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OBRA CAMILLE FLAMMARION O FIM DO MUNDO 1 PARTE No século XXV As teorias 1 - A ameaça celeste II - O cometa III - A sessão do Instituto IV - Como acabará o mundo V - O Concílio do Vaticano VI - A crença no fim do mundo VII - O choque 2° - PARTE Dentro de dez milhões de anos I - As etapas futuras

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OBRA

CAMILLE FLAMMARION

O FIM DO MUNDO

1 PARTE

No século XXV

As teorias

1 - A ameaça celesteII - O cometaIII - A sessão do InstitutoIV - Como acabará o mundoV - O Concílio do VaticanoVI - A crença no fim do mundoVII - O choque

2° - PARTE

Dentro de dez milhões de anos

I - As etapas futuras

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II - As metamorfosesIII - O apogeuIV - Vanitas vanitatumV - OmégarVI - EvaVII - O último dia

Epílogo - Dissertação filosófica

Primeira parte

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NO VIGÉSIMO QUINTO SÉCULO - AS TEORIAS.

CAPÍTULO I

A ameaça celeste

Implague ceternam timuerunt scecula noctem.

VERGILIO, Geórgicas, I, 568.

A magnífica ponte de mármore que liga as ruas deRennes e Louvre e que, debruada de estátuas de sábios efilósofos célebres delineia monumental aveni daconducente ao novo pórtico do Instituto, estavaliteralmente apinhada. Multidão inquieta parecia antesrolar que marchar, ao longo do cais, desbordando detodas as ruas transversais, em demanda do edifício, já dehá muito invadido pela onda tumultuária. Nunca, jamais,antes da constituição dos Estados Unidos da Europa, nasépocas da barbárie, quando a força primava ao direito, omilitarismo governava a Humanid ade e a infâmia daguerra , sem tréguas, a estultícia humana; nunca, nasgrandes revoluções como nos dias tumultuosos dasdeclarações de guerra, as cercanias do Parlamento e aPraça da Concórdia apresentaram semelhanteespetáculo. Não eram já agrupamentos fanáticos emtorno de uma bandeira, a buscarem uma arma, seguidosde curiosos e desocupados, ávi dos de emoções e

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novidades; era todo o povo inquieto, sôfrego , terrificado;era o amálgama compacto de todas as classes sociais,atido à decisão de um oráculo, esperando febril oresultado do cálculo de célebre astrônomo, prometidopara esse dia de uma segunda-feira, às 3 da tarde, naAcademia das Ciências. Através da transformaçãopolítica e social dos homens e das coisas, o Instituto deFrança sobrevivia e detinha ainda, na Europa, a palmada ciência, das letras e das artes. Todavia, o eixo dacivilização deslocara-se para a América do Norte, àsmargens do lago Michigan.

Estamos em pleno século vinte cinco.O novo edifício do Instituto, de altíssimos zimbórios e

terraços, havia sido reconstruído em fins do vigésimoséculo, de entre os escombros da grande r evoluçãointernacional-anarquista, que, em 1950, arrasara grandeparte da metrópole francesa, como se das entranhas dosolo lhe houvera rebentado a cratera de um vulcão.

Ainda na véspera, domingo, espalhada pelas avenidase praças públicas, toda a populaçã o parisiense teria vistoa barquinha de um balão deslizando lentamente e comoque desesperado e indiferente às coisas do mundo. Osaviadores alegres não mais sulcavam o espaço com avivacidade habitual. Aeroplanos, peixes aéreos, avesmecânicas, helicópteros elétricos, máquinas voadoras,tudo se retraíra e imobilizara. As estações aéreas, locadasna cimeira das torres e dos arranha -céus, permaneciamvazias e desertas. Dir-se-ia que toda a vida humana seestagnara em seu curso. Em todos os semblantes,preocupações e angústias. Todos se interpelavam semmesmo se conhecerem, e a mesma pergunta rebentava de

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lábios trêmulos em semblantes desfigurados: seráverdade? A mais terrível das epidemias não teriaapavorado tanto, quanto àquela predição astronômica,que andava agora em todas as bocas. Mais, ainda: nãoteria feito tantas vitimas, visto que a mortalidade jáentrara a crescer, sem causa conhecida. A todo omomento, cada qual se via sacudido por um frêmito deterror.

Alguns, querendo parecer mais fortes e menosalarmados, se arrimavam a hipóteses vagas e mais oumenos aleatórias: pode ser que haja engano; ou então: elese desviará, não há de ser nada; havemos de recobrar dosusto, etc.

Todavia, a incerteza é, muitas vezes, mais terrível quea própria catástrofe. Um golpe brutal fere-nos de chofree nos abate mais ou menos: dele despertamos, tomamosnosso partido, restabelecemo-nos e continuamos a viver.Aqui, porém, era o desconhecido, era a aproximaçãodum evento, inevitável, misterioso, extra mundano eformidável. Era a morte fatal, sim, mas de que modo?Choque, arrasamento, combustão incendiária,envenenamento atmosférico com asfixia pulmonar? Quesuplício esperar? Ameaça horripilante, mais que a morteem si mesma! O sofrimento espiritual também temlimites. Temer sem tréguas, perguntar todas as noitespelo que nos reserva o amanhã, vale por sofrer milmortes. E que dizer do medo? O medo, que coagula osangue nas artérias e aniquila as almas; o medo, espectroinvisível que ali rondava sobrepujando todas as mente s etodos os corações?

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Havia um mês que todo o comércio paralisara. OComissariado Administrativo (sucedâneo do Parlamentode outrora) suspendera as sessões, pois ali, mais quealhures, as divagações haviam chegado ao cúmulo.Paralisadas de oito dias as Bo lsas de Paris, Londres,Nova-Iorque, Chicago, Melbourne, Pequim! De fato: quevalia cogitar de negócios, de política, de planos ereformas quaisquer, se o mundo ia acabar? Ah . apolítica! Haveria quem se lembrasse de a ter p raticado?Era como se tudo caminhasse no vácuo. Os própriostribunais não tinham significação: ninguém vai roubar,ou matar, quando tudo vai perecer . A Humanidade jánão tinha que a estimulasse, o coração lhe pulsavaprecipite e como que prestes a mobilizar -se. De todos oslados surgiam fisionomias alteradas, macilentas, insones,e só a faceirice feminina, ainda que mal disfarçada,parecia resistir à obsessão da catástrofe iminente.

E' que, de resto, a situação era mesmo gravíssima,por não dizer desesperadora, até no conceito, dos maisestóicos.

Nunca, nos fastos da Humanidade, a raça de Adão seencontrara ameaçada de semelhante perigo. As ameaçascósmicas pairavam sobre ela sem remissão. Era umproblema de vida ou de morte.

Três meses mais ou menos, antes da data em queestamos, o Diretor do observatório do monteGaorisancar havia telefonado aos principaisobservatórios do planeta um recado nestes termos

Descobrimos, às 21h., 16m., 42s ., um cometatelescópico de ascensão retilínea a 49', 53', 45 dedeclinação boreal. E um cometa esverdeado.

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Não se passava um mês que não fossem descobertos eanunciados cometas telescópicos por diversosobservatórios (1), sobretudo depois que astrônomosintrépidos se instalaram nos altos cimos asiáticos deGaorisancar, Dapsang e Kintechindjinga; nos sul -americanos de Aconcágua, Illampon, Chimborazo ;assim como no Kilima-N'djaro africano e no Elbrouz eMont-Blanc, europeus. Destarte, aquele comunicado nãohavia, de começo, impressionado maiormente aos sábios,familiarizados com o seu conteúdo. Grande número deobservadores procurara focalizar o cometa na posiçãoassinalada, acompanhando-o atentos. OsNeuastronomischenachrichten publicaram suasobservações. Um matemático alemão calculara umaprimeira órbita provisória, com as efemérides domovimento. Logo que foi divulgada essa órbita com assuas efemérides, outro sábio japonês fazia curiosíssimanotação, isto é : que, segundo o cálculo, o cometa deveriabaixar das alturas do infinito para o Sol e cruzar o planoda eclíptica aos 20 de Julho, num ponto pouco afa stadodo em que se encontraria a Terra naquela data. Pelo que,acrescentava, seria imprescindível multiplicar asobservações e retomar o cálculo, para fixar a distância aque passaria o cometa e, só assim, prejulgar uma colisãocom a Terra, ou com a Lua.

Uma senhorita, laureada do Instituto e candidata àDiretoria do Observatório, agarrara o pretexto parafincar-se na sala dos telefones, a fim de captarimediatamente todos os despachos. Em menos de 10 dias,obtivera ela mais de uma centena e, sem perder uminstante, ei-la passando três dias e três noites a refazer o

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cálculo, baseada na série de todas as observações. Oresultado foi que o calculista alemão errara na distânciado periélio, e a conclusão do astrônomo japonês erainexata, no concernente à passag em pelo plano daeclíptica, que se adiantara de cinco ou seis dias. Ointeresse do problema tornava-se, porém, maior, vistoque a distância mínima entre o cometa e a Terraafigurava-se mais curta que a calculada pelo japonês.Sem cogitar, no momento, da po ssibilidade de umchoque, todos esperavam encontrar na perturbaçãoenorme que o astro errante ia sofrer, da parte da Terra eda Lua, um novo meio de avaliar, com precisão rigorosa,a massa de uma e de outra, e, possivelmente, índicespreciosos do repartimento das densidades no interior donosso orbe. A jovem calculista encarecia e justificava,destarte, a necessidade de observações mais numerosas eminudentes. Na véspera da sessão, tinha ela já explicadoa órbita, num comício acadêmico.

Contudo, era no Observatório de Gaorisancar que secentralizavam todas as observações. Montado no picomais elevado do mundo, a 8000 metros de altitude, entreneves eternas que os novos processos da química elétricahaviam rechaçado a muitos quilômetros de em torno;sobranceando quase sempre, a centenas de metros, asnuvens mais altas; pairando numa atmosfera pura erarefeita, a visão telescópica dir -se-ia ali centuplicada.Distinguiam-se a olho nu os círculos lunares, os satélitesde Júpiter e as fases de Vênus. Nove ou dez g eraçõesfamiliares haviam já habitado a montanha asiática, lá seaclimando e identificando com a rarefação atmosférica.E' certo que os primeiros haviam rapidamente perecido,

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mas a Ciência e a Indústria conseguiram atenuar osrigores do frio, graças ao armazenamento dos raiossolares, e a aclimação se fizera gradualmente, tão bemcomo nos tempos idos, em Quito e Bogotá, onde se viam,desde os séculos XVIII e XIX, populações felizes, emabastança, e mulheres que bailavam noites a fio, sem sefatigarem, numa altitude em que os excursionistas doMonte-Branco mal arriscariam alguns passos sem lhesfaltar a respiração. Uma pequena colônia astronômicainstalara-se, pouco a pouco, nos flancos do Himalaia e oObservatório granjeara, por seus trabalhos edescobertas, o titulo de primeiro do mundo. Seuprincipal instrumento era a famosa equatorial de 100metros de foco, com auxílio da qual chegaram a decifraros sinais hieroglíficos que, de milênios, vinha Martebaldamente emitindo para a Terra. Enquanto osastrônomos europeus discutiam a órbita do novo cometae constatavam que ela deveria efetivamente atravessar ado nosso planeta, de feição a com ele chocar -se no espaço,o Observatório asiático expedira um novo fonograma:

O cometa vai tornar-se visível a olho nu. Sempreesverdeado, dirige-se para a Terra.

Viessem da Europa, Ásia ou América, os cálculosastronômicos já não ofereciam dúvida sobre a suaexatidão. Os jornais cotidianos bolsaram a notíciaalarmante, ilustrada de comentários trágicos e inúmerasentrevistas, que atribuíam aos sábios as mais esdrúxulasopiniões. Não faltava quem exagerasse os cálculos,gravando-os com dissertações mais ou menos fantasistas.Mas, a verdade é que a imprensa periódica de todo omundo, sem exceção, transformara -se de há muito em

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mero agente de mercantilismo. Essa imprensa que,noutros tempos, tantos serviços prestara à causa do livrepensamento e, portanto, ao progresso humano, estavaagora a soldo dos governos e do capitalismo, aviltada emanietada por compromissos de toda a espéci e. Nãohavia jornal que se não reduzisse a objeto de comércio. Aquestão, o problema de cada qual, resumia -se noaumento da tiragem e na receita dos anúncios mais oumenos estrambóticos. Fazer dinheiro, eis tudo. Por isso epara isso, maquinavam falsas not ícias, que desmentiamlogo tranqüila e imediatamente; minavam a todo oinstante a segurança do Espaço, mascaravam a verdade,atribuíam aos sábios falsos conceitos, caluniavamatrevidamente, semeavam escândalos, mentiam,arrazoavam assassínios e ladroeiras, multiplicavam oscrimes por sugestão, davam as fórmulas de explosivosrecentemente imaginados, envenenavam seus própriosleitores e traíam todas as classes sociais no só intuito desobre excitar a curiosidade pública e vender a folha.Nada mais que negócios e reclames. Ciências, arte,literatura, filosofia, estudos e pesquisas, nadainteressava. Um ator de segunda ordem, uma atrizobscura, um tenor, uma cantora, um ginasta, umcorredor, um andarilho, um atleta, sobretudo umbandido da pior espécie podiam, de um dia para outro,tornar-se mais célebre que o mais eminente dos sábios,ou o mais benemérito dos inventores. Publicavam -seretratos dos mais fortes corredores, como dos maisilustres patifes e assassinos. Às vezes, davam -se aotrabalho de mascarar essa bestice com floreiospatrióticos, que os valorizassem um tantinho mais.

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Contudo, o que predominava era a economia da folha.Por muito tempo deixara-se o público mistificar.Todavia, na época em que nos achamos, ele haviadespertado e já não dava crédito a balelas impressas, desorte que não existiam jornais propriamente ditos, masapenas folhas de anúncios e reclames de utilidadecomercial. A primeira notícia lançada por todas aspublicações cotidianas era a de que um cometa seaproximava com incrível velocidade e ia chocar-se com aTerra na data prefixada. A segunda notícia acrescentavaque o astro vagabundo poderia ocasionar uma catástrofeuniversal, pelo envenenamento do ar respirável. Estadupla predição fora, aliás, acolhida por toda a gente, comdisplicente incredulidade, não produzira maior efeito queo da descoberta da fonte de Juventa ao porão do Paláciodas Fadas, em Montmartre, (surgido das ruínas doSagrado-Coração) e que também se anunciava comocoisa sensacional.

Literatos, poetas e artistas valeram-se do pretextopara celebrar em prosa, em verso e ilustrações de todaespécie, as viagens cometárias através das regiõescelestes. Aqui, era o cometa afrontando um enxame deestrelas aterradas; ali, precipitando -se, cambalhotando,ameaçando a Terra adormecida. Tais personificaçõessimbólicas entretinham a credulidade pública, semacréscimo dos primeiros terrores. Dir -se-ia que sefamiliarizavam com a idéia de um encontro, sem maiorestemores. E' que a maré das impressões populares oscilacomo os barômetros.

Ao demais, os próprios astrônomos, de começo, não setinham inquietado com a probabilidade do encontro, sob

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o ponto de vista das conseqüências atinentes aos destinoshumanos, tanto que as revistas de Astronomia (as únicasque ainda mereciam conceito) nada haviam dito nesseparticular, mesmo a título conjetural. Encararam oproblema pelo prisma das matemáticas puras,considerando-o apenas corno um caso interessante damecânica celeste. Nas entrevistas que deram, limitou-se aresponder que o encontro era possível, provável mesmo,mas, destituído de interesse para o público.

De súbito, novo fonograma, desta vez emitido doMonte Hamilton, na Califórnia, vinha alertarfisiologistas e químicos:

As observações espectroscópicas atest am que ocometa é constituído de massa assaz condensada,composta de vários gases, nos quais predomina o óxidode carbono.

O negócio complicava-se. O encontro era coisa certa.Se os astrônomos até então não se preocupavammaiormente, acostumados a considerar inofensivas essasconjunções celestes, a ponto de se esquivarem, e alguns,de entre eles, despedirem a reportagem abelhuda,declarando que o assunto, de pura alçada astronômica,não interessava ao vulgo, agora tocava aos médicos oalarme e o debate, agitado quanto às hipóteses de asfixiaou envenenamento. Menos indiferentes à opinião pública,eles, os médicos, não escorraçavam os publicistas e, muitoao invés, concorriam para que em poucos dias a questãotomasse outro aspecto. De astronômico, tornou -sefisiológico; e os expoentes mais célebres da medicinacomeçaram a retratar-se nas revistas ilustradas, comlegendas deste teor: dão-se consultas sobre o cometa. A

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variedade, a diversidade e o antagonismo das apreciaçõesforam a ponto de originar controvérsias e polêmicasapaixonadas, através das quais eram os médicosaverbados de charlatães.

Contudo, cioso dos interesses da ciência, o Diretor doObservatório de Paris mantinha -se mudo em face dacontrovérsia que, por mais de uma feita, desvirtuara averdade astronômica. O Diretor era um anciãorespeitável, cujo cabelos haviam encanecido no estudodos grandes problemas da cosmologia. Sua palavra erauniversalmente acatada e ele decidiu, finalmente,transmiti-la à imprensa, notificando-lhe a prematuridadede quaisquer conjeturas, enquan to a assembléia dostécnicos, reunida no Instituto, não chegasse a umaconclusão.

Já dissemos que o Observatório de Paris sempre semantivera à testa do movimento científico, graças àoperosidade de seus membros. Sobretudo, pelatransformação dos seus métodos de observação, tornara-se simultaneamente santuário de estudos teóricos enúcleo telefônico dos seus congêneres, situados longe emais favorecidos pela altitude e condições atmosféricas.Era, enfim, um asilo de paz no qual imperava a maiscompleta harmonia. Os astrônomos ali se consagravam,uma vida inteira, aos progressos da ciência, estimando -see respeitando-se, indenes de inveja e ciúmes, eesquecendo méritos pessoais para só exaltarem osalheios. O Diretor era o primeiro a exemplificar e, assim,quando falava, fazia-o em nome de todos os colegas. Adissertação técnica, por ele publicada, teve o seumomento de atenção, mas, a verdade é que o problema

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astronômico já estava fora do cartaz. Ninguémcontestava nem discutia o encontro do cometa com aTerra, que granjeara foros de matemática certeza. O quepreocupava os espíritos era a constituição química docometa. Se a sua passagem pela Terra viesse absorver ooxigênio da atmosfera, não haveria como evitar a asfixiaimediata. Fosse o azoto combinar com os gasescomentários e seria ainda a morte, precedida de enormedelírio e de uma como alegria universal, um exaltamentode todos os sentidos, decorrentes da subtração do azoto edo acréscimo proporcional do oxigênio em funçãopulmonar. A análise espectral a ssinalava, sobretudo, oóxido de carbono. O que as revistas científicas discutiam,primordialmente, visava a saber se a mistura deste gásdeletério, com o ar respirável, envenenaria a populaçãoem bloco, homens e animais, conforme afirmava oPresidente da Academia de Medicina.

Oxido de carbono! Não se falava de outra coisa. Aanálise espectral não poderia enganar -se, os métodoseram seguros, rigorosos os processos. Toda gente sabiaque a mínima partícula desse gás, aspirado, era morte atermo breve. A essa altura, novo despacho doGaorisancar vinha confirmar e agravar o do Monte -Hamilton, dizendo:

O cometa, cujo volume aumenta dia a dia e já excedeao da Terra, trinta vezes, acabará envolvendo -atotalmente.

Trinta vezes o diâmetro do nosso globo?! Mas, ent ão,mesmo que ele passasse entre a Terra e a Lua, afetaria

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ambas, visto que uma ponte dessa extensão bastaria paraligar-nos ao satélite. Depois, a verdade é que, nesses trêsmeses, cujo histórico sumariamos, o cometa deslocara -sedos planos telescópicos, tornara-se visível a olho nu eagora aí estava pairando todas as noites, gigantesco,ameaçador, à face das estrelas. A crescer de noite paranoite, dir-se-ia fosse o próprio Terror materializado eimpendente de todas as cabeças, caminhando lenta egradualmente, qual espada formidanda e inexorável. Umúltimo ensaio fora tentado, não para desviá -lo do seuroteiro - idéia aventada por certa classe de utopistas, quede nada duvidam e ousaram imaginar o recurso de umpoderoso ciclone elétrico, produzido por bate riasdispostas na região passível de ser atingida - mas parareconsiderar o problema em todos os seus aspectos etranqüilizar, possivelmente, os espíritos, reanimar -lhes aesperança com alguma falha das previsões já emitidas, ouqualquer nesga nos cálculos e observações consumadas.Quem diria não ser o encontro tão funesto comopretendiam os pessimistas? Uma discussão geral deviatravar-se naquela noite de segunda-feira, no Instituto,isto é, quatro dias antes do fatídico encontro, previstopara o dia 13 de Julho. O mais célebre astrônomo daFrança, então Diretor do Observatório; o Presidente daAcademia de Medicina, fisiologista e químico eminente; oPresidente da Sociedade Astronômica, hábil matemático,e oradores outros, entre os quais notabilíssima damajustamente afamada por suas descobertas no campo dasciências físicas, iam ilustrar os debates. Sim, a últimapalavra-não fora ainda pronunciada e nós vamos,

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portanto, franquear o velho domo do vigésimo séculopara assistir à discussão.

Antes de o fazer, porém, examinemos nós mesmo essefamigerado cometa, que aí está desvairando todas asmentes.

CAPITULO 11O cometa

Vapores qui ex caudis cometarum oriuntur ínciderepossunt in atmospheras planetarum, et ibi condensari et

corverti in aquam, et sales, et sul phura, et limum, etlutum, et lapides, et substantias alias terrestres migrare.

NEWTON, Principia, 111, 671.

O estranho visitante descera lentamente dos paramossiderais. Em vez de surgir de súbito, como sói acontecer etem-se observado com os grandes cometas, quer quandoaparecem após a transposição do periélio, quer quandolonga serie, de noites nubladas, ou luarentas, interditou aobservação dos investigadores, desta feita os flutuantesvapores siderais haviam ficado nos espaços telescópicos,só observados pelos astrônomos.

Nos primeiros dias, seqüentes à descoberta, ele sóseria acessível através de poderosas lentes. O públicoinstruído não deixara, contudo, de procurar por simesmo. Todo edifício moderno tinha, ao demais, o seuterraço destinado ao tráfego aéreo, e muitos deles

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providos de cúpulas giratórias. Não havia famíliaremediada que não dispusesse de uma lunetaastronômica, nem apartamento de certa ordemdesprovido de biblioteca bem fornida de obrascientíficas. E' que, no século XXV, os terr ícolascomeçavam efetivamente a pensar.

O cometa fora, por assim dizer, observado por toda agente, desde que se tornou acessível aos aparelhos demediana potência. Quanto às classes laboriosas, que têmas horas sempre contadas, as tinham ao seu dispor aslunetas assestadas nas praças públicas, sempre ocupadaspela turba impaciente. Não faltaram, então, a partir daprimeira noite de visibilidade, astrônomos do ar livre, oudo sereno, com as suas receitas e predições fantásticas.Grande número de operários d ispunham, todavia, delunetas domésticas, sobretudo na província, e, manda ajustiça e a verdade se diga que, em França, o primeiro adescobrir o cometa (fora dos Observatórios oficiais, éclaro) não foi nenhum acadêmico nem figurão social, masum modesto alfaiate do arrabalde de Soissons, quevigilava todas as noites e, munido de excelente lunetaadquirida com penoso esforço, não cessava de estudar ascuriosidades do firmamento.

Uma nota digna de registo é a de que até o séculoXXIV quase todos os habitantes da Terra viveram semsaber onde estavam e sem mesmo ter a curiosidade de oindagar, mais ou menos como o cego apenas preocupadocom o seu apetite. Mas, de cem anos a essa parte, a raçahumana entrara a observar o Universo e a meditar. Parafazermos uma idéia da trajetória do cometa, bastaexaminar com atenção o gráfico. Ele representa o plano

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da órbita do cometa e a sua intersecção na órbitaterrestre, com o cometa chegando do infinito, dirigindo -se obliquamente para a Terra e prosseguindo em seucurso, a aproximar-se do Sol, que o não retém nemabsorve em sua passagem ao periélio.

Não se levou em conta à perturbação acarretada pelaatração terrestre - influência que teria por efeitoreconduzir o cometa para a órbita terrestre, após umarevolução em torno do astro solar, transformando-se-lhea órbita de parabólica em elipsoidal. Todos os cometasque gravitam em torno do Sol descrevem órbitasanálogas, mais ou menos alongadas, das quais o astroradioso ocupa um dos focos.

Numerosos, esses cometas. O desenh o dá uma idéiadas intersecções que eles apresentam com a órbitaterrestre, em torno do Sol, e com as outras órbitasplanetárias. Examinando essas intersecções, vê -se que umencontro nada tem de impossível, nem mesmo deanormal.

Agora, ele poderia ver-se da Terra. Uma noite denovilúnio, com um céu admiravelmente limpo, algunsolhares mais penetrantes tinham conseguido distinguir aolho nu, não longe do zênite, nas bordas da Via -láctea eao sul da estrela ômicron de Andrômeda, uma comopálida nebulosidade, tenuíssima nuvenzinha esfumada eapenas alongada em direção oposta ao Sol, como umprolongamento gasoso, um esboço de cauda rudimentar.Aliás, era sob este mesmo aspecto que o fixavam ostelescópios, desde que fora descoberto. Ninguém poderia

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atribuir a esse aspecto inofensivo o papel trágico que onovo astro iria representar na história da -Humanidade.O cálculo tão somente indicava, até então, a sua marchapara a Terra. O astro misterioso prosseguia, entretanto,rapidíssimo na sua trajetória. No dia segu inte, já metadedos curiosos conseguiam percebê -lo; e, no imediato, nãohavia binóculos que o não apanhassem. Dentro de umasemana, todos o conheciam. Nas praças públicas, emtodas as vilas e aldeias, só se viam grupos a procurar,assinalar e discutir o intruso.

E o intruso avultava de dia para dia. As lentes járevelavam, no seu corpo, um núcleo assaz luminoso, quesuscitava dissertações apaixonadas. Depois, a caudafendeu-se lentamente em raios divergentes do referidonúcleo e tomou, pouco a pouco, a form a de leque. Aemoção chegava ao auge quando, após o primeiro quartode lua e durante a lua cheia, o cometa como queestacionara e até esmaecera. Tendo -o visto engrandecerprogressivamente até então, conjeturou qualquerdescuido no cálculo, o que ensejou um a fase de relativodesafogo e tranqüilidade. Depois do plenilúnio, obarômetro caiu rápida e consideravelmente : o centro dedepressão de fortíssima tempestade chegava do Atlânticoe passava ao norte das ilhas Britânicas. O céu ficoutotalmente encoberto durante doze dias, para, quase todoo continente europeu. Mas, as nuvens se esvaeceram,enfim, e o Sol voltou a fulgir num céu azul, puríssimo. Dever-se, a emoção com que aguardavam o ocaso desse diaradioso, emoção tanto maior quanto alguns aviadorestinham conseguido, antes, atravessar a camada nebulosae asseguravam que o cometa havia aumentado

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consideravelmente. As mensagens recebidas dos píncarosasiáticos e americanos anunciavam, por outro lado, achegada mais breve. Mas, quanta decepção' Ao cair danoite, quando todos mergulhavam o olhar nofirmamento, na expectativa de contemplar um astrocoruscante, já não era um cometa clássico o que se lhesdeparava e sim uma aurora boreal de nova espécie, umcomo prodigioso leque de sete varas, a projetar no espa çooutros tantos raios esverdeados, que pareciam provir deum foco oculto abaixo do horizonte. Não restava dúvidasde que essa aurora boreal, fantástica, fosse o própriocometa, ainda porque, do anteriormente observado,ninguém lobrigava vestígios no manto estrelado. Aaparição diferia singularmente, na verdade, das formascometárias conhecidas, e o aspecto radioso do insólitovisitante poderia dizer-se o que de mais inesperadopudesse haver no mundo. Essas formações gasosas são,contudo, tão bizarras, tão caprichosas e multifárias, queninguém as poderia descrever. Depois, não era aprimeira vez que um cometa apresentava tal aspecto. Osanais da astronomia mencionavam, entre outros, umenorme cometa de seis caudas, observado em 1744 e quefora, então, objeto de inúmeras dissertações. Haviamesmo, dele, um assaz pitoresco desenho de visu, feitopelo astrônomo Chesaux, de Lausanne, que opopularizara ao seu tempo. O cometa de 1861, com a suacauda em leque, era outro exemplo desse gênero deperegrinos interplanetários, e havia quem lembrasse que,a 30 de Junho daquele ano, ocorrera um encontro, porsinal que bem inofensivo, da sua cauda com a Terra.

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Mas, ainda que não houvera precedentes, não haviacomo iludir a evidência.

Entrementes, as discussões prosseguiam e verdadeirajusta astronômica se travara através das revistascientíficas de todo o mundo, únicas que mantiveramalguns créditos, como vimos, no turbilhão domercantilismo que de há muito empolgara aHumanidade. A questão principal, uma vez sabido que oastro caminhava para a Terra, era a distância que seencurtava dia a dia, relacionada, portanto, com a suavelocidade. A jovem laureada do Instituto, recém -nomeada para a chefia da secção de cálculos, não deixavade expedir o boletim diário ao órgão oficia l dos EstadosUnidos da Europa.

Uma relação matemática, bem simples, conjuga todaa velocidade cometária à sua distância solar, e vice -versa.Conhecida uma, pode-se imediatamente encontrar aoutra. De fato, a velocidade de um cometa é pura esimplesmente igual à de um planeta, multiplicada pelaraiz quadrada de 2. Ora, a velocidade de um planeta, aqualquer distância do Sol, está regulada pela terceira leide Kepler, em virtude da qual os quadrados de tempodas revoluções estão entre si como os cubos dasdistâncias. Nada mais simples, portanto.

Assim, pois, à distância de Júpiter, o magníficoplaneta que gravita em torno do Sol com uma velocidadede 13.000 metros por segundo, um cometa nessa mesmadistância deslocar-se-á, portanto, com a velocidade queacabamos de assinalar, multiplicada pela raiz quadradade 2, ou seja, pelo número 1,4142. Teremos, então, umavelocidade de 18380 metros por segundo.

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Marte circula o Sol com a velocidade de 24000 metrospor segundo. A essa distância, a velocidade cometáriaserá de 34000 metros.

A velocidade média da Terra em sua órbita é de29460 metros por segundo, um tanto mais lenta emJunho e mais rápida em Dezembro. Na vizinhança daTerra, a velocidade do cometa seria, portanto, de 41660metros, independentemente da aceler ação que a atraçãoda Terra lhe pudesse acarretar. Eis o que a laureada doInstituto incumbiu-se de transmitir ao público, aliás jáelementarmente iniciado nas teorias da mecânica celeste.

Quando o astro ameaçador atingiu a distância deMarte, os temores populares deixaram de ser vagos,tomando formas definidas, baseadas na apreciação exata,quão fácil, da sua velocidade a 34000 metros porsegundo, ou sejam 2040 quilômetros por minuto,equivalentes a 122400 quilômetros à hora!

Sendo à distância entre as órbitas de Marte e daTerra não excedente a 76 milhões de quilômetros, temosque, à razão de 122400 quilômetros horários, essadistância seria vencida em 621 horas, ou 26 dias mais oumenos. Contudo, à medida que se aproxima do Sol, ocometa acelera a sua marcha, visto que, à distância daTerra, sua velocidade é de 4166 metros por segundo.Dado este acréscimo de velocidade, à distância entre asduas órbitas seria coberta em 558 horas, ou 23 dias e 6horas.

Mas, não devendo a Terra achar -se, no momentojusto do encontro, precisamente no ponto de sua órbitaatravessado por uma linha entre o Sol e o cometa, poisque este não se precipitava para aquele, o encontro só

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poderia dar-se uma semana mais tarde, pouco mais oumenos, ou fosse na sexta-feira 13 de Julho, à meia-noite.Desnecessário acrescentar, que, em tais circunstâncias,todos os preparativos da festa nacional do 14 de Julhoforam esquecidos. Ninguém pensava nisso. Pois o 14 deJulho não auspiciava, antes de tudo, um luto universal?De resto, havia já cinco séculos que a famosa efeméridevinha sendo - se bem que intermitentemente -comemorada pelos franceses. Entre os próprios romanos,a tradição das festas circenses não durara tanto tempo.Ouvia-se geralmente dizer que o 14 de Julho já tinhavivido bastante; que tinha morrido quinze vezes e nãodeveria ressuscitar.

Encontramo-nos aqui, precisamente, aos 9 de Julho,segunda-feira. Havia cinco dias que o céu se ostentavabelíssimo e toda à noite o leque cometário esplendia naimensidade com o seu núcleo bem v isível, palhetado depontos luminosos, que poderiam representar corpossólidos, de diâmetros quilométricos e que - asseguravamalguns calculistas - deveriam ser os primeiros aprecipitarem-se sobre a Terra, pois que a cauda semantinha voltada para o Sol e , no caso vertente,precedida do movimento e sensivelmente oblíqua. Oastro flutuava na constelação dos Peixes; a observação davéspera dava a sua posição exata; ascen são retilínea =23h. 10m., 32s. declinação boreal = 7° 36' 4 . A caudaatravessava todo o quadrado de Pégaso. O cometa surgiuàs 9h. 49m. e planava no céu por toda a noite.

Durante o período de calma retro -assinalado,houvera uma reviravolta na opinião pública. Após umasérie de cálculos, certo astrônomo estabelecera que, por

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várias vezes, a Terra tinha encontrado cometas e sempretais encontros resultaram em inofensiva chuva de estrelascadentes. Um colega, porém, lhe replica que o cometaatual longe estava de poder equiparar -se a um enxame demeteoros, por isso que gasoso, com um núcleo deconcreções sólidas; e lembrava, a propósito, asobservações relativas ao histórico e famoso cometa de1811. Tal cometa não deixa de justificar, efetivamente, decerta maneira, temores nada quiméricos. Tiveram ocuidado de lembrar as suas dimensões. Comprimen to de180 milhões de quilômetros, ou seja, maior que àdistância da Terra ao Sol. A extremidade da caudaoferecia 25 milhões de quilômetros de largura. Odiâmetro da cabeça era de 1800000 quilômetros, isto é,cento e quarenta vezes maior que o da Terra. Ne ssacabeça nebulosa, elíptica e notoriamente regular, via-seum núcleo brilhante, qual estrela, cujo diâmetro, por sisó, media 200000 quilômetros. Esse cometa afigurava -semuitíssimo denso e foi observado durante 6 meses e 22dias. Entretanto, o que de mais notável, talvez, se podeassinalar a seu respeito, é que o seu enormedesenvolvimento foi atingido sem aproximar -se do Sol, àdistância de 150 milhões de quilômetros. Assim que,permaneceu sempre a mais de 170 milhões dequilômetros da Terra. Se mais se houvera aproximado doSol, dado que a dimensão dos cometas aumenta àproporção que experimentam maiormente a ação solar,seu aspecto deveria ter sido ainda mais prodigioso eterrificante para toda gente. E, como a sua massa longeestava de ser insignificante, se o seu vôo o tivesse levadodiretamente ao Sol, a velocidade acelerada à razão de 500

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e 600 quilômetros por segundo no momento do choquecom o astro radioso, teria logrado, pela só transformaçãodo movimento em calor, elevar a radiação solar a talgrau que toda a vida animal e vegetal na Terra seextinguiria em poucos dias... Um físico houve que chegouà curiosa ponderação de que um cometa, igual ou maiorque o de 1811, poderia destarte acarretar o fim domundo, sem tocar a Terra, por uma tal ou qual explosãode luz e calor solares, análoga às observadas com asestrelas temporárias. O choque, nesse caso, engendrariauma quantidade de calor igual a seis mil vezes a de umvolume de hulha igual ao cometa.

Havia-se ressaltado que, em seu vôo, tal cometa, aoinvés de precipitar-se para o Sol, chocar-se-ia conosco eseria, então, a consumação pelo fogo. Se ele, o cometa,colidisse com Júpiter, levá-lo-ia a uma temperaturacapaz de lhe restituir a perdida luminosidade, comprerrogativas de sol temporário, de modo que a Terraseria aclarada por dois sóis. Júpiter ficaria sendo, assim,um como pequeno sol noturno, muito mais luminoso quea Lua e emitindo luz própria... vermelha, rubi ou grenáceleste, e circulando em doze anos em torno de nós... Solnoturno! Vale dizer que não haveria mais noites para oglobo terrestre.

Consultaram-se os mais clássicos tratadosastronômicos, releram os capítulos comentários escritospor Newton, Halley, Maupertius, Lalande, Laplace,Arago; as Memórias científicas de Faye, Tissera nd,Bouquet de Ia Grye, H. Poincaré e sucessores. Eracontudo a opinião de Laplace que mais impressionava, ecujo texto fora assim divulgado:

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Eixo e movimento rotativo alterados, maresabandonando seus leitos em demanda novo equador,grande número de homens e animais afogados nessedilúvio universal; ou destruídos pelo violento abalo doselementos; espécies inteiras aniquiladas, arrasados todosos padrões da indústria humana; tais as conseqüênciasque a colisão de um cometa pode produzir.

A constituição física dos núcleos comentários era,sobretudo, o objeto das mais sérias controvérsias.Tinham escavado nos anais da astronomia os desenhosindicativos da variedade desses núcleos, sua atividadeluminosa, a evolução das cabeleiras.

Recordaram-se, entre outros, os pontos luminososobservados em 1868 no cometa de Brorsen e as radiaçõesmovimentadas da curiosíssima cabeça do cometa de1861... Revisavam-se as hipóteses concernentes acondensações gasosas, pulverulentas ou mesmo sólidas;as peculiares às descargas elétricas prodigiosas, quetransformam de um dia para outro a cabeleira dessesestranhos viajores do infinito.

Assim corriam as discussões, as investigaçõesretrospectivas, es cálculos, as conjeturas. O que, porém,em definitiva não deixava de impressionar a toda genteera o duplo fato da observação já constatada, daquelenúcleo, de uma densidade considerável, em cujaconstituição química predominava o óxido de carbono.Intensificaram os terrores, não se pensava, não se falavasenão do cometa.

Já os espíritos engenhosos tinham procurado meiospráticos, mais ou menos viáveis, para lhe fugir àinfluência. Químicos que pretendiam salvar uma parte

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do oxigênio atmosférico, imaginavam métodos para isolá -lo do azoto e armazená-lo em grandes redomas de vidrohermeticamente fechadas.

Hábil farmacêutico reclamista afirmava tê -lo jácondensado em pastilhas e despendera 8 milhões deanúncios em 15 dias.

O espírito mercantilista sabe de tudo tirar partido,mesmo do aniquilamento universal. Até companhias deseguro se haviam improvisado, comprometendo -se atapar hermeticamente todas as cavas e galerias dosubsolo, comprometendo-se a fornecer oxigênio puro (emesmo antissèpticamente perfumado) a determinadonúmero de pulmões, por quatro dias e quatro noites.

Nem tudo estava perdido, ao menos para os ricos.Também se falava em perfurar túneis para o povo.Discutia-se, tremia-se, morria-se mesmo e, contudo,esperava-se ainda. Enfim, as últimas novas diziam que ocometa, desenvolvendo-se à medida que se aproximavado calor e da eletrização solares, teria no momentodo,encontro um diâmetro sessenta e cinco vezes maiorque o da Terra, ou fosse 825000 quilômetros.

Foi no auge dessa agitação que se abriu a sessão doInstituto, esperada como oracular e decisiva. Por forçamesmo do cargo, o Diretor do Observatório de Paris foiinscrito à testa dos oradores. Mas, o que pareciadespertar maior interesse público era o prognóstico doPresidente da Academia de Medicina, quanto aosprováveis efeitos do óxido de carbono. Por outro lado, oPresidente da Sociedade de Geologia também deveriatomar a palavra. O objetivo da sessão era passar em

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revista todas as teorias científicas das modalidades quedeveriam aniquilar fatalmente o nosso globo.

Evidente, pois, que o debate sobre o encontro docometa estaria em primeiro lugar. De resto, comoacabamos de ver, o astro ameaçador lá estava suspensosobre todas as cabeças. Toda a gente o via aumentar diaa dia, em velocidade crescente. Sabia -se que não estava amais de 17.992.000 quilômetros e que esta dis tância seriacoberta em cinco dias. Cada hora representava umaaproximação de 149000 quilômetros. Dentro de cincodias a Humanidade assustada respiraria tranqüila oudesapareceria de todo.

CAPÍTULO IIIA sessão do Instituto

Facevano um tumulto, ti qual s'aggira Sempre inquell'aria senza tempo tinta, Come 1'orena quando il

turbo spira.DANTE, I'Interno, III, 10.

Nunca, desde que fora construído em fins do séculoXX, o grandioso hemiciclo se enchera de multidão maiscompacta.

Impossível, mecanicamente, adicionar-lhe uma sópessoa, que fosse. Anfiteatro, balcões, tribunas, galerias,

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corredores, tudo, até os degraus das escadas, estavaliteralmente ocupado. Notavam-se presentes o Presidentedos Estados Unidos da Europa, o diretor da Repúblicafrancesa, das Repúblicas italianas e ibérica, aembaixatriz das Índias, os embaixadores das Repúblicasbritânica, alemã, húngara -e moscovita; o rei do Congo, aComissão de Administradores, todos os ministros, oprefeito da Bolsa internacional, o cardeal arcebispo d eParis, a Diretora geral de Telefonoscopia, o presidente doConselho de vias aéreas e elétricas, o Diretor daRepartição de Aerologia, os principais astrônomos,químicos, fisiologistas, médicos vindos de toda a parte,grande número de funcionários oficiai s (que outrora sedenominavam senadores c deputados), vários escritorescélebres, um conjunto, enfim, nunca visto, derepresentantes da ciência, da política, comércio,indústria, artes, etc. Cenáculo repleto à cunha:presidente, vices, secretários perpétuo s, oradoresinscritos. Já se não trajavam, porém, à moda antiga.Nada de togas, capelos, espadagões: um simples trajecivil. Havia mais de dois séculos que as insígnias estavamprescritas na Europa. Em compensação, as da Áfricacentral eram das mais luxuosas.

Macacos educados, de há muito substituíam oscriados domésticos, que não mais se encontravam emparte alguma. Eles lá estavam às portas, mais porobedecer ao protocolo que para verificar os ingressos, devez que, uma hora antes da marcada, já o recinto foratomado de assalto.

Eis em que termos o Presidente abriu a sessão (2 ).Senhoras, senhores:

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Todos vós conheceis a finalidade deste conclave.Nunca, jamais, a Humanidade atravessou uma fase comoesta. Nunca, em particular, esta velha sala do século XXcongregou tal auditório. O grande problema do fim domundo é, de 15 dias a esta parte, sobretudo, a únicapreocupação de todos os sábios. Essas discussões eestudos vão ser aqui expostos e eu dou desde logo apalavra ao Sr. Diretor do Observatório.

O astrônomo levantou-se logo, empunhando algumasnotas. Tinha a palavra fácil, voz agradável, figura jovial,o gesto sóbrio e pacificado o olhar.

A testa larga e magnífica cabeleira branca e crespaornando-lhe a fronte. Tinha tanto de erudição literáriaquanto de científica, e toda a sua pessoa inspiravarespeito e simpatia. Otimista também, ainda nas maisgraves circunstâncias. Bastou dissesse algumas palavraspara que os semblantes se transformassem de lúgubres eansiosos em calmos e serenos.

Senhoras - começou dizendo - é a vós que primeirome dirijo, pedindo não vos atemorizardes diante de umaameaça que poderá, talvez, não ser tão horrível quanto sepresume. Espero convencer-vos, dentro em pouco, comargumentos que terei a honra de expor, que o esperadocometa não acarretará a ruína total da nossaHumanidade. Sem dúvida podemos, devemos mesmoesperar qualquer catástrofe; mas, com relação ao fim domundo, tudo nos leva a coligir que não sobrevirá. Osmundos morrem de velhice e não de acidentes. E vóssabeis, melhor do que eu, que o nosso mundo está muitolonge de ser velho.

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Senhores, vejo aqui representantes de todas ascamadas sociais, das mais humildes às mais elevadas.Explica-se que, da ameaça assim ostensiva de umadestruição terrestre, tenha resultado a par alisação geralde todas as atividades. Entretanto, pessoalmente, vosconfesso que, se a Bolsa não houvesse fechado e tivesse eua infelicidade de ali jogar, não hesitaria em comprarainda hoje os títulos de renda tão subitamentedesvalorizados.

Bem não acabara de o dizer e já um famoso judeuamericano, príncipe das finanças, diretor do periódicoSéculo XXV e que ocupava um balcão superior doanfiteatro, abriu caminho a torto e a direito, entre amassa, e precipitou-se como um bólido, desaparecendonuma das portas de saída.

Interrompido um instante pelo inesperado efeito deuma reflexão puramente científica, o orador prosseguiu

Nosso tema pode dividir-se em três partes1.° Colidirá o cometa, fatalmente, com a Terra? - 2.°

Qual a sua constituição? - 3.° Quais poderão ser,possivelmente, os efeitos do choque? Não preciso advertirao culto auditório que as fatídicas palavras tantas vezespronunciadas de algum tempo a esta parte: - Fim domundo - significam unicamente Fim da Terra, que é,aliás, seja dito, o mundo que mais nos interessa.

Se pudéssemos responder negativamente ao primeiroquesito, seria mais ou menos ocioso ocupar -nos dos doisoutros, cuja importância se tornaria desde logosecundária.

Desgraçamente, devo reconhecer que os nossoscálculos astronômicos se apresentam aqui, como sói

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acontecer, de rigorosa exatidão. Sim, o cometa deveatingir a Terra com uma velocidade considerável. Avelocidade do nosso globo é de 29460 metros por segundoe a do cometa é de 41660 metros, e mais a aceleraçãoresultante da atração do nosso planeta. Portanto, temosque o choque se daria com a velocidade de 72000 noprimeiro segundo, se o cometa nos chegasse justo defrente. Mas, a verdade é que chegará um tantoobliquamente.

O choque é mesmo inevitável, com todas as suasconseqüências. Peço, porém, ao auditório que não seperturbe dessa maneira! Esse choque nada significa em simesmo. Se imaginarmos, por exemplo, que um trem deferro deve encontrar uma nuvem de mosquitos, nãohaverá motivo de inquietação para os respectivosviajantes. Pois a mesma coisa pode verificar -se com oencontro desse astro gasoso. Queiram permitir o exametranquilo dos outros dois pontos.

Antes de tudo: qual a natureza do cometa? Aquitodos o sabem gasoso e principalmente composto deóxido-carbônico. A temperatura do espaço (273 grausabaixo de zero), esse gás, invisível nas condiçõesterrestres, permanece em estado de nevoeiro e mesmo depoeira sólida. O cometa está como que saturada dele.Nisto, não contradirei, no quer que seja, as descobertascientíficas.

