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2955 CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS DISCRICIONÁRIOS DA ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA NA EXECUÇÃO PENAL CONTRÔLE JUDICIAIRE DES ACTES DISCRÉTIONNAIRES DE L'ADMINISTRATION PÉNITENTIAIRE DANS L'EXÉCUTION CRIMINELLE José Armando Ponte Dias Junior Fernanda Maria Diogenes de Menezes Olvieira RESUMO A Lei de Execuções Penais atribuiu à autoridade administrativa responsável pela direção do estabelecimento penitenciário a prática de diversos atos administrativos essenciais ao desenvolvimento da execução penal, muitos dos quais de cunho decisório em relação a direitos dos apenados. Tais atos apresentam nítidos traços de discricionariedade, e, precisamente por isso, mais forte se faz sentir a necessidade de que sejam corretamente motivados, possibilitando o controle dos mesmos pela autoridade judiciária competente para as execuções penais. Tal controle, por seu turno, sofre limitações e muitas vezes será exercido de modo mais restrito, especialmente quando a colmatação do ato administrativo envolver a análise de conceitos jurídicos verdadeiramente indeterminados, caso em que o posicionamento da autoridade administrativa deverá prevalecer, sempre que não se mostre desproporcional. PALAVRAS-CHAVES: EXECUÇÃO PENAL; ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA; CONTROLE. ABSTRACT La Loi d'Exécutions Criminelles a attribué à l'autorité administrative responsable pour la direction d'établissement pénitentiaire la pratique de divers actes administratifs essentiels au développement de l'exécution criminelle, beaucoup desquels de nature décisoire concernant aux droits des prisonniers. Tels actes sont clairement discrétionnaires, et, précisément donc, plus fort il se fait sentir la nécessité dont ils soient correctement motivés, en rendant possible le contrôle des mêmes par l'autorité judiciaire compétente pour les exécutions criminelles. Ce contrôle, à son tour, souffre des limitations et beaucoup de fois sera exercé de manière plus restreinte, spécialement quand la pratique de l'acte administratif impliquer l'analyse de concepts juridiques vraiment indéterminés, cas où le positionnement de l'autorité administrative devra prévaloir, chaque fois qu'il ne se montre pas disproportionné. Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS DISCRICIONÁRIOS DA ... · conjugação de atos jurisdicionais e administrativos, ... e por via oblíqua ou reflexa, da constitucionalidade dos atos administrativos

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CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS DISCRICIONÁRIOS DA ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA NA EXECUÇÃO PENAL

CONTRÔLE JUDICIAIRE DES ACTES DISCRÉTIONNAIRES DE L'ADMINISTRATION PÉNITENTIAIRE DANS L'EXÉCUTION CRIMINELLE

José Armando Ponte Dias Junior Fernanda Maria Diogenes de Menezes Olvieira

RESUMO

A Lei de Execuções Penais atribuiu à autoridade administrativa responsável pela direção do estabelecimento penitenciário a prática de diversos atos administrativos essenciais ao desenvolvimento da execução penal, muitos dos quais de cunho decisório em relação a direitos dos apenados. Tais atos apresentam nítidos traços de discricionariedade, e, precisamente por isso, mais forte se faz sentir a necessidade de que sejam corretamente motivados, possibilitando o controle dos mesmos pela autoridade judiciária competente para as execuções penais. Tal controle, por seu turno, sofre limitações e muitas vezes será exercido de modo mais restrito, especialmente quando a colmatação do ato administrativo envolver a análise de conceitos jurídicos verdadeiramente indeterminados, caso em que o posicionamento da autoridade administrativa deverá prevalecer, sempre que não se mostre desproporcional.

PALAVRAS-CHAVES: EXECUÇÃO PENAL; ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA; CONTROLE.

ABSTRACT

La Loi d'Exécutions Criminelles a attribué à l'autorité administrative responsable pour la direction d'établissement pénitentiaire la pratique de divers actes administratifs essentiels au développement de l'exécution criminelle, beaucoup desquels de nature décisoire concernant aux droits des prisonniers. Tels actes sont clairement discrétionnaires, et, précisément donc, plus fort il se fait sentir la nécessité dont ils soient correctement motivés, en rendant possible le contrôle des mêmes par l'autorité judiciaire compétente pour les exécutions criminelles. Ce contrôle, à son tour, souffre des limitations et beaucoup de fois sera exercé de manière plus restreinte, spécialement quand la pratique de l'acte administratif impliquer l'analyse de concepts juridiques vraiment indéterminés, cas où le positionnement de l'autorité administrative devra prévaloir, chaque fois qu'il ne se montre pas disproportionné.

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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KEYWORDS: EXÉCUTION CRIMINELLE; ADMINISTRATION PÉNITENTIAIRE; CONTRÔLE.

INTRODUÇÃO

Na delicada abordagem da execução penal no Brasil, pouco se tem discutido acerca do papel do Diretor do estabelecimento penitenciário.

Com efeito, comumente não se dá a atenção devida e o destaque merecido à atividade administrativa exercida pelo Diretor de estabelecimento prisional durante a execução da pena privativa de liberdade, o que acaba por desmerecer a importante função da autoridade administrativa carcerária enquanto agente responsável pela concretização de diversas normas de textura aberta previstas na Lei de Execuções Penais.

O Diretor do estabelecimento penal, como autoridade administrativa que é, desempenha relevantes funções no processo de densificação de normas, sendo ele, em última análise, o responsável por tornar concretos diversos preceitos abstratamente previstos na legislação.

Tem-se aqui, portanto, como objetivo principal, o estudo do campo de atuação da autoridade administrativa penitenciária no curso da execução penal, mediante análise da natureza dos atos cuja prática a ela é atribuída por lei, atos estes que, amiúde, guardam traços de discricionariedade.

Tal discricionariedade apenas reforça a necessidade de que tais atos, muitos deles efetivamente de cunho decisório em relação a direitos dos presos, sejam sempre motivados, possibilitando sua sindicabilidade por parte do Juízo das Execuções Penais.

Busca-se aqui, ademais, estabelecer os moldes e os parâmetros pelos quais o Judiciário poderá exercer o controle da atividade da Administração Penitenciária, velando pelo cumprimento de regras e princípios, legais e constitucionais, sem, contudo, exercer indevida ingerência em campos nos quais a apreciação administrativa deverá prevalecer.

