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1 ROLLAND, Jacques, «O comércio com o obscuro: leitura de La réalité et son ombre», in Parcours de l’autrement, Paris, Puf, 2000, pp. 233-259. Tradução de José Paulo Cruz Pereira 1/ «Como é de sacrossanto hábito, escrevia Rosenzweig, nesse espantoso texto de iluminação que é O Pensamento Novo, um sistema filosófico consiste numa lógica, uma ética, uma estética e uma filosofia da religião» 1 . Se outra razão não houvesse para não considerar a obra filosófica de Lévinas como um sistema filosó-fico, a ausência de uma estética bastaria! Porque este pensamento, que em nada ignora, aliás, as potencialidades do humano e, para começar, quanto à totalidade do campo que se oferece à filosofia e requer a sua atenção, é notavelmente mudo quanto ao fenómeno da arte e, desde logo, quanto ao fenómeno do belo que este solicita. Atento, como poucos outros, à literatura na feitura das suas letras – tanto à sua poesia, escutada no verso de Maïakovsky, quanto à prosa de Proust – este pensamento é assinalavelmente cego diante do fenómeno geral da arte, tal como ele é, ou deve precisamente ser compreendido, na sua generalidade, onde a música e a pintura são, talvez, mais significativas que a literatura. Salvo num lugar: um ensaio relativamente pouco conhecido, de 1948, que se declara como um início, mas quanto do qual se notaria que jamais teve seguimento, La réalité et son ombre 2 . 1 Trad. M. B. De Launay, em Cahiers de la nuit surveillé, nº 1 (1982), p. 41. 2 Na verdade, pôde-se mostrar na primeira parte deste livro dois outros lugares, em Autrement qu’être, onde a questão da arte é apreendida no seu ponto de origem (ver capítulo 4, p. 146, 149; capítulo 5, pp. 200-201). Mas, como

JACQUES ROLLAND - «O Comércio Com o Obscuro- Uma Leitura de La Réalité Et Son Ombre»

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Tradução de José Paulo Cruz Pereira

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ROLLAND, Jacques, O comrcio com o obscuro: leitura de La ralit et son ombre, in Parcours de lautrement, Paris, Puf, 2000, pp. 233-259.

Traduo de Jos Paulo Cruz Pereira

1/ Como de sacrossanto hbito, escrevia Rosenzweig, nesse espantoso texto de iluminao que O Pensamento Novo, um sistema filosfico consiste numa lgica, uma tica, uma esttica e uma filosofia da religio[footnoteRef:1]. Se outra razo no houvesse para no considerar a obra filosfica de Lvinas como um sistema filos-fico, a ausncia de uma esttica bastaria! Porque este pensamento, que em nada ignora, alis, as potencialidades do humano e, para comear, quanto totalidade do campo que se oferece filosofia e requer a sua ateno, notavelmente mudo quanto ao fenmeno da arte e, desde logo, quanto ao fenmeno do belo que este solicita. Atento, como poucos outros, literatura na feitura das suas letras tanto sua poesia, escutada no verso de Maakovsky, quanto prosa de Proust este pensamento assinalavelmente cego diante do fenmeno geral da arte, tal como ele , ou deve precisamente ser compreendido, na sua generalidade, onde a msica e a pintura so, talvez, mais significativas que a literatura. Salvo num lugar: um ensaio relativamente pouco conhecido, de 1948, que se declara como um incio, mas quanto do qual se notaria que jamais teve seguimento, La ralit et son ombre[footnoteRef:2]. [1: Trad. M. B. De Launay, em Cahiers de la nuit surveill, n 1 (1982), p. 41.] [2: Na verdade, pde-se mostrar na primeira parte deste livro dois outros lugares, em Autrement qutre, onde a questo da arte apreendida no seu ponto de origem (ver captulo 4, p. 146, 149; captulo 5, pp. 200-201). Mas, como o seu subttulo indica, antes de se integrar nesse livro, essa interveno no consideraria o problema seno a partir do ensaio de 1948.]

Onde a arte, precisamente, inicialmente entendida de outro modo que no como literatura, porque o comum entendimento que a acolhe, a partir desta ltima , no seu todo, considerado como a origem do mais flagrante mal-entendido sobre esse fenmeno, que consiste em pensar-se que a arte uma actividade da palavra, que o quadro, tanto quanto a escultura, fala. A contrapelo dessa concepo, o ensaio aqui considerado comea por estabelecer que a literatura, entendida como arte, no linguagem. Mas isso remonta a um pensamento mais geral da palavra, que de modo nenhum se contenta com o falar, mas que se produz [sapporte] no seu prprio acto e, nesse acompanhamento essencial, retorna ao mito deposto na sua primeira operao, para o descolar do mtico e se tornar a si mesmo, enfim, falante. Quer dizer que a ver-dadeira linguagem filosofia e, se nos ativermos ao fenmeno da arte transgredindo-o, que ela crtica.Mas dizer tambm que a arte, enquanto no-linguagem, permanece num aqum essencial, o que constitui, alis, a primeira coisa que dela se pode dizer. Aqum que se precisa, tambm, como aqum da verdade que a filosofia articula. Platonismo de Lvinas! Platonismo, neste ponto, rigoroso, seno intransigente. Mas que se ajusta a um heideggerianismo sem reserva que, no seu radicalismo, excede aquilo de que se presume partir, para consentir arte mais do que se reconhece ao gesto do pensamento, ou ao acto que funda a cidade, atribuindo-lhe o que no est reservado a esses modos do fazer humano, que so outros tantos modos de correspon-dncia com o ser supondo-lhe a faculdade de responder por aquilo de que estes outros no tm nenhum conhecimento, no que diz respeito ao ser: a sua no-verdade. Modalidade do fazer humano, relao com o prprio ser ou, mais exactamente, articulao mas especial do sentido do ser, a arte , assim, pensada como lugar da revelao do ser, ao mesmo ttulo que o agir essencial do pensamento, ou que a aco poltica e prtica e j tcnica, mas com isto de particular, que consiste em, do ser, a arte revelar uma dimenso que, nem o pensamento, nem o agir conhecem, ou se espera que conheam, a sua face obscura, o inverso da sua iluminao, onde ele sai da sua lth para aclarar todo o ente: tanto, etimologicamente, a sua no-verdade, quanto a sua an-altheia. Mas que no se revelaria, precisamente, seno pela arte, ou mais exactamente na arte. Arte que adquire, desde logo, uma dignidade ontolgica que, claro, Plato no lhe conhecia, mas que ultrapassa, ainda, a que lhe reconhecia Heidegger, se verdade que nisso excede os termos em que se move o pensamento em A Origem da Obra de Arte. No porque, no entanto, ela fosse alm, e se mostrasse mais verdadeira que a filosofia, mais verdica e mais veraz do que ela, mas antes, bem pelo contrrio, porque ela vai aqum, em direo obscuridade mesma do ser, ao ensombramento de que ela nada mais que o acontecimento, o acontecimento do obscurecimento do ser, paralelo sua revelao, sua verdade (RO 783). Compreender-se-, desde logo, que toda essa exposio sobre a arte seja guiada por uma questo bem mais geral, que no se prende j com a esttica, mas antes remonta inteiramente ontolo-gia. Proposio que, no entanto, no dissolve a questo da arte, nesse questionamento mais geral, porque ela reconhece que apenas com o seu fenmeno que vem luz a outra face do real, a no verdade do ser. nisso que preciso compreender que aqui uma dignidade sem par se reconhece arte, mesmo que ela deva ser considerada mas resta saber o que isso quer dizer a dignidade do indigno. Mas, antes de colocar tais questes, preciso comear por analisar o que so os processos da arte.

