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  • Jean-Luc Nancy I Chantal Pontbriand, uma conversa

    Nesta entrevisto de Chantal Pontb nand com o filsofo jean-Luc Nancy, realizado por e-mail em junho de 2000, poro o edio espeCial do revisto Parachutte sobre

    o idio de comunidade, so explorados vrios aspectos do trabalho do filsofo francs, que comento seus conceitos de "toque" e "comunidade", assim como suas relaes com o linguagem, com o corpo, com o arte e por entre os artes. Poro ele,

    o toque tem o dimenso de, 00 mesmo tempo, afastamento e proximidade.

    I Comunidade, toque. corpo, arte contem por6nea. \

    Chantal Pontbriand Gostaria que voc explicasse seu conceito de comunidade e sobretudo co mo se pode passar de uma comunidade exclusiva (englobando da microcomunidade dosI amantes at a comunidade universal do esprito que perpassa o Cristianismo) comunidade que est surgindo e u/trapassar essa exclusividade.

    \ Jean-Luc Nancy Primeiro, quero esc larecer que no gosto de usar o termo "comunidade"

    isolado e sem grandes precaues. Esse termo ganhou fNte conotao de "comunidade

    exc lusiva", como voc mencionou, e talvez tenha sempre denotado essa exclusividade.

    O que procuro trabalhar direta e completamente contra essa viso de comunidade e contra qualquer interioridade de comunidade. por isso que prefiro falar em ser/estar-emcomum ou ser/estar-com. I So expresses pesadas, eu sei. Sua densidade evita a seduo da palavara "comunidade". Mostra tambm que est faltando uma palavra (como falta uma entre "sujeito" e "singular", por exemplo). Tento pensar no no que denominado "uma comunidade", mas no se r/estar-com enquanto constitutivo do prprio ser (ou ser-em-si , se preferir), na medida em que no se pode conceber um sujeito, um "si mesmo", que precedesse uma relao com os outros. Ser-com-os-outros est originalmente presente em "ser si mesmo". "Eu" sou, em primeiro lugar, "com" (prximo de) aqueles que precedem meu nascimento e aqueles que seguem minha morte. Eis o essencia l: a dimenso do "com" o que foi dado como "natural" num mundo de mitos. Em nosso mundo temos que invent-Ia.

    Nesse sentido no h uma gradao de comunidades (de amantes at toda a humanidade, como voc disse). H primeiro um "ser/estar-com" universal (que tambm um "ser/estorcom" de vrios "reinos": humano, animal, vegeta l, mineral). claro que esse "se r/estar-com" no geral e indiferenciado, mas divi dido em singularidades (grupos, ordens, meios, indivduos, histrias). O que a comunidade crist uni versal e a dos amantes tm em comum o amor, na medida em que no nos mais poss lvel conhecer um "amor" que no seja de alguma maneira cristo - e amor significa dividir o impossvel. a designao expressa de um impossvel (o amor como uma nica vida de muitos). O impossvel como gozo (e no o gozo como impossvel!) ou ento o "corpo mstico" como corpo se m cabea (o Acfalo), corpo sem fim e, finalmente, corpo sem corpo... Toda comunidade deve partilhar o impossvel, sob pena de cair sob o jugo alucinatrio de uma interioridade, de uma identidade, etc.

    CP Pode-se conceber uma comunidade diferenclOda, ou seja, mu/titnica, multicultural, multiconfessional7 JLN Nenhuma outra comunidade concebvel: o "multi" constitutivo do "ser/estar-com". [A palavra francesa] "ave c" quer dizer "prximo a", do latim "apud". Em alemo, "mit" significa