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1 PANORAMA DA NATUREZA DA EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL

Uma vez condenado o criminoso, cabe ao Estado acompanhar e fiscalizar o cumprimento da pena a ele imposta, a fim de garantir que a reprimenda aplicada cumpra com as três finalidades que comumente dela se espera, quais sejam, a retribuição em face da prática do delito praticado, a prevenção, desestimulando a prática de novos delitos, e a ressocialização, tornando o apenado apto para o sadio retorno o convívio social[1].

Nesse contexto exsurge a necessidade de se definir a natureza da atividade realizada no âmbito da execução penal, se administrativa ou se jurisdicional, derivando dessa distinção, por óbvio, significativas conseqüências.

Doutrinariamente, encontram-se basicamente duas posições acerca da natureza da atividade desenvolvida quando da execução penal, apontando a primeira para o caráter jurisdicional da execução penal, desenvolvendo-se a mesma por meio de um verdadeiro processo, enquanto que a segunda posição aponta para a natureza predominantemente administrativa da execução penal, posição essa que costuma ver no condenado o objeto da execução penal, uma vez que a mesma se desenvolve sem o concurso de sua vontade.

No Brasil, a execução penal, a teor do que dispõe a Lei n. 7.210/84, que a regulamenta, realiza-se por meio de um processo de execução, a ser conduzido por autoridade judicial, processo este no qual o apenado aparece não como objeto da atividade estatal, mas como titular de todos os demais direitos não atingidos pela sentença condenatória.

Deve-se reconhecer, contudo, que, talvez por vícios práticos, talvez por equívocos teóricos, o processo de execução penal não é um processo judicial como outro qualquer, uma vez que a prática judiciária mostra que, amiúde, o processo caminha impulsionado pela própria autoridade judicial, que, agindo muitas vezes de ofício, dá início à execução com a expedição da Guia de Recolhimento, progride o regime prisional do apenado e instaura incidentes.

Outrossim, é processo anômalo na medida em que nele, muitas vezes, se observa a precariedade de defesa técnica, a capacidade postulatória do próprio apenado e a intervenção de diversos Órgãos da Execução Penal em muitas de suas fases[2].

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No mais, embora jurisdicionalizada, a execução penal desenvolve-se também mediante intensa prática de atos tipicamente administrativos de responsabilidade da direção do estabelecimento penitenciário, o que contribui para o caráter sui generis do processo de execução penal.

Tais atos administrativos, porém, no contexto jurisdicionalizado da execução penal, devem ser acompanhados e fiscalizados de modo permanente e intenso pelo Poder Judiciário, com a cautela necessária para não esvaziar a responsabilidade das autoridades administrativas e para não transformar a autoridade judiciária em órgão revisor da atividade da Direção do estabelecimento prisional, anulando ou modificando de ofício atos praticados no âmbito da Administração Carcerária, fato ainda bastante corriqueiro no cotidiano forense.

Em síntese, pode-se dizer que a atividade de execução penal no Brasil é concretizada jurisdicionalmente, por meio de um processo em que se deve garantir ao apenado o exercício de direitos não atingidos pela sentença condenatória, possibilitando-lhe contraditório e defesa, atividade esta que se desenvolve mediante a prática de atos jurisdicionais e administrativos, sendo estes de responsabilidade da Direção do estabelecimento penitenciário onde o apenado cumpre pena.

2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA NA EXECUÇÃO DA PENA

Como visto anteriormente, o processo de execução penal se desenvolve mediante a conjugação de atos jurisdicionais e administrativos, sendo aqueles da responsabilidade do Juízo das Execuções Penais, e alguns destes da responsabilidade da autoridade administrativa responsável pela Direção do estabelecimento prisional.

Com efeito, de acordo com a Lei n. 7.210/84, conhecida por Lei de Execuções Penais, acha-se na atividade de execução da pena atribuições especificamente direcionadas à autoridade judiciária e outras especificamente voltadas para a autoridade administrativa, sem que se possa dizer que umas ou outras sejam as mais importantes, de maneira que o satisfatório cumprimento das finalidades da pena depende do correto desempenho de todas essas atribuições.

No que se refere à atividade administrativa, importa ressaltar que não há distinção entre os atos administrativos da execução penal e os demais atos administrativos em geral, de maneira que toda a atividade da Administração Penitenciária se deve submeter integralmente não apenas às regras legais, mas aos princípios constitucionais da

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Administração Pública, vale dizer, aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, e a todos os demais princípios constitucionais, mormente àqueles que reconhecem direitos fundamentais ao preso, garantindo-se a sua dignidade como pessoa.

Isso porque não apenas à restrita legalidade está submetida a Administração Pública em geral, e a Administração Penitenciária em particular, mas sim, em uma visão mais contemporânea, à juridicidade, o que necessariamente refletirá na sistemática do controle jurisdicional da atividade administrativa penitenciária, como se verá:

Aduz-se ao controle da legalidade, a que antes era circunscrito o Poder Judiciário, o controle da constitucionalidade das leis, e por via oblíqua ou reflexa, da constitucionalidade dos atos administrativos. Permite-se ao Juiz, ademais, para além da verificação da conformidade do ato administrativo com a lei, o exame da sua compatibilidade com outros princípios constitucionais, além da legalidade[3].

Com efeito, no cenário jurídico pós-positivista da atualidade, operou-se a importante modificação do direito por regras pelo direito por princípios, os quais vêm sendo reconhecidos como padrão normativo diverso das regras, de maneira que deixaram os princípios de ser apenas vetores de orientação ou interpretação para as regras, sendo, eles próprios, normas jurídicas, vinculantes, portanto.

De fato, segundo Ronald Dworkin, princípios são normas que enunciam razões que inclinam argumento e decisão em uma certa direção, embora de uma maneira não conclusiva[4].

Deve a atividade administrativa penitenciária, portanto, obediência às normas jurídicas estabelecidas não apenas pelas regras da Lei de Execuções Penais, mas também às normas jurídicas decorrentes dos princípios constitucionais, cabendo ao Juízo das Execuções Penais, desde que provocado pelo apenado ou por seu defensor, ou ainda pelo Ministério Público ou por qualquer dos Órgãos da Execução Penal, exercer o controle dos atos da Direção do estabelecimento penal à luz de todos esses parâmetros, o que deixa evidente a importância da motivação dos atos por parte da autoridade administrativa penitenciária.