2 / E pode-se partir disto: o processo mais elementar da arte consiste em substituir ao objecto a sua imagem (RO 774). Mas, seria preciso precis-lo desde logo, a sua imagem e no o seu conceito, o qual o objecto compreendido, o objecto inteligvel. A imagem inverte essa relao real e, longe de abrir a via, como o conhe-cimento cientfico e a verdade filosfica, a uma concepo - ela opera uma singular mas essencial reverso entre ns-prprios e a nossa representao: a imagem marca um apoderamento sobre ns, mais que a nossa iniciativa: uma passividade profunda (ibidem). nisso que a imagem musical e ns encontramos, assim, a primeira referncia a um tipo particular, no seio dessa meditao geral sobre a arte, conduzida a partir do horizonte de uma interrogao que ultrapassa esse fenmeno, sem poder desvincular-se da necessidade de passar por ele, tal como ele em si mesmo, e tal como ele deve ser encarado, nas suas diferentes formas. Dizer que a imagem musical dizer que ela ritmo. Mas a ideia de ritmo, que preciso no deixar entregue ao uso tcnico que dela faz a crtica da arte, indica mais a maneira pela qual a ordem potica nos afecta que uma lei interna dessa ordem. Da realidade desprendem-se conjuntos fechados cujos elementos se apelam mutuamente como as slabas de um verso, mas que no se apelam seno impondo-se-nos a ns. Mas impem-se-nos sem que ns os assumamos. Ou antes [diante deles] o nosso consentimento inverte-se em participao [...]. O ritmo representa a situao nica em que no se pode falar de consentimento, de assuno, de iniciativa, de liberdade porque o sujeito tomado e arrebatado [saisit et emport]. Ele faz parte da sua prpria representao. Nem mesmo apesar dele, porque no ritmo no h j eu, mas como uma passagem de si ao anonimato. A reside o enfeitiamento ou o encanta-mento da poesia ou da msica (RO 774-775). Duas expresses merecem aqui reter-nos numa maior ateno: o emprego da palavra participao, pedida de emprstimo a Lvy-Bruhl, a quem Lvinas consa-grar um artigo dez anos aps a publicao de La ralit et son ombre, mas do qual ele fazia j o mais abundante uso, num captulo do ensaio concebido em cativeiro e publicado em 1947, De lexistence lexistant, um captulo consagrado ao estabe-lecimento da noo de il y a, central a esse ensaio, e a ideia de uma passagem de si ao anonimato que lhe est intimamente ligada. Regressar-se- aqui. Mas o que preciso notar para j, que se v assim, desde as primeiras investigaes, como o texto de 1948 sobre a arte reenvia, no seu conjunto, para o seu contexto filosfico imediato. E seria, talvez, o mesmo que dizer, por proviso, que na totalidade da obra que ele se inscreve, solicitando, como que por si mesmo, a leitura que o recompreender luz dos escritos da sua plena maturidade. Mas a musicalidade da imagem, assim evocada, obriga a regressar ao dogma que a pretende fazer passar por essencialmente desinteressada, maneira da fruio esttica. Bem pelo contrrio, preciso dizer isto: ele interessante, sem qualquer esprito de utilidade, no sentido de arrebatadora [entranante]. No sentido etimolgico: estar entre as coisas que, no entanto, no teriam devido ter seno a categoria de objectos. Entre as coisas, distinto do ser-no-mundo heideggeriano, ele constitui o pattico do mundo imaginrio do sonho: o sujeito entre as coisas, no somente pela sua espessura de ser, exigindo um aqui, um algures e conservando a sua liberdade; ele est entre as coisas, como coisa, como fazendo parte do espectculo, exterior a si mesmo; mas de uma exterioridade que no aquela de um corpo, uma vez que a dor deste eu-actor, o eu-espectador quem a sente, sem que isso seja por compaixo. Exterioridade do ntimo, em verdade (RO 775).Ritmo e musicalidade adquirem assim um estatuto operatrio que vai bastante para alm do uso que deles se pode fazer nessa disciplina particular que a musicolo-gia, encontrasse esta o seu lugar, no seio de uma esttica filosfica. Por meio desse estatuto operatrio, eles trazem luz aquela dimenso ontolgica sui generis que a da imagem e, por intermdio desta, cuja funo elementar tambm a da arte como tal, fazem vir luz a dimenso ontolgica prpria da arte ela mesma. Porque, se verdade que a arte consiste em substituir a imagem ao ser o elemento esttico , de modo conforme sua etimologia, a sensao (RO 776). Seria ainda preciso estar atento a esse elemento: tudo se passa como se a sensao, pura de toda a concep-o, esta famosa sensao inapreensvel introspeco, aparecesse com a imagem. A sensao no o resduo da percepo, mas uma funo prpria: o apoderamento que a imagem exerce sobre ns uma funo rtmica. O ser-no-mundo, como se diz hoje, uma existncia com conceitos. A sensibilidade estabelece-se como um aconte-cimento distinto, mas no se cumpre seno pela imaginao (ibidem). Mas se a sensao no pode, fenomenologicamente, pensar-se seno a partir do sentir, que se realiza em sensibilidade, essas descries reenviam-nos, ainda, ao antroplogo, e ao texto que lhe foi consagrado em 1957: o sentir pelo qual Lvy-Bruhl caracteriza a participao no simplesmente uma relao imediata e ainda incerta com uma forma. O sentir no um pensar estropiado nem uma reduo ele vai para outra dimenso. Ele uma maneira de sofrer um poder [une puissance]. O sentir no uma forma vazia de conhecimento, mas fascinao [envotement], exposio a uma ameaa difusa de bruxaria, presena num clima, na noite do ser que espreita e atemoriza e no presena em face das coisas (EN 62). Isso no descreve, apenas, os estados psicolgicos, fossem eles dignos de nota, mas deve ser compreendido na sua importncia ontolgica. Para a chegar, preciso, no entanto, retomar e prosseguir a descrio da imagem.

3 / Cujo primeiro trao, como o havia feito notar, no seu tempo, Sartre em Limaginaire[footnoteRef:3], o de ela [a imagem] se demarcar do signo que, pura transparncia, deixa a conscincia ir direita quilo de que ele signo, enquanto que, pela opacidade que principalmente a caracteriza, ela pra o pensamento, e nela o retm, e sobre ela. O que se pode exprimir pelo facto de a imagem ser caracterizada pela semelhana, na condio, todavia, de que no se a compreenda como resultado de uma comparao entre a imagem e o original, mas como o prprio movimento que engendra a ima-gem (RO 778). O que, de novo, nos arrasta para alm do problema da arte, e da feno-menologia da imagem que se supe dar-lhe acesso, para nos abrir a um problema directamente ontolgico: a realidade no seria somente o que ela , aquilo em que ela se desvela na verdade, mas tambm o seu duplo, a sua sombra, a sua imagem. O ser no somente ele-mesmo, ele escapa-se (ibid) Como? Vamos sab-lo graas a uma descrio em trs tempos. [3: Ver o captulo La famille de limage em Limaginaire, Paris, Gallimard, 1940, p. 30 e seguintes.]

a / Eis uma pessoa que o que ela ; mas ela no faz esquecer, no absorve, no recobre inteiramente os objectos que ela tem, e a maneira como os tem, os seus gestos, os seus membros, o seu olhar, o seu pensamento, a sua pele, que se escapam debaixo da identidade da sua substncia, incapaz, como um saco roto, de os conter. E assim que a pessoa traz, na sua face, a par do seu ser, com o qual ela coincide, a sua prpria caricatura, o seu pitoresco. O pitoresco sempre ligeiramente caricatu-ra. bastante digno de nota que se tenha a, num lxico que se ver, claro, profun-damente transformado, o comeo de uma descrio do rosto que, em Totalit et Infini, se dir entre a santidade e a caricatura porque ele o que, ainda coisa entre as coisas, rompe [perce] a forma que, no entanto, o delimita - rompimento pelo qual se abre uma nova dimenso que, no entanto, se abre na aparncia sensvel do rosto (TI 172). Notemos, contudo, que a noo de caricatura no ser empregue seno de passagem, na obra de 1961, enquanto ela tem quase a categoria de um conceito opera-trio, no ensaio de 1948.

b / Eis uma coisa familiar, quotidiana, adaptada perfeitamente mo que dela tem j o hbito mas as suas qualidades, a sua cor, a sua forma, a sua posio subsistem simultaneamente para trs [en arrire] do seu ser, como as vestes de uma alma que se retirou dessa coisa, como uma natureza morta. No , desta vez, a um dos escritos de Lvinas que esta descrio reenvia, mas a Heidegger, noo de Zuhandenes [o que est ao alcance da mo, mo] e essencial faculdade que estes [instrumentos ou utenslios] tm de reenviar, faculdade que determina a estrutura do ser desse ente mas que seria aqui perturbada de outro modo que pela inempregabi-lidade em lugar de, onde o reenvio se torna expresso[footnoteRef:4]. [4: Ver Sein und Zeit, pargrafo 16, trad. de Martineau, p. 75.]

c / E no entanto tudo isso [a pessoa e a sua caricatura, a coisa e as suas vestes] a pessoa, a coisa. H pois nessa pessoa, nessa coisa, uma dualidade, uma dualidade no seu ser. Ela o que ela e ela estranha a si mesma e h uma relao entre esses dois momentos. Diremos que a coisa ela prpria e a sua imagem. E que esta relao entre a coisa e a sua imagem a semelhana (RO 778).