Tal declaração produziu um novo rito em todos ossemblantes e ouviram-se muitos e prolongados suspiros.

Mas, senhores - prossegue o astrônomo - esperandoque algum dos eminentes colegas da seção de fisiologia ouda Academia de Medicina nos demonstr e que a

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densidade cometária é bastante forte para penetrar emnossa atmosfera respirável, penso eu que tudo seresolverá em magnífica chuva de estrelas cadentes, semquaisquer conseqüências fatais para a vida humana. Nãoo digo com certeza; todavia, a prob abilidade é muitogrande, talvez de um milhão contra um. Nada obstante,todos os de pulmão fraco, seriam vitimados. E daí, umaespécie de gripe, capaz de quintuplicar o obituáriocotidiano. Simples epidemia.

Nada obstante, se, como concordes o indicam aspesquisas telescópicas e fotográficas, o núcleo cometáriocontém massas minerais, metálicas sem dúvida,específicas, uranólitos de diâmetros quilométricospesando milhões de toneladas, não podemos recusar queos pontos atingidos por essas massas, com a velo cidade járeferida, sejam irremissivelmente arrasados. Mas,porque haveriam esses pontos de ser Justamente oshabitados? Lembremos que três quartos do planeta estãocobertos De água. Aquelas massas bem podem cair nomar, formarem talvez novas ilhas, trazen do consigonovos elementos de estudo, germes - quem sabe - deexistências desconhecidas. A geodésica, a forma e omovimento rotativo da Terra podem ser com issoafetados. Notemos, também, que não faltam extensõesdesérticas em nossa crosta. Perigo existe, certo, mas não odirei imenso.

Além disso, essas massas e gases, mesmo os bólidos deque falávamos, poderiam trazer em seus flancos causasde incêndios, aqui e acolá, sobre o continente. Dinamite,nitroglicerina, panclastite, etc., não passariam debrinquedo, infantil, ao lado do que poderia surpreender -

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nos. Ainda assim, não seria um cataclismo universal.Algumas cidades incineradas não bastam parainterromper a história da Humanidade. Vedes pois, todosvós, que, do exame metódico desses três pontos, result aevidente a existência de um perigo e perigo iminente, masnão tão desolador, tão considerável e tão absoluto quantoo pregoam. Direi, ainda mais, que esse curioso eventoastronômico, que tanto vos perturba o cérebro quanto ocoração, aos olhos do filósof o apenas muda a facehabitual das coisas. Todos nós estamos certos de ter demorrer um dia, e isso não nos impede de viver tranqüilos.Porque, então, a ameaça de morte mais pronta alarmatodos os espíritos? Será o pesar de morrermos todosjuntos? Mas, isso deveria ser antes um consolo para oegoísmo humano. Será por ver encurtada a vida dealguns dias, para uns, e de alguns anos para outros? Avida é breve e cada qual recusa encará -la diminuída deum ceitil; e, diante do que estamos vendo e ouvindo, dir -se-ia que cada qual preferiria ver o mundo inteiroarrasado, sobrevivendo-lhe sozinho, antes que morrer sóe saber que o resto lhe sobrevive. Puro egoísmo! Mas,senhores, insisto em crer que não haja mais que umacatástrofe parcial, do mais alto interesse par a a ciência, eque sempre nos deixará alguns historiadores para contá -la. Teremos choque, atrito, acidente local; mas, nadaalém disso, provavelmente. Será como a história dumtremor de terra, duma erupção vulcânica, ou dumciclone.

Assim falou o astrônomo ilustre. Sua calma filosófica,acuidade espiritual e aparente indiferentismo peloperigo, contribuíram para tranqüilizar o auditório,

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embora sem convencê-lo inteiramente. Não se tratava jáde um aniquilamento total, mas de catástrofe na qual,ultima rabo, sempre havia uma probabilidade desalvamento. Entrava-se a trocar impressões nessesentido; comerciantes e políticos pareciam tercompreendido, a preceito, os argumentos da ciência,quando, a convite da Mesa, se dirigiu vagaroso para atribuna o Presidente da Academia de Medicina.

Era um homem alto, esguio, pálido, figura de asceta,fisionomia saturnina coroada de raros cabelos grisalhos,cortados rente. A voz tinha algo de cavernosa e o seutodo evocava, antes o tipo do empregado de empresafunerária, que o de um médico confiante na cura dosclientes. Sua convicção sobre os acontecimentos eramuito diversa da do astrônomo, qual se viu desde quecomeçou a falar.

Senhores - disse - serei tão lacônico quanto o sábioeminente que acabamos de ouvir, posto que tenhapassado longas noites analisando em seus mínimosdetalhes as propriedades do óxido de carbono. E' apropósito desse gás que vou falar -vos, de vez admitida asua predominância no cometa e o inevitável encontrodeste com o nosso globo. Suas propriedades sãodesastrosas, não há negá-lo. Qualquer porçãoinfinitesimal, no ar respirável, basta para aniquilar emtrês minutos a função pulmonar e acarretar a morte.Todos sabemos que o óxido de carbono (em química CO)é um gás permanente, inodoro, incolor, insíp ido e maisou menos insolúvel na água. Sua densidade, comparadaao ar, é de 0,96. Incendiando-se no ar, produz o anidridocarbônico, com uma chama azul de pouca claridade. E'

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assim como um fogo fátuo. Ele possui, ao demais, umatendência permanente para ab sorver o oxigênio (oorador frisa fortemente estas palavras). Nos altos fornos,por exemplo, o carvão se transforma em óxido decarbono, ao contacto de uma quantidade de arinsuficiente, e é este óxido, que a seguir reduz o ferro aestado metálico, apoderando-se do oxigênio com o qualprimeiramente se combinara. Ao Sol, o óxido de carbonose combina com o cloro e dá um oxiclorureto de odordesagradável e sufocante em estado gasoso. ,O que,principalmente, deve despertar nossa atenção, é que estegás é dos mais venenosos que se conhecem. Muito maistóxico que o ácido carbônico. Em se fixando nahemoglobina, ele diminui a capacidade respiratória dosangue. Acumulando-se nos glóbulos vermelhos, aindaque em dose minimíssima, entrava, em grauaparentemente desproporcional com as causas, a aptidãodo sangue para oxigenar-se. Assim, o sangue que absorve23 a 25 centímetros cúbicos de oxigênio por 100 volumes,não absorveria mais de metade em atmosfera quecontivesse menos de um milésimo de óxido de carbono.Um decimilésimo já é deletério e diminui sensivelmente acapacidade do sangue, produzindo, não direi - a asfixia,mas o envenenamento quase instantâneo! O óxido decarbono atua diretamente nos glóbulos sanguíneos efunde-se com eles, tornando-os inaptos para entreter avida, sustando a hematose, a transformação do sanguevenoso em sangue arterial. Três minutos bastam paraacarretar a morte. A circulação paralisa, o sangue venosoentope artérias e veias, os vasos venosos, principalmenteos cerebrais, ingurgitam-se: língua, garganta, traquéia e

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brônquios se avermelham, e todo o cadáver apresentadesde logo uma coloração violácea, característica dacessação da hematose.

Todavia, senhores, não são apenas as propriedadesdeletérias do óxido de carbono que devemos temer, sebem que a só tendência desse gás. para absorver ooxigênio baste, só por si, para desfechar funestasconseqüências. Suprimi - que digo? - diminuí apenas ooxigênio e tereis logo extinto o gênero humano. Aqui,conhecem todos uma das muitas histórias que ilustram asépocas do barbarismo, em que os homens seentrematavam legalmente, a pretexto de glóriaspatrióticas. Simples episódios de uma das guerrasinglesas na Índia, permiti-me vo-lo lembre aqui: cento equarenta e seis prisioneiros haviam sido enclau suradosnum cubículo acanhado, sem outra abertura além deduas janelinhas que davam para uma galeria. O primeirosintoma que os pobres reclusos experimentaram foi umcopioso suadouro, logo seguido de sede insuportável, comgrande dificuldade de respiração. Ensaiaram diversosmeios de separarem-se o mais possível, em busca de ar.Despiram-se, abanaram-se e tomaram finalmente opartido de se ajoelharem e levantarem, simultânea erepetidamente; mas, cada vez que o faziam, alguns, jábaldos de forças, caíam e f icavam estendidos aos. pés doscompanheiros... Morriam, asfixiados, em agonia. Antesda meia-noite, ou fosse quatro horas depois da reclusão,todos os que ainda viviam sem haver aspirado junto dasjanelinhas um ar menos impuro, mantinham -se caídosem estupor letárgico, quando não em acesso delirante.Quando, horas passadas, abriram a prisão, apenas vinte

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três criaturas saíram com vida e, ainda assim, numestado deplorável, qual foragidos de um túmulo. Poderiaaqui juntar mil exemplos idênticos, mas, nada a diantaria,desde que não há dúvidas a respeito. Declaro portanto,senhores, que, por um lado, a absorção do óxido decarbono em maior ou menor dose de oxigênioatmosférico e que, por outro lado, a alta toxidade dessegás para os glóbulos sanguíneos, parece m-me emprestarao encontro da imensa massa cometária com o nossoglobo - que deverá mergulhar nela durante algumashoras - uma gravidade excepcional e prenhe deconseqüências desastrosas. Havemos de ver pelas ruasdesgraçados mortais em busca de ar respirá vel, a caíremmortos de asfixia. Também não vejo, por mim, nenhumrecurso escapatória.

E ainda não falei da transformação do movimento emcalor, nem tão-pouco dos resultados químicos emecânicos do choque. Deixo esse aspecto da questão àcompetência do Secretário da Academia de Ciências,tanto quanto ao sábio Presidente da SociedadeAstronômica de França, que fizeram importantescálculos nesse sentido. Para mim, repito, a Humanidadese encontra em perigo de morte e não vejo apenas uma,porém duas, três ou quatro, prestes a desabarem sobreela, Só una milagre poderia salvá -la. Mas, a verdade éque, de há muitos séculos, ninguém há que acredite emmilagres.

Este discurso, pronunciado em tom convicto, com vozforte e calma, lançou o auditório no mesmo estado d eagitação, que o primeiro discurso tivera a virtude deserenar. A certeza do próximo cataclismo desenhava -se

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em todos os semblantes. Havia -os amarelos, esverdeados,lívidos e avermelhados, e apopléticos. Só pequenonúmero de auditores parecia guardar sang ue-frio, comoquem houvesse já tomado o seu partido.

Imenso burburinho enchia o salão e cada qualprocurava comunicar ao vizinho as suas impressões,geralmente mais otimistas que sinceras. Ninguém querparecer medroso. Levantou-se o Presidente da SociedadeAstronômica e caminhou para a tribuna. O sussurro damultidão cessou como por encanto. Eis como eleexordiou, tematizou e perorou:

Senhoras, senhores: pelo que acabais de ouvir,ninguém mais poderá duvidar da realidade do encontrocometário e dos perigos consequentes. Cumpre-nos, pois,esperar até sábado...

- Aliás, sexta - interrompe uma voz partida daprópria mesa. - Sábado, repete o orador - umacontecimento extraordinário e absolutamente novo nahistória do mundo. Digo - sábado, ainda que todos osjornais o tenham anunciado para sexta -feira, isto porquetal coisa não poderá ocorrer senão no dia 14 de Julho. Aúltima noite, passamo-la eu e meu sábio colega acomparar as observações feitas na Ásia e na América, everificamos, um erro de transmissão telefonográfica.

Tal afirmativa produziu agradável expectação noauditório, foi como um raio luminoso no bojo de umanoite tenebrosa. A dilação de um dia tem sempre valorinestimável para um sentenciado de morte; e tantobastava para que em muitos cérebros começ assem agerminar presunções fantasistas. Recuava -se acatástrofe? Era uma espécie de graça. Não raciocinavam

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que aquela diversão, puramente cosmografia, só afetavauma data e não o fato concreto em si mesmo.

Convenha-se, porém, em que as mínimas facetasrepresentam grande papel nas impressões populares.Enfim... já não era para sexta-feira 13.

Aqui tendes - disse o orador encaminhando-se para oquadro-negro - a órbita definitiva do cometa, decalcadaem todas as observações colhidas... E gizou estas cifras:

Passagem ao periélio ..... 11 Agosto às 0h 45m.,44s.

Longitude do periélio ..... 52° 43'25.Distância do periélio ...... 0,76017Inclinação ................ 103°18'35.Longitude no nó ascendente 112°,54'40.O cometa - prosseguiu dizendo - cortará a eclíptica a

caminho do nó descendente aos 13 de Julho, depois dameia-noite, ou seja exatamente às Oh. 18m. 23s. de 14,pelo meridiano de Paris, ou seja, ainda no momento justoda passagem da Terra no mesmo ponto. A atração daTerra abreviará o encontro de 3 0 segundos, apenas. Seráum feito indubitavelmente extraordinário, mas, ao meuver, destituído desse caráter trágico que nos esboçaram.Não creio venhamos a perecer todos asfixiados porenvenenamento do sangue. O choque nos oferecerá antes,suponho, a perspectiva de um fogo de artifício celestial,visto que a intermissão dessas massas sólidas e gasosas,na camada atmosférica, não poderá efetivar -se sem que oseu movimento, assim paralisado, se transforme emcalor. Um abrasamento grandioso das alturas será,provavelmente, o primeiro fenômeno, enquanto milhões

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de estrelas cadentes irão surgindo como emitidas de umfoco único e radiante.

A quantidade de calor há de ser formidável.Qualquer estrela cadente, por mínima que seja, aochegar à nossa atmosfera com a velocidade cometária,logo se esquenta a tal ponto que arde e se consome.Sabeis, senhores, que a nossa atmosfera se projeta muitolonge, no espaço, em torno do planeta. Ela não éilimitada, como sustentam algumas hipóteses, de vez quea Terra gira sobre si mesma e em torno do Sol. O seulimite matemático está na altitude em que a forçacentrífuga, engendrada pelo movimento de rotaçãodiurno, torna-se igual ao peso. Essa altitude será de 6,64,se representarmos por 1 o meio diâmetro equatorial doglobo, de 6.378.310 metros. Teremos, então, que omáximo da camada atmosférica será de 42352quilômetros.

Não quero aqui entrar na matemática. O auditórioque me ouve é assaz instruído para não desconhecer oequivalente mecânico do calor. Todo corpo, detido emseu movimento, produz uma quantidade de calor que seexprime em calorias, pela fórmula na qual m é a massado corpo em quilogramas e V a sua velocidade em metrospor segundo. Um corpo pesando 8338 quilos, porexemplo, caminhando um metro por segundo,desenvolveria com a sua retenção precisamente umacaloria, ou seja a quantidade de calor suficiente paraelevar de um grau a temperatura de um quilograma daágua.

Se a velocidade desse corpo fosse de 500 metros porsegundo, sua parada produziria 250000 vezes mais c alor,

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ou tanto quanto o necessário para elevar de 0 a 30 grausuma quantidade da água igual ao seu próprio volume. Se,já não de 500 mas de 5000 metros for à velocidade, ocalor produzido será 5 milhões de vezes maior.

Ora, senhores, sabeis que o encontro de um ,cometacom a Terra pode atingir a velocidade de 72000 metros, enesse caso a proporção se eleva a 5 milhões de graus!

Aí temos um máximo e - direi - uma cifra por assimdizer - inconcebível. Mas, tomemos um mínimo, se assimpreferirdes. Admitamos se dêem esses choques nãodiretamente, de face, porém, em sentido mais ou menosoblíquo, e que, a velocidade não ultrapasse 30000 metros.

Cada quilograma de um bólido desenvolve, nestecaso, 107946 unidades de calor, quando, pela resistênciado ar, a velocidade se reduz a zero. Por outros termos, eledesenvolveu calor suficiente para elevar de zero a 100graus, isto é, de congelado a fervente, um volume da águade 1079 quilogramas Um uranólito de 2000 quilos,chegando a Terra com uma velocidade anulada por es saresistência de ar, teria desenvolvido calor suficiente paraelevar a 3000 graus uma coluna de ar de 30 metrosquadrados de secção, em toda altura da nossa atmosfera,ou para elevar de 0 a 30 graus uma coluna de 3000metros quadrados.

Estes os cálculos que, rogo me desculpeis, se faziamnecessários para mostrar que a conseqüência imediata doencontro será um calor enorme, um aquecimentoextraordinário do ar. De resto, é o que acontece com aqueda dos bólidos isolados. O uranólito é fundido,vitrificado em toda a sua superfície, como revestido deuma camada de verniz. A queda, porém, é tão rápida que

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lhe não dá tempo de aquecer -se interiormente. Se oquebrarmos, vê-lo-emos absolutamente gelado pordentro. O ar atravessado é que se aqueceu.

Um dos efeitos mais curiosos da análise que acabo deresumir, é que as massas sólidas, mais ou menosvolumosas, que presumimos distinguir ao telescópio em onúcleo cometário, hão de experimentar tal resistência aoatravessar nossa atmosfera, que, salvo casosexcepcionais, não chegarão íntegras ao solo e sim mais oumenos fragmentadas. À frente do bólido opera-se acompressão do ar; atrás é o vácuo. Aquecimento eincandescência exterior do corpo em movimento, ruídoviolento devido à precipitação do ar que vai preenchendoo vácuo, ribombos de trovão, explosões, desagregações,queda de elementos metálicos mais densos e evaporaçãode outros. Um bólido de enxofre, de fósforo, de estanhoou de zinco, flamejaria e se evaporaria muito antes deatingir as camadas inferiores da atmosf era.

Quanto às estrelas cadentes, se, como parece,constituem uma verdadeira nuvem, não produzirão maisque um prodigioso fogo de artifício.

Se, pois, algo tem a temer, não é, na minha opinião, apenetração da massa gasosa do óxido de carbono emnossa atmosfera, seja ela qual for, e sim a forte elevaçãoda temperatura, conseqüente à transformação domovimento em calor.

Neste caso, a salvação estaria, talvez, em refugiar -seno hemisfério oposto ao que haja de receber em cheio ochoque do cometa. O ar, sabemo-lo, é o pior condutor docalor.

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Levanta-se, a seu turno, o Secretário perpétuo daAcademia. Digno sucessor dos Fontenelles e Aragos,aliava a uma vasta cultura científica as qualidades deorador fluente e escritor elegante, não raro atingindo oscimos da eloqüência.

A sábia teoria que acabastes de ouvir - disse - nadacumpre acrescentar, salvo a aplicação que pudéssemosdela fazer a qualquer cometa já de nós conhecido. Hádias, houve quem lembrasse, por exemplo, o cometa deBiela, de 1811. Pois bem: vamos supor que um cometadas mesmas dimensões nos esbarre literalmente emcheio, na rota do nosso curso solar. Nosso esferóidepenetraria a nebulosidade cometária sem experimentar,certo, qualquer resistência mais forte. Admitindo -semesmo que essa resistência fosse fraquíssima, e que adensidade do núcleo fosse negligenciável, o nosso globoprecisaria de vinte e cinco mil segundos, ou sejam 417minutos para atravessar a massa cometária de 1800000quilômetros de diâmetro. Seria, portanto, sete horas demarcha com a velocidade de cento e vinte vezes a de umabala de canhão, sem deixar, por isso, de obedecer ao seumovimento rotativo.

Tal mergulho no oceano cometário, por diáfano queseja, não poderia deixar de carrear como primeira eimediata conseqüência, atentos os princípiostermodinâmicos aqui lembrados, uma elevação detemperatura possivelmente capaz de incendiar aatmosfera! Neste caso, o perigo se me afigura dos maisgraves.

E, contudo, seria um belo espetáculo para oshabitantes de Marte, mais ainda para o s de Vênus. Um

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espetáculo deveras admirável, análogo (mas, talvez maismaravilhoso para os nossos vizinhos) a essas curiosasconflagrações astrais temporárias, que já temosobservado na profundeza dos céus. O oxigênio do ar teriao seu melhor papel no alimentar do incêndio. Mas, háoutro gás que os físicos pouco consideram, pelacircunstância de não o haverem encontrado jamais emsuas análises... E' o hidrogênio. Que é feito de toda aquantidade desse gás, emitida pelo solo terreno, desdeque o mundo é mundo? Pois que a sua densidade édezesseis vezes mais fraca que a do ar, todo ele deve tersubido para formar, em torno de nossa atmosfera, umcomo invólucro de hidrogênio muito rarefeito. Emvirtude da lei de difusão dos gases, grande parte dessehidrogênio deve ter-se misturado intimamente com o ar,mas, ainda assim, não deixarão as camadas superiores deo conter em maior proporção. E lá que se acendem asestrelas cadentes e, sem dúvida, as auroras boreais, amais de cem quilômetros de altura. Notemos, a propósito,que o oxigênio do ar, recebendo o choque cometário,bastaria para alimentar o fogo celeste.

O fim do mundo dar-se-ia, portanto, pelo incêndio daatmosfera. Durante sete horas, mais ou menos, ou melhor- por tempo mais longo, visto que a resistência cometárianão pode ser nula - haveria transformação constante demovimento em calor. Hidrogênio e oxigênio arderiamcombinados com o carbono do cometa. A atmosferaelevar-se-ia a algumas centenas de graus e jardins,parques, florestas, casas, monumentos, cidades e campos,tudo ficaria em breve consumido. Mares, lagos e riosentrariam a ferver e os homens e os animais, em

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respirando esse ambiente, pereceriam asfixiados, antesmesmo de serem devorados pelo fogo.

Presto, depois, todos os cadáveres estariamcarbonizados, incinerados, e, no vasto incêndio celeste, sóo anjo incombustível do Apocalipse poderia entoar, aosom lancinante da sua trombeta, o velho cânticomortuário, como um dobre a finados:

Dies, irce, dies illa!Solvet, sceculum in favilla!Aí tendes o que poderia suceder se um cometa como o

de 1811 se encontrasse com a Terra.A essas palavras, o cardeal -arcebispo levantara-se e

pedira a palavra. O Secretário perpétuo havia -lhe notadoa presença e, depois de o saudar, por dever de cortesiameramente social, inclinava-se ligeiramente como queesperando a palavra.

Não quero - disse este - interromper o discurso donobre orador. Mas, se a Ciência anuncia, como prelúdiode um drama de fogo, o aniquilamento da nossaHumanidade, não posso nem devo calar que a crençauniversal da Igreja sempre foi precisamente essa. Os céuspassarão, disse-o São Pedro. Os elementos combustões sedissolverão e a Terra se consumirá com todo o seuconteúdo. Também S. Paulo anuncia a mesma renovaçãopelo fogo. E nós, nas missas fúnebres, sempre invocamos:E um qui venturas est judioare vivos et mortuos etsaeculum per ignem... Sim: Solvet seuecnclum in favilla.Deus reduzirá o universo a cinzas.

- Mais de uma vez - interdiz o Secretário - a Ciênciase tem identificado com a intuiç ão dos antepassados. Oincêndio devoraria em primeiro lugar as regiões

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diretamente atingidas. Todo o lado atingido pelagigantesca massa cometária seria queimado, antes que oshabitantes do outro hemisfério pudessem perceber ocataclismo. O ar é mal condutor e, neste caso, o calor nãose propagaria imediatamente aos pontos opostos.

Se o nosso hemisfério estivesse precisamente voltadopara o cometa nos primeiros minutos do e encontro, seriao trópico de Câncer, os habitantes de Marrocos, Argélia,Tunis, Itália, Grécia, Egito que haveriam de constituir avanguarda da batalha celeste; ao passo que os daAustrália, Nova-Caledônia, Oceania e dos nossosantípodas seriam os mais favorecidos. Mas, a absorçãodo ar produzida pela imensa fornalh a seria de tal monta,que desencadearia uma tempestade incomparável, emsua violência, aos mais violentos furacões conhecidos;mais impetuosa, digamos, que a corrente de 400quilômetros horários, qual a vigorante e constante noequador de Júpiter, soprando dos antípodas para aEuropa e tudo arrasando à sua passagem. Em seumovimento de rotação, a Terra arrastariasucessivamente para o eixo do choque os países situados aoeste do meridiano primeiramente atingido. Uma horadepois a Áustria, a Alemanha, a França; depois oAtlântico e a América do Norte, que não entraria nomesmo eixo um tanto oblíquo, dada a marcha do cometapara o seu periélio, a cinco ou seis horas da França, ouseja, no fim da sua travessia.

Apesar da inaudita velocidade do cometa e da Terra,a pressão cometária não seria descomunal, em virtude daextrema tenuidade da substância atravessada. Essasubstância, porém, encerrando carbono, torna -se

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combustível e, na exaltação de seus ardores periélios,vemos que esses astros juntam, muitas vezes, à suaprópria, a luz que do Sol recebem. Assim, os cometastornam-se incandescentes. Que seria, então, no choqueterrestre?? O incêndio das estrelas cadentes e dosbólidos, a fusão superficial dos uranólitos, que chegamardentes à nossa crosta, tudo isso induz a crer que o maisintenso calor deva ser o primeiro e o mais consideráveldos efeitos, o que não impediria, é claro, os elementosmaciços do núcleo de arrasarem os pontos de suapassagem, e mesmo deslocar, talvez, um continenteinteiro.

Permanecendo o globo terráqueo inteir amenteenvolvido pela massa cometária durante sete horas, maisou menos, a girar nesse gás incandescente, o afluxo do ar,precipitando-se para o incêndio; o mar em ebulição,sobrecarregando a atmosfera de novos vapores; umachuva torrencial esfervilhaste, a precipitar-se emcataratas; o furacão esfuziando de todos os quadrantes;estalidar de raios, ribombar de trovões; a tonalidade dosbelos dias substituída por um luar lúgubre, difuso, numambiente abafadiço, e já o globo inteiro não tardaria asucumbir no pandemônio, ainda que a morte dosantípodas viesse a diferir daquela das populaçõesatingidas.

Ao invés de serem imediatamente consumidos pelofogo celeste, eles morreriam abafados pelo vapor ou pelapredominância do azoto - uma vez diminuído o oxigênio -ou envenenados pelo óxido de carbono. O incêndio nãofazia mais que incinerar depois os cadáveres, enquantoque os africanos e europeus seriam queimados vivos.

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Tomei como exemplo o cometa de 1811, mas, apresso -me a acrescentar, concluindo, que este nosso cometa meparece muito menos denso. E vós pudestes ver queencarei o problema de modo assaz despreocupado epersuadido de que, ameaçados fatalmente de um choque,nem por isso morreremos.

Há certeza - exclama uma voz bem conhecida (era ummembro ilustre da Academia Cirúrgica) - de que ocometa seja essencialmente composto de óxidocarbônico? As observações espetroscópicas lhe teriamencontrado traços de azoto? Fosse o protóxido de azoto eteríamos, então, na transfusão das atmosferas, terrena ecometária, a anestesia dos terrícolas. Todo o mundodormiria, talvez, para não mais acordar, se as funçõesvitais ficassem suspensas por tempo apenas um poucomais longo que o necessário às anestesias cirúrgicas. Amesma coisa sucederia se o cometa se compusesse de ét erou clorofórmio. Ter-se-ia, então, um fim tranqüilo.Menos o seria, contudo, se em vez de oxigênio o cometaabsorvesse azoto, visto que a extração, gradual ou totaldeste, produziria, dentro de poucas horas, em todas ascriaturas, homens, mulheres, crian ças, velhos, umatransformação de caráter nada incomodativa, a saber:primeiro, uma serenidade deliciosa: depois, uma alegriacontagiosa, expansiva, trepidante - uma exaltação febrilum delírio, loucura enfim, e, provavelmente, umacoreografia fantástica culminando na morte de todos osseres. Apoteose, dir-se-ia, de uma sarabanda louca, pelasuperexcitação de todos os sentidos. Toda a genteestouraria de, Mo... Fim trágico ?

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- A discussão continua aberta - replicou o Secretário.- O que eu disse das possíveis conseqüências do incêndioé aplicável ao encontro direto de um cometa análogo aode 1811. Este que ora nos ameaça é menor e o seu choquenão será em linha reta, mas oblíqua. Tal como osastrônomos que me precederam nesta tribuna, eu querocrer que não tenhamos mais que um simples fogo deartifício.

Aditarei que fenômenos químicos, imprevistos,poderão verificar-se. Assim, por exemplo, ninguém aquiignora que a água e o fogo se assemelham: hidrogênioque arde em combinação com oxigênio, ou hidrogêniocombinado com oxigênio, são coisas afins. A água dosmares, dos lagos, dos rios, é composta de dois volumes dehidrogênio e um de oxigênio. Na origem de nosso planetaessa água era fogo e poderia volver ao seu primitivoestado se, mediante uns tantos fenômenos de eletrólise, osferros magnéticos do núcleo cometário viessem adecompor-se, dissociando suas moléculas de hidrogênio equeimando-as. Todos os mares poderiam incendiar -sebem depressa.

Falava ainda o orador, quando uma jovemfuncionária da central-telefônica entrou por uma portabaixa, guiada por um símio domesticado, precipitando -separa a cadeira do Presidente, a fim de lhe entregar umgrande envelope quadrado, que foi imediatamenteaberto. Era um despacho do Observatório doGaorisancar com estas únicas palavras:

Habitantes de Marate mandaram mensagemfotofônica. Decifraremos dentro de poucas horas.

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Senhores - disse o Presidente - acabo de ver quemuitos de vós consultastes o relógio e penso convosco serimpossível esgotar o assunto nesta reunião, ainda porque,resta-nos ouvir outros erninentes representantes dageologia, da história e da geonomia (3 ). De resto, odespacho que acabo de ler nos trará novo elemento paraa solução do problema. São quase 18 horas e eu vosproponho uma sessão complementar par a esta mesmanoite, às 21 horas. E' provável que até lá tenhamosrecebido a decifração da mensagem marciana. Pedirei aoSr. Diretor do Observatório que se mantenha emcomunicação telefonoscópica permanente com a estaçãode Gaorisancar. Caso a mensagem não esteja aindadecifrada às 21 horas, o Sr. Presidente da SociedadeGeológica de França poderá abrir a sessão para expor oestudo que acabo de completar sobre o fim natural doorbe terrestre. Não há quem neste momento não seinteresse apaixonadamente por est a questão capital, sejapor saber se o nosso mundo está verdadeiramente fadadoa perecer nesta contingência, ou seja a qualquer tempo,por causas outras suscetíveis de cálculo e previsão.

CAPITULO IVComo acabará o mundo

L'heure de Ia fin viendra, il n 'y a point de doute là-dessus et cependant Ia plupart des hommes n'y croient

pas.MAHOMET, le Ooran, XI, 61.

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A multidão, imobilizada às portas do Instituto,afastara-se para dar passagem ao auditório e cada qualprocurava inteirar-se do resultado da sessão. Esseresultado, porém, sem que se soubesse como já haviatranspirado logo após o discurso do Diretor doObservatório, de sorte que, diziam, o encontro não seriaprovavelmente tão fatal quanto se prenunciara epresumira. Demais, enormes cartazes acab avam de serafixados por toda a cidade, anunciando a reabertura daBolsa de Chicago. Era um incitamento imprevisto aoreatamento das atividades normais, públicas e privadas.Eis o que ocorrera: Depois que se despencou das alturasda arquibancada, o príncipe das finanças voou peloaerocabo aos seus escritórios de Saint -Cloud e telefonouao sócio em Chicago, comunicando -lhe que novoscálculos foram apresentados ao Instituto de França e oevento astronômico não tinha a suposta gravidade; que oritmo dos negócios deveria ser retomado e urgia, aqualquer preço, reabrir a Bolsa americana e compr artodos os títulos que se apresentassem, fossem quaisfossem. Ora, 4 da tarde, em Paris, corresponde a 10 damanhã em Chicago. Estava, pois, o financista almoçando,quando lhe chegou o fonograma do sócio. Não lhe foidifícil promover logo a reabertura da Bolsa e comprar depancada algumas centenas de milhões de títulos. Anotícia de Chicago logo se divulgou em Paris, onde já não

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era possível dar o mesmo golpe, mas podiam pr eparar-senovas combinações para o dia seguinte. O povo, otimista,acreditara: na espontaneidade da iniciativa americana, e,associando-a a impressão calmante da assembléiaacadêmica, encheu-se de esperança.

Mas, nem por isso, deixou de acorrer menos sôfre go àsessão noturna. Não fosse o serviço especial da GuardaCivil e impossível seria aos convidados privilegiadospenetrar no recinto. A noite caíra e o cometa se tornavamaior, mais flamejante - e ameaçador. Se uma parte dascriaturas mostrava-se mais ou menos tranqüilizada, aoutra - porventura a maior - continuava exaltada,nervosa, febricitante. O auditório era evidentemente omesmo, cada qual interessado em conhecer de pronto asconclusões do debate entre os mais eminentes eautorizados cientistas, no concernente à sorte do planetae à espécie de morte que a todos aguardava. Todavia, nãopassou despercebida a ausência do cardeal,inesperadamente chamado a Roma para tomar partenum concílio ecumênico, e que para lá seguira pelo tuboParis-Roma-Palermo-Túnis.

Senhoras - disse o Presidente - ainda não recebemos odespacho de Marte, assinalado pelo Observatório deGaorisancar, mas podemos abrir desde já a sessão, a fimde ouvirmos as valiosas comunicações anunciadas peloSr. Presidente do sociedade Geológica , e pelo Sr.Secretário geral da Academia, de Meteorologia. Douportanto a palavra ao primeiro.

Já o orador estava na tribuna. Eis o seu discursoestenografado por um aluno da nova escola.

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O auditório vultoso que aqui se comprime, a emoçãotransparente de todos os semblantes, a impaciência comque aguardais os debates que ainda aqui se devemtravar, tudo me levaria, Senhores, a abster -me de vosexpor as conclusões do estudo que fiz, concernente aoproblema em foco, para ceder a palavra a espíritos maisimaginativos, ou mais audaciosos do que eu. E que, a meuver, o fim do mundo não está próximo e a Humanidade,antes de b ver chegar esta semana, deve esperá -lo aindapor muito tempo... Milhares de anos, provavelmente. . .Mas, que digo? - milhares, não; milhões, ou melhor:milhares de milhões.

Vede-me perfeitamente tranqüilo neste momento econsiderai que não tenho o mérito de Arquimedes,quando, absorto em seus cálculos geométricos, foiestrangulado pelo soldado romano, no cerco de Siracusa.Arquimedes conhecia e esquecia o perigo. Eu não creiono perigo.

Não ficareis, pois, surpreendidos de me ouvir exporcom a maior calma a teoria da extinção de nosso mundo,pelo nivelamento assaz lento dos continentes e asubmersão gradual da sua crosta invadida pelas águas. ..Seria talvez preferível adiar esta dissertação para apróxima semana, pois não tenho a mínima dúvida de queaqui possamos todos, ou quase todos voltar, a fim de nosentretermos com as grandes fases da natureza.

Nesta altura, fez uma pausa. O Presidente levantara-se:

Caro e ilustre colega - disse -, todos aqui estamos paravos ouvir. Felizmente, o pânico destes últimos dias estáem parte acalmado e esperamos que o próximo 14 de

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Julho transcorra como os precedentes. Todavia,interessamo-nos mais que nunca pelo grande problema, enenhuma palavra poderá ser mais acatada que a doautor do clássico Tratado de Geologia.

Pois bem - continuou o geólogo - eis como acabará omundo, de morte natural, se nada vier alterar a ordemnatural das coisas, o que é provável, visto serem raros osacidentes no ritmo cósmico. A Natureza não dá saltos. Osgeólogos já não acreditam mais em revoluções súbitas,em subversões do globo, pois sabem que tudo se processapor evolução lenta e gradual.

Se é dramático prefigurar -se o novo esferóidearrastado a uma catástrofe universal, menos o será vê -lo,tão só pelas forças ativas que ora o ameaçam dedestruição. Não nos parece indefinida a estabilidade doscontinentes? Como duvidar da continuidade indefinidadeste solo, que tem comportado t antas geraçõespregressas e sobre o qual os monumentos antiqüíssimosatestam que, se hoje os vemos em ruínas, não é porque osolo lhes tenha negado apoio, mas, por sofrerem asinjúrias do tempo e, sobretudo, do homem? Temposedax, hauro edaobor! Tão longe quanto possamosremontar às nossas tradições, elas nos falam de rioscorrendo nos mesmos leitos atuais; montanhas da mesmaaltura e, por quaisquer estuários obstruídos,desmoronamentos ali e acolá, isso pouco significarelativamente à massa dos continentes , para quepossamos prognosticar uma destruição final.

Destarte, poderá raciocinar quem não lance aomundo exterior mais que olhar superficial e indiferente.Outra, porém, a conclusão do observador afeito a

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escrutar, atento, as modificações mais insignific antes quese verificam em torno dele. A cada passo, por pouco queele saiba ver, apreenderá as linhas de uma lutaincessante, empenhada pelas forças exteriores danatureza contra tudo o que ultrapassa o nível desteoceano, sob o qual reinam o silêncio e o repouso. Achuva, o gelo, a neve, o vento, as fontes, as praias, os rios;todos os agentes meteóricos concorrem para modificarperpetuamente a superfície do globo. Os vales sãoescavados pelos cursos da água e a seguir entulhados comas terras de enxurro. Tudo muda sem cessar. Aqui é omar que, furioso, bate as praias e as leva de recuo, deséculo em século. Além, são talhões de montes que seesboroam, engolindo cidades e povoados, em poucosminutos, semeando a desolação entre vales risonhos.Avalanchas e torrentes desagregam montanhas. Ou,então, temos esses cones vulcânicos, contra os quais seencarniçam as chuvas tropicais, recortando profundasravinas, e cujas paredes se fendem e mostram a ruinaria,o destroço desses gigantes. Alpes e Pirineus já perdera mmais de metade da sua altura.

Mais silenciosa, porém não menos eficaz, é a ação dosgrandes rios quais o Ganges e o Mississipi, cujas águascarreiam grande massa de resíduos. Cada grão de areiaque turva a limpidez dessas águas representa umfragmento arrancado à terra firme. Lenta, masseguramente, as ondas conduzem ao imenso reservatóriooceânico tudo o que perde o solo, e os resíduos quediariamente se depositam nos deltas nada representam,comparados aos depósitos que o mar recebe paradispersar em suas profundezas. Como pode o filósofo,

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testemunha de um trabalho tal e sabendo que ele seopera por séculos de séculos, como pode, repito, duvidarque os rios e as vagas oceânicas acarretem o lutopermanente à terra firme?

E' uma conclusão que a geologia co nfirma em todosos sentidos. De fato, ela nos mostra, em todos oscontinentes, a superfície do solo constantemente atacada,seja por alterações térmicas, seja por alternativas dearidez e humidade atmosférica, gelo ou degelo, ou sejaainda pela ação ininterrupta dos vermes e dos vegetais.Daí, um processo de desagregação que acaba surribandoaté as rochas mais compactas. Os destroços começamrolando pelas encostas e no álveo das correntes, onde sedesgastam e transformam em cascalho, areia, lodo, àespera de qualquer enchente com potencial bastante queos conduza ao mar.

E' fácil provar qual seja o resultado final dessetrabalho. O pensador, sempre operoso, não se satisfazsenão quando os materiais submetidos ao seu domíniotiverem conquistado condição mais estável. Ora, talestabilidade não se conquistaria senão no dia em queesses materiais não mais ruíssem.. . Importaria, portanto,suprimir todo e qualquer declive até o mar, reservatóriocomum,. onde se consumam todas as potênciascarreadoras; e bem assim, que todos os fragmentoscarreados dos continentes se tenham disseminado nofundo dos mares. Em resumo: ou aplanamento completoda terra firme, ou, por melhor dizer, a destruição dequalquer relevo continental.

O resultado da erosão produzida pelas águascorrentes deve originar sobre as linhas de partilha

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regional, pontudas arestas, passando bem depressa àsplanícies quase absolutamente rasas, entre as quais nãorestaria, em última análise, nenhum relevo com mais de50 metros de altura.

Entretanto, em parte alguma essas arestas agudas semanteriam por muito tempo, de vez que o peso, a açãodos ventos, das infiltrações e das variações detemperatura seriam suficientes para provocar oarrasamento. Lícito é também dizer que o termo finaldesse trabalho de erosão continental há de ser onivelamento completo da terra firme, assim reconduzidaa nível mais ou menos equivalente ao da embocadura dosrios.

O coadjutor do Arcebispo de Paris, que ocupava olugar de sua Eminência, levantou -se e interrompeu oorador:

Eis aí como se confirmarão literalmente às escrituras,quando dizem: Todo vale será aterrado, colinas emontanhas serão arrasadas.

A Bíblia tudo prenunciou - replica o geólogo -, a águacomo o fogo, o frio como o calor, e os espíritosengenhosos podem lá encontrar tudo o que desejarem.Mas, o que podemos haver por certo é que, se nadamodifica as condições da terra firme e dos oceanos, orelevo continental, esse está fatalmente destinado adesaparecer.

Quanto tempo transcorrerá até que isso se verifique ?Se espalhássemos todas as montanhas da Terra, ela se

apresentaria como uma planície dominando em todaparte o mar, por penedias de 700 metros de altura, maisou menos.

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Admitido que a superfície total dos continentes sejade 145 milhões de quilômetros quadrados, teríamos que ovolume da massa continental emergida pode esmar -se em145.000.000 x 07, ou ..... 101.500.000, ou, em númerosredondos, cem milhões de quilômetros, cú bicos. Tal aprevisão, indubitavelmente respeitável, mas nãoindefinida, contra a qual atuam potências destruidoras.

Todos os rios, de conjunto, podem estimar -se comodespejando anualmente no mar 23000 quilômetroscúbicos da água (ou por outra, 23000 vezes um milhão demetros cúbicos) ; tal débito, pela relação estabelecida de38 partes sobre 100000, daria um volume igual a 10quilômetros e 34 centímetros de matérias sólidas. Estacifra está, para a do volume total dos continentes, naproporção de 1 para 9.730.000; se a terra firme fosse umaltiplano uniforme de 700 metros, perderia cada ano umafaixa de sete centésimos de milímetro, ou um milímetroem catorze anos, ou, ainda, sete milímetros cada século.

Aí temos uma cifra positiva, que exprime o valoratual da erosão dos continentes. Aplicando -a ao conjuntodos mesmos, vê-se que essa erosão só por si destruiria emmenos de dez milhões de anos toda a massa de terrasemergidas.

Não são, entretanto, as chuvas e os rios, os únicosfatores dessa obra de destruição progressiva. O primeiroé a erosão marinha. Para avaliá -la, dificilmenteencontraremos melhor estalão que o das costasbritânicas, cuja situação as expõe ao assalto das águasatlânticas, levadas pelos ventos preponderantes dosudoeste, sem interposição de obstáculos quaisquer. Ora,

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o recuo médio do conjunto das costas inglesas é,seguramente, inferior a três metros em cada século.

Podemos, por duas maneiras, proceder nessainvestigação. A primeira consiste em avaliar a perda devolume que representa, para a totalidade das costas, umrecuo anual de 3 centímetros. Para isso, importaconhecer-lhes a extensão e altura média. A extensão dasplagas em todo o globo pode estimar-se em 200000quilômetros, mais ou menos, e, quanto ao nível sobre omar, talvez exageremos calculando -o em média de cemmetros. Logo, um recuo de 3 centímetros corresponde auma perda de 3 metros cúbicos por metro corrente, ou,seja, para 200000 quilômetros de costa, 600 milhões demetros cúbicos, que perfazem apenas seis décimos dequilômetro cúbico. Noutros termos: a erosão marinhanão representaria mais que a décima sétima par te dotrabalho das águas meteóricas!

Objetar-se-á, talvez, a esse processo, que, dada aaltitude crescente das costas para o interior, o mesmorecuo deveria, com o tempo, corresponder a maior perdade volume. E teria fundamento essa objeção? Não,porque, tendendo a ação das chuvas e dos rios para oaplanamento completo das superfícies, prosseguiria emparalelo com a ação das vagas.

Por outro lado, sendo a superfície da terra firme de145 milhões de quilômetros quadrados, um círculo deigual superfície deveria ter 6800 quilômetros de raio.Mas, a circunferência desse círculo não ultrapassaria40000 quilômetros, o que vale dizer que o mar teria, decontorno, diminuída de um quinto a carga queatualmente não tem, graças aos recortes que atingem a

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200000 quilômetros ao longo de suas plagas. Podeadmitir-se, pois, que o trabalho de erosão marinhamarcha cinco vezes mais rápido que sobre um círculoequivalente. Certo, esta estimativa representa ummáximo, pois as penínsulas estreitas, uma vez corroídaspelo mar, diminuiriam cada vez mais a correlação deperímetro e superfície, tornando menos eficaz a ação daságuas. Em todo caso, desde que à razão de 3 centímetrospor ano, um raio de 6800 quilômetros está condenado adesaparecer dentro de 226600000 anos, um quinto destacifra, ou seja 45.000.000 de anos representaria o mínimodo tempo necessário à destruição da terra firme pelasvagas marinhas. Isso, como intensidade, apenascorresponderia à quinta parte da ação continental.

O conjunto das ações mecânicas parece, poi s,arrebatar à terra firme, cada ano, um volume de 12quilômetros cúbicos, que, para um total de 100 milhões,culminaria na destruição completa em oito milhões deanos, mais ou menos. Não se pense, porém, que tenhamosesgotado a análise dos fenômenos destr utivos da massacontinental. A água não é somente um agente mecânico,mas também um elemento de dissolução, muito maisativo do que geralmente se imagina, dada a proporçãoassaz notável de ácido carbônico que contém, quer oabsorvido na atmosfera, quer o o riginado dadecomposição das matérias orgânicas do solo. Circulandoatravés de todos os terrenos, ela aí se satura dassubstâncias que carreia, mediante um verdadeiro ataquequímico aos minerais das rochas atravessadas.

A água dos rios contém cerca de 182 toneladas desubstâncias dissolvidas, por quilômetro cúbico. O

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conjunto dos rios carrega para o mar, anualmente, cercade cinco mil metros cúbicos de substâncias dissolvidas. Jánão seriam, portanto, mais doze, e sim dezessete milmetros cúbicos que a terra firme perderia todos os anos,sob as diversas influências que operam a sua destruição.Temos então, desde logo, que o total de 100 milhõesdesapareceria, não mais em oito, mas em pouco menos deseis milhões de anos.

Mas esta cifra, senhores, deve ainda s ofrer grandeatenuação. Com efeito, é preciso não esquecer que ossedimentos introduzidos no mar, aí tomam o lugar de talou qual quantidade da água e, destarte, levantam o níveldo Oceano de encontro à plataforma continental, que seabaixa, e cuja destruição final fica assim acelerada.

A medida desse movimento é fácil de calcular.Efetivamente, por uma dada faixa que perde o planaltosuposto uniforme, é preciso que o mar se eleve emquantidade tal que o volume do leito marinhocorrespondente seja justamente igual ao volume dossedimentos introduzidos, ou seja ao da faixa destruída. Ocálculo mostra que a perda em volume eleva -se, em cifrasredondas, a 24.000 metros cúbicos.

