores de igual modo. Por i sso, 0 f ato de que-umamonarca,iJ~iih:i_Y_it~~I~!_lha dado ao-s6-culo-o"se-u--iiome'enquanto ainda reinava,apenas comprova a forma decis iva pela qua l a burguesia havia est abelec ido sua suprema-c ia ; a final de contas, como diz iam com afe to ou com desdem alguns de seus conte rnpora -neos, e la e ra a mai s burguesa ent re todos, Ate se r desaf iada pelos movimentos radica is quesurgiram no f inal do seculo XIX, a burguesia nao t inha obstaculos a estorvar -lhe 0 cami-nho, Segundo-nos foi ensinado, a Revolucao Francesa e suas ramlflcacoes em outras partesproporcionaram beneffcios imensos e aparentemente irreversfveis asforcas burguesas , numpais apos outro: a Revolucaode 1830 levou ao trono 0 paradigma da burguesia, Louis Phi-lippe, que nem 0 guarda-chuva dispensava; a grande Lei de Reforma de 1832 asseguroua primazia pol it ica a clas se media tnglesa , Mais ta rde, prosseguem os relat es , a burguesiacompletou a lhures sua ascensao a pos icoes de inf luencia dec isiva , apesa r de todos os reve-ses t empora ri es que sofreu apos as t imidas e mal -organizadas revolucoes de 1848. Mas naoser iam as der ro tas de 1848 uma prova das incrfveis dis tancias ja percorridas pelas classesmedias> Seu precipitado e an sioso recuo de fins de 1848 e de 1849 nap tera side urn co-menta rlo sardonico a sua par ti cipacao na sociedade? Tendo sido apenas meio seculo antesurn partido de mudancas, nao se transformava a burguesia agora no partido da ordem? E,pouco depoi s, nao se ri a retomada sua ascensao rumo ao poder? Com es tas ava li acoes, ob-servadores no seculo XIX nao apenas antecipavam como tambern fomentavam 0 veredictode his tori adores futuros, de que a burguesia sempre avancava a te a tingir , em ult ima Instan-cia, 0seu tr iunfo. Resumindo isso tudo em fins da decada de 1830, Michel Chevalier diziaque "ho je e fato universalmente aceito que a dasse media reina na Franca" _3 4 Em suma,durante os ult imos 150 anos vern-no s sendo dito que 0 seculo XIX foi 0 "Seculo da Bur-guesia" . Ninguern poder ia t er duvidas a esse respe ito.

    Ou quase ninguern, Alguns his tori adores cet icos vern labutando, sobretudo em mo-nografias especializadas, para tentar modificar esse veredicto exagerado, e uns poucos ternfei to t enta tivas de erradica -lo por comple to . Argumentam que e le expl ica demais e, porconseguinte, explica muito pouco. Quest ionam a ideia de que a burguesia era polit icamen-te- (jominante na Ingla ter ra a par ti r de 1832, e afi rmam que na Alemanha e la jamai s 0 foi,quer na pol ft ica quer na sociedade, Ate mesmo Iancam duvidas sobre a a traente e diver tidadesc ri cao de Louis Phi lippe como urn "re i burgues" , Na verdade , F ri edri ch Engel s, que,assim como seu amigo Karl Marx, foi dos p rimeiro s a ro tu lar sua era como 0 "seculo bur-

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    gues" , no f im da vida pode dist anciar -s e de uma de suas formulacoes predi le tas. Em 1845,ele havia assegu rado sem rodeios que "a classe dominan te na Inglaterra, como em todosos out ros pai ses c iv il izados, e a burguesia" . Em 1892, entretanto, escrevia: "Na Inglaterra,a burguesia nunca manteve sozinha 0poder . Mesmo a vit6r ia de 1832 deixou a ~ristocraciarural a pos se quase exc1usiva de todos os cargos governamentai s de peso. Adoci lidade comque asclasses medias abastadas se submeteram a esse estado de coisas", confessava ~ngels,"e a lgo que nao consigo compreender" .35 Sua reviravol ta t ardia vern s:ndo confl~ma~apo r pesquisas hist6 ricas mais recen tes. Nem po r isso a nccao de que 0 sec~lo XIX ~Ol0 se-cu lo da bu rguesia, e de que isso the f oi mu lto p rejud icial, deix a de ser ainda ho}e partedo estoque de conhecimentos geralmente ace itos , indispensave is aos nossos sennrnentosdecompaixao para co rn nosso passado recente.

    3. UMA BATALHA DE PERCEP

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    ~~~~-------- . .Con tudo, apesar de toda a sua verve e de toda a sua influencia, esses cruzados anti-burgueses nao detinham 0 rnonopolioda opiniao publi ca ace rca das classes medias. Nao

    faltaram a era vitoriana observadores geniais , que se regozijavam com 0 que se Ihes afigura-yam contribuicoes irnpressionantes das classes medias para 0 progresso da civil izacao. Con-forme disse com bastante firmeza 0 influente socio logo e his toriador da cultura alerna, 0conservador Wilhelm Heinrich Riedl , em meados do seculo, "e a ordem burguesa que, desdeantigamente, estabelece as trilhas de movimentos sociais justificados, das reforrnas sociais".E acrescentou solenemente, refer indo-se a sua propr iaepoca , que 0Burgertum "detinhaa maio r parte do poder material e moral. Toda a nossa epoca esta imbuida do carater bur-gues" .45 E nao diz ia is to sem sa tis facao, pol s se conside rava urn Burger.

