François Dosse - Os Engajamentos Políticos de Gilles Deleuze

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    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 53, p. 151-170, jul./dez. 2010. Editora UFPR

    OS ENGAJAMENTOS POLTICOS DE GILLES

    DELEUZE*

    Gilles Deleuzes Political Commitments

    Franois Dosse**

    RESUMO

    Por trs da obra losca de Gilles Deleuze, voltada notadamente construo de conceitos, percebe-se sua propenso defesa de causas

    polticas, pontuais e concretas. A partir de maio de 1968, ele participade movimentos sociais (GIP) e de debates polticos e intelectuais queanimaram a dcada de 1970. Seus escritos loscos atestam seu espritorebelde e sua averso a toda forma de poder e de opresso.

    Palavras-chave:Maio de 1968; movimentos sociais; debates inte-lectuais.

    ABSTRACT

    Behind the philosophical work of Gilles Deleuze, directed mainly to theconstruction of concepts, we can make out his propensity for politicaladvocacy, both timely and concrete. From May 1968, he participatedin social movements (GIP) and political and intellectual debates thatanimated the 1970s. His philosophical writings attest to his rebel spiritand his aversion to all forms of power and oppression.

    Key-words:May 1968; social movements; intellectual debates.

    O horizonte politico, no sentido amplo do termo, atravessa o pen-samento de Gilles Deleuze e seu trajeto intelectual pontuado por engaja-mentos. No entanto, sua posiao difere-se daquela do intelectual engajado,

    porta-voz da justia, frente razo de Estado, maneira de Sartre, duranteo mesmo periodo. Ou melhor, ele seria um intelectual especco, tal comoo deniu seu amigo Foucault, ou seja, ele colocaria suas competncias a

    * Traduzido para o portugus por Germaine Mandelsaft.** Professor na Universit de Paris XII e no Institut dtudes Politiques, Paris.

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    servio do espao pblico. Se, nesse trabalho limitado, a nossa inteno identicar os momentos em que Deleuze deixou de lado seu trabalho decriador de conceitos para tomar posies pblicas, isso no signica quehaja uma fratura entre o lsofo e o poltico. Pois, do incio at o m, desdeseus primeiros trabalhos sobre Hume at as suas ltimas reexes sobreo virtual, toda a sua obra circunscreve-se no espao do poltico, aquele dareabertura incessante das foras de criatividade e do enfraquecimento daslimitaes institucionais. Sem dvida, sua travessia de maio de 1968 e seuencontro, em seguida, com Flix Guattari, aumentaram a visibilidade desseengajamento poltico.

    Esse gesto (de uma conscincia poltica) se enraiza, provavelmen-te, num terreno histrico, comum a ambos, isso , o trauma da SegundaGuerra Mundial que eles atravessaram, jovens demais, para desempenharum papel ativo. A resistncia dos dois barbrie foi adiada e podemos atsupor que a revolta dos mesmos poderia ser vista como um efeito retardadodo terremoto representado pela vitria do nazismo na viso do Ocidente ede seus valores. Criar novos conceitos torna-se um imperativo absoluto:o traumatismo da barbrie nazista o obriga a retomar, novamente, a tarefado pensar. Pensar impe ser digno de um evento que Deleuze e Guattari

    atravessaram bastante jovens. O pensar pode ser encontrado atravs da suaabordagem da histria do cinema, que Deleuze vai se inspirar no trabalhodo crtico francs Andr Bazin.

    A losoa no pode sair desarmada da travessia da tragdia hist-rica. Pelo contrrio, ela no pode abdicar da sua funo: Certamente, noh razo para acreditar que no podemos mais pensar depois de Auschwitz,e que somos todos responsveis pelo nazismo1.

    Mas, um sentimento subsiste e que, segundo a incandescente

    formulao de Primo Levi : A vergonha de ser um homem. Emboracada um de ns seja maculado pelo nazismo, ns no somos responsveispor ele. H catstrofe, mas a catstrofe consiste no fato da sociedade deirmos ou de amigos terem passado por uma tal prova, impedindo queeles possam se olhar [novamente] um para o outro, ou cada um para si

    1 DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Flix. Quest-ce que la philosophie?Paris: Les ditonsde Minuit, 1991, p. 102. PRADO Jr., Bento; ALONSO MUOZ, Alberto (Trad.). O que a Filosoa?So

    Paulo: Editora 34, 1992, p. 138.

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    mesmo, sem [ressentirem] uma fadiga, talvez uma desconana2. ApsAuschwitz, ns no podemos mais ter o candor dos gregos. Encontramos,nessa instncia, uma outra metafsica que restaura a relao com o caos

    para criar foras vitais e no mortferas. Este sentimento de vergonha um dos mais poderosos motivos da losoa. No somos responsveis pelasvtimas, mas diante das vtimas3.

    Esta transformao do pensamento, que se tornou imperativa, profundamente ressentida por Deleuze, como atesta a correspondnciamantida com Dionys Mascolo4. Em seguida publicao do livro deMascolo,Autour dun effort de mmoire,em 1987, Deleuze exprime sua

    admirao pela obra por ter, segundo ele, renovado, de maneira to intensa,o relacionamento entre o pensamento e a vida. Essa oportunidade o levaa questionar a armao de que tal transtorno da sensibilidade geral s

    pode conduzir a novas disposies do pensamento5. Deleuze pressente queMascolo possui um segredo. Mascolo responde que esse suposto segredo6talvez fosse, no fundo, somente um pensamento que descona do prprio

    pensamento. E isso um sofrimento. No h inteno de segredo, armaMascolo, mas este sofrimento constitui o alicerce para eventuais amizades.

