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O Amante Fantasma Vernon Lee COLEÇÃO MISTÉRIO  OBRAS-PRIMAS DO SUSPENSE SOBRENATURAL  A Phantom Lover  Vernon Lee  Uma mulher de inusitada beleza. Um marido ciumento. Um amor que se recusa a morrer. O cenário está pronto para um trágico mistério.  William Oke continua vendo sua esposa Alice com o amante, embora ninguém mais possa vê-lo. Alice pode estar possuída pelo espírito de uma ancestral antiga, também cha mada Alice, que teve um caso com um poeta antes de ele morrer em circunstâncias mi steriosas. Por outro lado, Alice pode simplesmente ser uma mulher obcecada pela história de sua família, que veste-se como sua ancestral só para irritar William. My favorite, Oke of Okehurst: or the Phantom Lover , belongs in the tradit ion of psychological ghost stories like The Turn of the Screw . I?d had never read Vernon Lee (pseudonym of Violet Paget) before, and her style impressed me for its clarity, ability to blur the line between reality and fanta sy, and for the sense of mystery her stories maintain until the end. Disponibilização: Marisa Helena, Digitalização: Marina, Revisão: Marlene, Formatação: Poi sis (Marília)  AO CONDE PETER BOUTORLINE,  EM TAGANTCHA, GOVERNO DE KIEV, RÚSSIA.  Kensington, julho de 1886.  Meu Caro Boutourline,  Lembra-se de certa tarde em Florença, quando você estava sentado em frente à larei ra e lhe contei o caso da Sra. Oke, de Okehurst?  Você  aficionado que é dessas coisas  achou a história fantástica e instou-me a colocá- a imediatamente no papel, embora eu protestasse que, nesses assuntos, escrever e qüivale a exorcizar, quebrar o encanto, e que a tinta da impressão afugenta, com a m esma eficácia de litros de água benta, os fantasmas que poderiam nos assombrar praze rosamente.  Entretanto, se você, como desconfio, hoje atribui o eventual encanto daquela h istória à forma como vínhamos nos sugestionando com assuntos fantásticos de todo tipo, n aquela tardinha junto à lareira e se, como temo, a história da Sra. Oke de Okehurst agora lhe parecer inócua e pouco lucrativa, a leitura deste pequeno livro pelo men os servirá para recordar-lhe, em pleno verão russo, que existe uma estação chamada inver no, um lugar chamado Florença e uma pessoa, sua amiga, chamada  Vernon Lee  Capítulo 1  Aquele esboço ali com o boné de menino? É a mesma mulher, sim. Não sei se você adivinh a quem ela é. Criatura interessante, não acha? Com certeza a criatura mais maravilho sa que já conheci: de uma elegância assombrosa, extravagante, inverossímil, pungente; uma graça estudada, um rebuscamento perverso em cada gesto e feição, cada movimento da  cabeça e do pescoço, das mãos e dos dedos. Aqui estão vários esboços a lápis que fiz enquant  me preparava para pintar seu retrato. De fato, em todo o caderno você só verá desenho

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O Amante FantasmaVernon LeeCOLEO MISTRIO OBRAS-PRIMAS DO SUSPENSE SOBRENATURAL A Phantom Lover Vernon Lee Uma mulher de inusitada beleza. Um marido ciumento. Um amor que se recusa a morrer. O cenrio est pronto para um trgico mistrio. William Oke continua vendo sua esposa Alice com o amante, embora ningum mais possa v-lo. Alice pode estar possuda pelo esprito de uma ancestral antiga, tambm chamada Alice, que teve um caso com um poeta antes de ele morrer em circunstncias misteriosas. Por outro lado, Alice pode simplesmente ser uma mulher obcecada pela histria de sua famlia, que veste-se como sua ancestral s para irritar William. My favorite, Oke of Okehurst: or the Phantom Lover , belongs in the tradition of psychological ghost stories like The Turn of the Screw .I?d had never read Vernon Lee (pseudonym of Violet Paget) before, and her style impressed me for its clarity, ability to blur the line between reality and fantasy, and for the sense of mystery her stories maintain until the end. Disponibilizao: Marisa Helena, Digitalizao: Marina, Reviso: Marlene, Formatao: Poiesis (Marlia) AO CONDE PETER BOUTORLINE, EM TAGANTCHA, GOVERNO DE KIEV, RSSIA. Kensington, julho de 1886. Meu Caro Boutourline, Lembra-se de certa tarde em Florena, quando voc estava sentado em frente lareira e lhe contei o caso da Sra. Oke, de Okehurst? Voc aficionado que dessas coisas achou a histria fantstica e instou-me a coloc-la imediatamente no papel, embora eu protestasse que, nesses assuntos, escrever eqivale a exorcizar, quebrar o encanto, e que a tinta da impresso afugenta, com a mesma eficcia de litros de gua benta, os fantasmas que poderiam nos assombrar prazerosamente. Entretanto, se voc, como desconfio, hoje atribui o eventual encanto daquela histria forma como vnhamos nos sugestionando com assuntos fantsticos de todo tipo, naquela tardinha junto lareira e se, como temo, a histria da Sra. Oke de Okehurst agora lhe parecer incua e pouco lucrativa, a leitura deste pequeno livro pelo menos servir para recordar-lhe, em pleno vero russo, que existe uma estao chamada inverno, um lugar chamado Florena e uma pessoa, sua amiga, chamada Vernon Lee Captulo 1 Aquele esboo ali com o bon de menino? a mesma mulher, sim. No sei se voc adivinha quem ela . Criatura interessante, no acha? Com certeza a criatura mais maravilhosa que j conheci: de uma elegncia assombrosa, extravagante, inverossmil, pungente; uma graa estudada, um rebuscamento perverso em cada gesto e feio, cada movimento da cabea e do pescoo, das mos e dos dedos. Aqui esto vrios esboos a lpis que fiz enquanto me preparava para pintar seu retrato. De fato, em todo o caderno voc s ver desenhos dela. Meros rabiscos, na verdade, mas do uma idia de sua graa maravilhosa, fantstica. Aqui ela est apoiada na escadaria; neste outro, sentada no balano. Neste, a vemos saindo da sala, apressada. Este o seu rosto. Como voc pode notar, ela no propriamente bonita: a cabea demasiadamente grande, o nariz curto demais. Nenhum d uma idia dela, pois era tudo uma questo de movimento. Veja as faces estranhas, encovadas, um tanto quanto sem relevo. Pois bem: quando ela sorria, mostrava umas covinhas maravilhosas. Havia nela algo de perturbador e delicioso. Cheguei a iniciar o tal retrato, sim... mas nunca o terminei. Primeiro fiz o do marido. Com quem estar o retrato dele hoje? Ajude-me a afastar estes quadros da parede. Obrigado. O retrato dela este aqui. Um desastre colossal. No creio que lhe transmita grande coisa: as cores esto apenas indicadas e nota-se um certo desequilbrio. Como voc pode ver, minha inteno foi retrat-la encostada em uma parede havia uma revestida de amarelo, quase marrom de forma a realar-lhe a silhueta. Curioso que eu tenha escolhido essa parede em particular... Sim, do jeito que est, ela aparenta mesmo uma certa loucura... Mas gosto do quadro: tem alguma coisa dela. Gostaria de emoldur-lo e pendur-lo, mas as pessoas fariam perguntas. Voc adivinhou certo, a Sra. Oke de Okehurst, sim. Esqueci que voc tinha parentes por aquelas bandas. Alm disso, suponho que os jornais da poca exploraram bem o assunto. Sabia que tudo aconteceu diante dos meus olhos? Hoje em dia mal consigo acreditar que foi assim, tudo parece to distante vivido, porm irreal, como um produto da minha imaginao. Na verdade, foi muito mais estranho do que qualquer um possa imaginar. Para as pessoas, foi to incompreensvel quanto ela prpria o era. Duvido que algum alm de mim jamais tenha compreendido Alice Oke. No me julgue insensvel: embora ela fosse uma criatura maravilhosa, estranha, era impossvel sentir pena dela. Muito mais me compadeci do marido, aquele infeliz. O desfecho pareceu-me to coerente com a pessoa dela... acho que, se o tivesse conhecido de antemo, ela teria aprovado. Ah, nunca mais terei a oportunidade de pintar o retrato que eu queria pintar! Foi como se ela me tivesse sido enviada pelo cu ou por aquele outro lugar. Nunca lhe contaram a histria com detalhes? Bem, eu no costumo mencion-la, as pessoas so to tremendamente estpidas ou sentimentais... Mas a voc eu conto. Vamos ver... Como hoje j est escuro demais para continuar pintando, posso cont-la agora. Espere: tenho que virar o rosto dela para a parede. Ah, que maravilhosa criatura aquela! Captulo 2 Lembra-se, trs anos atrs, quando lhe contei que aceitara retratar um casal de fidalgotes do Kent? Na verdade, nunca pude entender o que me levou a dizer sim quele homem. Um amigo o trouxe certo dia ao meu ateli. O Sr. Oke, de Okehurst era esse o nome no carto de visitas. Um jovem muito alto, muito bem talhado, de bela ctis clara e viosa, belos bigodes louros e roupas de belo corte em tudo idntico a centenas de outros rapazes que vemos no Parque todos os dias e em tudo absolutamente desinteressante, da ponta dos cabelos biqueira das botinas. O Sr. Oke, que fora tenente dos Azuis antes de se casar, estava visivelmente muito constrangido por se encontrar num ateli de pintor. Causava-lhe estranheza um homem que usava casaco de veludo em plena cidade. Ao mesmo tempo, porm, mostrava-se ansioso para no me tratar, de forma alguma, como se trata a um comerciante. Caminhou de um lado para o outro pelos meus aposentos, observou tudo com a mais escrupulosa das atenes, balbuciou algumas frases elogiosas e depois, com o olhar pedindo socorro ao amigo, tentou entrar no assunto sem conseguir. O assunto, gentilmente explicado pelo amigo, era que o Sr. Oke desejava saber se meus compromissos me permitiam pintar retratos dele e da esposa, e quais seriam as minhas condies para tanto. O coitado ruborizou-se como uma rosa vermelha durante essa explicao, como se me fizesse a mais imoral das propostas; e eu reparei na nica coisa que ele tinha de interessante, um franzir nervoso do cenho, muito estranho: duas rugas perfeitamente simtricas, que geralmente indicam alguma anormalidade e que um alienista conhecido meu chama de sobrecenho manaco. Depois que respondi, ele irrompeu em explicaes um tanto confusas. Sua esposa... a Sra. Oke... tinha visto alguns dos meus quadros... pinturas... retratos... na... como se chama mesmo?... Na Academia. Ela... Enfim, eles... eles a haviam impressionado muito bem. A Sra. Oke possua um gosto extremamente apurado em matria de arte. Enfim... desejava muitssimo que eu pintasse seu retrato e o dele, etecetera. Minha esposa uma mulher admirvel , acrescentou de sbito. No sei se o senhor a julgar bonita... ela no o propriamente, entende? e nesse ponto o Sr. Oke soltou um breve suspiro e franziu o cenho daquela forma estranha, como se um discurso to longo e uma opinio manifestada com tanta veemncia tivessem exigido dele um enorme esforo. Minha carreira passava por um momento um tanto infeliz. Uma cliente minha, pessoa muito influente (lembra-se da senhora gorda, sentada diante da cortina prpura?) chegara concluso de que eu a pintara velha e vulgar o que ela era, por sinal. Todo o seu crculo se voltou contra mim, os jornais noticiaram o fato e, pelo menos por aquele momento, eu era visto como um pintor a cujos pincis mulher alguma deveria confiar sua reputao. As coisas iam mal. Assim, prontifiquei-me com excessivo entusiasmo a aceitar a proposta do Sr. Oke, e acertamos que eu seguiria para Okehurst dali a duas semanas. Entretanto, a porta mal se fechara atrs de meu futuro retratado e eu j me arrependia da minha precipitao, e meu enfado, s de pensar em desperdiar um vero inteiro pintando os retratos de um fidalguete do Kent absolutamente insosso e de sua mulher no menos insossa, foi aumentando cada vez mais medida que se aproximava