    Tal nocao auto-elogiosa faz ia par te de uma ant iga t radicao. Havia seculos, todas asc idades se orgulhavam de queseus magna tas de c lasse media , que presidiam empresas co-merciai s. icorporacoes de ofi cios ou c las famil ia res, apoiassem as art es e fomentas sem asc ienc ias. Grandes prlnc ipes-mercadores como os Medic i, cuja generosidade para com sa-bios e poetas, p in to res e escul tores, musicos e a rqui tetos e ra proverbia l, haviam sido mer-cadores antes de se tornarem prfncipes. E 0 que a al ta cultura f lorentina devia aos seus bur-gueses mais ricos , a alta cultura de outras cidades .desenvolvidas - Bruges, Edinburgh, Ams-terda , Nurnberg - deviam aos seus pat ri ciados de c las se media . Os patr ic ios que domina-yam os grandes centros comercias da inc ip iente idade moderna, homens que recusavamtitulos nobil iarquicos e consideravam sua vocacao mercantil nao apenas lucrativa mas tam-bern digna, nao viam mot ivo a lgum para se envergonharem de sua posicao no mundo. Nosos vemos nos retratos pin tados por exce lentes a rt ist as como Hans Holbein, 0 Iovem, comtodos os a tr ibutos caracter ist icos do comerciante - folhas de caixa, balancas de pesar ou-ro , ate rnesmo d inheiro -, retratos que imortalizam urn status social que nao precisa sejus ti fi car , que e for te e pleno de respei to propr io . Ees sa camadas medias da sociedade tam-bern encontraram apologistas persuasivos e espirituosos: Addison emseu Spectator, e Vol-taire em suas famosas cartas sobre os ingleses, elogiavam 0comerciante pacffico e toleran-te precisamente porque ele permanecia intocado pelos ideais grandiloquentes , destrut ivose essencialmente infantis da aristocracia. Talvez ate com uma pequena dose de pervers ida-de, Addi son e Volt aire achavam que mesmo os especuladores da Bolsa tinham algo de ad-miravel,

    J ?e modo mais sobrio, em sociedades onde os. ccmercianres adquir iam igualmentegrande00rt~as :: grande.fama,osjde6fo~sd~j1"asse ~m~ill~'tomavaiP_jlJip_idWl~-::'Ciiss~~:p o r v e rd : l, S :! ~ jf _ () _ r. P .9 _ S !_ t: _ 6. L iQ " s :! c ;: _ y j[ Jl J g _f fY i f ;! , . .g ~ , ~j m g ~ . .< L e K . e . n : ' e L Q _ J L Q _ d s : . r , J 1 Q , . . E . . s , t ! . d Q _ e . . zlideran

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    r-r-rr--r-r-'?\~ .. ~ . ."..t imentos exc lusivi st as da nobreza". Quer a sua renda seja grande ou nao, "ele vive de acor-do com 0 que tern ao seu dispor" e ter n a in tencao de manter, e se possivel de estender ,"quai squer dernons tracoes de confianca e de est ima que the sejam indiretamente concedi -das" po r sua comunidade. E isto e verdade tanto para 0 "prof is sional" quanta para 0 "co-merciante", par a "0 artista ou 0 artesao, 0 banqueiro ou 0 industrial, 0 empregado ou 0empregador" .49

    Talvez fos se inevttave l que, nas decadas que se seguiram a Revolucao Francesa, a l-guns burgueses satisfeitos cons igo mesmos, qui sessem arrogar para s i0seculo, 0 que tan-tos cri ticos culturais consideravam vicios burgueses , e!es saudavam como virtudes burgue-sas. ao esgotamento do veio poe ti co , chamavam de real ismo; a ausencia de prindpios e le -vados , de espir ito pra ti co: a devocao obsessiva ao t raba lho, de energia: ao conse rvador is -mo bovina dos pr6speros , de solidez. Ate mesmo Marx e Engel s, que nao morri am de amo-r es por uma classe cu ja m issao hist6rica a seu ver ja se aprox imava rapidamente do fim,acharam palavras expressivas para louva-la. "A burguesia sujei tou 0 campo as le is da c ida-de" , esc reveram num famoso paragra fo do Manifesto comunista. "Criou cidades enormes,a rrastou para dentro da c iv ll izacao todas as nacoes, a te mesmo as mais barbaras ", e ass im"sa lvou uma parce !a conside rave l da populacao da estupidez da vida rural ".5o

    Mesmo essa valor izacao l imit ada nao obteve 0 apoio geral . Urn mot ivo para tantofoi a paixao que a burgues ia t inha pela autoc rf ti ca , fomentando urn verdade iro batalhaode inc lementes c rf ti cos soc iai s, pra ti camente todos oriundos de suas pr6pr ias fi le iras. Emurn diagn6st ico mordaz, Henry James observou que "Balzac e seus companhei ros" odia-yam a burguesia "porque eles mesmos sao quase sempre fugitives da burguesia. Consegui-ram escapar com vida, e urna vez estabe!ecidos no acampamento adversa rio, e rguem altoseus punhos e bradam seus desa fios " .51Arthur Symons, c rf ti co e poe ta s imboli sta , con-cordava. Falando da rebe!dia estetica da decada de 1890, observou desdenhosamente: "Nada,nem mesmo a virtude convencional, e tao provinciano como 0 vfc io convencional : e 0desejo de deplora r a c lasse media faz par te da pr6pr ia c lasse media" .52Todavia , 0 histo-ria do!" em busca de uma defini ao ara a cultura da classe med ia do secu lo XIX nao podeelxar e e er ue tal h e.lw:i.osaJ:.inh~ntos de contato com a reali-dade da ep?Ca . Sob var ies aspec tos impor tantes , havia a lgo de opress ivo na c iv ili zacao dosneg6dos, sobr etudo quando impregnada de fervor evangelico, algo incompatfvel com 0gosto mais requintado , com as distlncoes mais sutis, com a liberdade mor al e ar tf stica, emais ainda com as per cepcoes crf ticas. A arte oficial que continuava a ser premiada nossa loes em toda a Europa, 0 inter ior pre tens ioso de abastadas casas alernas nas primei rasdecadas do Imper io , a interferencia insensfvel dos cen sor es na pin tu ra ou na poesia quejulgavam blasfema ou obscena - est es e outros s in tomas cul tura is cor re la tos sugerem for :t emente que as dif iculdades dos espfr itos inovadores na l it eratura, nas a rt es e no pensa -rnento nao eram de modo algum auto-impostos, Ador e a ir a que auto res e artistas de van-guarda extravasavam em suas cartas particulares, em seus cafes preferidos, emsuas eferne-ras revist as e jorna is , merec iam maior c redib il idade do que a ide ia de que e!es fossern est e-tas que mordiam a mao que lhes estendia 0 alimento, enfurecidos tao-somente pela gulapor mais alimentos, Tampouco era adequada a ideia de que por tras de toda aque!a dore ira se encontrasse a neces sidade primit iva de divid ir n itidarnente 0mundo em amigose in imigos . A amplitude e a rapidez das rnudancas soc ia is t rouxeram a tona urn verdade iro 'exercito de novos-ricos , a maioria de!es tremendo de ansiedade social. Sentindo-sedos ao se encont ra rem repentinamente no ter reno da a lt a cultura, es ses novos -r icos , comumas poucas e notavei s excecoes, agarravam-se ao gos to das geracoes antecedentes e de- .fendiam fer renhamen te pad roes tr ad icionais que o s consumido res de cultura mais "de si j ahavia mul to tempo quest ionavam e estavam prestes a abandonar . A art e dest inadaunicamente a autop romocao e ao consolo recon fortan te pr edominava tanto nascoes publi cas quanta nas casas par ti cula res. E ,0 que ainda e mais importante, a ~_.~rl"r;j(