    Na sua resposta, Deleuze sugere uma inverso da ordem das coisas

    e lhe pede que considere a amizade como primeira, fundadora, e no comosegunda, compensatria: Com voc, e tambm com Blanchot, a amiza-de. Isto implica uma reevaluao total da losoa, j que vocs so osnicos que entendem, ao p da letra, a palavraphilos7. A travessia dessaexperincia e da sua memria requer repensar e passar pelo crivo da crticaalgumas teses cannicas da histria do pensamento: Como os conceitos(de Heidegger) no seriam, intrinsicamente, maculados por uma reterrito-rializao abjecta?8E para preparar devires de liberdade, no podemos

    2 Ibid., p. 102. p. 139.3 Ibid., p. 103. p. 140.4 Correspondance Dionys Mascolo-Gilles Deleuze.Lignes,n. 33, mars 1998, p. 222-226;

    tambm in: DELEUZE, Gilles.Deux rgimes de fous.Paris: Les ditons de Minuit, 2003, p. 305-310.5 MASCOLO, Dionys.Autour dun effort de mmoire.Paris: M. Nadeau, 1987, p. 20.6 MASCOLO, Dionys. Lettre Gilles Deleuze, 30 avril 1988. In:Deux rgimes de fous,

    op. cit., p. 306.7 DELEUZE, Gilles. Lettre Dionys Mascolo, 6 aot 1988,Ibid., p. 307.8 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Quest-ce que la philosophie?Op. cit., p. 104.

    PRADO Jr., Bento; ALONSO MUOZ, Alberto (Trad.). O que a Filosoa?So Paulo: Editora 34, 1992,

    p. 141.

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    recuar diante da necessidade de criar: Falta-nos resistncia ao presente.A criao de conceitos faz apelo por si mesma, a uma forma futura, invocauma nova terra e um povo que no existe ainda9.

    Evitar a abjeco requer a experimentao de conceitos criados:pensar experimentar, mas a experimentao sempre o que se est fa-zendo10. Essencialmente losca, a experimentao no pode se gabarde possuir qualquer territrio, passado, presente ou futuro: Nunca me senticomovido por aqueles que dizem que deve-se ir alm da losoa. Desdeque haja necessidade de criar conceitos, haver a losoa, pois ela a suadenio. E os problemas crescem... Fazer losoa criar novos concei-

    tos em funo de problemas que ocorrem hoje. O ltimo aspecto seria: oque quer dizer evoluo dos problemas? As foras histricas, sociais, mastambm um devir do pensamento, resultam numa colocao diferente de

    problemas diferentes. H uma histria do pensamento que no pode serreduzida a um conjunto de inuncias. H um devir do pensamento que

    permanece misterioso11.Se Deleuze e Guattari sofreram, lateral e retrospectivamente, os

    efeitos do trauma da Segunda Guerra Mundial, por outro lado eles partici-param, plenamente, do acontecimento subsequente, isto , de Maio de 68.

    Particularmente sensveis s questes do tempo em que vivem, eles perce-bem, imediatamente, seu valor de ruptura instauradora. Embora Deleuzeno seja um militante revolucionrio, como seu futuro amigo Guattari, esseacontecimento vai preparar o encontro entre os dois, tornando-o frutfero.Sem Maio de 68, bem provvel que esse encontro nunca tivesse ocorrido.O evento Maio 68 foi essa ruptura no uxo, necessria para a liberao dacombinao das foras criativas de ambos. Esse apego ao impulso vital

    jamais ser negado, nem por Guattari, nem por Deleuze.

    A primeira obra escrita em conjunto, O anti-dipo, est, nitida-mente, enraizada no movimento de Maio. Ela esboa as modalidades deum pensamento renovado do mundo. Junto com Guattari, Deleuze armarmuito mais tarde, em 1984, que s renegados podem dizer que um evento

    9 Ibid., p. 104. p. 141.10 Ibid., p. 106. p. 143.11 DELEUZE, Gilles.LAbcdaire de Gilles Deleuze (avec Claire Parnet).Paris: Pierre-

    Andr Boutang, 1988.

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    pode ser ultrapassado; o acontecimento atravessa um indivduo da mesmamaneira que ele atravessa a sociedade. Respondendo tentao reducionistadas cincias sociais, ele arma: Maio de 68 participa mais da ordem de umacontecimento puro, livre de qualquer causalidade normal ou normativa.Sua histria uma sucesso de instabilidades e de utuaes simplicadas.Houve muita agitao em 68, mas no isso que importa. O que importa que foi um fenmeno de clarividncia como se uma sociedade, de repente,visse o que continha de intolervel e tambm visse a possibilidade de algomais. um fenmeno coletivo, sob a forma: [me d] o que possvel,seno eu sufoco....O possvel no preexiste, ele criado pelo evento.

    uma questo de vida. O evento cria uma nova existncia, que, por sua vez,produz uma nova subjetividade12.

    A ruptura instauradora: Maio de 1968

    Em Maio de 68, Deleuze leciona na Universidade de Lyon e, de

    imediato, torna-se bastante receptivo aos protestos estudantis. Ele um dospoucos professores universitrios que declara, publicamente, seu apoio,participando das assembleias gerais e das passeatas dos estudantes deLyon. Alis, ele o nico professor do Departamento de Filosoa presenteno movimento. Ele simpatiza com os estudantes, escuta-os sem jamais seerigir em pregador de verdades. De fato, Deleuze aderiu, totalmente, aomovimento. Quando, na sexta-feira, dia 10 de Maio de 1968, Maurice deGandillac, seu orientador de tese de doutorado [dtat], passa por sua casaem Lyon, recebido com cartazes, bandeiras vermelhas e faixas penduradasna varanda pelos lhos de Deleuze, Julien e Emilie.