preciso comear aqui por notar que, tanto num caso como no outro, com a pessoa tal como com a coisa, nos confrontamos, no seu reflexo em imagem, com uma paragem [un arrt]. Porque o rosto da pessoa no se sustenta dos traos que o identi-ficam aos olhos de todos, mas exprime-se antes na mobilidade desses traos, na qual ele se nos escapa. Na caricatura, a imagem apreende a imobilizao desses traos, ou apreende o rosto como imobilizado. Mas no , verdadeiramente, no sono que o rosto se imobiliza, e menos ainda na ateno, ou no estupor, na morte, onde, de sbito, ele se parece, na semelhana cadavrica, de sorte que dele se deve dizer: Sim, bem ele, o caro vivente, mas ao mesmo tempo mais que ele, ele est mais belo, mais impositivo, j monumental e to absolutamente ele prprio que ele est como que duplicado por si, unido solene impessoalidade de si pela semelhana e pela imagem[footnoteRef:5]. Mas a coisa no , por sua vez, ela prpria seno no jogo de reenvios que, longe de cessar, se torna expresso, na perturbao do reenvio. unicamente no seu dobramento que, por adaptada que ela seja mo que a maneja, perde o seu carcter de estar--mo e assim se imobiliza. Sartre descreveu admiravelmente este redobro e esta imobilizao, em La Nause, onde se encontram tantas frases e mem-bros de frases onde a coisa descrita, sempre a cores[footnoteRef:6], se faz acompanhar da sensao que ela produz em ns: um relmpago avermelhado coberto de pelos brancos. uma mo - sobre a maionese de um ovo russa, eu notaria uma gota de um vermelho sombrio: era sangue - um lago de luz ao longe, era o mar na mar baixa. preciso evitar ver nessas frases, na sequncia que as escande, a expresso de um fenmeno corrente na percepo e notado pelo prprio Sartre, em Limaginaire: percepo identificao objecto[footnoteRef:7]. No apenas porque acontece que se tem, tambm, com frases da mesma estrutura, a escanso inversa (Um eltrico passa: relmpago vermelho no tecto), mas ainda, e sobretudo, porque, parece-me, se trata aqui de outra coisa: do acompanhamento da coisa identificada, ou que o vai ser, pelas suas vestes, que permanecem, ainda quando a coisa est plenamente identificada; desse acompanhamento que, nesse sentido, um dobramento. Identificado, o mar permanece um lago de luz; da mesma mo, um relmpago avermelhado estriado de fios brancos; mas, neles, a mobilidade essencial do mar, tal como a da mo, imobili-zam-se, e pesam dessa imobilidade, que os vem dobrar. Eles imobilizam-se e pesam na sua imagem, como o rosto, na caricatura em que ele(s) se assemelha(m), no se dando, a semelhana, definitivamente a compreender como o resultado de uma com-parao entre o original e o seu reflexo, mas antes como o singular poder que o real possui de reproduzir a sua prpria imagem, ou de se produzir em imagem, na carica-tura ou na imobilizao dos seus reenvios. Compreende-se da isto: o ser o que , o que ele se revela na sua verdade e, ao mesmo tempo, ele assemelha-se, a sua prpria imagem [...]. A conscincia da ausncia do objecto, que caracteriza a imagem, no equivale a uma simples neutralizao da tese, como o pretende Husserl, mas a uma alterao do prprio ser do objecto, uma alterao tal que as suas formas essenciais aparecem como uma vestimenta vistosa [un accoutrement] que ele abando-na retirando-se (RO 779). Essa vestimenta a alegoria que se poderia chamar a imagem do ser, e que o que, no objecto, dobra esse mesmo objecto. Essa alegoria realiza-se no quadro (onde, por excelncia, a realidade representada se imobiliza [se fige, se rigidifica]) e a razo pela qual a pintura a segunda forma de arte, retida como essencial pelo ensaio, na sua progresso. [5: Maurice Blanchot, Lespace littraire, Paris, Gallimard, Ides, 1968, p. 350.] [6: , creio, atravs da cor que as coisas em La Nause se aprestam a converter-se em imagens, a soobrar [sombrer] na existncia; pela cor sempre demasiado viva tal como nos casos dos suspensrios cor de malva sobre uma camisa azul ou ainda desse negro com um impermevel creme, sapatos amarelos e chapu verde; atravs da cor que se destaca sobre o meio-tom dominante dos retratos dos representantes da burguesia local no museu municipal de Bouville (La teinte gnrale des portraits tirait sur le brun sombre. Les couleurs vivantes avaient t bannies, par souci de dcence)] [7: Veja-se Limaginaire, p. 59: Alain, parmi tant dautres philosophes, a bien montr comment le jugement rectifie, organise, stabilise la perception. Ce passage du quelque chose tel objet a t souvent dcrit dans les romans, surtout lorsquils sont crits la premire personne. Jentends, dit, par exemple, Conrad (nous citons de mmoire), des bruits sourds et irrguliers, des craquements, des crpitements: ctait la pluie (A aproximao proposta pelos editores de Pliade).]

O quadro realiza o carcter de ser-opaco que se havia j atribudo imagem, negando-o ao signo. preciso dizer, desde j, que o quadro tem, na viso do objecto representado, uma espessura prpria: ele ele-mesmo objeto do olhar. Mas o que se v, quando se olha o quadro? No j decerto o objecto, dado que a conscincia da representao consiste em saber que o objecto no est l - Doravante no se pode dizer seno isto: os elementos percepcionados no so o objecto, mas como que os seus trapos usados [nippes], manchas de cor, pedaos de mrmore ou de bronze. Esses elementos no servem de smbolos e, na ausncia do objecto, eles no foram a sua presena, mas, pela sua presena, insistem sobre a sua ausncia. Eles ocupam inteiramente o seu lugar para marcar o seu afastamento, como se o objecto represen-tado morresse, se degradasse, se desencarnasse no seu prprio reflexo. O quadro no nos conduz, portanto, ao alm da realidade dada, mas, de algum modo, a um aqum (RO 779).Conduzindo, assim, ao aqum do ser, o quadro permite exactamente designar a situao e a funo ontolgicas da arte: toda a realidade na sua ntegra transporta sobre a sua face a sua prpria alegoria por fora da sua revelao e da sua verdade. A arte, utilizando a imagem, no reflete somente, mas realiza essa alegoria. Nela a alegoria introduz-se no mundo, tal como pelo conhecimento se realiza a verdade. Duas possibilidades contemporneas do ser. (RO 780; eu sublinho) O que arte revela assim, a outra face do ser, outra em relao quela que se revela na verdade; e se, esta a sua realidade, a sua sombra que, como tal, a sua no-verdade. Seria ainda preciso precisar: a no-verdade no um resduo obscuro do ser, mas o seu prprio carcter sensvel pelo qual h no mundo semelhana e imagem - esse carcter sens-vel que tnhamos j encontrado, ao referir-nos a Lvy-Bruhl. E o texto permite aqui concluir todo esse desenvolvimento sobre a imagem reunindo as noes que nele se encontraram: a noo de sombra permite situar na economia geral do ser a noo de semelhana. A semelhana no a participao do ser numa ideia [...] a estrutura mesma do sensvel como tal. O sensvel o ser na medida em que ele se assemelha, em que, por fora da sua obra triunfal de ser, ele projecta uma sombra, liberta essa essncia obscura e inapreensvel, essa essncia fantasmtica que nada permite identificar com a essncia revelada na verdade. No h primeiro imagem viso neutralizada do objecto que em seguida difira do signo e do smbolo, pela sua semelhana com o original: a neutralizao de posio, na imagem, precisamente essa semelhana (RO 780-781). esta dimenso ontolgica da sombra que a arte pe em obra, fazendo entrar em jogo o seu processo mais elementar: o da substitui-o da imagem realidade.