    TRADUO J E A N L U C N A Ney I C H A N T A L P O N T B R I A N D 145

  • a/e REVIS TA DO PROGRAMA DE PS-GRAD U AO EM AR TE S V I SUA IS EB A U F R J 2 oO,

    "em meio a, entre". A proximidade imp li ca a pluralidade (e uma certa distncia). Nas representaes do mundo moderno, a multiplicidade tem sido absorvida pelas unidades denominadas "indivduo", "nao", e mesmo "cu ltura", "lngua", etc: pOI-que essas unidades (e no h dvida de que sejam unidades) tm sido entendidas como formadoras de identidades (propriedades inalienveis, sem diferenas internas e, no extremo, sem relaes externas: pense no conce ito pol tico de "soberania"). As unidades de povos, de culturas e de lnguas poderiam ser vivenciadas de outra maneira em um mundo que no fosse dominado pela estrutura representativa da auto-apropriao. Considere, por exemplo, que um imprio - o egpcio, por exemplo - no pretendesse tal unidade na interioridade (no estou fazendo aqu i a apologia dos imprios! Estou colocando um t ermo diferencial). OI-a, hoje chegamos exausto da aut o-apropriao: at a auto-apropriao e o autocrescimento do capital (o "desenvolvimento" ou o "crescimento" como normas ao mesmo tempo absolutas e vazias) exibem lentamente seu vazio. claro que ainda existem capita listas, mas a figura dominante no mais aquela do indivduo capitalista: a do mel-cado, e o mercado a comunidade em t ota l intel-ioridade, mas cujo interior vazio (ou an6nimo). Falar em "multiculturalismo" pressupor que haja cu lturas const itudas, "identitrias", fechadas, e que sua coexistncia seja um problema a resolver. como falar em "intersubjetividade": pressupem-se sUJeitos, e, ento, pergunta-se como ir de um ao outro! Mas uma cultura um ngulo de viso ou um modo de apreenso das coisas que s se abre em e por meio de uma co-abertu ra com outros. como uma lngua: uma nica lngua vrias lnguas. Isso significa que, ao dizer "apud" ou "mlt" ou "with", ao dizer "ensemble" ou "togeth er", cada lngua interpreta de modo singular algo que no pertence a lngua alguma, algo que no da ordem da linguagem, mas que no existe em nenhum lugar exceto nas prprias lnguas, uma a uma e coexistentes, (capazes e incapazes de se traduzirem entre si). Nesse caso, o "qualquer coisa" o "conjunto", o "comum" como t al. Mas "como tal" nada signifi ca se no o interpretarmos imediatamente (digo "interpretar" em um sentido teatral ou musical: se voc no o desem penho, no o executo) em uma lngua ou outra e, ento, em sua (in)tradutibi lidade mtua. CP O que acabou de dizer foz com que os diferentes lnguas paream indispensveis para se pensar o mundo em suo diversidade e complexidade. Como possvel reconciliar o coexistncia de lnguas (e suo preservao em um contexto de crescente uniformizao) sem depender do identidade?

    JLN As lnguas no desaparecero, mesmo que morram lnguas todos os dias, Haver uma lngua universal da comunicao, que j est se tornando realidade, mas haver sempre lnguas diferentes nas quais o pensamento e a poesia se do, porque eles so inseparveis da singularidade de uma lngua, E essa singularidade no da ordem da identidade: um movimento, um deslocamento incessante em si e em relao aos outros.

    CP Como e at que ponto pode o noo de comunidade substituir o de sociedade? H tempos, o conceito de comunidade tornou-se equivalente o uma viso pr-moderno, indiferenciada de ser/estar-com, enquanto o noo de sociedade permiti0 o superao dessa viso Qual o contexto que torno necessrio esse retorno - quase intempestivo - do ou para o noo de comunidade?

    JLN "Sociedade" poderia ser efetivamente a palavra: o SOCIUS o companheiro, o aliado, (Talvez, at mesmo, em sua variao mais dist ante, o companhei ro de guerra, portanto, uma ligao que se forja no combate contra os outros). E certamente no nego que a "sociedade" se solid ifique apartando-se de outras: ela deve distinguir-se de outras singularidades coletivas. (De ixa rei de lado a questo da guerra e outras relaes desse tipo). Mas a palavra "sociedade" (outrora freqentemente usada como associao, como agrupamento que poderia ser at ntimo: pense em "soc iedade secret a"! muito poder ia ser dito sobre o que essa expresso sugere) foi progressivamente sendo determinada ao d istingui r-se da unidade interior ("Estado" ou "comunidade"), como unidade em exterioridade

    t

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  • (relaes de propriedade, comrcio e direito, e no relaes de intimidade, amN, identidade), A "sociedade" tornou-se o lugar de interaes relativamente extrnsecas de tomos sociais (indivduos, famOias, grupos diversos), levantando o problema de ajuste de funcionamento: onde est o interesse comum) Por que, e ento como, deve haver associao? Ao mesmo tempo, vlido lembrar que "sociedade" conserva um significado bastante forte em Marx, como em outros, na idia de "produo social" do homem: a sociedade - ou o ser/estar-com - como o lugar e modo de humanizao e, mais ainda, de "homenizao", Por isso, alis, durante os ltimos 150 anos, uma grande oscilao de e entre as palavras "socialismo" e "comunismo" tem atravessado totalmente suas histrias, O que, em minha opinio, projetou o "comum" - o cum, o "com" - foi o fato de que a "associao" j apal-ecia como um elo posterior, enquanto o "comum" evocava uma realidade pl-imeil-a, uma partilha constitutiva do prprio ser. Mas a questo que surgiu com essa palavra (e, com "comunismo") foi esta: em que consiste essa partilha do ser. realizada no ser,J que elo no se d mais em um mito, em uma figuro, em um ritual e numa identificao do "comum"? Em que ela consiste, se, justamente, ns j no a podemos mais conceber pe la guerra, j que a prpria guerra ligada a tal mito?