    Num jantar preparado para Jeannette Colombel [professora delosoa, escritora e militante poltica] e seu marido neste ms de maio, umestudante chega, inesperadamente, e anuncia que um projeto de intervenoenrgica pela extrema direita est em preparao, visando provocar uma

    12 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. Mai 68 na pas eu lieu.Les Nouvelles Littraires,

    3-9 mai 1984; repris dans DELEUZE, Gilles.Deux rgimes de fous

    , op. cit., p. 215-216.

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    briga contra o piquete dos universitrios: Gilles e eu descemos as escadas,apressadamente, para irmos ao encontro dos nossos estudantes13.

    Deleuze sensvel ao movimento de Maio, constituindo-se numaexceo no meio acadmico de Lyon, embora sua prioridade seja nalizarsua tese de doutorado e defend-la no outono de 68. Durante o vero, ele sededica a essa tarefa, na propriedade da famlia, o Mas Revery, localizadana regio de Limoges. Mas seu cansao to grande que o leva a consultarum mdico, que diagnostica a repetio de uma velha tuberculose, resistentea antibiticos e responsvel por uma enorme perfurao em um dos pulmes.Ele necessita ser internado s pressas, sem que seja feito um procedimento

    cirrgico, de modo a no comprometer sua defesa de tese, que adiada parajaneiro de 1969. Portanto, Deleuze apresenta na Sorbonne, no incio de 1969,uma das primeiras teses aps o movimento de Maio; mas os confrontos domovimento de maio ainda esto longe de um trmino.

    Publicada neste mesmo ano, essa tese de doutorado,Diferena erepetio, a sua grande obra, por meio da qual ele abandona o longo perio-do da histria da losoa para expressar suas prprias posies loscas.Conhecendo seu grave estado de sade, o jri decide encurtar a duraoda defesa, de modo a no cansar o candidato, cujo trabalho considerado

    por todos de qualidade excepcional. Mas, sobretudo, o jri teme a chegadade intrusos, que no foram convidados para a defesa, e questiona Deleuzesobre a possibilidade da continuao da sua defesa. Os membros do jri

    tinham uma obsesso: como evitar os bandos [de agitadores]que se encontravam na Sorbonne. Eles estavam com medo. Eume lembro que o presidente do jri havia dito: existem duas

    possibilidades, ou fazemos a defesa no andar trreo, que tem avantagem de ter duas sadas, mas a desvantagem que os bandosvagueiam por l. Ou, ento, continuamos a defesa no primeiroandar, porque esses bandos no costumam subir at l, mas huma desvantagem: s existe uma mesma entrada e sada. Ento,quando defendi minha tese, nunca cheguei a cruzar o olhar do

    presidente do jri, porque seus olhos estavam grudados na porta,para espiar se os bandos estavam chegando14.

    13 COLOMBEL, Jeannette. Deleuze-Sartre: pistes. In: BERNOLD, Andr; PINHAS, Richard(Dir.).Deleuze pars.Paris: Hermann, 2005, p. 43.

    14 DELEUZE, Gilles.Abcdaire, com Claire Parnet, op. cit., 1988, lettre P. Professeur.

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    Aps a apresentao e defesa desta tese, Deleuze foi submetidoa uma cirurgia grave uma toracoplastia que o deixou com apenas um

    pulmo, alm de uma insucincia respiratria. Isso o obrigou a se sub-meter a perfuses repetidas at o nal de sua vida. Essa cirurgia necessitoutambm de um longo periodo de repouso, um ano inteiro de convalescena,que ele passou na companhia de sua esposa, em sua propriedade da regiodo Limousin, longe de toda agitao.

    nesse momento de enfraquecimento vital e de afastamento tempo-rrio e forado que Deleuze fez o encontro fundamental com Flix Guattari,que lhe forneceu um segundo flego. Sem o acontecimento Maio de 68,

    esse encontro no teria ocorrido.Segundo o ensinamento de Joel Bousquet,mencionado frequentemente por Deleuze, em 1967, ns devemos ser dig-nos dos acontecimentos, carregarmos o brilho da chegada dessa ruptura,transformando-a em devir libertador. Portanto, a primeira obra escrita emconjunto com Guattari, O anti-dipo, est claramente enraizada no movi-mento de Maio de 68. Ela esboa as modalidades de um pensamento reno-vado do mundo moderno, apresentando o sinal da efervescncia intelectualdo perodo. Comentando a publicao dessa primeira obra conjunta, FlixGuattari conrmou esse enraizamento: Maio de 68 nos abalou, a Gilles e

    a mim, como tambm a tantos outros. Ns no nos conhecamos, mas esselivro foi, em todo caso, uma continuao de Maio de 196815.

    O GIP: um modelo de mquina de guerra

    De natureza pouco ativista e diminudo por seus graves problemasrespiratrios, Deleuze, no entanto, abriu uma exceo e se engajou naorganizao criada por seu amigo Foucault, no incio dos anos 70, o GIP(Grupo de Informaes sobre as Prises). Este grupo derivava diretamenteda corrente maosta e da vontade de proteo aos militantes da GP (EsquerdaProletria), mas logo o grupo se afastou deste primeiro objetivo. O GIP se

    15 GUATTARI, Flix. Entretien surLAnti-dipe.LArc, n. 49, 1972, in: DELEUZE, Gilles.Pourparlers.Paris: Les ditons de Minuit, 1990, p. 26.

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    organizou de maneira completamente descentralizada, tendo por base umgrupo por priso. Este modelo parisiense rapidamente se espalhou pelas

    prises do interior da Frana, onde alguns ativistas encontravam-se presos.Imediatamente, Deleuze foi seduzido por este tipo de organizao,

    que parecia encarnar um grupo voltado a uma resistncia prtica e ecazque, ao mesmo tempo, havia rompido com toda forma de centralismo e de

    burocracia e que se denia como uma microestrutura: O GIP desenvol-veu um dos nicos grupos de esquerda, funcionando sem centralizao...Foucault conseguiu no se comportar como um lder16. Alegando que umatenso crescente existia nas prises, aps a tomada de refns e a execuo

    dos mesmos, por Buffet e Bontemps, em setembro de 1971, na priso deClairvaux, o ministro da Justia decidiu cancelar a entrega dos presentesde Natal enviados pelas famlias dos presos, como um castigo coletivo,visando acalmar a ansiedade dos guardas.