    em massa de bens cul tura is, impul sionada por avances tecnicos nas a rt es gra fi cas, na foto-grafia e, jaao final do seculo, pe!a invencao do fon6grafo, levantaram questoes alarmantessobre asconsequenc ias de uma expansao da cultura at raves de camadas cada vez mais am-plas da popu lacao . A conquista de novas posicoes de poder por parte dos burgueses foide fato menos extensa e muito mais cheia de nuances do que em geral se imagina, po rerngerou, como nao podia deixar de ser, uma postura defensiva (social e polft ica) entre os recernchegados, pos tura essa em que se des tacava uma rejei cao obtusa, por vezes f rene ti ca e emgeral egofs ta , das rea lidades sociai s, conjugadaa uma igualmente obtusa e igualmente f re -net ica recusa de ace it ar qua lquer exper imentacao esteti ca ,

    Po r tudo isso , os burgueses do seculo XIX f ize ram por merecer as c rf ti cas que lhesf~)fam prodigali~3das."J;,';Q!}forp;1_e,.i.a,J!1~~~1,.Jll.1!iJ;Q.l:mrgu,e,s.es",uallstrumaram a au~-_E!ftica em flage1a

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    ARQUITETOS E MARTIRES DAS MUDAN9AS

    1. A INFLUENCIA DO NOVOAsincertezas que assolavam os burgueses do seculo XIX, e que e les l egaram aos his-

    toriadores, nao serestringiam asquestoes angustiantes relat ivas assuas obrigacoes para comseus inferiores ou a sua reputacao entre poetas e pintores, Mais do que qualquer seculoanterior, essa foi uma epoca de es~peran~asem precedentes e de ansiedades desconhecidas.Nos termos de Gladstone, "uma era de agi tacoes e de expectat ivas ".1 Para os pobres, ob-viamente, traz ia mais agi tacoes do que expec ta tivas ; camponeses e opera rios, soldados emar inhe iros e ram tes temunhas de que a cruel dade e a indi fe renca nao haviam desaparec i-do do mundo. Milha res de pessoas continuavam a viver em Gondic6es de miser ia e imundi-cie extremas nos paises malSadiantados do Ocidente. Os conternporaneos discerniam berno que se passa 'Va; demonstram-no bern os horripi i' :imes Desastres de la Guerra de .Goya,os ater radores rela tos que Florence Nightingale enviava da l inha de f rente na Crimeia, osf le is documentos ofi cia is sobre as condi.oes das classes t rabalhador~~ umJ2asseio a tra-yes desse horror opres sivo e caracGist icamente mo eL!lQ_g! :l .~~o,~s bai rros ~~e isas CI a es III us nats.~odo geral a experiencia burguesa foi muitissimomais gratiflcante,pelo menos na super fic ie. Nao e por mero acaso que foram justamente os bons burgueses,benef ic iar ios evidentes da expansao econornica e das turbulencias poli ticas ocorr idas aoinicio do seculo XIX, que exerceram as maiores pressoes no sentido de mais expansao emais turbulencia, A linguagem uti lizada pelo principe Metternich, afl ito guardiao das tradi-coes europeias, na famosa ava liacao secret a dasua epoca , que submeteu em dezembro de1820 ao czar Alexandre I, demonstra sobe jamente que energias se ent rechocavam no ama-go da burgues ia : que ixava-se de que "classes agit adas " subver ti am a ordem publi ca em to-do 0 continente, 0 rapido" ro resso da mente humana", nao tendo sido aco rnpanhadopelo progresso igualmente rapido da "s.abed~~ avia eva 0 a-jUf!ttrSfJac"ficulares:-e7gi.llldo pensava e l e , era "princip'almente a classe media da sociedade que havia sido afetadapor essa gangrena" . Observava ademais que os subversivos eram l iderados por burguesesat ivos, ta is como "func ionarios publicos , l ite ra tos, advogados e homens encar regados daeducacao publi ca", todos e les infel izmente subjugados pela "presuncao" ." Durante todoo seculo burgues, es ta "presuncao" tornar-se -i a urn inst rumento potente para manter asc lasses medias emrnovimento . Somente os inovadores te ri am fei to uso de out ro te rmo,menos ofensivo: autoconf ianca . Por meios de que seus ancest ra is nao ter iam t ido sequer

