Choderlos de Laclos - Ligacoes Perigosas

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  • 8/9/2019 Choderlos de Laclos - Ligacoes Perigosas

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    LIGAES PERIGOSAS

    CHODERLOS DE LACLOS

    TTULO ORIGINAL: LES LIAISONS DANGEREUSES

    TEXTO INTEGRAL: EDITORES ASSOCIADOSTRADUO: JOO PEDRO DE ANDRADE E ALFREDO AMORIM

    http:/ / groups.go og le.com / group/ digitalsourc e

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    PREFCIO DO REDATOR

    Esta obra, ou antes, esta coleo, que o pblico achar talvezainda volumosa em demasia, no contm, todavia mais do que um

    pequeno nmero das cartas* que compunham a totalidade dac orrespo ndnc ia de onde foi extrada . Encarregad o d e p -la em orde mpelas pessoas a cujas mos chegou, e que eu sabia terem a intenode public-la, pedi apenas, como prmio dos meus cuidados, apermisso de suprimir tudo o que me parecesse intil; e de fatoconservei apenas as cartas que me pareceram necessrias, quer paraa c ompreenso do s ac ontec imentos, quer pa ra o d esenvolvimento do scaracteres. Se acrescentarmos a este ligeiro trabalho o de repor porordem as cartas que deixei ficar, ordem para a qual eu prprio quasesem pre seg ui a d as da ta s, e, enfim, algum as notas c urta s e raras, e que,

    na sua m aior pa rte n o tm o utro objetivo seno o d e indic ar a o rige mde algumas citaes ou de motivar alguns cortes que me permiti fazer,ter-se- inteirame nte id ia da parte q ue tive nesta ob ra . A minha m issono ia ma is long e.

    Eu tinha proposto alteraes mais considerveis, quase todasrelativas pureza de dico ou de estilo, contra a qual se encontraromuitas faltas. Desejei tambm ser autorizado a cortar diversas cartasdemasiado longas, e das quais algumas tratam separadamente, equase sem transio, assuntos absolutamente estranhos uns aos outros.Este trabalho, que no foi aceito, no seria bastante sem dvida para

    da r mrito ob ra , mas ter-lhe-ia pelo menos tirado p arte d os defeitos.Foi-me ob jeta do q ue e ram a s p rp rias ca rtas que se p retend ia .

    ...da r a conhec er, e no ap enas uma ob ra feita seg undo as c artas; queseria tanto contra a verossimilhana como contra a verdade que, deoito dez pessoas que colaboraram nesta correspondncia, todasescrevessem com igual pureza. E minha rplica de que, longe disso,no havia, pelo contrrio, nenhuma que no tivesse cometido errosgraves, foi-me respondido que todo o leitor razovel esperariaseguramente encontrar erros numa coleo de cartas de algunsparticulares, visto que em todas as que se tm publicado de diferentes

    autores estimados, e m esmo de a lguns ac admic os, no se encontravanenhuma totalmente ao abrigo desta censura. Estas razes no mepersuadiram e achei-as, como as acho ainda, mais fceis de dar quede rec eb er; ma s no me compe tia ma nda r, e subm eti-me . Somente m ereservei o direito de protestar e de declarar que no era essa a minhaop inio; o que fa o neste momento.

    Quanto a o m rito q ue esta ob ra po ssa ter, talvez me no c aibaexplic -lo, pois a m inha op inio no d eve nem p od e ter influnc ia sob re*Devo prevenir tambm que suprimi ou mudei todos os nomes das pessoas queintervm nestas cartas; e que, se no nmero daqueles que lhes substitu, seencontrarem nomes que pertenam a algum, ter sido unicamente por erro da

    minha p arte, e d o q ual no se d ever tirar qua lque r c onc luso . (N. do A.)

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    a de ningum. Entretanto, todos os que, antes de comear uma leitura,fic am satisfeitos po r sab er aproxima da mente c om o q ue p od em c onta r,esses, dizia eu que continuem, os outros faro melhor em passarimediata mente para a ob ra em si; sab em j o q ue lhes ba sta.

    O que posso dizer antes do mais que se a minha inteno foi,

    como reconheo, der a conhecer estas cartas, estou, todavia muitolonge de esperar da um xito: e que no se tome esta sinceridade daminha parte pela modstia fingida de um autor; pois declaro com amesma franqueza que, se esta coleo no me tivesse parecido dignade ser oferec ida ao pb lico, eu no me teria o c upa do de la. Trate mosde c onc ilia r esta a pa rente contradi o.

    O mrito de uma obra compe-se da sua utilidade ou doagrado que desperta, e mesmo duma coisa e doutra, quando disso suscetvel; mas o xito, que no prova sempre o mrito, deve-sefrequentemente mais escolha do assunto que sua execuo, ao

    c onjunto d os mo tivos que ap resenta do que ma neira c omo e les sotratados. Ora contendo esta coleo, como o seu ttulo anuncia, asc artas de toda uma soc ied ade, reina nela uma d iversidade d e interesseque e nfraq uec e o d o leitor.

    Alm disso, sendo quase todos os sentimentos que a seexprimem fingidos ou dissimulados, deixam de poder mesmo excitar uminteresse que no seja o de curiosidade sempre muito abaixo do desentimento, e que, sobretudo, conduz menos indulgncia e deixatanto mais a perceber as faltas que se encontram nos pormenores,qua nto estes se op em c onstantemente ao de sejo que unicam ente se

    quer satisfazer.Estes defeitos so talvez resgatados, em parte, por uma

    qua lida de que d o m esmo m od o tem origem na natureza d a o bra; ava ried ade d os estilos; mrito que um autor atinge d ific ilmente, ma s quese apresentava aqui por si prprio, e que ao menos exclui oaborrecimento da uniformidade.

    Algumas pessoas podero ainda esperar encontrar para seuproveito um nmero assaz grande de observaes, ou novas ou poucoconhecidas, e que se encontram dispersas nestas cartas. E nisso seresume, segundo creio, tudo que se pode esperar como motivos de

    agrado, usando, a lis, de um juzo extrem amente favo rvel.A utilida de da ob ra, que p orventura ser ainda ma is c ontestada ,parece-me, todavia fcil de estabelecer. Julgo pelo menos que prestar um servio aos costumes divulgar os meios que empregam osque os tm ma us para c orrom per os que os tm bons, e c reio que estasc arta s pod ero conc orrer eficazmente para esse fim. Enc ontrar-se-tam bm nelas a prova e o exemp lo d e d uas verdad es imp ortantes quedir-se-ia serem desconhecidas, to pouco elas so praticadas: aprimeira, que tod a a mulher que c onsente e m rec eb er no seu meio umhom em sem mo ra l ac aba p or se to rnar a sua vtima; a outra , que p elo

    menos imp rudente toda a m e que ad mita que outra pessoa alm delatenha a confiana de sua filha. Os jovens de um e de outro sexo

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    poderiam tambm aprender aqui que a amizade que as pessoas demaus costumes parecem dedicar-lhes to facilmente no mais queuma perigosa cilada, to fatal sua felicidade como sua virtude.Parece-me, no entanto, muito de temer aqui o abuso, que andasem pre t o p erto da med ida justa ; e, long e d e a c onselhar esta leitura

    mocidade, parece-me mais importante afastar dela todas as destegnero. A poca em que tal leitura pode deixar de ser perigosa etornar-se til parece-me ter sido bem escolhida, para o seu sexo, poruma boa me no apenas inteligente, mas de inteligncia bemguiada. "Julgo", me dizia ela, depois de ter lido o manuscrito destacorrespondncia, "que prestarei um bom servio a minha filha, dando-lhe este livro no dia do seu casamento." Se todas as mes de famliapensarem isto d a o bra , felic ita r-me-ei ete rnam ente p or t-la p ublic ado.

    Mas, partindo ainda desta suposio favorvel, afigura-se-mesempre que esta coleo deve agradar a pouca gente. Os homens e

    as mulheres de costumes depravados tero interesse em denegrir umaob ra que p od e ser-lhes p rejudicial; e c omo n o lhes falta astc ia , ta lvezse lem brem de p r do seu lad o os rigo ristas, alarmad os pelo q uadro demaus costumes que no houve receio de apresentar-lhes. Os que se julgam espritos fortes no tero qualquer interesse por uma mulherdevota, que por isso mesmo ser para eles uma mulher semimp ortnc ia, enq uanto que os de votos fic aro de sc ontentes por veremsucumb ir a virtude , queixand o-se d o frac o p od er com que m ostrad aa relig io.

    Por sua vez, as pessoas de gosto delicado ho-de enfastiar-se

    c om o estilo demasiado simp les e defeituoso de a lgum as destas c artas,enquanto que o c omum d os leitores, sed uzido p ela idia d e q ue tudo oque imp resso o fruto d e um traba lho, julga r ver em a lguma s outrasa maneira dificilmente conseguida de um autor que se mostra porde trs da p ersonagem q ue fala a seu ma nda do .

    Enfim, ta lvez venha a d izer-se, na generalidade, que c ada c oisano vale seno no luga r onde est coloca da ; e que, se o rd inariam enteo estilo demasiado castigado dos autores tira de fato toda a graa scartas de sociedade, as negligncias destas se tornam verdadeiroserros e a s tornam insuportve is, uma vez ent reg ues pub lica o.

    Confesso com sinceridade que todas estas censuras podem terfundamento; creio tambm que me seria impossvel responder-lhes, emesmo sem ir alm da extenso de um prefcio. Mas devec ompree nder-se q ue, se m e fo sse nec essrio respond er a tudo, seria issosinal de que a obra no responderia a nada; e que, se eu assim opensasse, teria suprimido ao mesmo tem po o p refc io e o livro.

    PRIMEIRA PARTE

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    CARTA I

    CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY*

    No c onvento das Usulinas de...

    Bem vs, minha bo a a miga , que c ump ro a minha p a lavra, e q ueas toucas e laos no ocupam todo o meu tempo; sempre me h deficar algum para ti. Mas olha que s hoje vi mais adereos do que nosqua tro anos que passamo s juntas; e c reio q ue a orgulhosa Tanvillel termaior aborrecimento com a minha primeira visita, em que eu contoperguntar por ela, do que ela pensou que nos causaria todas as vezesque vinha ver-nos em Fiorc h.

    A Mam consultou-me sobre todos os pormenores; trata-memuito menos c omo p ensionista do que noutro te mp o.

    Tenho uma c riad a de q ue d isponho, e esc revo-te em umasecretria muito bonita, de que possuo a chave, e onde posso fechartudo o que q uiser. A Ma m d isse-me que a verei tod os os d ias log o q ueela se levante; que b astar q ue eu e steja p entea da pa ra jantar, po rqueesta rem os sem pre ss, e q ue ent o e la m e d ir a ho ra e m q ue d evemo sjunta r-nos ta rde. O resto d o te mp o est minha d isposi o, e tenho aminha ha rpa , o m eu d esenho e livros c om o no c onvento; s n o esta ra madre Perptua para ralhar comigo, e depender apenas de mim

    esta r sempre sem fazer nad a: mas c om o n o te nho a minha Sofia p arac onversar e p ara rir, p refiro ento o cupar-me d ela.

    Ainda no so c inco horas; no d evo estar com a Ma m senos sete : ora aqui est um grand e intervalo, para o c aso em que t ivessealguma c oisa a dizer-te! Ma s ainda no me falaram d e na da ; e sem osprepa rativos que vejo fazer, e a qua ntida de de c ostureiras que vm po rminha causa, julgaria que ningum pensa em casar-me, e que maisum d ispa rate da bo a Josefina.

    Mas a verdade que a Mam me disse tantas vezes que umamenina deve ficar no convento at casar, que julgo que Josefina tem

    razo, visto que ela me fe z sa ir de l .Acaba de parar uma carruagem porta, e a Mam mandou-me que fosse te r c om ela ime d iata me nte . Se fosse o senho r?

    Ainda no estou vestida, a minha mo treme e o meu coraobate.