    Essa deciso atiou a contestao latente nas prises; durante oinverno de 1971-1972, havia trinta e dois movimentos de revolta, algunsdos quais chegaram at a destruir as celas e a ocupar os telhados. Na noitede Natal, em frente priso da Sant, em Paris, o GIP organizou uma ma-nifestao da qual participaram Foucault e Deleuze.

    Ao longo do ms de dezembro de 1971, violentos confrontos ocor-reram, sobretudo, na priso de Toul, onde aproximadamente quinze presosforam feridos. O GIP promoveu, fora da priso, nesta cidade, o ComitVerdade e Justia e, no dia 16 de dezembro, Foucault deu uma entrevistacoletiva para divulgar o relatrio da psiquiatra Edith Rose, to devastador

    para as autoridades que a mesma acabou sendo demitida de suas funes.Entre outras coisas, ela revelou que os presos, na solitria, podiam caramarrados numa cama de metal por vrios dias: Na sua chegada priso,

    o detento est submetido ao seguinte procedimento, excludo pelos prpriosregulamentos da administrao penitenciria, no entanto muito praticado.O ru tem que se despir, se inclinar e tossir. Supostamente para ver se noh nada escondido no orifcio17. No dia 27 de abril, Deleuze testemunhoudurante o processo para defender o jornal que tinha questionado a inspeo

    16 DELEUZE, Gilles. Aula de 28 de janeiro de 1986, Universidade de Paris 8, arquivossonoros da BNF (Biblioteca Nacional da Frana).

    17 Mort dun surveillant chef. Guignol, 9 septembre 1971.

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    dos detentos e havia armado que esse procedimento era um sistema dehumilhao.

    Os intelectuais do GIP foram, algumas vezes, obrigados a viajarpara o interior da Frana. Em Nancy, por exemplo, o motim dos presos foiduramente reprimido e seis entre os duzentos amotinados foram julgados

    pelos tribunais. Gilles Deleuze, Daniel Defert, Hlne Cixous, Jean-PierreFaye, Jacques Donzelot e alguns outros se deslocaram at Nancy para parti-cipar de uma manifestao. Foucault foi detido, aps ter tentado ajudar umimigrante que estava sendo espancado. Por isso, no pde estar presente. Na

    praa principal de Nancy, o lsofo Jean-Pierre Faye conversou com um

    jornalista do dirioLEst Rpublicainque disse-lhe que essa manifestaono apresentava o menor interesse. No entanto, Faye o aconselhou a esperaralguns minutos. Ele mal havia pronunciado essas palavras profticas e ostiras caram em cima deles. Deleuze subiu num banco para discursar, foirapidamente interrompido pelo ataque da polcia e disse o seguinte:

    Como meu chefe no est presente, vou falar no lugar dele. Porcausa das suas diculdades respiratrias e do ataque da polcia, Deleuzeteve que deitar no cho, j em um estado semicomatoso. Muito preocupadocom a sade dele, o jovem Jacques Donzelot, amigo do Foucault, cou ao

    seu lado. Quando Deleuze acordou, ele disse a Donzelot: Ah, voc estaqui? muito gentil! Os dois voltaram de trem, juntos, para Paris, e deramincio a uma amizade ao longo das quatro horas de viagem.

    Em 17 de janeiro de 1972, a m de protestar contra a represso nasprises, o GIP mobilizou vrios intelectuais e conseguiu reunir Sartre e Fou-cault no mesmo ato de contestao. Um pequeno grupo de personalidadesquis penetrar no Ministrio da Justia, na Place Vendme, em Paris, para daruma entrevista coletiva18. Todas essas pessoas caram sentadas no cho do

    corredor do Ministrio, para ouvirem a declarao dos detentos de Melun,lida por Foucault. A interveno da polcia se fez sem entusiasmo, sob asvaias e os gritos de Pleven [ministro da Justia] na cadeia ou Plevenassassino!: Os tiras nos empurram cada vez mais. Ficam irritados. Sartre

    18 Entre outros, estiveram presentes o casal Deleuze, Claude Mauriac, Jean-Paul Sartre,Michelle Vian, Jean Chesneaux, Michel Foucault, Daniel Defert, Andr Glucksmann, Ren Schrer, SylvieMarion, Jean-Pierre Faye, Jrme Peignot, Marianne Merleau-Ponty, Monique Antoine, Jacques-AlainMiller, Franois Rgnault, Dominique Desanti, Jean-Pierre Bamberger, Yves Hardy, Christian Descamps,

    o fotgrafo Elie Kagan

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    resiste. Foucault resiste. Faye resiste. Deleuze resiste e no consegue pararde rir. Mas os tiras acabam dominando o confronto, e conseguem empurraro grupo para fora do prdio, at a calada19. Finalmente expulsos do Mi-nistrio, que estava protegido por uma tripla leira de policiais armados eusando capacetes, a entrevista coletiva realizou-se na sede da Agncia de

    Notcias do jornalLibration(APL), na rua Dussoubs.Pouco tempo depois, no dia 31 de janeiro de 1972, Deleuze escreveu

    emLe Nouvel Observateuro artigo: O que os presos esperam de ns...20Ele lembrou as reivindicaes dos mesmos em relao ao nal da censura,s salas do tribunal, ao isolamento em cela de segurana, explorao do

    trabalho e liberao condicional. Segundo ele, a expresso dos prisioneirosera algo inteiramente novo que deixava de ser uma consso pblica,sendo mais uma crtica personalizada21: Chegar o dia em que nenhumguarda poder agredir um detento sem que, no dia seguinte, ou um ms de-

    pois, ele seja publicamente denunciado por aquele que foi espancado ou poralguma testemunha22. Durante todas essas manifestaes, Foucault cou

    particularmente atento e preocupado com a sade de seu amigo Deleuze.Assim, no dia 16 de dezembro de 1972, aps confrontos com a pol-

    cia, Michel Foucault, muito preocupado e plido, indagou [o escritor] ClaudeMauriac: Voc viu o Deleuze?... Espero que no tenha sido preso...23.