3 MOTIVAÇÃO E CONTROLE DOS ATOS DA DIREÇÃO DE ESTABELECIMENTO PENAL

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Afigura-se especialmente difícil ao Poder Judiciário, senão inteiramente impossível, exercer o controle jurisdicional da juridicidade dos atos administrativos quando tais atos não se apresentam devidamente motivados.

No âmbito da execução penal, aliás, a falta de motivação pela Direção do estabelecimento penitenciário dos atos administrativos praticados é um dos vícios mais freqüentes a macular tais atos, dificultando sobremaneira o correto acompanhamento do cumprimento da pena pelos demais Órgãos da Execução Penal.

Ora, como atos administrativos que são, e devendo a Administração Pública obediência às normas jurídicas (princípio da juridicidade) estabelecidas por regras ou princípios, os atos praticados durante a execução da pena pela autoridade administrativa penitenciária deverão ser todos motivados, motivação essa que deverá compreender, simultaneamente, “a enunciação dos motivos de fato e de direito do ato administrativo, vale dizer, dos fatos e dos fundamentos jurídicos em que se apóia o ato, bem como a justificação do processo de tomada da decisão”[5].

É importante aqui frisar que a motivação dos atos administrativos reveste-se de um importante caráter instrumental, viabilizando o controle pela autoridade judiciária, quando a tanto provocada, da juridicidade de tais atos administrativos.

Dessa forma, é fácil perceber que tanto melhor se exercerá o controle da atividade administrativa quanto mais completa for a motivação dos atos administrativos praticados, razão pela qual essa motivação, como salienta Germana Moraes, há de ser explícita, clara, congruente e tempestiva[6].

Sucede que, no âmbito da execução penal, dentre as atribuições especificamente direcionadas à autoridade administrativa penitenciária pela Lei de Execuções Penais, muitas delas referem-se ao preenchimento, pela autoridade diretora do estabelecimento penal, do conteúdo de algumas normas de textura aberta previstas na própria lei, como, por exemplo, a norma extraída do art. 41, parágrafo único, da Lei 7210/84, a qual permite ao diretor do estabelecimento penal suspender ou restringir, motivadamente, direitos do preso, como, por exemplo, o de receber visitas.

Essa atividade de preenchimento de conteúdo de normas de textura aberta insere-se no importante procedimento de concretização atribuído à autoridade administrativa, o qual

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também não está imune ao controle jurisdicional, e que, portanto, deve também ser devidamente motivado.

A esse procedimento Canotilho denomina de “densificação de normas”[7], sendo a autoridade administrativa um “sujeito concretizador”[8], a quem cabe, numa derradeira fase, a tarefa de preencher, complementar e precisar, em nível executivo, o espaço normativo de um preceito constitucional, especialmente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução dos problemas concretos.

Precisamente por não estarem imunes à apreciação judicial é que mesmo em tais atos de concretização de normas de textura aberta, atos em que o administrador tem uma certa margem de liberdade para completar o sentido da lei, a motivação é obrigatória.

Deve, portanto, a autoridade administrativa motivar não apenas os atos tidos por vinculados, mas, sobretudo, os atos discricionários[9], mesmo porque “a discricionariedade é sempre e inevitavelmente relativa”[10], pois sempre estará o administrador cingido às regras legais e aos princípios constitucionais:

Discricionariedade é a margem de liberdade de decisão, conferida ao administrador pela norma de textura aberta, com o fim de que ele possa proceder, mediante a ponderação comparativa dos interesses envolvidos no caso específico, à concretização do interesse público ali indicado, para, à luz dos parâmetros traçados pelo princípios constitucionais da administração pública e pelos princípios gerais do Direito e dos critérios não positivados de conveniência e de oportunidade: 1o) complementar, mediante valoração e aditamento, os pressupostos de fato necessários à edição do ato administrativo; 2o) decidir se e quando ele deve ser praticado; 3o) escolher o conteúdo do ato administrativo dentre mais de uma opção igualmente pré-fixada pelo Direito; 4o) colmatar o conteúdo do ato, mediante a configuração de uma conduta não pré-fixada, porém aceita pelo Direito[11].

Todos os atos administrativos da direção de estabelecimento penitenciário, portanto, são sindicáveis pelo Poder Judiciário, sejam eles tidos por discricionários ou por vinculados, haja vista que todos devem submissão à juridicidade emanada de regras e princípios.

E, especificamente no que se refere aos atos administrativos discricionários, o principal parâmetro de controle de que há de se servir o Judiciário é a máxima da proporcionalidade, a qual abrange as noções de adequação, necessidade e

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proporcionalidade em sentido estrito, coincidindo esta última com a exigência de sopesamento entre os bens jurídicos envolvidos na solução do caso concreto[12].

Com efeito, é a proporcionalidade que buscará impedir, no caso concreto, restrições desarrazoadas a direitos fundamentais dos apenados sob custódia estatal, sendo evidente o arbítrio ensejado pela falta de necessidade ou de adequação da medida restritiva e o excesso resultante da falta de racionalidade[13], arbítrio e excesso esses que devem ser coibidos pela autoridade judicial das Execuções Penais quando realiza o controle dos atos administrativos discricionários praticados pelo Diretor do estabelecimento penal, velando para que sejam assegurados ao preso, na maior medida possível, todos os seus direitos fundamentais não atingidos pela sentença condenatória, garantindo o efetivo e rigoroso acompanhamento do cumprimento da pena sem macular de maneira desproporcional a essência dos direitos fundamentais do apenado, e, em última instância, a sua própria dignidade.

4 ATOS DISCRICIONÁRIOS DA ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA

A Lei das Execuções Penais, como já visto, confere competência à autoridade penitenciária para a prática de diversos atos tidos por discricionários durante o percurso da execução da pena, realçando assim a importância do Diretor do estabelecimento penitenciário para uma satisfatória execução da pena dentro da sistemática jurisdicional da execução penal adotada no Brasil.