o momento da execuo. Lembro-me claramente do espantoso mau-humor que eu exibia ao tomar o trem para Kent e do meu humor ainda mais tenebroso quando desembarquei na pequena estao mais prxima a Okehurst. Chovia a cntaros. Senti uma deliciosa raiva ao pensar que minhas telas ficariam perfeitamente encharcadas antes que o cocheiro do Sr. Oke pudesse acomod-las no alto da carruagem. Bem feito para mim, por ter vindo quele lugar desgraado s para pintar aquela gente desgraada. Seguimos caminho na chuvarada implacvel. As estradas eram um atoleiro de lama amarela. Debaixo dos carvalhos, as pastagens interminveis e planas, estorricadas por uma longa seca, agora se transformavam numa odiosa maaroca pardacenta. A paisagem era de uma monotonia insuportvel. Meu nimo foi piorando cada vez mais. Pus-me a imaginar o casaro moderno de estilo neogtico, com mobilirio Morris, tapetes da Liberty e os romances de praxe de Mudie, para onde certamente me conduziam. Minha imaginao evocou vividamente os cinco ou seis pequenos Okes aquele homem na certa tinha pelo menos cinco filhos, as tias, as cunhadas e primas, a rotina imutvel do ch da tarde e das partidas de tnis e, sobretudo a Sra. Oke, a jovem senhora saltitante e bem-informada, a dona-de-casa exemplar e politicamente participante, a organizadora de campanhas de caridade que um homem como o Sr. Oke julgaria uma mulher admirvel. Sentindo um frio na boca do estmago, amaldioei minha ganncia ao aceitar aquela encomenda, minha fraqueza ao no ter me livrado dela enquanto era tempo. Entrementes, tnhamos entrado numa vasta propriedade, ou melhor, numa longa sucesso de pastos, pontilhados aqui e ali por grandes carvalhos sob os quais os carneiros agrupavam-se para fugir da chuva. Ao longe, embaadas pelas cortinas de gua, via-se o perfil acachapado de umas colinas, com um debrum irregular de abetos azulados e um solitrio moinho de vento. Fazia decerto uns dois quilmetros que passramos por alguma casa e no se vislumbrava nenhuma adiante nada, a no ser as ondulaes do capinzal calcinado, escurecido e encharcado sob os imensos carvalhos negros, e do qual chegava, por todos os lados, um suspiro plangente e vago. Por fim a estrada desenhou uma curva sbita e descortinou-se o que s podia ser a casa do meu cliente. No era o que eu imaginara. Numa vrzea, um casaro de tijolo vermelho, com empenas arredondadas e chamins alongadas tpicas da poca de Jaime I; uma construo esparramada e tristonha a se elevar no meio do pasto, sem sinal de jardim dianteiro e apenas umas rvores grandes a indicarem a possibilidade de um jardim nos fundos; e tambm sem nenhum gramado, mas sim, do outro lado da depresso arenosa, que fazia pensar num fosso aterrado, um carvalho gigantesco, acachapado e oco, de negros galhos retorcidos e calcinados, onde um mero punhado de folhas tremulava sob a chuva. No era nem vim pouco como eu havia imaginado a moradia do Sr. Oke, de Okehurst. Meu anfitrio recebeu-me no hall, vim recinto amplo, de paredes revestidas at meia altura com madeira entalhada e decorado com retratos at o curioso teto abobadado e nervurado como a parte interna do casco de vim navio. No seu traje de tweed, pareceu-me ainda mais louro, mais rosado e branco, mais totalmente medocre e tive a impresso ainda mais afvel e desinteressante. Enquanto meus pertences eram levados para cima, conduziu-me at seu escritrio, uma sala enfeitada com chicotes e apetrechos de pesca, em vez de livros. A umidade era muita e a lareira estava acesa. Depois de atiar as brasas com um chute nervoso, ele me ofereceu um charuto. Peo desculpas por no apresent-lo imediatamente Sra. Oke , disse. Minha mulher... Enfim... creio que minha mulher est dormindo. A Sra. Oke est indisposta? , perguntei, animado pela sbita esperana de ainda poder me livrar de toda aquela histria. No, no! Alice est bastante bem; pelo menos, to bem quanto costuma estar. Minha esposa no goza de uma sade muito boa , acrescentou aps uma pausa, num tom extremamente decidido. Uma natureza nervosa. No, no! Nenhuma doena, nada de grave, entende? apenas nervosa, no deve se aborrecer nem se exaltar, segundo os mdicos; precisa de muito repouso... esse tipo de coisa. Fez-se um penoso silncio. Aquele homem me deprimia, sem que eu soubesse o porqu. Tinha um ar ablico, perplexo, em total desarmonia com a sade e fora patentes, admirveis. Suponho que o senhor seja um exmio desportista? , observei, movido por puro desespero e indicando com a cabea os chicotes e canios. Ah, no! No mais. J fui. Abandonei tudo , respondeu ele, de costas para a lareira e olhando o urso polar a seus ps. Agora eu... no tenho tempo para isso , acrescentou, como se me devesse uma explicao. O senhor sabe... um homem casado... , e mudou de assunto de repente: No gostaria de subir para os seus aposentos? Mandei preparar um especial, para que tenha onde pintar. Minha mulher achou que preferiria a claridade do norte. Se no lhe agradar, pode escolher qualquer outro. Samos do escritrio e atravessamos o amplo hall de entrada. Menos de um minuto depois, eu j no pensava nos Oke ou na enfadonha tarefa de retrat-los: estava simplesmente deslumbrado com a beleza daquela casa, que eu imaginara de estilo moderno e filisteu. Era, sem sombra de dvida, o mais perfeito exemplo que jamais vi intrinsecamente o mais perfeito e mais primorosamente conservado de um velho solar ingls. Do hall imenso, com sua gigantesca lareira em cantaria cinza e preta, de delicados entalhes e incrustaes, e suas fileiras de retratos de famlia que iam das meias-paredes revestidas de madeira at o forro de carvalho, abobadado e nervurado como o casco de um navio, saa uma escadaria ampla, de degraus largos, parapeito, em intervalos regulares, encimado por monstros herldicos e parede recoberta por entalhes em carvalho, de brases, folhagens e pequenas cenas mitolgicas pintadas em vermelho e azul desbotados e realadas com ouro envelhecido, harmonizando-se com o azul e o ouro antigos do couro repuxado que ia at a cornija de carvalho, tambm delicadamente pintada e dourada. As armaduras palacianas, de um belo adamascado, pareciam nunca terem sido tocadas por mos modernas, embora no exibissem sinal de ferrugem. At os tapetes sob nossos ps eram persas do sculo dezesseis. As nicas coisas contemporneas eram as imensas braadas de flores e samambaias dispostas nos patamares, em vasos de mailica. Tudo estava no mais absoluto silncio, apenas l de baixo vinha o carrilho de um relgio antigo, argnteo como o chafariz de um palcio italiano. Tive a impresso de que me conduziam pelo palcio da Bela Adormecida. Que casa esplndida! exclamei, seguindo meu anfitrio por um corredor comprido, tambm forrado de couro, revestido com entalhes e decorado com grandes arcas e cadeiras que pareciam sadas de um quadro de Van Dyck. Eu tinha a forte impresso de que tudo aquilo era natural, espontneo, que nada tinha a ver com o pitoresco que os decoradores modernos impingem s residncias das pessoas ricas com veleidades estticas. O Sr. Oke no entendeu o que eu quis dizer. E um prdio velho, bonito , disse ele. Mas grande demais para ns. A sade de minha esposa no nos permite receber muitas visitas, entende? E no h crianas. Pareceu-me perceber um certo queixume em sua voz e ele evidentemente afligiu-se por ter dado essa impresso, pois apressou-se em acrescentar: No que eu tenha a menor simpatia por crianas. No entendo como se possa gostar delas. Se alguma vez um homem se desviou de seu assunto para dizer uma mentira, pensei, era exatamente o que Sr. Oke fazia naquele momento. Depois que ele me deixou num dos dois imensos quartos reservados para mim, atirei-me numa poltrona e tentei recapitular a extraordinria impresso que aquela casa deixara na minha mente. Eu era muito suscetvel a impresses desse tipo e, alm do surto de interesse fantasioso que s vezes me despertavam certas personalidades raras e excntricas, no sei de nada mais reconfortante do que o encanto, mais tranqilo e menos analtico, do que uma casa totalmente fora do comum, do que qualquer estilo. Sentar num quarto como aquele em que eu estava, com os desenhos da tapearia a cintilarem em tons de cinza, lils e prpura luz do entardecer; a ampla cama de cortinado colocada bem no meio as brasas enrubescendo sob a salincia da pedra da lareira de cantaria italiana com incrustaes e o vago perfume das folhas de roseira e especiarias deixado nos vasos de porcelana por mos de damas h muito desaparecidas, enquanto l embaixo o relgio de vez em quando me enviava sua distante cantiga de uma poca j esquecida, e enchia o quarto... Fazer isso uma forma especial de volpia, peculiar, complexa e indescritvel, como a semi-embriaguez do pio ou do haxixe, e que, para ser transmitida a algum, tal como eu a percebo, pede uma genialidade to sutil e intensa quanto a de um Baudelaire. Depois de me vestir para o jantar, ocupei de novo meu lugar na poltrona, retomando tambm meu devaneio e deixando todas aquelas impresses do passado me permeassem e invadissem a mente que, embora to esmaecidas quanto os desenhos das tapearias, pareciam-me to clidas quanto as brasas na lareira e to doces e sutis como o perfume das fenecidas folhas de roseira e das especiarias esmagadas nos vasos de porcelana. No pensava em Oke nem em sua mulher. Sentia-me totalmente s, isolado do mundo, dele afastado por aquele prazer extico. Pouco a pouco as brasas fizeram-se mais plidas; os desenhos da tapearia, mais sombrios; a cama de colunas e cortinado tornou-se menos visvel; a cor cinza pareceu encher o quarto e meus olhos se deixaram atrair para o janelo curvo, dividido por pilastras, para alm de cujas vidraas e pesado trabalho em pedra estendia-se um campo cinza e castanho de capim calcinado e encharcado, pontilhado por grandes carvalhos, enquanto ao longe, por trs da franja irregular de escuros abetos escoceses, o cu mido tingia-se com o vermelho-sangue do crepsculo. Entre o tamborilar das gotas de chuva l fora, na hera, ouvia-se, mais tnue ou mais agudo, o balido intermitente dos cordeiros desgarrados das mes, um gritinho melanclico, trmulo e lgubre. Sobressaltou-me uma sbita batida na porta. O senhor no ouviu o gongo do jantar? perguntou-me a voz do Sr. Oke. Eu havia me esquecido de sua existncia. Captulo 3 Vejo que me totalmente impossvel reconstituir minha primeira impresso da Sra. Oke. Tal lembrana estaria inteiramente influenciada por meu conhecimento posterior. Da onde concluo que, de incio, no posso ter sentido o estranho interesse e admirao que aquela extraordinria mulher logo despertaria em mim. Interesse e admirao, bom que se diga, de um tipo singular, uma vez que ela era uma mulher muito singular e eu, voc h de convir, sou um homem um tanto ou quanto singular. Mas isto explicarei melhor mais adiante. Uma coisa certa: devo ter ficado indescritivelmente surpreso ao deparar-me, na pessoa de minha anfitri e futuro modelo, com algo to diferente de tudo que eu havia imaginado. Ou no: pensando bem, no fiquei nem um pouco surpreso, ou, se fiquei, o impacto dessa surpresa no deve ter durado mais que um milsimo de segundo. A verdade que, depois de conhecer Alice Oke em carne e osso, tornava-se impossvel lembrar que a tnhamos imaginado de outra forma. Havia, em sua personalidade, algo to completo, to completamente diferente de qualquer outra pessoa, que diramos ter sempre estado presente em nossa conscincia, ainda que sob a forma de enigma. Deixe-me tentar transmitir-lhe alguma coisa dela. No