    Perguntei c riad a de q uarto se sab ia quem e stava c om minhame: "Ora", disse ela, " o senhor C..." e ria. Oh! Creio que ele. Voltareicom certeza a contar-te o que se passou. O nome j eu sei. No devo*Pensionista do m esmo c onve nto .fazer esperar. Ad eus, a t d aqui a um mo mento.

    Como te vais rir da pobre Ceclia! Oh! Como fiqueienvergonhada!

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    Mas tu terias cado como eu. Quando entrei nos aposentos daMam, vi um senhor vestido de preto, de p, por detrs dela.Cumprimentei-o o melhor que pude e fiquei sem me poder mexer domeu luga r. Pod es ima ginar c omo e u o e xam inava !

    "Senhora", disse ele a minha me, saudando-me, "trata-se na

    verda de de uma menina enc antad ora, e sinto melhor do q ue nunc a ova lor dos vossos obsq uios". A esta s pa lavras t o p ositivas tomou-me umta l tremor que no me pod ia suster; dep arei c om uma poltrona e sente i-me nela , tod a verme lha e c onfusa.

    Ma l eu me tinha senta do, eis que o ho mem se lan a a me us ps.Ento a tua pobre Ceclia perdeu a cabea; eu estava, como disse aMam, verdadeiramente espavorida. Levantei-me lanando um gritoagudssimo ;... Olha, co mo naque le d ia do trovo.

    A Mam soltou uma gargalhada e disse-me: "Ento, que tem?Sente-se e d o seu p a esse senhor." Na verdade, minha querida

    amiga, o senhor era um sapateiro. No posso dizer-te como fiqueienvergonhad a; po r felic ida de s a li estava a M am .

    Julgo que, quando for casada, no voltarei a servir-me daquelesapateiro.

    Hs-de convir que j sei muitas coisas! Adeus. So perto de seishoras, e a minha criada de quarto disse-me que tenho de me vestir.Adeus, minha q uerida Sofia; go sto tanto de ti c omo qua ndo estava noconvento.

    P. S. - No sei por quem enviar esta carta; por isso espero que Josefina

    venha.

    Paris, 3 de Ag osto de 17* *.

    CARTA II

    A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

    No c astelo d e...

    Volte meu caro Visconde, volte; que faz o senhor, que pode osenhor fazer em c asa de uma velha t ia c ujos bens lhe e sto ga rantidos?Parta ime d ia tamente; -me p rec iso a qui. Tive uma exce lente idia, edesejo confiar-lhe a execuo. Estas palavras deveriam bastar-lhe; e,muito honrado pela minha escolha, devia vir, com solicitude, receberde joelhos as minhas ordens.

    Mas o senhor abusa das minhas bondades, mesmo depois quede ixou d e a proveit-las; e na alternativa d e um d io ete rno ou d e uma

    excessiva indulgncia, a sua felicidade quer que a minha bondade aconduza. Desejo pois instru-lo sobre os meus projetos: mas jure-me que

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    como fiel cavaleiro no correr nenhuma aventura sem que esta sejalevada ao fim. Ela digna de um heri: o senhor servir o amor e avingana; ser enfim uma astcia a mais a pr nas suas memrias: sim,nas suas memrias, pois eu quero que elas sejam publicadas um dia,enc arreg o-me d e esc rev -las. Ma s deixem os isso, e vo ltemos ao q ue me

    preocupa.Madame de Volanges vai casar a filha: ainda um segredo;

    mas desde ontem que estou na posse dele. E quem julga que elaescolheu p ara g enro? O Cond e d e G erc ourt. Quem d iria que eu viria aser p rima de Gercourt? Sinto-me possuda de ta l furor!...

    Pois bem! No adivinhou ainda? Oh, inteligncia lenta! J lheperdoou, po is, a a ventura d a Intend ente *? E eu, no tenho razes parame queixar dele mais ainda, seu monstro? Mas vou-me acalmar, e aespe ran a d e me vinga r lan a a serenida de na m inha a lma .

    Decerto j se tem aborrecido cem vezes, tal como eu, com a

    imp ortnc ia que Gercourt atribui sua prxima c onquista, e c om a tolapresuno q ue o d ispe a c rer que ev ita r a sorte inevitve l.

    Conhece as suas ridculas prevenes a favor das educaesclaustrais, e o seu preconceito, ainda mais ridculo, em relao mod stia das louras. Eu a posta ria, de fa to , que , ap esar da s sessenta millibras de renda da pequena Volanges, ele nunca faria esse casamentose ela fosse morena, ou se no tivesse estado no convento. Provemos-lhe, pois que apenas um tolo; com certeza h de s-lo um dia, no isso que me preocupa: mas o agradvel seria que ele comeasse pora. Como ns nos divertiramos no dia seguinte ouvindo-o gabar-se, pois

    ele h de gabar-se; e depois, se o Visconde chegar a instruir essarapariguinha, ser p rec iso muito pouc a sorte se o Gercourt no se tornarc om o q ua lquer outro, a f bula de Paris.

    Alis, a herona deste novo romance merece todos os seuscuidados: na verdade bonita; tem apenas quinze anos, um botode rosa; acanhada, de fato, como j se no usa, e de modo nenhumafetada : ma s vs, os hom ens, no teme is isso; a lm do ma is, senho rade c erto o lhar lang oroso q ue na verda de p romete muito. Acrescente atudo isto que sou eu que a recomendo: no tem mais que agradecer-me e obed ecer.

    Receber esta carta amanh de manh. Exijo que amanh ssete horas da ta rde esteja em m inha c asa . No rec eb erei ningum*Para entender esta passagem, deve saber-se que o Conde de Gercourt tinhadeixado a Marquesa de Merteuil pela Intendente de..., que lhe tinha sacrificado oVisconde de Valmont, e que foi ento que a Marquesa e o Visconde se ligaram umao outro. Como esta aventura muito anterior aos acontecimentos de que tratamestas cartas julgou-se dever suprimir toda a correspondncia que com ela se liga. (N.do A.)seno as oito, nem mesmo o Cavaleiro reinante: esse no tem cabeapara tamanha empresa. Bem v que o amor no me cega. s oitohoras outorgo-lhe a liberdade, e as dez voltar para cear com o belo

    objeto, pois a me e a filha ceiam sempre em minha casa. Adeus;pa ssa do meio-dia, em breve d eixarei de m e o c upa r do Visc onde.

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    Paris, 4 de Ag osto de 17* *.

    CARTA III

    CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

    Ainda no sei nada, minha boa amiga. A Mam tinha ontemmuita gente a cear. Apesar do interesse que tinha em examinar, oshomens princ ipa lmente, ab orrec i-me muito. Tod a a g ente , homens emulheres, olhava muito para mim, e depois punham-se a falar aoouvido; e eu bem via q ue era d e mim que falavam.

    Isto fa zia -me c orar; era c oisa e m q ue eu n o tinha mo.

    Bem queria impedi-lo, pois reparei que, quando olhavam paraas out ras mulheres, elas no c oravam; ou ta lvez fosse a p intura que n ome deixava ver o seu embarao, pois deve ser muito difcil deixar dec orar quand o um hom em nos olha fixam ente.

    O que mais me inquietava era no saber o que pensavam ame u respeito. Creio, no enta nto ter ouvido duas ou trs vezes a pa lavrabonita; mas ouvi muito distintamente dizer acanhada. E isso deve serverdade, pois a senhora que pronunciava essa palavra parente eamiga d e minha m e.

    Pareceu-me mesmo que de repente tinha sentido amizade por

    mim.Foi a nica pessoa que falou comigo um pouco durante toda a

    noite.Ama nh cea mos em c asa d ela.Ouvi ainda, depois da ceia, um homem que estou certa que

    falava de mim, e que dizia a outro: " preciso deixar amadurecer,verem os este Inverno." Ta lvez seja esse que deve c asar co migo; massendo assim, no ser antes de quatro meses! Bem desejaria saber deque se trata .

    Chegou agora Josefina, e diz-me que est com pressa. Mas

    quero contar-te ainda uma das minhas acanhezas. Oh, creio que essasenhora tem razo!Depois da ceia puseram-se a jogar. Eu fiquei perto da Mam;

    no sei com o isso a c ontec eu, ma s adormec i quase a seg uir.Acordou-me uma estrepitosa gargalhada. No sei se riam de

    mim, mas assim o creio. A Mam permitiu que me retirasse, e com issodeu-me grande prazer. Imagina que passava das onze horas. Adeus,minha querida Sofia; ama sempre m uito a tua Cec lia . Pod es esta r certade que a soc ied ad e no to d ivertida c omo a imag invam os.

    Paris, 4 de Ag osto de 17* *.

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    CARTA IV

    O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

    Em Paris

    As suas ordens so encantadoras; e a sua maneira de d-las ma is am ve l ainda . A minha a miga po deria fazer ama r o d espo tismo .

    No a primeira vez, como sabe, que eu lamento no ser j oseu escravo; e por muito monstro que diga que eu sou, no recordonunca sem prazer o tempo em que me honrava com eptetos maisdoces. Muitas vezes mesmo desejo voltar a merec-los, e acabar pordar, a seu lado, um exemplo de constncia ao mundo. Mas outros

    interesses mais altos nos chamam: conquistar o nosso destino. prec iso seg ui-lo. Ta lvez ao fim d o c aminho voltem os a enc ont ra r-nos;pois, seja dito sem que se zangue, minha bela Marquesa, a verdade que a senhora me seg ue c om um passo pelo menos igua l. E visto que,sep arand o-nos pa ra a felic ida de do mundo, ca da um d e ns prega p orseu lado a sua f, parece-me que, nesta misso de amor, a minhaamiga faz ma is p roslitos do que eu. Conhe o o seu zelo, o seu a rdentefervor. E se Deus nos julgasse segundo as nossas obras, a senhora seriaum dia a padroeira de alguma grande cidade, enquanto que o seuam igo seria qua ndo muito um santo de aldeia.

    Admira-se desta linguagem, no verdade? Mas h oito diasque e u no o uo nem falo outra; e p ara me ap erfei oa r nela q ue mevejo for ad o a d esob ed ec er-lhe.

    No se zangue e o ua-me. Depo sit ria de tod os os seg red os domeu corao, vou confiar-lhe o maior projeto que jamais formei. Queme prope a minha am iga ? Sed uzir uma jovem que no viu nad a, queno c onhec e na da; que, po r assim d izer, me seria entregue sem defesa ;que c om c erteza se em briag ar co m uma primeira homenag em, e q ueser levada mais pela curiosidade do que pelo amor. H vinte homensque nessa empresa seriam to bem sucedidos como eu. J no

    acontece o mesmo com a empresa que me preocupa; o seu xitovaler-me- tanto prazer como glria. O amor que prepara a minhacoroa hesita ele prprio entre a mirta e o loureiro, ou antes os reunirpa ra honrar o me u triunfo. At a minha bo a a miga ser to ma da de umsanto respeito, e dir com entusiasmo: " este o homem segundo o meucorao."

    A m inha amiga c onhec e a mulher do Presidente Tourvel, a suadevo o, o seu amo r conjuga l, os seus p rincp ios austeros.

    Eis o alvo do meu ataque; eis o inimigo digno de mim; eis o fimque eu p retend o a tingir:

    Et si de l'ob tenir c e n 'emporte le p rix,J'aurais du moins !honneur de l'avo ir entrep ris.*

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    permitido c ita r ma us versos, quand o so d e um grande p oe ta .Co mo deve saber, o Presidente de Tourvel est em Borgo nha ,

    seguindo um grande processo (espero fazer-lhe perder outro maisimp ortante). A sua inconsolvel meta de deve pa ssar aq ui tod o o tempodesta aflitiva viuvez. Uma missa por dia, algumas visitas aos pobres da

    regio, oraes de manh e noite, passeios solitrios, piedosasc onve rsas c om a minha ve lha tia, e uma vez por outra um triste jogo d ewhist, deviam ser as suas nicas distraes. Estou-lhe preparando outrasmais eficazes.