É, pois, a autoridade penitenciária, agente concretizador das normas jurídicas pertinentes à execução penal, juntamente com a autoridade judiciária, tendo, cada qual de tais autoridades, diferente campo de atuação na execução da pena, não cabendo a uma a prática de atos atribuída pela legislação à outra autoridade, ressalvadas as hipóteses de exercício de controle judicial da atividade administrativa, controle esse que deverá ser sempre exercido mediante provocação, a fim de que se garanta a dialética processual e a imparcialidade da autoridade judicial.[14]

4.1 A Autorização para o Exercício de Trabalho Externo ao Preso do Regime Semi-aberto ou Aberto

Importante atribuição que a Lei das Execuções Penais confere à autoridade administrativa penitenciária é a possibilidade de decidir quanto ao exercício de trabalho externo do apenado que está a cumprir pena no regime semi-aberto ou aberto.

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Com efeito, cabe ao Diretor do estabelecimento penal sob cuja custódia se encontra o apenado decidir acerca do trabalho externo, bem como acerca do local em que será prestado, e não à autoridade judicial, conforme estabelece o art. 37 da Lei n. 7.210/84:

Art. 37. A prestação de trabalho externo, a ser autorizada pela direção do estabelecimento, dependerá de aptidão, disciplina e responsabilidade, além do cumprimento mínimo de um sexto da pena.

É de suma importância para que a pena possa alcançar sua finalidade de ressocialização que o apenado trabalhe, uma vez que o trabalho, além de conferir dignidade ao preso, livra-o do ócio e contribui para a sua formação profissional:

É fundamental o trabalho nas unidades fechadas, pois a ociosidade, como já foi acentuado, alimenta os problemas existenciais e desestimula os encarcerados, aumentando a hostilidade e o preconceito da sociedade, tornando cada vez mais difícil a reintegração ao mundo livre[15].

Acrescente-se que, mais que um direito do preso, o trabalho do preso definitivo é uma obrigação, a teor do que dispõe o art. 31, caput, da Lei de Execuções Penais[16].

De início, portanto, é válido insistir que a concessão de trabalho externo ao preso do regime semi-aberto ou aberto é atribuição privativa do Diretor do estabelecimento penal, constituindo-se em verdadeiro ato discricionário, o qual, contudo, não está imune ao controle Juízo das Execuções Penais.

Com efeito, conforme já exposto alhures, mesmo os atos administrativos discricionários estão sujeitos ao controle judicial, haja vista que também eles devem obediência aos princípios constitucionais, já que não pode a autoridade administrativa concretizar normas de textura aberta da maneira que lhe aprouver, desviando-se dos princípios constitucionais a que está sujeita a atividade administrativa.

Assim, por exemplo, não pode a autoridade administrativa conceder ou deixar de conceder trabalho externo ao preso de acordo com critérios que ofendam o princípio constitucional da impessoalidade da Administração Pública, concedendo-o como um

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favor ou o negando enquanto direito por meio de práticas que importem em favoritismos ou revanchismos pessoais, condutas estas que devem ser prontamente coibidas pelo Juízo das Execuções Penais, desde que, insista-se, a tanto provocado pelo Ministério Público ou por qualquer dos demais Órgãos da Execução Penal.

Para que tais atos possam ser objeto de apreciação judicial, contudo, faz-se imprescindível que sejam motivados pela autoridade administrativa assim a concessão, de ofício ou mediante postulação do apenado ou de seu defensor, como a não concessão do trabalho externo.

E tal motivação há de ficar adstrita aos contornos fático-jurídicos, aos pressupostos normativos autorizadores do trabalho externo, não podendo, portanto, a autoridade administrativa agir com excesso ou arbítrio.

São dois os pressupostos legais para a autorização do trabalho externo ao preso do regime semi-aberto ou aberto, a teor do estabelecido pelo art. 37 da Lei das Execuções Penais, já transcrito alhures, quais sejam, o cumprimento mínimo de um sexto da pena e a análise da aptidão, disciplina e responsabilidade do apenado.

Quanto ao cumprimento mínimo de um sexto da pena, trata-se de pressuposto que retrata conceito jurídico determinado, objetivo e sobre o qual não pairam dúvidas, o que não ocorre com o outro pressuposto.

Com efeito, a “aptidão, disciplina e responsabilidade” do apenado são conceitos jurídicos fluidos, vagos, imprecisos ou indeterminados, e, como tais, embora sindicáveis pelo Judiciário, haja vista que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito pode ser suprimida da apreciação judicial[17], são submetidos a um controle judicial mais restrito, o qual se limitará à análise do processo de tomada de decisão e ao controle de eventuais restrições a direitos fundamentais.

Isso significa dizer que, se a análise feita pelo Diretor do estabelecimento penal quanto à aptidão, à disciplina e à responsabilidade do apenado obedeceu aos trâmites procedimentais próprios e não apresentou ofensa desproporcional a qualquer direito fundamental do preso, não poderá o Judiciário invalidar a decisão administrativa ou substituir os critérios do administrador pelos seus próprios critérios, sob pena de indevida e inconstitucional ingerência do Judiciário na Administração Pública.

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Conceitos como esses se enquadram no que Germana Moraes denomina de conceitos indeterminados de prognose, ou conceitos verdadeiramente indeterminados, onde se verifica uma maior margem de liberdade ao administrador[18]. Nos conceitos indeterminados de prognose, “em que existe a necessidade de avaliação de qualidades de pessoas ou coisas ou de uma estimativa sobre a evolução futura do estado das coisas, perigos, pessoas e processos sociais”[19], a imprecisão resulta do contexto de incidência da norma, e não da linguagem de que o enunciado normativo se utiliza, hipóteses em que o controle judicial seria pleno.

Na seara dos conceitos jurídicos indeterminados, costuma-se ainda distinguir uma zona de certeza positiva, onde evidentemente os fatos se enquadram na expressão do tipo legal, uma zona de certeza negativa, onde os fatos evidentemente não se enquadram na hipótese da norma e uma zona intermediária cinzenta, e uma zona de penumbra[20], sendo que nas duas zonas de certeza o conceito é determinável e, portanto, plenamente sindicável pelo Judiciário, enquanto que na zona cinzenta ou de penumbra o conceito é verdadeiramente indeterminado, admitindo um controle judicial apenas parcial, uma vez que prevalece o juízo administrativo, o qual somente deverá ceder ante a um controle pelo Judiciário quando ameaçar direitos fundamentais ou atentar contra princípios constitucionais, ou quando a intelecção administrativa não se mostrar razoável perante o caso concreto ou quando conferir “uma desproporcional extensão do sentido extraível do conceito legal ante os fatos a que se quer aplicá-lo”[21], casos em que o Judiciário, na maioria das vezes, limitar-se-á a invalidar o ato, sem substituí-lo por outro[22].