Podemos então concluir - uma vez que esta cifra de 24mil metros cúbicos é contida 4166666 na de 100 milhões,que representa o volume continental - que a só atuaçãodas forças atualmente operantes, independente demovimentos outros do solo, bastaria pa ra acarretar,daqui a 4 milhões de anos, a desaparição total da terrafirme.

Acrescentarei que, se essa desaparição podepreocupar um geólogo ou um pensador, nem por isso

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representa um evento inquietante para a nossa geração.Não serão nossos filhos nem tetranetos quem haja de oapreciar. Se, pois, houverdes por bem me permitirconcluir esta explanação por uma palavra um tanto...fantasista, direi que o cúmulo da previdência seria,seguramente, constituirmos desde já uma nova arca paraescapar a esse futuro dilúvio universal.

Essa a tese sabiamente sustentada pelo Presidente daSociedade geológica da França. Essa exposição lenta ecalma das operações seculares dos agentes naturais,dilatando de quatro milhões de anos as perspectivas devida planetária, foi um sedativo para os nervossobreexcitados com a aproximação do cometa. Aassistência mostrava-se agora assaz tranqüila. Maldeixou o orador à tribuna, recebendo elogios dos colegas,e a conversação se reanimou, subdividida em grupos. Umsopro de pacificação como que atravessara todos oscérebros. Falava-se do fim do mundo como da queda deum governo ou da chegada dos andarilhos, sem paixão eaté com certa displicência. Um acontecimento ainda quefatal, mas adiado por quarenta mil séculos, não nos afetade modo algum.

Mas o Secretário geral da Academia meteorológicoacabava de subir à tribuna e todo mundo lhe prestoudesde logo a maior atenção.

Minhas senhoras, meus senhoresVou expor uma teoria diametralmente oposta à do

meu caro e eminente colega do Instituto, teoria apoiadaem fatos não menos rigorosamente observados, e commétodo racional não menos seguro. Sim, senhores,

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diametralmente oposta, repito. Dotado de excelente vista,o orador logo percebeu que os semblantes se anuviaram.

Oh! - exclamou - oposta, não quanto ao prazo que anatureza reserva à vida planetária, mas quanto àmaneira do seu perecimento, visto que também eu creionuma dilação de alguns milhões de anos.

Apenas, em vez de conjeturar os continentesdestinados a sucumbir pela invasão das águas,inteiramente submersos, penso que hão de morrer dearidez...

Ao estudo precedente, poderia ter objetado que, emmuitas regiões, não é o mar que desfalca a terra e simesta que o invade, seja pelas areias e dunas litorâneas, ouseja pelos deltas e aterros conseqüentes aos enxurrosfluviais. Não quero, entretanto, abrir controvérsia sobreos efeitos recíprocos das atividades terrenas e marinhas,que nos levaria muito longe; quero, apenas, chamar aatenção do auditório para um fato geológico muitointeressante, qual o da diminuição gradual da águaexistente na terra, de século para século. Di a virá em quenão mais teremos mares, nuvens, chuva, fontes, águaenfim! Toda a vida vegetal e animal acabarão , nãoafogada, mas de secura.

E' fato que a água diminui na superfície do globo.Sem procurar exemplos mais longe, lembrarei queoutrora, em começo do período quaternário, o local emque se estende este nosso Paris atual, do monte S.Germano à confluência do Marne, com os seus 9.000.000de habitantes, estava quase totalmente tomado pelaságuas, de vez que só a colina de Passy a Montmartre e aoPère-Lachaise e o planalto de Montrouge até o Pantheon

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e o maciço do Mont-Valerien, emergiam do enormelençol da água. A altura desses planaltos não aumentou,não houve alteamentos, mas a água diminuiu. Aquitendes -disse projetando um mapa na parede doanfiteatro - o que era o Sena nesta zona parisiense, emtempos pré-históricos.

Insignificante quantidade da água, certo, em relaçãoao conjunto, mas nem por isso negligenciável, penetranas profundezas do solo, quer nas bacias marítimas, querpelas brechas devidas à deslocação e erupçõessubmarinas e mesmo em terra firme, visto que nem todaa massa pluvial encontra um leito de argila impermeável.Em geral, a água das chuvas retorna ao mar pelas fontes,regatos e rios, mas, para isso, precisa encontrar umaterra argilosa, ai correndo conforme os declives. Quandonão haja camada impermeável, ela prosseguiráinfiltrando-se na crosta porosa do globo e irá saturar asrochas profundas. Essa água perde -se para a circulação equimicamente combinada constitui os hidratos. S e apenetração for muito profunda, a água atingetemperatura suficientemente alta para transformar -seem vapor, e tal é a origem mais freqüente dos vulcões etremores de terra. Os fumos vulcânicos são quasetotalmente compostos de vapor da água. Entretanto, noâmago do solo, como ao ar livre, uma parte desprezíveldas águas móveis se transforma em hidratos, e mesmoem óxidos. Nada como a humidade para produzir aferrugem. Assim fixados os elementos da água, ohidrogênio e o oxigênio deixam de combinar -se. As águastermais, por outro lado, não constituem toda umacirculação fluvial interior e proveniente da superfície?

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Seja fixando-se, seja combinando-se ou penetrandonas camadas profundas do solo, o caso é que a águadiminui na superfície da Terra. Ela també m descerá cadavez mais fundo, à proporção que o calor interno fordiminuindo. Os poços caloríferos cavados há cem anos,próximo das cidades mais importantes e que fornecemgratuitamente o calor necessário aos serviços domésticos,esgotar-se-ão com a queda da temperatura interior. Diavirá em que a Terra se resfriará até ao centro, e esse diacoincidirá com o desaparecimento total das águas.

De resto, senhores, parece que este será o destino dosdiversos corpos celestes do nosso sistema solar. Nossavizinha Lua, cuja massa e volume são muito inferioresaos de nossa Terra, esfriou-se mais rapidamente e maisrapidamente percorreu as fases de sua evolução astral.Seus prístinos mares, que ainda hoje se podem identificarpelo efeito de suas águas, estão inteiram ente esgotados,não se lhes percebe qualquer sinal de evaporação,qualquer nuvem, nem tão-pouco o espectroscópio nosrevela traços de vapor da água. Planos áridos, rochedosabruptos, circos desertos. Por outro lado, Marte, umpouco menor que a Terra, apres enta-se-nos maisavançado em seu curso, constatando -se já não possuirnenhum oceano digno desse nome, mas tão somentemediterrâneos pouco extensos, pouco profundos ereligados por canais. Que há menos água em Marte quena Terra, é fato inconteste, por obse rvado. Os fenômenosde evaporação e condensação produzem -se lá, maisrápidos do que aqui, as neves polares mostram, conformeas estações, uma variação muito mais ampla que a dasneves terrenas. Ainda por outro lado Vênus, mais jovem

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que a Terra, apresenta-se-nos envolto em imensaatmosfera, permanentemente carregada de nuvens.Quanto ao grandioso Júpiter, esse está nos primórdios davida, não no vemos, por assim dizer, senão amortalhadoem nuvens e vapores. Assim, os quatro planetas quemelhor conhecemos, confirmam, cada um de per si, aobservação terrena do decréscimo secular das águas.Folgo muito em poder confessar, a propósito, que a tesedo nivelamento geral sustentada pelo meu sábio colegatem apoio no estado atual de Marte. O eminente geólogodizia-nos, há pouco, que, graças ao trabalho secular dosrios, o relevo final do solo futuro será formado de planosquase horizontais. E' o que já se verifica em Marte, ondeas plagas vizinhas do mar são tão unidas que freqüente efacilmente se inundam, qual o sabemos. De uma paraoutra estação, centenas de milhar de quilômetrosquadrados são alternativamente enxutos, ou submersosnum espesso vapor da água. E' o que se observaprincipalmente nas plagas ocidentais do mar Arenoso.Na Lua, entretanto, o nivelamento nã o se operou. Seráque houvesse faltado o tempo e não haveria existidoáguas nem ventos antes de sua consumação. Ao demais, opeso é lá quase nulo.

E' certo, pois, que sofrendo de século em século umnivelamento fatal, como expôs magistralmente o meuconfrade, a Terra sofre, ao mesmo tempo, umadiminuição gradual da quantidade da água que possui.Aparentemente, tudo indica que essa diminuição marchaparalelamente com o nivelamento. À medida que o globofor perdendo calor interno e resfriando -se, terá a mesmasorte da Lua e fender-se-á. A extinção absoluta do calor

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há-de originar contrações, produzindo vácuos nointerior; a água dos oceanos correrá para esses vácuossem transformar-se em vapor e será absorvida pelasrochas, ou se combinará com as rochas metáli cas noestado de hidrato de óxido de ferro. A quantidade daágua diminuirá assim, indefinidamente, até desaparecerde todo. Os vegetais, em lhes faltando o elementoessencial, transformar-se-ão a princípio, mas acabarãoperecendo. As espécies animais també m setransformarão, mas, haverá sempre herbívoros ecarnívoros, e os primeiros desaparecerão antes,devorados pelos segundos, até que a própria espéciehumana, mal grado às suas transformações, acabemorrendo à sede e à fome, na crosta da terra esturricadae ressequida.

Podemos então, senhores, conseqüentemente, concluirque o mundo não acabará com outro dilúvio, mas, aocontrário, pela ausência da água. Sem água, toda a vidaplanetária se torna impossível, pois ela é o elementoessencial de todos os corpos viventes. O próprio corpohumano com ela se forma na proporção de setenta porcento. Sem água não pode haver plantas nem animais.Seja no estado liquido ou vaporoso, é ela que rege toda 2.vida terrena. Suprimi-Ia equivale a um decreto de morte.Pois esse decreto a Natureza o promulgará, dentro deuma dezena de milhões de anos. Acrescento que onivelamento não virá antes disso. O Sr. Presidente daSociedade geológica não se esqueceu de notar que os seus4000000 de anos enquadram-se na hipótese de agirem ascausas atuais, destrutivas da terra firme, na medidaexata que ora se verifica, sem alteração de ritmo. Por

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outro lado, é ele próprio quem diz não ser possívelcessarem desde já as manifestações da energia interior.Sublevações hão-de produzir-se por muito tempo, aqui eacolá, e os acréscimos délticos, insulares, vulcânicos,madrepóricos, far-se-ão sentir ainda por muito tempo. Operíodo indicado não representa, por conseguinte, senãoum mínimo.

Assim falou o meteorologista. Os dois oradores foramouvidos com profunda atenção. O auditório deixavaentrever, em suas atitudes, achar -se perfeitamentetranqüilizado quanto aos destinos da Terra. O cometaestava completamente esquecido.

Tem a palavra a Senhorita que chefia o departamentode cálculos astronômicos. A jovem laureada do Instituto,doutora em ciências naturais, físicas e matemáticas,encaminhou-se para a tribuna.

Meus dois sábios colegas - disse prescindindo deexórdio - têm razão, por isso que de um lado éincontestável a ação dos agentes meteóricos, a uxiliadospelo peso, no nivelamento do globo, cuja crosta se adensae solidifica cada vez mais; por outro lado, menos verdadenão é que o volume da água diminui de século a século,na superfície do planeta. Aí temos dois pontos que aCiência pode julgar como resolvidos. Mas, senhores,parece-me que o fim do mundo não sobrevirá pelasubmersão dos continentes, nem tão -pouco peloesgotamento, da água que entretém a vida animal evegetal.

Esta nova declaração, implicando uma terceirahipótese, como que feriu o auditório de uma quaseestupefação.

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Tão-pouco acredito - apressou-se a oradora emdeclarar - seja o cometa o encarregado da catástrofefinal, pois penso, com os dois oradores , que os mundosnão morrem de acidentes, mas de velhice.

Sim; indubitavelmente, a água diminuirá e acabarámesmo desaparecendo, talvez; mas não será a sua falta,em si mesma, e sim as conseqüências dela oriundas, quedeterminarão o aniquilamento final. A diminuição dovapor aquoso na atmosfera acarretará o resfriamentogeral, e os meus estudos neste sentido levaram-me aconcluir que o perecimento virá pelo frio.

Para os meus ouvintes, é ocioso aqui declarar que aatmosfera respirável se compõe de 79% de azoto, 20 % deoxigênio, e que o centésimo restante comporta 25% devapor da água, 3 decimilésimos de ozônio, ou oxigênioeletrizado, amoníaco, hidrogênio e gases outros semquantidade infinitesimais. Azoto e oxigênio perfazem,portanto, 99% e o vapor da água apenas 1/4 do centésimointegrante.

E contudo, minhas senhoras, do ponto de vista davida orgânica, esse 1/4 de centésimo tem a mais altaimportância e não receio afirmar que, no concernente àtemperatura e ao clima, ele é mais essencial que todo oresto da atmosfera! Depois, senhores, invoco o juízo doshistoriadores, perguntando: não são as pequeninas coisasque governam o mundo?

As ondas de calor solar que aquecem o solo e deleemanam, depois, para difundir -se na atmosfera, sechocam de passagem contra os átomos de azoto e deoxigênio, e contra as moléculas de vapor da águadisseminadas no ar. Estas moléculas são tão rarefeitas

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(pois que não ocupam por seu volume mais que 1/100 doespaço das outras), que poderíamos atribuir mais aoazoto e ao oxigênio, do que a elas, a conservação do calor.De fato, considerando os átomos em particula r, vemosque para 200 partes de oxigênio e azoto, apenas temos 1de vapor aquoso. Pois bem! esse único átomo tem oitentavezes mais energia, mais vapor eficiente para conservar ocalor radiante, do que os 200 de oxigênio e azoto! Porconseqüência, uma molécula de vapor aquoso é 16000vezes mais eficaz que uma molécula de ar seco, paraabsorver, como para irradiar o calor, de vez que os doispoderes são recíprocos e proporcionais. Diminua -se emgrande proporção essas invisíveis moléculas de vaporaquoso e a Terra tornar-se-á imediatamente inabitável,em que pese ao oxigênio. Todas as regiões, mesmo oequador e os trópicos, logo perderão o calor que osvivifica, condenados ao clima das grandes altitudes,sempre flageladas pelas neves eternas. Ao invés deplantas luxuriantes, de flores e frutos, de aves e ninhos,da vida que desborda na terra e nos mares; ao invés deregatos cantantes, de claros arroios, de lagos e mares,não teremos mais que gelos imóveis num imensodeserto... E quando digo - nós, senhores, compreendeisque não nos sobraria tempo para assistir ao espetáculo,pois o próprio sangue se coagularia e todos os coraçõeshumanos deixariam de pulsar. Aí tendes asconseqüências da supressão do vapor aquoso da nossaatmosfera, operando qual câmara protetor a e benéfica,em prol de toda a vida terrestre .

Os princípios do termo-dinâmico demonstram que atemperatura do espaço é de 273 graus abaixo de zero.

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Esse, o frio glacial que há-de amortalhar nosso planeta,quando privado da cortina aérea que o envolve, a quece eproteje agora.

Eis o destino reservado a Terra pela diminuição daágua existente em sua superfície. Essa morte pelo frioserá inevitável, se aqui nos detivermos assaz longamentepara sofrê-la.

Tal desfecho é tanto mais certo quanto não é só ovapor da água que diminui, mas também os, outroselementos, quais o oxigênio e o azoto, ou seja toda aatmosfera. O oxigênio se fixa insensivelmente por todosos óxidos perpetuamente formados na superfície doglobo, e o azoto nas plantas e no solo, sem reverter emintegralmente ao estado gasoso. A atmosfera, devido àsua pressão, penetra nos oceanos e nos continentes,descendo, também ela, às regiões subterrâneas. Pouco apouco, século a século, a atmosfera diminui. Outrora, noperíodo primário por exemplo, ela e ra imensa, as águascobriam quase todo o orbe. Apenas os primeirosalteamentos graníticos emergiam da massa líquida geral.A atmosfera impregnava-se de vapor da água,incomparavelmente maior que em nossos dias. Assim seexplica a alta temperatura dessas ép ocas remotas,quando as plantas tropicais, contemporâneas, fetosarborescentes, calamitas, equissetáceas, sigilárias,lapidodêndreas, formavam opulentas florestas, tanto nospólos como no equador. Hoje, tanto a atmosfera como ovapor da água diminuíram. De futuro, hão-dedesaparecer. Em Júpiter, que se encontra ainda noperíodo primário, a atmosfera apresenta -se-nosvolumosa e prenhe de vapores, enquanto que na Lua

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quase que não existe e a sua temperatura mantém -seabaixo de zero, mesmo a pleno Sol. Marte o ferece-nosuma atmosfera bem mais rarefeita que a nossa. Assim, defuturo, esta nossa mísera humanidade há -de morrer defrio.

Quanto ao tempo necessário à consumação doadvento, eu adotaria os dez milhões de anos calculadospelo orador que me precedeu nest a tribuna.

Tais, senhoras e senhores, as etapas que a Naturezaparece haver traçado à marcha vital dos mundos, pelomenos aos pertencentes ao nosso sistema planetário.Concluo, portanto, que a Terra segue o destino da Lua,perecerá pelo frio, logo que despojada da capa aérea queatualmente ainda a garante do desperdício perpétuo docalor solar que recebe do Sol.

O chanceler da Academia columbiana, chegado nomesmo dia, de Bogotá, em aeronave elétrica, pediu apalavra. Sabia-se que ele havia fundado,justo na linhaequatorial e na altitude de 3000 metros, um observatórioque dominava todo o planeta, de onde se viamsimultaneamente os dois pólos celestes. Lembramostambém que, em homenagem à França , ele dera a essetemplo de Urânia o nome de um astrônomo francê s, cujavida toda se consagrara ao estudo doutros mundos,dando-os a conhecer aos espíritos esclarecidos eestabelecendo o papel soberano da astronomia em toda equalquer doutrina filosófica ou religiosa. Portador de umnome universalmente conhecido, justo era fosse ouvidocom especial atenção.

Senhores! - disse logo que assomou à tribuna - temosouvido nestas duas sessões, admiravelmente resumidas,

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as curiosas teorias que a moderna ciência tem o direitode oferecer à Humanidade, a respeito da forma por queacabará o nosso mundo. O abrasamento da atmosfera oua asfixia dos pulmões, determinados por encontro docometa que se avizinha rápido; a submersão, aindalongínqua, dos continentes, pela precipitação daatmosfera na profundeza dos mares; a aridez absolut a dosolo e do ar, devida à diminuição gradual do elementoaquoso e, finalmente, o resfriamento lunar do nossomísero planeta envelhecido e caduco. Eis, se me nãoengano, as cinco espécies de consumação possíveis.

Disse o Sr. Diretor do Observatório não ac reditar naprimeira hipótese e que, ao seu ver, o encontro resultariamais, ou menos inofensivo. Estou de pleno acordo edesejo acrescentar que, depois de ter ouvido atentamenteas sábias dissertações dos eminentes colegas, tão -poucopoderia acreditar nas hipóteses restantes.

Senhores, de sobejo sabeis que nada é eterno... Tudose transforma no seio da Natureza. Os rebentos daprimavera abrolham em flores, as flores em frutos.Passam as gerações e a vida continua a sua obra. Nossomundo há-de acabar, por isso que começou. Mas, naminha opinião pelo menos, não será o cometa, nem aágua, nem a falta desta que lhe hão -de engendrar aagonia. O problema, parece-me, assenta inteiramente naúltima palavra da notável alocução da nossa graciosacolega do Departamento de cálculos. Sim! evidentemente,tudo se prende ao Sol.

A vida planetária está suspensa em seus raios... Quedigo? - ela não é mais que transformação do calor solar.Ele, o Sol, é que mantém a água em estado líquido e o ar

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em estado gasoso. Se não existis se o Sol, tudo seria sólidoe morto. E' ele que evapora a água de mares, lagos, rios,charcos; que fabrica a nuvem, o vento, as chuvas, a regera fecundante circulação das águas. E graças à sua luz eao seu calor que as plantas assimilam o carbono contidono ácido carbônico da atmosfera. Para separar dooxigênio o carbono e retê-lo, a planta desenvolve grandelabor. A frescura das matas provém dessa conversão decalor solar em labor vegetal. A lenha que nos aquece, nãofaz mais que suprir-nos de calor solar armazenado, e,quando queimamos óleo ou gás, estamos libertando raiossolares aprisionados, há milhões de anos, nas florestasprimitivas. A própria eletricidade não é mais quetransformação do trabalho que tem no Sol a sua fonteoriginal. É, pois, o Sol que murmura na fonte, palpita novento, grita nas tempestades, flori na rosa, gorjeia norouxinol, fuzila no relâmpago; ruge no furacão, canta ouesbraveja em todas as sinfonias da Natureza.

Assim, o calor solar transforma -se em correntesaéreas ou líquidas, em potencial expansivo de gases evapores, em eletricidade, madeira, flor, fruto, forçamuscular c nervosa. Enquanto esse astro brilhante puderfornecer-nos suficiente calor, a vida planetária estarágarantida.

O calor do Sol origina-se, muito provavelmente, dacondensação da nebulosa que lhe deu origem,constituindo-se em centro do nosso sistema. Essatransformação de movimento devia ter produzido 28milhões de graus centígrados! Sabeis, senhores, que umquilograma de hulha vindo cair no Sol, de uma dist ânciainfinita, produziria, com o seu choque, seis mil vezes mais

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calor que o produzido por sua combustão. Pela taxa dairradiação atual, a provisão de calor solar representa airradiação solar durante 22 milhões de anos, e é muitoprovável que vá muito além, pois nada prova que oselementos da nebulosa tenham sido absolutamente frios;antes, pelo contrário, que já traziam consigo umaverdadeira provisão de calor.

Nada obstante, tudo tem um fim. Se o Sol,continuando a condensar-se, chegasse, um dia, àdensidade da Terra, essa condensação produziria novaquantidade de calor, suficiente para manter ainda por 17milhões de anos a mesma intensidade calorífica queentretém a vida terrena atual, e este prazo pode serprolongado, admitindo-se uma diminuição na taxa deirradiação, uma queda de meteoros sobre o astrovoraginoso e uma condensação continuada, além dadensidade terrestre. Contudo, por mais longe quelevemos esse prazo, ele fatalmente se esgotará. Os sóisque se apagam na vastidão dos céus, são outros ta ntosexemplos antecipados da sorte reservada ao que nosilumina. De resto, aí o temos, já de algum tempo, acobrir-se de manchas enormes.

Mas, quem poderia afirmar que, daqui a dezessete ouvinte milhões de anos, as maravilhosas faculdades deadaptação que a fisiologia e a paleontologia nos têmrevelado, em todas as espécies animais e vegetais, nãoconduzam o ser humano, de estágio em estágio, a umestado de perfeição física e intelectual tão superior aoatual, quanto este hoje se distancia do iguanodonte dasépocas imemoriais? Quem sabe se o nosso esqueleto fóssilnão parecerá tão monstruoso aos nossos pósteros, quanto

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se nos afigura, hoje, um arcabouço dinossaureano? Podeser que a estabilidade térmica autorize, então, a duvidarde que uma raça verdadeiram ente inteligente tenhavivido em uma época qual a nossa, de saltostermométricos e variações fantásticas do firmamento,caracterizadas pelas nossas burlescas estações. E, quemsabe se daqui até lá, por mais de uma vez, qualquerrevolução, qualquer transformação não envolverá opassado em novas camadas geológicas, a fim dereconstituir uma nova era, novos períodos -quinquenário, sexenário, inteiramente diversos dasépocas quaternária, terciária, secundária, primária?

O certo é que o Sol acabará perdendo o c alor; que asua massa se condensa e se retrai; que a fluidez diminui.Dia virá em que a circulação que alimenta a fotosfera eregula a sua radiação, fazendo que dela participe a quasetotalidade da massa formidanda, será atingida ecomeçará a afrouxar. Então a luminescência e o calordiminuirão, a vida vegetal e animal se restringirá cadavez mais, convergindo para o equador. Cessada estacirculação, a brilhante fotosfera será substituída por umacrosta opaca e obscura, privada de qualquer radiaçãoluminosa. O Sol transformar-se-á em globo vermelho-escuro e sucessivamente negro, para que tudo mergulheem noite eterna. A Lua, cuja luz já nos vem refletida, nãomais poetizará as nossas noites silenciosas. A Terraapenas terá a luz da estrelas. Extinto o calor solar, nossaatmosfera ficará em calma absoluta, sem o sopro de umaaragem em qualquer direção. Se ainda houver mares,serão solidificados pelo frio. Nenhuma evaporação queenseje nuvens, nenhuma chuva cairá, nenhuma fonte

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correrá. Talvez os derradeiros la mpejos de um círio,quais os vemos nessas estrelas negras prestes a seapagarem; talvez um acidental desenvolvimento de calor,devido a qualquer retração da crosta solar, possamdespertar, ainda por instantes, o velho Sol de nossostempos, mas isso não será mais que um sintoma doúltimo alento, do termo final.

E a Terra, bola negra, gelada necrópole, continuarágirando em torno do Sol negro, a vogar em noite infinita,levada com todo o sistema solar no bojo do abismoinsondável. Assim perecerá a Terra com a extinção doSol, daqui a uns vinte milhões de anos, ou mesmo maistarde ... o dobro, talvez.

Calou-se o orador e preparava-se para deixar atribuna, quando o Diretor da Academia de Belas -Artespediu a palavra:

Senhores - disse do seu lugar -, se bem tenhocompreendido, o mundo há-de acabar, provavelmente,pelo frio, dentro de alguns milhões de anos. Se, pois, umpintor houvesse de fixar a última cena, deveria cobrir aTerra de geleiras e esqueletos...

- Não é bem assim - replicou o Chanceler colombiano-, pois não é o frio, mas o calor, a causa primária dasgeleiras.

Se o Sol não evaporasse a água dos mares, nenhumanuvem se produziria, nem haveria possibilidade deventos quaisquer... Para fabricar geleiras é preciso, antesde tudo, um sol que evapore a ág ua e a transforme emnuvem; portanto, um condensador. Sabeis que umquilograma de vapor representa uma quantidade decalor solar bastante para elevar 5 quilos de ferro ao

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estado de fusão (1110 graus). Enfraquecida a ação solar,teremos, claro, exauridas as geleiras.

Destarte, não serão neves nem geleiras amortalhandoa Terra. Tudo o que remanescer do mar congelado,gelado ficará, e extinto todo e qualquer movimentoatmosférico.

A menos, portanto, que o Sol não tenha sofrido, antesdo último suspiro, um daqueles espasmos a que nostemos referido, fundindo gelos, reproduzindo nuvens ecorrentes aéreas, despertando, enfim, fontes e rios para,após esse pérfido despertar, recair súbito no seu fatalletargo. Será o dia sem amanhã.

Ouviu-se outra voz partida do anfiteatro. Era umcélebre eletricista.

Todas as causas de morte pelo frio são plausíveis,mas, que dizermos do fogo? Todos se referiram a essamorte, em função do encontro cometário, e contudo elapoderia sobrevir-nos de outra forma.

Sem falarmos do afundamento dos continentes nofogo central, motivado por tremor de terra, geral, ou pordeslocamento formidável das camadas de terra firme,parece-me que uma vontade suprema bastaria,independente de qualquer choque, para deter omovimento do planeta em seu curs o e transformar essesmovimento em calor.

- Uma vontade? interpelou alguém. Mas, a ciênciapositiva não admite milagres...

- Nem eu tão-pouco - revidou o eletricista: quandodigo vontade, quero dizer força ideal e invisível. Explico -me:

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Nosso globo singra o espaço com a velocidade de106.000 quilômetros horários, ou sejam 29460 metros porsegundo. Se qualquer sol, brilhante ou obscuro, quenteou frio, viesse das profundezas do espaço para formarcom o nosso sol um consórcio eletro -dinâmico e a colocarnosso planeta sobre essa linha de força, agindo sobre elecomo um freio; se, numa palavra, por uma causaqualquer a Terra fosse instantaneamente detida em seucurso, o movimento de sua massa se transformaria emmovimento molecular e o planeta se encontraria log oelevado a um grau de calor tal que o reduziria mais oumenos a vapor...

- Suponho, obtemperou o Diretor do Observatório doMonte Branco, que a Terra ainda poderia perecer deignidade por outra forma. Temos observado mais oumenos, no céu, uma estrela tem porária, que, dentro dealgumas semanas, passou da sexta à quarta ordem defulgurância. Esse longínquo sol tornou -se, subitamente,cinqüenta mil vezes mais luminoso e ardente! Sim,cinqüenta mil vezes! Se tal evento sobreviesse ao nossosol, nada nos restaria de vida planetária, tudo seria desúbito incendiado, consumido, ressecado ou evaporado.

Esta súbita exaltação pode ser atribuída à penetraçãodaquele astro em uma espécie de nebulosa. Nosso sol,também ele, caminha com grande velocidade e poderiamuito bem oferecer-nos um encontro desse gênero. Elepoderá, igualmente, explodir pela dissociação dosátomos, sob a pressão formidável reinante no interior doastro. Poderíamos, então, morrer de calor ou de sede.

A Terra se reduziria a deserto árido e ardente a brevetrecho, com uma atmosfera de fornalha irrespirável.

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- Confessemos - disse a sorrir o Presidente - que aNatureza nos ameaça com muitos gêneros de morte...

- Senhores! - ergueu-se o Diretor do Observatório deParis - Permitis que resuma, em poucas p alavras, todasas dissertações interessantíssimas aqui ouvidas sobre ograndioso tema em apreço?

Segundo o que acabamos de ouvir, nosso planeta,para morrer, não terá outra dificuldade senão a deescolher o gênero de morte. Eu não creio, mais que hápouco, no perigo deste cometa. Preciso é, porém,confessar que, do só ponto de vista astronômico, nossomísero globo errante está exposto a muitas surpresas. Acriança nascida neste mundo, homem ou mulher, podecomparar-se a um indivíduo colocado à entrada de um arua estreitissima, no estilo das do século XVI, ladeada deprédios, tendo em cada janela um caçador munido dessesbelos fuzis do último século. O indivíduo tem,iniludìvelmente, de percorrer toda a rua e evitar afuzilaria cerrada contra ele, de ponta a ponta. Todas asenfermidades nos molestam e ameaçam: dentição,convulsões, coqueluche, crupe, varíola, meningite,cataporas, influenza, escarlatina, pneumonia, enterite,aneurisma, tuberculose, câncer, apoplexia, esclerose, etc.Quero omitir outras ainda, que os meus caros ouvintesnão terão dificuldade em juntar à lista. Chegará o nossomal aventurado transeunte são e salvo à outra ponta nempor isso, deixará de morrer.

Que assim seja e nem por isto deixará de morrer.Assim prossegue a nossa Terra em sua rota solitária,

com velocidade superior a cem mil quilômetros horários,arrastada pelo Sol, bem como as suas irmãs, para a

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constelação de Hércules. Resumindo o que aqui se há ditoe lembrando o que porventura se tenha esquecido, direique podemos encontrar um cometa dez ou vinte vezesmais volumoso que o planeta e composto de gasesdeletérios, capazes de envenenar a nossa atmosfera. Podeencontrar um enxame de uranólitos, que lhe causem oefeito de uma carga de chumbo num passarinho. Podeesbarrar, em sua trajetória, com uma bola invisível, maisou menos densa, e cujo choque baste para reduzi -Ia aoestado de vapor. Pode encontrar um sol que a devore,instantaneamente, qual maçã lançada a uma fornalha.Pode ser enredada num sistema de forças elétricas, quesejam como trave posta aos seus onze movimentos,capazes de fundi-la ou incendê-la como a um fio deplatina submetido a corrente dupla. Pode perder ooxigênio que nos dá vida, pode estalar como a cratera deum vulcão, pode esventrar-se num abalo sísmico, podesubmergir em dilúvio mais universal que o último e pode,ao contrário, perder toda a água que representa oessencial elemento de sua organização vital; pode seratraída à passagem de outro corpo celeste que a destaquedo Sol, arremessando-a aos abismos gelados do espaço;pode ser levada pelo próprio Sol, transmudado emsatélite doutro Sol preponderante, engrenado ao sistemadas estrelas duplas. Pode perder, não apenas as últimasreservas de calor interno, que já não lhe atuam àsuperfície, como também o invólucro que lhe mantém atemperatura vital. Pode, um belo dia, não ser maisiluminada, aquecida, fecundada por este Sol, obscurecidoe resfriado, e pode, ao revés, acabar esturricada pordecuplicação subitânea do calor solar, tal como tem sido

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observado com as estrelas temporárias. Pode, pode...Mas, senhores, não esgotemos todas as causas acidentaisou patológicas, e deixemos a sua fácil enumeração aocuidado dos senhores geólogos, meteorologistas, físicos,químicos, biologistas, médicos e mesmo veterinár ios,atento a que uma epidemia bem definida ou a invasão deum exército de micróbios suficientemente morbíficospoderiam bastar para destruir a Humanidade e asprincipais espécies animais e vegetais, sem por issocausar maior dano astronômico ao planeta propriamentedito.

Repito, portanto, que o maior embaraço está naescolha. Fontenelle já dizia que toda a gente se preocupacom a morte, mas vai vivendo. O mesmo se dará com onosso planeta. Não será este cometa que o vá matar.Compartilho a opinião da jovem calculista-chefe. Adiminuição do vapor da água em nossa atmofera há-depreceder a extinção do Sol, e a vida terrestre seextinguirão pela falta da água e pelo frio. Esse, o fim.

No momento justo em que o orador assim falavaouviu-se como caída do teto uma voz estranha, queparecia provinda das profundezas do espaço... Mas,talvez convenha dar aqui uma explicação

Os observatórios instalados nas mais altas montanhasdo globo estavam, como vimos, telefônicamente ligadosao Observatório de Paris e os aparelho s receptorestransmitiam os despachos independente de fone acústico.O leitor lembra-se, de certo, que, no fim da precedentesessão, fora apresentado um fonograma de Gaorisancaranunciando uma mensagem fotofônica de Marte, portraduzir. Como a interpretaçã o desse documento não

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tivesse chegado até à hora da segunda sessão, a Diretoriadas comunicações tinha posto o Instituo em contactodireto com o Observatório, instalando um telefonoscópiono zimbório do edifício.

Essa voz do Alto diziaOs astrônomos da cidade equatorial de Marte

previnem os terrícolas de que o cometa lhes chegarádiretamente, com a velocidade quas e igual ao duplo davelocidade orbitária de Marte. Movimento trans formadoem calor e este em eletricidade. Tempestade magnéticainterna. Afastar-se da Itália.

A voz extinguiu-se no meio do mais absoluto silêncio,e do sobressalto de todos os espíritos, exceto algunspoucos cépticos, dentre os quais um, redator de A críticaalegre, que se levantou de monóculo entalado no olhodireito, exclamando com voz retumbante:

Receio, veneráveis sábios, que o Instituto acabeburlado com uma boa farsa. Ninguém me convence deque os habitantes de Marte, dado que existam e nosmandem mensagens, conheçam a Itália pelo nome, Cápor mim, duvido que eles tenham lido os Comentários deCésar ou a História dos papas, tanto mais quanto. . .

Súbito, o orador que começava a arrojar -se numcurioso ditirambo, foi interrompido pela extinção da luzelétrica. Todo o salão mergulhou na treva, exceto umgrande retábulo luminoso, no teto. E logo a voz ajuntouquatro palavras: eis o despacho marciano. A seguir, estessinais na placa telefonoscópica

Como, assim no teto, o despacho só podia ser visto decabeça erguida, forçando o observador à posiçãoincômoda, o Presidente tocou um botão e logo ocorreu

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um contínuo com um projetor e um espelho, quepermitiram transportar os hieróglifos a uma teladesdobrada atrás da mesa presidencial. Destarte, todostiveram diante dos olhos e puderam analisar, à vontade,o comunicado celeste. Análise fáci l, afinal, pois nada maissimples que essa leitura. A figura do cometa evidencia -sepor si mesma, a flexa indica o seu movimento na direçãode um corpo celeste, que, visto de Marte, oferece fases,mas, tem raios, qual uma estrela. Trata -se da Terra e émuito natural que os marcianos representem -na sob esseaspecto, visto que os seus olhos, formados em ambientemenos luminoso que o nosso, são um tanto mais sensíveise distinguem as fases da Terra, tanto mais quanto suaatmosfera é mais rarefeita e transparen te. Vê-se depois oglobo marciano do lado do Mar arenoso, o maiscaracterístico da sua geografia; e o traço que o atravessaindica, para o cometa, uma velocidade mais ou menosdupla da sua própria velocidade orbitária. As chamasindicam a transformação do movimento em calor. Aaurora boreal e os relâmpagos que se lhe seguem,representam a transformação em eletricidade. e em forçamagnética. Por fim, vê-se a bota italiana, naturalmenteapreciável à distância de Marte, , assinalado o pontoameaçado, segundo seus cálculos, por um dos elementosmais temíveis do núcleo cometário, enquanto as quatroflechas partindo dos pontos cardeais parecem traduzir oconselho para afastar-se da região ameaçada.

A mensagem fotofônica, essa, era mais longa e maiscomplexa. Já es astrônomos de Gaorisancar haviamrecebido outras e compreendido que elas provinham deum centro intelectual e científico importantíssimo,

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localizado na zona equatorial, não longe da baía doMeridiano. Esta última mensagem era a mais grave eresumia a interpretação supra. 0 restante não foiretransmitido, por mais sibilino e menos seguramentetraduzido.

O Presidente tocou a campainha. Competia -lhe, defato, uma peroração conclusiva de tudo o que fora dito.

Senhores: o último comunicado de Gaorísancar vemimpressionar-vos, com razão. E' de presumir que osmarcianos estejam cientificamente mais adiantados doque nós, o que aliás não constitui surpresa, visto seremmais velhos e nos levarem uma dianteira multissecularno desdobro do progresso. De resto, sua organizaçãopode ser mais perfeita, podem gozar de melhor vista, deaparelhos mais possantes e de faculdades intelectuaistranscendentes. Por nossa vez, constatamos aconformidade dos seus com os nossos cálculos, noconcernente ao encontro cometário, mas nota mo-los maisminudentes ao designarem o ponto exato onde o choqueserá violento. O conselho para afastar -se da Itália pode edeve ser seguido e vou já telefonar ao Papa, que,precisamente neste momento, reúne em Roma todos osbispos católicos.

A verdade é que nos vamos chocar com o cometa eainda não podemos prever as conseqüências daíresultantes. Mas, as maiores probabilidades apontamcomoção parcial e não um aniquilamento total. Semdúvida, o óxido de carbono não permeará as camadas danossa atmosfera respirável. Haverá, todavia, enormedesenvolvimento de calor.

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Quanto ao fim real do mundo, das hipóteses que nospermitem pressagiá-lo desde já, a mais provável é aadotada pelo Sr. Diretor do Observatório. De um lado,nossa vida planetária depende da irradia ção solar e,enquanto o Sol brilhar, a Humanidade pode julgar -semais ou menos garantida. Por outro lado, o retraimentoda atmosfera e a diminuição do vapor da águaacarretarão previamente, talvez, o reinado dacongelação. No primeiro caso, teríamos ainda umatrintena de milhões de anos para viver; e, no segundo,uma dezena apenas. Será, pois, pelo frio que o mundo há -de acabar.

Esperemos, pois, sem maiores tribulações o próximo14 de Julho. De mim, aconselharia os que pudessem fazê -lo, a passarem estes dias críticos em Chicago, ou mesmomais longe, como em São Francisco, Honolulu,Noumeia... Os transatlânticos aéro -elétricos são assaznumerosos para transportar milhões de viajantes atésexta-feira à noite.

Ajuntarei, concluindo, que não houve descuido deumas tantas precauções, como abertura de cavas, túneis,galerias. Havemos de sofrer, certo, terrível borrasca, quepoderá durar algumas horas e teremos de respirar,então, um ar bem sufocante. Mas, senhores, as vítimas(que as haverá muitas) sucumbirão princ ipalmente demedo. Tenhamos serenidade de ânimo, consideremos queo embate celeste também poderá resultar inócuo e nãodurará senão algumas horas, que hão -de passar fugidias,deixando-nos viver, como até aqui, à luz deste bom sol daNatureza.

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CAPITULO VO Concílio do Vaticano

Porque haverá então grande aflição qual nunca houvedesde o principio do mundo até agora.

MATEUS, XXIV, 21.

Enquanto se discutia em Paris, assembléias idênticasse haviam congregado em Londres, Chicago,Petersburgo, Yokoama, Melbourne, New-York e cidadesoutras importantes, esforçando-se, cada qual com suasluzes, por solucionar o magno problema que empolgava aHumanidade inteira. Em Oxford notadamente, a igrejareformada agregava um sínodo teológico no qual astradições e interpretações religiosas eram assazcontrovertidas. Interminável, a tarefa de aqui historiar,mesmo sucintamente, o resultado desses congressos. Nãopodemos, contudo, deixar sem comentário o do Vaticano,como o mais importante do ponto de vista religioso, qualo de Paris do ponto de vista científico.

Um concílio ecumênico de todos os bispos fora, haviamuito, convocado pelo Pontífice Pio XVIII, a fim de votarum novo artigo de fé, corroborando e completando o dainfalibilidade Papal, votado em 1870, bem como tr êsoutros supervenientes. Desta vez, cogitava -se dadivindade do papa. A alma do pontífice romano, eleito

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pelo conclave sob a inspiração direta do Espírito -Santo,deveria ser declarada como partícipe dos atributos doEterno, não poderia falir, desde o iníc io do respectivomandato, não somente nas decisões teológicas ex -cathedra, como em todos os assuntos humanos, epertencer, de pleno direito, à imortalidade paradisíacados santos que rodeiam de perto o trono de Deus,compartilhando da sua glória. Um certo número deprelados modernos não considerava, é verdade, a religiãosenão em função do papel que pode representar na obrada civilização. Entretanto, os pontífices da velha escolaainda admitiam sinceramente a Revelação e os últimospapas se haviam mostrado verdadeiros padrões desabedoria, de virtude e santidade.

O concílio antecipara-se de um mês, devido aoadvento cometário, pois se esperava que a soluçãoteológica iluminasse e acalmasse os fiéis sobressaltados,levando-lhes quiçá uma perfeita tranquilida de espiritual.

Não nos preocupam aqui os trabalhos conciliares,pertinentes ao novo artigo de fé. Diremos tão só que foivotado por grande maioria, ou seja 451 por 86. Tambémfoi muito notado o voto negativo de quatro cardeais,vinte cinco arcebispos ou bispos franceses. Entretanto, amaioria tinha força de lei e, ao ser proclamado o dogmada divindade Papal, viram-se quatrocentos e cinqüenta eum prelados ajoelharem-se junto do trono pontifício, emadoração ao Divino Pai - expressão esta que, de há muito,substituíra a de Santo Padre.

Nos primeiros séculos do Cristianismo, o títulohonorífico dado ao Papa era o de Vosso Apostolado,substituído mais tarde por Vossa Santidade. Agora,

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dever-se-ia dizer - Vossa Divindade. A ascensão do títuloatingira o zênite.

O concílio subdividira-se em umas tantas secções oucomissões de estudos e a tese já muitas vezes agitada, dofim do mundo, fêz-se objeto exclusivo de uma comissão.Nosso dever é reproduzir aqui, tão exatamente quantopossível, o aspecto da principal sess ão consagrada aoassunto.

O patriarca de Jerusalém, criatura sumamentepiedosa e profundamente crente, foi o primeiro a pedir apalavra. Falou em latim, mas aqui têm a tradução fiel doseu discurso:

Veneráveis Padres, penso não poder agir maissabiamente do que abrindo perante vós os santosEvangelhos. Peço permissão para ler textualmente

Portanto, quando virdes a abominação doassolamento, de que foi dito por Daniel o Profeta, queestá no lugar santo, quem lê advirta. Então os queestiverem na Judéia, fujam para os montes. O que estiversobre o telhado não desça a tomar alguma coisa de suacasa. E o que estiver no campo não torne atrás a tomarseus vestidos. Mas ai das prenhas e das que criaremnaqueles dias! Orai, porém, que vossa fugida nãoaconteça em inverno, nem em sábado. Porque haveráentão grande aflição, qual nunca houve desde o princípiodo mundo até agora, 'nem tão-pouco haverá. E se aquelesdias não fossem abreviados, nenhuma carne se salvaria;mas, por causa dos escolhidos, serão abreviados aque lesdias. Porque como o relâmpago, que sai do Oriente eaparece até o Ocidente, assim será também a vinda doFilho do homem. E logo depois da aflição daqueles dias o

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Sol se escurecerá, a Lua não dará seu resplendor e asestrelas cairão do céu e as forças d os céus se comoverão.Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem; todasas tribos da terra lamentarão e verão o Filho do homem,que irem sobre as nuvens do céu com grande potência eglória. (Mateus XXVI) .

Tais são, veneráveis irmãos, as palavras de Jesus-Cristo.

E o Senhor não se descuidou de acrescentar:Em verdade vos digo, que alguns há dos que aqui

estão, que não experimentarão a morte, até, que nãovejam vir o Filho do homem em seu reino. (Mateus XVI,28). Em verdade vos digo, que esta geração não passará,até que todas estas coisas não aconteçam. (Marcos XIII,30).

Palavras são estas, textualmente respigadas doEvangelho, e vós sabeis que, sobre este ponto, osevangelistas são unânimes. Sabeis também,reverendíssimos Padres, que o Apocalipse de S. Joãoexpõe, em termos ainda mais trágicos, a grandecatástrofe final. Mas, todos vós conheceis literalmente assantas Escrituras e ocioso seria, senão irreverente,perante vós, acumular citações que tendes na ponta dalíngua, por assim dizer.

Este o exórdio do Patriarca de Jerusalém. Ele dividiuem três partes o seu discurso, a saber: 1.°, a palavra deJesus-Cristo; 2.°, a tradição evangélica; 3.°, o dogma daressurreição da carne no dia do juízo final. Iniciado emmoldes de exposição histórica, esse disc urso não tardou atransformar-se numa espécie de amplíssimo sermão, equando o orador, depois de citar S. Paulo, Clemente de

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Alexandria, Tertuliano, Orígenes, chegou ao concílio deNicéia e ao dogma da ressurreição universal, deixou -seempolgar pelo assunto com tal eloqüência que abalouprofundamente toda a conspícua assembléia. Váriosbispos, já um tanto descrentes, sentiram -se tocados pelafé apostólica dos primeiros séculos. Importa dizer que ocenário do sodalício prestava-se maravilhosamente aoassunto. Nem mais nem menos que a capela Cistina. Oimenso e grandioso painel de Miguel Ângelo ostentava-se,qual novo céu apocalíptico, diante de todas as vistas. Oformidável amontoado de corpos, braços e pernas emcontorções violentas e bizarras; o Cristo fulm inante, osréprobos arrastados por demônios de face bestial, mortosa surgirem dos túmulos, esqueletos a revestir-se de carne,o estupor da Humanidade trêmula ante a cólera divina,todo esse conjunto parecia dar realidade viva aos troposeloqüentes do patriarca. Momentos havia em que, devidotalvez a efeitos de luz, as trombetas pareciam mover eavançar e timbrar, longinquamente, o celestial apelo.