aquela primeira impresso, qualquer que tenha sido, mas sua realidade absoluta, tal como aos poucos aprendi a enxergar. Para comear, devo repetir, reiterando uma e outra vez que ela era, sem comparao, a mulher mais graciosa e bela que j vi mas de uma graa e beleza que nada tinham a ver com qualquer experincia anterior daquilo a que damos tais nomes: uma graa e beleza que imediatamente se percebia como perfeitas, e que nela se conjugavam como pela primeira e, creio eu, pela ltima vez. Voc no acha possvel que a cada mil anos possa ocorrer uma combinao de traos, um padro de movimentos, um perfil, um gesto novo sem precedentes, mas que no entanto venha ao encontro de nosso anseio pelas coisas belas e raras? Era uma mulher muito alta e suponho que a julgassem magra. No sei, pois jamais a olhei como se olha um corpo carne e osso, esse tipo de coisa mas sim, e apenas, como um maravilhoso conjunto de linhas e uma personalidade maravilhosamente inusitada. Alta e esbelta, certamente, e sem um s trao daquilo que, no nosso conceito, constitui uma mulher bem-feita de corpo. Era to reta quero dizer, tinha muito pouco do que chamamos de curvas quanto um bambu. Seus ombros eram um pouquinho altos e sua postura visivelmente encurvada. Jamais desnudava os braos e ombros. Mas sua silhueta de bambu possua tal flexibilidade e imponncia, tal harmonia de linhas a cada passo, que me impossvel compar-la com o que quer que seja: tinha um no-sei-qu de pavo e de cervo, embora fosse, acima de tudo, ela mesma. Quisera poder descrev-la. Ah, como eu queria, ai de mim! Queria, queria, j o quis centenas de milhares de vezes... Poderia pint-la, tal como vejo agora: basta fechar os olhos... Ainda que fosse apenas sua silhueta. Pronto! J a vejo nitidamente, andando pelo salo, os ombros ligeiramente altos completando o encantador conjunto de linhas desenhado pelas costas retas e flexveis, o pescoo longo e formoso, a cabea de encaracoladas madeixas, claras e bem aparadas, sempre um pouco cadas sobre a testa, a no ser quando ela as jogava para trs e sorria, no para mim, nem para ningum, nem de algo que algum tivesse dito, mas como se ela e s ela tivesse de repente visto ou escutado alguma coisa; aquelas estranhas covinhas nas faces magras e plidas e a estranha brancura nos olhos grandes e redondos: naqueles momentos em que seus movimentos evocavam os do cervo. Mas de que adianta falar dela? Sabe, acredito que nem mesmo o maior dos pintores seja capaz de nos mostrar a verdadeira beleza de uma mulher bela no sentido habitual da palavra. As mulheres de Ticiano e Tintoretto devem ter sido mil vezes mais belas do que eles as representaram. Alguma coisa que seria a prpria essncia sempre nos escapa, talvez porque a verdadeira beleza seja algo que se d tanto no tempo1 quanto no espao. Veja bem, estou falando de uma mulher convencionalmente bela. Pois imagine a que ponto isto no se aplicaria ainda mais a uma mulher como Alice Oke. E se lpis e pincel, capazes de imitar cada linha, cada nuance de cor, so incapazes de consegui-lo, como seria possvel que eu lhe desse a mais vaga noo com meras, mseras palavras palavras que no possuem mais do que um pobre significado abstrato, uma acepo impotente e convencional? Para encurtar a histria, a Sra. Oke de Okehurst, na minha opinio, era bela e estranha no mais alto grau uma criatura extica, de descrio to impossvel quanto seria impossvel tentar explicar o perfume de uma flor tropical recm-descoberta comparando-o ao perfume da rosa ou do lrio. Aquele primeiro jantar foi bastante soturno. O Sr. Oke Oke de Okehurst, como o povo de l o chamava era tremendamente tmido e consumia-se no medo (ou assim pensei na ocasio) de se passar por tolo diante de mim e da esposa. A sua timidez, porm, no ia diminuindo com o tempo; e logo descobri que, embora a presena de um perfeito estranho sem dvida a exacerbasse, quem a suscitava em Oke no era eu, mas sua mulher. Volta e meia ele parecia prestes a fazer algum comentrio e ento, subitamente, controlava-se e permanecia em silncio. Era muito estranho ver aquele jovem forte, belo e viril, com tudo para fazer grande sucesso junto s mulheres, de repente gaguejar e ficar rubro diante da prpria esposa. No que ele se julgasse estpido, pois, quando estvamos os dois a ss, Oke, embora sempre lerdo e tmido, at que tinha idias prprias e opinies polticas e sociais bem definidas, ao lado de uma certa compenetrao e um desejo juvenil e at comovente de chegar certeza e verdade. Por outro lado, at onde me era dado perceber, a estranha timidez de Oke no decorria de nenhum tipo. O bom observador sempre capaz de detectar um cnjuge acostumado a ser humilhado ou criticado por sua cara metade. H um constrangimento de parte a parte, o costume de vigiar e buscar o que censurar, e o de ser vigiado e censurado. No era isto o que acontecia em Okehurst, obviamente. Notava-se que a Sra. Oke no tinha o menor interesse pelo marido. Ele poderia ter dito quantas asneiras quisesse sem ser alvo de qualquer censura ou mesmo de ateno. E poderia ter agido assim, se quisesse, desde o dia do casamento. Isto percebia-se imediatamente. A Sra. Oke simplesmente no levava em conta a sua existncia. No que a de qualquer pessoa, inclusive a minha, merecesse tal ateno. De incio, atribu aquilo a uma afetao de sua parte pois toda sua aparncia um tanto extravagante, como que calculada, poderia, num primeiro momento, passar por afetao. Suas roupas eram estranhas, no por seguirem um padro conhecido de excentricidade esttica, mas estranhas no plano individual, como se tivessem pertencido a uma antepassada do sculo dezessete. No comeo, bem... pensei que fosse pose aquele misto de delicadeza extrema e indiferena total com que me tratava. Era como se sempre estivesse a pensar em outra coisa e, embora falasse com bastante freqncia e desse todos os sinais de uma inteligncia privilegiada, deixava a impresso de ter estado to lacnica quanto o marido. No comeo nos primeiros dias de minha temporada em Okehurst achei que a Sra. Oke fosse adepta a um tipo altamente refinado de flerte e que seu jeito ausente, o olhar perdido na distncia, sempre que falava comigo, o estranho sorriso irrelevante, no passavam de meios para suscitar e frustrar minha venerao. Confundi sua atitude com modos semelhantes de certas mulheres estrangeiras as inglesas so incapazes disso, modos que, para bom entendedor, querem dizer faa-me a corte. Mas logo percebi que me enganava. A Sra. Oke no tinha o menor desejo de que eu a cortejasse. Na verdade, ela no me honrava com um interesse suficiente para tanto, e eu, pelo meu lado, comecei a ach-la interessante demais noutro sentido para sequer cogitar algo assim. Compreendi que tinha diante de mim, no s o mais maravilhoso, raro, belo e fascinante dos meus modelos, como tambm uma personagem das mais estranhas e enigmticas. Agora, em retrospecto, fico tentado a crer que a singularidade psicolgica daquela mulher poderia ser resumida no interesse exorbitante que ela nutria por si mesma, na sua atitude narcsica, tornada ainda mais complexa por uma imaginao fantasiosa, uma espcie de devaneio mrbido, todo voltado para dentro e sem outra caracterstica externa a no ser certa inquietao, um desejo perverso de surpreender e chocar especialmente o marido, vingando-se assim do intenso enfado que este lhe inflingia com sua falta de ateno. Tudo isso fui compreendendo aos poucos, sem no entanto realmente penetrar no mistrio da Sra. Oke. Havia nela um desequilbrio, uma estranheza, que eu sentia mas no sabia explicar: uma coisa to difcil de definir quanto a singularidade de sua aparncia exterior, qual talvez estivesse intimamente ligada. Passei a me interessar pela Sra. Oke como se estivesse apaixonado sem estar nem um pouco apaixonado, porm. No sofria quando me separava dela nem sentia prazer algum na sua presena. No tinha a menor vontade de agrad-la ou de atrair sua ateno. Mas ela no me saa do pensamento. Eu a buscava sua imagem fsica, sua chave psicolgica com uma espcie de paixo que preenchia os meus dias e no me deixava sentir qualquer tdio. Os Okes levavam uma vida extremamente solitria. Tinham apenas um punhado de vizinhos, que viam muito pouco, e raramente recebiam alguma visita em casa. Oke, pessoalmente, parecia de vez em quando sentir uma certa responsabilidade para comigo. Em nossos passeios a p e nas conversas aps o jantar, fazia vagos comentrios no sentido de que eu devia achar a vida em Okehurst tremendamente aborrecida: a sade delicada da esposa o acostumara solido e, alm do mais, sua mulher achava os vizinhos enfadonhos. Ele nunca discutia a opinio de sua esposa nesses assuntos. Apenas a constatava, como se a resignao fosse coisa simples e inevitvel. s vezes, porm, parecia-me que aquela vida de monotonia e solido ao lado de uma mulher que lhe dava tanta ateno quanto se d a uma mesa ou cadeira, provocava uma vaga depresso e irritao naquele rapaz to obviamente talhado para uma vida de alegrias prosaicas. Muitas vezes me perguntei como ele era capaz de suportar tudo aquilo, no tendo, como eu, o acicate de uma charada psicolgica para resolver, ou um grande retrato para pintar. Era um homem muito bom, como fui descobrindo, o tpico jovem ingls extremamente ntegro, um homem que teria dado um soldado de Cristo, ou algo assim: piedoso, mentalmente puro, corajoso, incapaz de qualquer baixeza, um tanto limitado intelectualmente, propenso a escrpulos morais de todo tipo. A situao de seus meeiros e do seu partido poltico pois era um ativo Tory 2do Kent o preocupava muito. Todo dia, passava horas no escritrio, exercendo suas funes como administrador de terras e lder poltico, lendo maos de relatrios, jornais, tratados agrcolas, e emergindo para o almoo com pilhas de cartas nas mos e aquela estranha expresso de perplexidade no rosto bom e sadio, aquela marca profunda entre as sobrancelhas, que meu amigo alienista chama de cenho manaco . Era essa a expresso que eu teria gostado de pintar. Mas percebia que ele talvez no aprovasse, que seria mais justo represent-lo no seu convencionalismo simples, sadio, rosado, branco e louro. Talvez eu no levasse muito a srio o retrato do Sr. Oke: ficaria satisfeito em pint-lo de qualquer maneira, no que tange expresso de carter pois todo o meu pensamento voltava-se para a escolha de como retratar a Sra. Oke, qual a melhor maneira de transpor para a tela sua personalidade inusitada e enigmtica. Comecei pelo marido, depois de dizer a ela, com toda a franqueza, que precisaria de muito mais tempo para observ-la. O Sr. Oke no conseguia entender a necessidade de uma centena de esboos a lpis de sua esposa, antes mesmo de ficar decidido em que pose eu a pintaria. Creio, porm, que ficou bastante contente com a oportunidade de me reter em Okehurst: era evidente que minha presena quebrava a monotonia de sua vida. J a Sra. Oke demonstrou total indiferena ao prolongamento da minha visita, tal como era indiferente minha presena. Nunca vi uma mulher dar to pouca ateno a um convidado, sem no entanto ser grosseira. s vezes ficava horas conversando comigo, ou melhor, a me deixar falar mas nunca parecia escutar. Enquanto eu dedilhava o piano, reclinava-se numa enorme poltrona do sculo dezessete, s vezes com aquele sorriso estranho no rosto magro e o branco em volta da ris. Mas era como se tanto se lhe desse a msica parar ou continuar. No demonstrava, nem fingia demonstrar, o menor interesse pelo retrato do marido embora isso sequer