    O me u anjo b om c ond uziu-me a qui pa ra a sua felic ida de e p araminha. Insensato! Eu lamentava as vinte e quatro horas que ia sacrificarem considerao aos respeitos familiares que so de uso. Como euseria c astiga do se me ob riga ssem a vo lta r a Pa ris!

    Felizmente so precisas quatro pessoas para jogar o whist; ecomo no h aqui mais ningum alm do prior do lugar, a minha

    ete rna tia instou muito com igo para que eu lhe sac rific asse a lguns d ias.J adivinhou que acedi. No imagina os mimos que ela me prodigalizadesde esse instante, e p rinc ipa lmente c om o ela e st imp ressiona da porme ver assistir regularmente s suas ora e s e missa . Nem p or sombraslhe pa ssa p ela c ab e a q ual a divinda de que e u ali vou ad orar.

    E aqui estou eu, h quatro dias, entregue a uma paixo forte: Aminha am iga sab e c om que fora eu sei desejar, e c omo o s ob stc ulospesam pouco para mim; mas o que ignora quanto a solido vemreforar o ardor dos desejos. Apenas uma idia me ocupa; penso nelade dia, sonho com ela de noite. -me absolutamente necessrio possuir

    essa mulher, para me salvar do ridculo de estar apaixonado por ela;pois aonde no conduz um desejo contrariado? delicioso prazer! Eute imploro para a minha felicidade, mas principalmente para o meudescanso.

    Como ns os homens somos felizes por as mulheres sedefenderem to mal! Sem isso, seramos junto delas apenas tmidosescravos.

    Neste momento sinto-me possudo de reconhecimento pelasmulheres fceis, o que, naturalmente, me conduz a seus ps. Ante elesme ajoelho para obter o meu perdo, e nessa postura termino esta

    longa c arta.*E se eu no c onseg uir o p rm io ob ter, Terei ao m eno s a ho nra d e o have r tenta do. LaFonta ine. (N. do A.)

    Ad eus, minha a miga : long e d e m im q ua lquer reserva.

    Do c aste lo d e..., 5 de Ag osto de 17 * *.

    CARTA V

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    A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

    Sabe, Visc ond e, que a sua c arta d e uma insolnc ia ra ra , e q ueeu poderia ter-me zangado? Contudo, ela provou-me claramente queo Visconde perdeu a cabea e s isso o salvou da minha indignao.

    Amiga generosa e sensvel, esqueo a injria que me dirige para meocupar apenas do perigo que corre; e embora seja muito aborrecidoraciocinar, cedo necessidade que tem neste momento dos meusraciocnios.

    O Visconde, possuir a Presidente de Tourvel! Mas que ridculocapricho! Reconheo bem a sua m cabea que no sabe desejarsen o o que c r n o p od er ob ter. Que tem pois essa mulher? Tra osregulares, se quiser, ma s nenhum a expresso; sofrve l de c orpo, mas semgraa; vestida sempre de modo que faz rir! Com os seus molhos delacinhos no pescoo e o corpete que lhe chega ao queixo! Digo-lho

    c om o a miga , no lhe seria p rec iso te r duas mulheres c om o a quela paraperder toda a minha considerao. Lembre-se do dia da festa dec arida de em Sa int-Roc h, em q ue o Visc onde ta nto me a gradec eu po reu lhe ter proporcionado tal espetculo. Parece que ainda a estouvendo, da ndo a m o quele tranga lhad an as de c ab elos c omp rido s,pronta a c air a c ad a pa sso, tendo semp re o c esto d e q uatro varas emcima da cabea de algum, e corando cada vez que acumprimentavam. Quem lhe diria ento que chegaria a desejar essamulher? Vamos, Visconde, tenha a bondade de corar e voltar a si.Prom eto -lhe gua rdar seg red o.

    E dep ois, veja a srie d e c oisas desagradveis que o esperam !Que riva l ter a c om bater? Um m arido! No se sente humilhado

    s ante esta palavra? Que vergonha se for mal sucedido! E mesmo noc aso d e triunfar, que p eq uena glria o espera! Digo -lhe ma is: no c ontetirar dali nenhum prazer. isso possvel com as mulheres recatadas?Quero dizer com as que o so de, boa f: reservadas at no meio doprazer, no pod em oferec er sen o meios go zos. O a bandono inteiro d esi mesma, o delrio da volpia em que o prazer se depura pelo seuexcesso, estas vantagens do amor no so conhecidas por taismulheres. Aqui lho profetizo: na mais feliz das suposies, a sua

    Presidente julgar ter feito tudo pelo Visconde tratando-o como seuma rido, e na intimida de c onjuga l, me smo a ma is terna, h sempre d ois.Neste caso muito pior ainda; essa virtuosa senhora devota, e

    a sua de vo o d as que c ondenam a uma eterna infnc ia. po ssvelque o Visconde venha a saltar o obstculo, mas no se gabe de vir adestru-lo: venc ed or do a mo r de Deus, no o ser do med o d o Diabo; equa ndo , tendo a sua am ante nos b ra os, tivesse c onhec ido m ais c ed oessa mulher, possvel que fizesse dela qualquer coisa; mas tem j vintee dois anos e h cerca de dois que casada. Creia-me, Visconde,qua ndo uma mulher se enc ondeu a ta l po nto, p rec iso a ba ndo n-la

    sua sorte; nunc a h de p assar de uma espc ie.

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    No entanto, por esse belo objeto que o Visconde recusaobedecer-me; que se enterra no tmulo de sua tia, e que renuncia aventura mais deliciosa e mais de molde a proporcionar-lhe honrarias.Por que fa talidad e ser que Gercourt tem semp re q ualquer vanta gemsobre o Visconde? Falo-lhe sem m disposio, acredite: mas,neste

    momento,estou tentada a crer que o senhor no merece a suareputao; estou tentada principalmente a retirar-lhe a minhaconfiana. Nunca poderei acostumar-me a dizer os meus segredos aoam ante d e Ma da me de Tourvel.

    Saiba no entanto que a pequena Volanges j fez andar umac ab e a rod a.O jovem Danc eny est louco p or ela; e na verdad e elac anta melhor do que da do a uma pensionista d e c onvento.

    quase c erto q ue ensa iam m uitos duetos e ia jura r que d e b omgrado ela se prestaria ao unssono; mas este Danceny uma crianaque perder o seu tempo em galanteios sem chegar a nada de

    positivo. Pelo seu lad o a peq uenota b astante a risc a ; e, seja o que forque a conte a , sempre h de ser menos d ivertido d o q ue se o Visc ond ese resolvesse a intervir. Por isso estou aborrecida e com certeza oCa valeiro o uvir ralhar sua c hega da.

    Eu aconselho-o a ser submisso, pois neste momento no mec usta ria nada rom per co m ele. Estou c erta d e q ue, se eu tivesse a boalembran a de o de ixar neste m ome nto, ele fica ria cheio d e d esespe ro;e nada me diverte ta nto c omo um d esespe ro a moroso.

    Chamar-me-ia prfida, e essa palavra sempre me deu prazer;depois da palavra "cruel", a mais doce para os ouvidos de uma

    mulher, e a que d mais trabalho a merecer. Falando srio vou ocupar-me d este rompimento. Aqui est um ac ontec imento d e q ue o Viscond eser o c ausador! Ponho-o sob re a sua consc inc ia.

    Adeus. Recomende-me s oraes da sua Presidente.

    Paris, 7 de Ag osto de 17* *.

    CARTA VI

    O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

    pois certo no existir mulher alguma que no abuse doascendente que conquistou! E mesmo a senhora, a quem tantas vezesc ham ei indulgente a miga , deixou enfim d e o ser, e n o rec eia a tac ar-me no objeto das minhas afeies! Com que traos ousou pintarMa dame de Tourvel!...

    Que homem no teria pagado com a vida essa insolenteaudcia? Que outra mulher que no fosse a Marquesa teria podido

    enunci-la sem suscitar da minha parte uma pequena vingana? Porfavor, no me submeta a to rudes provas; no garanto que as possa

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    suportar. Em nome da amizade, espere que eu possua essa mulher, sequiser dizer mal dela. No sabe que s a volpia tem o direito ded issipar a c eg ueira do a mo r?

    Ma s que digo eu? Ac aso M ad am e d e Tourvel tem nec essida dede iluso? No; para ser ad orvel ba sta -lhe ser ela p rp ria.

    Censura-a a Ma rquesa por se vestir ma l; estou de a c ordo : tod osos vesturios a prejudicam; tudo o que a esconde a desfeia. noab and ono d o trajo c aseiro q ue ela verda deiram ente enca ntado ra.

    Graas aos calores opressivos que sofremos, um simples roupode pano deixa-me ver as suas forma s red ond as e flexveis.

    Uma ligeira musselina cobre-lhe a garganta; e os meus olharesfurtivos, mas penetrantes, descobriram-lhe j as linhas sedutoras. O seurosto , d iz a M arquesa , no te m nenhuma e xpresso.

    E que poderia exprimir, nos momentos em que nada lhe fala aoc ora o? No, sem dvida , ela no tem, co mo as p resumida s mulheres

    do nosso meio, aquele olhar mentiroso que nos seduz algumas vezes enos engana sempre. No sabe cobrir o vazio de uma frase com umsorriso estudado; e em bora tenha os ma is belos dentes do mund o, noc ostuma rir sen o d o q ue a d iverte. No enta nto p rec iso ver co mo , nos jogos engraados, ela oferece a imagem de uma alegria ingnua efranca!

    Como, junto de um infeliz que ela se apressa a socorrer, o seuolhar anuncia o c ontentamento puro e a bonda de c ompa dec ida !

    preciso ver, principalmente menor palavra de elogio ou deafago, desenhar-se, no seu rosto celeste, o comovente embarao de

    uma modstia que no fingida. Modesta e devota, -o sem dvida,mas da a julg-la fria e inanimada!... O que penso dela bemdiferente. Que extraordinria sensib ilidade n o d eve ter pa ra b enefic ia rcom ela o marido, e para amar sempre um ser sempre ausente! Queprova ma is forte se p od e d esejar? Tod avia, co nseg ui desc ob rir ma isuma.

    Qua ndo h d ias sa mos a passea r, arranjei as c oisas de ma neiraque nos foi necessrio transpor um barranco; e, embora muito lesta,Ma dame de Tourvel a inda ma is tmida . fc il de ver que uma mulhervirtuosa tem sempre rec eio d e sa lta r o b arranco.

    Foi-lhe necessrio confiar-se minha pessoa. Tive nos meusbraos essa mulher modesta. Os nossos preparativos e a passagem daminha ve lha tia tinham feito rir s ga rga lhad as a jovial de vota : mas, nomomento em que a agarrei, por um movimento propositadamentedesastrado, os nossos braos enlaaram-se mutuamente. Apertei o seuseio contra o meu; e, nesse curto intervalo, senti o seu corao batermais rpido. O rosto coloriu-se-lhe de uma adorvel vermelhido, e noseu pud ibundo emb ara o p ude ver que o seu c ora o tinha pa lpitadode amor e no de receio. Entretanto minha tia enganou-se como aminha amiga - e disse: "A criana teve medo"; mas a encantadora

    ingenuidade da criana no lhe permitiu a mentira, e fez que elarespondesse singelamente: Oh! No, mas.... Esta simples palavra

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    esclareceu-me. Desde aquele momento, a doce esperana substitui acruel inquietao. Possuirei esta mulher; hei-de arrebat-la ao marido,que a profana: ousarei roub-la ao prprio Deus que ela adora. Quedelcia ser alternadamente o objeto e o vingador dos seus remorsos!Longe de mim a idia de destruir os preconceitos que a rodeiam!

    Serviro para aumentar a minha felicidade e a minha glria. Que creiana virtude, mas que a sacrifique por mim; que as suas faltas a aterremsem poder evit-las; e que, agitada de mil terrores, ela no possaesquec -los, venc -los sen o nos meus b ra os.

    Consentirei ento que ela me diga: "Adoro-te" ; ela s, entretodas as mulheres, ser digna de pronunciar essa palavra. Eu serei,verda deirame nte, o Deus que ela p refere.