Logo que o Patriarca terminou, um bispoindependente e do número dos mais turbulentos edissidentes do concílio, o sábio Mayerstross, precipitou -separa a tribuna e entrou a clamar que era preciso nadatomar à letra nos Evangelhos, como nas tradições daIgreja, e mesmo nos dogmas.

A letra mata - insistia - e o espírito vivifica! Tudo setransforma e obedece à lei do progresso. O mundocaminha. Os cristãos esclarecidos já não podem admitir aressurreição do corpo nem o retorno de Jesus num trononubívago, tanto quanto o juízo final. Todas estas imagenseram boas para a Igreja das catacumbas! Há muito que

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ninguém acredita nisso. São idéias anti-científicas e vós,reverendos Padres, tanto quanto eu, sabeis que agoraprecisamos estar acordes com a Ciência, que deixou deser, qual ao tempo de Galileu, a humilde serva dateologia: Theologiae humilis ancilla. Os corpos nã opodem mesmo reconstituir-se, nem por milagre, atento aque as moléculas voltam à natureza e pertencemsucessivamente a inúmeros seres, vegetais, animais,humanos. Nós somos formados da poeira dos mortos e,no futuro, as moléculas de oxigênio, hidrogênio, azoto,carbono, fósforo, enxofre, ferro, que constituem a vossacarne e os vossos ossos, serão incorporadas noutrosorganismos, humanos ou brutos. Mesmo em vida, há umapermuta perpétua. Morre uma criatura humana porsegundo, ou seja mais de oitenta e sei s mil por dia, maisde trinta milhões por ano, mais de três bilhões por século.Cem séculos - e isso não é muito para a história de umplaneta - cem séculos dariam apenas trezentos bilhões deressuscitados. Ora, a humanidade terrena não tem vividomenos de cem mil anos - e ninguém aqui ignora que osperíodos geológicos e astronômicos se aferem por milhõesde anos - pelo que, deveria ela, a Terra, fornecer ao Juízofinal, tanto como a bagatela de muitos bilhões de homens,mulheres e crianças ressuscitados. M inha avaliação épouco menos que modesta, pois não abrange o acréscimosecular da população terrestre. Vós podereis objetar -meque só os cristãos ressuscitarão... Mas, que será feito dosoutros? Dois pesos e duas medidas! A morte e a vida! Anoite e o dia! O preto e o branco!

A injustiça divina e a bem-aventurança reinando nacriação! Mas, não; não aceitais esta solução. A lei eterna

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é a mesma para todos. Pois bem! esses milhares demilhões de ressuscitados onde os enfurnareis? Mostrai -me um vale de Josafá capaz de conter todos... Sereiscapazes de os acomodar a todos nesta nossa bola?Podereis suprimir os oceanos e os gelos polares?Envolvereis a Terra em floresta de corpos humanos?Admitamo-lo! Mas, como hão-de ver os antípodas achegada do Homem-Deus ? Será que ele vai contornar omundo? Quero crer que sim... Mas, depois? Que vai serde toda a imensa população? Eleitos para o céu, danadospara o inferno... Muito bem, mas... onde o céu, onde oinferno? Dificuldades sobre dificuldades, absurdos porabsurdos. Não, veneráveis colegas, nossas crenças nãodevem, não podem mais ser tomadas à letra. Quisera euque aqui não houvesse mais teólogos de olhardesdenhoso, ensimesmados, mas, astrônomos de olhosabertos para fora e para longe! -

Essas palavras foram profer idas no meio deindescritível tumulto. Tentaram, mais de uma vez, sustaro discurso do bispo croata, ameaçando -o de punhosfechados e apodando-o de cismático. Contudo, oregulamento conciliar assegurava -lhe a liberdade deconsciência e a discussão foi mant ida até ao fim. Umcardeal irlandês surgiu a invocar para o dissidente acondenação da Igreja, a falar de ex -comunhão eanátema. Viu-se, então, assomar à tribuna um dosmaiores prelados da Igreja anglicana - o arcebispo deParis - declarando que o dogma da ressurreição podia serventilado sem incidir em reprovação canônica. Quepoderiam conciliar-se à razão e a fé. Ao seu ver, poder -

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se-ia admitir o dogma, embora reconhecendoracionalmente impossível a ressurreição do corpo!

O Doutor Angélico - disse referindo-se a S. Tomás -assegurava que a completa dissolução de todos os corposhumanos se daria pelo fogo, antes da ressurreição. (Sumateológica III).

Aditarei de bom grado, com D. Calmet (Dissertaçãosobre a ressurreição dos mortos) que, para a onipotênciadivina, não será impossível reunir as moléculas dispersas,de forma que, no corpo ressuscitado, não falte uma sódas que lhe hajam pertencido na vida perecível.Entretanto, não se faz preciso semelhante milagre. Opróprio S. Tomás mostrou (loco citato) que estaidentidade completa da matéria não se torna, emqualquer maneira, indispensável para estabelecer aperfeita identidade do corpo ressuscitado com o corpodestruído pela morte. Certo, não esposo as idéias umtanto subversivas, do nosso honorável colega; mas pensocom ele que o espírito deve sobrepor -se à letra.

Qual o princípio da identidade dos corpos vivos?Seguramente, não consiste na identidade completa, epersistente, da matéria corporal. De fato, no fluxocontínuo e na renovação constante que const ituem o jogoda vida fisiológica, os materiais que pertenceramsucessivamente a um corpo humano, da infância àvelhice, dariam para fazer uma estátua colossal. Nestatorrente vital, os materiais passam e mudamconstantemente. O organismo, porém, é sempre o mesmo,apesar das modificações de volume, forma e constituiçãoíntima. O broto flébil do carvalho, oculto entre duascotiledôneas, teria deixado de ser o mesmo vegetal

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quando culmina em fronde majestosa? O embrião dalarva, ainda no óvulo, deixaria de ser o mesmo insetotransformando-se em lagarta, crisálida, borboleta?Deixará o feto humano de ser o mesmo indivíduo em setornando criança, adulto, ancião? Ninguém o dirá.Restará no carvalho, na falena, no homem, uma sómolécula do broto, da larva embrionár ia, do feto? Qual,pois, o princípio subsistente a todas essas mudanças? Eserá ele algo de real, que não imaginário? Certo que sim.Não será a alma, porque as plantas vivem e não têmalma, no sentido que incumbe dar à palavra. Mas é,todavia, um agente imponderável. Sobrevivente aocorpo? E' possível. . . Assim pensava S. Gregório deNisse. Se ficar ligado à alma, pode ser chamado a dar -lheum novo corpo, idêntico ao dissolvido com a morte, aindamesmo que esse corpo não possuísse uma só molécula odas que retivera em qualquer fase da vida terrena. Nãodeixará, por isso, de ser um corpo nosso, tanto quanto oque investimos aos cinco, quinze ou sessenta anos. Talcorpo concorda perfeitamente com as santas Escriturasquando afirmam que, depois de uma vida sep arada docorpo, as almas o retomarão no fim dos tempos, e parasempre.

Permiti que, a S. Gregório de Nisse, acrescente umgrande filósofo, Leibnitz, que opinava ser imponderável,mas não incorpóreo, o princípio da vida fisiológica,ficando a ele unida a alma, após separar-se do corpovisível e ponderável. Não pretendo aqui aceitar nemrecusar esta, hipótese. Noto, apenas, que ela se presta aexplicar o dogma da ressurreição, no qual todo cristãodeve crer sem nenhuma dúvida.

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- Esta tentativa de conciliação entre a fé e a razão -adverte o bispo croata - é digna de elogios, conquanto seme afigure mais engenhosa que aceitável. Essespresumidos corpos assemelhar -se-ão aos nossos? Se,perfeitos, incorruptíveis, apropriados a novo regime, nãodevem possuir órgãos quaisquer, sem finalidade prática.Para que uma boca, se não precisam alimentar -se?Porque pernas, sem necessidade de caminhar? Braçospara quê, se não há trabalho? Um dos nossos ancestrais,Orígenes, cujo sacrifício pessoal jamais foi esquecido,conjeturou esses corpos como perfeitas bolas. Serialógico, tal, mas não belo nem interessante.

E' preferível admitir com S. Gregório e San toAgostinho - intermite o arcebispo de Paris - que oscorpos ressuscitem sob a forma humana, véutransparente da beleza humana.

Assim o cardeal francês resumiu a moderna opiniãoda Igreja, no concernente à ressurreição da carne.Quanto às objeções de local, número de ressuscitados,exigüidade de espaço, fixação definitiva de eleitos econdenados, foi impossível chegar a um aco rdo, devido àscontradições insolúveis.

Cumpre-nos, todavia, assinalar a idéia assaz originalde um pregador do Oratório, candidato à púrpura, deque o mundo destinado a receber os ressuscitados há -deser um enorme globo oco iluminado no centro por um solinexaurível e habitado na face interior. Destarte, dizia,fica resolvido o problema do dia perene da vida futura.

A impressão subsistente em todos os espíritos era a deque, apesar de todas as proposições, também nesseparticular deviam considerar as coisa s figuradamente ;

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que, nem o céu nem o inferno dos teólogos correspondema lugares precisos, antes correspondem a estados dealma, de bem ou de mal-estar, e que a vida eterna, dequalquer forma, poderá e deverão completar-se nosinumeráveis orbes que povoam o espaço infinito.

Dir-se-ia, então, que o pensamento cristão se haviagradualmente transformado, nos espíritos esclarecidos,de acordo com a astronomia e demais ciências.

Sem embargo, o Papa e a maior parte dos Cardeaismantinham-se estrita e absolutamente aferrados àsvelhas crenças e dogmas, decretados e sancionados deprístinos tempos.

Do cometa, pouco cogitaram e, contudo, o Papatelefonou a todas as dioceses do mundo, recomendandopreces públicas para aplacar a cólera divina e desviar dacristandade o braço do Soberano Juiz. Fonógrafosadequados fizeram audível em todas as igrejas a palavrado Pontífice.

Esta sessão realizara-se terça-feira, à noite, isto é, nodia imediato às duas verificadas em Paris. O Divino Paitinha transmitido o aviso do Presi dente do Instituto paraque se afastassem da Itália na data crítica, mas ninguémlhe dera maior atenção; primeiro, porque a morterepresenta, para os crentes, uma libertação e, segundo,porque a maioria dos teólogos contestava a existência dehabitantes em Marte. Finalmente, porque um concílio debispos, presidido pelo Divino Papa, não poderia parecertemeroso e devia guardar alguma confiança na eficáciada prece, na elevação das almas ao Deus onipotente, quesenhoreia e dirige os corpos celestes.

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CAPITULO VIA crença no fim do mundo através dos temposJed vies dana la nuée un clairon monstrueux.

Et ce clairon semblait, au seuil profond des cieux.Calme, attendre le souffle Smmense de 1'Archange.

VICTOR HUMO, La Trompette du dugement.

Importa fazer aqui ligeira pausa no turbilhão dosacontecimentos que nos empolgam, a fim de compararesta nova expectativa do fim do mundo a todas asprecedentes, bosquejando a traços rápidos a históriacuriosa desse evento, através de todos os tempos. Deresto, no mundo inteiro, em todas as línguas, não sefalava, agora, de outra coisa.

Os discursos dos eminentes sacerdotes prosseguiramna capela Sistina e desfecharam na interpretaçãoresumida pelo cardeal arcebispo de Paris, quanto aodogma - Credo resurrectionem carris. O sequente etvitam ceternam ficara tacitamente relegado à perspicáciados futuros astrônomos e psicólogos. Esses discursoshavia, de algum modo, historiado a doutrina cristã dofim do mundo, em todos os tempos. Estudo curioso, porisso que representa ao mesmo tempo a história dopensamento humano, em face do seu próprio e definitivodestino. Julgamos, assim, 'dever aqui expô -lo em capituloespecial. Deixamos por instantes o papel de narrador do

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século XXV, para regressar à nossa época e resumir acrença dos tempos anteriores.

Séculos houve, de fé ardente e profunda, nos quais -importa considerar -, fora da doutrina cristã, todas asreligiões abriram a mesma porta para o desconhecido, noextremo limite da jornada terrena. E' a porta do Dantena Divina Comédia, posto que todas não- houvessemimaginado, para além dessa porta simbólica, o paraíso, oinferno e o purgatório dos cristãos.

Zoroastro e o Zendavestá ensinavam que o mundodevia perecer de ignição. A mesma idéia se encontra naepístola de S. Pedro. Parecia que as tradições de Noé e doDeucalião indicavam uma primeira destruição pela águae a segunda pelo elemento contrário.

Entre os Romanos, Lucrécio, Cícero, Virgílio, Ovídio,têm a mesma linguagem e anunciam a destruição finalpelo fogo.

No capítulo anterior, vimos que, no pensamento deJesus, a geração a que se dirigia não deveria morrerantes da catástrofe anunciada. S. Paulo, o verdadeirofundador do Cristianismo, apresenta a crença naressurreição e no próximo fim do mundo, como dogmafundamental da nova Igreja. E chega mesmo a repeti -looito ou nove vezes, em sua 1.` Epístola aos Coríntios. (4 )

Infelizmente para o profeta, os discípulos, aos quaisassegurara que não morreriam antes do advento,sucumbiram uns após outros, de morte comum. S. Paulo,que não conhecera pessoalmente a Jesus, mas que era omais ativo apóstolo da igreja nascente, acreditava vivesseele mesmo até o dia da grande aparição (4) . Contudo,

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todos faleceram e o predito fim do mundo, com a voltadefinitiva do Messias, não se realizou.

Nem por isso a crença desapareceu. Deixava -se,apenas, de interpretar à letra a predição do Mestre, parabuscar-lhe o espírito. Contudo, não deixou de ser umgrande golpe na crença evangélica... Passaram aamortalhar piedosamente os mortos, a encerrá -los emsarcófagos, sobre os quais inscreviam epitáfios quediziam ali dormirem eles até o dia da ressurreição. Jesusdeveria voltar breve, a fim de julgar os vivos e os mortos.A senha de identificação dos cristãos era Maranatha, quese traduz por -o Senhor virá.

Os apóstolos Pedro e Paulo morreram,provavelmente, no ano 64, durante a horrível carnificinaordenada por Nero, após o incêndio de Roma,engendrado por ele e depois atribuído aos cristãos, paraensejar-se o gozo de novos suplícios. S. João escreveu oApocalipse em 69. Uma onda de sangue se espalha sob oreinado do verdugo. Dir-se-ia que o martírio era ogalardão da virtude. O Apocalipse parece escrito noâmbito da alucinação coletiva e prefigura em Nero oanticristo, precursor da volta do Messias. S urgem osprodígios de toda à parte: cometas, estrelas cadentes,chuva de sangue, monstros, tremores de terra, fome,peste e, sobretudo, a guerra dos Judeus e a queda deJerusalém. Nunca - poder-se-á talvez dizer - seacumularam tantos horrores em tão curto período deanos. (64 a 69).

A pequena igreja de Jesus parecia estarcompletamente dispersada. Em Jerusalém foraimpossível permanecer. O Terror de 1793 e a Comuna de

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1871 nada representam ao lado da guerra civil da Judéia.A família de Jesus teve de fugir da cidade santa. Jaques,irmão de Jesus, fora assassinado. Falsos profetas surgiampara que se completasse a profecia. O Vesúvio elaboravaa tremenda erupção de 79, e já em 63 a cidade dePompéia tinha sido abalada por um tremor de terra.

Patentes estavam, pois, todos os prenúncios do fim domundo. O Apocalipse o confirma, Jesus vai repontarnum trono de nuvens, os mártires serão os primeiros aressuscitar. O anjo julgador aguarda apenas a ordem deDeus.

Mas, após a tempestade veio a bonança, terminou aguerra dos Judeus, o templo de Jerusalém não mais sereconstruirá, Nero sucumbe com a revolução de Galba,Vespasiano e Tito promovem a paz (ano 71) e... o mundonão acabou. Impôs-se, desde então, uma novainterpretação evangélica. O advento do Cristo foiprocrastinado para quando se consumasse a derrocadado velho mundo romano, oferecendo, assim, tal ou qualmargem aos comentadores. A catástrofe final permaneciacomo infalível, mesmo próxima, embora atufada denuvens imprecisas, que lhe tiram todo o sentido l iteral, emesmo espiritual, das profecias. Não obstante, continua -se a esperar.

Santo Agostinho consagra o XX capítulo de a Cidadede Deus (ano 426), a pintar a renovação do mundo, aressurreição, o juízo final e a Nova Jerusalém. O livroXXI reporta-se à descrição do fogo eterno. O bispo deCartago, diante do fracasso de Roma e do império,presume assistir ao primeiro ato do drama. Mas, o reinode Deus devia durar 1.000 anos, e Satanás só poderia

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chegar depois. S. Gregório, bispo de Tours (573),primeiro historiador dos Francos, assim começa a suahistória

No momento em que retraço as lutas realengas comas nações inimigas, não resisto ao desejo de expor minhacrença. O terror produzido pela perspectiva do próximofim do mundo me levou a respigar nas crônic as o númerode anos já transcorridos, por saber claramente quantosconta o começo do mundo.

O Salvador viera santificar a Humanidade. Queesperaria ela para transportá-la ao céu?

A tradição cristã perpetuava-se de ano em ano, deséculo a século, apesar dos desmentidos da Natureza.Qualquer catástrofe - tremor de terra, epidemia, fome,inundação; qualquer fenômeno - eclipse, cometa,furacão, tempestade, eram encarados como sinaisprecursores do cataclismo final. Os cristãos tremiamquais folhas levadas pelo vento, na expectativa constantedo julgamento decisivo, e os pregadores alimentavamesse místico temor das. almas tímidas.

Passadas e constantemente renovadas as gerações, foipreciso definir melhor o conceito da história universal.Fixou-se, então, o ano 1000 no espírito dos comentadores.Várias seitas de milenários surgiram, apregoando queJesus reinaria na Terra com os seus santos, durante 1000anos, antes que viesse o Juízo Final. Ireneu, Pápias, eSulpício Sevérus compartilhavam essa crença. Alguns aexageraram, revestindo-a de matizes sensuais,anunciando uma como espécie de bodas para uma era devoluptuosidade. Santo Agostinho e S. Jerônimocontribuíram bastante para o descrédito dessas teorias,

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mas, sem atingir a crença dogmática da ressurreição . Oscomentários cio Apocalipse continuaram a florir entre asfraudes sombrias da idade média, e a opinião de que oano 1000 assinalaria o fim e o renovamento do mundotomou vulto, sobretudo, no décimo século.

A idéia de finamento do mundo tornou -se, senãouniversal, muito generalizada. Diversas cartas dessaépoca, assim começam: - Termino mundo aproximando-se o fim do mundo... Em que pese a alguns contraditores,parece-nos difícil não compartilhar a opinião doshistoriadores, notadamente Michelet, Henri Martin ,Guizot e Dury, a respeito da generalidade dessa crençano seio da cristandade. Sem dúvida, não é crível q ue omonge francês Gerbert, então papa Silvestre II, ou o reiRoberto de França, hajam pautado a vida por essacrença; mas, a verdade é que ela não d eixara de penetrarfundo as consciências timoratas, e que a seguintepassagem apocalíptica era o tema de freqüentes sermões:

Ao fim de 1000 anos, o demônio se libertará da suaprisão e seduzirá as gentes que estão nos quatro ângulosda Terra... O livro da vida será aberto, o mar restituiráos que tragou; o abismo infernal golfará seus mortos ecada qual será julgado segundo suas obras, por Aqueleque está assentado no trono resplandecente... E haveráum novo céu e uma nova terra.

Bernardo, um eremita da Tur íngia, haviaprecisamente elegido para tema de suas prédicas essaspalavras enigmáticas do Apocalipse e, no ano 960,anunciava de público o fim do mundo. Foi ele, de fato,um dos mais ativos arautos da profe cia, chegando até afixar a sua data, que seria a em que coincidisse a da

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Anunciação com a sexta-feira, o que aliás se verificou em992, à revelia de qualquer catástrofe.

Druthmare, outro monge de Corbie, anunciounovamente a destruição do globo para 25 de Março doano 1000. O terror foi tanto que o povo de muitas cidadesprocurou refugiar-se nas igrejas, ali permanecendo atémeia noite, na expectativa do juízo final, por morrer aospés da cruz.

E' dessa época que datam inúmeras doações. Todagente legava terras e bens aos mosteiros, que tudoaceitavam, apregoando, embora, o fim do mundo. Resta -nos, a esse respeito, uma crônica autêntica e assazcuriosa, escrita pelo monge Raul Glaber, no ano 1000.Diz ela em suas primeiras páginas: Satanás não tardará aser solto, de acordo com a profecia de João, visto q ue osmil anos estão passados. E desses anos que nos vamosocupar.

O fim do décimo e começo do undécimo séculosmarcam uma época verdadeiramente estranha, quãosinistra. De 980 a 1040, parece que o espectro da morteabriu as asas sobre a Terra. A peste e a fomeavassalaram toda a Europa. Temos, em primeiro lugar, omal de fogo, que calcinava as carnes e as fazia cair depodre. Esses flagelados entupiam as estradas e iam, emperegrinação, sucumbir junto dos santuários, ali seacumulando e saturando a atmosfe ra de odoresnauseabundos. Muitos jaziam insepultos, agarrados àssantas relíquias. Essa peste horrorosa ceifou, só naAquitânia, mais de 40.000 pessoas e devastou todo o sulda França. Seguiu-se-lhe a fome. Voltara-se à barbárie.Os lobos deixavam as florestas e vinham disputar ao

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homem o direito de vida. A invasão dos Húngaros,renovara de 910 a 945 os horrores de Atila. Depois, tantose combatera de castelo em castelo, de província emprovíncia; tamanha a devastação, que os camposdeixaram de ser cultivados. A chuva consecutiva de trêsanos impediu toda e qualquer semeadura. A terra deixoude produzir, abandonaram-na. O moio de trigo, diz RaulGlaber, elevou-se a sessenta sols de ouro. Os ricosemagreceram e paleceram ; os pobres devoravam raízes enão poucos deixaram de incidir na antropofagia. Sim.Vagando pelas estradas, os fortes subjugavam os fracos,espostejavam-nos e comiam-nos. Havia-os astutos, queengabelavam as crianças com um ovo, uma fruta, a fimde as devorar. Esse delírio chegou a tal ponto que oanimal tinha mais garantias que o homem. Filhosmatavam os pais, mães devoravam os filhos. E, como setratasse de coisa natural, de regime estabelecido, houvequem se propusesse vender carne humana no mercado deTournous. Denunciado, ele não negou o feito e foicondenado à fogueira. Outro houve, que, pilhado adesenterrar cadáveres, foi também queimado.

Quem o diz é um coevo e muitas vezes umatestemunha.

Morria-se de fome por toda à parte. Por toda a partecomiam répteis, animais imundos, carne human a. Nafloresta de Mâcon, perto de uma igreja erigida a S. João,um assassino construíra uma cabana, aonde atraía eestrangulava viajantes e peregrinos. Um dia, um casalentrou nessa cabana a fim de repousar, notou as caveiraslá existentes, tentou fugir, mas o hospedeiro os deteve.Lutaram, venceram o contendor e, chegados a Mâcon,

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divulgaram a façanha. Uma escolta foi ao antro e lácontou quarenta e oito crânios human os! Capturado osicário, foi amarrado a uma trave sobre um monte depalha e assim queimado vivo. Raul Glaber viu o local e ascinzas da fogueira.

Combates, assaltos, pilhagem, duelo, eram feitoscomuns e próprios da época. Os flagelos do céu tiveram,no entanto, a virtude de abalar as consciências.Reuniram-se os bispos e logo obtiveram a abste nção dosduelos em três dias da semana, de quarta -feira à noite àmanhã de sábado. Era o que chamavam - a tréguadivina. O fim do mísero mundo tornou -se, assim,esperança e terror desses tempos espantosos. Nadaobstante, o ano 1000 passou como os precedent es e omundo não se acabou. Ter-se-iam os profetas enganadomais uma vez? Tendo sido Jesus crucificado aos 33 anos,não seria mais lógico estender o milênio ao ano de 1033?Era razoável. Esperaram. Mas, justamente nesse ano1033 verificou-se, aos 29 de Junho, um grande eclipse doSol.

O Sol tomou a cor de açafrão, os homens entreviam -se pálidos, de uma palidez cadavérica; todos os objetostinham um matiz esbranquiçado, o estupor era geral etodos aguardavam uma catástrofe iminente.

E, contudo, não era ainda o fim do mundo. A essaépoca tão angustiada é que devemos a construção dessascatedrais que têm desafiado os séculos e despertado aadmiração dos pósteros. Benefícios enormes foramprodigalizados ao clero, doações e testamentoscontinuavam a enriquecê-lo. Houve, assim, uma espéciede nova aurora. Depois do ano 1000 - é ainda Raul

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Glaber quem diz -, as basílicas foram restauradas emquase todo o mundo, principalmente na Itália e nasGálias, posto que a maior parte delas ainda estivesse emboas condições. Os povos cristãos pareciam, contudo,rivalizar na magnificência dos seus templos. Dir -se-ia queo mundo inteiro, acorde num só pensamento, despira -sedos seus andrajos para vestir túnica branca.

Os fiéis já não se contentavam de só reconstruir asigrejas episcopais; embelezavam também os mosteiros eaté capelas aldeães, votadas a diversos oragos.

O fúnebre período do ano milenar havia reunido noabismo do tempo os séculos transcorridos. Entretanto,quantas tribulações a Igreja vinha atravessando? Ospapas eram o joguete trágico dos imperadores saxões edos príncipes do Lácio, em constante e belicosarivalidade. (6) Toda a cristandade estava em desordeminexprimível. A tormenta passara, mas, nem por isso, oproblema do fim do mundo estava resolvido e aexpectativa, por incerta e vaga, não desaparecera, tantomais quanto, a crença no demônio e nos prodígioshaveria de continuar por muitos séculos, na base mesmadas superstições populares. A cena do Juízo Final foiesculpida na porta de todas as catedrais e ningué mpenetrava em santuário cristão sem passar sob a balançado Anjo, à esquerda do qual, demônios e réprobos seestorciam em medonhas convulsões, antes que fossemprecipitados no fogo eterno.

Mas, a idéia do fim do mundo sobrepairava eultrapassava o círculo das igrejas. No século XII osastrólogos aterrorizaram a Europa anunciando umaconjunção de todos os planetas da constelação da

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Balança, que se verificou, efetivamente, pois a 15 deSetembro de 1186 todos os planetas se encontravamcompreendidos entre 180 e 190 graus de longitude. Nãofoi, porém, ainda dessa vez, fim do mundo.

Surgiu então o célebre alquimista Arnaldo deVilanova a predizê-lo para 1335. Em 1406, no reinado deCarlos VI, um eclipse solar, aos 16 de Junho, acarretoupânico geral, assim narrado por Juvenal de Ursinos:Causava dó ver o povo refugiar -se nas igrejas, crente deque o mundo ir. acabar.

S. Vicente Ferrer escreveu em 1491 um tratado queintitulou: - Do fim do mundo e da ciência espiritual.Nessa obra, concede ele à cristandade tantos anosquantos os versículos do Saltério - 2537. Stoffler,astrólogo alemão, por sua vez, predisse para 1524 umdilúvio universal, conseqüente a uma conjugaçãoplanetária. Houve pânico geral. Propriedades situadasnos vales, à beira-rio ou próximas do mar, foramvendidas aos menos crédulos, a preço vil. Ariol, doutorde Toulouse, mandou construir uma arca para si, famíliae amigos, e Bodin assegura que essa iniciativa não foiúnica. O número de cépticos não era grande. Tendo ochanceler de Carlos V consultad o Pedro Mártir,respondeu-lhe este que o mal não seria tão funestoquanto o presumiam, mas que de fato essas conjunçõesacarretavam grandes distúrbios. O dia fatídico chegou enunca se viu mês de Fevereiro tão seco! Entretanto,novos prognósticos se fizeram para 1532, da autoria deJoão Carion, eleitor de Brandeburgo. Depois, foi oastrólogo Cipriano Leowitz, para 1584. Ainda aqui,tratava-se da conjunção de astros e... dilúvio. Um

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contemporâneo, Luís Guyon, atesta que o terror foienorme, as igrejas eram insuficientes para abrigar asmultidões, muita gente fazia testamento sem cogitar dainutilidade do ato, de vez que todos haveriam desucumbir. Outros doavam seus bens aos clérigos, naesperança de que estes, por suas preces, retardassem odia do Juízo. Em 1588, apareceu uma nova prediçãoastrológica, nestes termos apocalípticos:

Após 1584 anos contados do parto da Virgem, ooitavo ano será um ano extraordinário, prenhe deterrores. Se, nesse ano terrível, o globo não for reduzidoà poeira, se, terra e mares não forem aniquilados, todosos impérios do mundo serão arrasados, a aflição pesarásobre o gênero humano.

Encontra-se em livros dessa época, notadame nte naCrônica dos Prodígios, de Conrado Lycosthenes (1557),uma quantidade verdadeiramente fantástica d e figuras edescrições características desse terrorismo medieval.Aqui têm os leitores alguns espécimes: - um cometa,soldados alados, um combate celeste, tudo descrito comoperfeitamente visto por toda a gente. O cometa, diga -se,não está muito exagerado; mas, quanto aos combatentescelestes, é força confessar que a imaginação tem bonsolhos. O célebre adivinho Nostradamus não podia deixarde figurar no grupo dos profetas astrológicos. A ele seatribui a seguinte quadrinha, que foi objeto de muitoscomentários

Quando Jorge a Deus crucif icarE Marcos o ressuscitar,S. João tão logo o levaráE o fim do mundo então virá .

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O que quer dizer: quando a Páscoa cair em 25 deAbril (festa de S. Marcos), a sexta -feira santa será a 23(festa de S. Jorge) e a festa de Corpus Christi recairá nodia 24 de Junho (S. João). A esta quadra não faltavamalícia, visto que, ao tempo de Nostradamus, falecido em1566, o calendário não tinha sido reformado (1582) (1), ea Páscoa não poderia cair, jamais, em 25 de Abril. Noséculo XVI, o 25 de Abril correspondia ao dia 15. Depoisda reforma gregoriana a Páscoa pode cair aos 25 deAbril: é a sua data extrema e o que se tem verificado ehá-de verificar-se em 1666 - 1734 - 1886 - 1943 - 2038 -2190, etc.; sem que esta coincidência venha acarretar ofim do mundo.

Conjunções planetárias, eclipses e cometas,. como quepartilhavam entre si o acervo dos presságios sinistros.Entre os cometas históricos, os mais memoráveis, desteponto de vista, são: os de Guilherme, o Conquistador,aparecido em 1066 e representado na tapeçaria da rainhaMatilde, em Bayeux; o de 1264, que, dizem, desapareceuna mesmo dia em que morreu o papa Urbano VI; o de1337, dos maiores e mais belos que se hão visto, e quepressagiou a morte de Frederico, rei da Sicília; o de 1399,que Juvenal dos Ursinos qualificou de sinal de grandesmales futuros; o de 1402, que associaram à morte de JoãoGaleas Visconti, duque de Milão; o de 1456, que lançou oterror em toda a cristandade, sob o pontificado deCalixto III, durante a guerra turca, e o de 1472, queprecedeu a morte do irmão de Luís XI. Outros lhessucederam, associados igualmente a guerras ecatástrofes, e, sobretudo, à idéia de aniquilamento final.O de 1527 é representado por Ambrosio Paré e Simão

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Goulart como constituída de cabeças decepadas, punhaise nuvens sangrentas. O de 1531 pareceu anunciar amorte de Luisa de Sabóia, mãe de Francisco I e aprincesa compartilhou do erro comum, a respeito damaleficência desses astros. Eis ai - disse fitando-o do leito,através da janela - um aviso que não parece mandado apessoas de baixa condição. Deus no -lo manda para nosadvertir. Preparemo-nos para morrer. Mas, de todos oscometas, o famoso, batizado de Carlos V, terá sido o maisdigno de registo. Fora ele identificado como o me smo de1624 e preanunciado para 1848, não tendo porémreaparecido.

Os cometas de 1577, 1607, 1652 e 1665, motivaramdiscussões intermináveis, cujo coletânea perfaz enormeacervo bibliográfico. Foi ao última destes cometas que orei Afonso VI de Portugal, colérico, mandou um tiro depistola, com as mais grotescas ameaças! Por ordem deLuís XIV, Pedro Petit publicou um manual contra osterrores quiméricos - e políticos - originados peloscometas. Desejava o grande rei ser único, sem rival,fulgurar sozinho - nec pluribus impar!

Não admitia supusessem periclitante a glória eternada França, mesmo provinda de um fenômeno celeste.

Um dos maiores cometas que aos terrícolas já foidado contemplar, foi certamente o de 1680, que objetivouos cálculos de Newton. Projetou-se – diz Lemonnier - emgrande velocidade, das profundezas do céu, parecendocair perpendicularmente para o Sol, de onde o viramremontar com a mesma velocidade da queda.Observaram-no durante quatro meses, muito próximoesteve da Terra, e foi a ele qu e Whiston atribuiu o

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dilúvio. Bayle publicou os seus curiosos Pensamentosendereçados a um doutor da Sorbona, ao tempo docometa, evidenciando a absurdeza das várias crenças, apropósito de sinais celestes. A Sra. Sevigné escrevia aoprimo, conde de Bussy - Rabutin: Estamos aquiobservando um grande cometa com a mais bela dascaudas até agora vistas. Muita gente graúda estáalarmada, supondo que o céu se preocupa com ela eesteja, assim, prevenindo-a de que vai perecer. Dizemque o cardeal Mazarin foi desenganado pelos médicos eos seus cortesãos resolveram, então, honrar -lhe a agoniacom um prodígio, anunciando-lhe o aparecimento docometa que tanto os intimidava. O cardeal riu -se deles eteve ânimo forte para lhes dizer que o cometa muito ohonrava com a sua visita. Na verdade, poderíamos comele repetir que também o orgulho humano se lisonjeia, nopressuposto de que haja grandes movimentos astrais,quando agoniza um grande homem.

Como se vê, os cometas estavam insensivelmenteperdendo o seu prestígio. Todavia, lemos num tratado doastrônomo Bernouille esta anotação assaz extravagante:Se, o corpo cometário não é um sinal da cólera divina, acauda bem poderia sê-lo.

O terror do fim do mundo se associou ainda aocometa de 1773, houve pânico em toda a Europa, até emParis. Eis o que todos poderão ler na s Memórias secretasde Bachaumont:

6 de Maio de 1773. - Na última sessão pública daAcademia de Ciências, o Sr. Lalande devia ler ummemorial mais curioso que os precedentes, deixando,contudo, de o fazer por falta de tempo. Tratava-se, nesse

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estudo, dos cometas que podem, em se aproximando daTerra, originar comoções; sobretudo, do que nos devevisitar nestes dezoito anos. Mas, afirmando embora nãoser o dito cometa do número dos capazes de maleficiar aTerra, advertindo, ao demais, que seria sempreimpossível prefixar conseqüências, houve, ainda assim,uma geral inquietação de espírito.

9 de Maio. - O gabinete do Sr. Lalande é pequenopara comportar a onda de curiosos que o vão interpelarsobre o seu memorial, a que de certo vai dar a necessáriapublicidade, no intuito de tranqüilizar tantos cérebrosincandescidos com as fábulas aí correntes. A exaltação foia ponto de irem os devotos solicitar ao Sr. Arcebispopreces de quarenta horas para conjurar o dilúvioiminente! Esteve o prelado a pique de o fazer e tê -lo-iafeito, certo, se alguns acadêmicos não lhe houvessemobservado o ridículo desse recurso.

14 de Maio. - O memorial de Lalande foi publicado.Ao seu ver, dos sessenta cometas conhecidos, oitopoderiam, aproximando-se da Terra, produzir talpressão que os mares se deslocariam e invadiriam partedo globo.

Com o correr dos tempos desvaneceu -se o pânico. Otemor dos cometas tomou outra feição. Deixou designificar a cólera de Deus, mas discutiramcientificamente os casos possíveis de um encon tro eninguém deixou de o temer. Em fins do último século,Laplace formulava a sua opinião naqueles dramáticostermos retro-referidos. (Cap. II) .

Em nosso século, a predição do fim do mundo foi, porvárias vezes, associada às aparições cometárias. O

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cometa de Biela, por exemplo, devia cruzar a órbitaterrestre a 29 de Outubro de 1832. O alarme generalizou -se. Estava-se de novo no fim dos tempos. Ameaçado ogênero humano! Como acabariam as coisas? Haviamconfundido a órbita, isto é, a rota da Terra com a própriaTerra. Nosso globo não devia, absolutamente, passarnesse ponto da sua órbita ao mesmo tempo que o cometa,e sim a 30 de Novembro, ou seja, um mês e dia depois.Por outro lado, o cometa devia ficar sempre à distânciade 20 milhões de léguas. E lá se foi o medo.

A mesma coisa se repetiu em 1857. Um profeta demau gosto anunciara, para 13 de Junho desse ano, à voltado famigerado cometa de Carlos V , ao qual se atribuírauma revolução de três séculos. Ainda uma vez, mais d euma alma se apavorou e, mesmo em Paris, osconfessionários receberam maior número de penitentes.

Em 1872, nova predição endossada por umastrônomo que absolutamente o não era - (o Sr.Plantamour, do Observatório de Genebra).

Tanto quanto os cometas, os g randes fenômenoscelestes ou terrestres, tais como eclipses totais do Sol,estrelas misteriosas subitamente aparecidas, chuva deestrelas cadentes, erupções vulcânicas comobscurecimento de grandes áreas, como a engolfar omundo num dilúvio de cinzas, trem ores de terraarrasando cidades, todos esses eventos grandiosos, ouapavorantes, sempre foram associados à idéia deaniquilamento imediato e universal dos seres e das coisas.

Só os anais dos eclipses dariam um grande volume,não menos pitorescos que a história dos cometas. Parafalar um instante, apenas dos mais recentes, citaremos o

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de 12 de Agosto de 1654, cuja penumbra cobriu oterritório francês. Anunciado pelos astrônomos, entroulogo a engendrar terrores.

Para uns, pressagiava grandes mudanças polític as e aderrocada de Roma; para outros, era caso de um novodilúvio universal; queriam outros fosse nada menos que oabrasamento da Terra.

Enfim, os menos exagerados contentavam -se com umsimples empestamento atmosférico. A crença nessesefeitos trágicos estava tão generalizada, que, por ordemexpressa dos médicos, uma aluvião de atarantados serefugiou em subterrâneos bem vedados, aquecidos eperfumados, para isentar-se da perniciosa influência. Istoé o que se pode ler, principalmente em Os Mundos, deFontenelle, 2.° serão.

Não tivemos tanto medo - escreve ele - desse eclipseque, efetivamente, foi fatal? Pois não é que tanta gente seenfurnou nas adegas e porões?

E os filósofos que escreveram para tranquilizar -nos,não o fizeram em vão, ou pouco menos? E o s que seenfurnaram, de lá saíram, afinal? Outro autor, domesmo século, P. Petit, de quem falávamos há pouco,conta, em suas Dissertações sobre a natureza doscometas, que a consternação aumentou dia a dia, até àdata fatal; e que um cura de aldeia, não p odendo atenderaos confidentes da última hora, viu-se obrigado a lhesfazer uma prédica, concitando-os a não se apressarem,visto que o cometa chegaria com atraso de 15 dias. E osparoquianos o acreditaram.

Por ocasião dos últimos eclipses solares queatravessaram a França, aos 12 de Maio de 1706, 22 de

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Maio de 1724, 8 de Julho de 1842 e mesmo com osparciais mais pronunciados, de 9 de Outubro de 1847, 28de Julho de 1851, 15 de Março de 1858, 18 de Julho de1860 e 22 de Dezembro de 1870, ainda se verificar amapreensões mais ou menos fortes, de uns tantos espíritostimoratos. No mínimo, sabemos nós de fonte limpa, noconcernente a cada um desses eclipses, que os boletinsastronômicos ainda eram interpretados, por certa classede europeus, como sinais de mald ição divina e que, diantedeles, em todos os colégios e asilos religiosos, faziam -seorações. Esse sentido místico tende a desaparecerinteiramente entre as nações cultas e, certo, o próximoeclipse total, que vai colher a Espanha aos 28 de Maio de1900, não causará sobressaltos deste lado dos Pirineus.Outro tanto não se poderia talvez dizer dos espanhóis.

Ainda hoje, nos países não civilizados, essesfenômenos despertam os mesmos terrores nossos deoutrora. E' o que os viajantes têm observado,principalmente na África. Por ocasião do eclipse de 18 deJulho de 1860 viu-se gente a orar, a correr, e outros setrancarem em casa.

Durante o eclipse de 29 de Julho de 1878, total paraos Estados Unidos, um preto, convicto de que o mundo iaacabar, enlouqueceu e estrangulou a mulher e os filhos.

De resto, é força confessar que esses fenômenos sãobem de molde a ferir a imaginação. O Sol, astro do dia decujos raios nos pende a vida, perde o fulgor que, antes deapagar-se, torna-se pálido e lúgubre. 0 firmamento,esmaecido, toma uma tonalidade esquisita; os animaisficam desorientados, os cavalos empacam, os bois noarado estarrecem; o cão achega-se ao dono, as galinhas

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buscam o poleiro; as aves deixam de gorjear e algumasaté caem mortas. Arago nos conta que, por oca sião doeclipse de 8 de Julho de 1842, vinte mil espectadoresformavam um quadro assaz expressivo.

Quando o Sol se reduziu à estreita fita, não dandomais que escassa luz, uma como inquietação apoderou -sede toda aquela gente, sentindo cada qual a necessidade deexternar suas impressões. Daí, um murmúrio abafado,semelhante à longínqua tempestade. Esse rumoraumentava à proporção que o crescente solar se afilava,até que desapareceu. A treva sucedeu de súbito àclaridade, profundo silêncio assinalou essa fa se,nitidamente, como se fosse a pêndula de um relógioastronômico. O fenômeno, em sua magnificência,acabava de triunfar da petulância da juventude e dapresteza que algumas pessoas tomam por característicosde superioridade, naquela indiferença ruidosa e muitocomum nos soldados. Profunda calma se fez também noambiente, as aves cessaram de cantar... Após soleneexpectativa de dois minutos, frenéticos aplausossaudavam no mesmo esto, com a mesma espontaneidade,o reaparecimento dos primeiros raios solares . Aorecolhimento melancólico, de emoções indefiníveis,sucedia o contentamento vivo que ninguém já procuravacomedir. Cada qual se afastava comovido, depois deassistir a um dos mais belos espetáculos que a Naturezaoferece ao homem.

Camponeses houve que se aterrorizaram com aobscuridade, sobretudo crentes de que iam ficar cegos.Um pobre pastorzinho de guarda ao rebanho,absolutamente ignorante do que ia suceder, viu afli to que

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o Sol se escurecia num céu sem nuvens. Quando a luz detodo se apagou, o pobrezinho, no auge do terror, pôs -se achorar e a gritar por socorro! O pranto ainda lhe vertiaquando o disco lhe mandou o primeiro raio. Asserenadoentão, juntou as mãozinhas, exclamando: Oh! belo Sol!Não será o dessa criança, o grito mesmo daHumanidade?!

Explica-se, então, facilmente, a viva impressãoproduzida pelos eclipses, associada à idéia deaniquilamento do globo, desde que se não saiba que elessão apenas o efeito natural do movimento da Lua emtorno da Terra, e que podem ser preditos commatemática precisão. O mesmo se dá com outrosfenômenos celestes, notadamente aparições súbitas deestrelas desconhecidas, muito mais raros que os eclipses.

Dessas aparições, a mais célebre foi a de 1572. A 11 deNovembro desse ano, pouco depois do massacre de S.Bartolomeu, surgiu subitamente, na constelação deCassiope, uma rutilante estrela de primeira grandeza. Aestupefação foi geral, não só do povo, que todas as noitesprocurava contemplar o céu, como entre os sábios, quenão podiam explicar aquela aparição. Os astrólogosentraram logo a conjeturar que deveria ser a estrela dosMagos, núncia da volta do Homem -Deus, para efetivar osupremo julgamento da ressurreição. Daí, o grandesobressalto de todas as classes sociais... A estrela, porém,foi palecendo, até que de todo se extinguiu ao fim de oitomeses, sem produzir outras catástrofes além das que atoleima humana acrescenta às misérias de um planetabem mal sucedido.

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Os anais da Ciência registram diversas apariçõesdeste gênero, sendo esta, porém, a mais notá vel.

Emoções idênticas acompanharam sempre todos osgrandes fenômenos naturais, máxime os imprevistos.Podemos ler nas crônicas da Idade -Média, e mesmo maisrecentes, a impressão provocada pelas auroras boreais,chuvas de estrelas, bólidos, etc. Ainda não há muito, porocasião da grande chuva de estrelas, a 27 de Novembrode 1872, que projetou no céu mais de quarenta milmeteoros provenientes da dissolução do cometa de Biela,vimos em Nice, principalmente, bem como em Roma.,mulheres do povo ávidas de conhe cer a causa daquelefogo de artifício celeste, que elas tinham imediatamentefiliado à idéia do fim do mundo, e à queda de estrelasanunciada como pródromo do último cataclismo.

Tremores de terra e erupções vulcânicas atingem, àsvezes, proporções tais que logo suscitam o terrorismo dofim do mundo. Imagine-se, então, o estado da alma doshabitantes de Herculanum e Pompéia, quando o Vesúvioos envolvia em mortalha de cinzas! Não seria a seusolhos, realmente, o fim do mundo? Mais recentemente,quantos presenciaram a erupção do Krakatoa, nãopensam da mesma forma? Uma noite espessa que durou18 horas, atmosfera de fornalha, irrespirável, carregadade cinzas a entrarem pelo nariz, pela boca, pelos ouvidos;o ribombo surdo e constante do vulcão, a pedra -pomes acair do céu negro; quadro dantesco apenasintermitentemente aclarado com relâmpagos, ou pelosfogos fátuos dos mastros e cordoalhas dos navios. Raiosem profusão, em precipitações satânicas. Depois, maischuva cinérea, agora transformada em lama... Eis o que

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padeceram, nessa noite de 18 horas, de 26 a 28 de Agostode 1883, os numerosos passageiros dum barco javanês,enquanto uma parte da ilha de Krakatoa voava pelosares, e o mar, depois de recuar, avançava, terra a dentro,de 1 a 10 quilômetros, em vagas de 35 metros de altura.Isto, numa frente de 500 quilômetros! Em seu refluxo,essa avalancha arrasou e carreou para o oceano quatrocidades, a saber: Tjringin, Merak, Telok -Bétong, Anjer etudo o mais que povoava a costa, mais de 40.000 pessoas!Passageiros de um navio que cruzou o estreito no diaseguinte, viram que a proa cortava pencas de cadáveresentrelaçados. Semanas após, ainda se encontraram, noventre de alguns peixes, ossos, cabelos, unhas humanas.Quantos puderam sobreviver à hecatombe e todos os quepuderam entrevê-Ia de bordo de um navio, ao reverem aluz do dia, que já supunham para sempre extinta,confessam com terror que aguardavam, de fato, o fim domundo, convictos de que o cataclismo fosse universal.