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    a capac idade de cogit ar , e sses homens , sufi cientemente Ins truidos ou bern s ituados parapoderem participar dos enormes beneficios do capital ismo, conseguiram passar da passivi-dade a acao, estabelecendo, e efetivamente exercendo, 0 dornfnio sobre seu rnundo; e es-s es meios se mos traram alt amente gra ti fi cantes. "Ninguem que tenha prest ado a tencao ascaracterist icas peculiares da epoca atual", disse 0 prtncipe Albert -, discursando no ban-quete ofe recido ao pre fe ito de Londres em 1850, "duvidara por urn inst ante de que vive-mos urn per iodo de t ranslcoes maravilhosas, que tende cele re a real izacao do grande f impara 0 qual , de fato, toda a hist6ria aponta - a unificacao da humanidade". Com a vis tavoltada para a Grande Exposicao que entao sepreparava, declarou que "os conhecimentosadquiridos setornam imediatamente de dominio publico", de sorte que "0homem se apro-xima do comple to cumprimento da grandiosa e sagrada mis sao que lhe foi at ribuida nestemundo"." 0 tom do prfnclpe consorte e urn tanto complacente, talvez exageradamenteentusiast ico em sua radiante simplicidade. Sua mensagem nao era contudo novidadeparaos que 0 ouviam: trat ava-se de urn chavao conhecido, urn ponto de vist a representa tivodo tema que predominava na epoca. E .B . Tylor , 0evolucionis ta cultural que abriu muitassendas novas, ass im 0 expressou em 1867: "A hist6ria da humanidade" e "a h ist6ria deurn desenvolvimento ascendentc"." Feiras internacionais, tais como a Grande Exposicaolondrina de 1851, a matriz de todas as seguintes, eram ao mesmo tempo documentos einstrumentos do progresso.? Cf9 progresso nao era apenas urn milO para as pessoas respeitaveis. Polit icos radicals, j ' l ; ?fossem eles. de inclioa.c;a,o..:.:utopica" 9u "cientifica", divisavam clarari1ente 0f im ~ e l' cas -. p-) 'Y.

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    . .mente irnutavel demonstrou ser tambem accssivel aspercepcoes e a analise de rnudancas.0 complexo de' Edipo, conforme Sigmund Freud constatou no processo de sua forrnulacao,

    tinha uma hist6ria pr6pria, e esta hist6ria era uma hist6ria social. Comparando 0 OedipusRex [Edipo Rei] de S6focles e 0Hamlet de Shakespeare, Freud chamou a atencao para 0"tratarnento diverso dado ao mesmo material" nas duas tragedias, 0que sublinhava "a enormediferenca de mentalidade dessas duas epocas tao espacadas entre si",uma difcrenca por eleinterpretada como sendo "0 avanco, atraves dos seculos, da repressao na vida emocionalda humanidade".? Com este reconhecimento das mudancas, a psicanalise, que de tantas ou-tras maneiras era subversiva, neste particular se mostrava de acordo com sua epoca.

    Anteriormente, nos seculos XVII e XVIII, os modos tradicionais de pensamento haviamsido esticados e torcidos para acomodar ideias inovadoras aos padroes herdados - 0que,embora com alguma dificuldade, foi feito. Ainda no seculo XVIII alguem podia ser simulta-neamente urn cientista solidamente embasado e urn born cristae, e, se bern que ainda fossepossive! manter esta dupla fidelidade no seculo XIX, tornou-se cada vez mais dificil sustenta-la.Pois nesse interim a Revolucao Francesa e a Revolucao Industrial, acompanhadas e segui-das de turbulencias igualmente profundas nas ciencias humanas, abalaram a maior parte dasestruturas de crenca e de autoridade, chegando mesmo a demolir algumas delas para sempre.

    Essasgrandes turbulencias constituiarn uma presenca constante nas mentes do se.cu~oXIX, gerandosonhos gle,!lOSde_~o~eiro pesade~ue levava os o9!J11s-tas a predizer 0 tri~'s!.21Cia, ~~~?_~.S~!:!:!~'l,.5P:9.Pj);!1toos.pessimtstas eram ~?~ . lJ ? r .Y~LefF IP . ;. I . .c;I;.I"r,$;:!jg_i,9S;J".ll;,llJJ~~~:~:'~'~~M~:~~J..lieLQl,I_acorr~a- o r d e m . Por seculos a fio, as inovacoes haviam sido temidas, fornecen~o, urnreferenci~asan' ;oes violentas; no seculo XIX, este referencial foi lnsrirucionalizado. A,e?o-ca daReforma, cat6licos romanos irritavam os rebel des protestantes com a zombaria retorica."Onde estava a vossa Igreja antes de Lutero?" Maisadiante, no seculo XVI, os puritanos Ingle-ses se viram numa postura defensiva por buscarem "inovacoes no Estado", eum seculo de-pois Cotton Mather vociferava contra os fundadores da nova igreja de Brattle Street, em Bos-ton denunciando-os como agentes de "Satands iniciando urn terrivel terremoto" e como=inooaaores' pecaminosos que promoviam urn "Diade Tentacoes' entre os fleis de Massa-chusetts. Foi s6 depois que os homens do I1uminismo, com Lockena vanguarda, comecararna questionar que direitos 0antigo possuia sobre aspressoes do novo que a inovacao se tor-nou, pouco a pouco, uma idcia aceitavel.!? A era dos pais cedia a era dos filhos. ]a se podiacogitar em rnudancas, e este pensamento se tornou comum.

    De fato, 0 "rnovimento", na sua acepcao mais comum, foi espetacular no seculo XIX.OSmigrantes cruzavam fronteiras, e freqiientemente atravessavam os oceanos. Na decada de1820 os Estados Unidos receberam 150 mil imigrantes; na de 1840, este nurnero aumentoudramaticamente para 1,5milhao. E,na decada de 1880, aAmerica absorveu 0 total Impressio-nante - e para muita gente aterrorizante - de mais de5,2 milhoes de pessoas." Eos EstadosUnidos nao foram 0unico pais areceber migrantes: a America do Sui,as provinciasda Russia, a Africa do Sui e a Australasia se transformaram devido a enxurrada de ...chegados. Estima-se que do inicio dadecada de 1820 ate 0 inicio da decada de 1920, qu~nd_O.severas restricoes reduziram a corrente migrat6ria para os Estados Unidos e para a malOn~dos outros paises aurn mero filete, algo em torno de 62milhoes de pessoas deixaram apa em busca de out ros lugares onde sef ixar. Se bern que esta imensa .fosse constitufda sobretudo por camponeses, artesaos e operarios, muitos burgueses

    (*) Principalmenre genre humilde, expulsa do Leste europeu pelos "decretos demaio" doczar , quesua sobrevivencia impassivel la. (N.T.) ,

    (* *) Em alernao no origtnal. 0 (erma designa especificamente as "Grandes Migracoes" ocorr idas aseculo I I, sob re tudo com referenda as invasoes do h uno s, e de pois de po vo s germantcos e eslavos. (N.T.).