    Falemos de boa f: nas nossas combinaes to frias comofceis, aquilo a que chamamos felicidade apenas prazer. Podereiconfessar-lho?

    Pensava eu que o meu corao estava gasto, e, encontrandoem mim apenas os sentidos, lastimava a minha velhice prematura.Ma dame d e Tourvel restituiu-me a s enc anta doras iluse s da juventud e.Junto dela, no tenho necessidade de prazer para ser feliz. A nicac oisa q ue me m ete me do o tem po que m e vai tomar esta a ventura;pois no ouso deixar nada ao acaso. Muito embora me lembrem asminhas audcias bem sucedidas, no posso resolver-me a p-las emprtica.

    Para que e u seja verda deirame nte feliz; p rec iso q ue e la se d ;e no peq uena emp resa.

    Estou c erto d e q ue a Marquesa ad miraria a minha prudnc ia .Ainda no pronunciei a palavra amor; mas j chegamos s

    palavras confiana e interesse. Para a enganar o menos possvel, eprincipa lmente p ara p revenir o e feito da s murmura es que po de riamchegar aos seus ouvidos, descrevi-lhe eu prprio, como acusando-me,a lguns dos meus defe itos ma is c onhe c idos.

    A Marquesa havia de rir se visse a candura com que ela me fazsermes. Diz ela que quer converter-me. Nem ela imagina ainda o quelhe vir a custar tal tentativa. Est longe de pensar que defendendo,como ela diz, as infortunadas que eu levei perdio, advoga de

    antemo a sua prpria causa. Esta idia veio-me ontem no meio deuma das suas prdicas, e eu no pude recusar-me ao prazer de ainterromper, para lhe afirmar que falava como um profeta. Adeus,minha b ela amiga . Bem v q ue no estou p erdido sem rec urso.

    P. S . - A propsito, esse pobre Cavaleiro, matou-se de desespero? Embo a verda de , a Ma rquesa uma pe ssoa c em vezes pior do que eu, esentir-me-ia humilhado se tivesse amor-prprio.

    Do Caste lo d e..., 9 de Agosto de 17 * *.

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    CARTA VII

    CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

    Se nada te disse do meu casamento, porque no estou maisad ianta da do que no p rimeiro d ia. Ac ostumo-me a no pensar nisso esinto-me muito bem no meu gnero de vida. Estudo muito canto eharpa ; pa rec e-me que g osto ma is desses estudos desde q ue n o te nhoprofessor, ou antes, desde que tenho um professor melhor. O CavaleiroDanceny, aquele senhor de que falei, e com quem cantei em casa deMadame de Merteuil, tem a bondade de vir aqui todos os dias, e dec antar comigo horas inteiras.

    extremamente amvel. Canta como um anjo, e compelindas msicas para as quais escreve tambm as palavras. pena que

    ele seja Cavaleiro de Malta! Acredito que, se ele se casasse, a mulherseria muito fe liz... c a tivante a do ura do seu trato . Diz coisas sem ar degalanteio, e no entanto tudo o que ele diz agrada. Conversa muitocomigo, sobre a msica e sobre outras coisas; mas sabe insinuar nassuas crticas tanto interesse e animao, que impossvel no lheagradecer. Simplesmente, quando olha para ns, tem o ar de dizerqualquer coisa que nos prende. Alm de tudo isto, muito paciente.Ontem, por exemplo, tinha sido convidado para um grande concerto;preferiu ficar todo o sero comigo e com a Mam. Isto deu-me muitoprazer, pois, quand o ele n o est, ningum fala c omigo e a bo rre o-me;

    ao passo que quando ele est presente, cantamos em conjunto ec onve rsamo s. Tem sempre a lgum a c oisa para me d izer. Ele e Ma damede Merteuil so as duas nicas pessoas amveis que encontrei. Mastenho de dizer-te adeus, minha querida amiga: prometi que teria hojeestudada uma arieta de acompanhamento muito difcil, e no querofaltar minha pa lavra.

    Vou lana r-me ao estudo a t q ue ele venha.

    7 de Agosto de 17 * *.

    CARTA VIII

    A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

    Ningum pod e ser ma is sensvel do q ue eu, senhora, c onfian aque me testemunhais, nem ter maior interesse do que eu pelo futurocasamento de Mademoiselle de Volanges. De toda a minha alma lhede sejo uma felic idad e d a q ual no duvido q ue ela seja digna , e p ara a

    qual contribuir sem dvida a prudncia de que tendes dado prova.No c onhe o o senhor Conde de Gercourt; mas, honrad o c om a vossa

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    escolha , s posso ter de le uma id ia muito lisonjeira . Limito-me, senho ra ,a desejar para esse casamento um resultado to feliz como o do meu,que igualmente obra vossa, e pela qual cada vez sinto maiorreconhecimento.

    Que a felicidade de vossa filha seja a recompensa da que

    conseguistes para mim; e possa a melhor das amigas ser tambm amais fe liz das mes!

    Sinto-me verdadeiramente penalizada por no poder oferecer-vos de viva voz a homenagem deste voto sincero, nem travarconhecimento com Mademoiselle de Volanges to cedo comodesejais. Depois de ter beneficiado das vossas bondadesverdadeiramente maternais, tenho o direito de esperar dela a amizadeterna de uma irm. Rogo-vos, senhora, que lhe faais este pedido daminha p arte, esperando esta r a ltura d e me rec -la .

    Conto ficar no campo durante todo o tempo da ausncia do

    Senhor de Tourvel. Serve-me esse tem po p a ra gozar e a proveita r dac ompa nhia de Madam e d e Rosemo nde . Esta senhora ma ntm semp reo seu encanto; a idade nada lhe fez perder. Conserva toda a suamemria e a nima o. S o seu c orpo tem oitenta e qua tro a nos; oesp rito tem a pena s vinte.

    O nosso isolamento alegrado por seu sobrinho, o Visconde deValmont , que teve a b ond ade d e nos sac rific a r a lguns d ias.

    Conhecia-o apenas pela sua reputao, a qual me no faziade sejar c onhec -lo m elhor; mas pa rec e-me q ue va le m ais do que ela.Aqui, onde turbilho do mundo no o prejudica, diz coisas razoveis

    com uma espantosa facilidade e acusa-se do mal que tem praticadocom uma candura rara. Fala-me sempre com muita confiana e eupreg o-lhe os me us sermes c om muita severidade.

    Vs, que o conheceis, devereis convir que seria uma belaconverso a fazer: mas eu no tenho dvidas de que, apesar das suaspromessas, oito dias de Paris lhe faam esquecer todas as minhasprdicas. A sua estada aqui ser pelo menos um intervalo na suac onduta ha bitual: e eu c reio que, atend endo sua m aneira d e viver, oque ele p od e fa zer de m elhor n o fazer nad a . Sabe ndo que estouocupada a escrevermos, encarregou-me de vos apresentar as suas

    homenagens respeitosas. Aceitai tambm as minhas com a bondadeque vos conheo, e no duvideis nunca dos sentimentos sinceros comque tenho a honra de ser, etc .

    Do c aste lo d e..., 9 de Ag osto de 17 * *.

    CARTA IX

    MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL

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    Nunca duvidei nunca, minha jovem e bela amiga, nem daamizade que tendes por mim, nem do interesse sincero que tomais emtudo q ue m e d iz respeito. No p ara esc la rec er esse p onto , que esperoesteja assente para sempre entre ns, que respondo vossa resposta:mas julgo que no poderei dispensar-me de conversar convosco a

    respeito do Visc ond e d e Valmont.Confesso que n o esperava vir a enc ontrar o nom e d esse senhor

    nas vossas c artas. De fa to, que pod e ha ver de c om um entre vs e e le?V-se bem que no conheceis esse homem; pois onde podereis teraprendido a fazer idia do que a alma dum libertino? Falais-me dasua rara candura .

    Ah, sim: a candura d e Va lmo nt d eve ser de fato m uito ra ra . Ele ainda mais falso e perigoso do que amvel e sedutor, e nunca, desdeque a tingiu a idade viril, nunc a deu um passo o u d isse um a pa lavra semter um projeto, e nunca teve um projeto que no fosse criminoso ou

    desonesto.Minha amiga, conheceis-me bem; bem sabeis que, entre as

    virtudes que me empenho em adquirir, a indulgncia no daquelasque mais prezo. Por isso, se Valmont fosse arrastado por paixesardente s; se, c omo ta nto s outros, ele tivesse sido sed uzido pelos erros da juventude, embora censurasse a sua conduta, eu lamentaria a suapessoa, e esperaria, em silncio, a hora em que um regresso feliz ofizesse reconquistar a estima das pessoas honestas. Mas Valmont no capaz de tal: o seu comportamento o resultado dos seus princpios.Sabe fazer o c lc ulo d o q ue um homem p od e permitir-se de horrores

    sem se comprometer; e para ser cruel e mau sem perigo, escolheu porvtimas as mulheres. No perderei tempo a contar as que ele seduziu;ma s qua ntas delas lan ou na pe rdi o?

    Essas escandalosas aventuras no chegaram ao vossoc onhec imento , na vida rec ata da e simp les que tendes levado. Pod eriacontar-vos coisas que vos fariam estremecer; mas os vossos olhos, puroscomo a vossa alma, seriam conspurcados por semelhantes quadros.Estou c erta d e que Va lmo nt n o ser p ara vs um perigo , e p or isso notendes necessidade de semelhantes armas para vos defenderdes. Anic a c oisa que tenho a d izer-vos que, de tod as as mulheres que e le

    distinguiu, com xito ou no, nenhuma deixou de ter motivo de queixa.S a Ma rquesa de Merteuil faz exceo a esta reg ra ge ra l; s e la soub eresistir-lhe e desarmar a sua maldade. Confesso que esse momento davida da Marquesa o que mais a honra a meus olhos: chega para justificar plenamente aos olhos de todos de algumas inconseqnciasque ha veria a c ensurar-lhe q uando d o p rinc p io d a sua viuvez.

    Seja c omo for, minha b oa am iga , o q ue a idad e, a experinc ia eprincipalmente a amizade me autorizam a dizer-vos, que nasociedade se comea a notar a ausncia de Valmont; e que, caso sevenha a sab er que ele ficou a lgum tempo c omo terc eiro entre sua tia e

    vs, a vossa rep uta o fica r entre as m os dele.

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    E esta ser a maior desgraa que pode acontecer a umamulher.

    Aconselho-vos pois a conseguir da tia que o no retenha pormais tempo; e, se ele teimar em ficar, creio que no deveis hesitar emc ed er-lhe o luga r. Mas por que h de e le fica r a ?

    Que faz ele no campo? Se tivsseis algum a espiar os seuspassos, estou certa de que descobrireis que ele apenas escolheu umasilo mais cmodo, para algumas negras aes que pensa praticar poresses luga res. Ma s, na imp ossibilida de de rem ed iar o ma l, c ontentamo -nos em preservar-nos dele.

    Adeus, minha bo a am iga . O ca sam ento d e m inha filha e st umpouco retardado. O Conde de Gercourt, que espervamos de um diapara o outro, mandou-me dizer que o seu regimento vai para aCrsega; e, como h a inda a lguma ag ita o devido guerra, ser-lhe-impossvel ausentar-se antes do Inverno. Isso contraria-me; mas autoriza-

    me a e sperar que teremo s o p razer de vos ver na b od a, e a borrec ia-meque tal acontecimento no tivesse a vossa presena. Adeus; estou,para a lm das convenes e sem reserva, inteirame nte ao vosso d ispor.

    P. S . - Lembranas minhas para Madame de Rosemonde, a quemap rec io tanto co mo ela merece.

    1 de Agosto de 17* *.