4 / Mas preciso ainda situar a imagem assim precisada do ponto de vista do tempo, e repartindo do seu ser-caricatura que se o pode fazer. Caricatura que no remonta a algum defeito remedivel, que seria a marca de tal ou tal representao, mas antes a uma essencial caricaturalidade: a inultrapassvel caricatura da imagem mais perfeita [que] se manifesta na sua estupidez de dolo (RO 781). No entanto, ver no fundo da imagem um dolo, tal equivale a dizer que toda a imagem , no fim de contas, plstica e que toda a obra de arte , no fim de contas, esttua (RO 782; eu sublinho). Eis, portanto, uma nova forma de arte, chamada a permitir o progresso da reflexo; mas o que a escultura deve tornar possvel, situar a imagem e, com ela, a arte, no tempo, porque a primeira coisa que se pode dizer da esttua, que ela realiza uma paragem do tempo ou antes o seu retardamento sobre si mesmo (ibidem). Em que sentido?Neste: a esttua realiza o paradoxo de um instante que dura sem futuro [...]. No interior da vida ou antes da morte da esttua, o instante dura infinitamente: eternamente Laoconte ser tomado pelo abrao apertado das serpentes, eternamente a Gioconda sorrir. Eternamente o futuro, que se anuncia nos msculos tensos de Laoconte, ficar por se tornar presente. Eternamente o sorriso da Gioconda, que se vai expandir, ficar por se expandir. Um futuro eternamente suspenso flutua em torno da posio imvel da esttua como um futuro para sempre a vir. A iminncia do futuro dura diante de um instante privado da caracterstica essencial do presente que a sua evanescncia. No ter jamais cumprido a sua tarefa de presente, como se a realidade se retirasse da sua prpria realidade e o deixasse sem poder. Situao em que o presente nada pode assumir, nada pode tomar a seu cargo e, assim, instante impessoal e annimo (RO 782). A esttua est privada de tempo, primeiro, no sentido em que ela est privada do futuro; ou antes, um futuro flutua em torno dela e flutua assim eternamente, quer dizer, sem que se inscreva nunca nessa eternida-de uma promessa de realizao, de que os lbios da Gioconda so a denegao. Mas ateno! Isso no quer dizer que a esttua se instalaria eternamente no instante o que seria um paradoxo insustentvel mas quer dizer que o no-tempo da esttua no sequer o instante e que ela no tem futuro porque ela no tem presente. Para o compreender, preciso que nos viremos para o ensaio contemporneo De lexistence lexistant. Onde o instante concebido como uma relao aquela que necessria ao instante para comear e assim como concebido como uma conquista do seu prprio comeo, sem que essa relao se refira a um futuro ou a um passado qualquer, a um ser, a um acontecimento colocado nesse passado ou nesse futuro (EE 130). Instante que deve, assim, comear na sua solido absoluta de instante, sem nenhum apoio numa anterioridade, e que , portanto, de si, assuno do seu comeo, domnio [matrise] ou realizao: o que comea deve realizar o acontecimento do comeo no instante (EE 131). De onde a dialctica prpria do instante, na qual no se tem aqui que entrar[footnoteRef:8] seno para dele reter que a evanescncia do presente ou do instante, que pertence, por essncia, a este ltimo, no destri o definitivo e o infinito actual da realizao do ser que constitui a funo mesma do presente. A eva-nescncia condiciona-o: por ela, o ser no nunca herdado, mas sempre conquistado com uma grande luta (EE 133). A esttua no conhece esta grande luta; nesse sentido que o instante no qual ela permanece [sjourne] no ter nunca realizado a sua tarefa de presente e essa a razo pela qual ela mesma no ter presente, nem mesmo, desde logo, futuro, porque ao quase-presente que o seu falta a evanescncia, que vai de par com o verdadeiro comeo. que ela herda o ser da mo do escultor, mas o que lhe assim dado, sem que ela o tenha de conquistar com grande luta , ento, uma vida sem vida. Uma vida derrisria que no senhora de si mesma, uma caricatura de vida (RO 782). Mas que, de si, est condenada a esse quase-instante que no conhece j futuro, tanto quanto incapaz de presente mas que, como tal, est resolutamente margem da promessa de redeno que se retira do tempo.[footnoteRef:9] [8: Sobre este ponto ver o captulo 3 desta parte do livro, intulado Instante e Diacronia. ] [9: No ensaio como nas conferncias do imediato ps-guerra, o tempo, que no pensado como deficincia, no se apresenta j tambm no sentido de um mal, muito pelo contrrio. Estas linhas provam-no: o presente est sujeito ao ser. Ele est-lhe submetido [asservi]. O eu retorna fatalmente a si; ele pode esquecer-se de si no sono, mas haver um despertar .... O tempo, longe de constituir o trgico, poderia talvez libertar (EE 134; eu sublinho). Mas sobre este ponto tambm nos reportaremos ao captulo terceiro desta parte. ]

Esse presente, impotente para forar o futuro, o prprio destino [...]. Na economia geral do ser, a arte o movimento da queda aqum do tempo, no destino (RO 783). Esse destino, aquele de uma existncia no intervalo - o intervalo, para sempre intervalo (RO 786) que se pode designar com um nome mais preciso: o entretempo (ibidem). isso o que a esttua realiza, que manifesta, assim, a surpreen-dente potncia reveladora da arte: o facto de que a humanidade tenha podido dar-se uma arte revela no tempo a incerteza da sua continuao e como que uma morte a dobrar o lan da vida a petrificao do instante no seio da durao... (RO 785). Verso levinasiana da doutrina da criao continuada nas suas motivaes, mas que nos vira, igualmente, de novo para a perturbao do reenvio, que havamos encontra-do no incio da descrio da imagem. O que preciso compreender aqui que, mais do que tornar o reenvio como tal expressamente manifesto, a perturbao de tal reen-vio abre entre um Zuhandenes [utenslio, estar mo, etc.] e o seu prximo um desvio que nada pode vir a preencher, mas que cava, assim, entre um instante e o prximo, um abismo no qual se abre o entretempo, onde o tempo se torna plstico[footnoteRef:10], quer dizer se degrada, na sua temporalidade, ou revela uma outra maneira, uma maneira nica de o tempo se temporalizar (RO 783) ser ainda tempo, temporalizao e temporalidade? A questo pode subsistir, mas devem, ento, subsistir igualmente as afirmaes seguintes: a arte realiza precisamente esta durao no intervalo, nesta esfera que o ser tem o poder de atravessar, mas em que a sombra se imobiliza. A durao eterna do intervalo em que a esttua se imobiliza difere radicalmente da eternidade do conceito ela entretempo, nunca findo, que dura ainda qualquer coisa de inhumano e monstruoso (RO 786). [10: La ralit et son ombre no chega a falar de um devir-plstico do prprio tempo, mas a partir da maniera como fala do romance (a plasticidade de uma histria; p. 784.) e do tempo da narrativa que eu me autorizo a avanar com essa expresso. ]

5 / Dever-se-ia, portanto, compreender claramente, agora, em que consiste a dignidade mpar da arte, que faz vir luz uma dimenso ontolgica que o conheci-mento no conhece (nem o pensamento, nem o agir), ele que vai de ser a ser saltan-do os intervalos do entretempo (RO 788). Poder-se-ia decerto dizer que a arte deixa a presa na sombra - no seria menos verdade que, assim fazendo, ela revela esta outra faceta do ser que a sua sombra. De que se disse que ela a sua no-verda-de, a qual no designa um enunciado errado que lhe diga respeito, mas o seu poder de no se revelar que a arte entende positivamente ou que ela pe em obra na caricatura imobili-zada no entretempo, na esttua que, na economia deste ensaio, seria a pensar como obra de arte por excelncia. Mas ser possvel dizer alguma coisa mais dessa regio alguma coisa mais que a palavra que somente a situa como o anverso do ser que se revela na verdade e em primeiro lugar nome-lo? Seria em Blanchot que se lhe sugeriria o nome neutro[footnoteRef:11]. Mas talvez seja mais heurstico e ao mesmo tempo mais hermeneuticamente correcto nos atermos prpria obra na qual essa dimenso vem a conceito, e procurar situ-la mais precisamente e nome-la remetendo-nos aos escritos [que lhe so] contemporneos. [11: Tal como o analisei em Pour une approche de la question du neutre; Exercices de la patience, n 2, (1981), p. 11-45.]