Na análise dos requisitos da aptidão, disciplina e responsabilidade do preso do regime aberto ou semi-aberto para fins de concessão de trabalho externo, portanto, deverão prevalecer as conclusões do Diretor do estabelecimento penal, e não as do Juiz das Execuções Penais, sempre que o Judiciário, quando a tanto provocado, não logre êxito na tentativa de reconduzir o caso concreto a uma zona de certeza negativa ou positiva quanto aos conceitos jurídicos, a priori, indeterminados, conceitos esses que, em tais hipóteses, passarão a ser conceitos verdadeiramente indeterminados, sujeitos, pois, a restrito controle judicial, nos limites já expostos acima.

Dessa maneira, o Juízo das Execuções Penais pode invalidar a concessão de trabalho externo autorizada pela Administração Penitenciária, mas somente quando a avaliação administrativa dos pressupostos legais traduzidos em conceitos indeterminados escapar às noções de razoabilidade e de proporcionalidade, ferindo princípios constitucionais como, por exemplo, o da impessoalidade da Administração Pública, podendo ainda o Judiciário conceder o direito de trabalho externo ao preso, substituindo-se à Administração, o que é mais raro, desde que a valoração administrativa dos conceitos indeterminados previstos na lei esteja fulminando de maneira desproporcional o direito do apenado ao trabalho e à ressocialização.

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4.2 A Suspensão ou Restrição do Direito do Preso a Recreio, a Visitas e a Correspondência com o Mundo Exterior

Outra importante atribuição que a Lei de Execuções Penais confere à autoridade administrativa responsável pela direção do estabelecimento carcerário é o poder de restringir ou suspender, motivadamente, os direitos que a própria lei concede aos presos no tocante a tempo de recreio, ao recebimento de visitas e à correspondência com o mundo exterior, consoante o disposto no art. 41 da Lei 7.210/84:

Art. 41. Constituem direitos do preso: [...] V- proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; [...] X- visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; [...] XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes [...]. Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.

De logo se observa que não compete à autoridade judiciária a restrição ou suspensão de tais direitos dos presos, sendo esta uma atribuição especificamente dirigida ao Diretor do estabelecimento penal, o que certamente se dá pela maior proximidade desta autoridade para com o preso, sendo ela, pois, melhor que qualquer outra, a pessoa indicada para saber em que circunstâncias o preso deve ter suspenso ou restringido seus direitos a recreio, a visitas e a correspondência.

Importa também destacar aqui que tal previsão normativa se constitui em mais uma norma de textura aberta, carente, portanto, de concretização quando de sua aplicação ao caso concreto, uma vez que a lei que regula as execuções penais, propositalmente, omite-se quanto ao elenco de causas que poderiam dar ensejo às restrições ou suspensões administrativas de direitos dos presos, decerto por entender que somente a autoridade administrativa penitenciária, vivenciando o cotidiano do cárcere, pode aquilatar e dimensionar os casos de restrição, juízo este, todavia, que não se pode mostrar desproporcional, o que o tornaria eivado do vício da inconstitucionalidade na medida em que restrinja de maneira exagerada e desnecessária direitos do preso.

Sendo o Diretor do estabelecimento penal o sujeito concretizador de tal norma de textura aberta, evidente emerge que o ato de suspensão ou restrição dos direitos do preso a visita, a recreio e a correspondência é discricionário, o que, como visto alhures, não implica em que não deva ser devidamente motivado, aliás, como expressamente e de maneira dispensável diz o enunciado normativo acima transcrito.

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Em tal caso, é bom que se diga, a motivação ainda se faz mais necessária, pois se tratam de atos tendentes a diminuir, no caso concreto, a possibilidade do exercício, pelos presos, de direitos expressamente reconhecidos pela lei.

No mais, a motivação permitirá que o Juízo das Execuções Penais, desde que a tanto provocado, possa exercer efetivo controle da atividade administrativa, mesmo porque também os atos discricionários são sindicáveis pelo Judiciário, em face da juridicidade a que estão sujeitos, como já se mostrou.

Tal controle será feito com o auxílio do procedimento da proporcionalidade, que aqui tem importância fundamental, uma vez que é imprescindível que a restrição ou a suspensão de tais direitos seja adequada e necessária aos fins de interesse público que se pretenda com elas alcançar, buscando-se que, no caso concreto, o benefício resultante da restrição imposta ao direito do preso seja mais importante que o direito do preso que se está restringindo.

No exercício do controle em tais casos, a atitude do Juízo das Execuções Penais limitar-se-á à invalidação dos atos de restrição ou suspensão que estiverem viciados, sendo inteiramente descabido que a autoridade judiciária suspenda ou restrinja, ela mesma, ainda que mediante provocação, os direitos de recreio, de visita ou de correspondência dos presos, por ser a autoridade administrativa, no caso o Diretor do estabelecimento penitenciário, a única autoridade a que a lei conferiu competência para a prática de tais atos de restrição ou suspensão.

Deve-se, no mais, reconhecer que é ainda corriqueiro no âmbito da Administração Penitenciária o vício consistente na falta de motivação de tais restrições, embora esse dever de motivação esteja expresso no próprio dispositivo legal que as autoriza, sendo, por outro lado, difícil ao Judiciário ter por convalidada qualquer dessas restrições quando as mesmas tiverem sido aplicadas com ausência de motivação, mesmo porque, muito provavelmente, não disporia o magistrado de elementos seguros para convalidar restrições imotivadas, porquanto lhe falta uma relação de intimidade mais acentuada, nos moldes da que deve ter o administrador penitenciário, com os meandros e as minúcias nem sempre facilmente perceptíveis da realidade carcerária de determinado estabelecimento.