me importasse. Eu no queria que a Sra. Oke me achasse interessante. Queria apenas continuar a observ-la. A primeira vez que ela pareceu notar minha presena como sendo algo diferente das cadeiras e das mesas, dos ces deitados no alpendre, do clrigo, advogado ou vizinho desgarrado vez por outra convidado para jantar, foi no dia talvez no fim da primeira semana de minha estada em que por acaso fiz vim comentrio sobre a curiosa semelhana entre ela e o retrato de uma senhora, pendurado no hall cujo teto parecia o casco de um navio. Era um retrato de corpo inteiro, nem muito bom, nem muito ruim, obra, provavelmente, de algum italiano desgarrado, do inicio do sculo dezessete. Ficava num canto um pouco escuro, diante de um outro retrato obviamente feito para lhe servir de par e que mostrava um homem moreno, de trajes negros la Van Dyck3 e uma expresso, um tanto antiptica, de determinao e eficincia. Os dois eram marido e mulher, evidentemente, e no canto do retrato da mulher estava escrito Alice Oke, filha de Virgil Pomfret e esposa de Nicholas Oke de Okehurst, com a data 1626. Nicholas Oke era o nome escrito no canto do retrato menor. A dama de fato tinha uma espantosa semelhana com a atual Sra. Oke pelo menos at onde uma pintura medocre, dos primeiros tempos de Carlos I, pode se parecer com uma mulher de carne e osso do sculo dezenove. Era a mesma compleio e o mesmo rosto de traos estranhos, as mesmas covinhas nas faces magras, os mesmos olhos redondos, a mesma expresso vagamente excntrica, que nem as pinceladas canhestras nem os maneirismos e convenes da poca, podiam destruir. Seria bem possvel imaginar que aquela mulher tivesse tido o mesmo jeito de caminhar, a mesma beleza nas linhas da nuca, a mesma inclinao de cabea de sua descendente pois fiquei sabendo que o Sr. e a Sra. Oke, sendo primos-irmos, descendiam, um e outro, de Nicholas Oke e de Alice, filha de Virgil Pomfret. Entretanto, a semelhana era acentuada pelo fato de que, como logo pude verificar, a atual Sra. Oke evidentemente se arrumava de forma a se parecer com sua antepassada, vestindo roupas com um ar do sculo dezessete ou melhor, roupas s vezes copiadas diretamente daquele retrato. O senhor me acha parecida com ela , foi a resposta da Sra. Oke ao meu comentrio, enquanto seu olhar vagava para aquele objeto invisvel e um sorriso tnue marcava-lhe de covinhas as faces. A senhora parecida com ela e sabe disso. Eu diria at, Sra. Oke, que quer ser parecida com ela, retruquei, rindo. Talvez eu queira. E olhou na direo do marido, em quem notei, alm do cenho franzido, uma clara expresso de aborrecimento. No verdade que a Sra. Oke se parece com aquele retrato? , perguntei, com curiosidade perversa. Ora! , exclamou ele, levantando-se da cadeira e caminhando, nervoso, at a janela. Tudo isso asneira, no passam de sandices! Por favor, Alice, no faa isso. No fazer o qu? perguntou a Sra. Oke com uma espcie de indiferena desdenhosa. Se sou parecida com essa Alice Oke, ento sou, ora! E fico muito feliz por algum achar que sou. Ela e o marido foram praticamente os nicos dois membros da nossa famlia essa nossa famlia to sem graa, decadente e imprestvel que tiveram um mnimo de interesse. Oke ficou rubro e franziu o cenho como se sentisse dor. No sei por que voc vilipendia nossa famlia, Alice , disse. Nossa gente sempre foi formada por homens e mulheres honrados e direitos, graas a Deus! Com exceo, claro, de Nicholas Oke e de sua esposa Alice, filha de Dom Virgil Pomfret , retrucou ela, enquanto ele saa para o parque. Como ele infantil! , exclamou, depois que ele partiu. Realmente se importa, sente-se desonrado pelo que nossos antepassados fizeram h dois sculos e meio. Acho at que William mandaria retirar e queimar aqueles dois retratos, se no tivesse medo de mim e dos vizinhos. O fato que aqueles dois foram os nicos membros um pouco interessantes de nossa famlia. Algum dia eu lhe contarei a histria. O que aconteceu foi que o prprio Oke me contou a histria. No dia seguinte, quando fazamos nossa caminhada matinal, ele subitamente rompeu um longo silncio, enquanto fustigava as touceiras ressequidas com o cajado que sempre trazia consigo, como um bom senhor do Kent, para ceifar as urtigas de suas terras ou de outras pessoas. O senhor na certa me julgou muito grosseiro com minha esposa ontem , disse timidamente. E tem razo, sei que o fui. Oke era uma dessas criaturas galantes para quem toda mulher, toda esposa e principalmente a sua pairavam sob uma aurola de santidade. Mas... mas... eu tenho uma cisma, que minha mulher no compartilha, quanto a remexer nas mazelas da famlia. Imagino que para Alice seja algo to longnquo que no tenha mais nenhuma relao conosco. Para ela, tudo no passa de uma histria pitoresca. Sei bem que muitos pensam assim; resumindo, sei que pensam assim, caso contrrio no haveria tanta tradio familiar vergonhosa por a. Mas para mim tanto faz se foi ou no foi h muito tempo. Em se tratando de nossa famlia, preferiria que essas coisas cassem no esquecimento. No entendo como que se pode ficar comentando assassinatos e fantasmas familiares, coisas desse tipo. Por falar nisso, h fantasmas em Okehurst? , perguntei. Era como se aquilo fosse o complemento que faltava casa. Espero que no , respondeu Oke, com ar grave. Sua expresso sria me fez sorrir. Por qu? No gostaria que houvesse? , perguntei. Se existem tais coisas como fantasmas , retrucou ele, no creio que sejam assunto para pilhrias. Deus no permitiria sua existncia a no ser como aviso ou castigo. Caminhamos um pouco mais em silncio eu, pensando em como era estranho aquele jovem to comum, e sentindo um vago desejo de colocar, no retrato dele, algo que representasse aquela sua compenetrada falta de imaginao. Ento Oke contou-me a histria daqueles dois quadros contou-a com toda a incompetncia e vacilao de que um ser humano capaz. Como eu j disse, ele e sua mulher eram primos descendentes, portanto, da mesma velha cepa do Kent. As razes dos Okes de Okehurst remontavam poca dos normandos, quase que ao tempo dos saxes at um passado muito mais distante do que de qualquer das famlias aristocrticas ou mais conhecidas da regio. Percebi que, no fundo, William Oke menosprezava seus vizinhos. Nunca fizemos nada de especial, nem fomos nada em especial... Nunca ocupamos cargo algum. , disse ele. Mas sempre estivemos presentes e, pelo que sei, sempre cumprimos com o nosso dever. Um dos nossos antepassados foi morto nas guerras escocesas, um outro em Agincourt4 . No passavam de honrados capites. Pois bem: no incio do sculo dezessete, a famlia ficou reduzida a um nico membro, Nicholas Oke, o mesmo que havia reconstrudo Okehurst em sua forma atual. Este Nicholas, ao que parece, fugira um tanto dos padres habituais da famlia. Na juventude, fora para a Amrica em busca de aventura, e aparentemente era menos medocre que seus antepassados. J no to jovem, casara-se com Alice, filha de Virgil Pomfret, jovem e bela herdeira de uma comarca prxima. Foi a primeira vez que um Oke se casou com uma Pomfret , informou o meu anfitrio. E tambm a ltima. Os Pomfrets eram completamente diferentes. Irrequietos, ambiciosos. Um deles foi favorito de Henrique VIII. Parecia evidente que no era nada agradvel, para William Oke, ter sangue dos Pomfret nas veias. Falava deles com uma evidente antipatia familiar a antipatia de um Oke da velha estirpe, honrada e modesta, que cumpria em silncio seu dever, por uma famlia de aventureiros e parasitas da Corte. Muito bem. Viera morar perto de Okehurst, numa casinha recm herdada de um tio, um certo Christopher Lovelock, jovem e galante poeta temporariamente cado em desgraa na Corte devido a algum caso amoroso. Esse Lovelock fizera-se amigo ntimo de seus vizinhos em Okehurst e, pelo visto, amigo demais da esposa demais tanto para o gosto dela quanto do marido. Enfim... uma noite, quando voltava a cavalo para casa, Lovelock foi atacado e assassinado por salteadores, ao que tudo indicava, mas, conforme depois se murmurou, por Nicholas Oke juntamente com a mulher, disfarada de cavalario. No havia nenhuma prova legal, mas a lenda se perpetuara. Quando ramos crianas , disse o meu anfitrio com voz embargada ...e para assustar minha prima, quero dizer, minha esposa, costumvamos contar histrias sobre Lovelock. No passa de uma lenda que eu espero venha a morrer, tal como sinceramente rogo aos cus para que seja falsa. Alice... a Sra. Oke... no pensa como eu, entende? Talvez eu seja mrbido, mas realmente no gosto que remexam nessa histria. E no falamos mais sobre o assunto. Captulo 4 A partir daquele momento, adquiri algum interesse aos olhos da Sra. Oke. Ou melhor, compreendi que possua um meio de prender sua ateno. Talvez eu estivesse errado ao fazer isso e mais tarde, censurei-me severamente muitas vezes. Mas, afinal de contas, como poderia adivinhar que fazia mal quando, em nome de um retrato prometido e de uma pequena e inofensiva curiosidade psicolgica, entrava num jogo que julgava apenas um capricho, uma simples afetao romntica de uma moa avoada e excntrica? Como poderia imaginar que lidava com substncias explosivas? Decerto no somos responsveis se as pessoas com quem temos que lidar e com as quais lidamos como se fossem iguais ao resto do mundo so totalmente diferentes do resto da humanidade. Portanto, se de fato fiz algo que tenha conduzido ao infortnio, no posso de forma alguma me considerar culpado. Na Sra. Oke eu encontrara um assunto quase que indito para um retratista como eu: uma personalidade das mais singulares e bizarras. Era bvio que eu no poderia fazer jus minha modelo enquanto fosse mantido distncia e impedido de estudar sua verdadeira natureza. Eu tinha que faz-la entrar no jogo. E pergunto: haveria maneira mais inocente, para tanto, do que conversar com essa mulher, deixando-a falar sobre a fantasia absurda que alimentava, a respeito de um casal de antepassados do tempo de Carlos I e do poeta que eles teriam assassinado? Ainda mais porque eu respeitava escrupulosamente as prevenes de meu anfitrio, evitando tocar no assunto, e tentando evitar que a Sra. Oke o fizesse, na presena de William Oke. Eu havia adivinhado certo, evidentemente. A semelhana com a Alice Oke de 1626 era o capricho, a mania, a pose no importa o nome que lhe dermos da Alice Oke de 1880; e perceber essa semelhana era o meio infalvel de cair em suas graas. Entre todas as manias singulares que j testemunhei, tpicas das mulheres ociosas e sem filhos, a sua era a mais singular. Era mais do que isso, porm: era algo admiravelmente caracterstico seu. Aquele era o toque final na estranha figura da Sra. Oke, tal qual eu a imaginava, uma criatura bizarra, de inverossmil e enigmtica beleza: o seu total desinteresse pelo presente junto com o cultivo de uma excntrica paixo pelo passado. Dir-se-ia que aquilo dava sentido ao seu olhar ausente, ao sorriso irrelevante e distante, como a letra de uma estranha cano cigana: o fato de que ela, to diferente, to alheia s mulheres de sua poca, tentasse se identificar com uma mulher do passado, mantendo uma espcie de flerte com... mas disto falarei adiante. Contei Sra. Oke que seu marido me delineara a tragdia ou o mistrio, fosse o que fosse, de Alice Oke, filha de Virgil Pomfret, e do poeta Christopher Lovelock. Seu rosto belo, plido e difano assumiu a vaga expresso, que eu j lhe notara antes, de desdm ou nsia de chocar. E meu marido, suponho, mostrou-se muito chocado com o episdio, narrando-o com o