Digamos, portanto, sem mais rodeios, que o que se impe ao pensamento, em 1948, maneira de no-verdade do ser isso mesmo que, em 1935, no primeirssimo De lvasion, se tinha sugerido como ser puro, antes de vir linguagem em 1947, em De lexistence lexistant, com uma frmula destinada a tornar-se cannica: il y a[footnoteRef:12]. Por essa mesma razo, a ela que nos ateremos aqui. Para notar em primeiro lugar que esse il y a, se ele no s no fruto da imaginao como no existe por virtude de qualquer jogo de palavras (EE, pref, 2 ed.), releva contudo do imaginrio uma vez que ele produzido quando ns imaginamos o retorno ao nada de todos os seres, coisas e pessoas (EE 93). Esse desvio pela imaginao no de nenhuma forma indiferente, porque o que o il y a traz consigo tambm pode bem ser-nos trazido por uma experincia assaz comum, aquela da noite, supondo, todavia, que o termo experincia ainda convm aqui: quando as formas das coisas se dissolvem na noite, a obscuridade da noite, que no um objecto nem a qualidade de um objecto, invade como uma presena. Na noite em que lhe ficamos fixados, com nada nos confrontamos. Mas este nada no o de uma pura inexistncia [celui dun pur nant]. No h j nem isto nem aquilo; no h qualquer coisa. Mas essa universal ausn-cia , por sua vez, uma presena, uma presena absolutamente inevitvel (EE 94). Essa presena de nada que invade na noite, ou como a noite[footnoteRef:13] precisamente o que pretende significar o termo : il y a. Mas Lvinas prefere ganh-lo a partir da situao imaginria da destruio de todas as coisas, como o testemunha, a par das descries do ensaio de 1947, esta passagem, talvez ainda mais precisa, das conferncias contemporneas sobre Le Temps et lAutre: resta dessa destruio imaginria de todas as coisas, no alguma coisa, mas o facto de que il y a. A ausncia de todas as coisas retorna como uma presena: como o meio em que tudo soobrou, como uma plenitude do vazio ou como o murmrio do silncio. H, depois dessa destruio das coisas e dos seres, o campo de foras do existir, impessoal. Qualquer coisa que no nem sujeito, nem substantivo. O facto de existir que se impe, quando nada mais h. E annimo: no h ningum que assuma em si esta existncia. impessoal como chove ou est quente. Existir que retorna qualquer que seja a negao pela qual se o afasta. H como a irremissibilidade do existir puro (TA 25-26) [12: Sobre a proximidade do ser puro e do il y a, ver mais acima, na primeira parte, o captulo 4, e especificamente, pp. 154-158.] [13: O fenmeno da noite foi profundamente analisado por Blanchot: na noite, tudo desapareceu. a primeira noite [...]. Mas quando tudo desapareceu na noite, tudo desapareceu aparece. a outra noite. A noite a apario do tudo desapareceu. Ela o que se pressente quando os sonhos substituem o sono, quando os mortos passam pelo fundo da noite, quando o fundo da noite aparece naqueles que desapareceram. As aparies, os fantasmas e os sonhos so uma aluso a essa noite vazia. [...] O que aparece na noite a noite que aparece, e a estranheza no vem somente de alguma coisa de invisvel que se faria ver ao abrigo e pela exigncia das trevas: o invisvel ento o que no se pode deixar de ver, o incessante que se faz ver (LEspace littraire, pp. 215-216).]

preciso retomar luz deste il y a as descries da imagem e, em particular, do quadro. Para se lembrar, desde logo, que a conscincia imaginante consciente da ausncia do objecto, e no do objecto ausente. O que quer dizer que o quadro, atravs das formas e das cores, no representa o objecto ausente mas, antes pelo contrrio, a sua ausncia: os elementos percepcionados no so o objecto, mas como que as suas vestes, manchas de cor, pedaos de mrmore e de bronze. Esses elementos no servem de smbolos e, na ausncia do objecto, no foram a sua presena, mas, pela sua presena, insistem sobre a sua ausncia (RO 779; eu sublinho). Poder-se-ia dizer que, na sua pintura ela mesma[footnoteRef:14], o quadro assim compreendido faz comparecer, no o objecto mas a sua ausncia, que a fora de presentificao pela qual ele se distingue como obra de arte conseguida consiste, precisamente, em tornar presente essa ausncia, em constituir-se a si mesmo, como presena dessa ausncia. Presena que no decerto nada universal, uma vez que no h ausncia seno do objecto de que o quadro fez o seu tema [son sujet], mas [que ], no entanto, presena total, dado que o quadro no apresenta nada para alm dessa ausncia, pois que esta ausncia, tornada presente pela magia da arte que se exerce graas ao processo da imagem, o enche ou ocupa inteiramente. No nesse sentido ilegtimo dizer que o quadro, e, com ele, a arte enquanto tal, apresenta o il y a que o pensamento buscava numa situao imaginria. No , alis, um acaso, se o captulo em que se encontra proposta a descrio do il y a encostado a um outro, intitulado Lexotisme e consagrado arte. [14: Au sens o on dit feuillure ou mture, notava Lvinas, a propsito da literatura (NLT 33). ]

Notemos alis que, se pode a existir relao com esse il y a, esta no poderia ser do tipo da relao objectal mas poder-se-ia dizer em termos de tangncia [frolement]. E o toque do il y a, o horror (EE 98), o horror enquanto participa-o, o termo que aqui se retoma, notou-se-o j, de Lvy-Bruhl. Na descrio mstica, profundamente distinta da participao platnica num gnero, a identidade dos termos perde-se. Eles despojam-se do que constitui a sua prpria substanti-vidade. A participao de um termo noutro no a comunidade de um atributo, um termo o outro. A existncia privada de cada termo, dominada pelo sujeito que , perde esse carcter privado, e regressa a um fundo indistinto; a existncia de um sub-merge o outro e, atravs disso mesmo, no j a existncia do um. Reconhecemos nela o il y a (EE 99). E ns reconhecemos, quanto a ns, o tipo de relao que se institui com a obra que nos captura pelo seu ritmo: o ritmo apresenta uma situao nica em que no se pode j falar de consentimento, de assuno, de iniciativa, de liberdade porque o sujeito tomado [saisit] e arrebatado [emport]. Nem mesmo apesar dele, porque no ritmo no h j si mesmo [soi], mas como que uma passagem ao anonimato (RO 775). Como na viglia [la veille; ou na insnia, como se ver], em que o il y a se cumpre: a viglia [la veille] annima. No h a minha vigilncia na noite, na insnia, a prpria noite que vela. Isso vela. Nessa viglia annima em que me encontro exposto inteiramente ao ser, todos os pensamentos que enchem a minha insnia se suspendem em nada [ rien]. Eles so sem suporte. Eu sou, se se quiser, o objecto mais que o sujeito de um pensamento annimo (EE 111)Vir a situar precisamente a arte no seio do edifcio geral da filosofia, na aventura do humano apreendida na sua globalidade e, segundo o pathos prprio a La ralit et son ombre, chegar a julg-la equivale em grande parte a situar o il y a na economia geral da obra. No somente a encontrar-lhe o seu lugar, em De lexistence lexistant e Le Temps et lAutre mas, de maneira mais determinante, a faz-lo nas obras maiores que so Totalit et Infini e, sobretudo, Autrement qutre ou au-del de lessence. Onde a noo no j objecto de uma anlise expressa, no contudo porque ela fosse abandonada, nem mesmo porque ela fosse relegada para uma qualquer segunda zona, mas porque a sua atestao se acompanha de um reenvio s anlises de 1947, que os novos livros consideram poder retomar sem modificaes. O que muda somente, o seu lugar na economia dessas obras. Vejamos o que com ele se passa em Autrement qutre. De que se ter feito notar que comea por uma Nota preliminar a precisar (AE IX) que a essncia, de que a segunda parte do ttulo anuncia que o livro vai procurar um para l, se deve a entender como o ser diferente do ente, o Sein alemo distinto do Seiendes, o esse latino distinto do ens escolstico; que ela deve, portanto, entender-se segundo a famosa diferena ontolgica. Mas eis ainda que, no outro extremo do livro, o il y a aparece como modo prprio dessa essncia, que absorve a diferena, na sua perseverana: a essncia imperturbvel, igual e indi-ferente a toda a responsabilidade que, doravante, ela engloba, converte-se como, na ins-nia, dessa neutralidade e dessa igualdade, em monotonia, em anonimato, em insignificncia, num rumorejar incessante que nada pode j parar e que absorve toda a significao, at aquela de que esta agitao confusa de deslocamentos [cette rmue-mnage] uma modalidade. A essncia a estirar-se indefinidamente, sem reteno, sem interrupo possvel no justificando a igualdade da essncia nenhum instante de paragem - sem deteno, sem suspenso possvel o il y a horrfico por detrs de toda a finalidade prpria do eu tematizante e que no pode deixar de se enterrar na essncia do que ele tematiza (AE 207-208). Se a ideia do livro consiste em ir para l da essncia, se ele se inscreve, assim, no processo de desneutralizao do il y a e, assim, da essncia ela-prpria, anunciada no programa pelo Prefcio segunda edio de De lexistence lexistant, e se a arte , na sua feitura mesma, a produo do il y a, cuja modalidade aquela da essncia, ento claro que arte no pode ser encarada seno como um momento mas decerto no ltimo da vida do esprito; como uma instncia legtima ao mesmo ttulo que a essncia, que nada tem de iluso transcendental (AE 75), mas que deve, no entanto, ser reduzida e, como tal, ultrapassada. Mas, no entanto, Autrement qutre reserva, ainda, um outro estatuto e uma outra funo ao il y a no prprio seio do processo de desneutralizao. Que se produz na intriga de uma subjectividade que, passivamente, num puro suportar, se vive como subverso e inverso da essncia. O il y a todo o peso que pesa a alte-ridade suportado por uma subjectividade que a no funda [] Nesse desbordamento do sentido pelo non-sens, a sensibilidade o Si [le Soi] somente se acusa, na passividade sem fundo, como puro ponto sensvel, como des-inter-essa-mento, ou subverso da essncia. De trs do murmrio annimo do il y a a subjectividade atinge a passividade sem assuno. A assuno poria j em correlao com o acto, esta passividade do de outro modo que ser, esta substituio aqum da oposio do activo e do passivo, do subjectivo e do objectivo, do ser e do devir [] Para suportar sem compensao -lhe preciso o excessivo ou a desnucleadora [l-coeurant] agitao confusa de deslocamentos [rmue-mnage] e o assoberbamento do il y a [lencombrement de lil y a] (AE 209). Aqui, o il y a recebe um lugar insigne, adquirindo uma funo determinante na estruturao da subjectividade, que se con-funde com o processo de desneutralizao, que aquele do acesso ao para alm da essncia, mas tambm [do acesso] ao para alm do il y a. Situao paradoxal, mas que deve deixar-nos supor que o lugar atribudo arte, tanto quanto ao juzo que, sobre ela, incide no poderiam ser simples, nem unilaterais. Mas, para ver exactamente em que consiste preciso regressar ao ensaio de 1948, para nele retomar, em particular, as ltimas pginas, luz das consideraes que acabam de ser feitas, e das implica-es que sero as suas.