    CP Voc acha que a arte - que tem sido considerada uma prtica individualista na arte ocidental - pode expressar ou, melhor, engendrar uma nova viso de comunidade? Ou o arte est destinada a permanecer um tonto "arcaica", como voc j disse? JLN O que "arcaico" significa nesse contexto : o comeo na sua potncia infinita de recomear. De fato, acho que a arte to arcaica quanto o prpr io homem (o que no nada original de se dizer) e que nessa condio arcaica a arte representa algo que nunca foi idntico religio ou poltica, Se a arte s pode "permanecer arcaica" no sentido de que, a cada poca, cada configurao, cada modo de "arte", ela reexecuta incessantemente essa "qualquer coisa" de no-religioso, no-poltico e tambm no-social. e, alis, igualmente nopsicolgico; "qualquer coisa" que tem a ver com o sentido e a partilha do sentido: entendo "sentido" alm da significao lingstica e numa partilha/diviso que tambm aquela dos sentidos (audio, vi so, etc.) na medida em que esses sentidos constroem o "com": da proximidade e da distncia, Ouvir-se, ver-se, tocar-se, deixar-se escutar, ouvir, ver, tocar, cheirar: a arte enquanto intensificao de um "sentir-se" como a tcnica - mltip la - de permitir-se sentir-entre-ns-a-passagem-de-um-sentido-entl-e-ns-e-o-mundo, se voc me permite essa tentativa de conceituao (estou brincando!'" mas ao tentar responder a sua pergunta diretamente, sem escrever um verdadeiro ensaio, de fato no posso fazer outra coisa seno cair nessa extrema contradio, o que, para mim, tambm sinaliza a dificuldade e incerteza do que indicado pela palavra "arte"), CP Voc sente uma mudana na arte contempor6nea ou um maior interesse pela questo do comunidade, como parece acontecer na filosofia' JLN Sim, parece-me muito evidente: os artistas hOJe esto em geral muito pl-eocupados com seu papel na sociedade, seu papel no '''comum'' ou como quiser chamar, A ponto de freqentemente a dimenso de uma colocao em comum - no sentido de uma colocao diante de todos, de uma ex-posio da qual a prpria obra espel-a sua eficcia (em vez de haver primeiro a obra e depois sua exibio) ser mais importante do que, digamos, a conformao da obra, J no se diz, alis, a "obra", fala-se em "trabalho" de um(a) artista: privilegia-se o momento da atividade, da transormao, e dessa atividade faz parte , intrinsecamente, a "publicao", se posso usar a palavra nesse sentido, do trabalho, Ou, melhor, um "trabalho" uma entrada imediata na dimenso pblica (mesmo quando isso acontece durante muito tempo no isolamento do ateli), Evidentemente, no fundo, isso no nada de novo l Lascaux tambm, j e essencialmente um lugar de "publicao" nesse sentido, mesmo no sendo nem um museu, nem um espao de interveno e sem dvida nem mesmo um templo", A arte original e constitutivamente mostra, exposio,

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  • a/e REVISTA DO PROGRAMA DE PS-GRAD UA AO E i~ ARTES VISUAIS EBA UFRJ 2001

    comunicao, envio, endereamento, partilha (a dificuldade que todas essas palavras so fortemente carregadas e at mesmo infectadas por uma ideologia comunicacional e comunitarista ... ). No h nada menos solipsista do que a arte (e isso no contradiz em nada tudo que possa ser radicalmente so litrio num artista). CP Voc se refere o Loscoux como outro modo de pensor o orte no mundo. Poder-se-ia imoginar que o orte fododo otuolmente, sob novos conjunturas, posso reencontrar formos de efetivao, de orgonizoo ou de exibio que lembroriom oquelos de outras civilizoes ou pocas (como o Idode Mdio) e oindo ossim, evidentemente, inventor formos indItas? JLN O que quis dizer que Lascaux permanece irredutvel a vrias interpretaes (magia? religio? caai projeo? jogoi) e, portanto, expe o que sempre prprio arte. Em certo sentido, qualquer um que tenha acesso a uma obra de arte (criador e/ou espectador) entra, a cada vez, novamente na caverna. Mas nunca um "retorno". No h qualquer "retorno". Nem qualquer previsibilidade. A arte necessariamente o im-previsto.

    CP A questo do corpo poderio estar fgodo do comunidode? Como voc explicano o preseno do corpo no orte contemporlneo, uma preseno crescente nos ltimos quotro dcados do sculo 20 e que continuo o se fozer sentir hoje? Poder-se-io traor um porolelo com o lugor do corpo no (llosofio, suo representao ou ot o moior preseno do corpo no filoso(lo - do quol os seus prprios escritos, entre outros, so testemunhos?