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    partir am em busca de uma vida melhor. Comerciantes falidos, politicos dissidentes, judeusde classe media vitimas da intolerancia, toda essa gente fugia do Velho para 0Novo Mun-do. E a vida economica e social das sociedades burguesas foi afetada pela chegada dos imi-grantes, nem sempre de modo agradavel para os anfltrioes. A migracao era uma aventura,urn caminho para a Iiberdade, para a solvencia economics ou para a seguranca pessoal, po-rem era ao mesmo tempo, principalmente para os pr6prios migrantes, urn trauma que fre-qiientemente tinha efeitos permanentes.o mesmo pode ser dito sobre urn segundo e nao menos drastico tipo de migracao:a mlgracao do campo paraa fabrica, a ofieina ou 0escrit6rio. Esse deslocamento, sazonalou (como era rnais freqiiente) permanente, aumentava a tendencia natural de crescimentodos gigantescos centros metropolitanos do seculo XIX. Nas palavras do falecido RichardHofstadter, em suaAge of Reform [Era das reformas], "os Estados Unidos nasceram no campoe se deslocaram para a cidade".!' A Europa inteira passou por identica transformacao. Con-forme observou Maxime du Camp, 0 historiador da Paris moderna e amigo de.Flaubert,em fins do seculo XIX: "A Inglaterra vai para a India, a Alemanha para a America, e a Fran-ca para Paris". 12 Bern poderia ter acrescentado que a Inglaterra tambern ia para Londrese a Alemanha para Berlim. Enquanto em 1800 apenas 21 por cento da populacao da Ingla-terra e de Gales viviam em cidades de 10mil habitantes ou mais, em 1850 essa proporcaose avizinhava dos40 por cento , e em 1890 excedia os 61 por cento. Outros paises, quemantinham com maior tenacidade suasraizes no campo, ainda assim apresentaram incre-mentos s6 urn pouco menos dramat icos. na Belgica a proporcao passou de 13 a 35 porcento entre 1800 e 1890; nos Estados Unidos, no mesmo periodo, de menos de 4por cen-to para mais de 27 por cento. As vorazes metr6poles constituiam os alvos mais evidentesdessa mobilidade. Em1800, Paris, que jaentao era 0centro absoluto davida francesa, con-tava menos de 600 mil habitantes, em 1850 ultrapassara a casa de urn rnilhao, e em 1900abrigava bern mais do que 2,5 milhoes, Berlim saltou de 420 mil habitantes em 1850, quan-do era apenas a capital da Prussia, para 2 milhoes de habitantes em 1900, quando ja eraa capital daAlemanha imperial. No intervalo davida deuma pessoa estas cidades mudarama ponto de se tornarem irreconhecfveis.

    Tal fuga dos campos, que des de tempos Imemoriais haviam sido 0 lar de praticamen-te toda a humanidade, nao tinha como unico objetivo a meia duzia de capitais. Centrosindustriaise comerciais como Manchester e Birmingham, que meio seculo antes haviamsido meros vilarejos, tornaram-se, em poucas decadas, extensos, pr6speros, miseraveis eagitados aglomerados urbanos. Alguns desse vilarejos foram virtualmente pisoteados atedesaparecerem no solo: em 1801, Middlesbrough tinha 581 habitantes, e Crewe, 121; no-venta anos mais tarde, ostentavam respectivamente populacoes de 76135 e de 28 761 ha-

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    Em 1891, mesmo a Franca, 0 pa is dos si tios e dos v ilare jos , t inha apenas 45 por cento desua populacao trabalhaildo na terra. "."Todas estas cifras sao grosseiras, em varies sentidos. Aexpenencia do seculoXIX exigedist incoes ma is re finadas do que estat ist ic as nuas e c rua s. Foi a e ra do subu:bio~ dofau-bourg, do Vorort, cuja composicao pendia cada vez mais pa ra a ,c la sse operana ,a medidaque 0 seculo avanc,;ava, ernbora continuasse a abrigar asclasses medias. Cada suburbio, fos-se vizinho a Bedim, aRoma ou a Nova York, tinha sua propria historia, e suas origens re-montam frequentcrncnte aos primord ios dos tempos mode rnos. Foi no entanto 0 seculoXIX, especia lmente depois do surgimento das ferrovias, que mais profunda e continuamenteestimulou esses refugios contra 0 ru ido e as rnul tidoes das c idades mode rnas, ge rando 0desenvolvimento dessas pequenas e despretensiosas (eas vezes pretensiosas) propriedades.