mnimo de detalhes possvel e lhe asseverando, todo srio, a sua esperana de que tudo no passe de uma calnia infame, no foi assim? , disse ela. Pobre Willie! Lembro-me de como, desde que ramos crianas, eu vinha com minha me passar o Natal em Okehurst, meu primo estava aqui passando as frias e eu costumava assust-lo, teimando em me vestir com xales e capas para representar a histria da malvada Sra. Oke; e de como ele, todo carola, sempre se recusava a fazer o papel de Nicholas, toda vez que eu queria encenar a cena de Cotes Common. Naquela poca eu no sabia que era parecida com a primeira Alice Oke. S fui descobrir depois do nosso casamento. O senhor acha mesmo que me pareo com ela? Sem dvida que sim, especialmente naquele momento, envergando um vestido branco la Van Dyck, com o verde do parque a lhe fazer fundo e o sol j baixo refletido nos cachos curtos que, como uma aurola de ouro esmaecido, emolduravam-lhe a cabea deliciosamente inclinada. Confesso, porm, que a Alice Oke original, por mais sereia e assassina que fosse, parecia-me bem pouco interessante em comparao com aquela criatura extravagante e refinada, que no meu ntimo eu jurara registrar para a posteridade em toda sua excentricidade e refinamento. Certa manh de sbado, quando o Sr. Oke, como de hbito, despachava sua pilha de manifestos conservadores e relatrios rurais ele era um juiz de paz no sentido mais literal, vistoriando choupanas e casebres, defendendo os fracos e repreendendo os faltosos certa manh, dizia, enquanto eu fazia um dos muitos esboos a lpis de minha futura modelo (infelizmente, so hoje tudo que me resta!), a Sra. Oke me deu sua verso da histria de Alice Oke e Christopher Lovelock. A senhora acha que existia alguma coisa entre os dois? , perguntei. Que ela alguma vez esteve apaixonada por ele? Como explica o papel que a lenda lhe atribui, no suposto assassinato? Ouvimos falar de mulheres que, junto com o amante, matam o marido. Mas uma mulher que se une ao marido para matar o amante, ou mesmo o homem que a ama... isso um tanto singular, sem dvida. Absorto no meu desenho, eu na verdade no pensava muito no que dizia. No sei , respondeu ela, pensativa, com seu olhar distante. Alice Oke era muito orgulhosa, disso tenho certeza. Pode ser que, por muito que amasse o poeta, sentisse raiva dele, odiasse ter que am-lo. Talvez se julgasse no direito de se livrar dele e de convocar o marido para ajud-la. Cus! Que idia espantosa! , exclamei, meio rindo. No lhe parece que no fim das contas o Sr. Oke talvez tenha razo ao dizer que mais fcil e mais cmodo considerar toda essa histria mera invencionice? No posso consider-la uma inveno , retrucou a Sra. Oke. Acontece que sei que rdade. No me diga! , respondi, caprichando no esboo e me deleitando em dar corda, como se diz, quela estranha criatura. Como assim? Como que se sabe, neste mundo, que uma coisa verdade? , respondeu-me ela, evasiva. Sabendo. Sentindo que verdade, acho eu. E fechou-se de novo em seu silncio, com a expresso distante no olhar. O senhor j leu algum poema de Lovelock? , perguntou-me de repente no dia seguinte. Lovelock? , respondi, pois esquecera-me do nome. Lovelock, que... Mas parei ao me lembrar da cisma do meu anfitrio, que estava sentado ao meu lado mesa. Lovelock, que foi morto pelos nossos antepassados, meus e do Sr. Oke. E encarou o marido, como se desfrutasse travessa e perversamente do aborrecimento evidente que aquilo lhe causava. Alice , suplicou ele em voz baixa, o rosto afogueado. Pelo amor de Deus, no comente essas coisas na frente dos criados. A Sra. Oke irrompeu numa gargalhada aguda, ligeira e um tanto histrica uma gargalhada de criana travessa. Os criados! Deus do cu! E voc acha que eles nunca ouviram contar essa histria? Ora, to conhecida por aqui quanto a prpria Okehurst! Pois ento eles no acreditam que Lovelock j foi visto nesta casa? Todos eles j no ouviram os seus passos no corredor grande? Meu caro Willie, ento eles j no repararam, milhares de vezes, que voc nunca fica mais de um minuto sozinho no salo amarelo, que voc sai correndo de l como uma criana, sempre que eu o deixo por um minuto? Era verdade! Como eu no havia percebido? Ou melhor, como s agora me lembrava de ter percebido? O salo amarelo era um dos aposentos mais encantadores da casa: uma sala ampla, clara, revestida de damasco amarelo, com creiosias de madeira entalhada que davam diretamente sobre o gramado, muito mais bonita que a sala onde costumvamos ficar, um tanto ou quanto soturna. Dessa vez, o Sr. Oke pareceu-me de fato infantil demais. Senti uma irresistvel necessidade de provoc-lo. O salo amarelo! , exclamei. Quer dizer que esse interessante personagem literrio assombra o salo amarelo? Conte-me tudo a respeito. O que aconteceu ali? O Sr. Oke fez um penoso esforo para rir. Pelo que eu sei, ali nunca aconteceu nada , disse, levantando-se da mesa. mesmo? , perguntei, incrdulo. Realmente, nunca aconteceu nada ali , respondeu devagar a Sra. Oke, brincando distrada com o garfo e riscando os desenhos da toalha de mesa. O fato notvel justamente esse, o de nunca, at onde se saiba, ter acontecido nada ali. No entanto, aquela sala goza de uma fama sinistra. Dizem que nenhum membro da nossa famlia suporta ficar sozinho nela por mais de um minuto. Como pode ver, William evidentemente no suporta. O senhor nunca viu ou ouviu nada de estranho nela? , perguntei ao meu anfitrio. Ele balanou a cabea. Nada, nunca , respondeu em tom seco, acendendo o charuto. Suponho que a senhora tambm no , observei, com um ligeiro sorriso, ...uma vez que no a incomoda passar horas sozinha naquela sala, no ? Como explica essa m fama, j que ali nunca aconteceu nada? Talvez alguma coisa esteja fadada a acontecer, no futuro , respondeu ela no seu tom ausente, de sbito acrescentando: E se o senhor pintasse meu retrato naquela sala? O Sr. Oke voltou-se de chofre. Estava muito plido e parecia a ponto de dizer alguma coisa. Mas desistiu. Por que provoca assim o Sr. Oke? , perguntei, depois que este, com a papelada de costume, partiu para o seu gabinete. muito cruel de sua parte, Sra. Oke. Devia ter mais considerao com as pessoas que acreditam nessas coisas, ainda que no consiga se colocar no lugar delas. Quem disse que eu no acredito nessas coisas, como o senhor as chama? , retrucou ela em tom seco. Venha , continuou, passado um minuto. Quero lhe mostrar porque acredito em Christopher Lovelock. Venha comigo at o salo amarelo. Captulo 5 O que a Sra. Oke me mostrou, no salo amarelo, foi um volumoso mao de papis alguns impressos e manuscritos, mas todos eles descoloridos pelo tempo que tirou de um velho armrio italiano de bano com incrustaes. Demorou-se um pouco para retir-los, pois foi preciso acionar um complicado mecanismo de fechaduras duplas e compartimentos falsos e, enquanto o fazia, lancei uma vista de olhos pelo salo, onde s havia entrado umas trs ou quatro vezes antes. Tratava-se, sem dvida, do aposento mais belo daquela bela casa e pareceu-me agora o mais estranho. Era comprido e de p direito baixo, com algo que fazia lembrar um camarote de navio. Tinha uma grande janela de colunas que deixava entrar, por assim dizer, o panorama das terras verdejantes pontilhadas de carvalhos, estendendo-se em suave aclive at os abetos azulados na linha do horizonte. As paredes eram revestidas de damasco floreado, cujo tom, outrora amarelo e hoje castanho, fundia-se com a cor avermelhada das meias-paredes com entalhes e das vigas de carvalho, tambm entalhadas. No resto, eu diria que mais lembrava uma sala italiana do que inglesa. Os mveis eram toscanos, do comeo do sculo dezessete, com incrustaes e entalhes. Na parede, havia um par de esmaecidas pinturas alegricas, de algum mestre bolonhs e a um canto, entre vrias laranjeiras-ans, um pequeno cravo italiano, de delicadas curvas e linhas, com flores e paisagens pintadas na tampa. Num nicho via-se uma estante de livros antigos, em sua maioria de poetas ingleses e italianos da era elizabetana; e, perto dela, sobre uma arca entalhada, um grande e belo alade, bojudo como um melo. Embora as gelosias da janela de colunas estivessem abertas, o ar parecia abafado, com um perfume denso e indefinvel no o perfume de flores desabrochadas, mas o de coisas velhas conservadas por anos e anos junto a ervas aromticas. E um salo belssimo! , exclamei. Gostaria muito de pintar a senhora aqui. Contudo, nem bem acabei de pronunciar essas palavras, percebi que fizera mal. O seu marido no suportava aquela sala e tive a vaga impresso de que estava certo em sua ojeriza. Sem fazer caso da minha exclamao, a Sra. Oke acenou-me para que me aproximasse da mesa junto qual se encontrava, ordenando os papis. Veja! , disse. Tudo isto so poemas de Christopher Lovelock. E tocando os papis amarelados com dedos delicados e reverentes, ps-se a ler alguns em voz alta, embora apenas audvel. Eram canes no mesmo estilo das de Herrick, Waller e Drayton5, a maioria se lamentando da crueldade de uma dama chamada Dryope, cujo nome, evidentemente, fazia referncia velada senhora de Okehurst. As canes eram graciosas e no lhes faltava uma certa paixo nostlgica. No era nelas que eu pensava, porm, mas na mulher que as lia para mim. A Sra. Oke estava de p, com a parede castanho-amarelada fazendo fundo para o vestido de brocado branco que, com seu corte rgido do sculo dezessete, parecia realar-lhe ainda mais a delicadeza, a maleabilidade sutil da silhueta esguia. Numa das mos tinha os papis, enquanto a outra repousava sobre o armrio de incrustaes ao seu lado, como procura de apoio. Sua fala, delicada e matizada como a sua pessoa, tinha uma curiosa pulsao rtmica, como se ela estivesse lendo a letra de uma melodia que lhe custasse esforo no cantar. Enquanto lia, seu pescoo longo e delgado palpitava levemente, e um tnue rubor lhe subia pelas faces magras. Era evidente que conhecia os versos de cor, e durante todo o tempo manteve o olhar perdido e distante e um sorriso trmulo mas constante nos lbios. assim que eu gostaria de pint-la , exclamei comigo mesmo, mal percebendo aquilo que s viria chamar minha ateno em retrospecto: que a estranha criatura lia aqueles versos tal e qual uma mulher leria versos de amor a ela dedicados. Foram todos escritos para Alice Oke, a filha de Virgil Pomfret , disse ela devagar, dobrando os papis. Achei-os no fundo deste armrio. E agora? Ainda duvida que Christopher Lovelock tenha realmente existido?'' A pergunta no tinha lgica, pois duvidar da existncia de Christopher Lovelock era uma coisa e duvidar das circunstncias de sua morte, outra. Mesmo assim, foi como se tivesse me convencido. Veja! , disse ela, to logo guardou os poemas. Vou lhe mostrar uma outra coisa. Junto s flores sobre o tampo de sua escrivaninha pois vi que a Sra. Oke tinha uma escrivaninha no salo amarelo havia, como que num altar, um pequeno porta-retratos de moldura preta entalhada, protegido por uma cortina de seda: o tipo de coisa que imaginaramos ocultar uma imagem de Cristo ou da Virgem Maria. Afastando a cortina, ela me mostrou uma miniatura, representando um jovem de cabelos encaracolados e castanhos, barbicha pontiaguda, traje preto de gola rendada e, nas orelhas, grandes prolas em forma de pra: um rosto sonhador e melanclico. Religiosamente, a Sra. Oke retirou a miniatura do seu altar e apontou-me o nome Christopher Lovelock e a data 1626 escritas no verso, com letras esmaecidas. Achei isto no compartimento secreto daquele armrio, junto