    JLN Se me permite, agruparei essas trs perguntas. A questo do "corpo" deve ser defin ida ou discernida com grande preciso e precauo. No a questo do "sensvel" versus o "inteligvel" ou de uma "matria" versus um "esprito" ou uma "alma": porque enquanto recorrermos a esses pares de oposies cail'emos em suas armad ilhas (e freqentemente o fazemos, mesmo que implicitamente, quando se fala do "corpo", numa espcie de afirmao selvagem antiespiritualista ou antiintelectualista, bastante compreensvel, mas com riscos de permanecer sumria). De fato, transformamos o "corpo" em "espr ito": ns o fazemos portador de cargas significantes. Se voc o afasta dessas oposies, o "corpo", na verdade, designa duas co isas interligadas: a primeira a coexistncia, a segunda ser/estor-fora-de-si. A coexistncia a existncia contanto que no comece por um sujeito (que ento encontraria ou reconheceria outros), mas pela pluralidade de sujeitos, plul'alidade que pertence 00 ser-SUjeito (como gosto de dizer: o singular plural). A pluralidade implica o espao, o espaamento, a distncia (distncia e toque, a distncia do toque). A materialidade dos corpos no "matria" no sentido fsico-fisiolgico do term o: no o objeto material, o espaamento, o longe e o perto, o contato e o afastamento, a relao e a no-relao. Isso o que corpos so em primeiro lugar - e nisso eles, de novo, so fundamentalmente no

    fl'sicos, apesal' de serem tambm impenetrveis (mas a isso tel'amos que voltar mais tarde) - no so fsicos, mas distantes. pertos, alcanveisinalcanveis, desejveistem veis, erticos , poderosos, fracos, fugitivos e confrontantes, etc. Por outro lado, o ser/estar-fora-de-si sign ifica que um SUjeito s "sujeito" quando exposto a e por outro dele mesmo e nele

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  • mesmo: o corpo no o exterior de um interior que permanece autnomo, separado ("alma" ou "esprito"), e cujas re laes com o exterior ento seriam de difcil compreenso; ao contrrio, o corpo o fato de que o suje ito est em exterioridade consigo, que sua "mesmice" acontece precisamente nesse "fora-de-si",

    Mediante esse duplo motivo, que forma uma conexo nica - ser-muitos-fora-de-si-mesmo -, o corpo corresponde a um mundo no qual o "sentido" no pode Jamais ser remetido a uma interioridade situada fora do mundo (em um cu ou em um esprito: a mesma coisa), O sentido est, no entanto, na circulao, no afastamento e na aproximao dos corpos, ou o afastamento e aproximao que so os corpos, Por isso que o corpo intervm mais visivelmente na arte de hoje, a ponto de tornar-se o prprio lugar do trabalho na body art (o u a ponto de dar novo destaque dana e s vrias formas de performance), Entretanto, penso que o corpo sempre esteve presente na arte, e que h um certo tipo de paradoxo em se falar "crescente presena": toda pintura, toda msica, toda dana sempre foram do corpo (tomemos um nico exemplo: por que a import ncia do nu na pi ntura?), e gostaria de formular a razo disto revertendo a pro posio: o corpo , sobret udo e de todo modo, arte, O corpo a-arte-e-a-maneira, como se diz, de uma ex-po sio que a cada vez singu lar, O corpo desde o comeo danar, soar; figurar; eu d iri a at, traar e desenhar. O corpo um traado, uma marca - uma centelha, um eco, um ritmo... - do ser singu lar-plural que somos "ns".

    Em certo sent ido, quando a arte lida com o corpo, ela lida consigo mesma: consigo mesma e, ass im , com o ser/estar-com.

    CP Concordo que o impressionante no arte contempornea o foto de "o corpo ocupar-se de si mesmo" mais do que o corpo como temo, algo que o performance colocou enfaticamente em evidncia, e que tem sido retomado em fotografia e em vdeo, Isso, no minha opinio, seria o diferena entre o que se foz agora e o relao do corpo com a histria da arte, que essencialmente uma histria da representao do corpo, Essa transformao do corpo em um "instrumento" (para gerar pensamento) significativo paro voc? JLN No, no, eu no diria "corpo-instrumento". Diria o oposto: o in strumento como corpo. O pincel, a cmera, o trompete como "corpo". l"1 as o que signi fi ca "corpo"? l"is no reso lvemos isso, Corpo significa espaamento , salto , intervalo, proximidade/afastamento. Corpo significa uma dana que tambm a dana de todas as artes, Corpo um pensamento sobre o afastamento, o intervalo, por meio do qual tocamos ou, me lhor, o pensamento como intervalo que toca.