    Este surpreendente desabrocharde aglomera\;oes de classe media deu margem a algu-rna inv$e boa dose de zombaria~_ .~! ::Q~~e_rp_~r~._l f.0_.~lv~~ .. '!~!i f: ;l~ do_que 0h~bItari-tedossu15ufDr6s;-orrfoaocc)111qu~ s,evi~}~~_::l~~!.y_e_l!J?':?~ suas aSJl1ra\;oes eradistorcido e p r o a u Z l u u m ! I < ? i f C : Q t ~ S 1 ~ . : i H l ~ . i ~ ~ ~ i H t i ~ t /; .~ .pequeno classico de George e Wee-don GrossmitE:-fhe'15'i~;y o f a Nobody [Diario de urn ninguern], publicado ~m1892e cons-tantemente reimpresso, que retra ta a vida suburbana quase afetuosamente , e0meno,s con-descendente de tais pa squ ins . Ent re tanto, ape sa r de cons ti tui rem urn obje to de desdem, ossuburbios se mostraram invenciveis em toda parte ; H.J. Dyos, 0historiador de Camberwell,suburbio localizado ao sul de Londres, de cer ta feita observou argutamente que os comenta-r istas utilizavam uma linguagem militar quando se refer iarn a esse desenvolvimento eston-teante: "Os exercitos de Alexandre eram grandes produtores de conquistas", escreveu WilkieCollins em 1861,quando mais acentuadamente se acelerava 0 ritmo da suburbanizacao, "cos exercitos de Napoleao eram grandes produtores de conquistas, porern os modernos regi-mentos guerr ilheiros, armados de baldes, colheres de pedreiro e fornos de cozer tijolos, saoos maiores conquistadore s de todos: pois sao e le s que ma is longamente mantern a s terra socupadas"; inclusive apondo nelas "as insignias do conquistador: 'Terreno arrendado p~rafins de construcdo'l ".Camberwell, pouco mais que uma cidadezinha esparsamente habita-da ao inicio do seculo XIX, c re sceu de 39868 ~abitantes em ~841 para anngir 259339 e~1901_ urn crescimento atordoante que septuplicou a populacao em apenas sessenta anos.E, se be rn que uma parcela cada vez ma ior de sse s quase 260 mil habitantes co_mpreendessetrabalhadores respeitaveis que viajavam diariamente para Londres em trens rapidos e bara-tos, e a despeito de Camberwell haver criado sua propria favela,0elemento con~tituidO ?e-las classes medias manteve laa sua base. Asfantasias que os londrinos de classe media reahza-yam em Camberwell, os berlinenses de classe media realizavam em Wilmersdorf. A medidaque asfabricas e os conjuntos habitacionais operarios faziam inchar urn suburbio ,apos0ou-tro - Argenteuil nos arredores de Paris, La Guillotiere proximo a Lyon -, porem, a lgunsdesse s sonhos burguese s se tr ansformavam em pesade los. Neste caso, como em tan tos ou-tros, a experiencia burguesa foi marcada pela ambivalencia.

    Os suburbios, criaturas e criadores das mudancas, se agigantavam nao so comosas cont ra a ansiedade , mas tambern como meios de real iz ar anseios . E as proprias .forneciam mater ia l sufic iente tanto para a grauficacao quanta para ainquietacao. Com anplicacao das fabricas, a mvasao das estradas de ferro e estacoes ferroviar ias, a expansaoedi ficios da admlrust racao publ ic a, a a scensao e queda de ba irros cbnside rados "o seculo XIX produziu urn caleidoscopio de.mudancas habitacionais no inter ior dascidades. Ascifras que relatam essas rnudancas apenas as resumem, sem contudoas intensas experiencias que cada uma dessas migracoes provocava. Astmplicacoesexperiericias, exploradas tanto em obras de ficcao como nas de critica socia l, nao crammente compreendidas a epoca, mas diziam respeito as preocupacoes fundamentals datencia humana: moralidade sexual, disciplina no trabalho, coesao familiar, percepcao dodo espaco e das oportunidades ofe recida s pe la v ida .

    A influencia das rnudancas foi expressa adequadamente pelo emprego encantat6riodo termo "novo". Jacob Burckhardt, 0eminentehistoriador e por principio urn conserva-dor, detectou bern cedo este costume. "Todo mundo quer ser novo", escreveu em 1843,"mas nada alern disso". Tal desejo poderia ser popular , mas nao exigia, na opiniao de Burck-hardt, nenhum esforco mental: "Nada ma is facil do que ser urn liberal", escreve u ele em1841.15 Mais de me io seculo depois, Holbrook Jackson desc reveu a decada de1890 comouma epoca caracterizada por livros que Ievavam titulos como The New Hedonism [0novohedonismo] eThe New Fiction [Anova ficcao] , a ss im como por movimentos que se deno-minavam Novo Paganismo, Nova Vohipia e (numa reacao cvidente a estes) Novo Remorso,a le rn de out ros como 0Novo Espirito, 0Novo Humor, 0Novo Realismo ou 0Novo Tea-tro, i sso para nao fa la r do Novo Sind ical ismo e da Nova Mulhe r. !" Com efe ito, pouco de-pois de 1890 0 critico e ensafsta austrfaco Hermann Bahr observou 0 surgimento repetidode "jovens" e scolas de a rte e l itera tu ra , a te mesmo das "ma is jovens" e scolas . "Acada d ia ",e sc reveu e le , "apa rece uma nova estet ic a do futuro. Cada pessoa oferece ao mundosuaf6rmula pa rt icular de novidade". E sem a minima diivida : "As ant iga sf6rmula s ja presta-r am seus service s e agora re ina uma sede i rr esi st ive l do novo"Y Samuel Johnson ja de -plorara, em 1783, a "furia das inovacoes" amplamente difundidas, nao obstante seutempoter side placido, e tranquilo se comparado aos que sobreviriam vertiginosamente urn secu-10 mais tarde. E indubi tave l que na decada de 1880 urn observador socia l perspicaz comoEmile Durkheim tinha toda a certeza de estar vivendo uma nova epoca, uma nova era.Anter iormente , Waiter Bagehot ja havia resumido, de modo impresstvo, esta convic-cao, no paragrafo de abertura de sua obra Physics and Politics [Fisica e politica]: "Umapeculiaridade dessa nossa era e a sub ita aquisicao de grandes conhecimentos em fisica. Ho-je dif ic ilmente uma area das ciencias sera identica, ou quase identica, ao que era cinquentaanos atras, Urn novo mundo de inventos - de telegrafos e de ferrovias - surgiu a nossavo lta, e nao temos como evi ta r pe rcebe -lo , e spalha -se pelos a re s urn novo mundo de ide ia sque nos afeta , apesar de nao podermos ve-lo". 18E poder-se-ia argumentar que 0 novo rnun-do de ide ia s, a inda que invisfve l, e stava tr ansformando a sociedade do secu lo x~-n~ira,_pe1oEJen()s tao irreversivel quanta asinvenc,;oes perceptfveis, como as ferrovias, ostelegrafos, ou a r e d e o a n c a r I a - T n t e r n a C i O o : l i l . Nao restadl1vTda de qUe"Oil.tmo aismu~sJavifiliasemamenao"eTIrul'l'fiiiVercresgastahte havia algumas decadas quando Bagehot pu-blicou sua avaliacao da epoca em que vivia . Ainda assim, esse r itmo foi-se acelerando a me-dida que a e ra de Vi t6 ria se movia em direcao a e ra de Freud. Relembrando a agi ta cao fre -netic a que animava a vida de sua cidade, Munique, ao inicio da ultima decada do seculoXIX, 0 historiador de arte Hermann Uhde-Bernays lancou mao novamente do ja conhecidoencantamento: "Lutava -se por uma nova a rte, por urn novo tea tro, por uma nova 6pe ra ,por novos concertos dados em novas salas recentemente construidas, pelo rejuvenescime-to das instituic oes educacionais, enfim, por uma vida nova e refrescante em meio a umaatmosfera ressequida emofada";'? Em 1912 0 dr. He rmann Rohleder houve por be rn pre -faciar urn livro sobre higiene e educacao sexuais com outra invocacao dessa realidade avas-saladora dos seus dias: "Decerto todos sabem que cataclismas colossais sao caracteristicos-de toda e qua lque r a rea da nossa cul tura a tual , da ge racao de nossos dias , dos modernos.. campo da tecnologia, vivenciamos hoje inovac oes com que nao havfamos sequer so-. ha quinze ou mesmo ha dez anos, 0mesmo pode ser dito com relacao ao cornercio,indus tria, e - 0que talvez seja0mais importante - com re lacao as c ienc ia s". 0ntigogrego , de que tudo no mundo esta sujei to a modiflcacoes abruptas , "cer tamente nun-tao verdadeiro nem tao justificado como nos dias atuais" .20 Uma era como essa, tontatamas mudancas , sugeria Rohleder, p recis a olha r de urn modo novo a sexua lidade ,evidentemente e sta em transforrnacao, a ssim como todo 0 resto.. Charles Peguy com toda a certeza estava exagerando, mas capturou bern0 espiritotransformac,;oes quando disse , urn ana depois de Rohleder, que "0mundo se modi-