com o calhamao de poemas , disse, tomando-me a miniatura das mos. Fiquei em silncio por um minuto. O Sr. Oke sabe... sabe que a senhora tem isto guardado aqui? , indaguei, em seguida me perguntando o que, em nome dos cus, me levava a fazer tal indagao. A Sra. Oke sorriu seu sorriso de desdenhosa indiferena. Nunca escondi de ningum. Se meu marido no quisesse que eu a guardasse, poderia t-la tirado de mim, suponho. Pertence a ele, j que foi encontrada em sua casa. No respondi. Em vez disso, caminhei mecanicamente em direo porta. Havia algo de pesado e opressivo naquele belo salo e algo de quase repulsivo, pensei, naquela mulher fascinante. De repente, ela me pareceu perversa e perigosa. Sem sequer atinar o porqu, evitei a Sra. Oke aquela tarde. Fui para o escritrio do Sr. Oke e sentei-me a fumar diante dele, enquanto ele se enfronhava em suas contas, relatrios e boletins de campanha. Na mesa, sobre a pilha de brochuras, no alto dos escaninhos de documentos, via-se o nico enfeite daquele seu reduto, uma pequena fotografia da mulher, batida alguns anos antes. No sei porque, mas enquanto permaneci ali sentado, a observ-lo em sua beleza honesta, antiquada e viril, conscienciosamente s voltas com seu trabalho, o cenho franzido e perplexo, senti uma enorme pena daquele homem. Esse sentimento durou pouco, contudo. No havia nada a fazer: Oke no era to interessante quanto sua esposa, e querer solidarizar com aquele jovem fidalgo normal e exemplar na presena de uma criatura to maravilhosa quanto ela, exigia um esforo demasiadamente grande. Sendo assim, acostumei-me a deixar que a Sra. Oke me falasse, dia aps dia, de sua estranha fixao. Ou melhor: a incentiv-la nisso. Confesso que sentia um prazer mrbido e dbio ao faz-lo: aquilo lhe era to peculiar, uma coisa to condizente com a prpria casa... Era o toque que faltava sua personalidade... e tornava to mais fcil a tarefa de descobrir como pint-la!... Pouco a pouco, enquanto fazia o retrato de William Oke que revelou-se muito menos fcil do que eu havia imaginado pois, apesar de sua esforada compenetrao, era um modelo nervoso e irrequieto, amuado e carrancudo, resolvi que pintaria a Sra. Oke de p junto ao armrio do salo amarelo, com o vestido Van Dyck branco copiado do retrato de sua ancestral. O Sr. Oke talvez se melindrasse, talvez at ela prpria se melindrasse. Talvez eles se recusassem a aceitar o retrato, a pagar por ele, a me permitir exp-lo. Talvez me obrigassem a furar a tela com meu guarda-chuva. No importava. Aquele quadro haveria de ser pintado, nem que fosse pelo prazer de faz-lo. Pois eu sentia que era a nica coisa que eu poderia fazer e que seria, de longe, o meu melhor trabalho. Sem comunicar minha deciso a nenhum dos dois, fui fazendo esboo atrs de esboo da Sra. Oke, enquanto prosseguia com o retrato do seu marido. A Sra. Oke era mulher de poucas palavras, mais calada ainda que o marido, pois no se sentia, como este, na obrigao de tentar entreter uma visita ou de mostrar por ela qualquer interesse. Parecia levar a vida uma vida estranha, sedentria, de semi-invalidez, marcada por sbitos acessos de animao pueril em perptuo devaneio, perambulando pela casa e pelos terrenos da propriedade, arrumando as muitas flores que sempre enfeitavam todas as salas, comeando a ler e logo deixando de lado os muitos romances e livros de poesia que possua; e reclinando-se horas a fio, sem fazer nada, num sof do salo amarelo, onde nenhum membro da famlia Oke, exceto ela, jamais ficava sozinho. Pouco a pouco fui intuindo e percebendo mais uma excentricidade daquela criatura e comecei a compreender o porqu das instrues de que nunca fosse perturbada quando estivesse no salo amarelo. Havia sido um costume em Okehurst, como em algumas outras casas senhoriais inglesas, guardar algumas peas de vesturio de cada gerao em especial, os vestidos de noiva. Existia l um certo guarda-roupa de carvalho entalhado, cujo contedo o Sr. Oke mostrou-me numa ocasio. Tratava-se de um verdadeiro museu de trajes, tanto masculinos quanto femininos, dos primrdios do sculo dezessete at o final do sculo dezoito coisa de tirar o flego de um colecionador de bricabraque, um antiqurio ou um pintor de cenas de gnero. No sendo nenhuma dessas coisas, o Sr. Oke pouco se interessava pela coleo, exceto naquilo que lhe falava ao esprito familiar. Entretanto, parecia bem a par do contedo do armrio. Mostrava-me as roupas, quando subitamente franziu o cenho. No sei o que me impulsionou a dizer-lhe o que disse: Por acaso tem algum vestido daquela Sra. Oke com quem sua esposa se parece tanto? Aquele vestido branco que ela exibe no quadro, talvez? O Sr. Oke ficou muito vermelho. Temos, sim , respondeu, vacilante. Mas no momento no se encontra aqui... No consigo ach-lo. Imagino , prosseguiu com dificuldade que Alice o tenha apanhado. A Sra. Oke s vezes teima em apanhar algumas dessas velharias. Suponho que tire delas algumas idias. Uma luz clareou meu pensamento. O vestido branco que a Sra. Oke usara no salo amarelo, no dia em que me mostrou os versos de Lovelock, no era uma cpia moderna, como eu supunha: era o vestido original de Alice Oke, filha de Virgil Pomfret talvez o vestido em que Christopher Lovelock a contemplara, naquela mesma sala. Aquele pensamento provocou-me um arrepio estranho e delicioso. No falei nada, mas visualizei a Sra. Oke, sentada no salo amarelo, o mesmo salo onde nenhum Oke de Okehurst exceto ela ousava permanecer sozinho, envergando o vestido de sua antepassada e confrontando-se, por assim dizer, com aquela coisa vaga, plangente, que parecia permear o aposento... aquela vaga presena assim me parecia do galante poeta assassinado. A Sra. Oke, como j disse, era extremamente calada por ser extremamente indiferente. Na verdade, no se importava com nada, a no ser seus prprios pensamentos e devaneios, exceto quando, uma vez ou outra, era presa do sbito desejo de chocar as prevenes ou supersties do marido. Em pouco tempo, acostumou-se a no me dirigir a palavra a no ser para falar de Alice e Nicholas Oke e de Christopher Lovelock; e depois, quando tinha seus acessos, falava horas a fio, sem jamais se perguntar se eu tinha tanto interesse quanto ela pela sua esquisita mania. Por acaso eu tinha. Adorava ouvi-la discutir durante horas os mritos dos poemas de Lovelock e analisar os sentimentos deste e dos seus dois antepassados. Era sem dvida maravilhoso, naqueles momentos, observar aquela criatura divina e extica, com sua expresso distante nos olhos cinzentos e o sorriso distrado nas faces magras, a falar como se conhecesse intimamente aquelas pessoas do sculo dezessete, e a discutir com mincias seus estados de esprito, detalhando cada cena ocorrida entre eles e sua vtima, falando de Alice, de Nicholas e de Lovelock como falaria de seus amigos mais ntimos. Parecia conhecer cada palavra pronunciada por Alice, cada pensamento gerado em sua mente. As vezes eu tinha a impresso de que falava de si, de seus prprios sentimentos, na terceira pessoa; de estar ouvindo uma mulher a me fazer confidencias, a me desfiar suas dvidas, escrpulos e aflies com relao a um amante de carne e osso. Pois a Sra. Oke, que em tudo o mais parecia o mais egocntrico dos seres, algum totalmente incapaz de compreender ou compartilhar sentimentos alheios, identificava-se completa e apaixonadamente com os sentimentos daquela mulher daquela Alice que j no parecia ser outra mulher, mas ela prpria. Mas como foi que ela pde... como pde matar o homem que amava? perguntei-lhe uma vez. Porque ela o amava mais do que a qualquer coisa neste mundo! , exclamou ela, subitamente se levantando da cadeira, caminhando at a janela e cobrindo o rosto com as mos. Pelo arfar do seu colo, pude ver que soluava. Sem se virar, ela me fez sinal para que eu me retirasse. No vamos falar mais desse assunto , disse. Estou indisposta hoje... e tola. Fechei a porta devagarinho atrs de mim. Que mistrio era aquele, na vida daquela mulher? Aquela apatia, aquele estranho ensimesmamento e aquela obsesso, ainda mais estranha, por pessoas mortas h tanto tempo, aquela indiferena e aquela vontade de irritar o marido... Significaria que Alice Oke amara ou ainda amava algum que no o senhor de Okehurst? E aquela melancolia dele, aquela angstia, aquilo que nele parecia falar de uma juventude ceifada? Significava que ele sabia? Captulo 6 Nos dias que se seguiram, a Sra. Oke mostrou uma animao como poucas vezes se via. Alguns convidados eram esperados uns parentes distantes e embora ela tivesse manifestado uma extrema irritao ao saber dessa visita, agora deixava-se arrastar por uma roda-viva de afazeres domsticos, tomando providncias e dando instrues, ainda que todas j tivessem sido tomadas e dadas pelo seu marido. William Oke estava de fato radiante. Se Alice sempre estivesse to bem quanto agora! , exclamou. Se ao menos ela tivesse... se conseguisse se interessar pela vida, tudo seria to diferente! Mas... , acrescentou, como se temendo que algum pensasse que ele a acusava de algo, ...mas como poderia, normalmente, com uma sade to delicada? De qualquer forma, fico muito feliz por v-la assim. Fiz que sim com a cabea. Mas no posso dizer que concordei com seu ponto de vista. Parecia-me especialmente quando me lembrava da inacreditvel cena da vspera que a animao da Sra. Oke era tudo menos normal. Havia, em sua agitao incomum e no seu bom-humor ainda mais raro, algo que era apenas nervoso e excitao; e durante o dia inteiro tive a impresso de conviver com uma mulher doente, beira de um colapso. A Sra. Oke passou o dia zanzando de um aposento para o outro e do jardim para a estufa, verificando se tudo estava em ordem quando tudo estava sempre em ordem em Okehurst. No posou para mim nenhuma vez e o assunto de Alice Oke ou Christopher Lovelock no foi abordado. Alis, para um observador desinformado, poderia parecer que aquela obsesso com Lovelock dissipara-se de todo ou sequer tivesse existido. Por volta das cinco horas eu estava vagando entre os anexos de tijolo vermelho, com suas empenas arredondadas cada uma com seu carvalho emblemtico , pela vetusta cozinha de pedra e pelo pomar, quando vi a Sra. Oke parada nos degraus em frente s estrebarias, as mos cheias de rosas de York e de Lancaster. Um cavalario almofaava um cavalo e, do lado de fora da cocheira, via-se uma pequena charrete de rodas altas, pertencente ao Sr. Oke. Vamos dar uma volta! , a Sra. Oke exclamou de repente, ao me ver . Veja que tarde linda... e olhe s este encanto de charrete! Faz tanto tempo que no dirijo... sinto necessidade de voltar a faz-lo. Venha comigo. E voc a, arreie o Jim imediatamente e traga-o at a porta. Fiquei parado, atnito e mais ainda quando a charrete foi trazida e a Sra. Oke me instou a acompanh-la, dispensando o cavalario. Instantes depois, avanvamos em alta velocidade pela estrada de terra amarela, com suas pastagens queimadas e os grandes carvalhos dos dois lados. Eu mal conseguia crer no que via. Aquela mulher, com seu casaquinho e chapu masculinos, conduzindo com toda a percia um fogoso potro e matraqueando como uma colegial de dezesseis anos, mo podia ser a mesma criatura de estufa, delicada, mrbida e extica, incapaz de se locomover ou de fazer o que quer que fosse, que passava os dias deitada nos sofs, no confinamento pesado, carregado de aromas e estranhas associaes do salo amarelo. O movimento da pequena charrete, o frescor da brisa, o prprio rangido das rodas no cascalho pareciam subir-lhe cabea