    CP Sua viso de comunidade muito ligado noo de toque. O livro que jacques Derrida escreveu recentemente sobre seu trabalho muito explcito sobre essa questo, Voc acredita que a arte hoje participa dessa sua viso de comunidade, no mais uma comunidade cUJo significado derivaria de uma grande narrativa, mos uma comunidade do sentido, que faz sentido, uma comunidade, portanto, de ligaes e toques, elaborada de maneira mais pragmtica do que dogmtica?

    Essa abordagem significa que uma arte orientada para o viso chamada o se diversificar, a lidar mais com todos os sentidos ou a trabalhar mais a partir de todos os sentidos - e o que j se est produzindo, acho, com a instolao e o performance, por exemplo - ou, para voc, o toque deve ser privilegiado?

    JLN Agruparei tambm essas duas perguntas. Acho que j falei sobre toque. Insistirei apenas no seguinte: o toque implica tanto o afastamento quanto a proximidade. O toque acesso ao que permanece inacessvel ou, melhor, inincorporvel, inassimilvel. O toque respeit o (t ato, diz Derrida) exterioridade e alteridade. Mas no pode ser uma questo de "privilegiar o toque" porque o toque no tanto um sentido ao lado dos outros, mas o

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    prprio sensvel atravs do afastamento dos sentidos. Todos os sentidos tocam de um jeito ou de outro, e cada sentido toca os outros: aproximao e distncia. As artes fazem o mesmo: uma arte intensifica uma sens ibilidade ou uma sensorial idade, levando-a a um extremo em que, precisamente, ela toca as outras (e talvez toque a si mesma ao mesmo tempo: na msica, o som toca a si mesmo, se relaciona com e le prprio, por exemplo, ressoa: e esse um paradigma para todas as artes) . Assim as artes tocam umas as outras (entram em contato e se afastam, mas sempre se atingem, se esfregam mutuamente , ressoam umas nas outras). E todas as artes tm a ver com um "toqu e" emocional, afetivo ou passional: e las so o toque singu lar de um pensamento.

    CP Se (ar esse o coso, esso maneiro de direcionor o prtico do toque estario ligado prprio materialidade do corpo que elo reclamo, no contexto de um mundo que cada vez mais invadido pelo tcnica e cada vez mais disposto o deixar o corpo poro trs ou desconsider-lo? Essa desconsiderao do corpo, suo sublimao, por exemplo, no esporte, nos psicotrpricos e outros dispositivos do vido otual, no sinalizo um "mal-estar no civilizao"? No hoveria uma certa urgncia, at mesmo num sentido poltico, em ocupar-se do corpo, e do vida, de outro maneiro que no o vigente? As prticas artsticas dos ltimos anos, to orientados poro o corpo, seriam um sinal disso? Poderamos o esta altura introduzir suo distino entre uma tcnIco sem (Im e o orte - que sempre uma orte do (Im "cli(endo" ou "disperso", e, poro cit-lo, "de algo diferente do (Im; o in(lnito desde o incio presente, com suo inquietude e seu el, com suo violncia e seu tumu/to"- e tentar conceber o arte como um modo de pensar o tcnica que nos permItisse sair do vazio em que o tcnico-tcnico, o tcnica por si mesmo, nos deixo imersos? Uma maneira de gerar sentido com o tcnico pelo arte, (ora dos mitos talvez? JLN Sem dvida. A arte se rea liza na obra, passa por ela (at mesmo quando a obra se "desfaz": a obra mais "minimal" ainda uma obra, e o "desfazer-se" lhe essncial). Mas acho, sobretudo, que o que prp rio da arte que ela no termina com sua finalizao. Pelo contrrio, o que a arte expe. que brota com sua obra, com seu funci o namento, um fim infinito ou uma ausncia de fim. A arte se liberta, por prnci pio bsico, da submisso a um fim. claro que devo empregar meios para pintar, um suporte, as cores, e devo visar a um "quadro" (digamos assim para simp lificar). Mas o quadro no visa a nada, exceto seu prprio ser-quadro, isto , seu ser/estar exposto ("publicado" , como disse antes), e por ele , nele , e "enquanto e le", ele visa a uma re lao com a ausncia de fim: com uma ausncia de fim que nem a religio, nem a filosofia , nem a tica, nem a poltica so capazes de sustentar ou de representar.