    Somos todos grupsculos

    Alm das aes referentes s prises, o GIP se mobilizou tambm

    em torno da represso e do racismo. Na primavera de 1971, o caso Jaubert

    19 ALAIN, in:Michel Foucault, une journe particulire.Paris: Aedelsa d., 2004, p. 15.Titre: Michel Foucault, une journe particulire. Type de document: texte imprim. Auteur: Alain Jaubert;Auteur: Philippe Artires; Auteur: Elie Kagan; Photographe Editeur: Aedelsa (Lyon). Anne de publication:2004.

    20 DELEUZE, Gilles.Le Nouvel Observateur, 31 de janeiro de 1972.21 Ibid.; encaixado emLIle dserte et autres textes.Paris: Les ditons de Minuit, 2002, p.

    286.22 Ibid., p. 287.23 MAURIAC, Claude.Mauriac et Fils.Paris: Grasset, 1986, p. 388.

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    veio tona. Jornalista na revista semanal Le Nouvel Observateur, AlainJaubert testemunhou a brutalidade da polcia durante uma manifestaode antilhanos. Ele acabou sendo levado num camburo e espancado pelos

    policiais militares. Uma comisso de informao foi constituida e deuuma entrevista coletiva no dia 21 de junho de 1971. Foucault anunciou aformao desta comisso em uma reunio presidida por Claude Mauriac.Aps uma interveno de Denis Langlois, Deleuze exprimiu o seguinte: As

    primeiras perguntas foram colocadas a partir de um comunicado emitidopela Administrao Central da polcia, no dia 30 de maio... A razo pela qualeste comunicado to incrvel porque ele no pretende ser acreditado.

    Ele tem um outro objetivo, que a intimidao...24

    O outro caso disse respeito ao Djellali, o nome de um jovem ar-gelino que espancou a zeladora de seu prdio, no bairro popular da GouttedOr, em Paris. O marido da zeladora presenciou a cena, apanhou sua armae matou, acidentalmente, segundo ele, o argelino Djellali. O contexto detenso racial crescente foi revelado atravs desse caso e manifestaesforam organizadas contra esse crime racista, no outono deste ano de 1971.Foucault se responsabilizou em constituir uma nova comisso de inqurito,que reuniu, entre outros, Deleuze, Jean Genet, Claude Mauriac, Jean-Claude

    Passeron. Em 27 de novembro de 1971, Sartre e Foucault lideraram umamanifestao no bairro da Goutte dOr e o cartaz que eles apresentaram multido era um Apelo aos trabalhadores do bairro, assinado por Deleuze,Foucault, Michel Leiris, Yves Montand, Jean Genet, Sartre, Simone Signoret.

    Esses atos de militantismo, organizados por Deleuze e Foucault emconjunto, proporcionaram um dilogo entre os mesmos sobre a deniodas novas misses dos intelectuais em relao ao poder. No decorrer destaintrevista, Deleuze armou, em 1972: somos todos grupsculos25. De-

    leuze via no GIP a expresso de um novo tipo de organizao que poderiarenovar a relao entre teoria e prtica, colocando-as em um quadro maisconcreto, local e parcial. Para ns, o intelectual terico deixou de ser umsujeito, uma conscincia representante e representativa26.

    24 DELEUZE, Gilles. Arquivos Universit de Paris 8, BDIC.25 DELEUZE, Gilles. Les intellectuels et le pouvoir.LArc, n. 49, 4 mars 1972; tambm in:

    LIle dserte et autres textes.Paris: Les ditons de Minuit, 2002, p. 289.26 Ibid., p. 289.

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    Por sua vez, Foucault considerava que o papel do intelectual,enquanto encarnao da verdade, havia terminado, pois a democratizaoda sociedade havia possibilitado que cada categoria social exprimisse,da melhor maneira possvel, suas insatisfaes. No entanto, podemosconsiderar que a maneira como eles encaravam a relao entre a teoria, aconceitualizao, por um lado, e a prtica, a experimentao, por outro, era

    bem diferente. Pois, se Foucault frequentava o hospital psiquitrico SainteAnne, se interessava pela psiquiatria, criava o GIP, em seguida escreviaVigiar e punire trabalhava sobre a analtica do poder, por sua vez Deleuzee Guattari produziam conceitos e mquinas e testavam o que esses ltimos

    poderiam produzir na realidade social.Esta a razo pela qual a dupla Deleuze/Guattari parecia to nica erica. Com efeito, Guattari se inscrevia em uma variedade de prticas sociais,ligadas militncia, psicoterapia institucional, bem como a vrias insti-tuies de pesquisa, como o CERFI27, que eram lugares de experimentaode conceitos, elaborados em conjunto com Deleuze, enquanto que Foucaulttentava propor um conjunto de ferramentas: Eu gostaria que meus livrosfossem uma espcie de tool-box, onde os outros pudessem encontrar umaferramenta com a qual pudessem fazer o que quisessem em suas reas,

    dizia Foucault28.