6 / A arte ali, portanto, em primeiro lugar, determinada como a regio do aqum. Pode-se perguntar se, aqui, Lvinas no foi influenciado por Franz Rosen-zweig a quem me parece j pedir de emprstimo os conceitos teolgicos de Criao, de Revelao e, por omisso, de Redeno, para comear as suas anlises e delimitar embora grosseiramente as ideias em relao s concepes correntes (RO 773) e mais particularmente pelos desenvolvimentos estticos presentes no primeiro livro da segunda parte de Ltoile de la Redemption, Cration ou Le fondement perptuel des choses. Penso em particular nestas linhas: Quanto [arte], no h linguagem seno do inexprimvel, a linguagem enquanto ela no ainda linguagem, lingua-gem do pr-mundo. Quanto ao mundo antes do milagre da Revela-o, que est a, para ns, como uma expresso histrica desse pr-mundo, a arte, e no a palavra, que a verdadeira linguagem. Para os elementos do Todo que remontam dos fundos obscuros do nada, a arte, que estrutura a sua essncia, representa a concretizao visvel. Mas face realidade da linguagem real que faz brotar a sua vida, a sua realidade como obra de arte enquanto tal uma coisa dita [ein Gesprochness], no uma linguagem. Se se tratasse de uma linguagem, seria uma linguagem ao lado da linguagem, porque pode ser que existam muitas lnguas, mas no h seno uma s linguagem[footnoteRef:15]. Compreende-se talvez melhor, luz destas linhas de Rosenzweig, o que havamos notado desde o comeo: que a arte - que no est virada para ns segundo Rilke, retomada e admiravelmente truncada por Andr du Bouchet no linguagem, fosse ela literatura, e que, por essa razo, a obra no se d como um comeo de dilogo (RO 773). [15: Franz Rosenzweig, Ltoile de la Redemption, pp. 177-178.]

Mas neste aqum ou a partir dele, a arte exerce a sua fascinao porque, deste aqum, ela representa a magia. E a magia reconhecida por todo o lado como a parte do diabo, usufrui na poesia de uma incompreensvel tolerncia (RO 787). Mas o mesmo se d com a prpria essncia da arte e a actividade mesma do artista: o escritor mais lcido encontra-se, ele prprio, no mundo enfeitiado das imagens (RO 789). O que nada tem de espantoso se, como acaba de nos ensinar a leitura talmdica, a feitiaria a mestra da aparncia; e se verdade que a verdadeira dessacralizao [e por consequncia o desenfeitiamento autntico] tentaria separar positivamente o verdadeiro da aparncia, talvez mesmo separar o verdadeiro da aparncia essencialmente misturada com o verdadeiro (DSS 90). Aquilo de que a actividade artstica recalcada [refoule] no seu aqum , por natureza, incapaz, no comrcio com o obscuro em que ela se relaciona com a no-verdade do ser, e do fundo do qual faz vir luz, como um fingimento de verdade, como uma aparncia, essa no-verdade. Na qual ela se liga, alis, na dimenso de irresponsabilidade intima-mente ligada atitude da fruio esttica. Constata-se a: fazer ou fruir de um romance e de um quadro no j ter de conceber, renunciar a todo o esforo da cincia, da filosofia e do acto. No faleis, admirai em silncio e em paz tais so os conselhos da sabedoria [sagesse] satisfeita diante do belo. Mas h mais que consta-tao, ou este , desde logo, excedido por si mesmo: Encontramos um apaziguamen-to logo que, para alm dos convites a compreender e a agir, nos lanamos no ritmo de uma realidade que no solicita seno a sua admisso [sic pour admiration?] num livro ou um quadro. O mito toma o lugar do mistrio. O mundo por acabar substi-tudo pelo acabamento essencial da sua sombra. No o desinteresse da contem-plao, mas o da irresponsabilidade. O poeta exila-se a si prprio da cidade. Deste ponto de vista, o valor do belo relativo. H qualquer coisa de maldoso e egosta e de cobarde na fruio artstica. H pocas de que se pode ter vergonha, como de festejar em plena peste (RO 787).H a, a evidncia, um juzo, e um juzo severo, pronunciado sobre a arte ou na sua direo. Julgamento de moralista? Sem dvida nenhuma, e o filsofo habituou-nos a vermo-lo arcar com ele. Mas pode-se perguntar se, para alm da referncia ex-plcita a Pouchkin, no no reenvio a Rosenzweig e, no apelo a uma das leituras talmdicas que pareciam impor-se, segunda cultura de Lvinas, que se refere, aqui, essencialmente esta moral; de sorte que se pode finalmente perguntar se La ralit et son ombre, de que no sublinhou talvez suficientemente a violenta rejeio da idolatria que contm, no se deveria considerar como o mais judeu dos seus textos filosficos.

7 / Mas esse juzo, aparentemente sem apelo, no inteiramente vlido seno no que diz respeito arte deixada a si mesma, isolada da crtica que reintegra no mundo e no humano o pr-humano e o pr-mundo, no qual o artista fascinado, irresponsvel, pelas suas imagens e pelos seus mitos. J [isolada] a crtica no sentido tcnico do termo, que lhe pede razo dos seus processos tal como a reinsere numa histria, interessando-se pelas influncias que so as suas. Crtica ainda preliminar, no entanto. Ela aborda o acontecimento artstico como tal: o obscurecimento do ser na imagem, a sua paragem no entretempo. O valor da imagem, para a filosofia, reside na sua situao entre dois tempos e na sua ambiguidade. O filsofo descobre, para l do rochedo enfeitiado a que ela se atm todos os possveis que rastejam em redor. Ele capta-os pela interpretao (RO 788). Interpretao, eis a palavra-mestra apressadamente avanada e to logo precisada: [o artista] mais avisado, mais lcido, faz no entanto de louco[footnoteRef:16]. A interpretao da crtica fala em plena posse de si, francamente, pelo conceito que o msculo do esprito (RO 789). E eis em qu e por que razo: quer dizer que a obra pode e deve ser tratada como um mito: essa esttua imvel, preciso p-la em movimento e faz-la falar. Empreendimento que no coincide com a simples reconstituio do original a partir da cpia. A exege-se filosfica ter medido a distncia que separa o mito do real, tomar conscincia do prprio acontecimento criador; acontecimento que escapa ao conhecimento, o qual vai de ser a ser saltando os intervalos do entretempo. Atravs disso, o mito simultaneamente a no-verdade e a fonte da verdade filosfica, se todavia verda-deiro que a verdade filosfica comporta uma dimenso prpria de inteligibilidade, e no se contenta com leis e causas que religam os seres entre si, mas procura a obra do ser ela prpria (RO 788). Mas, depois de ter feito notar que a literatura moderna - que remonta alis a Shakespeare, ao Molire do Don Juan, a Goethe, a Dostoevs-ki - manifesta, pelo seu intelectualismo, a necessidade do artista de ultrapassar a sua condio e de vir a interpretar ele prprio os seus mitos, o ensaio termina colocan-do-nos numa expectativa tanto mais frustrante quanto se sabe que ela no foi seguida por nenhuma realizao: mas ns no podemos abordar aqui a lgica da exegese filosfica da arte. Isso exigiria um alargamento da perspectiva, de alcance limitado, deste estudo. Tratar-se-ia, com efeito, de fazer intervir a perspectiva da relao com outrem, sem a qual o ser no se poderia dizer na sua realidade, quer dizer no seu tempo (RO 789). [16: No h aqui uma reminiscncia de Rosenzweig, para quem o artista no um homem mas um monstro? Ver Ltoile de la redemption, p. 225.]