    Nesse sentido, a arte no deixa de ser a prpria tcnica (techn - ars - artes liberais/mecnicas/belas-art es, etc.: no entrarei nessa histria toda, que bem conhecida). A arte a tcnica desvenci lhada de toda aparncia de um fim fora dela mesma. Mas essa t cnica sem fim tambm a pr pria tcnica num aspecto essencial: a tcnica aquilo que, no tendo uma natureza nem uma sobrenatureza preestabelecida, de qualquer ordem, abre para si indefinitivamente um acesso ao "sem fim". Pde -se crer que a tcnica tivesse metas: comercia li zar, dom inar, medir, curar, e mais, que sei eu) Mas cada uma dessas metas ela prpria sem meta ou sem fim. A tcnica a desnaturao infinita e nela e por ela que ns somos ou nos tornamos "homens" (o que tambm sem fim) e que o mundo se torna um mundo (tambm sem fim). Sem fim pode tambm significar: acabando em seu prprio aniq uilame nto.

    A arte de certa forma contm a tecnicidade pura. To logo haja uma ferramenta, h tambm arte . Com a pedra lascada vem uma marca gravada na rocha: a marca expe a essncia da ferramenta... E a marca, alis, precisa da ferramenta! No h arte sem artesanato, sem oficina, sem a inveno de meios para fins no dados, para fins no finais ..

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  • CP Ser que o que chamamos de "novas tecnologias" criam uma diferena para o devtr da arte, no sentIdo de que elas no so mais manuais, mas coda vez mais virtuais? Walter Benjamin, por exemplo, considerava que a reproduo mecnica (fotogra fia, filme) engendraria importantes mudanas em nosso modo de conceber arte (e o mundo). JLN No sei ao certo o que significa "virtual". Usa-se essa palavra como um fetiche, para designar uma irrealidade. Mas a imagem virtual s chamada assim porque seu suporte parece impalpvel. Na verdade, a tela do monitor tambm "subjetvel" ["subjectile"], como a tela de pintura, o papel, ou o gesso. Ela tambm real. Naturalmente a sntese digital da imagem engendra pr-oced imentos e posturas diferentes. Mas o que me parece interessante pensar sobre o seguinte: a questo no a "reprodutibilidade" e transmissibilidade da obra de arte, mas muito mais uma questo de reproduo e transmisso como trabalho de arte. Eis, na minha opinio, uma verdadeira questo. A arte torn a-se tambm tcnica de multiplicar, de multiplicar-se e difundir-se, isto , de se re lacionar consigo mesma como e por uma d istncia, uma diferena, um retorno de si para si, em que o si mesmo se afasta e se rene "em si mesmo". por isso que, me parece , muitas das obras atuais trazem o t ema de sua prpria reproduo em sua estrutura e no processo de sua feitura: desdobramento, eco, retorno, rejei o, retomada. E por isso h sempre uma maneira de se tocarem ao se afasta rem de si, CP Nesse sentido, poder-se-ia imaginar um tipo de "esttico do pele" que poderio tomar vrias formos, se inco rporar de diversos maneiras, e ento libertar-nos mais efetivamente dos cdigos e gneros herdados do histria do arte ocidental? Cdigos e gneros incrustados em categorias e disciplinas distintos (msico, dano, artes visuais, at culinrio .. .) freq entemente de acordo com seu uso do corpo, um uso repartido de maneiro que cada disciplina habitualmente se refere a um nico sentido, a um nico rgo.

    JLN Sim, a pele como ex-peausition2 (como um dia me permiti escrever). Realmente acredito nisso. Acho que hoje, toda ar-te volta-se para a pele propriamente: a pintura tem feito isso desde ... como dizer) desde Czanne, mas assim que digo isso penso que desde Giotto isso verdade, desde Lascaux... Acho que a pintura faz pele e pinta sobre a pele (quero dizer com isso que a superfci e pintada se torna pele: pele de pintura l Perdoe-me esse outro jogo de palavras, mas inevitvel!...). Em msica, o timbre. Na dana, ... a prpria pele, sem "malhas" nem tutu. No cinema o u no vdeo, a tela (a cada vez uma mudana de pele [perlage] diferente, uma reflexo singular, um gro, um tato) . - Quanto ao fato de a arte se remeter a um sentido, evidentemente muito mais complicado: para comear, que sentido? A msi ca cria imagens, tatos, a pintura murmura sons... E uma arte no corresponde a "um sentido": e la intensifica, exacerba uma regio, uma partilha sensvel. Desse modo traz o sentido a seu limite: quando a cor grita, por exemplo! Enfim , cada arte toca constantemente as outras: toca e retrai-se. Por isso uma fuso das artes sempre uma confuso: perdem-se a intens idade e a tensa problemtica do contato entre zonas. Da os problemas da pe ra , de Wagner, e freqentemente do happening ou da performance. Mas no condeno nenhum gnero! De jeito nenhumli ! O importante saber o que se quer: um ideal fusional ou um contato corporal de intensidades. (E isso tambm v lido, e interessante, para as relaes entre as artes ocidentais e as demais.) CP Voc poderia elaborar suo concepo de comunidade em relao a sua familiaridade com as prticos artsticas atuais, como cinema ou dano, por exemplo? (Estou pensando no cineasta Abbas Kiarostami ou no coregrafo Mathilde /vi onnier. que particularmente o interessam.) JLN O que est me pedindo mu ito difTcil: a nica resposta verdadeira est no trabalho em curso, neste momento, desses do is artistas (ou recentemente de outros: Franoi s Martin, com quem fiZ Le Soleil se couche, moi aussi [CEAAC, Estrasburgo, 1999], o u Susanna Fritscher, com quem fiz Mmm mmmm [Au Figur, Paris, 2000]) . Em todos eles (mas com tamanhas dife renas! Isso o que importai ), descubro um modo de ser sendo/estando-com - diri a isso