Quanto à suspensão ou restrição do direito do preso de se corresponder por escrito com o mundo exterior, vale enfatizar, como adendo derradeiro a este tópico, o fato de que tais medidas não autorizam a Administração Penitenciária a devassar o conteúdo da

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correspondência do preso por parte da Administração Penitenciária, por ser o sigilo de correspondência direito fundamental expressamente reconhecido pela Constituição brasileira[23], corolário que é dos direitos à intimidade e à privacidade, relacionando-se diretamente com a própria dignidade humana.

4.3 Aplicação de Sanções Disciplinares aos Apenados

Momento em que a discricionariedade administrativa mostra-se bastante realçada no âmbito da atividade penitenciária ocorre quando da aplicação de sanções disciplinares aos apenados.

Aqui, uma vez mais, cabe enfatizar que se trata de ato privativo do Diretor do estabelecimento penal, e não de ato da autoridade judiciária da execução penal[24], nos termos do que estabelece o art. 54 da Lei das Execuções Penais:

Art. 54. As sanções dos incisos I a IV do art. 53 [advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos e isolamento na própria cela] serão aplicadas por ato motivado do diretor do estabelecimento [...].

Como se percebe, pois, a aplicação ao preso das sanções disciplinares de advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos e isolamento na própria cela é ato privativo da autoridade administrativa, não podendo o Juízo das Execuções Penais aplicar tais sanções disciplinares ao preso.

A aplicação de tais sanções, ademais, à maneira do que ocorre com as sanções disciplinares aplicadas a servidores públicos, é ato discricionário na medida em que se insere na margem de liberdade da Administração a escolha da sanção mais adequada, estipulando a Lei de Execuções Penais, todavia, que nas faltas graves a autoridade administrativa deverá aplicar ou a sanção de restrição ou suspensão de direitos ou o isolamento na própria cela (art. 57), as quais não poderão exceder o prazo de 30 dias (art. 58).

Todavia, como deixa bem claro o texto da regra acima transcrita, a aplicação de sanções disciplinares ao preso, embora sendo ato discricionário, deverá acontecer por meio de ato motivado da autoridade administrativa, a fim de que o Judiciário possa controlar o ato à luz das regras e princípios constitucionais.

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E, novamente aqui, a proporcionalidade se destaca como parâmetro por excelência de controle, cabendo ao Judiciário, se a medida disciplinar aplicada for desproporcional, anular o ato administrativo que a aplicou, devendo a Administração proferir nova decisão.

Vícios freqüentemente observados no tocante à aplicação de sanções disciplinares são os que se referem à falta de motivação e à motivação obscura, ocorrendo este, segundo Germana de Oliveira Moraes, “quando não são inteligíveis os fatos narrados nem os fundamentos jurídicos indicados nos quais a decisão de apóia ou, ainda, quando não é possível compreender a justificação do processo decisório”[25].

Ora, ocorrendo tais tipos de vício, dificilmente poderá o Judiciário convalidar o ato administrativo, não lhe restando alternativa a não ser anulá-lo, para que o Diretor do estabelecimento penal profira nova decisão, pois, no dizer de Vieira de Andrade[26]:

A anulação deveria ter lugar, sim, se a falta ou a insuficiência da fundamentação expressa impedissem a avaliação pelo tribunal da conformidade do acto com os preceitos de direito substantivo, em especial nos casos de utilização do poder discricionário, quando o juiz não pudesse concluir com segurança pela legitimidade da medida adoptada em função do fim legal.

Já de acordo com Germana de Oliveira Moraes[27]:

Se o juiz dispuser de elementos para formar a convicção de que a Administração Pública seria obrigada a repetir o ato, desta feita sem vício, com idêntico conteúdo ao anterior, por ser aquela decisão imposta pelo Direito, no caso concreto, há de reconhecer, em nome do princípio da eficiência, o aproveitamento do ato, não obstante o vício de motivação, e abster-se de invalidá-lo.

Todavia, há de se convir que em casos de motivação obscura ou mesmo de falta de motivação na aplicação de sanções disciplinares dificilmente o Juiz das Execuções Penais disporá de elementos para convalidar tais atos.

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Com efeito, falta ao juiz das execuções penais a intimidade com o cárcere exigível do administrador do estabelecimento prisional, não se podendo, por outro lado, exigir do magistrado esse profundo conhecimento da realidade interna de cada um dos estabelecimentos prisionais sob sua jurisdição, pois, ante outras tantas atribuições concernentes ao desenvolvimento processual, não lida o magistrado diariamente com a complexa rotina carcerária, e a tanto sequer é obrigado por lei, uma vez que legalmente somente lhe é exigida visita mensal de inspeção ao estabelecimento penitenciário, a teor do disposto no art. 66, VII, da Lei n. 7.210/84.

Para efeitos de aplicação de sanções disciplinares, faltas graves são apenas aquelas expressamente elencadas nos artigos 50 e 51 da Lei de Execuções Penais, e, na análise de tais condutas, observam-se alguns conceitos jurídicos indeterminados, aos quais deverão se aplicar as noções já detalhadas em momento anterior. São conceitos indeterminados, no tocante à falta grave, por exemplo, “respeito a qualquer pessoa com quem deva relacionar-se”, “provocar acidente de trabalho”, “participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina”.

4.4 Certificação do Comportamento Carcerário para Fins de Progressão de Regime Prisional

A certificação do comportamento carcerário para efeitos de progressão de regime diferencia-se dos demais atos administrativos penitenciários até aqui analisados em face da ausência de caráter decisório, o que não diminui a sua importância nem retira sua natureza de ato administrativo discricionário.

A realização de tal certificação de comportamento carcerário encontra esteio normativo no texto do art. 112 da Lei de Execuções Penais, in verbis:

Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada de forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo Diretor do estabelecimento [...].

Dessarte, embora a progressão de regime prisional seja determinada pelo Juiz das Execuções Penais, a lei confere à autoridade administrativa penitenciária a

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responsabilidade pela expedição do que se convencionou chamar na prática forense de Atestado de Conduta Carcerária.

A expedição do Atestado de Conduta Carcerária, até mesmo por sua relevância, não pode padecer do vício de falta de motivação, não sendo procedimento aceitável que a autoridade penitenciária limite-se a classificar o comportamento do apenado, por exemplo, como excepcional, ótimo, bom, regular ou insatisfatório, sem qualquer referência às razões de fato que deram ensejo àquela classificação:

O vício da falta de motivação consiste na ausência de exteriorização dos motivos de fato e de direito do ato administrativo, bem como do discurso justificativo do processo de tomada de decisão[28].