Uma testemunha ocular assegurava -nos que, porcoisa alguma deste mundo, consentiria em rever talquadro. Extinto o Sol, um véu de luto envolvia aNatureza e a morte universal ia reinar soberana, eterna.

De resto, essa erupção foi de tal violência que chegoua repercutir em todo o globo, mesmo p ara, os antípodas.E' que, tendo o jacto vulcânico atingido 20.000 metros dealtura, a ondulação atmosférica por ele produzida sepropagou por toda a. superfície do globo, circulando -oem 35 horas (mesmo em Paris os barômetros baixaram 4milímetros). E ainda por mais de um ano, a finíssimapoeira esparsa nas altas camadas atmosféricasproduziram, esbatidas ao Sol, as magníficas

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luminosidades vespertinas que muita gente pôdeadmirar.

Aí estão cataclismos formidáveis, que podem serconsiderados fins-de-mundo parciais. Alguns abalossísmicos podem comparar-se a essas medonhas erupçõesvulcânicas, pela amplitude de suas trágicasconseqüências. Por ocasião do terremoto de Lisboa, em 1de Novembro de 1755, sucumbiram trinta mil pessoas. Oabalo estendeu-se por uma área correspondente a quatrovezes a superfície da Europa. Quando Lima foi arrasada,em 28 de Outubro de 1724, o mar subiu 27 metros do seunível e precipitou-se sobre a cidade, empolgando-a tãoradicalmente que lhe não ficou uma só casa. Naviosforam encontrados em seco, a muitos quilômetros dacosta. A 10 de Dezembro de 1869 os habitantes da cidadede Onlah, na Ásia Menor, apavorados com os rumoressubterrâneos e um abalo mais forte, salvaram -seescalando uma colina próxima. Dali, viram, estupefatos,abrirem-se várias brechas no solo movediço, tragando acidade em poucos minutos! Temos disso testemunhodiretos, que, em circunstâncias menos dramáticas, comopor exemplo em Nice, não deixaram por isso de suscitar,antes de tudo, a idéia de fim do mundo.

A história da Humanidade poderia oferecer -nosgrande número de dramas semelhantes, de cataclismosparciais, ameaças de final destruição. A nos cabiademorar um instante nesses grandes fenômenos emcorrelação com a velha crença do fim do mundo, queatravessou todas as épocas, modificando-se com oprogresso da Ciência. A fé desapareceu em parte, oaspecto místico e legendário que impressionava a mente

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dos antepassados, e de que ainda nos restam curiosasrepresentações nas portas das catedrais, tanto quanto naescultura e na pintura inspiradas na tradição cristã, esseaspecto teológico do último dia terreno cedeu lugar aoestudo científico da durabilidade do sistema solar a quepertencemos. A concepção geocêntrica e antropocêntricado Universo, que considerava o ho mem como centro efim da criação, transformou-se gradualmente e acaboupor desaparecer. Agora, sabemos que o nosso humildeplaneta não passa de uma ilha no infinito; que a nossahistória tem sido, até aqui, feita de simples ilusões, e quea dignidade humana reside no seu valor intelectual emoral. Não tem o espírito do homem, por finalidadesoberana, o conhecimento exato das coisas e ainvestigação da verdade?

No curso do século XIX, profetas agourentos, mais oumenos sinceros, anunciaram vinte cinco vezes o fim domundo, mediante cálculos cabalísticos, sem se estribaremem qualquer fundamento sério. Tais predições se hão -derenovar por todo o tempo que durar a Humanidade. (7 )

Esta divagação histórica nos desviou, em que pese àsua oportunidade, da nossa nar rativa do século XXV.Retomemo-la sem demora, ainda porque chegamos aoponto exato do seu desdobramento.

CAPITULO VIIO choque

As stars with trains of firo and dews of blood.

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SHAKESPEARE, Hamlet, I.

Qual bala de canhão desfechada em alvo, com ainexorabilidade das leis do destino, inflexíveis, assimcobria o cometa a sua órbita regular, com velocidadecrescente, para o ponto que o nosso planeta deveria, porsua vez, atingir na noite de 13 para 14 de Julho. Oscálculos definitivos não discrepavam de uma linha. Osdois viajores celestes encontrar -se-iam como doiscomboios em disparada louca e cega, para se espatifareme fundirem num embate monstruoso, como rivaisassomados de ódios insopitáveis. Mas, neste caso,advirta-se que a velocidade deveria ser , simplesmente,sessenta e cinco vezes maior que a de dois combo ios acem quilômetros horários!

À noite de 12 para 13, o cometa havia -se desdobradoe coberto quase todo o firmamento, permitindodistinguir, a olho nu, turbilhões ígneos a rolarem emtorno de um eixo oblíquo à vertical. Dir -se-ia ali estivessetodo um exército de meteoros em desordenadaconflagração, na qual a eletricidade e os relâmpagos seempenhavam em fantásticas batalhas. O astro coruscanteparecia girar sobre si mesmo e revolver-se interiormente,como se possuísse vida própria e padecesse tormentosasdores. Enormes jactos de fogo bolsavam de vários focas.

Evidente que a luz solar agia sobre o turbilhão devapores, decompondo uns tantos corpos, produzindo

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combinações explosivas, eletrizand o as partes maispróximas, repelindo vapores para além da cabeçaenorme, que pairava sobre nós. O astro de ri mesmoemitia, porém, fogos bem diferentes do vaporoso reflexoda luz solar, e lançava chamas sempre maiores, qualmonstro que se precipitasse a Terra para incendiá-la. Oque mais sobressaltava, talvez, nesse espetáculo, é queninguém podia explicar o que ocorria: Paris e todos oscentros de atividade humana calavam -se instintivamentenessa noite, como que imobilizados por uma expectaçãoúnica, como que procurando apreender algum eco doturbilhão celeste que se avizinhava, sem que ruído algumlhes chegasse do pandemônio cometário.

A lua cheia, esverdeada, ostentava -se na rubrafornalha, mas, sem brilho, não projetando mais quesombras. A noite deixara de ser noite; as estrelassumiram-se para só ficar o céu abrasado de intensoclaror.

O cometa aproximava-se com a velocidade de 147.000quilômetros por hora, e a Terra, por sua vez, avançava àrazão de 104.000 quilômetros, de oeste para leste, emsentido oblíquo à órbita cometária, que, pela posição dequalquer meridiano, à meia-noite, pairava a nordeste. Acombinação das respectivas velocidades aproximava osdois corpos celestes à razão de 173.000 quilômetros porhora. Quando a observação, de acordo com o cálculo,constatou que os contornos da cabeça do astro estavamapenas à distância da Lua, soube -se que a tragédiacomeçaria dentro de duas horas.

Contrariamente a toda expectativa, o dia de sexta -feira apresentou-se de maravilhosa beleza, como os

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precedentes: o Sol brilhou num céu escampo de nuvens,mas, refrescada por ligeira brisa, toda a Naturezaparecia festar: campos floridos, luxuriantes de beleza,regatos múrmuros alegrando vales, aves cantando nasfrondes. As cidades, só elas, apresentavam -se combalidas,pois que aí a Humanidade sucumbia consternada. Aimpassibilidade tranquila da Natureza contrastavadolorosamente com a ansiedade angustiosa dos coraçõeshumanos.

Milhões de europeus haviam deixado Paris, Viena,Berlim, Petersburgo, Roma, etc., para refugiarem-se naAustrália, aonde haviam acorrido até os antípodas. Amedida que se aproximava o dia do encontro, aadministração dos transportes transatlânticos aéreostriplicava o tráfego, e os comboios aéreo-elétricospousavam como bandos de pássaros mi gratórios em S.Francisco, Honolulu, Noumeia e nas cidades australianasde Melbourne, Sydney, Liberty, Pax. Mas, esses milhõesde fugitivos não representavam mais que uma minoriaprivilegiada, cuja ausência mal se poderia notar, dianteda massa que formigava, estarrecida, pelas cidades evilas.

Noites inteiras de vigília já se haviam passado.Ninguém dormia. O terror do desconhecido exaltavatodas as mentes, arrebatava-lhes o sono. Nem mesmohavia quem se deitasse para repousar. Como? Dormir oderradeiro sono? Não ter, nunca mais, o encanto dodespertar. Semblantes lívidos, em geral, olhos fundos,cabeleiras desgrenhadas, faties angustiadas da maisterrível angústia que jamais assaltara a mente humana,eis o que se via. O ar respirável tornava -se de mais a mais

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quente e seco. Ninguém pensava, desde a véspera, emalimentação qualquer, e o estômago, órgão tão poucodescuidoso de si mesmo, ainda assim, nada reclamava.Entretanto, uma sede ardente foi o primeiro efeitofisiológico da aridez atmosférica e as pesso as maissóbrias não puderam furtar-se ao imperativo de acalmá-la, fosse como fosse, sem o conseguir. O sofrimento físicoiniciava a sua tarefa e devia de pronto dominar asangústias morais. A atmosfera tornava -se hora a horamais irrespirável, mais cruel. As criancinhas choravam,esperneavam, chamavam pelos pais, sem saberemporquê.

Em Paris, como em Londres, como em todas ascidades, vilas, aldeias, a população evadia -se de casa paraerrar estonteada, ao ar livre, qual enxame de formigasquando se lhes desmancha o formigueiro.

Todos os negócios da vida normal foramabandonados, todos os projetos estavam implicitamenteaniquilados. Ninguém se preocupava com a casa, afamília, nem de si mesmo. Depressão moral absoluta,mais forte que o enjôo do mar.

Igrejas católicas, templos protestantes, sinagogasjudaicas, capelas gregas ortodoxas, mesquitasmuçulmanas, pagodes chineses, budistas, santuáriosespíritas, sociedades teosóficas, ocultistas, psicosóficas,antroposóficas, naves da nova religião anglicana, todos o scentros de culto religioso, enfim, que ainda dividiam aHumanidade, tinham sido invadidos por seus fiéisadeptos, nessa quarta-feira memorável, e mesmo emParis a multidão entalada nos pórticos a ninguém

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permitia franquear as igrejas, em cujo interior seprosternavam os crentes.

Cantos, órgãos, hinos, tudo emudecera e o que apenasse poderia ouvir era um abafado sussurrar de preces.Como nos idos tempos de fé ingênua e ardente, de quenos falam historiadores medievais, os confessionárioseram quase que tomados de assalto.

Nas ruas, nas praças, nas avenidas, o mesmo silêncio,salvo alguns magotes de estonteados, que procuravamiludir o perigo com a embriaguez. Insensatos berravam aesmo, blasfemavam, esmurravam as paredes. Nem umpregão, nem um jornal! Aviõ es, balões, aeronaves,helicópteros, haviam desaparecido como por encanto. Asúnicas viaturas em tráfego eram coches funerárioslevando aos crematórios as primeiras vítimas do cometa.

O dia assim passou, sem incidente astronômico. Aansiedade crescia, porém, à proporção que a noite fatalse avizinhava. Nunca, poder-se-ia talvez dizer, se vira umpôr-do-sol tão belo em céu assim tão puro! Era como se oastro-rei se recolhesse em leito de ouro e púrpura. Odisco vermelho mergulhou no horizonte. As estrelas nã oapareceram, porém, nem com elas à noite. Ao dia solarsucedeu o cometário-lunar, intensamente aclarado, aevocar auroras boreais, sensivelmente mais vivas e comoemanantes de grande foco incandescente, que nãobrilhara durante o dia, por encontrar -se abaixo dohorizonte, mas poderia, contudo, rivalizar com o próprioSol.

Esse foco luminoso surgiu no oriente, quase ao mesmotempo em que a lua cheia, que parecia subir com ele, nocéu - qual hóstia sepulcral em altar fúnebre - dominando

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o luto imenso da Natureza. À medida que se elevava, aLua empalidecia, mas o foco cometário aumentava debrilho com a queda do Sol, abaixo do horizonte ocidental.E agora, era a ele que cabia imperar no mundo - solnebuloso, rubro-escarlate, a vomitar flamas suri -verdes,que figuravam enorme nervura de asas. Olharesterrificados viam nele um Gigante desmesurado, quetomava posse do Céu e da Terra.

A vanguarda da cabeleira cometária tinha jápenetrado no interior da órbita lunar e, de um momentopara outro, iria tocar as frontei ras rarificadas daatmosfera terrestre, a duzentos quilômetros de altura,mais ou menos.

Foi nesse momento que todos os olhares seesbugalharam, loucos de terror, ao verem explodir emtodo o horizonte um como vasto incêndio, projetando aocéu pequenas chamas violáceas.

Quase instantaneamente após, o cometa diminuiu debrilho, certo porque, a pique de tocar a Terra, entrara napenumbra desta e perdera, assim, uma parte da luz quelhe provinha do Sol. Desfalque aparente, contudo, devidoprincipalmente a um efeito de contraste, vista como,quando olhares menos ofuscados se afeiçoaram àquelanova tonalidade luminosa, ela lhes pareceu tão vivaquanto a primeira, embora embaciada, sinistra,sepulcral. Jamais a Terra se banhara em semelhante luz -um fundo de tela amarelada, além da qual fuzilassemrelâmpagos. A secura do ar tornara -se intolerável; umcalor de fornalha soprava de cima, tresandando aenxofre, provavelmente devido ao ozônio supereletrizado,que empestava a atmosfera. Cada qual julgava chegada

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há sua hora. Foi quando um grande grito estrugiu nosilêncio, cobrindo todas as angústias:

O mundo está ardendo! Fogo! fogo! - clamavamtodos, de toda à parte...

De fato, todo o horizonte parecia agora coroado dechamas azuladas. Era, pois, o que se previra o óxido decarbono a queimar-se, produzindo o anidrido carbônico.Certo, também, o hidrogênio cometário aí estava acombinar-se lentamente. Dir-se-ia uma iluminaçãofúnebre em torno de um catafalco.

Súbito, enquanto a Humanidade se quedava imóvel,silenciosa, aterrada, retendo a respiração, cataleptizada, -por assim dizer, toda a abóbada celeste pareceu rasgar -sede alto a baixo e, pela fauce aberta, cria -se ver enormegoela a vomitar chamas verdes, coruscantes. Tão intensodeslumbramento, acompanhado de horrível estrondo, fezque todos os espectadores, ainda os mais animosos e demistura velhos, mulheres, crianças, ainda não abrigados,se precipitassem para as cavas e galerias subterrâneas, jáentão quase repletas. Daí, nessa correria desabalada,uma aluvião de mortes por esmagamento, apoplexias,aneurismas, delírios cerebrais fulminantes. Era como se aRazão humana se houvera de súbito aniquilado e fossesubstituída pelo Estupor louco, inconsciente, resignado,mudo.

Apenas alguns jovens casais, abraçados, parecia misolar-se do cataclismo, destacarem-se do terror universalpara viverem, por e para si mesmos, tão somenteentregues à exaltação do seu idílio.

Sobre os terraços ou nos observatórios, os astrônomoshaviam, contudo, permanecido a postos e alguns deles

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fotografavam as constantes transformações do céu.Foram eles assim, por pouco tempo embora, as únicastestemunhas do encontro cometário, salvo um que outrotemperamento corajoso, a expiar através de vidraças oúltimo cataclismo.

Os cálculos indicavam que o gl obo terrestre deviapenetrar no âmago do cometa, tal como uma bala emmassa nebulosa, e que, a partir do primeiro contacto comas zonas atmosféricas extremas, de uma e outro, levariaquatro e meia horas para atravessar a referida massa,como se torna fácil verificar, visto que, sendo o cometamais ou menos sessenta e cinco vezes maior que a Terra,em diâmetro, devia ser atravessado não ao centro, mas aum quarto de distância, com a velocidade de 173.000quilômetros por hora.

Havia quarenta minutos, mais ou menos, que se derao primeiro contacto e já o calor e a terrível exalação deenxofre chegavam a tal ponto, que, dentro em breve, todaa vida haveria de cessar irremissivelmente, em seu curso.Os próprios astrônomos se retraíram no interior dosobservatórios, fechando-os hermeticamente e descendoaos subterrâneos. Em Paris, só a jovem calculista, já donosso conhecimento, ficou por mais alguns segundos noterraço, circunstância que lhe permitiu presenciar airrupção de formidável bólido, aparentemente quinze ouvinte vezes maior que a Lua, a precipitar -se para o Sulcom a velocidade do relâmpago.

Não havia, porém, quem pudesse fazer maisobservações quaisquer. Ninguém mais respirava. Aocalor e à secura, acrescia agora o envenenamento da

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atmosfera pela mistura do óxido de carbono, quecomeçava a produzir-se.

Os ouvidos tilintavam numa espécie de sonoridadeinterior, os corações aceleravam o ritmo com violência eo cheiro de enxofre era cada vez mais forte! Nessecomemos, despejou-se do céu uma chuva de fogo, d eestrelas cadentes, de bólidos que, em sua maior parte,não chegariam ao solo, mas deflagravam comobombardas, e cujos fragmentos perfuravam os telhados eateavam incêndios a granel. O céu era também, todo ele,comburente e, ao fogo do céu, correspondia o da Terra,qual se um exército de relâmpagos houvera, numinstante, incendiado o mundo. Ribombos de trovãosucediam-se ininterruptos, provindos em parte daexplosão dos bólidos e, por outro lado, de imensa procela,de molde a presumir que todo o calor atmo sférico setransformara em eletricidade. Um rumor contínuo, comode tambores ao longe, castigava os ouvidos, entremeadosde choques horrendes e de sinistros silvos, como deserpentes. Depois, os clamores selvagens, o esfervilhar decaldeiras em ebulição, estouros violentos, gemidos dovento, e desesperados, tremores da terra, como se a Terraestivesse a fundir-se.

Nesse lance, a tempestade tornou -se tão espantosa,tão estranha, tão feroz, tão raiventa, que a Humanidadeficou como que cataleptizada, muda,ani quilada e,finalmente, apassivada qual folha fenecida à mercê dosventos.

Desta feita, era evidente, tudo ia acabar. E cada qualse resignou com a perspectiva de sepultamento sob osescombros do universal incêndio, sem cogitar, um

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minuto, de qualquer meio de salvação. Num supremoesforço abraçavam-se quantos se não haviam separado,no intuito consolador de morrerem juntos.

Entretanto, o grosso do exército celeste havia passadoe uma espécie de rarefação, de vacuidade, se produzirana atmosfera, quiçá devido às explosões meteóricas, vistoque, de chofre, todas as vidraças estalaram e projetaram -se para fora, abrindo-se de si mesmas todas as portas ejanelas. Terrível furacão desencadeou -se, então,abreviando o incêndio e reanimando os homens, que,instantaneamente, voltaram a si do pesadelo horrível.Depois, foi toda uma chuva diluvial.

Leiam o Século XXV! O esmagamento do papa e detodos os bispos! A queda do cometa em Roma. Peçam ojornal!

Meia hora depois da tormenta, já todo o mundocomeçava a sair das cavas, sentindo-se reviver. Era comoo expertar insensível de um sonho e a despeito dosincêndios que ainda subsistiam, sem embargo da chuvadiluviana, já os pregões atroavam nas ruas de Paris e detodas as grandes cidades mal acordadas. Por toda à parteo mesmo anúncio, a mesma vozearia e, antes de procurarextinguir os braseiros, toda a gente comprava por umcêntimo o grande jornal de dezesseis páginas fartamenteilustrado.

Leiam o esmagamento do papa e duos cardeais... OSacro colégio massacrada pelo cometa ! Impossívelnomear outro papa! Peçam o jornal!

Os vendedores aumentavam, o pregão recrudescia ecada qual queria saber o que havia de verdade a talrespeito.

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Eis, em suma, o que ocorrera.O judeu americano com o qual já travamos relações,

páginas atrás; o mesmo que, na terça-feira anterior,conseguira ganhar alguns milhões com a reabertura dasBolsas de Paris e Chicago, não desesperava de prosseguirnegociando, e assim como outrora os mosteirosaceitavam os testamentos escritos com vistas ao fim domundo, assim o nosso infatigável bolsista julgaraoportuno manter-se ao seu telefone, a tempo instalado emprofunda galeria hermeticamente fechada. Dono delinhas especiais entre Paris e os maiores centrosmundiais, não interrompera as suas comunicações comeles..

O núcleo do cometa encerrava, comprimidos emmassa de gás incandescente, certo número de concreçõesuranoliticas, algumas de diâmetros quilométricos. Umadestas massas atingira a Terra, próximo de Roma, e logoos fonogramas do correspondente anunciavam oseguinte:

Todos os membros do concílio estavam reunidos sob acúpula do Vaticano, para festejar solene e pomposamentea decretação do dogma da divindade pontifícia. Acerimônia da adoração fora marcada para a horasagrada da meia-noite. Profusamente iluminado oprimeiro e mais grandioso dos templos da cristandade,mediante invocações piedosas e por entre nuvens deincenso e cânticos harmoniosos, o papa, assentado no seutrono de ouro, tinha a seus pés, prosternado, o fielrebanho que ali representava a cri standade das cincopartes do mundo. E foi justo quando ele se erguia para abênção suprema, que, do alto, se abateu um bloco de

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ferro maciço, descomunal, ou seja equivalente a meiaárea da cidade eterna, tudo esmagando e mergulhandonum abismo de profundidade incalculável! Verdadeiraqueda infernal, dir-se-ia. Toda a Itália estremeceu aochoque do monstro aéreo, ao mesmo passo que o rumorde formidável trovão se propagava até Marselha.

O bólido tinha sido visto de todas as cidades italianas,através de intensa chuva de estrelas, com abrasamentogeral da atmosfera. A Terra se iluminara como que deum novo sol rubro, coruscante, e um estrondoformidoloso, algo como infernal, sucedera à queda, comose de fato a abóbada celeste se houvesse rasgado de alto abaixo.

(Esse o bólido que a calculista do Observatório deParis lobrigara no momento em que, apesar do seu zelo,não pudera manter-se no ambiente asfixiante docataclismo. )

O nosso homem de negócios recebia despachos,,expedia ordens telefônicas, redigia notí cias sensacionaispara o seu jornal, impresso de contínuo em

Paris e nas principais cidades do mundo. Toda anovidade, por ele ditada, circulava 15 minutos após, nofrontispício do Século XXV, em New -York, Melbourne,etc.

Meia hora depois da 1. edição, apr egoava-se a 2.,dizendo

Leiam o incêndio de Paris e de quase todas as cidadesda Europa! A morte definitiva da Igreja católica. O papacastigado pelo seu orgulho! Roma reduzida a cinzas...Leiam O Século XXV.

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E nessa 2. edição já se podia ler uma dissertaç ão assazerudita, de abalisado publicista sobre as conseqüênciasda extinção do Sacro-ColégioNesse artigo, assertava eleque, de acordo com o estatuído nos concílios de Latrão(1179), de Lião (1274), de Viena (1312), bem como nasordenações de Gregório X e Gregório XIII, os soberanospontífices só podem ser eleitos pelo conclave dos cardeais.Esses concílios e ordenações não haviam previsto ahipótese de um aniquilamento total e simultâneo, doscardeais. Nos próprios termos da jurisdição eclesiástica,nenhum papa poderia, conseguintemente, ser nomeado.Eis como e porque a Igreja ficava sem chefe. S. Pedro jánão teria sucessor. Era o fim do Catolicismo, nos moldesem que se constituíra e mantivera por tantos séculos.

Peçam o Século XXV, 4.° edição e vejam: aparição,na Itália, de um novo vulcão! Revolução em Nápoles...Leiam, leiam!

Essa 4. edição seguira-se a 2., sem referir-se a 3..Anunciava que um bólido, cujo peso se calculava em cemmil toneladas ou mais, havia-se abatido com a velocidadejá anteriormente assinalada, sobre a enxofreira dePouzzoles e, atravessando a crosta frágil e sonora daregião, lá se afundara profundamente e originara umnovo vulcão, cujas chamas iluminavam agora os camposflegrianos. A revolução, de fundo supersticioso ecapitaneada por monges fanáticos, que em tudo viamavisos do céu, começava a depredar o Palazzo reate.

Sexta edição! Sensacional! Leiam: aparição de umanova filha no Mediterrâneo! A Inglaterra conquista, ..

Um fragmento do cometa havia -se fixado noMediterrâneo, a Oeste de Roma, formando uma ilha

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irregular de 1.500 metros de comprimento por 700 delargura e 50 de altura. O mar começara a ferver e ainundar as praias de vagalhões enormes. Todavia, láestava precisamente um inglês, que não teve outrocuidado senão tomar um barco, escalar o rochedo e lheespetar no cimo o pavilhão britânico.

Em todos os lugares da terra o jornal do nossohomem teve, nessa noite de 14 para 15 de Julho, umatiragem de milhões de exemplares, ditados do seugabinete, como quem soubera monop olizar todos ostrágicos acontecimentos. Por toda à parte, aquelasnotícias eram avidamente devoradas, antes mesmo decoordenarem esforços para a extinção dos incêndios. E'verdade que a chuva, de começo, prestara um auxílioinesperado, mas os estragos mat eriais eram enormes,posto que todos os edifícios fossem de superestruturametálica. As companhias de seguro alegavam causasuperior imprevisível, esquivando -se a qualquerindenização. Por outro lado, os seguros sobre asfixiatinham realizado em oito dias lucros colossais.

O milagre de Roma! Assombroso! Leiam a 10. ediçãodo Século XXV. Peçam o jornal.

Qual o milagre? Oh! simplíssimo - dizia o SéculoXXV que o seu correspondente deixara -se iludir por umafalsa informação e que o bólido... caíra distante de Romae nada havia destruído na cidade eterna. S. Pedro e oVaticano tinham sido miraculosamente poupados.Entretanto, o jornal se vendera por centenas de milhões,em todo o mundo. Excelente negócio.

A crise passou. Pouco a pouco a Humanidade se refezpara o encanto do viver. A noite ficou aclarada por

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estranho luar cometário, alimentado pela queda demeteoros e com incêndios por toda à parte. Quandorompeu o dia, às 3 1/2 mais ou menos, havia mais de 3horas que o cometa cruzara com a Terra e a sua cabeçapassara ao sudoeste, continuando, contudo, a envolvê -lana sua cauda. O choque verificara -se na noite de 13 para14, às 12 h., 10 de Paris, isto é, às 12 h. 58 de Roma,conforme a exata previsão do Presidente da SociedadeAstronômica da França, que o leitor não terá de certoesquecido.

Enquanto a maior porção do hemisfério voltado parao cometa, na hora do encontro, tinha experimentado asecura do ar, o calor sufocante, a emanação sulfurosa e oestupor letárgico, resultantes da resistência atmosféricaoposta à marcha do astro, da eletrização supersaturadado ozônio e da mistura do protóxido de azoto com ascamadas aéreas superiores, o outro hemisfério ficaramais ou menos indene, a não serem as perturbaçõesatmosféricas inevitáveis e oriundas da rutura deequilíbrio. Os barômetros haviam marcado curvasfantásticas, configurando píncaros e abismos.

Felizmente, o cometa não fizera mais que deslizarpela superfície e o choque longe estava de ter sido frontal.Sem dúvida, a própria atração do globo terrestre agiravigorosamente na queda dos bólidos sobre a Itália e oMediterrâneo. Em todo caso, a órbita do cometa foiinteiramente transformada por essa perturbação,enquanto que a Terra e a Lua continuaram em seu cursotranqüilo ao redor do Sol, como se nada houveraocorrido. De parabólica, a órbita cometária fez elíptica,

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com o seu afélio próximo a ponto da eclíptica em que foracapturado pela atração do nosso globo.

Quando mais tarde fizeram a estatística das vítimasdo cometa, viu-se que orçavam por quatro décimos dapopulação européia. Só em Paris, que abrangia umaparte dos antigos departamentos do Sena e do Sena -e-Oise, contando 9.000.000 de habitantes, houve, nesseinesquecível mês de Julho, mais de 200.000 mortes, assimcomputadas

Vê-se que a mortalidade triplicara uma semana antesdo sinistro e quintuplicara no dia 9. A progressãodiminuíra em conseqüência das sessões do Instituto, quetiveram a virtude de acalmar os espíritos maisimpressionáveis. Chegou a verificar -se, até, ummovimento retrocessivo no dia 10 . Infelizmente, com aaproximação do astro, o pânico recrudesceu e, a partirdo dia 11, o obituário sextuplicava a média normal. Amaior parte das pessoas fracas havia sucumbido. Naquinta-feira 12, aproximando-se a data fatal e devido aprivações de todo o gênero, como ausência dealimentação e de sono, distúrbios, quais a falta detranspiração, cutânea, febre orgânica, superexcitaçãocardíaca, congestões cerebrais, a mortalidade atingira, sóem Paris, a cifra desproporcional de dez mil! Quanto aoataque geral, na noite de 13 para 14, que ceifou mais decem mil vidas, caracterizou-se principalmente pelaressecação da laringe, congestões pulmonares, asteniados órgãos respiratórios, embaraços da circulação dosangue, etc. O tão temido óxido de carbono não fi zerauma só vítima, porque, em chegando à atmosfera, atransformação do movimento em calor o levara à

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combustão e impedira, dada a sua fraca densidade, demisturar-se maiormente às camadas inferiores. Umaparte das pessoas mortalmente atingidas sucumbiu nodia seguinte e alguns houve cuja agonia permaneceu porvários dias. Não foi senão passados quinze dias que amédia se restabeleceu. Durante o mês fatídico, nasceramem Paris 17.500 crianças, mas, quase todas sucumbiramvitimadas pelo pavor materno. Chegav am ao mundo jáenvenenadas, com os seus corpinhos azulados.

A estatística assinalava normalmente a média de 15óbitos por 1.000 habitantes, graças aos progressos daciência médica, o que corresponde a 35.000 por ano, ou369 por dia. Se, pois, descontarmos do cômputoprecedente 11.439 óbitos do coeficiente comum, temos acifra de 218.000 vítimas, mais ou menos, causadas pelocataclismo.

O medo, só ele, teria originado 150.000 mortes porsíncope, rutura de aneurismas, congestões cerebrais.

E, contudo, o cataclismo não culminara no fim domundo. Os claros não tardaram a ser preenchido poruma espécie de recrudescimento de vitalidade, tal comose dava outrora em relação às guerras. A pauta denascimentos, de conjunto tomada em todo o globo,poderia estimar-se em uni nascimento por segundo, nocurso do primeiro ano após o pânico. Mas ardente quenunca, a Vênus física provou que o mundo não estavaprestes a findar. A Terra continuou o seu giro à luzfecunda do Sol, a Humanidade prosseguiu graduando -separa mais altos destinos.

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E o cometa servira de pretexto, quase único, paratodas as possíveis discussões e conjeturas, a respeito dogrande problema capital do - Fim, do Mundo.

FIM DA PRIMEIRA PARTE

Segunda ParteDENTRO DE DEZ MILHOES DE ANOS.

CAPITULO 1As etapas futuras

L'homme enfin prend son sceptre et jette son bâton,Et 1'on voit s'envoler le calcul de Newton,

Monté sur Pode de Pindare.V. HUGO, Plein Ciel.

O acontecimento que vimos de relatar, com asdiscussões que ele originou, ocorrera no século X XV daera cristã. A humanidade terrena não sucumbira aoembate cometário, que se tornou, entretanto, o maiorfenômeno de toda a sua história. Acontecimentomemorabilissimo, na verdade, e jamais esquecido, sem

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embargo das inúmeras transformações por que pas sou,posteriormente, a raça humana. A Terra prosseguiugirando, o Sol continuou brilhando, as criançasenvelheceram e desapareceram, sucedidas no fluxoperpétuo das gerações. Os séculos, os períodos seculares,transcorreram. O Progresso, suprema lei, conqu istara omundo, apesar de todos os entraves e obstáculos que oshomens costumam oferecer -lhe. A Humanidadeengrandecera-se lentamente em ciência e bem -estar,através de mil flutuações transitórias, para chegar aoapogeu e percorrer as veredas terrestres a ela assinadas.

Mas... que série enorme de transformações físicas ementais!

A população da Europa elevara -se, a partir do ano1900 ao ano 3000, de trezentos e setenta e cinco asetecentos milhões de habitantes. A Ásia passara deoitocentos e setenta e cinco milhões a um bilhão, a Áfricade setenta e cinco a duzentos milhões; as Américas decento e vinte a mil e quinhentos milhões e a Austrália decinco a sessenta milhões, perfazendo assim, para o globo,um acréscimo de um bilhão e novecentos milhões dealmas. E a progressão continuara, com alternativas.Também as línguas se haviam transformado. Osprogressos incessantes da Ciência e da Indústria haviamoriginado grande número de vocábulos novos,ordinariamente estruturados na velha etimologia grega.Ao mesmo tempo, a língua inglesa se espalhara em todasas regiões do globo. Do vigésimo quinto ao trigésimoséculo, o idioma falado na Europa derivava de um mistode inglês, francês e vocábulos etimologicamente gregos,aos quais se juntaram algumas expressões colh idas no

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alemão e no italiano. Nenhum ensaio de língua universal,artificialmente criada, lograra êxito.

Antes do século XXV, já a guerra fora banida dalógica humana, e ninguém concebia que uma raçapresumida inteligente e racional houvesse podidosujeitar-se de bom grado e por tanto tempo a um jugo tãobrutal quanto estúpido, que a relegava a nível inferioraos animais. Alguns episódios históricos, que a pinturapopularizara, demonstrava em todo o seu horror a velhabarbárie. Aqui, era Rhamsés III, no Egit o, vendoentornar-se à frente do seu carro cestos e cestos de mãosdecepadas aos inimigos vencidos, a fim de operar maisfacilmente a sua contagem, às centenas e aos milhares;ali, era Teglatpal-Asar nas planuras da Caldeia,mandando esfolar vivos e expond o ao Sol os prisioneiros,ou Assurbanipal, na Assíria, arrancando a língua aosBabilônios e empalando os Susianos. Mais além, diantedos muros de Cartago, era Aníbal a crucificar os reféns.Depois, César decepando a machado o pulso dosGauleses revoltados. Outros quadros mostravam Neroassistindo ao suplício dos cristãos acusados do incêndiode Roma e transformados em tochas ardentes. Emcompensação, por outro lado, Filipe II da Espanha e suacorte assistindo à queima dos heréticos, em nome deJesus. E mais: Gengis Khan balizando o roteiro de suasvitórias com pirâmides de cabeças degoladas, e Atilaincendiando as cidades depois de saqueadas. Condenadosda Inquisição a expirarem em torturas inconcebíveis, e oschineses enterrando os condenados até o pescoço, acabeça untada de mel, em pasta às moscas, ou, então,num suplício mais rápido, serrando -os ao meio entre

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duas pranchas. E Joana d'Arc expirando na fogueira,Maria Stuart com a cabeça no cepo, e Lavoisier, Bailly,Chenier, no cadafalso, as dragonadas de Cévennes, osexércitos de Luís XIV devastando o Palatinado, ossoldados. de Napoleão tombados nas estepes geladas daRússia, e cidades bombardeadas, batalhas navais,amálgamas de tropas ceifadas à metralha, combates,aéreos despejando do céu torrentes de f ogo, e pencas decadáveres, e destroços de máquinas. Por toda à parte odomínio brutal do mais forte, na mais espantosaselvajaria. A série das guerras internacionais, civis,políticas, sociais, fora passada em revista e ninguémquiseram crer que as aberrações dessa loucura homicidativessem realmente avassalado por tanto tempo a míseraraça humana, chegada, finalmente, à idade da razão.

Os últimos soberanos haviam em vão proclamado,com ênfase retumbante, que a guerra era uma instituiçãode ordem providencial, divina, por isso.que resultavanaturalmente da luta pela vida, constituía o mais nobredos exercícios, sendo o patriotismo a mais nobre dasvirtudes. De nada valeu fossem proclamados campos dehonra os campos de batalha, com os generais vitoriososesculpidos em bronze nas praças públicas. O sensohumano acabara por notar que nenhuma espécie animal,salvo algumas qualidades de formigas, dera mostras deestupidez tão grande, e, portanto, que a guerra tinha sidoo estado primitivo da Humanidade, obrigada a disputar avida aos animais. Concluíra, então, que de há muito esseinstinto rudimentar se voltara contra o próprio homem,que a luta pela vida não consistia em aniquilar -se a simesmo e sim em conquistar a natureza; que todos os

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recursos da Humanidade estavam sendo lançados aoabismo voraz dos exércitos permanentes, em pura perda,e que só o serviço militar codificado valia por agravo talà liberdade, a ponto de restabelecer a escravidão apretexto de dignidade. As nações, governadas porsoberanos belicosos e sacerdotais, haviam-se revoltado,acabando por encarcerá-los e embalsamá-los depois demortos, como espécimes dignos da curiosidade dospósteros. Assim, foram eles transportados a Aix -la-Chapelle e lá depositados, como satélites de outra época,em torno do túmulo de Carlos Magno.

Os Estados europeus, constituídos em repúblicasconfederadas, reconheceram que o militarismorepresentava nos períodos de paz um parasitismodevorador, e mais - a impotência e a esterilidade; e nostempos de guerra o roubo e o homicídio legalizados, odireito brutal do mais forte, regímen ininteligentemantido por uma obediência passiva aos diplomatasespeculadores da ignorância e fraqueza humanas.Outrora, nos tempos primitivos, combatiam -se as cidadesentre si, para proveito e glória de seus chefes e essaguerra ainda vigorava no século XIX na África central,onde se deparavam rapazes e raparigas compenetradasdo seu papel de escravos, a ponto de marcharemvoluntariamente para as regiões onde deveriam sercomidos ritualística e pomposamente. Algo diminuída aprimitiva barbaria, entraram as províncias a secoligarem e se combaterem: Atenas contra Sparta, Romacontra Cartago, Paris contra Dijon, Londres contraEdimburgo. A História registara os combates do Duquede Bourgogne contra o rei de França, dos Normandos

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contra os Parisienses, dos Ingleses contra os Escoceses,dos Venezianos contra os Genoveses, dos Saxões contraos Bávaros, etc.

Depois, formaram-se nações mais vastas,suprimiram-se bandeiras e diversas províncias, mascontinuaram nações e povos a ensinar aos filhos o ódioaos vizinhos, arregimentando-os e preparando-os para seexterminarem.

Guerras intermináveis e quase incessantes haviamdeflagrado entre a França, Inglaterra, Alemanha,Áustria, Itália, Espanha, Rússia, T urquia, etc.

Os engenhos destruidores acompanharam osprogressos da química, da mecânica, da aeronáutica e damaior parte das ciências. Havia mesmo teóricos -sobretudo entre os estadistas - que afirmavam ser aguerra necessária ao progresso, esquecidos de que amaior parte dos inventores, em quaisquer ramos daciência, como da indústria, foram às criaturas maisantibélicas deste mundo. A estatística demonstrara que aguerra aniquilava quarenta milhões de homens cadaséculo, mil e cem por dia, ou fossem mil e duzentosmilhões em três mil anos. Não havia como iludir a ruínadas nações, pois só no século XIX elas gastaram emarmamentos a bela cifra de setecentos bilhões. Tambémse objetava, às vezes, que uma sangria era útil paracorrigir o acréscimo da população, sem levar em contaque a Terra poderia alimentar um número dez vezesmaior de habitantes, que os ceifados pelas guerras. Essasrivalidades patrióticas, habilmente entretidas pelospolíticos, que, por assim dizer, delas viviam, impediram aEuropa, por longo tempo, de imitar a América na

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supressão dos exércitos que lhe exauriam todas as forças,arrebatando-lhe anualmente milhões sobre milhões derecursos penosamente arrancados ao povo laborioso,para constituir-se em Estados-Unidos da Europa e poder,enfim, viver na abundância do trabalho útil. O gládio deMarte continuou a dizimar os melhores cidadãos. Mas,como os homens não se decidiam a renunciar aospreconceitos e vaidades nacionais, coube à alma femininaa glória de salvar a Humanidade.

Sob a inspiração e direção de uma mulher superior, amaioria das mães coligou-se em toda a Europa paraeducar os filhos, e sobretudo as filhas, no horror dobarbarismo militar. As conversas familiares, os serõesnoturnos, os discursos e leituras punham de manifesto aestupidez dos homens, a frivolidade dos pretextos quelançaram as nações umas contra as outras, a falácia dadiplomacia, tudo envidando para exaltar o patriotismo edesvairar os espíritos, a inutilidade das guerras, oequilíbrio europeu sempre oscilante, j amais fixado, aruína dos povos, os campos juncados de mortos e feridos,rasgados à metralha - mortos e feridos que, horas antes,viviam gloriosa e utilmente os dons da Natureza... E asviúvas, os órfãos, a miséria, a fome, a morte, ainda... esempre. Uma só geração, assim esclarecida, houverabastado para livrar a infância desses remanescentes deanimalidade carnívora, incutindo-lhe horror e desprezopor tudo o que lembrasse a velha barbaria. As mulherestornaram-se eleitoras e, como tais, elegíveis. Elasobtiveram, antes de tudo, que a condição de elegibilidadeaos cargos administrativos importaria no compromissode combater os orçamentos militares, e foi na Alemanha

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que a evolução se operou mais facilmente, graças aointernacional socialismo. Nada obstant e o compromisso,uma vez eleitos, mais de metade dos deputados a elefaltaram, alegando razões de Estado. Confessavam haveralienado a independência pessoal e não poderemdesobedecer à palavra de ordem dos seus líderes! Naverdade, os governos recusavam de sarmar e osorçamentos de guerra continuavam sancionados.Imaginaram, depois, que, diferençando -se os militaresem cada país, sobretudo pelos costumes, seria talvezpossível suprimir os exércitos com a supressão dessescostumes. A proposição era, contudo, assaz simplistapara que pudesse lograr êxito. Foi então que as donzelasjuraram, entre si, não esposar militares nem militaristas.Renunciavam, dessarte, ao casamento, e mantiveram -sefiéis ao juramento.

Os primeiros tempos dessa liga foram assazdificultosos, mesmo para o belo sexo. Não fosse o temorda reprovação universal e mais de um coração ter -se-iarendido. E' que, aos rapazes não lhes faltavamqualidades pessoais, e os uniformes não haviam perdido ofascínio da elegância. Diga-se, a bem da verdade, quesempre houve algumas defecções; mas, como os casaisassim constituídos foram, desde logo, mal vistos eapontados como parias da sociedade, o exemplo nãofrutificou. A opinião pública se consolidara a tal respeitoe já não havia como contrariar a corre nte. Por toda àparte, viam-se nos logradouros públicos inscrições eapelos à paz universal.

Os belicosos são ladrões e assassinos! - eis umconceito dos mais lidos, notadamente em Berlim.

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Durante cinco anos, mais ou menos, não se efetuaraum só casamento. Na França, na Alemanha, na Itália emesmo na Inglaterra, todo cidadão era soldado. Ali,como nos demais países, o imposto de sangue fora votadoainda no século XX. Eles achavam -se prontos para seconfederarem, mas recalcitravam e divergiam porquestões de bandeira. As mulheres agiam com firmeza,sentiam consigo a chave do problema e que a sua decisãolibertaria da escravidão o gênero humano.

As objurgatórias apaixonadas de alguns homens,respondiam unânimes: Não! não mais queremos imbecis.Outras acrescentavam: Recusamo-nos a criar filhos parao matadouro. Se a teimosia continuasse, permaneceriamirredutíveis no juramento ou emigrariam para aAmérica, onde o militarismo havia desaparecido, já dealguns séculos. No Departamento da AdministraçãoEstatal (outrora Parlamento), os cidadãos maiseloqüentes reclamavam sem tréguas o desarmamento.Enfim, ao cabo de cinco anos, em face da muralha deoposição feminina, dia a dia mais espessa e irredutível, asdeputações internacionais, num impulso de eloqüenteunanimidade, reforçavam de bela retórica os argumentose apelos femininos, e, dentro de uma semana, odesarmamento estava decretado para todas as nações. ARepública alemã havia triunfado de todos os prejuízos epreconceitos, de que se fizera a primeira e maior v itima.

Estava-se então na primavera. O golpe não provocaranenhuma revolução. Inúmeros casamentos se realizaram.A Rússia e a Inglaterra haviam ficado fora do acordo,visto que o sufrágio feminino não era unânime nessespaíses. Mas, como no ano seguinte to dos os povos

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europeus se constituíram em Repúblicas, confederando -se num Estado único, a convite do governo dos EstadosUnidos da Europa, as duas grandes nações decretaram, aseu turno, o desarmamento gradual, por décadas.

Havia muito que as Índias se tinham emancipado daInglaterra e se constituído em Repúblicas. Quanto àRússia, mantinha sempre o governo monárquico. Osministérios da guerra foram suprimidos em toda a parte,como verdadeiras aberrações sociais, estigma infamante.Mediava-se, então, o XXIV século e daí por diante a idéiamesquinha de pátria foi substituída pelo consenso geralde humanidade. A selvajaria internacional sucedera umafederação inteligente...

Das instituições militares apenas restava a música,única fantasia agradável associada a o marcialismo, e quetodos procuravam conservar. As milícias especiais foramtambém conservadas, no só intuito de entreter esseespírito marcial de camaradagem tão alegre, brilhante esalutar. Com o correr dos tempos, nunca se chegou acompreender que tal música fosse inventada para levartropas ao matadouro.

Livre da servidão militar, a Europa houvera tambémde forrar-se imediatamente à praga do funcionalismoburocrático, que, por outro lado, ameaçava as nações deesgotamento, dada a sua pletora. Para isso , contudo, foipreciso uma revolução radical. Os parasitas doorçamento tiveram de ser eliminados sem restrições, edesde então a Europa elevou-se rapidamente num surtomaravilhoso de progresso social, científico, industrial eartístico.

Todos respiravam livremente, vivia-se enfim.

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Para pagar 700 bilhões por século, aos cidadãosafastados de todo o trabalho produtivo e parasubvencionar os encargos do funcionalismo, os governosse tinham visto na contingência de elevar os impostos acifras astronômicas. O imposto progressivo, criado noséculo XX, mal chegara para cobrir o déficit, emboraarrecadado por bilhões. De 31 de Dezembro de 1950 a 31de Dezembro de 1960, a França entrara na posse de todasas linhas férreas e, apesar dos reembolsos, enriquecerasubitamente com um capital de 20 bilhões. Mas esseacréscimo de capital já havia sido de antemão descontadodo orçamento e os orçamentos , e os impostos, em vez debaixarem, subiram ainda mais nos séculos XX e XXI.Afinal, acabaram tudo tributando: o ar respiráve l, aágua das fontes e as fluviais, a luz artificial e a natural, opão, o vinho, todos os artigos de consumo, habitações,ruas, cidades, campos, animais de toda a espécie,inclusive aves de gaiola, instrumentos e maquinismosquaisquer, os empregos, os cel ibatários, os casados, asamas, os móveis, tudo, enfim, que representasse utilidadeou valor. Nesse ritmo, cresceram os impostos, até o diaem que o seu montante igualou a exata produção dotrabalho, exceto o indispensável - o pão cotidiano. Nessedia, todo o trabalho paralisou. A vida afigurava -seimpossível. Daí, a grande revolução internacionalanarquista, a que aludimos no começo deste livro, e asque se lhe seguiram.