    TR ADU O. JEANLUC NANCY I CHA NTAL PONTBRIAND 151

  • a/e R E V 1ST A DO P R o G R A rv; A D E PS - G R A D U A A o E M A R T E S V I 5 U A I S E B A U F R J 2 o o 1

    em vez da pesada palavra "comunidade" - por meio de um gesto de (se) atirar para frente ,

    (se) lanar. A tela de projeo (para Kiarostami) ou o corpo (para Mathilde Monnier)

    tornam-se algo inteiramente diferente de um espao ou um suporte de representao: o acesso

    o, o entrado para e o interior de um "exterior" para onde se emigro.

    CP Voc no se ope grande mediatizao do vida contemporJnea, que voc conecto o suo concepo de comunicao, e comunidade (entendido fora de qualquer finalidade). Poderio repassar os ligaes que voc considero entre esses conceitos?

    JLN "No me oponho", como voc disse, na medida em que o que teria que ser chamado de posio de oposio mostra hoje seus limites; est completamente desgastado. E por qu)

    Porque pressupe sempre um fundamento de autenticidade, de verdade, de originalidade. e

    de "originaridade" [originarit] pe lo qual todo o resto ser medido (simulacro, espetculo, etc.). Mas no digo, de jeito nenhum, que mediatizao comunicao!l! Ao contrrio: se a comunicao realmente comunica alguma coisa so intensidades, foras, afetos - dificilmente conceitos. Um afeto no comunicado como uma quantidade de informao: mas como

    uma quantidade de energia. (Na realidade, a questo mais profunda seria: existe informao

    sem energia? E por a teramos que atentar para o conceito filosfico de energeia: fora e operatividade, atualizao da fora). Mas a comunicao de uma energia supe interrupo: como num impacto em que h a transmisso de energia (aprende-se isso nas leis do impacto). Na medida em que a mediatizao suave, lisa, contnua, evitando qualquer impacto ou choque, ela nada comunica. O que est por ser comunicado sempre, de certa

    maneira, o incomunicvel, e para isso tem de haver interrupo na (ou melhor "da")

    comunicao. Da mesma forma, o que a comunidade mantm em comum - a morte.

    CP Voc veria no arte contemporJnea - que lido constantemente com o mediatizao, o que

    parece mesmo ter-se tornado suo principal questo, tonto no formo quanto no propsito - um

    modo ou tolvez vrios modos de abordar questes do comunidade e do corpo que lhe interessam?

    JLN No acho que a arte contempornea esteja dominada pela obsesso com a

    mediatizao: est mais preocupada com a questo do meio em geral. E essa q uesto

    certamente tem a ver com a idia de "mediatizao", mas num nvel ainda insuspeitvel. O

    que quero dizer que at o final do sculo 19, o "medium" era ignorado, subordinado (pelo

    menos na aparncia, porque um artista sempre soube que seu problema era um tipo de tela,

    uma qualidade de pigmento, uma fatura de tubo). A frase de McLuhan - "o meio a

    mensagem" - no , em certo sentido, novidade alguma para arte: a mensagem da arte

    sempre seu meio, uma pincelada e um matiz e uma espessura de pintura. Na verdade, a arte

    ignora qualquer "meio": sempre uma i-mediao [im-mdiation] do meio. I-mediao no

    "imediaticidade": negao da mediao no mago de seu prprio exerccio.

    CP Voc escreveu sobre o paralelismo entre filosofia e comunidade. Pode-se pensar o arte desse

    mesmo modo. como um pensamento mais pragmtico. mais "relacionante" ["reliant"j3 do que antes?

    JLN Por que "mais do que antes"? A arte sempre foi e no pode jamais deixar de ser

    "relacionante" Ela no tem absolutamente mais nada a fazer. Talvez todo o resto tenha algo

    mais a fazer. Mas a arte apenas "relaciona". Coloco a Septuor de Beethoven para voc

    escutar: o que exatamente estou fazendo) Provoco uma passagem, ou uma partilha se

    preferir, entre voc e eu, entre ns e os msicos, e um compositor, e os engenheiros de som,

    e os produtores de discos, etc. Mas a Septuor no foi escrita para nada alm disso, mesmo

    que no traga marcas desse fato.