como vinho. H tanto tempo no fao este tipo de coisa... , repetia sem parar. Tanto, tanto tempo... Ah! No acha delicioso correr assim, sabendo que a qualquer momento o cavalo pode tropear e podemos morrer os dois? E soltava sua gargalhada infantil, voltando para mim o rosto j no plido mas iluminado pelo movimento e pelo entusiasmo. A charrete ia cada vez mais rpido, as porteiras fechavam-se atrs de ns uma depois da outra, enquanto disparvamos colinas acima e abaixo, atravessando os pastos e cruzando os vilarejos com suas casas de tijolinho, onde as pessoas saam para nos ver passar e deixando para trs as fileiras de salgueiros s margens dos crregos e os compactos campos de lpulo verde-escuro, com as copas azuladas e esmaecidas das rvores na linha do horizonte a ficarem mais azuis e esmaecidas medida que a luz amarela do sol tocava a terra. Finalmente, chegamos a um descampado, um terreno elevado, de uso comunitrio coisa pouco freqente naquelas paragens, inexoravelmente exploradas para o plantio do lpulo. Situado bem nas fmbrias dos bosques, sua altitude parecia sobrenatural, dando a impresso de que aquele altiplano de urze e estorga, limitado ao longe pelos abetos, era de fato o topo do mundo. Do outro lado o sol j se punha, deitando seus raios sobre uma terra manchada pelo vermelho e preto das urzes, ou melhor, transformada na superfcie de um mar cor de prpura, com um colcho de nuvens roxo-escuro a formar um dossel, o breu cintilante do torgal seco colorindo esse prpura como ondas de luz. Uma brisa fria fustigava-nos o rosto. Como se chama este lugar? , perguntei. Era a nica paisagem marcante que eu vira nas proximidades de Okehurst. Chama-se Cotes Common , respondeu a Sra. Oke, que refreara a marcha do cavalo, soltando-lhe as rdeas sobre o pescoo. Foi aqui que mataram Christopher Lovelock. Fez uma breve pausa. Depois prosseguiu, espantando as moscas das orelhas do cavalo com o rebenque e fitando o pr-do-sol que agora se esparramava como um rio profundo e violceo sobre o torgal aos nossos ps. Numa noite de vero, Lovelock voltava cavalo de Appledore, quando, no meio de Cotes Common... mais ou menos por aqui, pois sempre ouvi mencionar aquele lago junto s antigas cascalheiras como sendo o lugar, ele viu dois homens cavalgando em sua direo e logo reconheceu Nicholas Oke de Okehurst, acompanhado de um cavalario. Oke de Okehurst acenou-lhe, e Lovelock foi ao seu encontro. Folgo em v-lo, Sr. Lovelock', disse Nicholas, pois tenho uma notcia importante para lhe dar.' Dizendo isso, emparelhou seu cavalo ao de Lovelock e, virando-se de chofre, disparou a pistola contra sua cabea . Lovelock teve tempo de se esquivar, e a bala, em vez de atingi-lo, varou a cabea do seu cavalo, que tombou. Mas Lovelock caiu de tal forma que no teve dificuldades em se desvencilhar da montaria e, desembainhando a espada, arremeteu-se contra Oke e segurou o cavalo deste pelo brido. Mais do que depressa, Oke apeou e puxou da espada. Em questo de minutos, Lovelock, melhor espadachim, viu-se em posio de vantagem. Lovelock desarmou Oke e encostou-lhe a espada no pescoo, bradando que o pouparia em nome da velha amizade se ele pedisse perdo, quando de repente o cavalario se aproximou por trs a cavalo e alvejou Lovelock pelas costas. Lovelock caiu e Oke j se dispunha a pass-lo pelo fio da espada, enquanto o cavalario segurava o seu cavalo pelo brido. Nesse instante, o sol bateu no rosto do cavalario e Lovelock reconheceu a Sra. Oke. Alice, Alice!', gritou. Foi voc que me assassinou!' E morreu. Nicholas Oke montou ento na sela e partiu com sua mulher, deixando Lovelock, morto, junto ao cavalo cado. Nicholas Oke tinha tido a precauo de apanhar a bolsa de Lovelock e atir-la no lago e o assassinato foi atribudo a uns salteadores que assolavam aquelas plagas. Alice Oke morreu muitos anos depois, j bastante idosa, durante o reinado de Carlos II; mas Nicholas Oke no viveu muito tempo mais e, pouco antes de morrer, foi acometido por um estranhssimo mal, sempre deprimido e s vezes ameaando de morte a esposa. Dizem que numa dessas crises, logo antes de morrer, revelou toda a histria do assassinato e profetizou que quando o chefe de sua famlia e senhor de Okehurst desposasse outra Alice Oke, descendente dele prprio e de sua esposa, a linhagem dos Okes de Okehurst checaria ao fim. Como o senhor v, isso est prestes a ocorrer. No temos filhos e no creio que um dia venhamos a ter algum. Eu, pelo menos, nunca desejei t-los. A Sra. Oke parou e olhou para mim, o sorriso distante no rosto fino. Seus olhos no tinham mais aquela expresso ausente: estavam estranhamente animados e fixos. Eu no sabia o que dizer. Decididamente, aquela mulher me assustava. Ficamos um instante naquele lugar, a luz do sol desfalecendo em pequenas ondas rubras sobre o torgal, dourando as margens amarelas, as guas negras do lago cercado de esguios juncos e as cascalheiras pardas, enquanto o vento nos aoitava as faces e sacudia as copas deformadas, azuladas, dos abetos. Ento a Sra. Oke tocou o cavalo para a frente e l fomos ns, numa velocidade desenfreada. No trocamos uma s palavra, creio, em todo o caminho de volta. As pessoas que amos ultrapassando ao longo das estradas deviam pensar que o cavalo, desembestara, a menos que notassem a aparncia calma da Sra. Oke e seu ar de entusiasmo e prazer. Para mim, era como estar merc de uma louca e em silncio fui me preparando para uma capotagem ou coliso com outra charrete. O tempo esfriara e o vento gelado nos aoitava as faces, quando avistamos as empenas vermelhas e as chamins espigadas de Okehurst. O Sr. Oke estava parado junto porta. Quando nos aproximamos, notei-lhe no rosto um ar de expectativa aliviada e de imensa alegria. Com uma espcie de ternura cavalheiresca, ele tomou a esposa nos braos fortes. Que bom que voc est de volta, meu bem! , exclamou. Que bom! Fiquei feliz quando me contaram que voc tinha sado de charrete, mas como no conduzia h tanto tempo, acabei ficando muitssimo preocupado, querida. Por onde andou todo este tempo? A Sra. Oke desvencilhou-se rapidamente do marido, que continuou a segur-la como se segura uma criana frgil que acaba de nos causar uma preocupao. A delicadeza e o carinho do coitado evidentemente no a sensibilizavam. Pareciam quase causar-lhe repulsa. Levei-o at Cotes Common , disse, com o olhar perverso que eu j lhe notara antes, enquanto tirava as luvas de montaria. um velho local to maravilhoso... O Sr. Oke empalideceu como se tivesse mordido alguma coisa com um dente inflamado e as rugas gmeas entre suas sobrancelhas ficaram rubras. L fora, as brumas comeavam a se formar, esmaecendo as terras pontilhadas de grandes carvalhos negros, de onde, sob o luar derramado, se elevava, por todo lado, o gritinho lgubre dos cordeiros separados das mes. O ar estava frio e mido, estremeci. Captulo 7 No dia seguinte Okehurst estava cheia de gente, e a Sra. Oke, para minha surpresa, fazia as honras como se uma casa repleta de criaturas comuns, jovens e barulhentas, s voltas com flertes e partidas de tnis, representasse seu ideal de felicidade. Na tarde do terceiro dia eles tinham vindo para um baile de cunho eleitoral e passaram trs noites o tempo mudou. De repente ficou muito frio e comeou a chover torrencialmente. Todos se recolheram casa, e uma tristeza geral abateu-se sobre o grupo. A Sra. Oke, pelo visto enfastiada dos convidados, recostou-se apaticamente num sof da sala, sem dar a mnima ateno s conversas e aos acordes do piano, quando uma das visitas de repente sugeriu um jogo de charadas. Tratava-se de um primo distante dos Okes, uma espcie de artista bomio das rodas da moda, levado insuportvel pretenso pelo modismo da temporada, o teatro amador. Seria delicioso, num lugar to esplndido como este , exclamou ... se ns simplesmente nos fantasissemos e desfilssemos por a, como se vivssemos em outras eras. Ouvi dizer, primo Bill, que vocs guardam em algum lugar uma coleo fantstica de roupas antigas, datando mais ou menos dos tempos de No... O grupo inteiro irrompeu em exclamaes entusiasmadas diante daquela sugesto. William Oke pareceu momentaneamente desconcertado e olhou para a esposa, que continuava deitada no sof, aptica. Temos um armrio cheio de roupas pertencentes famlia , respondeu ele em tom vago, aparentemente s voltas com o desejo de agradar aos convivas. ...Mas... mas... no sei se no seria falta de respeito vestir as roupas dos mortos. Ora, que tolice! , exclamou o primo. O que os mortos entendem disso? Alm do mais, meu camarada , acrescentou, com seriedade galhofeira posso lhe garantir que nos comportaremos com todo o respeito e reverncia... se voc nos trouxer a chave. O Sr. Oke tornou a olhar para a esposa e mais uma vez, s obteve, em resposta, a sua expresso vaga e ausente. Muito bem , disse. E conduziu as visitas para o andar de cima. Uma hora depois, a casa era tomada de assalto pelo mais bizarro dos bandos e ecoava com os mais estranhos rudos. At certo ponto eu compreendera a relutncia de William Oke em permitir que as roupas e a memria de seus antepassados fossem tratados ligeira. Concretizada a brincadeira, porm, tive que admitir que o resultado era magnfico. Sob a direo do primo ator, uma dzia de moas e rapazes os hspedes da casa e mais alguns vizinhos que tinham vindo para jogar tnis e jantar ataviaram-se com o contedo do armrio de carvalho e eu nunca tinha visto um espetculo mais bonito do que o daquelas figuras, que, isoladas ou em conjunto, pareciam sadas diretamente do passado, a enfeitarem os corredores revestidos de madeira, a escadaria de brases e entalhes, os sales penumbrosos com suas tapearias gastas, o grande hall com seu teto abobadado e canelado. At mesmo William Oke que, alm de mim e uns poucos convivas mais idosos era o nico sem fantasia aparentemente se divertia, contagiado com uma animao de colegial, por assim dizer. E ao verificar que no lhe restara nenhuma roupa, ele subiu as escadas correndo e logo voltou envergando o uniforme de antes do casamento. Creio que eu nunca havia visto um exemplo to esplendoroso do tpico ingls bem apessoado. Com seus traos regulares, seus belos cabelos e pele clara, e apesar de todas as conotaes modernas de sua farda, ele parecia mais autenticamente antigo do que todos os demais: um cavalheiro do Prncipe Negro ou Sidney6. Minutos depois, at os mais velhos tinham arrumado fantasias de um tipo ou de outro: domins improvisados, capuzes e mscaras variadas, confeccionadas com bordados antigos, tecidos orientais e peles; e em instantes aquela corja de mascarados deixava-se inebriar pelo prprio entusiasmo, com a infantilidade e, se me permitem, a selvageria e a vulgaridade latentes em quase todos os ingleses, sejam eles homens ou mulheres, mesmo os de boa formao. E o prprio Sr. Oke bancava o saltimbanco como um menino numa festa de Natal. Onde est a Sra. Oke? Onde est Alice? , perguntou algum de repente. A Sra. Oke desaparecera. Parecia-me perfeitamente compreensvel que, para algum de ndole excntrica, dona de uma paixo to mrbida, fantasiosa e fantstica pelo passado, uma folia como aquela se afigurasse absolutamente revoltante e, sendo ela to indiferente quanto a ofender ou no as pessoas, eu podia imaginar que, enojada e indignada, tivesse se recolhido ao salo amarelo para tecer seus estranhos devaneios. Instantes depois, porm, quando alvoroadamente nos preparvamos para jantar, a porta se abriu e entrou uma estranha figura, mais estranha do que qualquer daqueles