Notar-se- aqui que, em 1948, quando esse ensaio era escrito, todos os instru-mentos necessrios para o desenvolvimento de uma teoria da exegese filosfica da arte estavam [j] presentes, quer dizer estavam contidos em De lexistence lexistant bem como em Le Temps et lAutre, e que, em particular, a doutrina da relao com outrem se tinha encetado de maneira suficiente para poder ser, de seguida, desenvol-vida em Totalit et Infini e, no seu prolongamento, e no entanto de um modo comple-tamente outro, em Autrement qutre. Enunciar-se-, aqui, a hiptese de que era antes a concepo de linguagem presente em La ralit et son ombre que obstava ao pleno desenvolvimento de uma crtica filosfica da arte e que a que preciso ver a razo do seu abandono. Disse-se, logo no incio dessa exposio, nisso fiel ao ensaio no seu esprito e na sua letra, que a arte no linguagem, nem mesmo literatura por pouco que se esteja atento prpria transformao que a palavra sofreu em litera-tura (RO 772). Ora essa transformao consiste, quanto linguagem da arte, em abstrair-se do ser na sua obra e na sua verdade, para se deixar colar s imagens onde vem luz a no-verdade do ser. Inversamente, a filosofia verdadeira linguagem, atravs do conceito que como o msculo do esprito, na medida em que ela a prpria articulao da obra do ser na sua verdade, na medida em que ela o logos e j, de si, fenomenologia. Mas, viu-se-o ao situar o il y a produzido pela arte na intriga desenrolada por Autrement qutre, este pe a descoberto, mais questionante do que o ser na sua obra, o para alm do ser onde se situa a relao com outrem. Para dizer esse alm ou esse de outro modo a linguagem como logos j no basta, ou antes, essa linguagem aquela que, de si, reenvia o para alm essncia numa traio essencial. Para que esse para alm seja dito, precisa uma outra linguagem, uma outra significncia onde o Dito apofntico seja simultaneamente transportado e excedido por um Dizer que traz o Dito a Outrem. Assim significa o equvoco indes-trinvel [indmaillable] que tece a linguagem. No ele, desde logo aberrao ou distoro do ser que a se tematiza, entorse identidade? Que h a dizer quanto linguagem em si mesma, seno isto: a linguagem excederia os limites do pensamen-to sugerindo, deixando subentender, sem nunca fazer entender implicao de um sentido distinto daquele que vem ao signo da simultaneidade do sistema ou da defini-o lgica de um conceito (AE 215). Seria pensando nessa propriedade da linguagem que seria preciso entender Valry quando ele diz que a literatura , e no pode ser outra coisa seno uma espcie de extenso ou de aplicao de certas propriedades da linguagem[footnoteRef:17]. O que poderia ser aprovado por Lvinas, ele que faz seguir a frase que acaba de ser ciatada desta: Virtude que se pe a nu no dito potico e na interpre-tao para que ele apela ao infinito (AE 216). Aqui o dito potico corresponde essncia da linguagem aberrante da linguagem que o filsofo obrigado a trair, na exposio que dele faz, e na tematizao que dele d. Mas tambm, e ainda mais, ele , j de si, apelo a uma interpretao que no j o acto autoritrio do filsofo com o esprito musculado pelo conceito. No indiferente que o poema que a literatura e talvez, a partir deles, as outras artes por esse apelo exegese que se torna doravante a sua caracterstica essencial sejam plenamente reintegrados no esprito. Cuja mani-festao mais alta dada pela Escritura e a vida que a sua. Mas sem dvida o mo-mento de lembrar que, no primeiro versculo do Genesis, Rachi, cujo comentrio acompanha as bblias judaicas depois da Idade Mdia, diz: Verdadeiramente este texto diz: Interpreta-me![footnoteRef:18]. [17: Paul Valry, Varits, V.] [18: Lembrar-se- que, nos ltimos anos, Lvinas aproximava literatura e Bblia ou, mais exactamente, insistia na ascendncia bblica de toda a literatura, e em particular das literaturas nacionais.]

8 / No seria preciso acreditar, no entanto, que a arte, que se mostrava incapaz de se alar para alm do irremedivel aqum do ser, onde a confinava o imaginrio, seria capaz de se manter altura do de outro modo que ser, que se pronuncia no ponto extremo da relao com outrem. O de outro modo que ser, o para l do ser interrompem radicalmente o ser [tranche radicalement sur ltre] que reunio no ser, contemporaneidade, copresena, e, em simultneo, no ser, a hora da suspenso do ser em possibilidade, a finitude da essncia acessvel abstraco do conceito, memria que rene a ausncia na presena, a reduo do ser ao possvel e suputao [ao clculo] dos possveis; a comparao dos incomparveis, tematizao do Mesmo a partir da relao com o Outro, a partir da proximidade e da imediatidade do Dizer anterior aos problemas, enquanto que a identificao do conhecer, por si mesma, absorve todo o outro (AE 201) e, para comear, esse outro que o de outro modo que, em relao a tudo isso, significa como o imemorial.Mas aqui est: o passado imemorial intolervel ao pensamento. De onde a exigncia da paragem: anank stenai. O movimento para l do ser torna-se ontolo-gia e teologia. De onde tambm a idolatria do belo. Na sua indiscreta exposio e na sua paragem de esttua, na sua plasticidade, a obra de arte substitui-se a Deus [...]. Por uma subrepo irresistvel, o incomarvel, o diacrnico, o no-contemporneo, pelo efeito de um esquematismo enganador e maravilhoso, imitado pela arte que iconografia. O movimento para alm do ser fixa-se em beleza. A teologia e a arte retm o passado imemorial (AE 191, n. 21). Para melhor compreender o que , agora, reprovado arte, convm ver o que uma outra nota diz da teologia, que no menos contemplada: assim a linguagem teolgica destri a situao religiosa da transcendncia. O Infinito apresenta-se an-arquicamente; a tematizao perde a anarquia, que seria a nica coisa a poder dar-lhe crdito. A linguagem de Deus soa a falso ou faz-se mtica, quer dizer, no pode nunca ser tomada letra (AE 155, n.25). O mito, eis o problema. Tanto quanto a arte imobilizava, numa espessura mtica, a essencial fluidez do ser a realizar a sua obra, ao atravessar o intervalo do entretempo, assim tambm, pela sua plasticidade essencial, ela fixa, em beleza, o movimento que vai para alm do ser e assim o trai mas nem mais nem menos, no entanto, do que o faz a teologia, que tematiza a situao religiosa da transcendncia e requer, assim, a obra da desmitologizao[footnoteRef:19]. [19: Sem que seja possvel propor desde logo um paralelo com o trabalho de Rudolph Bultmann. Porque, em Lvinas, a desmitologizao diz respeito apenas teologia enquanto obra humana, e no teo-logia como palavra divina, como Escritura. Para afinar um pouco mais essa afirmao, seria preciso determinar exactamente o que h de posio de Lvinas quanto crtica histrica, o que no se fez seno esboar, no fim do captulo 3. ]

Ser isto verdade, contudo, de toda a arte? O que se pode exprimir de outro modo: ser toda a arte irremediavalemente plstica? As observaes feitas mais acima sobre a linguagem deveriam conduzir-nos a uma resposta mais matizada. Porque se viu que a virtude da linguagem deixando subentender sem nunca fazer entender, mas assim vivendo como um Dizer que apela a um Desdizer que suscita um Redizer posta a nu no dito potico em si mesmo, e no gesto exegtico que ele prprio suscita. Mas a poesia desborda, aqui, o gnero no qual a fechavam os nossos manuais, para dizer a poeticidade que se exprime na literatura, quando esta pe em obra certas propriedades de que falava Valry. Sempre que ela se confia linguagem[footnoteRef:20] quando, para pensar num texto contemporneo de La ralit et son ombre, mas, esse, pratica-mente desconhecido, ela [a literatura] sabe que, por vezes, para exprimir recursos humanos tais como o erotismo, sobre o qual se fragmenta uma filosofia da totalidade, circunstncias de linguagem particulares [so] necessrias: a linguagem nobre, arrastando atrs de si toda uma mistificao da histria, no conseguiu pr a descoberto o facto ambguo do erotismo seno recuperando/recobrindo [recouvrant] desde logo a sua nudez. Lawrence por exemplo, revelou dele as profundezas e, de alguma maneira, a sua dignidade ontolgica. Mas as suas experincias adoam-se numa filosofia da vida generosa. Seria necessria uma linguagem sumria, a gria de Cline[footnoteRef:21] [20: O confiar-se linguagem um trao do pensamento de Lvinas, e de novo uma marca de proximidade com Rosenzweig. No que diz respeito a este ltimo, pensemos por exemplo nestas observaes que se podem ler na pgina 173 de Ltoile de la redemption: ele [o idealismo] quis fazer aparecer em toda a fora, graas ao basto do pensamento prprio, a gua viva do rochedo da Criao, em vez de se contentar com toda a confiana com a fonte da linguagem, essa fonte que Deus tinha prometido fazer brotar do rochedo. Mas, disso, falou-se j repetidamente, no captulo preliminar. ] [21: Emmanuel Lvinas, Lrotisme ne ravale lesprit; Combat, 30 de Junho de 1949. no mesmo sentido que Lvinas admirou Les Hauteurs bantes de Alexandre Zinoviev lidas claro em russo; ver Langage quotidien et rthorique sans loquence (HS 208-209)]