    Solidariedades internacionais

    A Itlia vivenciava, em 1977, um Maio de 68 tardio, com muitaefervescncia e um ambiente muito tenso, designado como anos de chum-bo. Um vasto movimento de autonomia crescia nos campiuniversitrios,amplamente inspirado pelas teoria dOanti-dipo, traduzido em italiano,em 1975. Mas os ativistas de extrema esquerda enfrentavam uma repres-so que se tornava cada vez mais intensa e apelaram solidariedade dos

    27 Centre dtude, de Recherche et de Formation Institutionnelles.28 FOUCAULT, Michel. Prisons et asiles dans le mcanisme du pouvoir. Entrevista com M.

    DEramo.Avanti, n. 53, 3 mars 1974; tambm in:Dits et crits, tome 2, p. 523.

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    intelectuais franceses. Foi nessa conjuntura que Deleuze e Guattari mani-festaram sua solidariedade, despertando, por sinal, uma polmica acirradaentre os italianos.

    Em julho de 1977, Bifo, articulador da Rdio Alice em Bolonha,que havia sido cercada pela polcia, refugiou-se em Paris, mas foi preso eameaado de extradio. Finalmente, considerado como no passvel deextradio, Bifo foi acolhido como refugiado poltico e, junto com Guattari,redigiu um apelo condenando a represso contra o movimento na Itlia. Esteapelo questionava e condenava tanto o poder democrata-cristo quanto a

    poltica de compromisso histrico do PCI (Partido Comunista Italiano).

    Ele foi assinado, entre outros, por Gilles Deleuze, Michel Foucault, RolandBarthes, Philippe Sollers, Julia Kristeva. Bifo foi pessoalmente pedir aassinatura a Jean-Paul Sartre.

    Mais adiante, em 1979, outro ativista da extrema esquerda, o lso-fo Toni Negri, foi preso na Itlia. Antes do incio do processo judcial, logoaps a priso de Negri, Gilles Deleuze proclamou a inocncia do mesmo,em uma carta escrita para os juzes, publicada em La Republica,em 10de maio de 197929. Ele se mostrou surpreso que fosse possvel processaralgum, e prend-lo, sem a existncia de algo tangvel no processo penal e

    usou a mesma analogia feita posteriormente por Carlo Ginzburg, no nal dojulgamento de seu amigo Sofri. Ou seja: os interrogatrios eram similaresqueles realizados pela Inquisio.

    Gilles Deleuze enunciou alguns princpios que, neste caso judicial,concerniam a todos os democratas: Em primeiro lugar, a justia deve obe-decer a um certo princpio de identidade30. No entanto, neste caso preciso,a acusao no tem a mnima consistncia identicvel para sustentarum procedimento penal. Em segundo lugar, a investigao e o inqurito

    devem ter um mnimo de coerncia, segundo o princpio de disjuno oude excluso. O ru no pode ter estado em um local e, ao mesmo tempo,em um outro... enquanto que, nesse caso, a acusao age pela incluso,adicionando os termos contraditrios31. Em terceiro lugar, a imprensatambm procede pela simples acumulao de rumores e boatos e, segundo

    29 DELEUZE, Gilles. Lettera aperta ai guidieri di Negri.La Republica, 10 de maio 1979;tambm in: DELEUZE, Gilles.Deux rgimes de fous. Paris: Les ditons de Minuit, 2003, p. 115-159.

    30 Ibid., p. 156.

    31 Ibid., p. 157.

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    ela, Toni Negri possui um dom especial de ubiquidade, pois ele capaz deestar, ao mesmo momento, em Roma, em Milo e em Paris. Finalmente,Gilles Deleuze respondeu, antecipadamente, violenta crtica dos italianosaos intelectuais franceses, acusando-os, em relao ao apelo de Bolonha,de interferir no que no lhes dizia respeito, enfatizando que Negri umterico, um intelectual importante na Frana e na Itlia32.

    Pouco tempo depois, por ocasio da publicao do livro de ToniNegri,Marx para alm de Marx, pela Editora Bourgois, Gilles Deleuzeescreveu no jornal Le Matin de Parisum artigo sobre a inocncia desseautor. Nesse texto, ele sugeria aos juzes que investigavam as intenes de

    Negri para determinar seu grau de envolvimento, no caso Aldo Moro, delerem seu livro que, segundo Deleuze, era [...], literalmente, uma provade inocncia33.

    Abaixo o trabalho mal feito

    Deleuze permaneceu longe do borbulho meditico, continuandoinexvel nesse ponto, uma vez que recusava qualquer forma de midiatizaoe nunca desviou desse princpio. Se ele odiava todo tipo de controvrsiaque o afastasse da construo positiva de sua prpria obra, ele abriu, noentanto, uma exceo a essa regra, para se opor, vigorosamente, s tesesdos novos lsofos, em 1977.Ele props ao seu editor, Jerme Lindon,diretor das ditions de Minuit, escrever algumas pginas em forma de um

    pequeno fascculo, que seria distribudo gratuitamente, pelas ditions deMinuit, a todas as livrarias. Todos os livreiros deveriam disponibiliz-loaos clientes. Dito e feito.

    Jrme Lindon concordou e esse plano devia ser sigiloso. No en-tanto, algumas indiscries chegaram at o jornalLe Mondeque, sem tardar,

    publicou esse texto na sua pgina Idias, na data de 19-21 de junho de1977. Enquanto isso, o folheto conheceu um verdadeiro sucesso nas livrarias.

    32 Ibid., p. 158.33 DELEUZE, Gilles.Le Matin de Paris, 13 dezembro de 1979; tambm in: DELEUZE,

    Gilles.Deux rgimes de fous,Ibid., p. 161.