outros a profanarem as vestimentas dos mortos: um rapazote magro e alto, trajando uma jaqueta de montaria marrom, cinto de couro e botas amarelas de cano alto, uma pequena capa cinzenta sobre um dos ombros, uma adaga e uma pistola na cinta. Era a Sra. Oke, com um brilho sobrenatural nos olhos, o rosto todo iluminado por um sorriso desafiador e perverso. Todos exclamaram, abrindo caminho. Em seguida, fez-se um breve silncio, interrompido por alguns aplausos desenxabidos. At mesmo para um bando de rapazes e moas barulhentos, a fazerem suas brincadeiras em trajes de homens e mulheres h muito mortos e enterrados, havia algo de dbio na sbita apario de uma jovem casada, a senhora da casa, vestindo roupa de montaria e botas de cano alto; e a expresso da Sra. Oke no tornava a pilhria menos dbia. Que fantasia essa? , perguntou o primo ator que, passado um instante, chegara concluso de que a Sra. Oke era simplesmente uma mulher de extraordinrio talento, que ele precisava aliciar para a sua trupe amadora na prxima temporada. E a roupa que uma antepassada nossa, minha homnima Alice Oke, usava para cavalgar com o seu marido, na poca de Carlos I , respondeu ela, tomando o seu lugar cabeceira da mesa. Sem querer, meu olhar buscou o de Oke de Okehurst. Este, que costumava ruborizar-se como uma moa de dezesseis anos, estava agora branco como cera, e notei que apertava a boca com a mo, num gesto quase convulsivo. No reconhece o meu traje, William? , quis saber a Sra. Oke, fitando-o com seu sorriso impiedoso. Ele no respondeu, e fez-se um instante de silncio, que o primo ator teve a brilhante idia de interromper ao pular da cadeira e esvaziar sua taa com a seguinte exclamao. A sade das duas Alices Okes, a do passado e a do presente! A Sra. Oke balanou a cabea, concordando e, com uma expresso que eu nunca lhe notara antes, respondeu em alto e bom som. sade do poeta Sr. Christopher Lovelock, se seu fantasma estiver honrando esta casa com sua presena! De repente, tive a impresso de ter ido parar num manicmio. Do outro lado da mesa, no meio daquela confraria de folies barulhentos, ataviados de vermelho, azul, roxo e xadrez, como homens e mulheres dos sculos dezesseis, dezessete e dezoito, turcos e esquims, arlequins e palhaos improvisados, com suas caras pintadas e lambuzadas de carvo e farinha, pareceu-me visualizar aquele cruento pr-do-sol a se espraiar nas urzes como um mar de sangue, at o lugar onde, junto ao lago e os abetos torturados pelo vento, jazia o corpo de Christopher Lovelock, o cavalo morto ao seu lado, o cascalho amarelo e a estorga lils a se encharcarem de carmim por toda a volta; e acima dele, como que emergindo da vermelhido, a cabea loura e plida, coberta por um chapu cinzento, os olhos ausentes, o sorriso estranho da Sra. Oke. Tudo me pareceu horrvel, vulgar, abominvel, como se eu tivesse entrado num manicmio. Captulo 8 A partir daquele momento, percebi uma mudana em William Oke. Ou melhor, uma mudana que provavelmente j vinha ocorrendo h algum tempo atingiu um nvel perceptvel. No sei se ele discutiu com a esposa sobre a mascarada daquela noite fatdica. Pensando bem, creio mesmo que no. Oke era um homem ensimesmado e reservado com todas as pessoas, e mais ainda com sua mulher. Alm disso, creio que lhe seria de fato impossvel colocar em palavras qualquer sentimento de censura para com ela, e que calaria a sua irritao. Seja como for, logo notei que as relaes entre meu anfitrio e minha anfitri estavam profundamente estremecidas. A Sra. Oke, na verdade, nunca prestara muita ateno ao marido e parecia pouco mais indiferente do que antes sua presena. Era evidente, porm, que embora ele se obrigasse a lhe dirigir a palavra durante as refeies, pelo simples desejo de esconder seus sentimentos e pelo medo de criar uma situao constrangedora para mim, o Sr. Oke mal suportava ter que falar com sua mulher, ou mesmo v-la. A boa alma do coitado estava repleta at a borda de uma dor que ele teimava em no deixar transbordar e que, infiltrando-se em toda sua natureza, parecia envenen-lo. Aquela mulher o ultrajara e magoara mais do que lhe era possvel dizer; e, no entanto, era evidente que ele no conseguia nem deixar de am-la, nem compreender, ainda que de longe, a sua verdadeira natureza. As vezes, quando fazamos nossa caminhada costumeira por aquelas paragens montonas, cruzando os pastos salpicados de carvalhos e margeando as fileiras de lpulo, serreadas e verdosas, vez por outra comentando o valor comercial das safras, a drenagem dos terrenos, as escolas comunitrias da Primrose League, as iniqidades do Sr. Gladstone,7 enquanto Oke cuidadosamente ceifava toda urtiga mais alta que lhe chamasse a ateno s vezes, como eu dizia, eu sentia um desejo intenso, mas impotente, de abrir os olhos daquele homem para o carter de sua mulher. Parecia-me que entend-la to bem implicava numa aquiescncia um tanto incmoda... e parecia-me muito injusto que s ele estivesse condenado para sempre ruminar aquele enigma, dilacerando a alma no esforo de compreender o que agora me parecia to claro... Mas como fazer com que aquele paradigma da simplicidade, honestidade e prolixidade inglesas to srio, compenetrado e lerdo algum dia viesse a compreender o misto de vaidade excntrica, superficialismo, imaginao potica e morbidez exacerbada que atravessava esta vida com o nome de Alice Oke? Oke de Okehurst, portanto, estava condenado a nunca compreender, mas tambm estava condenado a sofrer por essa incapacidade. O coitado vivia em busca de uma explicao para as esquisitices da mulher, e esse esforo, embora provavelmente inconsciente, causava-lhe um enorme sofrimento. Os vincos entre as sobrancelhas o cenho manaco, como diz meu amigo parecia ter-se tornado uma expresso permanente. A Sra. Oke, por sua parte, fazia tudo para agravar a situao. Talvez a melindrasse a recriminao tcita do marido travessura da noite de mscaras, e estivesse decidida a faz-lo pagar em dobro, pois era bvio que achava que uma das caractersticas de William e uma pela qual o desprezava era a de nunca se deixar provocar a ponto de manifestar abertamente sua desaprovao e a de, por ela, ser capaz de engolir qualquer aborrecimento sem reclamar. Seja como for, ela agora adotava a poltica radical de usar o assassinato de Lovelock para espezinhar e chocar o marido. Aludia ao fato constantemente em suas conversas, discutindo na presena dele quais teriam ou no teriam sido os sentimentos dos vrios protagonistas da tragdia de 1626 e insistindo na sua prpria semelhana, na sua quase identidade com a Alice Oke original. Alguma coisa sugerira sua mente excntrica que seria divertido encenar nos jardins de Okehurst, debaixo dos grandes carvalhos e olmos, uma pequena pea que ela achara entre os escritos de Christopher Lovelock; e, com o propsito de realizar esse projeto, ela se ps a vasculhar as redondezas e iniciou uma volumosa correspondncia. Dia sim, dia no, chegavam cartas do primo ator, cuja nica restrio era a de Okehurst ser um lugar muito remoto para um entretenimento pelo qual ele j se via coberto de glria. E de vez em quando chegava algum jovem cavalheiro ou jovem dama que Alice Oke mandara chamar para ver se serviriam. Percebi claramente que a representao nunca teria lugar e que a prpria Sra. Oke no tinha a menor inteno de que jamais tivesse. Ela era uma dessas criaturas para quem a concretizao de um projeto nada representa, e que se deleitam ainda mais em fazer planos quando sabem que no passaro disso. Entrementes, o constante falar da pastoral, de Lovelock e a incessante incorporao da mulher de Nicholas Oke tinham, para a Sra. Oke, o atrativo extra de deixar o seu marido numa irritao tenebrosa, ainda que reprimida, o que lhe causava uma alegria de criana perversa. No quero que voc pense que a tudo isto eu assistia indiferente, embora deva reconhecer que era vim prato cheio para algum como eu, aficionado ao estudo da natureza humana. Na verdade, eu sentia uma enorme compaixo do pobre Oke, e com freqncia ficava indignado com sua esposa. Em vrias ocasies estive a ponto de suplicar-lhe que tivesse mais considerao com ele, ou mesmo de lhe insinuar que aquela atitude, sobretudo na frente de um relativo estranho como eu, era de extremo mau gosto. Mas a Sra. Oke tinha algo de escorregadio, algo que tornava praticamente impossvel falar-lhe a srio; e, alm disso, nada me garantia que uma interveno minha no servisse apenas para aguar sua perversidade. Certa noite ocorreu um estranho incidente. Tnhamos acabado de nos sentar para jantar os Okes, o primo ator, que estava ali passando uns dias, e trs ou quatro vizinhos. A tarde caa e a luz amarelada das velas fundia-se, em encantadores matizes, com o cinzento da noite. A Sra. Oke no estava bem, tendo passado o dia estranhamente calada mais difana, esquisita e distante do que nunca e seu marido parecia sentir um sbito renascer de sua ternura, sua quase compaixo por aquela criatura delicada e frgil. Vnhamos conversando sobre assuntos absolutamente prosaicos, quando vi o Sr. Oke ficar muito plido e fixar os olhos por alguns instantes na janela bem em frente sua cadeira. Quem aquele sujeito espiando pela janela a lhe fazer sinais, Alice? Haja petulncia! , gritou; e, levantando-se de um salto, correu para a janela, abriu-a e mergulhou no entardecer. Todos nos entreolhamos, atnitos, e alguns dos comensais comentaram a displicncia dos criados em deixarem sujeitos mal-encarados rondar a cozinha, enquanto outros contavam casos envolvendo desocupados e ladres. A Sra. Oke no disse nada, mas notei-lhe, no rosto fino, o sorriso estranho e distante. Passado um minuto, William Oke entrou, o guardanapo ainda na mo. Fechou a janela atrs de si e retomou em silncio o seu lugar. Quem era, afinal? , quisemos todos saber. Ningum. Eu... eu devo ter me enganado , respondeu ele, as faces rubras, enquanto se concentrava em descascar uma pra. Deve ter sido Lovelock , observou a Sra. Oke, como se dissesse deve ter sido o jardineiro , mas com aquele seu sorriso de prazer estampado no rosto. Com exceo do primo ator, nenhum dos convivas jamais ouvira falar em Lovelock e, na certa pensando que se tratava de algum agregado da famlia Oke, ningum disse nada e o assunto morreu ali. Daquela noite em diante, as coisas foram tomando um outro aspecto. Aquele incidente foi o incio de um verdadeiro jogo. Um jogo de qu? Mal saberia que nome lhe dar. Um jogo feito de brincadeiras macabras por parte da Sra. Oke, de fantasias supersticiosas por parte de seu marido e um jogo de misterioso assdio por parte de um outro morador de Okehurst, um morador menos terreno. Sim, sim... afinal de contas, por que no? Todos ns j ouvimos falar de fantasmas, temos tias, primos, avs, babs que um dia viram algum; e no fundo do nosso corao sentimos um certo medo deles. Sendo assim, por que no poderiam existir? Quanto a mim, sou ctico demais para achar que uma coisa seja impossvel! Alm do mais, quem passa um vero inteiro morando na mesma casa que uma mulher como a Sra. Oke de Okehurst, chega, por acreditar nela, a acreditar na possibilidade de muita coisa improvvel, isso eu posso lhe assegurar. E, pensando bem, por que no? Que uma criatura sinistra, obviamente de outro mundo, reencarnao de uma mulher que assassinou o amante h dois sculos passados... que tal criatura, por ser totalmente superior a qualquer amante deste mundo, tenha o poder de atrair para si o homem que a amou no passado e cujo amor por ela o levou morte...