    CP Poderio uma abordagem mais performtico do que performante. inscrito no mesclo com o

    real, aproximar mais o arte do idio de comunidade, por privilegiar elementos do real em

    detrimento de um ideal de "beleza"?

    ~-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    152

  • JLN A questo principal se ria saber se "beleza" designa uma ideal idade situada alm do comum, ou se uma realidade em funcionamento no comum, Na verdade, "beleza" no nem um, nem outro, um movimento - e sempre um movimento pelo qual possvel ser/estar "com", No h com sem beleza, Nem o inverso. A menos que seja mais justo dizer "sublime": o que abriria uma outra discusso.

    CP Finalmente, como ligar o comunidade "inoperante", que voc descreve em seu livro

    com esse mesmo nome,3 00 conceito de obra, tal como entendido em arte? Ser que poderamos eventualmente chegar o pensar o arte fora do noo de obro, assim como voc penso o comunidade de outro Jeito e no enquanto "obra"?

    JLN Em arte, a "obra" nunca o produto, Freqentemente os dois so confundidos, O prod uto feito, finalizad o, responde a uma expectativa e/ou a normas (e certamente prec isamos de produtosl No me oponho a eles, de maneira alguma: diria at que gosto de produtos que me revelem finalidades que ignol-ava). Mas a "obra" sempre intr insicamente o que os ingleses chamam de um "work in progress". Digamos: there is no work without progress - e: the progress is the work - e: the progress goes into the work itself os wel/ os out the work. 4 A "inoperncia" no o negat ivo da obra: o que, na obra ou, sendo mais preciso, no operar, excede a cada momento e infinitamente o produto, a satisfao, a realizao. Por que a obra de arte sempre oferece um trao de algo no completo, de irrealizao, de suspense, de indeciso) Por qu? A questo no boa: porque exatamente ela no tem um fim num produto, D mais uma olhada, e mais uma, e mais uma, na infeliz lv1onalisa: por que ela infel iz) Porque carrega a cruz da imagem da "Arte" com A maisculo, E por que esse destino) No ser porque esse um quadro in comp leto, inacabado, por excelncia? A ponto de ser o quadro do incomplet o, da indeciso (o fundo, alis, contrasta um viaduto ret o e projetado direita e um caminho tortuoso e ngreme esquerda). Isso para no falar no son-iso e no sexo: no que faz aqu i sorrir o sexo, rir-se de si mesmo e ser apenas sorrir.. .

    Jean-Luc Naney e fdso fo e prOfessor da Umverslda.dc de Estrasburgo. nd rr-dna . Seus livros Incluem le porwge des voix. 1982. Lo comnwnotl t desc;f!uvre. r986: L'ot.!bli de la phlrC)sofi~. 1 986~ Une pfr1se {fr'';e . ! 990; Le pOlds d'e.me pensee . 199 1; Corpus. 1992: Les muses. 1994 : re srn;:.ul!@I p/wl e/, 1996: L! (egord c1v pOfUOIl. 2000 e L'mt({J~ , 2000 Rec entemente . Jacques Dernda escreveu uma monozra fijJ sobre seu trabalho, intitulada l e TOucher: Jean -Lue Ncm~)' ~c:dl tions Gahle). em Gl.,e comen.ta seu conce ito de toque, sua marca reg.strada, e ilfirma, na. apresentao: 'N unca senti a u i ponto ,1 enigmtICa e desconfortvel necessidade do idlom como em expresses do tipo 'toc.ar ao coraAo ', 'tocar ti c rao', lal'lto por' seus valores llera!g quanto ligurativos, s vezes um, s vezes outro. sem que haja QUJI uer posslbllrdade de: ~cfso" ,

    Traduo: Glse le Ribe iro e Glr ia Ferreira.

    Notas da traduo

    I Os verbos "ser" e "estar" em francs, assim como em ingie:s e outras lnguas. se unem em um nico verbo, "rre", As expresses " ~re-ovec" e "ere-soi" usadas por Ni'l.ncy fi c--=1fn ass;:':-, dif(ceis de ser traduzidas por permitir- tanto um estado permanente, como no sentido de "ser", quanto um estado provisrio, como no sentido de "estar", Gri fo da tl'aduo,

    , logo com as palavras pele e exposio, No originai em francs: "Oui, lo peau en [ont qu'ex-peousition"

    J La communaut desoeuvre, 1986, Edio em Ingls, Th e Inopera tiVe Communlty, 1991,

    ' Todas as frases em ingls fazem parte do texto origina i.

    T RA O UO' J EAN LU C N A NCY I CHANTAL PONTBR I AND 15 3


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