Para o juiz, contudo, também aqui é difícil convalidar tal tipo de vício, mesmo porque o juiz, amiúde, não dispõe de elementos fáticos seguros para analisar a questão e aquilatar acerca do comportamento carcerário do apenado, de maneira que, na maioria das vezes, o máximo que o juiz poderá fazer quando se deparar com tal tipo de vício é determinar à autoridade administrativa que exponha as razões da classificação atribuída ao comportamento carcerário do apenado, o que acaba atrasando o processo, e, muitas vezes, prejudicando direitos do apenado.

Observe-se, contudo, que, episodicamente, é possível que o magistrado, em face de elementos contidos nos autos, disponha de dados fáticos seguros acerca do comportamento carcerário do apenado, e, nesse caso, poderá, quando da decisão acerca da progressão de regime, confrontar, fundamentadamente, os dados que são de seu conhecimento, os quais devem ser extraídos dos autos do processo de execução, com aqueles outros que lhe foram fornecidos pela Direção do estabelecimento carcerário.

Ainda quanto ao complexo tema, merece destaque o fato de que o bom comportamento carcerário, de acordo com o que já se demonstrou em momento anterior, retrata um conceito jurídico indeterminado, justificando o controle do Judiciário apenas quando a conceituação do comportamento do preso como bom, feita pela Administração, estiver indubitavelmente inserida naquela zona de certeza negativa (aquilo que com certeza não corresponde ao conceito) a que se referem Krell[29] e Mello[30], devendo a autoridade judiciária, no mais, e não logrando êxito em transportar o fato da zona de penumbra para a zona de certeza negativa, respeitar a classificação feita pela autoridade administrativa, desde que satisfatoriamente fundamentada.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo o que aqui se expôs, resta evidente que a responsabilidade por uma execução penal que se submeta ao primado da juridicidade há de ser compartilhada entre o Juízo das Execuções Penais, o Ministério Público e o Diretor do estabelecimento penitenciário, com a contribuição de todos os demais Órgãos da Execução Penal, onde a cada qual dessas autoridades é confiada por lei a prática de determinados atos.

Muitos desses atos, portanto, são atos decisórios confiados à discricionariedade da autoridade administrativa penitenciária, a qual deve atentar para a necessidade de os motivar de maneira explícita, clara, congruente e tempestiva, possibilitando o controle da atividade administrativa penitenciária pelo Juízo das Execuções Penais, controle esse que se valerá da proporcionalidade como parâmetro maior.

Outrossim, constata-se, do exposto, que, conforme o caso, o controle pelo Judiciário dos atos administrativos penitenciários será menos ou mais amplo, porém, em hipótese alguma, há que se falar em ato da Administração Penitenciária inteiramente imune ao controle jurisdicional, mesmo sob o argumento de que se tratam de atos discricionários.

Compete, portanto, ao administrador penitenciário, tomando consciência da importância das atribuições que lhe são conferidas por lei, observar o dever de motivar corretamente seus atos e velar para que se submetam aos princípios constitucionais, em especial àqueles que norteiam a Administração Pública.

Ao Juízo das Execuções Penais, por seu turno, compete coibir abusos e excessos quando verificados, ciente, contudo, de que mesmo o controle da atividade administrativa da Direção do estabelecimento carcerário sofre limitações, e nem sempre pode ser exercido de modo pleno, máxime quando a matéria envolver apreciação pela Administração Penitenciária de conceitos jurídicos verdadeiramente indeterminados ou de prognose, havendo, pois, hipóteses em que o juízo de valor ou de conveniência do Diretor do estabelecimento prisional quando da colmatação do ato deverá prevalecer, mesmo porque a Lei de Execuções Penais reconhece, também na figura do Diretor do estabelecimento penal, um importante agente concretizador de várias normas de textura aberta a serem aplicadas no plano da execução da pena.

REFERÊNCIAS

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______ . Obrigatoriedade de motivação explícita, clara, congruente e tempestiva dos atos administrativos. Revista Interesse Público. São Paulo, Editora Notadez, ano 2, n. 8, p. 44-52, out./dez. 2000.

[1] Muito se tem debatido acerca das finalidades da pena. Durkheim, por exemplo, não concebendo o crime como uma doença social, mas sim como um fenômeno social normal, assevera que “se o crime não tem nada de mórbido, a pena não pode ter como objetivo curá-lo, e a sua verdadeira função deve ser procurada noutro lugar” (DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 88). Por outro lado, no tocante ao efeito de prevenção geral, César Barros Leal pondera que “quanto à intimidação, remanesce o convencimento de que é prejudicada pela impunidade, incomodamente freqüente (no Brasil, a existência de milhares de mandados de prisão por cumprir é emblemática), como também pela constatação de que a pena privativa de liberdade não desencoraja, não intimida um vasto contingente populacional, em particular aqueles que já transitaram pelas vias sinuosas da criminalidade” (LEAL, César Barros. A prisão: o crepúsculo de uma era. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Ministério da Justiça, Brasília, n. 8, v. 1, p. 33-39, jul./dez. 1996, p. 37).

[2] Em uma visão garantista e dialética da execução penal, deveria haver no processo de execução penal uma mais nítida separação de atividades, sendo imprescindível uma maior atuação do Ministério Público no pólo ativo da relação processual, retirando do juiz a responsabilidade pela iniciativa da instauração de incidentes, o que muitas vezes acaba por comprometer sua necessária imparcialidade.

[3] MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. Dialética: São Paulo, 1999, p. 23.

[4] DWORKIN, Ronald. Trad. Nelson Boeira. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 57.

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[5] MORAES, Germana de Oliveira. Obrigatoriedade de motivação explícita, clara, congruente e tempestiva dos atos administrativos. Revista Interesse Público. São Paulo, Editora Notadez, ano 2, n. 8, p. 44-52, out./dez. 2000, p. 44.

[6] MORAES, Germana de Oliveira. Obrigatoriedade de motivação explícita, clara, congruente e tempestiva dos atos administrativos. Revista Interesse Público. São Paulo, Editora Notadez, ano 2, n. 8, p. 44-52, out./dez. 2000, p. 44.

[7] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1201.

[8] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1222.