Todos os Estados incidiram sucessiva mente embranca-rota.

Mas, essas revoluções não tinham logrado livrar aEuropa, definitivamente, da antiga barbaria. Os

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prejuízos patrióticos já começavam a endividar o mundo,e foi ainda à liga feminina que a Humanidade deveu asua libertação.

Viu-se, então, uma coisa incrível, inadmissível, semprecedentes na História: - diminuição dos impostos!Aliviado de nove décimos, o orçamento não se aplicousenão na manutenção da ordem interna, na segurançados cidadãos, nas escolas de todas as categorias, noestímulo de novas investigações, no progresso crescentedas artes, indústrias e todas as manifestações deatividade intelectual. Com isso, a iniciativa individualsobrepujara a velha centralização que por tantos séculoshavia, dissipando as finanças, atrofiado ou abafado asmais ardentes e fecundas tentativas.

E assim morrera a burocracia com todas as suashonras e prerrogativas. A parvoíce do duelo nãosobrevivera de muito a da guerra. Não havia já quempudesse conceber que dissídios quaisquer se resolvessemracionalmente a tiros ou estocadas, da mesma forma q ueninguém admirava a galanteria dos oficiais franceses, dechapéu na mão, na batalha de Fontenoy, convidando osSrs. Ingleses a dispararem primeiro. Tudo isso nãopassava, mesmo aos olhos das crianças, de um grande eestúpido anacronismo.

A despeito de todas as inconseqüências do cepticismobalofo, da incompetência habitual, da nulidade científicae de umas que outras prevaricações de alguns políticos, aforma republicana sobrelevara a todos os outros regimes,salvo no predomínio democrático. Reconheceram, afinal,que não pode haver igualdade intelectual e moral entreos homens, e que melhor fora confiar o governo a um

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grupo de espíritos de escol, do que entregá -lo a umaturba de ambiciosos, cujo mérito principal consistia naforça dos pulmões e na loquacid ade inexaurível, semoutro ideal que o de tirarem partido pessoal no jogoconstante das paixões populares. Verificara -se,outrossim, que uma Câmara composta de centenas dehomens tinha menor capacidade de julgamento que umsó homem. Os erros grosseiros, os excessos brutais dademagogia tinham, mais de uma feita, colocado aRepública em perigo de morte. Mas, dado que ahereditariedade monárquica também não garantiamaiormente os deveres de um governo racional,acabaram adotando uma Constituição patrocinada p orlimitado número de cidadãos, eleitos sob garantias de umsufrágio também selecionado e restrito. Os títulos egalardões não mais se distribuíam ao primeiro pleiteanteque os ambicionava, e sim aos estudiosos que, por seuscomprovados méritos, a eles fizessem jus.

A uniformidade dos povos, das idéias, dos idiomasfora o complemento da dos pesos e medidas. Nenhumanação recusara o sistema baseado na mensuração dopróprio orbe. A moeda tornou -se uma só, um sómeridiano inicial regulou a geografia. Esse meri dianopassava pelo Observatório de Greenwich e era no seuantípoda que o dia mudava de nome, às 12 horas. Omeridiano de Paris, havia muito, caíra em desuso. Aesfera terráquea fora, durante alguns séculos,convencionalmente dividida em fusos de 24 horas; mas,as diferenças da verdadeira hora acarretandoirregularidades ilógicas e inúteis, as horas locaisabsolutamente necessárias às observações astronômicas

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haviam reaparecido como satélites da hora universal,contava-se, então, consecutivamente de 1 a 4 e não maisinfantilmente, como outrora, duas vezes 12 horas.

Transformações não menos radicais houvera nasciências, nas artes, nas indústrias e, sobretudo, naliteratura. A classificação dos conhecimentos humanos,do ponto de vista do seu valor intrínseco, mudou com oprogresso relativo de cada uma.

A meteorologia, por exemplo, tornou -se uma ciênciaexata e atingiu a precisão da astronomia.

Chegara-se a prever o tempo para o século XXX, qualprevemos hoje um eclipse, ou a visita de um cometa. Osantigos almanaques foram substituídos por anuáriosseguros, prenunciando com grande antecipação todos osfenômenos da Natureza. Festividades públicas, diversõesparticulares, viagens e passeios já se não adiavam pormau tempo e, no mar, tão-pouco, os navios se deixavamcolher por tempestades. As florestas haviamdesaparecido inteiramente, não só para cultivo do solo,como para atender à fabricação do papel. O juro legal damoeda baixara a 1/2 %. Os grandes capitalistas foramrelegados ao plano tradicional das idades fó sseis. Aeletricidade substituíra o vapor. Estradas de ferro, tubospneumáticos, funcionavam no transporte de cargas. Asviagens eram feitas de preferência em balões dirigíveis,aeronaves elétricas, aeroplanos, helicópteros, uns mais,outros menos pesados que o ar. Os antigos vagões sujos,fumarentos, empoeirados, barulhosos e trepidantes, comapitos estridentes das locomotivas, deram lugar aosberços aéreos, leves, rápidos, elegantes, a fenderemsilenciosamente as altas e puras camadas atmosféricas.

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Pelo só advento da navegação aérea, as fronteiras,que aliás nunca existiram para os sábios em suas relaçõesmútuas, teriam sido suprimidas, se antes o não fossempelos progressos da razão. As constantes viagens pelasuperfície do globo redundaram no internacion alismo ena livre e incondicional permuta das idéias. Abolidas asalfândegas, riqueza universal, nem exércitos, nemmarinha, nem aduanas, nem tributos quaisquer. Toda amáquina social simplificara-se. A indústria realizouconquistas extraordinárias. Desde o século trigésimo queo mar chegava a Paris mediante um grande canal. Navioselétricos ali aportavam, procedentes do Atlântico e doPacífico, atravessando o istmo do Panamá. Esses navioscobriam em poucas horas o percurso do cais de Saint -Denis ao porto de Londres. Muita gente os utilizavaainda, apesar dos comboios aéreos regulares, do túnel eda ponte sobre o canal da Mancha.

Para além de Paris reinava a mesma atividade, pois ocanal dos Dois-Mares ligando o Mediterrâneo aoAtlântico, de Narbonne a Bordé us, suprimira a grandevolta pelo estreito de Gibraltar, e, por outro lado, umtubo metálico, constantemente percorrido por comboiosde ar comprimido, ligava a República da Ibéria(antigamente Espanha e Portugal) a Argélia ocidental(antigo Marrocos). Paris e Chicago contavam, então,nove milhões de habitantes. Lond res dez e New-Yorkdoze milhões. Prosseguindo em sua marcha para oeste,Paris estendia-se da confluência do Marne para além deS. Germain. A velha cidade apenas se reconheceria porantigos monumentos arruinados, dos séculos XIX e XX.Para fixar apenas alguns aspectos, diremos que a cidade

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era iluminada por cem luas artificiais, faróis elétricossuspensos de torres altas de 1.000 metros. Chaminés coma sua fumarada haviam desaparecido, pois todo o calorera o do solo, ou produzido por usinas hidroelétricas. Anavegação elétrica suprimira todos os veículosprimitivos, das épocas ditas bárbaras. Ninguém via lamanem poças da água pelas ruas, pois que à primeira gotade chuva os toldos de vidro eram lo go corridos, e osmilhões de guardas-chuvas fósseis ficavam assimsubstituídos.

Enfim, o que chamamos hoje civilização, não passavade primitivismo, em relação aos progressos realizados.

Todas as grandes cidades haviam progredido emdetrimento dos campos. A agricultura era explorada porusinas elétricas; o hidrogênio era extraído das águas domar; as quedas da água e as marés produziam luz agrandes distâncias; os raios solares armazenados no estiodistribuíam-se no inverno, e as estações haviam mais oumenos desaparecido, sobretudo depois que os poçossubterrâneos traziam à superfície do solo a temperaturainterior do globo, que parecia inesgotável. Todos oshabitantes da Terra podiam intercomunicar -se portelefone. A telefonoscopia dava a conhecer, em toda aparte, imediatamente, quaisquer acontecimentos maisimportantes e interessantes. Uma peça teatral,representada em Chicago ou em Paris, era ouvida ouvista, simultaneamente, em todas as cidades do mundo.Calcando um botão elétrico, poder -se-ia, à vontade,assistir ao espetáculo preferido. Uno simples comutadorlevava instantaneamente aos confins da Ásia e deixavaentrever os bailarinos de uma festividade em Ceilão ou

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Calcutá. Não só se ouvia como via, à distância: o engenhohumano chegara mesmo a transmi tir, por influênciascerebrais, as sensações tácteis, bem como as olfativas. Aimagem refletida podia, em dadas condições especiais,reconstituir integralmente a pessoa ausente.

No quinquagésimo século inventaram -semaravilhosos aparelhos de física e de óp tica. Uma novasubstância substituiu o vidro e acarretou à Ciênciaresultados absolutamente imprevistos. Novas energiasconquistadas à Natureza.

E o progresso social acompanhara o científico. Asmáquinas elétricas substituíram gradualmente o trabalhomanual. Para os serviços triviais cotidianos, houve quedesistir dos domésticos ou criados humanos, visto não seencontrar um só que não explorasse odiosamente opatrão, já exigindo salários principescos, jásistematizando o roubo. Ao demais, em todos os centro spopulosos haviam desaparecido os mercados públicos,abandonados pelos clientes devido à grosseria dosmercadores. Essa, a razão que determinara a supressãoinsensível de quaisquer intermediários e a recorrer, tãodiretamente quanto possível, às fontes da Natureza, como auxílio de aparelhos automáticos, dirigidos por símios.Sim; nada de serviçais quaisquer, que não macacosadestrados. Demais, a vassalagem humana haveriamesmo de acabar, como sucedera outrora com aescravidão. Além disso, os regimes de al imentaçãotinham-se inteiramente transformado. A síntese químicaconseguira substituir açúcares, albuminas, amidos,gorduras, extraídos do ar, da água e dos vegetais,compostos de combinações mais vantajosas, em

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proporções sabiamente calculadas, de carbono ,hidrogênio, oxigênio, azoto, etc. Os banquetes maissuntuosos realizavam-se, então, não mais em torno demesas fumegando destroços de animais estrangulados,sangrados ou asfixiados - bois, carneiros, porcos, frangos,peixes, etc., - mas, em salões elegantes, ornados dearbustos e de flores, num ambiente leve, que a música eos perfumes enchiam de harmonias. Homens e mulheresnão mastigavam mais com requintes de brutal glutonariapedaços de animais imundos, sem mesmo separar o útildo inútil.

De começo, passaram a destilar as carnes; depois,visto que os animais se constituem, também eles, deelementos tirados dos reinos mineral e vegetal,recorreram diretamente a esses elementos.

Era em bebidas esquisitas, frutas, bolos,comprimidos, que se absorviam os princípios necessáriosà reparação dos tecidos orgânicos, sem necessidade demastigar carnes. De resto, a eletricidade e o Solfabricavam perpetuamente a análise e a síntese do ar eda água.

Os médicos haviam desaparecido, por inúteis. Umahigiene racional, adequada aos temperamentos, idade esexo, substituíra em trinta séculos a velha medicinainteresseira e cega.

Cada qual reconhecera que, estudando -se a si mesmo,tornava-se supérfluo e perigoso oferecer o organismo eexperiências tateantes da medicina empí rica, servidapelos tóxicos farmacêuticos. O que só havia erahigienistas dedicados à conservação da saúde normal, ecirurgiões para os casos acidentais.

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A partir do sexagésimo século, sobretudo, o sistemanervoso se refinara e desenvolvera sob modalidadesimprevistas. O cérebro feminino conservara -se sempreum pouco menor que o masculino e, diga -se, pensandosempre um tanto diferente (sua esquisita sensibilidadesempre timbrada pelo sentimentalismo, antes que oraciocínio completo tenha tempo de se formar nas célulasmais profundas) e o crânio também diminuíra, com afronte mais larga, mas, tão elegantemente plantada numpescoço flexível, tão altamente destacada do bustoharmonioso, que provocava, como nunca, a admiraçãodo homem, Em ficar comparativamente menor que a dohomem, a cabeça da mulher tinha aumentado, todavia,com o exercício das faculdades intelectuais; é que ascircunvoluções cerebrais se fizeram mais numerosas emais profundas, e isto, tanto nos cérebros femininoscomo nos masculinos. Em suma: a cabeça, em geral,aumentara em volume. Em compensação, o corpodiminuíra, não se encontravam mais gigantes.

Quatro causas permanentes tinham contribuído paramodificar insensivelmente a forma humana -desenvolvimento do cérebro e das faculdadesintelectuais; diminuição dos trabalhos manuais e dosexercícios corporais; transformação do alimento e seleçãonupcial. A primeira tivera por efeito aumentar a cabeçaproporcionalmente ao resto do corpo; a segunda,diminuir a força dos braços e das pernas; a terce ira,restringir a amplitude do ventre, apequenando, afilandoe perolando os dentes; a quarta, ao invés, como quetendera a perpetuar as formas clássicas da belezahumana, na estatura masculina, na nobreza da fronte

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elevada para o céu, nas curvas firmes e g raciosas damulher.

No centésimo século da nossa era, não houve mais queuma só raça, assaz pequena de porte, branca, e na qualos antropologistas poderiam talvez reencontrar vestígiosde anglo-saxônios e chineses.

Nenhuma outra raça veio substituir e domi nar anossa. Quando os poetas haviam anunciado que o homemacabaria, com o progredir maravilhoso de todas ascoisas, adquirindo asas e voando com a só energia dosseus músculos, não tinham estudado as origens daestrutura antropomórfica. Não lhes ocorreu q ue, para terao mesmo tempo braços e ossos, o homem deveriapertencer a uma ordem zoológica de sextúpedes,inexistentes em nosso planeta, ao passo que ele proveiodo quadrúpede, cujo tipo foi gradualmentetransformado. Entretanto, se de fato não adquirira novosórgãos naturais, não deixava de os ter artificiais. Elesabia, notadamente, guiar-se nos ares, planar nas alturasdo firmamento, servindo-se de aparelhos elétricos muitorápidos e simples.

Compartilhava com as aves os domínios daatmosfera. E' muito provável que se uma raça de grandesvoadores pudesse adquirir, séculos o fora, graças àfaculdade de observação, um cérebro análogo ao homem,ainda o mais primitivo, essa raça não tardaria a dominara espécie humana, substituindo-a por uma nova raça.Mas, como a intensidade do peso terrestre opõe -se a queos seres alados adquiram a qualquer tempo um taldesenvolvimento, a Humanidade - evolvida - ficarasempre soberana deste mundo.

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Chegada ao ducentésimo século, a espécie humanadeixara de apresentar qualquer semelhança física com osmacacos. Do ponto de vista moral perdera, também, aafinidade com os animais carnívoros. Todas as divisõesnacionais das épocas remotas haviam sucessivamentedesaparecido, após reações e flutuações formidáveis. AEuropa, uma vez pacificada, sofrera a inundaçãoasiática. Enquanto havia bárbaros, as civilizações eramperiodicamente agredidas pela brutalidade da força, devez que, chegados ao bem-estar, à riqueza, à ordem, aosaber, é que os povos deixam de conceber separaçõesnacionais, perdem a noção de pátria e acabamsucumbindo ao embate invasor dos vizinhos aindabarbarizados. Tal fora à sorte do Egito, da Pérsia, daGrécia, de Roma, da França e, finalmente, da Europatoda. Primeiro os eslavos, depois os chineses, haviamdominado. Mas, com a generalização do progressomilenar, as civilizações ressurgiam sempre maisaprimoradas e um tanto mais fortes, de sorte que obarbarismo acabara por desaparecer inteiramente daface da Terra. Com o desaparecimento da força bruta, aHumanidade idealizara e começara a viver pelo espírito.

CAPITULO IIAs metamorfoses

Vidi ego, quod fuerat quondam solidissima tellus.Esse fretum; vidi fractas eequore terras.Et procul a pelago conchoe jacuere marinae,

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Et vetus inventa est in montibus anchora su mmls.OVIDIUS, Metamorph. XV 262.

Conhecida é a lenda do Árabe Kazwini, contada porum viajante do século XIII e que não tinha, portanto,qualquer noção de longevidade das épocas da natureza.

Passando certo dia - diz ele - por uma cidadeantiqüíssima e muito populosa, perguntei a um de seushabitantes quantos anos contava a sua fundação. De fato- respondeu -, é uma cidade importante, esta, mas nósnão lhe sabemos a idade e os nossos antepassados eram,neste particular, tão ignorantes quantos nós.

Cinco séculos mais tarde, passava eu pelo mesmo sítioe não pude perceber nenhum vestígio da cidade.Perguntei a um camponês, entretido a colher lenha, seera ali que demorava a antiga cidade e, no casoafirmativo, há quanto tempo fora destruida. Para dizerverdade - respondeu -, nada lhe posso dizer e atéestranho a pergunta, porque este terreno nunca passoudisto. Então, não existiu aqui uma grande cidade? -indaguei. Nunca; a menos que possamos concluir peloque não vimos; além de que, nossos pais também jam aisnos falaram de tal coisa.

Em lá regressando outra vez, passados mais dequinhentos anos, encontrei o terreno invadido pelo mar ena praia um magote de pescadores, aos quais pergunteiquando se dera aquela transformação. Isso é lá pergunta

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que nos faça um homem como vós? - disseram eles. - Poisisto aqui sempre foi o que é. Mais quinhentos anosdobados, em lá regressando, vi que tudo haviadesaparecido. Informei-me de um único homem, láencontrado, e a sua resposta foi à mesma que asanteriores.

Finalmente, permeado igual período de tempo, volteipela última vez e lá encontrei uma cidade populosa emais rica que a primeira por mim visitada; e, quandopretendi inteirar-me da sua origem, obtive esta resposta:a data de sua fundação perde -se na noite dos tempos,ignoramos a sua evolução e os nossos antepassados já nosdiziam a mesma coisa, isto é : sabiam tanto quanto nós.

Não temos aí a imagem da fugacidade da memóriahumana e da estreiteza dos nossos horizontes, no tempocomo no espaço? Somos levados a crer que a Terrasempre foi o que é, e como é. Dificilmente nos damosconta das transformações seculares que ela temexperimentado. A vultuosidade desses tempos nosesmaga como, em astronomia, a enormidade do espaço.

Entretanto, tudo muda, tudo se transforma, tudo semetamorfoseia. Dia virá em que Paris, foco atrativo detodas as nações, verá palecer o seu brilho, deixará de sero farol do mundo.

Depois da fusão dos Estados-Unidos da Europa emuma confederação única, a República russa formara, dePetersburgo a Constantinopla, uma espécie de barreiraao surto da emigração chinesa, que já havia fundadocidades populosas nas margens do mar Cáspio. Asnacionalidades antigas, porém, haviam desaparecido como progresso. As bandeiras européias passaram de moda,

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haviam-se proscrito pelos mesmos motivos. Ascomunicações de leste a oeste, entre a Europa e América,tornaram-se mais a mais fáceis; o mar deixara de oporobstáculos à marcha da Humanidade no sentido do Sol.Aos territórios exauridos, da Europa ocidental, aatividade industriosa preferira as terras novas do vastocontinente americano. Desde o século XXV o foco dacivilização fulgurava às margens do lago Michigan, emuma como nova Atenas de 9.000.000 de habitantes, igualà Paris. Contudo, não tardou seguisse a bel a capitalfrancesa o destino de suas irmãs mais velhas: - Roma,Atenas, Mênfis, Tebas, Nínive, Babilônia. Os grandestesouros, os recursos de toda ordem e as atrações eficazesdeslocaram-se, transpuseram o oceano, estavam alhures.

A Ibéria, a França, a Itá lia, pouco a poucodespovoadas, viram estender-se à solidão sobre as suasvelhas cidades em ruínas. Lisboa havia desaparecido,destruída pelas ondas. Madrid, Roma, Nápoles eFlorença não passavam de escombros, e Paris, Lião eMarselha não tardaram a acompa nhá-las na mesmaderrocada. O tipo humano e os idiomas sofreram taltransformação que nenhum etnólogo ou lingüista seriacapaz de encontrar resquícios do passado. Havia muitoque já se não falava o francês, o inglês, o alemão, oitaliano, o espanhol, o português. A Europa emigrarapara além do Atlântico e a Ásia se deslocara para aEuropa. Os chineses, em número de um bilhão, tinham,insensivelmente, invadido toda a Europa ocidental.Misturados à raça anglo-saxônia, havia, de algum sedesdobrara, qual rua interminável, de cada lado do canaldos Dois-mares, de Bordéus a Tolosa e a Narbona. As

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causas da fundação de Lutécia na ilha do Sena, e quehaviam gradualmente desenvolvido a cidade dosParisienses até o século XXV, não mais existiam e Parisentrara em rápida decadência. O comércio apossara -sedo Mediterrâneo e das grandes rotas oceânicas, e o canaldos Dois-mares era um empório mundial.

As nações a que chamamos modernas haviam -seeclipsado, como as antigas. Depois de uma existência bempeculiar, de mais ou menos dois mil anos, a França sediluíra no Estado europeu, no século XXVIII, o mesmoacontecendo à Itália no XXIX e à Alemanha no XXXIII.A Inglaterra, essa, disseminara-se por todos os mares. Avelha Europa oferecia ao olhar e ao pensamentohumanos o mesmo panorama das planuras da Assíria, daCaldeia, do Egito. Novos tempos, nova gente. Seresoutros povoaram as antigas cidades. Assim que, emnossos tempos, Atenas e Roma ainda sobrevivem, massua fisionomia é outra, e há muito desapareceram docenário os primitivos gregos e romanos.

As costas do sul e do oeste, da antiga França, tinhamsido protegidas por diques, a fim de barrar a invasão domar; mas, descurados o norte e o nordeste, devido aoafluxo das populações do sul e sudoeste, a depressão lentae constante das praias continentais, observadas já naépoca de César, chegou abaixo do nível do mar e este,continuando a alargar a Mancha e a carcomer as rochas,do Havre à ponta do Hélder, sobrepujara os diquesholandeses invadindo os Países Baixos, a Bélgi ca e onorte da França. Amsterdam, Utrech, Rotterdam,Antuérpia, Bruxellas, Lille, Amiens e Ruão submergirame os navios flutuavam sobre os seus escombros. Paris

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mesma, depois de arvorada em porto de mar durantemuito tempo, vira as águas subirem às torres de Notre-Dame e cobrirem de ondas inquietas a planíciememorável onde, por tantos e longos anos, se jogaram osdestinos da Terra. Dera-se com a França a mesma coisaque com a Holanda de outros tempos, cujas cidadestragadas pelo mar deixavam entrever por longo tempo,sob o lençol transparente das águas, a m agnificência dassuas ruínas. (8)

Sim! Paris, a bela Paris, a velha e gloriosa cidade jánão passava de um montão de escombros. O soloeuropeu, principalmente a oeste e norte, tinha baixadomuito, à razão de 30 centímetros cada século, e avançadoS metros sobre as terras desagregadas. A cartageográfica da França mudara lentamente. A depressãofora de 3 metros por 1.000 anos, ou 24 metros em 8.000anos; e, visto que o nível do Sena, em Paris, não passa de25 metros acima do mar, as grandes marés vinhamlamber o cais parisiense, junto aos penedos de SãoGermano.

Simultaneamente, a erosão marítima arrebatara aocontinente uma faixa de 24 quilômetros de largura, emtodo o litoral. O desgaste das montanhas, de vido àschuvas, aos regatos, às torrentes, tinha, em 8.000 anos,alterado o relevo continental de uns 0,m 56 apenas. Mas,nem por isso o nível do mar se elevara, visto haverdiminuído a quantidade da água, mais ou menos namesma proporção.

Num lapso de tempo mais ou menos duplo, seja em17.000 anos, a depressão atingira a 50 metros. Insensível,mas progressivamente abandonada, Paris acabara

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submergindo-se de todo. O forasteiro errante pelasruínas espalhadas nas colinas, mal poderia localizar oLouvre, as Tulherias, o Instituto; enfim, tudo o queconstituíra as velhas glórias da cidade morta.

Curioso ver a variação geográfica que uma fracadiferença de nível acarreta. Tracemos dois mapas daFrança, um com o seu território acima 50 metros do nívelatual, como foi outrora, e outro com uma depressãoequivalente, que o futuro parece reservar -lhe,confrontando-as. Que transformação! Todos os rios daantiga França a correrem como entre ilhas! O eixo daprovíncia dos Estados Unidos da Europa, que substituírao povo francês, desaparecera e traçava -se agorageograficamente, de Colônia ao canal dos Dois -Mares.Desde então, Paris e a França foram apagadas dahistória do nosso mundo. A Holanda, a Bélgica. e umaparte norte da França haviam submergido inteiramente.Amsterdã, Rotterdam, Anvers e Lille desapareceram sobas águas. Mais tarde, o mar chegava a Londres, apequena Bretanha era uma ilha.

De século para século a fisionomia da Europa e domundo inteiro modificara-se. Os mares ocupavam oscontinentes, novos sedimentos depositados na profundezadas águas recobriam as camadas desaparecidas,formavam novas camadas geológicas. Por outro lado, oscontinentes substituíram os mares. Nas Bocas do Ródano,por exemplo, a terra firme que, a princípio, ganhara aomar o solo que se estende de Arles ao litoral, continuaraa estender-se para o sul, Na Itália as aluviões do Pócontinuaram avançando no Adriático, assim como as doNilo, Tibre e vários rios mais recentes, no Mediterrâneo.

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Além disso, as dunas e restingas litorâneas tinhamaumentado em proporções variáveis os domínios da terrafirme. A configuração dos continentes e dos maresmudara a ponto de tornar irreconhecíveis as velhascartas geográficas.

Já não seria por períodos de cinco séculos que ohistoriador seguisse, qual o árabe do século XIII, cujalenda há pouco registramos. O décuplo desse período malbastaria para evidenciar sensivelmente as modificaçõesda crosta terráquea, de vez que 5.000 anos nãorepresentam mais que simples ruga no bojo das eras. E'por dezenas de milhar de anos que nos devemos pautar,para estimarmos o conjunto dos continentes submersos eas novas terras emergidas à luz do Sol, em conseqüênciado desnivelamento da crosta sólida, cuja espessura edensidade variam conforme a região, e cujo peso sobre onúcleo central, ainda plástico e móbil, faz oscilar as maisvastas regiões. Uma insignificante variação de equilíbrio,o mínimo movimento de básculo, de menos de 100metros, muitas vezes, sobre os 12.000 quilômetros dodiâmetro do globo, basta para altera r a face do mundo.

E, se nós entrevirmos a história planetária deconjunto, não mais por períodos de dez, vinte, ou trintamil, mas de cem mil anos, por exemplo, constataremosque dentro de uma dessas dilatadas épocas, seja ummilhão de anos, a superfície do globo se tenhametamorfoseado muitas vezes, sobretudo nas regiões emque atuam mais ativamente os agentes internos eexternos. Avançando a um ou dois milhões de anos,futuro a dentro, presenciaremos um prodigioso fluxo erefluxo dos seres e das coisas. Nesse desdobro de dez ou

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vinte mil séculos, quantas vezes o mar não teria voltado arolar suas ondas sobre as prístinas cidades humanas!

E quantas vezes a terra firme não teria ressurgido dosabismos oceânicos, revigorada e virginal! Essas variaçõeshaviam-se operado outrora, mediante revoluções bruscas- aluimento do solo, deslocação de nível, rupturas dediques naturais, tremores de terra, erupções vulcânicas,afloramento de montanhas - isso, nos tempos primevos,quando o planeta ainda quente e líquido nã o se revestiasenão de fina película, mal coagulada num oceanoardente. Mais tarde, as transformações tornaram -se maislentas, à medida que a crosta se adensava e consolidava.A contração gradual do globo originara a formação devácuos, abaixo do invólucro sólido, a queda defragmentos desse invólucro sobre o núcleo pastoso e,enfim, movimentos de básculo, que transformaram osrelevos do solo. Mais tarde ainda, modificaçõesinsensíveis foram produzidas pelos agentes externos. Deum lado os rios, carreando para os estuários os destroçosdas montanhas, tinham alteado o fundo do mar eaumentado, lentamente, os domínios da terra, entupindode século em século os antigos portos; e, por outro lado, aação das vagas e das tempestades, corroendoconstantemente as rochas, tinha diminuído o domínio doscontinentes em benefício do mar.

Perpetuamente e sem tréguas, a configuração dascostas marítimas se transformara, mar e terrapermutaram de leito, mais de uma vez. Nosso planetatornara-se para o historiador um mundo ou tro,inteiramente diverso.

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Tudo mudara. Continentes, mares, acidentesgeográficos, raças, idiomas, costumes, corpos, espírito,idéias, sentimentos, tudo! A França submersa, o fundo doAtlântico emergido; uma parte da América desaparecida,um continente no lugar da Oceania; a China afogadatambém; a morte onde existira vida, a vida onde habitaraa morte. E o olvido eterno de tudo o que fizera outrora agrandeza e a glória das nações! Se a Humanidade atualemigrasse para Marte, talvez se visse lá menosexpatriada do que voltando a Terra nesses longínquosevos futuros.

Da mesma forma, de tempos em tempos, a fauna doglobo se transformara gradualmente. As espéciesselvagens, como leões, tigres, hienas, panteras, elefantes,girafas, tanto quanto baleias, tubarões e focasdesapareceram por completo. O mesmo se dera com asaves de rapina. O homem havia conquistado edomesticado as espécies utilizáveis, destruindo as outrase senhoreando inteiramente o mundo.

O predomínio da natureza recuara constantementeante as vitórias da civilização. Todo o planeta era umcomo jardim da humanidade, cultivado científica,inteligente e racionalmente. Nele, não mais se viramárvores frutíferas e vinhedos florirem antes dos de gelosda primavera; nem saraivadas derrubando frutos, nemventanias vergando trigais, nem rios inundando cidades,nem chuvas, nem secas sacrificando colheitas, nemexcessos de frio ou de calor ceifando vidas. Durante oinverno, utilizava-se o calor solar, cuidadosamentearmazenado no estio.

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A ordem natural, tanto quanto a social, estavaorganizada. Os trabalhadores já não morriam de fome,dizimados pela indigência, e os ociosos e sibaritastambém não morriam de apoplexia ou gastralgia, pormuito comer.

Porque o reinado era, só e só, da inteligência.

CAPITULO IIIO apogeu

Des a11es! des Biles!Des afiles au-dessus de Ia vie! Des afies par delà de Ia

mort!RUCKERT.

O progresso é a lei suprema, imposta pelo Criador atodas as criaturas. Cada ser procura o melhor. Nósignoramos de onde viemos e para onde vamo s. Ossistemas solares conduzem os mundos através do espaçoinfinito. Nós não vemos a origem, nem o fim, e o porquêpermanece desconhecido. Mas, em nossa esfera depercepção tão restrita, tão limitada e incompleta, malgrado à morte dos indivíduos, das esp écies e dos mundos,constatamos que o progresso rege a natureza e que todo

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ser criado evolve, constantemente, para um grausuperior. Todos querem subir. Ninguém quer descer.

Através das metamorfoses seculares do planeta, aHumanidade continuara a engrandec er-se com esseprogresso, que lhe é lei suprema e, desde as origens desua existência planetária, até o momento em que ascondições de habitabilidade entraram a decrescer, todosos seres vivos se tinham embelezado e enriquecido deórgãos mais perfeitos. A árvore da vida terrestreaflorada com os protozoários rudimentare s, acéfalos,cegos, surdos e mudos, quase totalmente desprovidos desensibilidade, tinha-se alçado à luz, adquiridosucessivamente os maravilhosos órgãos dos sentidos echegara ao homem, que, aperfeiçoando-se por sua vez, deséculo em século, transformara-se de selvagem primitivo,escravo da natureza, no soberano intelectual, dominadordo mundo e procurando fazer dele um paraíso defelicidade, de ciência e de voluptuosidade.

A Ciência havia transfigurado o planeta; seushabitantes viviam, enfim, no céu, sabendo -se delecidadãos. A física e a química contavam tantosprogressos quanto a astronomia. A indústria, em toda aparte, substituíra por máquinas automáticas o trabalhomanual. Culminavam as artes nas mais nobres quãobelas concepções humanas.

A sensibilidade nervosa do homem adquiriradesenvolvimento prodigioso. Os seis velhos sentidos davista, audição, olfato, paladar, táctil, genésico, tinham -seelevado gradualmente acima das grosseiras s ensaçõesprimitivas, para atingir uma delicadeza requintada.Graças ao estudo das propriedades elétricas dos seres

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vivos, um sétimo sentido - o elétrico, se criara, por assimdizer, ,.e todas as peças, e todos os homens e mulherespossuíam a faculdade mais ou menos vivace e ativa,conforme o seu temperamento, de atrair ou repelir oscorpos vivos ou inertes. O sentido predominante, porém,o que representava o maior papei nas relações humanasera indubitavelmente o oitavo - o sentido psíquico, quepermitia aos espíritos comunicarem-se, à distância.Outros dois sentidos foram entrevistos, mas sofreramparalisação fatal no seu desenvolvimento, quase aonascer. O primeiro tivera por objetivo a visibilidade dosraios ultravioleta, tão sensíveis aos processos químicos,mas, completamente obscuros para a retina humana. Osolhos humanos que procuraram exercitar -se nessesentido, quase nada alcançaram em faculdades novas, emuito perderam das antigas. O segundo tivera por fim aorientação, mas quase nada conseguira, me smoprocurando pesquisar e adaptar -se ao campo domagnetismo terrestre.

Ninguém lograva, tão-pouco, eximir os ouvidos aosdiscursos soporíferos, qual se faz com os olhos fechando -os à vontade, e como se faz noutros mundos maisevolvidos.

Nosso organismo imperfeito opusera-se, fatalmente, amais de um progresso desejável.

A descoberta da periodicidade sexual do óvulofeminino tinha acarretado, por algum tempo, umdesequilíbrio alarmante quanto à proporcionalidade dosnascimentos, levando a crer que só houves se filhosvarões. E o ritmo só se restabeleceu em virtude de umaverdadeira transformação social.

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Pouco a pouco, em certas regiões, as mulheresdeixavam de ser mães e atribuíam os encargos da função,julgados prejudiciais à elegância e ao comodismo, àsmulheres ditas do povo, e dos campos. O amor tornara -sea lei suprema, como levando em si o seu objeto, emdetrimento do velho preceito de perpetuidade da espécie,para só envolver a criatura em gozos e afagos. A beleza eo perfume das flores também fazem, às vezes, esquecer osfrutos. De resto, muito tempo havia que só das camadaspopulares saíam às gerações robustas. Os círculosaristocráticos, enervados, apenas davam raros e mofinosrebentos. O que se via, então, nas cidades esplendentes,era uma nova raça de mulheres a derramarem no mundoo encanto caricioso e lascivo das voluptuosidadesorientais, ao demais refinadas pelos progressos de umluxo extravagante.

Os costumes e as convenções sofreram pro fundasalterações. A infância era educada pelo Estado, asheranças foram radicalmente suprimidas. Os vínculos docasamento legal já não existiam, nem lei alguma queencadeasse dois seres. As mulheres, eleitoras e elegíveis,tendo conquistado posição destacada na legislatura,esforçaram-se por manter íntegras as antigas vantagensdo instituto nupcial; contudo, não puderam impedircaíssem elas em progressivo desuso. As uniões inspiradassó no amor, ardente e compartido, substituíram ospartidos de mera conveniência econômica ou social.

A livre escolha dos nubentes, a seleção e ahereditariedade produziram uma raça de homensregenerados, qual se houvera saído da terra fecundada

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por novo dilúvio, para novamente transformar afisionomia do mundo.

Novas civilizações se sucederam, fluxo e refluxo damaré imensa da história humana. A matéria humilhou-sepouco a pouco, graças ao domínio ascendente do espírito.

Os operários intelectuais, cujos dias fogem tãorápidos, tinham conseguido prolongar de duas horas oseu trabalho consagrado a pesquisas úteis àHumanidade, roubando essas duas horas aos nulos deinteligência, que procuram matar o tempo. De comumacordo, os primeiros estabeleceram dias de 16 horas e ossegundos de 12, no sentido de que os primeiros dormiam6 horas, enquanto os segundos soneavam 10, durante asquais, hábeis técnicos lhes subtraíam, numa operaçãosutil de alguns segundos, certa dose de energia vital, quetransfundiam nas artérias dos primeiros. Assim, eracomo se todos houvessem dormido 8 horas, mas, com umganho real de 2 horas a favor dos homens úteis.

O oitavo sentido - o psíquico, representava um grandepapel nas relações humanas.

O desenvolvimento das faculdades intelectuais e acultura dos estudos psíquicos haviam transfiguradocompletamente a nossa raça. Descobriram -se na almaforças latentes, dormitantes no período primário dosinstintos grosseiros, que durara mais de um milhão deanos. À medida que a alimentação bestial de tantos anostornara-se de ordem química, as faculdades se haviamdespertado e acendrado, num surto magnífico. Desdeentão, não mais se pensava como atualmente. As almas secomunicavam à distância. As vibrações etéreas,resultantes dos movimentos cerebrais, transmitiam -se

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por virtude de um magnetismo transcendente, do qualaté as crianças podiam utilizar -se. Todo pensamentoexcita no cérebro um movimento vibratório, que originaondas etéreas e, quando estas encontram um cérebrosintonizado com o emissor, podem comunicar -lhe opensamento inicial, tal como a corda vibrante, recebendoa distância a ondulação do som, ou como a placatelefônica reconstituindo a voz silenciosamentetransportada por um movimento elétrico.

Essas faculdades, por muito tempo latentes noorganismo, tinham sido estudadas, analisadas,desenvolvidas. Era comum ver -se uma criatura atrairoutra, mentalmente, e ter diante de si a imagem desejada.A mulher continuou exercendo sobre o homem umaatração mais viva que a recíproca. O homem seriasempre o escravo do amor. Nas horas de ausência, desolidão, de sonho, bastava ao espírito pensar para quevisse aparecer-lhe a doce imagem do ser amado. Porvezes, a intercomunicação era tão completa que aimagem se fazia tangível e audível. Toda a sensação estáno cérebro, não alhures. Os seres terrestres, que assimviviam na esfera espiritual, chegavam mesmo acomunicar-se com os seres invisíveis que nos rodeiam,desprovidos de corpo material. E também o faziam comos habitantes doutros mundos. A primeira comunicaçãointerastral fora com o planeta Marte e a segunda comVênus. Esta prosseguiu até o fim da Terra, mas a deMarte cessou com a extinção da humanidade marciana.Em compensação, as comunicações com Júpiter sócomeçaram para alguns raros iniciados, já nos últimosperíodos da vida terrestre.

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Esses estudos ultramundanos, selecionados e bemdirigidos, acabaram criando uma raça ve rdadeiramentenova, hipernervosa, e cuja forma orgânica era, semdúvida, semelhante à nossa, mas cujas faculdadesintelectuais diferiam inteiramente. O conhecimento dahipnose, as ações hipnóticas, magnéticas psíquicassubstituíram com vantagem os velhos p rocessos tãobárbaros, e às vezes tão cegos, da medicina, da farmáciae mesmo da cirurgia. A telepatia tornara -se uma ciênciatão vasta quão fecunda.

A Humanidade tinha atingido um grau deracionalismo suficiente para viver tranqüila. Os esforçosda inteligência e do trabalho aplicaram-se à conquista denovas forças da natureza e ao aperfeiçoamento constanteda civilização. Insensível, gradualmente, a personalidadehumana se transformara, ou, por melhor dizer,transfigurara-se.

Os homens, quase todos inteligentes, lembravam-se esorriam das ambições infantis dos seus antepassados daépoca em que todos procuravam ser alguém, tal comodeputado, senador, acadêmico, prefeito, general,pontífice, diretor disto ou daquilo, grão -cruz de algumaordem, etc. ; a combaterem-se tão encarniçados na lutadas aparências. Compreenderam eles, enfim, que averdadeira felicidade é espiritual, que o estudo constitui omaior prazer da alma, que o amor é o sol dos corações,que a vida é curta e não merece que se lhe apegue àssuperficialidades. Todos se julgavam felizes com aliberdade de pensar, sem preocupações de riquezas quejá não existiam.

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As mulheres adquiriram uma beleza perfeita, bustosesbeltos, diferentes da amplitude dos helênicos. Cútis debrancura translúcida, olhos i luminados de sonhos,cabelos sedosos e longos, nos quais o castanho e o lourode outros tempos se fundiram num castanho ruivo, comtonalidades auri-solares, de revérberos harmoniosos. Asantigas mandíbulas bestiais desapareceram, idealizadasem pequenina boca, diante de cujos sorrisos, dessaspérolas brilhantes, embutidas em róseas gengivas, não sepodia compreender como os prístinos amantes beijavamas mulheres do outro tempo. De todas as épocas, namulher o sentimento dominara o julgamento. O sistemanervoso conservara a sua auto-excitabilidade tão curiosa,de sorte que ela, a mulher, não deixara nunca de pensarum tanto diversamente do homem, conservando a suaindômita tenacidade de sentimentos e idéias. Mas, no seuconjunto, o ser feminino era tão bizarr o, seus dotescordiais envolviam o homem em tal atmosfera, doce epenetrante; tanta a sua abnegação, devotamento ebondade, que nenhum progresso mais se poderia desejar,como se a felicidade houvesse atingido o seu apogeu paraa vida eterna.

E' possível que a donzela fosse uma florprematuramente desabrochada; mas, as sensações eramtão vivas, decuplicadas, centuplicadas pelas sutilezas datransformação nervosa gradualmente operada, que ajornada da vida parecia já não ter aurora nemcrepúsculo. Ao demais, o espírito, o pensamento e osonho dominavam a velha matéria. Reinava a beleza. Foiuma era de voluptuosidade ideal.

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Mais que em outra época qualquer da História, oshomens, neste período de hiperestesia de todos ossentidos, se tornaram loucos pelas mulhe res, e asmulheres loucas pelo próprio corpo. Essa espécie desuperexcitação cerebral não impediu os mais amplostrabalhos espirituais de se completarem, nem arealização das mais extraordinárias descobertascientíficas. Dir-se-ia viver, então, uma outra r açahumana, sobrepujando de muito a dos Arístotos, dosKepler, dos Hugos, - das Frineias, Dianas de Poitiers,Paulinos Borghèse. A transformação era tão completaque, nos museus de geologia, mostravam -se comestupefação, a raiar por incredulidade, os espéc imes dehomem fóssil do século XX, com os seus ossos pesados,dentes brutais, grosseiros intestinos. Mal se admitia queorganismos tão espessos pudessem ter sido ancestrais daraça elegante do apogeu.

Dessarte, a Humanidade chegara a uma situação debem-estar moral e físico, grandeza intelectual eaperfeiçoamento científico, artístico e industrialincomparavelmente superiores a tudo o que possamosimaginar. Dissemos que o calor central do globo tinhasido conquistado e aplicado no inverno ao aquecimentode cidades e vilas, bem como utilizado em váriasindústrias, durante milhões de anos. Quando esse calor,gradualmente diminuído, se extingiu de todo, captaram -se os raios solares, armazenando -os e utilizando-os àvontade. Das águas oceânicas extraíam o hidrog ênio. Aprincípio as cachoeiras, depois as marés, foramtransformadas em força calorífica ou luminosa. Todo o

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planeta era patrimônio da Ciência, a jogardiscricionariamente com todos os elementos.

Os sentidos humanos elevados a tal grau derefinamento que, hoje, antes se diriam extraterrestres. Asnovas faculdades de que falamos, aperfeiçoadas degeração em geração; o ser humano de mais a maisdesprendido da matéria; a alimentação transformada; ainteligência governando os corpos; esquecidos os apetitesvulgares dos tempos primitivos; as faculdades psíquicasem atividade constante, agindo à distância em quaisquerlatitudes e chegando mesmo, qual o dissemos, a atingir oshabitantes de planetas vizinhos; aparelhos ao presenteinconcebíveis, a substituírem os v elhos instrumentosópticos que ensejaram os progressos da astronomiafísica; todo um arsenal inteiramente novo de percepçõese de estudos num ambiente social esclarecido, do qualhaviam desaparecido a inveja, o ciúme, a miséria, oroubo e o assassínio; - eis o que constituía umaHumanidade de carne e osso qual a nossa, mas,incomparavelmente superior em grandeza intelectual, emsensibilidade requintada, em sutileza espiritual, tantoquanto o seremos hoje em relação aos símios do períodoterciário. O interesse venal, sobretudo, tinha deixado deenvenenar os pensamentos e atos humanos.

Graças aos progressos da fisiologia, à higieneuniversal, aos cuidados meticulosos da anti-sepsia, àassimilação dos extratos orquíticos e vertebrais, àrenovação do sangue nos tecidos, ao bem-estar geral e aoexercício de todas as faculdades, a vida humana atingiragraus de maior longevidade, não raro vendo -se velhos de150 anos. Não puderam, é fato, matar a morte, mas

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acharam meios de não envelhecer e de conservar asenergias juvenis até além dos 100 anos. A maiór partedas enfermidades foram dominadas, desde a sífilis até ador de dentes. E os caracteres eram, em regra, afáveis -de parte algumas nuanças inevitáveis -, porque issodepende muito dos temperamentos e da saúde, e o sorganismos se apresentavam todos bem equilibrados.

A Humanidade tendera para a unidade: uma só raça,um só idioma, um só governo, uma só religião (a filosofiaastronômica) ; nada de sistemas religiosos oficializados, esim a voz das consciências esclarec idas. Nessa unidade, asremotas diferenças antropológicas acabaram por sefundirem. Não se viam melífluos beatos nem cépticoscabeçudos. As religiões antigas, quais o catolicismo, oislamismo, o budismo, o moisaísmo, tinham sidorelegadas ao plano das lendas místicas. A trindadecatólica habitava o céu pagão. Os holocaustos oferecidosaos deuses antropomorfos e aos seus profetas, durantetantos séculos, quais foram Buda, Osíris, Jeová, Júpiter,Jesus ou Maria, Moisés, Maomé - os cultos antigos emodernos, todas essas abstrações do pietismo religioso setinham evaporado com o incenso das preces, perdidos nocéu terrestre, na atmosfera nebulosa, sem alcançar o Serinatingível. O espírito humano não conseguira conhecer oincognoscível.

A Astronomia tinha atingido o seu alvo: oconhecimento da natureza dos outros mundos. Tal comose deu com as línguas, com os ideais, com as leis e oscostumes, também outra era a maneira de calcular otempo. A divisão em anos e séculos continuava em vigor,mas a era cristã desaparecera com os santos do

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calendário, bem como as eras muçulmana, judaica,chinesa, etc.

As velhas regiões do Estado extinguiram -se com osseus respectivos ministérios, progressivamentesubstituídos no coração do homem pela filosofiaastronômica.