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    Datado de 5 de junho de 1977, o texto de Deleuze se apresentava em formade respostas a questes. Nesta ocasio, ele foi contundente, consciente deque esses lsofos de m qualidade ameaavam o prprio pensamento.

    pergunta O que voc acha dos novos lsofos? Deleuze respondeu demaneira brusca:

    Nada. Eu acho que o pensamento deles zero. Vejo duas razespossveis para esse vazio. Primeiro, eles utilizam conceitosgrosseiros, to grosseiros quanto dentes ocos. A lei, O poder,O mestre, O mundo, A rebelio, A f etc. Assim, eles podemfazer misturas grotescas, dualismos sumrios, a lei eo rebel-de, o poder eo anjo. Ao mesmo tempo, quanto mais fraco o contedo do pensamento, mais importante o pensador, emais osujeito de enunciaose acha importante em relaoaos enunciados vazios34.

    O problema com esses novos lsofos que eles no so srios.Essa simulao do pensamento exerce sua seduo e sugere que podemosdeixar de lado o trabalho de complexidade, de desenvolvimento de con-

    ceitos para evitar esse tipo de dilemas dualistas e simplicadores: Elesestragam o trabalho, comentou Deleuze e, em particular, aquele que elehavia iniciado com Guattari.

    Ento hora de colocar as coisas em seu lugar e Deleuze v nofenmeno dos novos lsofos um castingespecial, uma ordenao cuida-dosa dos papis: H um pouco do Dr. Mabuse em Clavel, um Dr. Mabuseevanglico, Jambet e Lardreau representam Spri e Pesch, os dois assessoresde Mabuse (eles querem prender Nietzsche). Benoist o entregador, ele o Nestor. Lvy , s vezes o produtor, s vezes o continusta, s vezes

    o animador alegre e s vezes o disc-jquei...35. O fenmeno novo a in-troduo de regras de marketing no campo da losoa. Algum tinha que

    pensar nisso, como disse Deleuze. Este triunfo dessa nova equipe, segundoDeleuze, se explica por dois motivos principais. Por um lado, a inverso darelao entre jornalismo e criao intelectual. o ato jornalstico que faz o

    34 DELEUZE, Gilles. A propos des nouveaux philosophes et dun problme plus gnral.Supplment de Minuit, n. 24, mai 1977; tambm in:Deux rgimes de fous. Paris: Les ditons de Minuit,2003, p. 127.

    35 Ibid., dansDeux rgimes de fous, p. 129.

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    evento e isso leva, quando no h mais tempo para pensar, implantao deum pensamento-minuto. Em segundo lugar, o que motivava esses come-diantes ambulantes era o dio de 1968: Era uma verdadeira competio dequem difamaria mais Maio de 68: a averso a Maio de 68 era a nica coisaque eles propunham36. Com efeito, neste ano de 1977, no auge da novalosoa, o aniversrio dos 10 anos de Maio de 68 se aproximava e uma

    parte dessa gerao saboreava a negao de suas esperanas frustradas, emnome do fracasso das rupturas revolucionrias.

    O que me enoja muito simples: os novos lsofos elaboram

    uma martirologia, o Gulag e as vtimas da histria. Eles sesustentam de cadveres... dessas vtimas que tiveram que crer eviver de forma bastante diferente para que aqueles que choramem nome deles, que pensam em nome deles e do lies emnome deles sejam nutridos. Geralmente, aqueles que arriscamsuas vidas pensam em termos de vida e no de morte, de amar-gura e de vaidade mrbida. Os resistentes so cheios de vida37.

    Portanto, Deleuze nos convoca para uma celebrao da vida, frente

    aos perigos mortferos que podem derrubar sculos de esforo intelectual.Enquanto Deleuze e Guattari se esforavam em preservar um pouco de arpara poder respirar, os novos lsofos reconstituam um lugar sufocante,asxiante, onde circulava pouco ar. a negao de toda poltica e de todotipo de experimentao. Em suma, o que eu critico que eles fazem um

    pssimo trabalho38.

    A causa palestina: uma exemplicao do povo nmade

    A sensibilidade aos povos sem terra, desterritorializados o ali-cerce do engajamento de Deleuze e Guattari ao lado da causa palestina.Em 1977-1978, Ilan Halevi organizou um seminrio em Vincennes sobre o

    36 Ibid., p. 131.37 Ibid., p. 132.

    38 Ibid., p .133.

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    consco de terras rabes em Israel. Guattari assistia a esse curso de maneiraentusiasta e assdua. Na ocasio de um dos debates, o intelectual palestinoElias Sanbar, que conhecia Halevi e um pouco Guattari, encontrava-se nasala. No era prevista a sua fala, mas, no calor das controvrsias, Sanbarimprovisou uma longa comunicao sobre as tcnicas de guerra dos resis-tentes palestinos, na dcada de 1930.

    No ano de 1978, Deleuze e Guattari estavam redigindoMille Pla-teauxe reetindo sobre as mquinas de guerra, os dispositivos de capturae, portanto, estavam, particularmente, interessados na experincia palestina.Guattari tinha convencido Deleuze de que era preciso entrar em contato

    com Sanbar, depois de ter ouvido suas observaes na Universidade deVincennes sobre as tcnicas de guerra nmade, sobre a nomadologia. Apartir deste encontro entre Deleuze e Sanbar, nasceu uma amizade muitointensa at o m da vida de Deleuze.Essa primeira troca de ideias resultouna primeira interveno pblica de Deleuze sobre o difcil e doloroso conitoisraeliano-palestino nas colunas do jornalLe Monde39.

    Esse artigo surgiu na sequncia de uma operao extensiva porparte do exrcito israelense no sul do Lbano, que matou centenas de pessoasnos campos palestinos, junto populao libanesa e causou um xodo de

    dezenas de milhares de libaneses para Beirute. Deleuze defendeu os pales-tinos: Os palestinos, povo sem-terra e sem Estado, constituem uma dor decabea para todos40. Nesse texto, Deleuze denunciava a chantagem feitaaos palestinos: a morte como nica perspectiva. Ele apelava comunidadeinternacional para reconhecer os mesmos como interlocutores legtimosporque [os palestinos se encontram] em um estado de guerra pelo qualeles, certamente, no so os responsveis41.