    CARTA X

    A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

    Est amuado comigo, Visconde? Ou dar-se- o caso que tenhamo rrido? Ou, o que se p arec eria muito c om isso, no vive sen o p ara asua Presidente? Essa mulher, que o faz reviver as iluses da juventude,dentro em pouc o o far reviver tam b m o s rid c ulos p rec onc eitos dessaidade. Eis o Visconde tmido e escravo; o que vale tanto como estar

    apaixonado. Renunciou s suas felizes temeridades. Ei-lo pois aconduzir-se sem princpios, deixando tudo ao acaso, ou antes, aoc ap richo. No lhe oc orreu que o am or , com o a med ic ina, somente aarte de ajudar a Natureza? Bem v que estou a bat-lo com as suasarmas; mas no me sinto orgulhosa por isso, pois bater num homemcado.

    preciso que ela se d, diz-me o Visconde; oh !, sem dvida, prec iso. Ela h de entreg ar-se c om o a s outras, c om a d iferena de q ueo far de m vontade. Mas, para que ela acabe por se entregar, overdadeiro meio comear por obrig-la. A que ponto esta ridcula

    distino um verdadeiro despropsito do amor! Eu digo do amor:po rque o Visc onde est ap aixonado .

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    Falar-lhe de maneira diferente seria tra-lo; seria esconder-lhe asua doena. Diga-me, pois, langoroso amante, julga ter violado asmulheres que possuiu? Mas, por muito desejo que uma mulher tenha dese entregar, por muito apressada que esteja, ainda lhe preciso umpretexto; e haver algum mais cmodo para ns do que aquele que

    nos d a a pa rncia de c ede r for a?Por mim, confesso-o, uma das coisas que mais me lisonjeiam

    um ataque vivo e bem feito, no qual tudo se sucede com ordemembora com rapidez; que no nos pe nunca naquela penosaconfuso de termos ns prprias um desacerto de que ao contrriodevamos aproveitar; que sabe manter o ar de violncia at nas coisasque concedemos, e lisonjear com habilidade as nossas duas paixesfavo ritas, a g lria da defesa e o p razer da derrota . Convenho que essetalento, mais raro do que se supe, me deu sempre prazer, mesmoqua ndo no c hego u a sed uzir-me, e q ue a lgumas vezes me ac ontec eu

    rend er-me unic amente c om o rec om pensa. Ta l c om o no s nossos antigostorneios, a Beleza dava o p rmio do va lor e da destreza .

    Ma s o senhor, o senhor que j no o m esmo , conduz-se c om ose tivesse medo de vencer. Oh! Desde quando que viaja porpe quenas jornad as e p or amigo, quand o se q uer c hega r, empregam -sec ava los de posta e tom a-se a e strada p rinc ipa l!

    Ma s deixem os esse assunto, que me aborrec e tanto ma is quantome priva do prazer de o ver. Pelo menos escreva-me mais vezes do queo faz, e ponha-me ao corrente dos seus progressos. J reparou que hmais de quinze dias que esta ridcula aventura o preocupa, e que

    ab and onou todo o c onvvio?A propsito, o Visconde parece-se com aquelas pessoas que

    mandam regularmente saber notcias dos seus amigos doentes, masque nunca esperam pela resposta. No final da sua ltima carta,perguntava-me se o Cavaleiro tinha morrido. No respondi, e oVisconde no se inquietou mais por isso. Esqueceu porventura que oamante seu amigo nato? Mas tranquilize-se, no morre; ou, se tivessemo rrido , seria por excesso de a leg ria.

    Aquele pobre Cavaleiro, como ele terno! como ele feitopa ra o am or! com o ele sab e sentir vivam ente! Isto p e-me a cabe a

    roda. Falando srio, a felicidade perfeita que ele encontra em seram ad o p or mim liga -me verda deiram ente a ele.

    No mesmo dia em que lhe escrevi dizendo que ia provocar orompimento, a que ponto o tornei feliz! No entanto, estava-meocupando dos melhores meios de o fazer desesperar, quando moanunciaram. Fosse capricho ou raciocnio, nunca ele me pareceu tobem. Recebi-o entretanto de mau humor. Ele esperava passar duashoras comigo, antes que a minha porta se abrisse para toda a gente.Disse-lhe que ia sair; perguntou-me aonde ia; recusei-me a dizer-lho. Ele

    insistiu. Onde o senhor no

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    estiver, repliquei-lhe eu, com azedume. Felizmente para ele, ficoupetrificado com esta resposta; pois, se ele tivesse dito uma palavra,seguir-se-ia infalivelmente uma cena que teria precisamente oromp imento q ue eu p rojetava .

    Ad mirada c om o seu silnc io, lanc ei os olhos sob re e le sem outro

    projeto, juro-lhe, que o de ver a expresso com que fica ra . Tornei a ve rnaquele rosto encantador uma tristeza, ao mesmo tempo profunda eterna, qua l o p rp rio Visc ond e tem de c onc orda r que d ifc il resistir. Amesma causa produziu o mesmo efeito; fui vencida pela segunda vez.Desde esse momento, s me ocupei da maneira de evitar que elepudesse achar nas minhas palavras qualquer agravo. "Saio para tratarde um assunto", disse-lhe eu com um ar um pouco mais doce, "e esseassunto diz-lhe respeito; mas no me interrogue. Ceio em minha casa;volte, e saber de q ue se trata ." Foi ento q ue ele rec uperou a p a lavra :ma s no lhe permiti que fizesse uso dela.

    "Estou c om muita p ressa", cont inuei. "Deixe-me ; a t log o noite ." Beijou-me a m o e saiu.

    Nesse momento, para o recompensar, ou talvez para merecompensar a mim prpria, resolvi dar-lhe a conhecer a minhac asinha , de c uja existnc ia ele no suspeita. Cha mo a minha fiel Vitria .Veio-me a enxaq uec a; deito-me p ara to dos os me us c riados; e, fic andoenfim s com a verdadeira, enquanto ela se vestia de lacaio, disfarcei-me de c riad a de qua rto. Em seg uida ela ma ndo u vir um fiac re po rtado jard im, e pa rtimos juntas.

    Chegada quele templo de amor, escolhi o roupo mais

    galante. um vesturio delicioso, de minha inveno: no deixa ver

    nada, e faz adivinhar tudo. Prometo dar-lhe o modelo para a suaPresidente , quand o o Visc ond e a tiver tornad o d igna d e o usar.

    Depois destes preparativos, enquanto Vitria se ocupava deoutros po rme nores, li um c aptulo do Sof , uma c a rta de Heloisa e d oiscontos de La Fontaine, para recordar os diferentes tons que eu queriatomar. Entreta nto o Ca valeiro c hega minha po rta, c om a pressa quetem sempre. O porteiro no o deixa entrar, e diz-lhe que adoeci:primeiro incidente. Entrega-lhe ao mesmo tempo um bilhete meu, mas

    no c om a minha letra, segundo a minha regra de p rudncia. Ele a bre-o, e encontra escrito pela mo de Vitria: "s nove em ponto, noBoulevard, em frente dos cafs." Dirige-se para l; e, ali, um pequenolacaio que ele no conhece, que ele julga pelo menos no conhecer,pois sempre Vitria, vem-lhe anunciar que preciso mandar emboraa carruagem e segui-lo. Todas estas peripcias romanescas lheesquentavam a c ab ea , e uma c ab ea esquentad a nad a p rejudica .

    Por fim chega, e a surpresa e o amor causam nele umverdadeiro encantamento. Para lhe dar tempo a recompor-sepa ssea mos um momento no pa rque; de po is enc am inho-o p ara c asa.

    Ele v p rimeiro d ois ta lheres postos; depois uma c ama feita .

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    Passamos ao quarto de vestir, que estava em todo o seuesplendor.

    Ali, meta de por reflexo, me tade p or sentimento , pa ssei os meusbra os em vo lta dele e deixei-me c a ir a seus ps: " meu a migo!", disse-lhe e u, "para pod er prepa rar-te a surpresa deste mo mento, c ensuro-me

    por te ter afligido com a aparncia do meu mau humor; por ter uminstante velad o o meu c ora o a os teus olhares. Perdoa-me o s agravo s;quero expi-los fora de amor." O Visconde julgar do efeito dested isc urso sentimenta l.

    O feliz Cavaleiro levantou-me, e o meu perdo foi selado sobreaquela otomana onde o Visconde e eu selamos to alegremente e dame sma ma neira a nossa e terna sep ara o.

    Como tnhamos seis horas para passarmos juntos e eu tinharesolvido que todo esse tempo fosse para ele igualmente delicioso,moderei os seus transportes, e a amvel coqueteria veio substituir a

    ternura. Julgo que nunc a p us tanto e mp enho em ag rad ar, e q ue nuncaestive to satisfeita de mim prpria. Depois da ceia, alternadamentecriana e razovel, folgaz e sensvel, por vezes mesmo libertina,aprouve-me consider-lo como um sulto em meio do serralho, do qualeu era de c ada vez uma favorita diferente. Na verda de, ao p asso q ueele rep et ia a s suas hom ena gens, se e las eram sem pre d irigida s me smamulher, era sempre uma nova am ante que as rec eb ia.

    Enfim, ao raiar do dia foi preciso separarmo-nos; e o que ele medisse, o que ele fez mesmo para me provar o contrrio, tudo mostravaque a necessidade era maior que o desejo. No momento em que

    saamos e por ltimo adeus, tomei a chave daquele feliz refgio, epondo-lha entre as mos, disse: " s para si que a tenho. justo queseja o seu dono. O sacrificador deve dispor do templo." Com estahabilidade preveni as reflexes que ele poderia fazer sobre apropriedade, sempre suspeita, duma casa pequena. Conheo-obastante p ara esta r c erta d e q ue n o se servir dela sen o p ara mim; ese eu tivesse a fanta sia d e l ir sem ele, sem pre me resta va outra c have.Ele queria viva fora marcar data para l voltarmos; mas eu amo-oa inda d em asiado para q uerer ga st -lo t o dep ressa . S devemo spermitir-nos excessos c om as pessoa s que ced o queremos deixar.

    Ele no o sabe; mas, felizmente pa ra ele, eu sei-o p or dois.Rep aro a go ra q ue so trs da m anh, e que esc revi um volume,qua ndo forma ra o projeto d e esc rever ape nas uma pa lavra.

    Tal o enc anto da am izad e c onfiante: e la que faz que seja oVisc ond e q uem a mo ma is; ma s, na ve rda de , o Cava leiro quem m aisme agrada .

    12 de Agosto d e 17* *.

    CARTA XI

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    A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

    A vossa severa carta ter-me-ia assustado, senhora, se, porfelicidade, eu no encontrasse aqui mais motivos de tranqilidade do

    que os de tem or que me ofe rec eis. Esse te mve l senho r de Va lmont , quedeve ser o terror de todas as mulheres, parece ter deposto as suasarma s mortferas antes de e ntrar neste c aste lo.

    Longe de vir aqui formar os seus projetos, nem mesmo trouxequaisquer pretenses; e a qualidade de homem amvel, que at osseus inimigos lhe concedem, quase desaparece aqui, para no deixarseno a de bom rapaz. Foi aparentemente o ar do campo queprod uziu este milagre.

    O que posso assegurar-vos que, estando constantemente aop de mim, parecendo mesmo que isso lhe agrada, no lhe escapou

    ainda uma pa lavra q ue se p area c om o a mor, nem um a d essas frasesque todos os homens se permitem, sem ter, como ele, o que nec essrio p ara as justifica r.

    Nunca ele obriga quela reserva na qual hoje obrigada ama nter-se to da a mulher que se respe ita , pa ra c onte r os hom ens que arod eiam . Sabe n o a busar da a nima o q ue insp ira . ta lvez um p ouc oprdigo em louvores; mas com tanta delicadeza que o faz, queob riga ria a p rp ria mod stia a hab ituar-se a o e log io. Enfim, se e u tivesseum irmo, desejaria que ele fosse tal como o senhor de Valmont semostra a qui. Ta lvez muitas mulheres deseja ssem d a sua parte uma

    galanteria mais marcada; e confesso que lhe estou infinitamente gratapo r ele me julga r de uma forma que lhe permite no me c onfundir c omelas.

    Este retrato difere muito sem dvida do que me fizestes; e,apesar d isso, amb os pod em esta r pa rec idos, se fixa rmo s as p oc as.