Não havia mais que um calendário para toda aHumanidade, composto de doze meses repartidos emquatro trimestres iguais de três meses de 31, 30 e 29 dias,em que cada trimestre continha exatamente trezesemanas. O dia de Ano-Bom era festivo e não entrava nocômputo. Nos anos bissextos eram contados dois dias deAno-Bom. A semana foi conservada. Todos os anoscomeçavam em segunda-feira e as datas correspondiamindefinidamente aos mesmos dias da semana. O anoprincipiava para todo o globo na antiga data de 20 deMarço.

A era, puramente astronômica, tinha origem nacoincidência do solstício de Dezembro com o periélio erenovava-se após vinte e cinco mil s setecentos e sessentae cinco anos.

A primeira era, abrangendo toda a história antiga esuprimindo as datas negativas, a nteriores ao nascimentodo Cristo, partia do ano 24517 antes da era cristã. Era aíque se radicava a origem da história. A segunda era sehavia fixado no ano 1248 de nossa era; a terceirainiciava-se com uma festividade universal no ano 27013 eassim continuaram, levando em conta, na série, asvariações astronômicas seculares de precessão dosequinócios e da obliqüidade da eclíptica. Os princípios

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racionais acabaram por triunfar de todas as bizarrias efantasias dos antigos cronologistas.

A Ciência soubera apossar-se de todas as forças daNatureza e dirigir todas as forças físicas e psíquicas aprol da Humanidade. Os únicos limites de suasconquistas foram os das faculdades humanas, certopouco amplas, sobretudo quando com paradas às dealguns seres extraterrenos, mas, ainda assim, de muitoexcedentes às que hoje conhecemos.

Assim chegou o planeta a realizar uma pátria única,intelectualmente iluminada, vingando seus altos destinoscomo em coro imenso que se desdobra em acordes deimensa harmonia. Todavia, cada mundo tem sua esferade expansão espiritual e a nossa Terra comportava,também ela, um máximo inultrapassável. Durante os dezmilhões da história da Humanidade, a espécie humana,sobrevivendo a todas as gerações, como se fora um serreal, experimentara todas aquelas grandestransformações, no físico como no moral. Retiverasempre consigo o cetro da soberania terrena, nenhumaoutra raça a destronara, visto que nenhum ser baixa docéu nem sobe do inferno. Nenhuma Minerva nasceperfeitamente armada. Vênus al guma surge núbil deuma concha nacarada, na crista das ondas. Tudo tem asua finalidade e a espécie humana, nascida dos seusancestrais, fora, desde início, o resultado natural daevolução vital do planeta. A lei do progresso a fizera,outrora, sair dos limbos da animalidade e continuouatuando para o seu aperfeiçoamento e gradualtransformação.

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Chegara, porém, a época em que a vida terrenacomeçaria a decrescer e a Humanidade cessaria deprogredir, para entrar em declínio.

O calor central do globo, conside rável ainda no séculoXIX, mas não se fazendo já então sensível à superfícieaquecida apenas pelo Sol, havia diminuído lentamente e aTerra resfriara-se, por fim, de todo. Esse resfriamentonão influenciara, de maneira direta, as condições físicasda vida terrestre, que ficara dependente do calor solar eda atmosfera. O resfriamento interno do planeta nãopode acarretar o fim do mundo.

Insensivelmente, de século em século, o globo senivelara. As chuvas, as neves, as geleiras, o calor solar eos ventos tinham atuado sobre as montanhas; as águastorrenciais, os regatos, os ribeiros e os rios tinham poucoa pouco carreado para o mar os destroços de todos osrelevos continentais; o fundo dos mares se alteara e asmontanhas haviam desaparecido quase inteiramente ,dentro de nove milhões de anos. Concomitantemente, oplaneta envelhecera mais depressa que o Sol. Perdera assuas condições de vitalidade mais rapidamente, e antesque o astro do dia esgotasse as suas radiantes faculdadesluminosas e caloríferas.

Esta evolução planetária está de acordo com o nossoatual conhecimento do Universo. Sem dúvida, a nossalógica é fatalmente incompleta, pueril, em face da grandeVerdade universal e eterna, a valer pela de duas formigasa discretearem sobre a história da França. Mas, apesarda modéstia infligida ao nosso sentimento pela infinidadedas coisas criadas; mal grado à humildade do nosso ser eo nada que ele representa diante do infinito, não

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podemos eximir-nos à necessidade de sermos lógicos comnós mesmos, para pretender que melhor fora abdicar danossa razão que aproveitá -la como garantia dejulgamento. Nós acreditamos numa constituiçãointeligente do Universo, numa destinação +'os mundos edos seres; pensamos que os globos importantes dosistema solar devem durar mais tempo que os menores eque, por conseqüência, não estando a vida dessesplanetas em paridade de relação com os raios solares,não podem durar uniformemente, tanto quanto o astrosolar. De resto, a observação direta confirma estaperspectiva geral do Universo. A Terra, sol extinto,resfriou-se mais depressa que o Sol; Júpiter, enorme,ainda está na sua fase primordial; a Lua, menor queMarte, está mais que ele avançada nas fases da vidaastral (talvez mesmo próxima do fim) ; Marte, menor quea Terra, está mais adiantado que nós e menos que a Lua.Nosso planeta, a seu turno, deve preceder Júpiter, comoeste precederá o Sol na sua extinção.

Consideremos a grandeza da Terra comparada aoutros planetas: Júpiter apresenta -se-nos com umdiâmetro onze vezes maior que o nosso e o Sol é dez vezesmaior do que Júpiter. O diâmetro de Saturno vale pornove da Terra. Parece-nos, então, natural coligir queJúpiter e Saturno viverão mais que o nosso planeta e queVênus, Marte ou Mercúrio, pigmeus celestes!

Os sucessos confirmaram essas ilações da ciênciahumana. Calamidades nos tinham advindo na trajetóriaimensa: mil acidentes deveriam atingir -nos - cometas,corpos celestes, obscuros ou flamantes, nebulosas, etc. -,mas nosso planeta não pereceria por acidente. A

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senectude o atingiu também a ele, como a todas as coisas.E envelheceu mais depressa que o Sol, perdeu ascondições de vitalidade antes que o astro centralesgotasse as suas reservas de luz e calor.

Durante os períodos seculares do seu esplendor vital,quando tronava no concerto dos mundos levando consigouma humanidade intelectual e triunfante das forças cegasda natureza, é que ainda o envolvia uma atmosferavivificante e protetora, dentro da qual se empenhavamtodos os prélios da vida e da felicidade. Um elementoessencial da natureza - a água, regulava a vida terrena.Esta substância entrava, desde os primórdios, nacomposição de todos os corpos vegetais, animais,humanos; influía ativamente na circulação atmosférica,era o órgão principal dos climas e das estaçõe s, soberana,enfim, do Estado terrestre.

De século a século, porém, a quantidade da águahavia diminuído nos mares, nos rios e na atmosfera.Primeiramente, uma parte das águas pluviais tinha sidoabsorvida no âmago do solo sem retornar ao mar,porque, ao invés de resvalar sobre camadasimpermeáveis para formar fontes ou veios subterrâneos,ou submarinos, infiltrava-se profundamente e tinhapouco a pouco enchido todos os vácuos é - brechas,saturando as rochas a grandes profundidades.

Enquanto o calor central se mantinha suficientementeelevado para opor-se à queda indefinida dessas águas,convertendo-as em vapor, uma grande quantidade delassempre se mantivera na superfície. Sobrevieram, porém,os séculos nos quais o calor central foi totalmente

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dispersado no espaço, e deixou de opor-se à infiltração namassa porosa.

Elas, as águas, diminuíram então na superfície,associaram-se às rochas sob a forma de hidratos e aí sefixaram, desaparecendo, em parte, da circulaçãoatmosférica.

Efetivamente, ainda que a dimi nuição das águasoceânicas se estime por decimilímetros anuais, ter -se-á oseu total esgotamento dentro de dez milhões de anos.

A infiltração gradual das águas no interior do globo,à medida que o calor deste se perdia no espaço, aliada àfixação lenta dos hidratos, produziu dentro de oitomilhões de anos, mais ou menos, um desfalque de trêsquartos do líquido em circulação na superfície da Terra.Em virtude do nivelamento dos relevos continentais,operado pelas chuvas, neves, degelos, ventos, ribeiros erios, tudo arrastando para o mar em obediência à lei degravidade, o globo aproximou-se de uma superfície denível e os mares tornaram-se pouco profundos. Mas,como na formação e evaporação do vapor da águaatmosférica só a extensão da superfície líquida e n ão aprofundidade influi, a atmosfera ainda permaneceuricamente fornida de vapor aquoso.

O planeta atingiu, então, as condições atuais deMarte, onde vemos desaparecidos os grandes oceanos eos mares reduzidos a estreitos mediterrâneos, poucoprofundos; continentes planos, evaporação fácil, vaporda água ainda considerável na atmosfera, chuvasescassas, neves abundantes nas regiões polares decondensação e seu fundimento quase total nos estios de

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cada ano. Mundo, ainda assim, habitável por seresidênticos aos terrícolas.

Essa época marcou o apogeu da Humanidadeterráquea. A partir dela, as condições de vida seempobreceram. De geração em geração os seres sofreramprofundas transformações. Vegetais, animais, hominais,tudo mudou. Mas, ao passo que até então asmetamorfoses enriqueciam, embelezavam eaperfeiçoavam os seres, daí por diante acentuou -se adecadência. A inteligência humana havia tãocompletamente senhoreado as forças da Natureza, quedir-se-ia impossível fosse jamais vencida no seu enormequão glorioso predomínio.

A diminuição da água, porém, começou a alarmar osmais otimistas. Desaparecidos os mares, os póloscontinuavam gelados. Os continentes de outrora, cujaslatitudes abrangiam Babilônia, Nínive, Ecbatana, Tebas,Mênfis, Atenas, Roma, Chicago , Liberty, Paz e focostantos, outros, de civilizações de vivos fulgores, nãopassavam de imensos desertos sem um lago, sem um rio,sem uma fonte sequer. Insensivelmente, a Humanidade seconchegara à zona tropical, ainda regada por cursos daágua corrente, lagos e mares. Não mais montanhas,condensadoras de neve. A Terra apresentava -se quaseplana, os mediterrâneos rasos, os lagos e alguns cursos daágua confinaram a vegetação e a vida na zona estreitadas regiões equatoriais.

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CAPITULO IV«Vanitas vanitatumo

Eternité, néant, passé, sombres abimes,Que faites-vous des jours que vous engloutissez?

Parlez: nous rendrez-vous ces extases sublimes Que vousnous ravissez?

LAMARTINE, Meditations.

Todo o imenso progresso da Humanidade, lenta egradualmente conquistado num esforço de vários milhõesde anos, haveria, - ó misteriosa lei inconcebível aohomúnculo terrestre! - de atingir o cimo de uma curva,um apogeu, e aí parar.

E a curva geométrica que poderia traçar ao nossoespírito o diagrama da história h umana vai declinar, talcomo ascendeu. Partindo de zero, da primitiva nebulosacósmica, e elevada, por estágios planetários e humanos, àsua cúspide luminosa, ela decai em seguida paramergulhar em noite eterna. Sim. Todo esse progresso,toda essa ciência, toda essa ventura e todas essas glóriasdeviam desfechar um dia no derradeiro sono, no silêncioe aniquilamento da sua própria história. Assim comonascera, tivera um princípio, assim deveria a vidaterrena morrer um dia, ter um fim. O sol da humanidadese levantara, outrora, em dilúculos de aurora; subira

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glorioso ao seu meridiano e ia baixar para diluir -se numanoite sem manhã.

Porque, pois, todas essas glórias, lutas, conquistas,vaidades, uma vez que a luz e a vida estavam fadadas aperecer?

Mártires e apóstolos de todas as liberdades haviamderramado o seu sangue para regar essa terra, tambémela destinada a morrer. Tudo devia desaparecer e só ela,a Morte, devia ficar como a última soberana do mundo.Já imaginastes, ao contemplar o cemitério de umacidade, quão pequeno ele é para conter todas as geraçõesque têm engolfado no transcurso dos séculos?

O homem já existia antes do período glaciário,anterior a nós de dois mil séculos. Sua ancianidadeparece remontar a mais de duzentos e cinqüenta milanos. A história escrita data de ontem. Encontraram -seem Paris sílex talhados e polidos, atestantes da presençado homem nas margens do Sena, muito anterior àprimeira origem histórica dos Gauleses. Os parisiensesdo século XIX pisam um terreno sagrado porantepassados, velhos de mais de dez milênios. Que restade todos esses seres que formigaram nessa colméia domundo? Que é feito dos Romanos, Gregos, Egípcios,Asiáticos que reinaram por séculos e séculos? Onde ostrilhões de homens que já viveram nesta crosta? Não há,deles, um punhado de cinzas, sequer! No conjunto dahumanidade morre um homem por segundo, ou sejaoitenta e seis mil por dia, nascendo igualmente outrostantos, ou melhor: - um pouco mais. Esta estatística,deste século XIX, aplica-se a uma longa época, em se lheaumentando ò a cifra proporcional ao tempo. O número

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de habitantes foi aumentando de período em período. Aotempo de Alexandre haveria, tal vez, uns milhões decriaturas na Terra. Nos fins do século XIX esse númer o;acrescia-se de meio bilhão. Nos século XXL- e XXIX,eram respectivamente de dois e três bilhões, quechegariam a dez no apogeu planetário. Daí por diante apopulação começou a diminuir .

Dos inumeráveis corpos humanos formados na Terra,nada resta, tudo reverteu aos elementos par a a formaçãode outros corpos: o céu sorri, o campo floresce, a Morteceifa.

À medida que passam os dias, o que neles existiuresvala ao nada. Trabalhos, desgostos, alegrias e gozos, otempo os engolfa e consome e extingue. As glóriaspassadas sucederam as ruínas presentes. No bojo daeternidade, tudo o que existia desapareceu. O mundovisível esvanece-se a cada momento. O real, o duradouro,é só o invisível.

As condições da vida planetária haviam mudadolentamente. A água diminuíra. Seu vapor na atmosferaera o que ainda entretinha o calor e a vida e foi, afinal, asua desaparição que acarretou o resfriamento e a morte.Se, desde agora, o vapor da água desaparecesse daatmosfera, o calor solar seria incapaz de entreter a vidavegetal e animal, que, ao demai s, não poderia subsistir,pois que os vegetais, como os animais, se compõemessencialmente de água.

E' também o vapor da água atmosférico que exerce amaior influência no regímen térmico. Sem dúvida, pareceinsignificante e quase negligenciável essa quanti dade devapor, pois que oxigênio e azoto perfazem só por si 99

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por 1/2 centésimo do ar respirável e que, no 1/2centésimo restante, encontram-se, além desse vapor, oácido carbônico, o amoníaco e outras substâncias . Assim,não haverá mais que 1/4 de centésimo de vapor aquoso.Tomando em consideração os átomos que constituem oar, o físico constata que, sobre duzentos átomos deoxigênio e azoto, apenas se encontra um de vapor.Entretanto, esse átomo possui oitenta vezes mais energiaabsorvente que os duzentos outros.

0 calor radiante do Sol aquece a superfície terráqueadepois de atravessar a atmosfera. As ondas caloríficasque emanam da Terra aquecida não vão perder -se noespaço, mas, antes, chocar-se com os átomos aquosos,num como teto protetor, que os cap ta e conserva emnosso planeta.

Esta é uma das mais brilhantes e fecundasdescobertas da física contemporânea. As moléculas deoxigênio e azoto, de ar seco, não impedem o desperdíciode calor. Mas, como vimos de dizer, uma molécula devapor aquoso tem energia oitenta vezes mais absorventeque as duzentas outras de vapor enxuto, e, porconseqüência, tal molécula tem mil vezes mais potencia,para conservar o calor, do que uma molécula de ar seco!E', pois, o vapor da água e não o ar propriamente dito, oque regula as condições da vida terrena.

Se tirássemos à massa aérea que envolve a Terra ovapor da água nela contido, dar-se-ia na superfície dosolo um desperdício de calor semelhante ao que se dá nasgrandes altitudes, onde a camada aérea não tem, maisque o vácuo, a propriedade de conservar o calor. Eteríamos então um frio análogo ao existente na superfície

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da Lua. A crosta poderia aquecer -se ainda, diretamente,sob a ação do Sol, mas, mesmo durante o dia, o calor nãoseria conservado e, logo que posto o as tro-central, aTerra ficaria exposta ao frio ultraglacial do espaço, quese estima em 273 graus abaixo de zero. O mesmo é dizerque a vida vegetal, animal e humana tornar -se-iaimpossível, se o não fosse, já então, pela ausência mesmada água.

Sem dúvida podemos, devemos admitir que a águahouvera sido, para todos os mundos do infinito, qual o foipara o nosso, um elemento essencial da vida. A Naturezanão tem os seus poderes limitados pela esfera daobservação humana. Devem existir, nos campos daimensidade ilimitada, miríades, milhões de sóis diferentesdo nosso, sistemas de mundos nos quais outrascombinações químicas, outras substâncias, condiçõesfísicas, mecânicas e ambientais produziram seresabsolutamente diversos de nós, com outros regimes devida, dispondo doutros sentidos, incomparavelmentemais distanciados da nossa estrutura orgânica, do que omolusco ou o peixe dos abismos oceânicos em relação àsaves e às falenas. Todavia, o que aqui estudamos são ascondições da vida terrestre, e essas condiçõ es sãodeterminadas pela constituição mesma do nosso planeta.Ã medida que a água diminuíra, que as chuvas rarearam,que as fontes secaram e o vapor aquoso escasseara, osvegetais mudaram de aspecto. Aumentaram de volume asfolhas, as raízes se alongaram, procurando de qualquermodo absorver a umidade tão necessária à suasubsistência. As espécies que não conseguiram moldar -seao novo regime, tinham desaparecido. As outras se

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transformaram. Nenhuma árvore ou planta, das queconhecemos hoje, poderia ser reco nhecida. Não maiscarvalhos, freixos, olmos, álamos, tílias, salgueiros. Aspaisagens eram também muito outras, que não as dehoje. Apenas as espécies rudimentares, criptogâmicas,sobreviviam.

O mesmo sucedera com o reino animal. Formasinteiramente mudadas. As primitivas raças selvagenshaviam desaparecido ou tinham sido domesticadas. Adiminuição da água modificara a alimentação deherbívoros e carnívoros. As espécies recentes - produtodas que puderam subsistir - eram menores, menoscarnosas e mais ossudas. Diminuída grandemente avegetação, o ácido carbônico do ar era absorvido maisescassamente, e a proporção era um tanto grande.

A população humana baixara gradualmente de dez asete bilhões, quando ainda poderia espalhar -se pelametade da superfície terrena. Depois, à medida que azona habitável se retraía para o equador, a Humanidademais se debilitava e a própria média da vida tinhabaixado. Chegou, enfim, o dia em que o censo nãocomputaria mais que algumas centenas de milhões,disseminados em grupos ao longo do equador, para sóviver dos artifícios de uma indústria científica elaboriosa.

Nas habitações humanas, o ferro e o vidrosubstituíram a madeira e a pedra, as cidades e vilas comofeitas de cristal. As vantagens dessa arquiteturaimpuseram-se nos derradeiros tempos como imperativoclimatério, dado o resfriamento do ar, conseqüente àdiminuição do vapor aquoso na atmosfera. O que mais

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importava, então, era captar os raios solares. Por toda àparte, grandes salas envidraçadas armazenavam o calorsolar. Os antigos edifícios não passavam de ruínasabandonadas.

Apesar dos milhões de anos transcorridos, o Sol aindaentornava, sobre a Terra, quase que a mesma quantidadede luz e calor. A diferença não seria senão de um décimo,talvez, e apenas se notava que o astro centralapresentava-se um pouco menor e mais amarelado.

A Lua também prosseguia em seu giro, embora umpouco mais lento... Ela se havia afastado, gradualmente,do nosso globo e nos parecia aparentemente menor.(Para o Sol é que as suas dimensõe s reais tinhammudado). Simultaneamente, o movimento rotativo daTerra também se tornara mais lento. Este efeito tríplice:rotação mais demorada da Terra, afastamento da Lua eprolongamento do mês lunar - tinha-se originado doatrito das marés, a operar mais ou menos como um freio.Se a Terra e Lua durassem bastantemente, bem como osoceanos e as marés, poder-se-ia, pelo cálculo, prefinir oadvento de uma época na qual a rotação do nosso globoseria tão lenta que acabaria por equivaler ao mês lunar emesmo ultrapassá-lo, a ponto de não haver anos commais de cinco dias e um quarto. A Terra apresentariasempre, então, a mesma face à Lua. Tal transformaçãonão demandaria, contudo, menos de cento e cinqüentamilhões de anos. O período que atingimos (dez milhõesde anos) não representa senão uma décima quinta partedaquele. Em vez de setenta vezes mais longa que hoje, arotação da Terra era apenas quatro e meia vezes maisdemorada, ou fosse de cento e dez horas, mais ou menos.

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Esses longos dias facultavam ao Sol aquecerdemoradamente a superfície terrestre, mas esse calor emnada quase beneficiava as regiões que o recebiam de face,isto é, a zona equatorial, entre os dois círculos tropicais:a obliqüidade da eclíptica não tinha mudado, o eixo daTerra mantinha a mesma inclinação (cerca de 2 graus) eas variações de excentridade da órbita não produziramqualquer efeito mais sensível sobre as estações e osclimas.

Forças humanas, alimentação, respiração, funçõesorgânica, vida física e intelectual, idéias, julgamento s,religiões, ciência, linguagem, tudo, enfim, havia mudado.Do Homem de outros tempos quase na existia.

Um pouco por toda à parte, não mais que ruínassilenciosas e solitárias e se esboarem, a fundirem, paranunca mais se erguerem.

CAPITULO VOmégar

Tu saís de quel linceul le temps couvre les hommes,Tu saís que, tõt ou tard, dans 1'ombre de 1'oubli, Siècles,

peuples, héros, tout dort enseveli.LAMARTINE, Harmonies.

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O frio aumentava. Eternizava-se o inverno, brilhandoembora o Sol. Caducavam todas as espécies animais evegetais, a luta pela vida cessara, apesar dastransformações ocorrentes, como se houvessemcompreendido o determinismo da sua condenação. Asmaravilhosas faculdades de adaptação do gênerohumano e uma espécie de energia selvagem e infatigávelhaviam prolongado a vida física e intelectual do homem,mais que dos animais superiores. Isso, porém, só se davaem relação a alguns poucos núcleos de c ivilizaçãoprivilegiada, visto que, de conjunto condenada ainelutável miséria, a Humanidad e recaíra na barbárie enão podia mais se reerguer.

O que de tudo restava eram dois grupos de .algumascentenas de criaturas humanas, que ocupavam as últimasmetrópoles da indústria. Em todo o resto do mundo araça humana havia pouco a pouco desaparecido,ressecada, esgotada, degenerada gradual,inexoravelmente, de século em século, à míngua deatmosfera assimilável e de alimentação suficiente. Seusúltimos rebentos pareciam revertidos à barbaria,vegetando como selvagens em região de Esquimós emorrendo lentamente de fome e de frio. Os dois velhosfocos de civilização, perecendo embora gradualmente,também, só conseguiram subsistir a custa de lutas tãoincessantes, quão perspicazes, contra a naturezaimplacável.

As últimas regiões habitadas situavam -se próximo doequador, em dois grandes vales outrora cobertos pelooceano. Vales pouco profundos, já se vê, visto que onivelamento geral era quase absoluto. Não se viam picos,

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montanhas, ravinas, gargantas abruptas, nem valados,nem escarpas.

Era tudo planície. Rios e mares haviaminsensivelmente desaparecido. Mas, como os agentesmeteóricos, chuvas e torrentes tinham diminuído deintensidade, paralelamente com as águas, os últimosabismos marinhos não foram inteiramente entulhados erestavam os sulcos pouco profundos, como vestígios davelha estrutura do globo. Lá se encontravam aindaalguns terrenos úmidos e gelados, mas não havia, porassim dizer, circulação da água na atmosfera e os últimosrios corriam subterraneamente, como artérias invisíveis.

A falta de vapor da água na atmosfera proporcionavaum céu sempre puro, sem nuvens, sem chuvas, sem neves.Menos fulgurante e cálido que nos primitivos tempos, oSol tinha uma tonalidade amarelada de topázio. Ofirmamento era antes verde que azul -marinho. Aatmosfera diminuíra consideravelmente de extensão. Ooxigênio e o azoto haviam-se fixado, em parte, nosminerais, em estado de óxido e azotatos, e o ácidocarbônico aumentara ligeiramente, à medida que osvegetais, em lhes faltando a água, rareavam. Entretanto,a massa planetária se tinha avolumado de século emséculo, devido à queda incessante de estrelas filantes, debólidos e uranólitos, de sorte que a atmosfera,empobrecendo-se, conservava a mesma densidade e maisou menos a mesma pressão.

Circunstância inesperada a de haverem as neves egeadas diminuído, à medida que o globo se resfriava,porque a causa desse resfriamento era a ausência devapor aquoso na atmosfera, e a diminuição correspondia

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precisamente à da superfície dos mares. À medida que aságuas iam penetrando no âmago do globo, aprofundidade conseqüente ao nivelamento, em primeirolugar, e depois a superfície, haviam diminuído. A câmarainvisível do vapor condensado perdera gradualmente oseu valor de proteção à vida, até o dia em que o calorsolar, não mais conservado por uma garantia suficiente,se perdia no espaço como se caísse num espelhoinaquecível.

Tal a situação do nosso mundo. Os últimosrepresentantes da espécie humana não tinhamsobrevivido a todas essas transformações físicas, senãomercê do gênio da indústria, que, por seu turno, souberatudo transformar. Os últimos esforços foram porcontinuar extraindo do ar, das águas subterrâneas e dasplantas, as substâncias nutritivas, e a substituir a câmaraprotetora de vapor desaparecido por tetos e construçõesde vidro. Como vimos páginas atrás, preciso fora captar,a todo custo, os raios solares e impedir todo e qualquerdesperdício. Não era, aliás, difícil obter grande provisão,pois que o Sol brilhava todos os dias num céu escampo denuvens e o dia era de cinqüenta e cinco horas.

Os arquitetos de há muito não tinham objetivo outroque não o de aprisionar os raios solares, impedindo a suadispersão durante as cinqüenta e cinco horas noturnas.

Isso conseguiram, afinal, mediante engenhosacombinação de fechos e aberturas de vários tetos de vidrosuperpostos, com telas móveis. Muito tempo havia,também, que faltava todo e qualquer combustível, poismesmo o hidrogênio das águas escassamente se oferecia àindústria.

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A temperatura média do dia, ao ar livre , não eraextremamente baixa, pois não ia além de 15 graus. (9)

Mal grado às transformações seculares, as espéciesvegetais não podiam sobreviver, mesmo nessa zonaequatorial.

Quanto às outras latitudes, estavam já de milêniosabsolutamente inabitáveis, ap esar dos esforçosempregados por conservá-las. Nas latitudes hojecorrespondentes a Paris, Nice, Roma, Nápoles, Argélia,Tunísia, a atmosfera deixara de permear o vapor e aobliqüidade dos raios solares nada mais podia aquecer. Osolo conservava-se frígida em todas as profundidadesacessíveis, qual verdadeiro bloco de gelo.

Mesmo entre os trópicos e o equador, os doisrestantes grupos humanos que ainda subsistiam à custade grandes dificuldades, crescentes de ano para ano, dir-se-ia que antes vegetavam sobre os últimos destroços dahumanidade.

Nesses dois vales oceânicos, situados respectivamentenos atuais abismos do Pacifico e ao sul da ilha de Ceilão,haviam-se estendido, nos séculos precedentes, duasvastíssimas cidades de ferro e de vidro, elementosutilizados então em todas as construções. Dir -se-iam doisenormes jardins de inverno, sem andares, com ostelhados transparentes, suspensos a grande altura.Restavam ainda algumas salas dos antigos palácios. Asúltimas plantas cultivadas lá permaneciam, além das quese coletavam nas galerias de comunicação com os riossubterrâneos.

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Como vemos, nada mais que vestígios derradeiros deuma grandeza extinta; e além, por toda à parte e em todaa extensão do velho mundo, não mais que ruínas.

Na primeira dessas cidades, os últimos sobreviventeseram dois anciães e o neto de um deles, Omégar. O rapazcaminhava desesperado naquelas vastidões desertas,depois de haver assistido à morte, por consunção, da mãee das irmãs. Os dois velhos eram um filósofo queconsagrara toda a existência ao estudo da humanidademoribunda, e um médico que se propusera, em vão, asalvar da degenerescência final os últimos habitantes daTerra. Apresentavam-se emaciados, mais pela anemiaque pela idade. Pálidos quais dois espectros, barbaslongas, só por sua energia moral pareciam sobrepujar afatalidade do destino.

Não puderam, contudo, lutar muito tempo contra essedestino. Últimos sobreviventes da sua raça, estavam,como os demais, condenados a perecer, até que um diaOmégar os encontrou caídos e mortos, um ao lado dooutro. O primeiro deixara escapar das mãos frouxas aúltima história que escrevera, meio século antes, dasextremas transformações da humanidade. O segundoexpirava procurando preservar no seu laboratório osúltimos tubos alimentares, automaticamente entretidospor máquinas movidas pela energia solar.

Os últimos criados domésticos, macacos de há muitotransformados por uma longa e paciente educação,também já haviam sucumbido anteriormente. O mesmose dera com todas as espécies anim ais ao serviço dahumanidade. Cães, cavalos, renas, ursos e algumas agesde grande porte, empregadas em serviços aéreos, ainda

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sobreviviam, mas, tão transformados que ninguém osidentificaria com os seus antepassados.

Evidente a condenação irrevogável da r aça humana.As ciências haviam desaparecido com os sábios, as artescom os artistas, e os últimos seres humanos apenasviviam do passado. Baldos os corações de toda esperança,não havia como conceber ambições. A luz ficara paratrás, o futuro incidia em noite eterna. Nada, nada mais!Extintas, para todo o sempre, as glórias do passado. Sequalquer viajor transviado nas solidões profundas ecrente nos séculos idos pensasse em assinalar os lugaresem que se ergueram Paris, Roma ou metrópoles outrasque lhes sucederam, não teria mais que uma quimera,visto que, dobados milhões de anos, nem mesmo taissítios existiam, por varridos que tinham sido pelas águasoceânicas. Vagas' tradições, flutuantes através dasidades, graças à manutenção da imprensa e aos copista sdos grandes fastos da História. Mas, ainda assim, essasmesmas tradições eram incertas e, muitas vezes,mentirosas, pois, a respeito de Paris, por exemplo, osanais não registravam senão alguns traços de um Parismarítimo e os milhares de anos do Paris - capital daFrança - apenas restavam como vaga lembrança. Osnomes que hoje nos parecem inextinguíveis, quaisMoisés, Confúcio, Platão, Maomé, Alexandre, CarlosMagno, Napoleão e -- França, Itália, Grécia, Europa,América, não tinham sobrenadado, tornaram -se nulos.

A arte conservara belas lembranças, mas essas longeestavam de remontar às épocas infantis da humanidade edatavam, no máximo, de alguns milhões de anos. Poder -se-ia crer que o planeta houvesse abrigado

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consecutivamente várias raças separadas por dilúvios, oumesmo por novas criações.

Omégar se detivera na velha galeria de quadroslegados pelas gerações remotas, a contemplar opanorama das grandes cidades desaparecidas. A únicapertinente à Europa mostrava-lhe a perspectiva de umagrande capital, assente num promontório e coroada porum templo astronômico, com helicópteros aéreos a lhesobrevoarem as altas torres. Navios gigantescosbalouçavam no mar. Este Paris clássico pertencia aoséculo CLX da era cristã, correspondente ao CLVII daera astronômica. Era o Paris que precederaimediatamente a definitiva invasão oceânica. O próprionome havia mudado, visto que as palavras tambémmudam, como os seres e as coisas. A seguir, quadrosrepresentavam as grandes cidades de épocas menosremotas, que haviam florescido na América, na Ásia, naAustrália e, mais tarde, nas terras emergidas do oceano.Dessarte, aquela espécie de museu retrospectivo evocavaa sucessão dos fastos históricos até o fim da Humanidade.

O fim! Há sua hora soara no quadrante dos destinos.Omégar sabia que toda a vida da Terra consistia, dalipor diante, no seu passado; que nenhum futuro deveriajamais existir para ela e que, mesmo o presente, se lheestava apagando como o sonho de um minuto. O singularherdeiro do gênero humano experimento u, então, asensação profunda da vanidade imensa de todas ascoisas. Poderia esperar que um inimaginável milagreainda pudesse salvá-lo de uma condenação evidente? Iriaamortalhar os velhos e compartilhar do seu túmulo?Deveria procurar viver ainda alguns dias, algumas

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semanas ou anos, talvez, de uma existência solitária,inútil, desesperada? Perambulou o dia todo por aquelasgalerias vastas e silenciosas. Em vindo à noite, entregou-se ao sono que o empolgava. Tudo eram trevas em tornodele.

Uma noite sepulcral. Doce sonho lhe despertou, então,na alma dolorida, como que a envolvê -la na tênueclaridade de angelical auréola. Dera -lhe o sono a ilusãoda vida.

Já se não via isolado. Sedutora imagem, já entrevistamais de uma vez, tinha vindo postar -se diante dele. Doisolhos blandiciosos de um fulgor e profundeza dosinfinitos, nele se fixavam e o penetravam, e o atraíam. Esentia-se num jardim riquíssimo de flores e perfumes.Sobre ele, entre a ramagem, uma concertina de pássaroscanoros. No fundo da paisagem, as ruínas enormes dascidades mortas enquadravam-se de plantas e flores.Depois, lobrigou um lago sulcado por aves aquáticas, dasquais se destacavam dois cisnes que lhe trazia num berço,e, dentro deste, uma criancinha recém -nascida que lheestendia os braços. Nunca tal raio de luz lhe iluminara oespírito. Tão viva a impressão, que o despertou de súbito.Abriu os olhos e não enxergou mais que a tristerealidade. Possuiu-se, então, de uma tristeza porventuramais pungente que a dos dias anteriores. Levantou-se,voltou ao leio e, acabrunhado, aguardou queamanhecesse. Lembrou-se do sonho, mas não lhe deucrédito. Sentia vagamente que um outro ser humanoainda existia, mas a sua raça degenerada havia perdidoem parte as faculdades psíquicas, e, sem dúvida, q ue aohomem sempre lhe pareceu que a mulher lhe inspirava

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atração excedente à dele, exercida sobre ela. Quando odia reapareceu na sua luminosidade inexorável,, quandoo derradeiro homem viu perfilarem -se diante dele asruínas da sua velha cidade; quando s e viu novamente sócom os seus dois mortos, sentiu mais que nunca o seudestino irrevogável e, num ápice, decidiu pôr termo auma vida assim inútil e atribulada. Dirigindo -se para olaboratório, procurou um frasco de fórmula assazconhecida, destampou-a e procurou esvaziá-lo de umtrago. Mas, justo no momento de o levar aos lábios,sentiu que duas mãos lhe tolhiam o braço... Voltou -se...Ninguém no laboratório! E na galeria não encontroumais que dois cadáveres...

CAPITULO VIEva

Fragilité des choses qui sont, Eternité des chosesqu'on réve.

DARMESTETER.

Nas ruínas da outra cidade equatorial, situada no valeoutrora submarino que se prolongava ao sul de Ceilão,sobrevivia uma jovem, inteiramente só, depois de lhe

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morrerem inanidas a mãe e a irmã m ais velha. Era ela,assim, o último rebento da última família que pôdesobreviver à extinção geral e que, simbolizando ossalvados do naufrágio universal, após a decadência daespécie humana e da última raça aristocrática,conseguiram manter-se em luta extrema contra a misériageral, na esperança ilusória de vencer as injúrias dotempo, como a querer disputar -lhe os escombros. Umretorno atávico, que as leis da hereditariedade poderiamexplicar, dera à última flor dessa árvore humana umabeleza fulgurante, há muito desaparecida com adecadência universal. Era assim qual uma flor quetardiamente desabrochasse nos fins da estação, sobre ogalho de um tronco morto. Havia muito, nos camposestéreis os seres decrépitos, esgotados, diminuídos decorpo e de alma, retrogradados à selvajaria, tinhamabandonado a mísera carcaça às solidões geladas. Aflama da vida estava de fato e para sempre extinta.

Assentada à sombra dos últimos arbustos polares,que, no topo de uma serra, iam morrendo aos poucos, ajovem Eva conservava entre as suas as mãos da genitorafalecida na véspera. Frígida à noite, na cúpula dofirmamento a lua cheia brilhava como um disco de ouro.Seus raios de ouro, porém, eram tão álgidos quanto os deprata da velha Selene.

Profundo silêncio dominava o am biente, uma solidãode sepulcro só quebrada pela respiração flébil da moça,num como ritmo silencioso. Lágrimas por derramar, jáas não tinha. Seus dezesseis anos comportavam maiorexperiência e mais sabedoria que os sessenta das épocasfloridas. De fato, ela sabia-se a última sobrevivente do

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grupo de criaturas que acabava de extinguir -se, e quetoda a felicidade, alegria, esperança, com eladesapareciam para sempre! Sim: sabia que para ela, nempara outrem, já não havia presente nem futuro.

A solidão, o silêncio, a dificuldade de vida, física emoral, e depois... o sono eterno. Pensava nas mulheres deoutrora, nas que tinham vivido a vida real dahumanidade, nas amorosas, nas esposas, nas mães, e seusolhos avermelhados, enxutos, não divisavam em torno desi mais que painéis de morte e, para além daquelasparedes vidradas, não mais que o deserto infecundo, osúltimos gelos, as últimas neves . Às vezes, o coração lhebatia violento no peito juvenil e ela, com as pequeninasmãos, mal conseguia comprimi -lo; outras vezes, pelocontrário, toda a vida interior como que se estancavacom a própria respiração. Se adormecia, por instantes,logo revia em sonho os seus brincos de outrora: a irmãrisonha. e turbulenta, sua mãe cantando ainda, com vozcristalina e penetrante. as belas inspirações dos últimospoetas. E acreditava ver, então, de longe as últimas festasde uma sociedade brilhante, como que refletidas à face deum espelho. Depois, despertando, a magia daslembranças se apagava, cedia à realidade fúnebre! Só,absolutamente isolada no mundo! E amanhã... a morte,antes de conhecer a vida... Fim inelutável, revoltasinúteis, condenação do destino, eis a lei brutal. E nãohavia como lhe fugir, senão que esperar o fim próximo,pois nem a alimentação, nem a respiração e ntretinhammais os organismos. Um recurso, mísero recurso, lherestava: acabar logo com aquela existência dolorosa eirremediavelmente condenada. Dirigiu-se ao banheiro,

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onde a água tépida ainda circulava, posto que osaparelhos, industriosamente engenhado s para acalorificação, de há muito houvessem deixado defuncionar por falta de cuidados dos últimos servos eassim atingidos, também eles, pela diminuição gradualdas águas. Mergulhou no banho perfumado, tocou umcomutador ainda eficiente e a energia elét rica, provindados cursos da água subterrâneos não de todo congelados,proporcionou-lhe um repouso reparador, que fezesquecer por instantes a fatalidade do seu destino. Umobservador indiscreto que a houvesse contemplado poucodepois, quando, de pé, em face do grande espelho, se pôsa entrançar a longa e anelada cabeleira quase loura, teriapodida entrever-lhe nos lábios um sorriso significativo deque naquele momento esquecia o seu tétrico destino.Noutro compartimento, encontrou ela os recursos que,dia a dia, lhe haviam fornecido os elementos da modernaalimentação, extraídos da água, do ar, das plantas efrutos automaticamente cultivados nas serras, pelaprópria energia solar. Tudo isso funcionava como umrelógio remontado. A partir de milênios, toda agenialidade humana se havia dedicado quaseexclusivamente a dominar o destino. Forçaram asderradeiras águas a circular em canais interiores, a esteslevando, igualmente, o calor solar. Conquistaram osúltimos animais para fazer deles os servos passivos damáquina, e trataram as plantas de feição a desenvolvê -lasao máximo, a fim de lhes extrair todas as propriedadesnutritivas. Acabaram, assim, por viver de quase nada,quantitativamente, de vez que cada substânciaalimentícia, novamente criada, era perfeit amente

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assimilável. As últimas cidades eram serraniasensolaradas, onde chegavam todas as substânciasaquosas, necessárias à alimentação e que substituíam osvelhos produtos da natureza. Entretanto, de século aséculo, tornava-se mais difícil obter os prod utosindispensáveis à vida. A mina acabara por esgotar -se. Amatéria fora vencida pela inteligência, mas, chegaraenfim o dia em que a inteligência também devia servencida: os operários acabaram, desde que a própriaterra não pôde mais abastecê -los. Houvera, portanto,uma luta gigantesca, imposta ao homem que não queria,de maneira alguma, sucumbir. Mas, os últimos esforçosnão lograram impedir que o solo absorvesse toda a águae, desde então, as últimas provisões, economizadas poruma ciência aparentemente superior à própria natureza,tinham atingido o seu limite extremo.

Eva tinha voltado para junto do corpo de sua mãe.Ainda uma vez, tomou-lhe das mãos geladas. Asfaculdades psíquicas das criaturas, há esse tempo, já odissemos, tinham adquirido uma forç a transcendente.Eva pensou, num instante, em invocar a genitora, doâmbito mesmo das sombras. Afigurava -se-lhe que ela, agenitora, desejava, senão uma aprovação, ao menos umconselho. Uma idéia misteriosa a empolgava, a obsidiava,tanto quanto encantava. E era unicamente essa idéia quelhe obstava o intento de morrer imediatamente. Ela via,ao longe, a única alma que pôde vibrar uníssona com asua. Quando nascera, nenhum homem existia mais nasua tribo, que assim justificasse o velho qualificativo desexo forte. Os quadros colgados à parede da amplabiblioteca mostravam-lhe os avós e as antigas

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personagens da cidade. Os livros, as gravuras, asestátuas, mostravam-lhe o homem. Entretanto, narealidade nunca jamais vira um homem.

Nada obstante, sonhava e, muitas vezes, pela retinados olhos fechados, passavam-lhe imagens desconhecidas,perturbadoras. Seu espírito flutuava, às vezes, nomistério ignorado; era levada em sonho a uma vida nova,parecendo-lhe que o amor não estava ainda exilado daTerra. Desde que o frio extremo avassalara o planeta,muitos anos antes, haviam cessado todas as comunicaçõeselétricas entre os últimos núcleos de população. Ninguémse falava, ninguém mais se avistava à distância. Ela,porém, conhecia a cidade oceânica como se a tivesse vistoe, quando fixava o olhar na grande esfera que seostentava no centro da biblioteca, cerrando as pálpebras,deixava vogar livre o pensamento; quando aplicava osentido psíquico ao objeto dos seus desejos, eis queoperava, a distância, com intensidade de ordemdiferente, é certo, mas tão eficaz quanto à dos antigosaparelhos elétricos. Chamava alguém e sentia quealguém a compreendia.

Na noite precedente, tinha-se transportado à velhacidade de Omégar e, por instantes, ele se lhe mostrou emsonho. Logo pela manhã, vira o seu gesto desesperado e,num esforço supremo, conseguira deter -lhe o braço.

E eis que, súbito, tombou, sonhadora, acalmada nasua poltrona em frente ao cadáver materno.

Flutuante o espírito, ei-lo a pairar sobre a cidadeoceânica, na pista daquela outra alma gêmea da sua, queainda vivia na Terra. Na última cidade oceânica, Omégara entendeu. Lentamente, como a sonhar, subiu à

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plataforma do aeroporto. Influenciado por misteriosaforça, obedeceu à voz longínqua. A aeronave alçou -se emrumo do ocidente, atravessou as terras frigidas, outroratropicais, que substituíram o antigo oceano Pacífico, aPolinésia, a Malásia, as ilhas da Sonda e foi aterrissar naplataforma do palácio cristalino, onde a moça despertoucom o ruído do aparelho, para ver o aeronauta que seprecipitava a seus pés.

Correu, espantada, até ao fundo da galeria imensa eprocurava levantar a pesada pele que cortinava abiblioteca, quando, acercando-se, o rapaz se ajoelhou e,tomando-lhe da mão, murmurou simplesmente:chamastes-me e eu aqui estou... acrescentando logo: hámuito que vos conheço, sabia que existíeis, muitas vezesvos vi, sois a perpétua atração do meu ser. Entretanto,nunca ousei vir.

E ela, levantando-o: Sei que somos únicos no mundo,e prestes a morrer. Uma voz mais forte que a minhaordenou-me que vos chamasse... Creio que fosse opensamento supremo de minha mãe, vitorioso da própriamorte. Vede, ela aqui está, inerte desde ontem... Ah!como esta noite é longa!

O rapaz ajoelhara-se, tomara a mão da morta. Elesali estavam ambos, como em prece, diante daquelesdespojos.

Ele inclinou-se depois para ela, e, delicadamente, suasfaces se tocaram.

Eva estremeceu ligeiramente e murmurou: não!Súbito, porém, Omégar levantou -se, terrificado, os olhosestatelados... Era a morta que voltava a si! Retirou a mão

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que ele retinha presa às suas, arregalou os olhos paramirá-las e disse:

Desperto de um sonho estranho... E sem mostrar -sesurpresa com a presença de Omégar, acrescentou: aítendes, meus filhos... E estendendo a mão, apontou-lhesno céu o planeta Júpiter, que irradiava um brilhoesplêndido.

Fitando o astro, o jovem par constatou que ele seaproximava, crescendo desmesuradamente, e, ofuscandoa paisagem polar, oferecia-se em toda a extensão aos seusolhares maravilhados.

Mares extensíssimos, coalhados de embarcações,sobrevoados por flotilhas aéreas, plagas marinhas,embocaduras de rios gigantes, eram outros tantos centrosde atividade prodigiosa. Cidades brilhantes surgiam e,com elas, multidões formigantes. Impossível distinguirdetalhes das habitações, bem como a silhueta daquelesnovos seres, mas adivinhava -se ali uma outrahumanidade diferente da nossa, vivendo no âmbito deoutra natureza, dispondo de outros órgãos e de outrossentidos. E mais se adivinhava um mundo prodigioso,incomparavelmente superior a Terra.

Eis ali onde estaremos amanhã - disse a morta -, ondeiremos encontrar toda a antiga humanidade terrena,aperfeiçoada e transformada. Júpiter recebeu a herançada Terra. Nosso mundo completou sua tarefa, não maishaverá gerações neste ambiente... Adeus!

Estendeu-lhe os braços. O jovem par inclinou -se paraa morta e beijou-lhe a fronte. Só então perceberam queaquela fronte, apesar do estranho colóquio, continuava

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fria como o mármore. Sim, ela havia fechado os olhospara sempre.

CAPITULO VIIO último dia

Amour, étre de 1'ëtre! Amour, ãme de I'ãme.LAMARTINE, Harmonies.