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    ficou menos desde Jesus Cristo do que nos ultimos trinta anos"." Essa difusa paixao pe!onovo nao escapeu itobservacao atenta de estudiosos da cultura contemporanea como AugusteEscoffier, possivelmente 0mais ilustre chef-de-cuisine do seculo burgues. Noprefac io ao seuc lassi co l ivro de recei ta s exc lamava : "0 brado universa l c lama pe1anovidade - a qua lquercu sto , por bern ou it forca l" Falavade recei ta s e de pra tos f inos , mas poder ia est ar com igualpropriedade caracterizando 0mundo inteiro: "Novidade! Estee 0clamor predommante: todosa exigem imper iosamente" .22 Nao obstante , a epoca t inha suas cornpensacoes . Emi le Zola,que encarava os ter rores de seu mundo de manei ra exa lt ada epor vezes rne lodramat ica, pedeainda assim descobrir, como muitos outros, "0 praze r da novidade, a lgo pelo que aspes soasse disp6em a pagar caro em Par is ". 23 E,ao que parece, em algumas das provinc ias t ambem,

    Conforme ja ob servei, e p rovavel que a mais dir eta contribuicao para a v ito ria donovo haja s ido a da propr ia c Iasse media . AseXigenc ias do capit ali smo indus tr ia l for ja ramo q u e v e l O ' a : s e f"Uma r r ov a c lasse media , a lt erando permanentemente os t radicionai s con-tornos da burguesia. Aperfei

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    Freud adotou pos te riormente em sua teori a, const itui urn sinal de a la rme disparadopeloaparecimento de perlgos, reais ou imaglnados, 0 que da ao homema oportunidade de co-locar em campo suas defesas: lut a, fuga, negacaoe outras mais . A descober ta do fenornenoda anomia , fei ta por Durkheim, e intei ramente apropriada a sua epoca , 0 seculoburguesja amadurecido. Aanomia ocorre,segundo Durkheim, peIa inexistencia de llmltacoesnit i-dase de regras reconhedveis de compor tamento, uma desor ientacao soc ial angust iante quetanto po de emergir apos urn surto de prosper id ade como apos urn subito desastre, e coma mesma intensidade irresistivel.Todas essas reveIa

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    Lamartine, poeta e polit ico, expressou sua impressao sobre .aFranca numa Iinguagem bernparecidar 'Vivemos temposca6ticos; as opinioes estao embaralhadas; os partidos, em totalconfusao. A Iinguagem dasnovas ideias ainda nao foi criada" ,34Aprocura intensiva e apai-xonada de uma c ienc ia da sociedade que expli casse e resolvesse tudo, 0 humi lde retornode rebel des aventurei ros a rel ig iao de seus ances trais , e a emergencia de cul tos modernostais como a Ciencia Cr ist a e a Teosofi a sao indicacoes c1arasda necessidade de guias paraatravessar a selva da modernidade. Amistura de generosidade e racionalismo que caracteri-za 0 espfr ito l iberal foi adquir ida por poucose sob pressoes constantes.

    De f ato, as vit6rias do novo, do secular e das ciencias nao foram completas nem in -contestadas . Os antigos habitos , mesmo sendo persistentemente atacados, demonstraramuma vitalidade surpreendente. Areligiao reconquistou muito terreno perdido, especialmenteent re as .pessoas respel tavei s, especia lmente na Inglat er ra . A era de Augus te Comte e deCharles Darwin foi tambern a era do cardeal Newman e de William James. Anteriormente,a lgumas decadas antes da ascensao da rainha Vi t6ri a ao t rono, em 1837, tornara-se nao sopossfve l como tambern ent ra ra em yoga reje it ar t anto 0 defsmo como 0 a te ismo do. I lumi -nismo em favor do retorno a fe dosavos, A famosa observacao de Marx de que a relig iaoe oopio dasmassas constituiu urn serio erro de avaliacao - certamente no que tange aoseculo XIX: a religi ao continuou sendo, ou melhor, vol toua ser 0 6pio das c lasses medias,notadamente na Alemanha , na Ingla te rra enos Estados Unidos. Nestes e em outros pais eshavia grupos inf luentes e ostensivos de descrentes, de agnos ticos moderados , de tefstasfilos6ficos , de posit ivis tasdogmaticos, especialmente naFranca, as convtccoes anticleri-cai s e ant it eo l6gicas herdadas do I luminismo e da Revolucao conservaramuma forca im-press ionante e uma grande a trat iv idade entre a burguesia ins trufda . Ainda as sim, em 1895Emile Durkhe im deplorava "es ses t empos de urn mis tic ismo renascente", e inc lu ia a Fran-ca no ambito de suas preocupacoes.s>