    Ele prprio concorda ter cometido muitos erros, e com certezalhe tero atribudo alguns outros. Mas at agora encontrei poucoshomens que falassem de mulheres honestas com mais respeito, direiquase entusiasmo. Sob esse aspecto, vs mesma me fizeste saber queele no engana. A sua conduta em relao a Madame de Merteuil

    disso prova. Fala-nos muito dela; e sempre com tantos elogios eda ndo m ostras de uma de dica o to verda de ira, que c heguei a c rer,antes da recepo da vossa carta, que aquilo que ele chamavaamizade entre os dois fosse realmente amor. Acuso-me dessejulga mento temerrio, o q ual foi tanto m ais errneo qua nto c erto queele mesmo tomou a seu cargo, por vrias vezes, o cuidado de a justificar. Confesso que tomei por delicadeza o que da sua parte erasince rida de autntica .

    No sei; mas parece-me que aquele que capaz de umaamizade t o c ontnua p or uma mulher to estimvel, no um libertino

    sem resgate. Ignoro, no entanto, se o comportamento reto que elemantm aqui se deve a alguns projetos por estes lugares, conforme a

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    vossa suposio. certo que por estas cercanias h algumas mulheresinteressantes; mas ele sa i pouc o, exc eto de m anh, e ento d iz que va icaar. verdade que raramente traz caa; mas assegura que desastrado nesse exerccio.

    Demais, o que ele faz l por fora inquieta-me pouco; e se eu

    desejasse sab-lo, seria apenas para ter mais um motivo que meaproxima sse d a vossa op inio o u que vos conduzisse minha .

    Ac erc a da vossa proposta de traba lhar no sentido de ab reviar otempo que o senhor de Valmont conta aqui estar, parece-me muitodifcil ousar pedir a sua tia que no tenha o sobrinho junto dela, tantomais que gosta muito dele. Prometo-vos, todavia, mas somente porde fernc ia e n o po r nec essida de , ap roveitar a p rimeira oc asio pa rafazer esse pedido, quer a Madame de Rosemonde, quer a ele prprio.Quanto a mim, o senhor de Tourvel conhec ed or do meu p rojeto d eficar aqui at ao seu regresso, e havia de admirar-se, com razo, da

    lige ireza que m e fizesse mudar de p rojeto.So bem longos, senhora, estes esclarecimentos; mas julguei

    dever verda de um testemunho favorvel pa ra o senhor de Va lmont, edo qual ele me parece ter grande necessidade junto de vs. Nem porisso sou menos sensvel amizade que ditou os vossos conselhos. a elaque fico devendo tambm as vossas penhorantes informaes sobre ademora do casamento de vossa filha. Agradeo-vos muitosinceramente: mas, embora me d prazer a idia de passar essesmomentos convosco, sacrific-los-ia de bom grado ao desejo de saberMa dem oiselle de Volanges ma is c ed o feliz, se que e la pod e vir a s-lo

    ma is do que junto de uma m e t o d igna de toda a sua ternura e d oseu respeito .

    Pa rtilho c om ela o s doc es sentimentos que m e p rend em a vs, epe o-vos que ac eiteis a expresso de les c om bo nda de .

    Tenho a honra de ser, etc .

    13 de Agosto d e 17* *.

    CARTA XII

    CECLIA VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

    A Ma m est inco moda da , minha senhora; no po de sair hoje,e eu tenho de fazer-lhe companhia. Por esse motivo no terei a honrade vos acompanha r p era. Asseg uro-vos que lam ento b em ma is noestar convosc o d o q ue o e spe tc ulo.

    Peo-vos que acrediteis. Tenho por vs tanta amizade! Tereis abo nda de de d izer ao Cava leiro Danceny que no tenho a c ole o de

    que ele me falou, e que se ma puder trazer amanh me dar grande

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    prazer. Se ele vier hoje, dir-lhe-o que no estamos; mas a Mam queno q uer rec eb er ningum. Espero que e la a ma nh e steja m elhor.

    Tenho a honra de ser, etc .

    13 de Agosto d e 17 * *.

    CARTA XIII

    A MARQUESA DE MERTEUIL A CECLIA DE VOLANGES

    Fiquei muito aborrecida, minha linda, por ser privada do prazerde a ver, bem como pelo motivo dessa privao. Espero que outraocasio se encontrar. Desempenhar-me-ei da sua comisso junto do

    Ca valeiro Danc eny, que c ertam ente fic ar muito ab orrec ido po r sab ersua Mam doente. Se ela amanh me quiser receber, irei fazer-lhecompanhia. Faremos um ataque, ela e eu, ao Cavaleiro de Bellerocheao piquet, e, alm de lhe ganharmos o seu dinheiro, teremos, porac rsc imo de p razer, o d e a ouvirmo s c anta r c om o seu a m vel mestre;enc arreg o-me de lhe fa zer o p ed ido. Se isso c onvier a sua Ma m e a si,respondo por mim e pelos meus dois Cavaleiros. Adeus, minha linda; osmeus c ump rimentos minha querida Ma da me de Volang es.

    Beijo-a muito te rnamente.

    13 de Agosto d e 17* *.

    CARTA XIV

    CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

    Ontem no te e sc revi, minha q uerida Sofia; ma s no fo i o p razero motivo, posso jurar-te. A Mam esteve doente, e no a deixei em

    todo o d ia. noite, quand o me retirei, no tive ca be a p ara nad a ; e d eitei-me muito depressa, para ter a certeza de que o dia tinha acabado.Nunca tinha passado nenhum to comprido. No que eu no gosteda Mam, mas no sei o que era. Devia ir pera com Madame deMerteuil; o Cavaleiro Danceny devia l estar. Bem sabes que so asduas de quem eu mais gosto. Quando chegou a hora em que devia irter com eles, senti o c ora o ap ertad o, co ntra minha vontad e. Tudome aborrecia, e chorei, chorei, sem conseguir impedi-lo. Felizmente aMam estava deitada, e no podia ver-me. Estou bem certa de que o

    Ca va leiro Danc eny tamb m fic ou a borrec ido; mas deve te r-se d istra doco m o espetc ulo e c om toda age nte que o rodea va.

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    Foi muito d iferente.Por felic ida de , a Ma m est hoje m elhor, e Ma dam e d e Me rteuil

    vir c om outra pe ssoa e c om o Ca valeiro Danc eny; ma s c hega sempremuito tarde, Madame de Merteuil; e quando se esteve tanto temposozinha, muito aborrecido. So apenas onze horas. verdade que

    tenho de tocar harpa; e depois levarei algum tempo a vestir-me e aarranja r-me, po is hoje quero esta r muito b em penteada. Parec e-me q uema dre Perp tua tem razo e q ue uma pe ssoa se to rna ga rrida qua ndovive em soc ied ade .

    Nunca tive tanto desejo de ser bonita como de h alguns diaspa ra c , e ac ho que no o sou tanto c omo p ensava; e dep ois, junto demulheres que se pintam, fica-se a perder muito. Madame de Merteuil,po r exemp lo: vejo b em que tod os os home ns a ac ham ma is bo nita doque eu. No me imp orto muito, po rque ela minha a miga . E a lm d issoela afirma-me que o Cavaleiro Danceny me acha mais bonita do que

    ela. muito honesto da sua parte ter-mo dito! At parece que estavacontente em mo dizer. A est uma coisa que eu no compreendo. porque ela g osta muito d e m im! E ele!...

    Oh!, foi uma coisa que me deu muito prazer! Por isso, at,meparece que s de olhar para ele uma pessoa fica bonita. Eu estaria aolhar sem pre para ele, se no tivesse rec eio d e enc ontrar os seus olhos:pois, todas as vezes que tal me acontece, fico confusa, e parece queme d p ena ; ma s isto na da q uer d izer.

    Adeus, minha q uerida am iga . Vou-me p r diante d o espe lho.Continuo a go star de ti com o sempre.

    Paris, 14 de Ag osto de 17 * *.

    CARTA XV

    O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

    muito honesto da sua parte no me abandonar minha triste

    sorte. A vida que levo aqui realmente fatigante, pelo excesso derep ouso q ue me p rop orciona e p ela sua insp ida uniformida de.

    Lendo a sua carta e os pormenores do seu dia encantador,estive vinte vezes tentado a pretextar um negcio, voar a seus ps eped ir-lhe, em m eu favor, uma infidelidade a o seu Ca va leiro, que , no fimde tudo , no merece a felic idad e d e q ue desfruta. Sab e a Ma rquesaque me ps ciumento dele? Por que me fala da eterna separao?Renego esse juramento, pronunciado em delrio: no seramos dignosde o fazer, se fssemos obrigados a mant-lo. Ah! Que eu possa um dia

    vingar-me nos seus braos do cime involuntrio que me causou afelic ida de do Ca valeiro!

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    Estou indignado, confesso, s de pensar que esse homem, semraciocinar, sem se dar ao menor trabalho, limitando-se a seguirtotalmente o instinto do seu corao, encontra uma felicidade que euno a ting irei nunca . Oh! Hei-de perturb -la ...

    Prom eta -me q ue serei eu a perturb-la . A Marquesa mesmo no

    se sente humilhada? Tem traba lho p a ra o e nga nar, e e le dos dois omais feliz.

    Julga que o tem preso nas suas ma lhas! a Marquesa que o est nas dele. Enquanto vela pelos seus

    prazeres, ele dorme tranquilamente. Que faria de mais se fosse suaescrava?

    Sa iba-o, minha b ela a miga , enq uanto se d ivide entre v rios, nosinto o mnimo cime: no vejo ento nos seus amantes seno ossucessores de Alexandre, incapazes de conservar, todos juntos, aqueleimprio onde eu reinei s. Mas que se entregue inteiramente a um

    deles! Que exista outro homem to feliz como eu! No posso sofr-lo;no espere que eu o sofra. Ou readmita-me, ou pelo menos arranjeoutro; e no queira trair, por um capricho exclusivo, a amizadeinviolve l que nos juramo s mutua mente.

    o momento, sem dvida, de lhe confessar as minhas queixasamorosas. Bem v que me presto s suas id ias, e q ue c onfe sso os me userros: Na verdade, se estar apaixonado no poder viver sem possuir oque se d eseja, sac rific a r a essa id ia o temp o, os p razeres; a vida , ent o c erto q ue estou rea lmente a pa ixonado. No estou ma is ava nad o d oque e stava .

    No teria mesmo ma is nada a c onta r-lhe a esse respeito se nofosse um acontecimento que me d muito que pensar, e que no seia inda se d eve insp ira r-me receio ou esperan a .

    A Marquesa conhece o meu criado, tesouro de intriga everda de iro lac aio de c om dia: e bem po de ima ginar que entre as suasatribuies cabe a de se apaixonar pela criada de quarto, e a deperturbar as pessoas.

    O p a tife ma is feliz do q ue eu: j c onseg uiu uma vitria . Ac abade de scob rir que Madam e d e Tourvel enca rreg ou uma c riatura sua detirar informaes sobre a minha conduta, e mesmo de me seguir nos

    meus passeios de manh, at onde possa, sem que algum seaperceba. Que pretende esta mulher? Assim pois a mais modesta detodas ousa a rrisc ar-se a um ponto que ns ma l ousaramo s permitir-nos!

    De que serve protestar?. . Antes de pensar em vingar-me destaastc ia feminina , oc upe mo -nos do m eio de a pr ao nosso servi o.

    At agora esses passeios de que se suspeita no tinhamqualquer objetivo; preciso dar-lhes um. Isto merece toda a minhaaten o, e vou findar para p ensar nisso. Ade us minha b ela a miga .

    Sem pre d o C aste lo d e. . ., 15 de Agosto de 17 * *.