    Em 1980, Elias Sanbar projetava criar uma revista de reexo

    sobre a questo palestina. Ele multiplicava os contatos, apresentando seuprojeto, que estava quase pronto, mas as portas permaneceram fechadas.Sanbar telefonou para Deleuze e perguntou-lhe como conseguir publicar arevista. Ele respondeu que pediria a Jrme Lindon para receb-lo. EliasSanbar se apresentou, ento, s ditions de Minuit, recomendado a Lindon

    39 DELEUZE Gilles. Les gneurs.Le Monde, 7 avril 1978.40 Ibid.; in dansDeux Rgimes de fous.Paris: Les ditons de Minuit, 2003, p. 147.

    41 Ibid., p. 149.

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    por Deleuze, e foi assim que aRevue dtudes Palestiniennes foi criada,em outubro de 1981.

    Pouco tempo depois, Elias Sanbar e Deleuze decidiram publicaruma longa entrevista que, juntos, chamaram de: Os ndios da Palestina42.Em seguida, ainda no incio dos anos 1980, quando o conito se prolon-gava em uma luta cada vez mais dramtica, Deleuze escreveu um textoem que exaltava a causa palestina, saudando seu lder Yasser Arafat43: Acausa palestina , em primeiro lugar, o conjunto de todas as injustias queeste povo sofreu e continua sofrendo44. Arafat s podia falar de vergonhano que dizia respeito aos massacres de Sabra e Shatila: Deleuze criticava

    a transformao do maior genocdio da histria perpetrado pelos nazistasnum Mal absolutizado em uma viso religiosa des-historicizada: Esta no uma viso histrica. Ela no para o mal, pelo contrrio, ela o espalha, eo faz recair sobre outros inocentes45.

    Na sua rejeio da poltica israelense, Deleuze expressava umpensamento radical. Para resistir determinao de Israel e cumplicidadeinternacional que abafava, pudicamente, sua poltica, Deleuze consideravaque era preciso encontrar uma grande gura histrica que parecia, sob a

    perspectiva ocidental, como se tivesse sado das pginas de Shakespeare,

    e aquela personagem era Arafat46. O trabalho de Deleuze e Guattari eraum trunfo essencial para Elias Sanbar que publicou, em 2004,Figures du

    Palestiniene dedicou-o a Gilles Deleuze, em homenagem e em eternaamizade47. Essa dedicatria atestava uma consso de dvida, no s emtermos do engajamento de Deleuze ao seu lado, mas, tambm, em termosda dvida intelectual referente a inmeros conceitos operacionais.

    Sem dvida, a noo de mquina de guerra era, particularmente,adequada para pensar a questo palestina, na medida em que o povo pales-

    tino no possua nem territrio nem Estado. Para alm do caso palestino,

    42 DELEUZE, Gilles. Les Indiens de Palestine. Entrevista com Elias Sanbar.Libration, 8-9mai 1982; tambm in:Deux Rgimes de fous, op. cit., p. 179-184.

    43 DELEUZE, Gilles. Grandeur de Yasser Arafat (escrito em setembro de 1983). Revuedtudes Palestiniennes, n. 10, hiver 1984; tambm in:Deux Rgimes de fous, op. cit., p. 221-225.

    44 Ibid., p. 221.45 Ibid., p. 221.46 Ibid., p. 223.47 SANBAR, Elias.Figures du Palestinien. Identit des origines, identit de devenir.Paris:

    Gallimard, 2004.

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    a funo desse conceito era estudar as formas para impedir a formao deuma mquina de Estado, portadora da burocracia e da servido na sociedademoderna. Ela se encontrava no centro da reexo sobre a vida de um grupo,cujo modo de existncia era apenas efmero e que, sem cessar, questionavasobre si mesmo, da mesma maneira que a psicoterapia institucional queriasujeitar a instituio a um tratamento clnico ao mesmo tempo em queela tratava dos pacientes. Tambm havia a ideia de evitar a deterioraode todas as tentativas de transformao social dentro das revolues, queforam tradas e conscadas. O fato de aumentar o nmero de mquinas deguerra, em situaes de externalidade, podia a partir deste ponto de vista,

    tornar-se uma garantia de um contrapeso ecaz para evitar essas armadilhas.Tratava-se, ento, de fazer essas mquinas crescerem, se multipli-carem, indenidamente, para que as instituies ociais, extensivas, per-dessem suas funes a favor de microrredes moleculares. O etnlogo PierreClastres reforou as teses de Deleuze e Guattari a partir de suas observaese anlises48. Ele mostrava, ao contrrio do esquema evolutivo, que o Estadono devia ser o resultado do desenvolvimento das foras produtivas nem oresultado da diferenciao das foras polticas.

    Finalmente, Deleuze condenou, de maneira radical, a guerra contra

    o Iraque, em um texto particularmente duro, intitulado A guerra suja49que ele assinou com Ren Scherer, seu colega da Universidade de ParisVIII. Eles denunciaram a destruio de uma nao, a nao do Iraque, sob o

    pretexto da libertao do Kuwait pelo Pentgono, descrito como um rgode terrorismo de Estado que testa suas armas50, e eles se voltaram contrao que percebiam como sendo um simples alinhamento do governo francs:Nosso governo continua a negar as suas declaraes e se lana em umaguerra contra a qual ele teria o poder de se opor. Bush nos congratula como

    congratulado um servente51

    .

    48 LASTRES, Pierre.La socit contre lEtat.Paris: Les ditions de Minuit, 1974.49 DELEUZE, Gilles. Ren Schrer. La guerre immonde.Libration, 4 mars 1991.50 Ibid.; tambm in: DELEUZE, Gilles.Deux rgimes de fous, op. cit., p. 351.51 Ibid., p. 351.

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    Recebido em abril de 2010.Aprovado em abril de 2010.