    Nem mesmo a rel ig iao , contudo, era uma defesa Invulnerave l contra 0 desespero.Raramente era uma fe i sentade angus ti as. Os avances dramaticos e cumula tivos das c ien-c ias natura is , verdade iro escanda lo para os f ie is. is e para mui tos const itufam uma fonte deprognosticos anirnadores , para outros eram causa de temerosas reafirmacoes. Ascienciasprovocaram os mais engenhosos sofismas em defesa dos credos de antanho, 0 que por sis6 ja e ra urn s in toma de ans iedade. 0 que nao surpreende nmguem e que foram justamenteos desenvolvimentos de maior impacto da epoca , em par ti cular a indus tr ial izacao e a urba-nizacao, que evocaram as aprec iacoes mai s sombrias e as previ soes mai s por tentosas daparte dos modernos Jeremias. Blake estava em boa companhia ao denunciar as ,".a.,u._""'sa tanicamente escuras" , e Met te rn ich nao era nenhum excentr ico ao deplora r a perdaneral izada de fe e de estabil idade.

    ~~ . .. .. ..~."decada, urn pais ap6s outro, vozes progressistas e conservadoras

    ll!

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    do que de suas reflexoes ace rca das rnudancas . De qua lque r fo rma , e le nao e ra dado a luta rcontra 0Inevitavel. .Os lei tor es e admiradores de Tocquevil le e ram freqilen temente menoscri te riosos emenos reslgnados do que seu mestre. Em 1851, ap6s haver lido seus livros, Henri-FredericArniel , profe ssor, c rit ico e fi l6sofo que v ivia em Genebra , hoje lembrado rna is em funcaode seus diaries tnurnos do que de seus trabalhos publicados, observou que "as obras deTocqueville proporcionam a mente muita calma, mas deixam tambern um certo desgosto.Pe rcebe -se a inevi tabi lidade do que esta por v ir". Eisuma postura ol impica que provave l-mente nao teria desagradado Tocqueville; mas Amiel era por demais agitado para contentar-secom ela: "Nao ha duvida de que a era da mfJlOCridade esta proxima e a mediocridadecongela gualguer desejo .A..iiiiifQi~j"".el!E:lf!2!!!!!~~";.saCtifiCa "oexce~ota-vel, 0 extraordinario". Amiel temia que a "melancolia" : :' :" S ji ee e n' - viesse a "tornar-sea enfe rmidade do seculo igualitario", urn temor compart ilhado por a lguns pa rtida rios daigualdade. Inevitavelmente, "0bela sera subs ti tuldo pe lo ut il i a s a rtes , pe la indus tria; a re -l ig iao, pela economia pol it ic a, e a poesia, pe la a ri tmeUca" . Nessa e ra v indoura de indlvl -dualismo e de uma subdivlsao caaa vez' m alOr~o, os "individuos ideals" desapa-receriarn; 0 "tempo dos grandes homens esta chegando ao fim, a epoca das multidoes"esta pr6xima. "Asociedade sera tudor 0 Indivtduo, nada. As estatfsticas reglstrarao grandesprogresses, e os moralistas, urn declfnio gradual." Ern suma, 0 "bem-estar universal" queo seculo XIX prometia atingir estava "custando caro dernais". 0 progresso, par mais dra-matico que fosse , s imples mente nao va lia 0 seu preco. Conforme obse rvaram os i rrnaosGoncourt, estava tudo de ponta-cabe

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    . .) origin~l, tambem as reflexoes sobre 0 i ndiv iduo e sobre a sociedade, gerararn-se ass im ex-

    pec ta trvas de que aroda-viva da exi st encia humana ceder ia a apl icacao da intel igencia deque 0 eterno cielo das epidemias , das grandes fornes, da rniseria general izada e das guerrasdevastadoras finalmente seria rompido. Na esfera da s reallzacoes humanas a nova atmosferafoi bern simbolizada pelo que Alfred North Whitehead denominou "a invencao da lnvencao".

    Os homens do Iluminismo sublinharam a assa em da assiv idade a a ao r evivendo~m antigo prover 10 romano, que est ivera adormec ido a traves dos seculos c ri st aos cu'~fn.t.~~.~...l:.~q1f..e .~ ~lOmem e~.!UIs:.~. Bacon ja 0 havia dito, ass im comoDesc,a rte s e Locke , antes queeTe se tornasse uma das expressoes favor it as dos pbilosopbesno seculo X~III .~secl ,l lo XIX,jae ra amplamente ace ito como verdade . "0homem", dis -se John Davies numa rel ih lao do I li sti tU lO dOs Mecarucos de Manches te r em 1827 "ternque ser ~ arquiteto de sua p r6pria f ama". Esta imagem ag radavel nao perdeu tao cedo suapopulandade . Em David Copperfield, Dickens poe na expressao da sra. Micawber a for teesperanca de que, embarcando com sua familia para iniciar uma nova vida na Australiao sr. Micawber pudesse tornar-se "0Cesar de sua pr6pr ia sor te". E em 1878, em Newbury:port, Massachusetts, 0edi tor do Herald elogiava dois ricos notaveis locais, ambos homens"de o rigem humilde" que a vida cedo " tornara dependen tes de seus pr6prio s recu rso s""homens Integros, apl icados, e de uma perseveranca lndomavel " que os levara ao suces so- "naturalmente". Ambos haviam sido os "argu itetos de sua ;r6pria sorte" .46 Para taishomens, e numa tal epoca, a anomia era al 0 im rovavel e a ansiedade, se e ue al urnayg_che~~