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    CARTA XVI

    CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

    Ah, minha Sofia , tenho nov ida des a dar-te! Ta lvez no d evessed izer: ma s p rec iso q ue eu fale nisto a a lgum; ma is forte do q ue eu.Esse Cava leiro Da nc eny... Estou t o p erturbada que n o p osso e sc reve r.No sei por onde comear. Depois que te contei o lindo sero quepassei com ele e com Madame de Merteuil junto da Mam, no volteia falar-te a seu respeito: que eu no q ueria falar dele a ningu m; ma sera nele que eu pensava sempre. Depois, tinha-se tornado to triste,mas to triste, to triste, que me fazia pena. E quando eu lheperguntava porqu, dizia-me que no: mas eu bem via que sim. Enfim,ontem ainda estava mais triste que de costume. Isso no impediu que

    tivesse a gentileza de cantar comigo, como das outras vezes; mas,sempre que olhava para mim, eu sentia apertar-se-me o corao.Depois de termos acabado de cantar, foi fechar a minha harpa noestojo; e, quando me trouxe a chave, pediu-me que tocasse aindanaquela noite, log o q ue me enc ontrasse s. Eu no desc onfiei de na da;nem mesmo queria: mas ele pediu-me tanto, que lhe disse que sim. Eletinha as suas razes. Efetivamente, quando me retirei para o meuquarto, e assim que a criada saiu, fui buscar a harpa. Encontrei nasc orda s uma c arta, simp lesmente do brad a, e n o lac rad a; era de le! Ah!Se tu soub esses o que me d iz! Depois de a ter lido sent i tanto p razer que

    nem posso pensar noutra coisa. Reli-a quatro vezes seguidas, e depoisfechei-a na minha secretria. J a sabia de cor; e depois de deitadarep eti-a tantas vezes que nem p ensava em dormir.

    Assim que fechei os olhos vi-o ao p de mim, dizendo-me tudoqua nto eu a c ab ara d e ler. S a dormec i muito tarde; e ma l tinhaac orda do (era ainda muito c ed o), fui logo busc ar a c arta pa ra a tornara ler minha vontade. Levei-a para a cama e depois beijei-a comose... Ta lvez seja ma l feito b eija r uma c arta com o esta , ma s a verda de que n o p ude imped ir-me de o fazer.

    Agora, minha querida amiga, sinto-me muito feliz, mas tambm

    muito embara ad a; pois c erto que no d evo respo nde r a esta c arta.Sei bem que isso no se deve fazer, no entanto ele pede-mo; e se euno responder, estou certa de que se vai pr ainda mais triste. umade sgra a p ara ele!

    Que me aconselhas tu? claro que a este respeito no sabesma is do que eu. Tenho muita vontade de falar nisto a Ma da me deMerteuil, que to minha amiga. Bem gostaria de o consolar; mas noquero fazer nada que seja mal feito. Recomendam-nos tanto quetenhamos bom corao! E depois probem-nos de seguir o que ele nosinsp ira , quand o se trata de um hom em! Isto ta mb m no justo.

    Por ac aso um home m no o nosso prximo , com o uma mulherou mais ainda? Pois enfim, no temos ns um pai, tal como uma me,

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    um irmo, tal como uma irm? Alm disso ainda fica o marido. Mas seeu fosse fazer qualquer coisa que no fosse bem feita, talvez o prpriosenhor Danceny no ficasse com boa idia a meu respeito! Oh! Issoento era o que me faltava. Prefiro que fique triste. E depois, enfim,estou sempre a tempo. L porque ele escreveu ontem, no sou

    ob riga da a esc rever-lhe hoje.Esta noite verei Madame de Merteuil, e se tiver coragem conto-

    lhe tud o. Se fizer s o q ue ela me d isser, nada terei a c ensura r-me.Talvez ela me diga que lhe respo nda po ucoc hinho, para q ue ele

    no fique t o triste ! Oh! Estou num mom ento muito d ifc il.Ad eus, minha boa amiga . Diz-me sem pre o que p ensas.

    19 de Agosto d e 17 * *.

    *A c arta e m q ue se fa la d este sero n o foi enc ontrad a. Devemo s supo r que o que Madame de Merteuil prope no seu bilhete, e de que tambm se fala napreced ente c arta d e C ec lia Volang es.

    CARTA XVII

    O CAVALEIRO DANCENY A CECLIA VOLANGES

    Antes de me entregar, Mademoiselle, quilo que chamo oprazer ou a necessidade de lhe escrever, comeo por lhe suplicar queme ou a . Sinto q ue, para ousa r dec la ra r-lhe o s me us sent imentos, tenhoprec iso de indulgnc ia; se apena s tivesse de justific -los, ela ser-me -iaintil. Que vou eu fazer, afinal, seno mostrar-lhe o meu ntimo? E quetenho eu a dizer-lhe que os meus olhares, o meu embarao, a minhaconduta e mesmo o meu silncio lhe no tenham dito antes de mim?Por que se havia pois de zangar por um sentimento que fez nascer?Emanado de si, sem dvida digno de lhe ser oferecido; se ardentec omo a minha a lma , ta mb m puro co mo a sua. Seria um c rime tersabido apreciar a sua figura encantadora, os seus talentos sedutores, assuas graas fascinantes, essa comovente candura que acrescenta umpre o inestimvel a q ua lidades j to p rec iosas?

    No , sem dvida . Mas, mesmo no se send o c ulpado, po de ser-se infeliz. E a sorte que me espera, se se recusar a aceitar a minhahome nag em. a primeira q ue o m eu cora o at hoje a oferec eu. Sea no tivesse visto eu seria ainda, no feliz, mas tranqilo. Vi-a; orepouso fugiu para longe de mim, e o meu corao est inquieto.

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    Admira-se da minha tristeza; pergunta-me a causa. Algumas vezesjulguei ver que e la a a fligia .

    Ah! Diga uma palavra, e a minha felicidade ser obra sua. Mas,antes de a pronunciar, pense que uma palavra pode ser tambm ocmulo da minha tristeza. Seja pois o rbitro do meu destino. Por si vou

    ser eternamente feliz ou infeliz. Em que mos mais queridas poderia eudep ositar um interesse ma ior?

    Ac ab arei, c omo c ome c ei, po r imp lorar a sua indulgncia.Pedi-lhe que me ouvisse; ousarei mais, pedir-lhe que me

    responda.Recus-lo, seria deixar-me crer que ficou ofendida, e o meu

    c ora o g arantia de que e m m im o respeito iguala o am or.

    P. S. - Poder servir-se, para me responder, do mesmo meio de que mesirvo para fazer cheg ar esta c arta s suas m os; pa rec e-me igua lmente

    seguro e c mo do .

    18 de Agosto d e 17* *.

    CARTA XVIII

    CECLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

    Pois qu, Sofia ! Tu c ensuras de a ntemo o que e u vou fazer!Tinha j bastantes inquietaes; vieste tu agora aument-las.

    claro, dizes tu, que no devo responder. Falas disto com todo o -vontade ; ma s a ve rda de q ue no sab es ao c erto d o q ue se trata : noest s aqui pa ra ver.

    Estou certa de que se estivesses no meu lugar, farias como eu.Com c erteza que, de m aneira ge ral, no se d eve respo nde r; e tu bemviste, pela minha carta de ontem, que eu prpria no queria faz-lo.Ma s q ue no c reio que a lgu m se tenha visto a lgum a ve z na situa oem q ue me encontro.

    E a inda ser obriga da a dec id ir-me sozinha! Ma dame de Merteuil,que eu c ontava ver ontem noite, no ve io. Tudo c onsp ira contra mim:foi ela q uem teve a c ulpa de e u o co nhecer.

    Foi qua se sem pre na p resen a dela q ue eu o v i, que lhe fa lei. c la ro q ue n o lhe q uero m a l por isso: ma s o q ue c erto que

    me ab and ona no mo mento ma is difc il. Oh! Sou na ve rdad e d igna delstima!

    Imagina que ontem ele veio como de costume. Eu estava toperturbada que nem ousei olh-lo. Ele no podia falar comigo, porquea Ma m estava p resente . Tinha quase a c erteza de q ue e le se zanga ria ,

    quando visse q ue eu no lhe tinha esc rito. Eu no sab ia o q ue ha via defazer.

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    Um momento depois perguntou-me se eu queria que fossebuscar a minha harpa. O corao batia-me to fortemente que tudoquanto pude fazer foi responder-lhe que sim. Quando ele voltou quefoi pior. S o olhei por um momentinho. Ele nem sequer olhou para mim;mas tinha um aspecto que toda a gente diria que estava doente. Isto

    dava-me muita pena. Ps-se a afinar a harpa e, depois, quando matrouxe, disse-me: "Ah! Mademoiselle!..." No disse mais do que essasduas palavras; mas disse-as num tal tom que fiquei completamentetranstornad a. Pus-me logo a toc ar sem saber bem o q ue fa zia . A Mampe rguntou-me se no c ant vam os.

    Ele desculpou-se dizendo que estava adoentado; e eu, que notinha qualquer desculpa, tive de cantar. Desejei ento nunca ter tidovoz.

    Escolhi de propsito uma msica que no sabia, pois estavac erta d e q ue no po deria c antar nada , e assim d aria a perceb er que

    havia qualquer coisa. Felizmente entrou uma visita; e, logo que ouvi orudo d e uma c arruag em , deixei de c anta r e p ed i-lhe que fosse a rruma ra ha rpa . Tive muito m ed o q ue ele se fosse em bora a o mesmo tem po;ma s voltou.

    Enquanto a Mam e a senhora que veio visit-la conversavamjuntas, quis olhar para ele ainda um instante. Encontrei os seus olhos, efoi-me impossvel desviar os meus. Um momento depois vi as suaslgrimas correram, e foi obrigado a voltar-se para no ser visto. Nessemomento no tive mo em mim; senti que ia chorar tambm. Sa, eimediata mente esc revi a lpis, num p ed ao d e p ap el: "No esteja t o

    triste, peo-lhe; prometo que lhe responderei." Com certeza no podesdizer que haja algum mal nisto; e depois, foi mais forte do que eu. Pus opapel nas cordas da harpa; como estava a carta dele, e voltei sala.Sentia-me mais tranqila. J me tardava que a senhora se fosseem bora. Felizme nte ; foi uma visita c urta ; deixou-nos pouc o d ep ois. Log oque ela saiu, eu disse que queria outra vez a minha harpa, e pedi-lheque a fosse b usc ar. Vi bem , pelo seu a spec to, que no d esc onfiava denad a. Mas qua ndo voltou, oh!, c omo ele estava c ontente!

    Ao pr a harpa na minha frente, colocou-se de maneira que aMam no pod ia v-lo, e tomou-me a m o, que a pertou... mas de uma

    maneira!...Foi apenas um momento; mas eu sou incapaz de te dizer oprazer que isso me deu. No entanto, retirei a mo; por isso no tenhonad a a c ensurar-me.

    Agora, minha boa amiga, bem vs que no posso dispensar-mede lhe escrever, visto que lho prometi. E depois, no quero que volte aestar triste, pois eu sofreria mais do que ele. Se fosse alguma coisa demal, eu no a faria. Mas que mal pode haver em escrever,principa lmente q uand o p ara imp ed ir que algum seja infeliz? O q ueme a bo rrec e sab er que n o sou capa z de fazer uma c arta be m feita.

    Ma s ele h de perc eb er que a c ulpa no m inha. E de po is estou b emc erta d e q ue s p or ser minha lhe d ar p razer.

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    Adeus, minha querida amiga. medida que se aproxima omomento de lhe escrever, o meu corao bate de uma maneirainc onc eb vel. No enta nto p rec iso, visto que o p rom eti. Ad eus.

    20 de Agosto d e 17* *.

    CARTA XIX

    CECLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

    Estava ontem to triste, senhor, e isso causava-me tanta pena,que no resisti a prometer-lhe que responderia carta que meescreveu. No que eu sinta hoje menos que no o devia fazer; mas,

    c om o lhe prometi, no q uero faltar m inha p a lavra , e isso d eve p rova r-lhe a amizade que sinto pelo senhor. Agora que j sabe, espero queno volte a pedir-me que lhe escreva mais. Espero tambm que nodiga a ningum que lhe esc revi, porque c om c erteza me c ensuravam eisso podia causar-me muitos desgostos. Espero principalmente que nofique a fazer m idia de mim, o que seria o maior desgosto que eupo dia ter.