Bela coisa a vida... o amor vale por tudo e faz tudoesquecer. Música inefável dos corações, tua divinamelodia envolve o ser em êxtase de voluptuosidadesinfinitas! Quantos historiadores ilustres têm celebrado ospioneiros do progresso, a glória das armas, as conquistasda inteligência e as ciências da alma? Depois de tantosséculos de trabalho e lutas, nada mais restava na Terraque o arfar de dois corações, os beijos de duas almas,nada mais que o amor. E o amor afirmava -se e ficavacomo o sumo sentimento a dominar, qual farolinextinguível, o imenso oceano das idades mortas.

Morrer? Como imaginá-lo? Pois, então, ali nãoestavam um pelo outro reciprocamente se bastando? Ainvasão do frio trespassava-os até à medula, mas, nãotinham eles no peito calor bastante para vencer a

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Natureza? Não continuava o Sol a fulgurar sempre, maisradioso? Quem diria não fosse a condenação finalretardada por longo tempo ainda?

Omégar excogitava de como poderia entreter aindatodo aquele sistema de há muito organizado para extrairautomaticamente os princípios alimentares do ar, daságuas, e das plantas. E esperava consegui -lo. Assim,outrora, depois da queda do império romano, viram-sebárbaros utilizarem os aquedutos, os banhos, as fontestermais e todas as realizações dos tempos cesareanos,extraindo de indústrias desaparecidas os elementos desua vitalidade.

Um dia eles viram ali chegar, ao último palácio daúltima cidade terrena, um bando de míseras criaturasenvilecidas, descarnadas, meio selvagens, quase nadahumanas, e que pareciam haver regredido aoprimitivismo das espécies simiescas, já de há muitodesaparecidas. Tratava-se de uma família errante, -destroços de uma raça degenerada, que vinhaprocurando fugir à morte. Em virtude do secularpauperismo das condições de vida planetária, aHumanidade que, por milhões de anos, dominarasoberanamente a natureza, atingindo a unidade tãolongamente esperada, constituindo uma única espécie emque se fundiram todas as variedades, - essa humanidadesuperior, homogênea, perdera pouco a pouco o vigor e agrandeza.

As influências de climas e meios não tardaram adeslocar a unidade conquistada, originando novasvariedades e novas raças. E não foi senão com grandecusto que as duas civilizações mais sólidas e mais

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enérgicas resistiram e se mantiveram nos pináculos daintelectualidade. Todo o resto da humanidade sofrera opeso dos evos, enfraquecera, modificara -se à mercê dasinfluências preponderantes. Ã antiga lei de progressotinha sucedido uma como lei degradativa. A matéria, dir -se-ia, retomara os seus direitos, regredindo o homem àanimalidade. Mas todas as raças desse mundo senecto,caducárias e desagregadas, hav iam sucessivamentesucumbido.

Apenas alguns raros grupos erravam como espectros,por entre as ruínas do passado.

Omégar procurou utilizar aqueles servos de novaespécie, na manutenção dos aparelhos culinários queainda funcionassem e, sobretudo, na conser vação eaproveitamento do calor solar.

A esperança raiou naquela estância do Amor, com abeleza do arco-íris através de uma nuvem. O jovem paresqueceu o passado, mais cioso do futuro e todo entregueao presente venturoso.

Assim viveram alguns meses na ebr iedade do amorque os prendia. Houve já quem dissesse que o amor é apoesia dos sentidos e o beijo perene de duas almas.Disseram, também, que a glória, a ciência, o talento, abeleza e a fortuna são incapazes de dar a felicidade, sema consagração do amor.

Nós poderíamos acrescentar que nesses extremos diasterrenos só esse amor brilhava, qual uma estrela em meioà noite universal. Aqueles dois amantes não se advertiamde que se abraçavam dentro de um sepulcro.

Por vezes, à tarde, quando o Sol se punha atr ás dasruínas, Eva sentia-se angustiada na contemplação do

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imenso deserto que os rodeava, e, abraçando -se ao bem-amado, não podia reter as lágrimas que lhe toldavam oolhar. Sim. Ela ainda confiava no futuro... Mas, quantasolitude, silêncio, desolação! Que estranho espólio de umaradiosa humanidade! As recordações ali estavam... Oslivros, naquela biblioteca, contavam as glórias todas dopassado; as gravuras como que as reviviam ante os seusolhos maravilhados; os aparelhos fotográficos repetiam,à vontade, a voz dos mortos ilustres e até à própriaimagem deles, na tela das projeções telefúticas. Nosvelhos cofres metálicos, enormes, podiam as mãosmergulhar num oceano de moedas de ouro, de todos ostimbres e valores - legado estéril de riquezas inutilmenteacumuladas... Os instrumentos de física e de astronomia,que haviam transformado o mundo, jaziam no pó.

Senhores do mundo, de todos os seus valores emobiliários, tudo possuindo, ei -los ambos mais pobresque os mais pobres mendigos do passado'.

De que serviu tudo isso? - dizia ela passeando os olhospor todas aquelas conquistas da humanidade extinta.Sim! - para que todo esse esforço, conquistas,descobertas, e crimes, e virtudes? Sucessivamente, cadapovo havia crescido e desaparecido. Alternativamente,cada cidade brilhara na glória e no prazer, para acabarem pó. Ei-las, ali, patentes naquelas ruínas que cobriam osolo, amontoadas, superpostas, ruínas de ruínas, sobreruínas. E as últimas teriam a mesma sorte. Dos bilhões dehomens que aqui viveram, que resta? Nada.

- Dize-me pois, meu bem-amado, tu que tudo sabes,porque, e para que teria Deus criado a Terra? E, porquea Humanidade? Não achas, meu querido, que esse Deus é

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um tanto louco? Todos esses bilhões de criaturas quevieram pulular e disputar sobr e esta pequenina bolagirante, de que e para que serviram, uma vez que nadaresta? Dar-se-á não estejam agora, precisamente, comose nada houvera existido? Eu bem sei que os habitantesde Marte tiveram a mesma sorte e que os de Vênus,quando se comunicavam conosco, há alguns séculos,também, não se consideravam votados ao aniquilamento.Agora, aí temos os Jupiterianos que começam aindaincapazes de compreender nossas mensagens. Terão omesmo destino... Dize-me : comédia, ou drama, acriação? Diverte-se o Criador com os seus bonecos, ouapraz-lhe fazê-los sofrer? E' idiota? Que me dizes, meuamor?

- Para que indagar, oh! minha Eva? Que teus olhosnão se turvem assim... Assenta-te aqui, nos meus joelhos,vem repousar a bela cabecinha junto do meu coração.Deus, crê, só fez o mundo para o amor. Esquece, pois,tudo o mais.

- Mas, como esquecer, fechar os olhos, abafar a razãoe o coração nestas horas tão solenes? Sim, nosso amor étudo, absolutamente tudo. Mas, meu querido, como nãopensar ainda que todos os casa is que nos precederam,desde o princípio do mundo, desapareceram, tambémeles, e que todos esses amores que aureolaram deesperanças os votos humanos; todos esses ósculosdivinais, de lábios nos quais dir -se-ia reascender um gozoeterno; todos esses arroubos se perderam, se diluíram emfumo; - sim, em fumo - e que de tudo não resta mais quenada, nada... Oh! meu Omégar, a verdade é que aHumanidade viveu dez milhões de anos para acabar

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nada sabendo'. A Ciência entre todas maravilhosa, aciência do universo, a Astronomia, tudo nos ensinou, deu -nos a verdadeira religião, mas, não nos demonstrou alógica de Deus!

- Queres muito saber, Eva. Contudo, não ignoras quea humanidade terrestre flutuou no incognoscível e nósnão podemos conhecer o incognoscível. Sabe o ponteirodo relógio porque foi feito e porque gira? Precisamosresignar-nos com a circunstância de não havermospassado de ponteiros. Somos seres finitos e Deus éinfinito. Não há estalão de medida entre o finito e oinfinito. Estamos na situação de uma r odinha de relógio,que, metida na sua caixa, raciocinasse sobre a indústriarelojoeira. Seguramente, ela poderia também raciocinardurante dez milhões de anos, sem concluir que omecanismo em que se integra tem por fim corresponderao movimento diurno do nosso planeta. Minha querida: arodinha do relógio só tem uma função, que é rodar.Todas as doutrinas filosóficas e religiosas resultaram vãsna indagação do absoluto.

Entretanto, a Ciência não é totalmente ilusória.Sabemos que o mundo visível, atingível, perceptível aosnossos sentidos, não existe sob as formas aparentes quenos impressionam e não passam de um véu do mundoreal e invisível. Sabemos que o átomo é intangível, que aluz, o calor, o som, não existem, bem como a solidezaparente dos corpos. Nossos sentidos, nossos meios depercepção apenas nos dão uma falsa imagem darealidade. Sabem que assim é, já é alguma coisa, bemcomo que a realidade reside no invisível, que a alma éuma força psíquica indestrutível, que se torna

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pessoalmente imortal, isto é, consciente de suaimortalidade, desde que começou a viverintelectualmente, desprendida da espessa ganga material.Sobre os bilhões de seres humanos que povoam a Terra,a proporção dos conscientes de sua imortalidade,conservando a lembrança de existên cias anteriores éfraca, mesmo em Júpiter, sua estância atual. Mas, oprogresso é a lei da Natureza e todos deverão atingir essevalor consciencial. Essa é a força psíquica quemovimenta o mundo. O Universo é um dinamismo. Ovisível aos olhos do corpo é co mposto de elementosinvisíveis. O que vemos é feito de coisas que se não vêem.As classificações científicas que, durante tantos milhõesde anos, constituíram a ciência humana, foram baseadasem sensações superficiais. A Humanidade, porém, pelaanálise mesma das sensações, pela observação e pelaexperimentação, aprendeu que o Universo é regido porforças imateriais, que as almas são realidades, seresindestrutíveis, que podem comunicar -se, manifestar-se àdistância; que o espaço não é barreira de separação,antes laço de união entre os mundos; que a pequeninaTerra, ora moribunda, é um astro celeste como os seusvizinhos, e que a sua Humanidade não teria passado deuma diminuta fração das muitas que existem noUniverso. E, como se perpetuou por tanto tempo e ssahumanidade? Certo, pela suprema lei do amor. Foi ele, oamor, quem lançou as almas no cadinho universal. E' oamor que deve pairar acima do tempo, como se verificana história da Humanidade. Ele, o criador perpétuo,universal; a imagem sensível e deslu mbrante do Poder

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invisível e incognoscível, que irradia eternamente nomistério insondável.

Eis como, naqueles últimos dias do mundo, os doisúltimos exemplares da Humanidade ainda conversavamsobre os grandes problemas que, de todos os tempos,desafiaram a curiosidade dos homens. Eles tinham -seapoiado na esperança do além e, naquele momento, essaesperança lhes irradiava no coração como um fanalinextinguível.

Ali estava, realmente, o verdadeiro sol. O outro, o doplaneta, continuava a brilhar e aquecer, sempre. Nossaspersonagens tinham a impressão de que viveriam muitotempo ainda. O sistema circulatório das águas e aextração dos princípios alimentares funcionavam, graçasao esforço dos servos infatigáveis, parecendo que aúltima hora não soaria tão ce do no quadrante circulardos destinos.

Mas, um dia, por mais perfeito que fosse, esse sistemadeveria de parar. As águas subterrâneas cessaram decorrer. O solo congelou-se a grandes profundidades. Osraios solares prosseguiam aquecendo as habitações detetos envidraçados, mas planta alguma poderia resistir àfalta da água.

Todos os esforços combinados da ciência e daindústria não lograram dar à atmosfera os elementosnutritivos, peculiares à atmosfera de uns tantos mundos,e o organismo humano reclamava sempre osreconstituintes que aqueles esforços tinham obtido, qualvimos, do ar, das águas e das plantas. Secas as fontes,decretada estava à condenação.

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Depois de haver enfrentado todos os óbices ereconhecida a inutilidade da luta, o último casal humanonão se resignou a esperar a morte. Outrora, antes de seconhecerem, cada qual de per si a esperava sem temor.Agora, porém, cada qual queria seqüestrar o ser amadoao destino impiedoso. A só idéia de ver o seu Omégarinanimado junto dela, Eva experimentava uma sensaçãotão dolorosa que nem sabia como lhe pudesse resistir. Eele, por sua vez, desesperava-se de não poder arrebatá-ladeste mundo condenado a perecer, voando para aqueleradioso Júpiter, sem deixar na Terra o belo corpo queadorava.

Imaginou que ainda poderia existir alguma regiãoque retivesse um pouco daquela água preciosa, a minguada qual a vida se esvaia. Posto que já debilitado, tomou asuprema resolução de partir, de investigar. O aviãoelétrico ainda funcionava. Deixando a última cidadehumana, que já não era mais que um cemitério, os doisúltimos descendentes da extinta humanidade esqueceramas regiões inóspitas, em busca de qualquer oásisdesconhecido.

Todos os antigos reinos deslizaram a seus pés.Reconheceram vestígios das últimas metró poles focos decivilização, que agora pontilhavam de ruínas toda aextensa zona equatorial. Tudo acabado, tudo morto! Empouco, tornaram a ver a cidade que haviam deixado eonde, sabiam, faltava, como alhures, todo e qualquerelemento de vida. Não desceram e assim prosseguirampercorrendo, naquele vôo solitário, todas as regiões queanimaram as últimas etapas históricas. Por toda à parte,contudo, nada mais que ruínas, silêncio, desolação! Um

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deserto de gelo. Nem mais relva, nem plantas, mesmopolares.

Os últimos cursos da água desenhavam-se como emmapa geográfico e via-se que, junto deles, a vida humanase prolongara. Estavam agora, porém, exauridos,esgotados para sempre, e, quando por vezes se lhespatenteava o fundo de um lago, era um lago de pedra. OSol, mesmo no equador, já não fundia os gelos eternos.Os animais, espécie de ursos de longo pêlo, que aindaresistiam, mal encontrariam, em geladas furnas, exíguaalimentação vegetal. Viam-se também, de vez emquando, uma espécie de morsas e pingüins caminhandosobre o gelo, e grandes aves cinzentas voando rasteira,melancolicamente.

Os míseros condenados não encontraram em partealguma o desejado oásis. A noite caía. No céu, nem umanuvem. Um vento menos frio, soprando do sul, havia -oslevado a planar sobre a antiga África, transformada emregião glacial. O mecanismo do avião paralisara. O frio,mais que a fome, estarrecia -os no fundo da sua naceleforrada de peles.

Pareceu-lhes, perceber uma ruína e tomaram pé. Eraum grande tabuleiro quadrangular, mostran do osfundamentos assentes em grandes massas graníticas.Nem mais nem menos que vestígios de uma pirâmideegípcia. Construção milenar, destinada à eternidade, elasobrevivera, primeiramente, em pleno deserto, àcivilização de que era símbolo; mais tarde, d esceraabaixo do nível oceânico, com os territórios do Egito, daNúbia e da Abissínia; depois, tornara a emergir e forapomposamente restaurada no seio de uma nova capital e

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de uma civilização mais opulenta que as de Tebas eMênfis, até que, finalmente, ac abou em abandono nassolidões desérticas. No monumento das primeiras idadesque ainda subsistia, graças à sua conformaçãogeométrica.

- Descansemos aqui - disse Eva - sorridente emelancólica. Pois que estamos condenados à morte - e, aodemais, quem o não foi? - quero morrer tranqüilamenteem teus braços.

Procuraram uma anfratuosidade nas ruínas e ali seassentaram conchegados, à face da solidão tumular. Elaencolhia-se toda, febrilmente, abraçando -se aocompanheiro e procurando reagir ao frio implacável qu etoda a invadia. Ele a atraía e apertava de encontro aocoração, como se quisesse reaquecê -la com o fogo dosseus beijos.

- Amo-te e ...morro - disse; mas, logo emendou:não, tu disseste que nós não morremos ... Vês a estrelaque nos chama?

Nesse instante, ouviram atrás deles, saindo do túmulode Khéops, um leve ruído semelhante ao farfalhar deuma ramagem agitada pelas brisas. Trêmulos, voltaram -se num movimento único e entreviram uma sombra, quelhes parecia autoluminosa - visto que a noite se fechava enão havia luar - deslizando, antes que marchando, ecélere se lhes aproximando, até que estacou diante deseus olhos aterrados, estupefatos.

- Nada temais - disse -, venho receber-vos. Nãomorrereis... Ninguém morre, ninguém jamais morreu. Otempo rola na eternidade e a eternidade fica. Fui Khéops,eu que vos falo e aqui reinei, nos prístinos tempos deste

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mundo. Depois, aqui expiei meus crimes em sucessivasexistências servis; e quando fiz jus à imortalidade, fuihabitar Netuno, Ganímedes, Reia, Titã, Satur no, Marte eoutros mundos de vós desconhecidos. Atualmente, moroem Júpiter. Nos tempos áureos da Terra, esse planeta eraainda inabitável para seres inteligentes e percorriaestágios preparatórios. Agora, é esse mundo colossal querecebe o patrimônio dos progressos terrenos. Os mundosse sucedem no tempo, como no espaço. Tudo é eterno,tudo se funde no divino. Confiai em mim, vinde comigo.

Enquanto falava o velho Faraó, sentiram deliciosofluido penetrar-lhes na mente, como sói acontecerquando ouvimos uma doce melodia. Uma sensação defelicidade transcendente e calma os invadiu inteiramente.Nunca um sonho, um êxtase, lhes produzira tal gozo.

Eva ainda estreitou mais fortemente o companheiro... Amo-te, amo-te! repetia. Omégar depôs-lhe nos lábios jáfrios um terno beijo, e ouviu que ela ainda lhe dizia numfrêmito: oh! quanto o teria amado!. . .

Júpiter lá estava a cintilar no céu.Eva abriu os olhos, fitou o planeta gigantesco e

pareceu que se abismava no seu fulgor, como fascinadapor alguma visão. De repente, o semblante iluminou-se-lhe num êxtase radiante. Muita vez, com o derradeirosuspiro do moribundo, vê-se um halo de tranquilidadeestender-se, banhar-lhe a fronte e nela imprimir o selo deum sonho inefável. Assim, e porvent ura maisradiosamente, numa iluminação divina, transfigurou-se osemblante da última mulher.

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Ainda tentou falar, estendeu os braços para o astro e,reanimada por uma energia nova, ei -la a exclamar,admirada:

Sim, é verdade, lá está ela, a Verdade que me fizestepressentir. Como são belos! Espíritos imortais, eis -meconvosco. Ah! que bem o disseste - nada morre. Estouconsolada, Omégar está comigo,. vivemos, continuamos aviver sempre, sempre! Exaltava -se ainda. Fixou emOmégar os olhos fulgurantes de entusiasmo e, contudo,não o viu. Sim - disse ela - ele está comigo. Nós vivemos,sentimos, vemos... A felicidade está na vida, na vida...eterna.

Levada por uma força sobrenatural, erguera -se comose quisesse alçar-se à imensidão do céu, mas,. logo,rodando nos calcanhares, recaiu nos braços de Omégar,que se apressara em ampará-la. Estava. morta. Beijou-aainda nos lábios gélidos, trespassado de um frio glacial esentiu, ele próprio, que a vida lhe fugia. O coração bateu -lhe precipite e, de repente, parou.

Seus olhos se apagaram confu ndidos na luz deJúpiter, fechando as pálpebras suavemente.

A sombra de Khéops elevou-se, desapareceu noespaço. A quem pudesse ver, não com os olhos do corpo,que só apreendem as vibrações físicas, mas, com os olhosda alma, que captam as vibrações psíqui cas, deparar-se-ia então, levadas por aquela. sombra, duas minúsculasflamas conchegadas, conjugadas na mesma atração,ascendendo ao céu.

Daí por diante, nada mais restava na Terra, a não seralguns míseros grupos de criaturas a morrerem de fomee de frio - assim uma espécie de esquimós selvagens,

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revestidos de peles e buscando nas cavernas rupestres umderradeiro abrigo. A raça intelectual, essa estavadefinitivamente extinta. Algumas espécies animais,degeneradas, ainda sobreviveram alguns milhares deanos. Depois, insensível, gradualmente, toda a vidaplanetária se extinguiu.

Estes sucessos ocorreram, como vimos, dez milhões deanos após a época que estamos vivendo. O Sol continuoua brilhar ainda por uns vinte milhões de anos e Júpiter eSaturno foram, então, a sede de gerações florescentes.Ela, a Terra, continuou a girar no espaço, qual desoladanecrópole, na qual não se ouviria, jamais, o pipilar de umpássaro. Eterno silêncio amortalhou as ruínas daHumanidade morta. Toda a história humana se esvaíraqual nuvem de fumo.

E no abismo celeste, na amplidão infinita dos céus,nenhuma lápide, uma só lembrança assinalou o ponto emque o nosso mísero planeta exalara o derradeiro suspiro.

EPILOGODissertação Filosófica

Então jurou por Aquele que vive para todos osséculos dos séculos, que mais tempo não haverá.

Apocalipse, X 6.

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A Terra estava morta. Os outros planetas haviamtambém morrido, uns após outros. Apagara -se o Sol. Asestrelas, porém, continuavam a brilhar, havia sempresóis e outros mundos.

Na eternidade sem limites, o tempo, essencialmenterelativo, é determinado pelo movimento de cada planetae mesmo estimado em cada qual diversamente, segundoas sensações pessoais das criaturas. Cada globo conta asua própria duração. Os anos da Terra não são os deNetuno, que equivalem a cento e sessenta e quatro dosnossos e, ainda assim, nada representam no cômputo doabsoluto. Não há medida comum entre o tempo e aeternidade. No espaço vazio não existe o tempo. Ninguémpoderia lá julgar-se em qualquer ano ou século. Admite-se, contudo, a possibilidade de um estalão quedeterminasse a chegada de um globo giratório.

Sem movimento periódico, impossível se tornaqualquer noção de tempo.

A Terra já não existia. Nem ela, nem a sua pequenavizinha celeste - a ilhota Marte, nem a bela Vênus, ocolossal Júpiter, o estranho Saturno, que perdera osanéis e, tão-pouco, Urano e Netuno com toda a sualenteza. Nem mesmo o Sol que, com a ignidade das suaschamas, havia, durante tanto tempo, fecundado ascelestes pátrias que lhe gravitavam em torno. Ele, o Sol,não passava agora de uma bola escura, idêntico aosplanetas vassalos; e o sistema planetário, invisível,prosseguia correndo na imensidão estrelada, no bojo doespaço obscuro. Do ponto de vista vital, esses mundos

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estavam todos mortos, não mais existiam. Sobreviviam àsua história, assim como os escombros das cidadesAssírias que o arqueólogo descobre no deserto adusto, arolarem obscuros no invisível e ignoto. E tudo isso emtemperatura ultraglacial de 273 graus ab aixo de zero.Nenhum gênio, nenhum mago poderia reconstituir otempo esvaecido, restaurar os antigos dias em que aTerra flutuava inebriada de luz, belos pradosverdejantes, rios ondulosos como grandes serpentes,bosques orquestrais, florestas compactas e misteriosas,mares plácidos ou rugidores, montanhas sangrandofontes e cascatas, recantos luminosos, jardins floridos,ninhos, berços, populações laboriosas que viveram tãogloriosamente ao sol da vida, perpetuadas por um amorsem fim. Eterna, então, parec ia toda aquela ventura. Quefim levaram aquelas manhãs, aquelas noites? As flores eos amantes, as luzes e os perfumes, belezas e sonhos?Tudo aniquilado, desaparecido tudo! A terra, osplanetas, todo o sistema solar anulado! E o própriotempo sustado! Ele, o tempo, escoa-se na eternidade; masa eternidade permanece e o tempo ressuscita.

Antes de existir a Terra, por toda uma eternidadehouve sóis e houve mundos, humanidades vi vas eoperosas, como a nossa de agora. Assim viviam elas nobojo do infinito, milhões e milhões de anos, antes que aTerra existisse. Nem o universo anterior seria menosfulgurante que o nosso. E depois de nós, será o mesmoque antes de nós. Nossa época não tem qualquerimportância.

Examinando a história da Terra, poderíamosremontar primeiramente à época primária, na qual ela

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fulgia no espaço como verdadeiro sol; depois, vê -la-íamosna fase em que, semelhante a Júpiter e a Saturno, foirecoberta de uma atmosfera densa, carregada de vaporesquentes, e, daí por diante, acompanhar -lhe todas astransformações até ao período humano. Acabamostambém de ver, que, quando o vapor da águadesapareceu da sua atmosfera, sendo esta mais ou menosabsorvida pelo próprio globo, ele deveria retratar aimagem dos grandes desertos lunares ora revelados pe losnossos telescópios, com as diferenças individuais danatureza terrena regida por seus próprios elementos,com as suas últimas configurações geográficas, suasplagas e rios dessecados. Cadáver planetário! Terramorta e regelada, leva, nada obstante, em seu seio umaenergia não esgotada - a do seu movimento de translaçãoem torno do Sol, energia que, transformada em calorpela parada de movimento, bastaria para fundir toda asua massa, reduzir uma parte a vapor e recomeçar umanova história planetária, embora de curtíssima duração,visto que, se este movimento de translação viesse a cessar,a Terra se precipitaria no Sol e perderia a sua existênciaprópria.

Paralisada de súbito, ela cairia em linha reta para oSol, em velocidade crescente, para atingi -lo em 65 dias.Parando gradualmente, a queda seria em espiral elevaria mais tempo para desvanecer -se no astro-central.

Toda a história da vida terrena, aí a temos diante dosolhos, com o seu começo e o seu fim. Sua duração, sejaqual for o número de séculos que a integrem, antecede esucede a uma eternidade, de sorte que não representa

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senão um instante perdido no infinito, uma vagaimperceptível no oceano imenso das idades.

Muito tempo depois que a Terra deixara de ser umaestância de vida, os gigantescos mun dos de Júpiter eSaturno, transitando mais lentamente da fase solar àplanetária, reinaram a seu turno no seio do sistema solar,irradiando uma vitalidade incomparavelmente superior atoda a história orgânica. do nosso globo. Entretanto,também para eles, chegaram os dias da decrepitude ehouveram de mergulhar na noite do túmulo.

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SULLY - Prudhomme, le Zenith.

Se a Terra tivesse conservado por tempos mais longosos seus elementos vitais como Júpiter, por exemplo, ela sópereceria quando se extinguisse o próprio Sol. Mas, averdade é que a duração da vida dos mundos éproporcional à grandeza e aos elementos vitais de cadaum.

Duas são as fontes principais do calor solar:condensação da nebulosa primitiva e a queda demeteoros. A primeira causa produziu, segundo os maisseguros cálculos da termodinâmica, um calor queultrapassa de dezoito milhões o irradiado pela Soldurante um ano, suposto que a primitiva nebulosa fossefria, o que não provável. Continuando a condensar-se, o

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Sol pode irradiar, sem nada perder, durante séculos eséculos.

O calor emitido por segundo equivale ao resultanteda combustão de 11 quatrilhões e 600.000 milhões detoneladas de carvão mineral! A Terra não capta mais quemeio milésimo dessa irradiação, e esse meio milésimobasta para entreter toda a vida terrestre. Dos 67 milhõesde raios luminosos e caloríficos que o Sol manda aoespaço, apenas um é recebido e utilizado pelos planetas.

Pois bem: para conservar essa fonte de calor, bastar iaque o globo solar continuasse a condensar -se, de tal modoque o seu diâmetro não diminuísse senão 77 metros porano, ou 1 quilômetro em treze anos. Uma contração tãolenta que se tornaria absolutamente imperceptível.Seriam precisos nove mil e quinhento s anos para reduziro diâmetro de um segundo apenas, de arco.

Se o mesmo Sol ainda fosse atualmente gasoso, seucalor, longe de diminuir, ou mesmo estacionar,aumentaria pelo só efeito da contração, porquanto,condensando-se por um lado e resfriando-se por outro,um corpo gasoso, o calor engendrado pela contração émais que suficiente para impedir a queda detemperatura, e o calor aumenta até que a condensaçãocomece sob a forma líquida. Tal, provàvelmente, o estadoatual do Sol.

A condensação do globo solar, cuja densidade aindanão representa senão um quarto da densidade terrena,pode, só por si, entreter durante muitos séculos (pelomenos dez milhões de anos) o calor e a luz solar. Mas, nósfalamos duma segunda fonte de manutenção dessatemperatura, que é a queda dos meteoros.

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Constantemente, desabam na Terra cento e quarenta eseis milhões de estrelas cadentes, cada ano. Maior,incomparavelmente, é o número das que convergem parao Sol, dada a sua atração preponderante. Se elerecebesse, digamos, a centés ima parte da massa terrena,tal queda bastaria para entreter a sua irradiação, nãopela combustão desses meteoros - pois se o Sol seconsumisse a si mesmo a sua duração não passaria de seismil anos - mas, pela redução a calor do movimentosubitamente sustado, igual a 650.000 metros no últimosegundo da queda, tal a intensidade da atração solar.

Se a Terra caísse no Sol, entreteria por 95 anos odespêndio atual da energia solar. E assim

Vênus – durante - 84 anosMercúrio – durante – 7 anosMarte– durante – 13 anos

Júpiter – durante – 32.254 anosSaturno – durante – 9.652 anos

Urano – durante –1.610 anosNetuno – durante –1.890 anos

O que vale dizer que a queda de todos os planetas noSol produziria calor suficiente para alimentá -lo por cercade quarenta e seis mil anos.

Certo, pois, que a queda de meteoros adita uma longaduração ao entretenimento do calor solar. Trinta e trêsmilionésimos de acréscimo anual, na massa solar,bastariam para compensar a perda, e somente a metade,se admitirmos que a condensa ção tenha uma parteequivalente à da queda dos meteoros, para a manutenção

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do calor solar. Entretanto, para que os astrônomos opercebessem, mediante o aceleramento das revoluçõesplanetárias, muitos séculos seriam precisos.

Podemos, assim, admitir um míni mo de vinte milhõesde anos para o futuro do nosso Sol, levando em contaapenas estes dois fatores. Poderíamos, mesmo, elevar ocálculo a trinta milhões, sem exagero. E note -se que talduração ainda pode ser aumentada pela reserva defatores desconhecidos, sem imaginarmos o encontro deum enxame meteórico.

Foi, portanto, o Sol o último sobrevivente do seusistema, o último beneficiado do fogo vital.

E contudo, também ele se extinguiu... Depois de haverderramado sobre a família celeste, por tanto tempo, osraios da sua luz vivificante, viu aumentarem-se-lhe asmanchas, em número e extensão, palecer -lhe a fotosfera,sombrear-se, coagular-se a superfície outrora fulgurante.Uma bola enorme, vermelha, substituiu no espaço o focoesplendente dos mundos desaparec idos.

Também para ele chegou o último termo, soou aúltima hora no eterno relógio dos destinos, hora em quetodo o sistema solar houvera de ser riscado do livro davida.

Sucessivamente, todas as estrelas que representamum sol, todos os sistemas solares, t odos os mundos,tiveram a mesma sorte...

Tout sera, tout semble étre, et tout n'est que néant.BOUDHA.

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Apesar disso, tal como hoje, o Universo continuou aexistir. A ciência matemática nos diz:

Parece que o sistema solar não possui atualmentemais que a centésima qüinquagésima parte da energiatransformável, que possuía no estado de nebulosa. Sebem que este remanescente constitua ainda uma provisãocuja enormidade nos confunde, ele terá também o seutotal esgotamento. Mais tarde, a transformação seoperará em todo o Universo e acabará estabelecendo umequilíbrio geral de pressão e de temperatura.

Daí por diante, a energia não mais será suscetível detransformar-se. Não será a imobilidade absoluta, vistoque a mesma soma de energia há -de existir sempre sob aforma de movimentos atômicos, e sim, a ausência de todoo movimento sensível, de toda a diferença e de toda atendência, isto é, a morte definitiva.

Eis o que diz a matemática contemporânea.A observação atesta, de fato, que, de um lado, a

quantidade de matéria permanece constante, e, de outrolado, o mesmo se dá com a força ou energia, através detodas as transformações e posições dos corpos; mas, queo Universo tende para um estado de equilíbrio,conseqüente à uniformidade do calor repartido. O ca lorsolar, como o de todos os astros, parece devido àtransformação dos movimentos iniciais, aos choquesmoleculares, e o calor atual, proveniente dessatransformação de movimento, difunde -se constantementeno espaço, isso até que todos os astros sejam res friados à

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temperatura do próprio espaço. Se considerarmosidôneas as nossas atuais ciências quais a física, amecânica, as matemáticas; e admitindo a constância dasleis que hoje regem a natureza e o raciocínio humano,outro não poderá ser o destino do Uni verso. Longe de sereterna, esta Terra que habitamos teve o seu princípio. Naeternidade, cem milhões, um bilhão de anos, ou deséculos, são como um dia. A eternidade precede e sucede,a longura aparente se desvanece para reduzir -se a umponto. O estudo científico da natureza e o conhecimentode suas leis nos levam, pois, à questão outrora posta pelosteólogos, chamem-se eles Zoroastro, Platão, Agostinho,Tomás de Aquino, ou qualquer bisonho seminaristatonsurado de véspera, a saber: Que fazia Deus antes decriar o mundo? E findo o mundo, que fará Deus? Ouentão, sob uma forma menos antropomórfica, de vez queDeus é incognoscível:

- Qual seria o estado do Universo antes da ordem decoisas atual, e que será depois?

A questão é a mesma, quer se admita um Deuspessoal, pensando e agindo preconcebidamente, quer senegue à existência de qualquer princípio espiritual, parasó admitir a de átomos e forças indestrutíveisrepresentando uma quantidade de energia invariável,não menos indestrutível.

No primeiro caso, porque Deus, potência eterna,incriada, teria ficado inativo, ou, tendo ficado inativo,satisfeito com a sua absoluta imensidade inacrescível,haveria de mudar esse estado criando a matéria e asforças? O teólogo poderá responder: porque assim lhe

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aprouve fazer... Mas, o filósofo não se conformará comessa variabilidade do pensamento divino.

No segundo caso, pois que a origem da atual ordemde coisas apenas remonta a urna certa data e não háefeito sem causa, temos o direito de perguntar qual oestado anterior à formação do universo atual.

Ninguém poderá contestar que, posto seja a energiaindestrutível, há uma tendência universal para a suadissipação, que deve culminar em repouso e morteuniversal. E um raciocínio matemático, impecável. Econtudo, nós não o admitimos... Porquê?

Porque o Universo não é uma quantidade finita.

Devant 1'éternité tout siècle est du méme ãge.LAMARTINE, Harmonies.

E' impossível conceber um limite à extensão damatéria.

Temos diante de nós, através de um espaço ilimitado,a fonte inestancável da transformação de energiapotencial em movimento sensível e, daí, em calor enoutras forças; e não um simples mecanismo finito, atrabalhar como um relógio, que pudesse parar um diapara sempre.

O futuro do Universo é o seu passado. Se ele devessefinalizar um dia, há muito teria acabado e nós aqui nãoestaríamos a estudar este problema.

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E por serem finitas as nossas concepções que nãopodemos assinalar principio nem fim, às coisas. Nãoconcebemos mais que uma série, absolutamenteinterminável, de transformações existentes no passado,em trânsito para o futuro; ou, ainda, séries igualmenteinfindáveis de combinações materiais podendo encadear -se de planetas em sóis, de sóis em sistemas solares, destesem vias-lácteas, em universos estelares, etc., etc. Opanorama celeste aí está, contudo, a demonstrar -nos oinfinito. Não compreendemos maiormente a infinidadedo espaço e do tempo, menos ainda qualquer limitação deespaço e tempo, de vez que o pensamento os ultrapassa econtinua a vê-los. Caminharíamos sempre, em qualquerdireção, sem jamais topar um fim. Podemos, de igualmodo, imaginar uma ordem de sucessão nas coisasfuturas.

Falando do absoluto, não é espaço e tempo o que nosdeve preocupar, sem dúvida, mas o infinito e aeternidade, no seio dos quais toda a medida, por maisextensa que seja, se reduz a um ponto. Nós nãoconcebemos, não compreendemos o infinito, no espaço ouna duração, mas a nossa incapacidade de compreensãonada prova contra o absoluto.

Confessando nada compreender, sent imos que ele,esse infinito, nos envolve, e que o espaço limitado poruma parede ou barreira qualquer é de si mesmo umaidéia absurda, tal como a de que pudéramos admitir, emdado momento da eternidade, a possível existência de umsistema de mundos cujos movimentos medissem o temposem o criar. Será que sejam os relógios quem cria otempo?

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Ninguém o dirá, senão que eles apenas o medem.Nossas medidas de tempo e espaço se desvanecem diantedo absoluto. Mas o absoluto permanece.

O fato é que vivemos no infini to, sem dissoduvidarmos. A mão que sustém esta pena, compõe -se deelementos indestrutíveis, eternos; e os átomos que aintegram já existiam na nebulosa que originou o nossoplaneta, e continuarão existindo por todos os séculos dosséculos. Vosso peito respira e o cérebro pensa com osmateriais e a força já operantes há milhões de anos, e quehão-de operar, sem fim. E o minúsculo globo quehabitamos está no fundo do infinito - não no centro deum universo limitado - no fundo do infinito, tanto quantoa mais longínqua estrela acessível às nossas lentestelescópicas.

A melhor definição do Universo que até agora nos foidada, é ainda a de Pascal, à qual nada haveria queacrescentar, a saber: - Uma esfera cujo centro está emtoda a parte e cuja circunferência não está em partealguma

E este infinito que assegura a eternidade do Universo.Estrelas após estrelas, sistemas sobre sistemas, universossucedendo-se a universos, aos milhares, aos milhões,infindos em todos os rumos e direções. Não habitamosum centro inexistente e, tal como a mais longínquaestrela a que aludimos, a Terra jaz no fundo do infinito.Voemos no espaço infindo, em pensamento e com avelocidade do pensamento, por meses, anos, séculos,milênios e nunca, jamais, nos deterão quaisquer limites,nem nos aproximaremos de uma fronteira. Haveremos

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de ficar no vestíbulo desse infinito escancarado à nossaface...

Infinitos no tempo: vivamos em pensamento paraalém das idades futuras, juntemos séculos a séculos,períodos seculares a períodos seculares e jamaisatingiremos o fim. Haveremos de ficar no vestíbulo dessaEternidade desdobrada diante de nós...

Em nossa pequena esfera de observação terrestre,constatamos que, através de todas as mudanças deaspecto da matéria e do movimento, o Qu antum de uma eoutro continua sendo o mesmo, sob outras formas.Matéria e Força se transformam, mas a quantidade demassa e de potência subsiste.

Os seres vivos nos dão este exemplo perpétuo:nascem, crescem, assimilando substâncias tomadas aoambiente exterior, e, quando morrem, se desagregam erestituem à Natureza todos os elementos que lhesintegraram o corpo.

Uma lei constante reconstitui perpetuamente outroscorpos com esses mesmos elementos. Todo astro écomparável a um ser organizado, mesmo no concernenteao seu calor interno. O corpo vive enquanto funcionamos seus diversos órgãos, acionados pelos movimentos darespiração e da circulação. Quando sobrevêm oequilíbrio e o estacionamento, verifica -se a morte; mas,depois da morte, todas as substâncias que formavam ocorpo vão reconstituir outros seres. A dissolução é, assim,o prelúdio do renovamento e formação doutros seres. Aanalogia leva-nos a crer que a mesma coisa se verifica nosistema cósmico. Nada pode ser destruído.

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O que subsiste, invariável em quan tidade, mussempre mudando de forma sob as aparênc ias sensíveisque o Universo nos apresenta, é uma Potênciaimensurável, que somos obrigados a reconhecer ilimitadano espaço, e sem começo nem fim, no tempo.

Eis porque sempre haverá sóis e mundos, que nãoserão os nossos sóis e mundos atuais; que serão outros,mas, sucessivos sempre, por toda a eternidade.

E este universo visível não deve representar para onosso espírito mais que as aparências variáveis emutáveis da Realidade absoluta e eterna, constituída pelouniverso invisível.

I1 mit 1'éternité par delà tous les âges; Par de18 tousles cieux 11 jeta rinfini.

VITOR HUGO, Movah.

Foi em virtude dessa lei transcendente, que, muitotempo depois da morte da Terra, dos planetas gigantes edo próprio astro central - enquanto ele, o nosso velho Solenegrecido vogava sempre, na imensidade ilimitada,levando consigo os cadáveres de mundos em que ashumanidades terrestres e planetárias haviam mourejadooutrora - um outro sol extinto, vindo das profundezas doinfinito, o encontrou quase de face e o deteve!

Então, dentro da noite sideral profunda, essas duasbolas formidáveis engendraram, nuns repente, por força

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do choque prodigioso, um fogo celeste imenso, uma vastanebulosa a oscilar, primeiramente qual flama louca, amergulhar depois nos abismos celestes, insondáveis. Suatemperatura poder-se-ia estimar em milhões de graus.Tudo o que fora terra, água, ar, mineral, planta, homem,aqui na Terra; tudo o que fora carne, olhos, coraçõespalpitantes de amor, belezas empolgant es, cérebrospensantes, mãos operosas; vencedores ou vencidos,carrascos e vítimas, átomos e almas não desprendidas damatéria, tudo se reduzira a fogo. E assim os mundos deMarte, Vênus, Júpiter, Saturno e a restante confraria.Era a ressurreição da natureza visível, enquanto que asalmas que tinham adquirido a imortalidade continuavama viver eternamente nas hierarquias do universopsíquico, invisível.

A consciência de todos os seres humanos que tinhamvivido na Terra, graduara-se no ideal; os seres haviamprogredido por suas transmigrações através dos mundose todos reviviam em Deus, desprendidos das gangasmateriais, plainando na luz eterna e progredindo sempre.

O universo aparente, o mundo visível, é o cadinho noqual se elabora, incessantemente, o mund o psíquico,único real e definitivo.

O espantoso choque dos dois sóis extintos criou umanebulosa imensa, que absorveu todos os velhos mundosreduzidos a vapor e que, soberba, gigantesca, flutuandono espaço infinito, começou a girar sobre si mesma. Naszonas de condensação dessa nebulosa primordialcomeçaram, então, a nascer novos globos, tal como se deuoutrora, nos primórdios da Terra.

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E foi, assim, um recomeço do mundo, uma gênese quefuturos Moisés e Laplace haveriam de recordar.

E a criação prosseguiu nova, diversa, não terrestre,marciana, saturnina, solar, mas, sim, extraterrena,sobre-humana, inextinguível.

E houve outras humanidades, outras civilizações,outras vaidades, outras Babilônias, Tebas, Atenas,Romas; outros palácios, templos, monumentos; outrasglórias e outros amores. Mas, tudo isso nada tinha daTerra, cujas efígies se esvaneceram como sombrasespectrais.

E esses universos também passaram, por sua vez.Outros lhes sucederam. A certa. época, perdida naeternidade dos tempos, todas as est relas da via-láctea seprecipitaram para um centro comum de gravidade,constituindo um imenso, formidável sol - centro de umsistema cujos mundos gigantescos se povoaram de seresorganizados, em temperatura incandescente para nós, ecujos sentidos, vibrando sob outras irradiações, comoutra física e outra química, lhes mostraram o Universosob aspectos irreconhecíveis aos nossos olhos...

Para outras criações, outros seres e outrospensamentos.

E sempre, sempre o espaço infinito permaneceurepleto de mundos e de estrelas, de almas e de sois. Nemnunca deixou de haver eternidade.

Visto que ela não comporta começo nem fim...

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Fim

NOTAS DE RODAPÉ

(1) Havia mais de 300 anos que o Observatório deParis se tornara apenas o núcleo administrativo daastronomia francesa. De preferência às cidades baixas,populosas e poeirentas, as observações se faziam agoranas montanhas mais altas, emergentes de atmosferaspuras e afastadas de tumultos e distrações mundanas. Otelefone mantinha os observadores em comunicaçãopermanente com a sede administrativa. Os aparelhos, aiconservados, não se destinavam senão a satisfazer acuriosidade de alguns sábios residentes em Paris, ou paraverificação de algumas descobertas.

(2) Escusado dizer que a linguagem do século XXVvai aqui traduzida na do XIX.

(3) Antiga física do globo.(4) I, 7-8; 111, 13; IV, 5; VI, 2-3; XI, 26; XV.(5) Porque o mesmo Senhor do céu descerá com,

algazarras, e com voz de Arcanjo, e com a trombeta deDeus: e os que em Cristo morreram, primeiroressuscitarão: - Depois nós outros, que ficarmos vivos,seremos com eles juntamente arrebatados, saindo aoencontro do Senhor em o ar: e assim estaremos semprecom o Senhor. - Assim que uns aos outros consolai -voscom estas palavras.

(6) 0 dia imediato ao 4 de Novembro, passou a ser 15.

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(7) Mal se publicava a 1.4 edição desta obra (1.9 deDezembro de 1893), um novo profeta, um sábio vienense,Rodolfo Falb, anunciava um novo fim do mundo, destavez para 13 de Novembro de 1899, por força de umencontro cometário. Ora, o que nós esperamos nessa datanão é um cometa, mas inofensiva chuva de estrelascadentes.

(8) A partir do século XIX os estudos históricos daNatureza tinham descoberto as oscilações verticais,seculares, da crosta terrestre, variando segundo asregiões, e constatara, assim, a lenta depressão do soloocidental e setentrional da França e a invasãoprogressiva do mar, até onde chegavam às tradiçõeshistóricas. Viram como, pouco a pouco, o mar destacarado continente as ilhas de Tersey, as Minquiers, Chausey,Cezembre, Monte S. Miguel, engulindo as cidades de Is.Helion, Tommem, Harbour, S. Luís, Monny, Bourgneuf,Feillette, Paluel, Nazado e a península armoricana arecuar lentamente diante da invasão oceânica. De séculoem século a hora diluviana fora soando para Herbavilla,a oeste de Nantes, para Saint -Denis-Chef-de-Caux, aonorte do Havre, para Saint-Etienne-de-Paluel e Gardoineao norte de Dol, para Tolente, a oeste de Brest, paraPorspican, vizinha de Cancale. Mais de oitentalocalidades da Holanda tinham sid o tragadas noqüinquagésimo século. Noutras regiões as modificações severificaram em sentido inverso, o mar havia recuado. Aonorte e oeste de Paris, porém, a dupla ação doabaixamento do solo e erosão das costas produziram em8.000 anos um lençol liquido navegável para navios dealto porte.

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(9) Mais de um leitor há-de julgar muito suportáveleste clima, visto podermos ao presente citar regiões detemperaturas médias inferiores a essa e que, nem porIsso, deixam de ser habitadas. Temos por exemplo,Verchnolansk, cuja temperatura média anual é de 190,3.Mas, nessas regiões, há um estio durante o qual o gelo sefunde e, se em Janeiro sofrem um frio de 60 graus e atémais, gozam em Julho de 15 ou 20 acima de zero. Aolimite em que chegamos na história do mundo , dava-se ocontrário, a temperatura média da zona equatorial eraconstante e, mais do que nunca, o gelo poderia fundir -se.