Sem nos confinarmos a este exemplo particular, pode ver-se, com a obra de Blanchot, e com a maneira como dela fala, no fim de uma entrevista, de que modo a literatura como obra de linguagem faz intervir nela o Dizer, o Desdizer e o Redizer, apelando, assim, ao infinito da exegese que a desprende do que nela poderia permane-cer de mtico. Porque essa obra pode interpretar-se, simultaneamente, em duas direc-es. Primeiro em direco ao que, nos escritos contemporneos a La ralit et son ombre se chama o Exterior, o rumorejar eterno do Exterior antes de encontrar o nome de Neutro para dizer o mesmo fim do mundo, a mesma disseminao do sentido num Re-exame eterno [uma eterna repetio, un Ressassement ternel, etc] que no pode pensar-se seno na proximidade do il y a. Mas tambm, ao mesmo tempo, em direco ao Mundo onde a negatividade uma tarefa quando a dialctica nos prope a realizao de todos os possveis, por pouco que ns saibamos (e a coope-rando pelo poder e o domnio desse mundo) deixar ao tempo todo o seu tempo (a fim de aceder satisfao da presena) todas as possibilidades do tempo (BLANCHOT, Maurice, Lcriture du dsastre, p. 48). Mundo onde Saber, Poder e Querer cooperam, na totalizao do Todo. Mas, eis um terceiro momento, que no se deve compreender no sentido de uma sntese dialctica, mesmo se, com ele, regressa aquilo contra que se estabelece o segundo: A um tal mundo, Blanchot lembra que a sua totalidade no total que o discurso coerente de que se vangloria, no recupera um outro discurso que no chega a conseguir silenciar, que este outro discurso perturbado por um rudo ininterrupto, que uma diferena no deixa o mundo dormir, e perturba a ordem em que o ser e o no-ser se ordenam em dialc-tica. Esse Neutro no algum nem mesmo alguma coisa. No seno um terceiro exludo que, para falar com propriedade nem mesmo . No entanto h nele mais transcendncia do que algum ante-mundo [arrire-monde] jamais entreabriu (SMB 51-52). Eis, portanto, que, apreendido na poesia de Blanchot e Lvinas dizia sempre que era ela que era preciso ler, e tentar interpretar, de preferncia aos ensaios o Neutro o il y a se reverte, e, ele que parecia dever engolir na sua repetio [son ressassement] toda a transcendncia, mesmo aquela que mede, ainda, a intenciona-lidade, eis que ele abre mais transcendncia que algum ante-mundo jamais entrea-briu. Mas os ante-mundos nada mais so que, precisamente, a fixao em ente apreensvel ou no, pouco importa do movimento da transcendncia do qual a teologia no sabeconsegue suportar o recuo que ela pra no mito. Tinha-se j visto o il y a entrar no processo da desneutralizao para se fazer, por uma estranha revira-volta, condio da subjectividade que ao mais extremo se exalta. a uma semelhante reviravolta que se assiste aqui com o Neutro. Se essa reverso possvel, porque o dizer potico que a traz consigo passa da repetio transcendncia, sem se deixar parar na representao da estaturia e porque, assim, um e outro so equidistantes do mito, ou porque a transdescendncia do primeiro to afastada da imagem quanto a transascendncia da segunda. Mas assim que, na sua prpria transcendncia, o Neutro abre mais transcendncia que qualquer ante-mundo [arrire-monde] ou, mais precisamente, muito precisamente, assim que ele abre transcendncia de um Deus transcendente at ausncia, at sua confuso possvel com a agitao dos desloca-mentos [le remue-mnage] do il y a (DVI 115). Ei-las, portanto, poesia e literatura, pelo menos salvas da depreciao que se lia nas ltimas pginas de La ralit et son ombre, o que a nota de Autrement qutre confirmava de outro modo. Ei-las a ambas salvas na estrita medida em que elas so artes da linguagem e e em que a interpretao da linguagem como Dizer suscitador do Desdizer e do Redizer, apelando assim interpretao, ela prpria colhida no movimento da iterao. Mas as outras artes? Poder-se-ia considerar uma escultura que respondesse a este modelo rebuscado? No se v como ela poderia desestatificar a esttua se no fosse pela prtica da obliterao tal como ela posta em obra por Sacha Sosno e de que Lvinas reconhecia numa entrevista tardia, talvez amigavelmente solicitado, que ela conduz a outrem[footnoteRef:22]. A possibilidade parece mais imediatamente aberta com a pintura que, nas investigaes levadas a cabo no decurso deste sculo, quer tenham ido na direco de diferentes formas de abstraco, quer elas tenham tentado, por diferentes processos, desestruturar ou desfigurar a forma, souberam libertar a imagem no sentido de que se falou aqui e nela vieram a representar um fundo obscuro, incapaz de se fixar numa plasticidade, mas talvez susceptvel de acenar na direco de uma transcendncia dela apresentando no plasticamente o [seu] inverso. Lvinas no escreveu, por assim dizer, nada sobre a pintura. Mas talvez fosse numa tal direco quando dizia que a arte informal de Jean Atlan pe em obra um erotismo casto, [uma] ternura, [uma] compaixo e talvez [uma] misericrdia que fazem pensar na Bblia[footnoteRef:23]. [22: Emmanuel Lvinas, De loblitration. Entretien avec Franoise Armengaud propos de loeuvre de Sosno, Paris, La Diffrence, 1990, p. 28.] [23: Ver Emmanuel Lvinas, Jean Atlan et la tension de lart (1986), retomado em Les Cahiers de lHerne, n 60 (1991), p. 509-510.]

Resta que se pressente, sada deste percurso que no hesitou em fazer intervir em conjunto textos entre si distantes de trinta anos ou mais, o privilgio atribudo por Lvinas poesia e literatura. Situao vizinha daquela que se encontra em Heidegger, com a diferena de que, com quase nenhumas excepes (de que no vejo mais que Knut Hamsun e Lon Tolstoi[footnoteRef:24], alm disso citados e no analisados), Heidegger em nada se interessou pela literatura como tal, para no propor seno inter-pretaes da poesia[footnoteRef:25]. E teria ainda esta que ser, exclusivamente, grega ou alem. Para Lvinas, a literatura foi to importante quanto a poesia, tanto uma como a outra poderiam ser igualmente francesas, russas, ou hebraicas. Virtudes do cosmopolitismo! [24: Mas seria necessria bastante segurana de viso para evocar La mort dIvan Ilitch como o faz Sein und Zeit, 51, p. 254, n. 1.] [25: Em Was heisst denken? (p. 154-155, tr. 234-235), Heidegger distingue justamente literatura e poesia, mas parece-me ter dificuldade fazer entender que a primeira se caracteriza pela venalidade... (Einzelne aus dem literarischen Betrieb...) como se a segunda dela permanecesse pura. Mas Renart no foi, durante muito tempo mais reproduzido que Villon, e Ronsard foi-o tanto quanto Amadis de Gaula. A tipografia uma arte, mas que no conhece seno um reproduzido (Benjamin) ignorando o unum, qualquer que seja o texto. Alm disso, com Milton e o Paradise Lost que a propriedade literria e os direitos de autor comeam a tomar sentido e que a actividade de escritor se torna remunerante o que ela no era quando o poderoso agraciado de uma epstola dedicatria gratificava com pecnios o dedicador. Ver a famosa Aparition du livre de Fevre e Marion (Lvo-lution de lhumanit, vol. XLIX, Poche, n 30)]