    Posso dar-lhe a certeza de que no teria essa complacnciapara outro q ue n o fosse o senhor. Desejaria que tivesse a bond ade d eno estar triste como estava, o que me tiraria todo o prazer que sinto

    em o ver. Bem v q ue lhe falo c om tod a a since ridad e.S peo que a nossa amizade dure sempre; mas, suplico-lhe,

    no to rne a esc rever-me.Tenho a honra de ser, etc .

    20 de Agosto d e 17* *.

    CARTA XX

    A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

    Ah, tra tante, faz-me festas porque receia a minha troa !Vamos, consinto em perdoar: escreve-me tantas loucuras, que

    realmente preciso que eu lhe desculpe a prudncia do seuprocedimento em relao sua Presidente. No creio que o meuCa va leiro usasse d e ta nta indulg nc ia c om o eu; seria ho mem p ara n oaprovar a renovao do nosso contrato e para no achar nada dedivertido na sua louca idia. No entanto fez-me rir muito, e senti-me

    verdadeiramente aborrecida de ser obrigada a rir tanto sozinha. Se oVisconde estivesse prximo, no sei onde me poderia ter levado essa

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    a leg ria : ma s tive tempo p ara refletir e a rme i-me d e seve ridade. No ocaso de recusar para sempre; mas vou adiando, e tenho razo. Porianisso ta lvez va idade, e, uma vez entrad a no jog o, no se sabe o nde sevai p arar.

    Serei mulher para o p rend er de novo , pa ra lhe fa zer esquec er a

    sua Presidente; e se eu, ser indigno, o afastasse da virtude, veja queescndalo!

    Para evitar esse perigo, eis as minhas condies.Assim que tenha possudo a sua devota e me possa fornecer

    uma prova, venha, e serei sua. Mas no ignora que, nos negciosimportantes, no se recebem provas seno por escrito. Por estacombinao, serei, por um lado, uma recompensa em vez de ser umaconsolao, e essa idia agrada-me mais; por outro lado, o seu xitoser ma is exc itante. Venha pois, venha o m a is c ed o p ossvel trazer-me openho r do seu triunfo: sem elhante aos nossos esforados cava leiros, que

    vinham depor aos ps das suas damas os frutos brilhantes da vitria.Seriamente, estou curiosa de saber o que pode escrever uma mulhervirtuosa depois de um tal momento, e que vu por nas suas palavras,depois de no ter deixado nenhum sobre a sua pessoa. Ao Viscondec ab e a valiar se eu me c oloc o num p re o muito a lto; mas previno-o deque no farei qualquer abatimento... At l, meu caro Visconde,achar bem que eu fique fiel ao meu Cavaleiro e que me divirta ato rn -lo fe liz, apesar do p eq ueno desgosto que isso c ausa .

    Entreta nto , se os me us c ostumes no fossem t o reg rados, c reioque teria, neste momento, um rival perigoso; a pequena Volanges.

    Estou louca p or essa p eq uena ; uma verdadeira pa ixo.Ou e u me e ngano, ou e la vir a ser uma das nossas mulheres da

    moda. Vejo o seu coraozinho desenvolver-se, e um espetculoencantador. j com furor que ela ama o seu Danceny; mas porenquanto no percebe destas coisas. Quanto a ele, embora muitoap a ixona do , tem a inda a timidez da sua ida de e no ousa ensinar-lhedemasiado. Os dois permanecem em adorao na minha frente.Principalmente a pequena tem grande desejo de me dizer o seusegredo; desde h alguns dias, em particular, vejo-a verdadeiramentesufocada por ele, e eu prestar-lhe-ia um grande servio se a ajudasse

    um pouco. Mas no esqueo que uma criana, e no queroc ompromete r-me. Danceny falou-me um p ouc o ma is c larame nte, ma s,pa ra ele, o meu p artido est toma do, no q uero ouvi-lo.

    Quanto pequena, sinto-me muitas vezes tentada a fazer delaminha d isc pula ; um servi o q ue tenho vontade d e p resta r a Gerc ourt.Ele d-me tempo para isso, porque est na Crsega at ao ms deOutubro.

    Tenho em mente emprega r tod o esse tem po , de modo apodermos dar-lhe uma mulher inteiramente formada, em lugar da suainocente pensionista. Na verdade, em que se baseia a insolente

    confiana desse homem, que ousa dormir tranqilo, enquanto uma

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    mulher, que d ele tem mo tivos de q ueixa , no se vingou a inda? Creia, sea peq uena estivesse a qui neste m om ento , nem eu sei o q ue lhe d iria .

    Adeus, Visconde; boa noite e bom xito: mas, por Deus, veja seavana. Pense que, se no possuir essa mulher, as outras terovergonha de terem sido possudas.

    20 de Agosto d e 17 * *.

    CARTA XXI

    O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

    Enfim, minha bela amiga, dei um passo em frente, mas um

    grande passo, e que, se no me conduziu at ao fim, me fez pelomenos conhecer que estou no bom caminho, e dissipou o receio emque estava de me ter perdido. Declarei enfim o meu amor; e emborame tenha respond ido o silnc io m a is ob stinado, ob tive a resposta ta lvezmenos equvoca e mais lisonjeira; mas no antecipemos osac ontec ime ntos e vo ltem os ma is a trs.

    A Marquesa rec orda-se q ue o s me us passos eram esp iad os.Pois bem! Decidi que esse meio escndalo servisse para a

    edificao do pblico, e aqui est o que eu fiz. Encarreguei o meuconfidente de me encontrar, nos arredores, qualquer infeliz que tivesse

    nec essida de d e a uxlio.Essa misso no era difcil de cumprir. Ontem de tarde, deu-me

    ele a notc ia de q ue hoje, de m anh , deviam ser penhorad os os mveisde uma famlia inteira que no podia pagar a derrama. Assegurei-mede q ue nessa c asa no havia nenhuma mulher ou rap ariga c uja ida depudesse tornar suspeita a minha ao; e, logo que fiquei beminformado, declarei ceia o meu projeto de ir caa no dia seguinte.Devo aqui fazer justia minha Presidente : sem dvida teve ela a lgunsremorsos das ordens que deu; e, no tendo fora de vencer a suac uriosidade, teve p elo menos a d e c ontraria r o meu d esejo.

    Devia haver ca lor em exc esso; arrisc ava-me a fic a r doente; noapanharia nenhuma caa e fatigar-me-ia em vo; e, durante estedilogo, os seus olhos, que falavam talvez mais do que ela queria,davam-me a conhecer que ela desejava que eu tomasse por boas assua s ms razes.

    Como pode crer, eu no pensava em me render a tais razes, eresisti do mesmo modo a uma pequena diatribe contra a caa e osc a ad ores, e a uma p eq uena nuvem d e ma u humor que obsc urec eu,durante todo o sero, esta figura celeste. Por um momento receei queas suas ordens fossem anuladas e que a sua delicadeza acabasse por

    me prejudica r.

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    Fiz um mau clculo sobre a curiosidade duma mulher; por issome eng anei. O m eu c riado t ranquilizou-me nessa mesma noite, e d eitei-me satisfeito.

    Ao romper do Sol, levanto-me e parto. Apenas a cinqentapassos do castelo, vejo que o meu espio me segue. Entro no terreno

    da c a a e c am inho atravs do s c am pos pa ra a aldeia o nde p retendiadirigir-me; sem outro prazer, na minha jornada, alm do de obrigar acorrer o patife que me seguia, e que, no se atrevendo a deixar oscaminhos, muitas vezes tinha de percorrer, a toda a velocidade, umespao triplo do meu. De tanto o pr prova, eu prprio ia cheio decalor, e sentei-me junto de uma rvore. Pois no teve ele a insolnciade deslizar para trs de uma moita, a menos de vinte passos dedistncia, e de se sentar tambm? Por um momento estive tentado amandar-lhe um tiro, que, embora fosse apenas de chumbo, lhe teriadado uma lio suficiente sobre os perigos da curiosidade. Felizmente

    para ele, tornei a lembrar-me de que estava sendo til e mesmonec ess rio aos meus p rojeto s; esta reflexo sa lvou-o.

    Entretanto chego aldeia; vejo que h movimento; avano;interrogo; co ntam-me o q ue se p assa . Cham o o cob rad or; e, ced endo minha generosa compaixo, pago nobremente cinqenta e seislibras, pelas quais cinco pessoas iam ser reduzidas indigncia e aodesespero. Depois desta ao to simples, no imagina o coro debnos que se ergueu minha volta por parte dos assistentes! Quelg rima s de reco nhec imento c orriam dos olhos do velho c hefe d aq uelafamlia, e embelezavam a sua figura de patriarca, que um momento

    antes a contrao feroz do desespero tornava verdadeiramentehedionda! Eu examinava o espetculo e logo outro campons maismo o, cond uzindo p ela m o uma mulher e d uas c rian as, ava na pa ramim a passos precipitados, dizendo-lhes: "Ajoelhemo-nos todos aos psdesta imagem de Deus!"; e no mesmo instante fui rodeado por toda afamlia, prosternada perante mim. Confessarei a minha fraqueza; osmeus olhos tinham-se molhado de lgrimas, e senti em mim ummovimento involuntrio, mas delicioso. Fiquei surpreendido do prazerque se experimenta ao fazer-se bem; e estive tentado a crer queaqueles a quem chamamos pessoas virtuosas no tm tanto mrito

    c om o geralmente se d iz.Fosse c om o fosse, ac hei que era justo p aga r quela p ob re g enteo p razer que ac abava de me dar. Tinha c om igo dez luses: de i-lhos.Aqui recomearam os agradecimentos, mas j no tinham o mesmograu de pattico: o necessrio tinha produzido o grande, o verdadeiroefeito; o resto era a pena s uma simp les expresso de rec onhec ime nto ede espa nto p or uma d d iva suprflua.

    Entretanto, no meio das bnos tagarelas daquela famlia, euno deixava de me parecer um pouco com o heri de um drama, nacena do desenlace. Calcular decerto que entre a multido se

    mantinha a p firme o espio fiel. O meu fim fora atingido; separei-mede tod os, e vo ltei para o c astelo. Deitados tod os os c lc ulos, felic ito-me

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    da minha inven o. Esta mulher vale bem, sem dvida , que eu m e d atais cuidados; eles sero um dia os meus ttulos junto dela; e tendo-lhe,de a lgum modo , pag o a ssim d e a ntem o, terei o direito de dispo r de laseg undo a minha fa ntasia , sem ter de me c ensurar.

    Esquecia-me dizer-lhe que, para que tudo resultasse em meu

    favor, pedi quela boa gente que rogasse a Deus pelo bom xito dosme us projetos. A Ma rquesa ver se o s seus rog os no fo ram j em partea tend idos... Ma s anunc iam-me que a ceia e st servida e fa r-se-ia ta rdepara mandar esta carta se eu no a fechasse ao retirar-me. Assim, oresto no prximo nmero. Aborrece-me isso, pois o resto o melhor.Adeus, minha be la am iga .

    Ac ab a d e me rouba r um mom ento do prazer de v-la.

    20 de Agosto d e 17 * *.

    CARTA XXII

    A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

    Ficareis sem dvida satisfeita, senhora, por conhecer um gestodo senhor de Valmont, que c ontrasta e m m uito, pa rec e-me, com tod osaqueles sob os quais vo-lo apresentaram. uma coisa to penosapensar desfavoravelmente de quem quer que seja, to aborrecido

    encontrar apenas vcios naqueles que podem ter todas as qualidadesnec essrias pa ra fazer am ar a virtud e!

    Enfim, gostais tanto de usar de indulgncia que dar-vos motivopara rep arar um juzo d em asiad o rigoroso dec erto servir-vos.

    O senhor de Valmont parece-me ter as condies necessriaspara esperar esse favor, direi quase justia; e vou dizer-vos porque openso.

    Esta ma nh deu e le um daqueles passeios que p od eriam leva r asupor qualquer projeto da sua parte nos arredores, conforme a idiaque vos veio; idia que me acuso de ter partilhado talvez com

    demasiada vivacidade. Felizmente para ele, e sobretudo felizmentepara ns, pois isso nos salva de sermos injustas, um dos meus