[9] Em verdade, como adverte Celso Antônio Bandeira de Mello, não é propriamente o ato que é vinculado ou discricionário, mas “a apreciação a ser feita pela autoridade quanto aos aspectos tais ou quais” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Relatividade da competência discricionária. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, jan./fev./mar. 2006, p. 1. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 27 set. 2007).

[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Relatividade da competência discricionária. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, jan./fev./mar. 2006, p. 2. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 27 set. 2007.

[11] MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. Dialética: São Paulo, 1999, p. 42.

[12] ALEXY, Robert. Trad. Virgílio Afonso da Silva. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 116-120.

[13] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Tomo IV – direitos fundamentais. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 207.

[14] Embora seja aconselhável que a autoridade judiciária competente para as execuções penais aja sempre mediante provocação, não apenas no que se refere ao controle dos atos administrativos praticados pelo Diretor da Penitenciária, mas também no que diz respeito a progressões de regime e instaurações de incidentes de regressão, por exemplo, não é isso o que se vem observando no cotidiano forense da execução penal, onde se verifica que a execução penal é movida principalmente por impulso da própria autoridade judiciária, talvez por força da interpretação comumente dada ao inciso VI do art. 66 da Lei das Execuções Penais (“compete ao juiz da execução zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança”), o que aproxima a execução penal do sistema inquisitivo, fato este que decorre de diversos fatores que vão desde a inibição do Ministério Público na atuação perante a execução penal até a

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capacidade postulatória do preso, que acaba por enfraquecer sua própria defesa técnica. Quanto à atuação do Ministério Público na execução penal, Jason Albergaria adverte que “o MP terá que se conscientizar de sua eminente função de órgão da execução penal”, esclarecendo que “o MP, como órgão da execução penal, não se limita ao bojo do processo ou ao estreito espaço de seu gabinete” (ALBERGARIA, Jason. O Ministério Público da execução penal. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Ministério da Justiça, Brasília, n. 9, v. 1, p. 75-89, jan./jun. 1997, p. 81-87). No mais, enquanto por força do art. 66 da Lei de Execuções Penais compete ao juiz das execuções decidir sobre unificação de penas, progressões e regressões, incidentes da execução, por força do art. 68 da mesma lei compete ao Ministério Público requerer a instauração dos incidentes de excesso ou desvio de execução, requerer progressões e regressões de regimes prisionais, o que corrobora o entendimento aqui esboçado de que não é conveniente para o processo que o juiz da execução penal instaure incidentes, progrida regimes ou unifique penas sem que a tanto seja provocado pelo Ministério Público ou pela defesa, pessoal ou técnica, do apenado.

[15] COSTA, Álvaro Mayrink da. Reflexões críticas e propostas para a execução penal. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Ministério da Justiça, Brasília, n. 10, v. 1, p. 15-24, jul./dez. 1997, p. 22.

[16] Assim prescreve o art. 31, caput, da Lei n. 7.210/84: “O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade”.

[17] A impossibilidade de limitação de acesso ao Judiciário é direito fundamental, consoante o enunciado normativo do art. 5o, XXXV, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

[18] MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. Dialética: São Paulo, 1999.

[19] KRELL, Andréas J. Discricionariedade administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista da Escola da Magistratura Federal da 5a. Região. Recife, Tribunal Regional Federal da 5a. Região, n. 8, p. 177-224, 2004, p. 211.

[20] KRELL, Andréas J. Discricionariedade administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista da Escola da Magistratura Federal da 5a. Região. Recife, Tribunal Regional Federal da 5a. Região, n. 8, p. 177-224, 2004.

[21] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Relatividade da competência discricionária. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, jan./fev./mar. 2006. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 27 set. 2007, p. 6.

[22] Há, contudo, respeitáveis opiniões que defendem que essa zona de penumbra, de dúvida, somente existirá em abstrato, cabendo ao juiz dissipá-la ante um caso concreto. Nesse sentido, observa García de Enterría (apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Relatividade da competência discricionária. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, jan./fev./mar. 2006. Disponível em

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<http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 27 set. 2007, p. 5) que, “no obstante la indeterminación del concepto, admite ser precisado en el momento de la aplicación”, uma vez que “al estar refiriéndose a supuestos concretos y no a vaguedades imprecisas o contradictorias es claro que la aplicación de tales conceptos ala calificación de circunstancias concretas no admite más que una solución: o se da o no se da el concepto: o hay buena fé o no loa hay; o el precio es justo o no lo es; o se ha faltado a la probidad o no se ha faltado”.

[23] Cf. art. 5o, XII, da Constituição Federal de 1988.

[24] Em verdade, a única sanção disciplinar ao apenado cuja competência para aplicação é exclusiva do Juízo das Execuções Penais é a inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado, a teor do estabelecido pelos artigos 53, V e 54, caput, ambos da Lei n. 7.210/84.

[25] MORAES, Germana de Oliveira. Obrigatoriedade de motivação explícita, clara, congruente e tempestiva dos atos administrativos. Revista Interesse Público. São Paulo, Editora Notadez, ano 2, n. 8, p. 44-52, out./dez. 2000, p. 48.

[26] Apud MORAES, Germana de Oliveira. Obrigatoriedade de motivação explícita, clara, congruente e tempestiva dos atos administrativos. Revista Interesse Público. São Paulo, Editora Notadez, ano 2, n. 8, p. 44-52, out./dez. 2000, p. 51.

[27] MORAES, Germana de Oliveira. Obrigatoriedade de motivação explícita, clara, congruente e tempestiva dos atos administrativos. Revista Interesse Público. São Paulo, Editora Notadez, ano 2, n. 8, p. 44-52, out./dez. 2000, p. 52.

[28] MORAES, Germana de Oliveira. Obrigatoriedade de motivação explícita, clara, congruente e tempestiva dos atos administrativos. Revista Interesse Público. São Paulo, Editora Notadez, ano 2, n. 8, p. 44-52, out./dez. 2000, p. 47.

[29] KRELL, Andréas J. Discricionariedade administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial. Revista da Escola da Magistratura Federal da 5a. Região. Recife, Tribunal Regional Federal da 5a. Região, n. 8, p. 177-224, 2004.

[30] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Relatividade da competência discricionária. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, jan./fev./mar. 2006. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em 27 set. 2007.