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Textos/Texts Sérgio Mah Rui Nunes Ph. 02 Paulo Nozolino

Ph.02 Paulo Nozolino · no todo ou em parte, por qualquer forma ou quaisquer meios eletrónicos, mecânicos ou outros, incluindo fotocópia, gravação magnética

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Textos/TextsSérgio MahRui Nunes

Ph.02 PauloNozolino

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Ne dure que ce qui a été conçu dans la solitude, face à Dieu, que l’on soit croyant ou non.Cioran

C’est que je ne connaissais pas encore les hommes. Je ne croirai plus jamais à ce qu’ils disent, à ce qu’ils pensent. C’est des hommes et d’eux seulement qu’il faut avoir peur, toujours.Céline

É sintomático que Paulo Nozolino considere como a sua primeira fotografia uma que fez na Acrópole, em 1972. É uma imagem com um formato quadrado e a preto e branco que dá a ver uma vista lateral do Erecteion, o templo consagrado a Atena e a Posídon. A escolha parece confirmar a predisposição para se identificar pontos de partida ou de origem que decorrem do que se fez e do que se viu depois. É uma imagem virtuosa, nomeadamente pela sua qualidade premonitória, que aponta para uma ordem do sensível e para um horizonte temático convergentes com o nexo conceptual e estético que o artista tem vindo a explorar ao longo de quatro décadas. A revisitação do passado, ancorado numa atitude atenta e crítica perante o mundo, apelando à memória dentro da atualidade e à compreensão da mesma dentro da história, a atração pelas ruínas, o caráter metonímico e alegórico dos escombros, do que resta, mas também a experiência da viagem, a errância, a deambulação solitária. Neste livro, ao posicionar essa primeira imagem ao lado de uma outra de um muro de execuções em Auschwitz, feita 22 anos mais tarde, confirma-se também a ideia de que o imaginário fotográfico de Paulo Nozolino esteve sempre marcado pelo peso inelutável de uma imaginação trágica, cujas origens estéticas, morais e discursivas reme-tem como sabemos para a Antiguidade grega.

Profundamente vivencial e meditativa, poética e dionisíaca, a obra de Nozolino revela-nos uma visualidade sensível às formas do pathos. A fotografia é assumida como um meio privilegiado de exprimir e orga-nizar a sua visão inquieta e dramática do mundo. Em 2001, num breve

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mas revelador texto o fotógrafo declara: «Sempre estive à beira do nada. A impressão de viver num não-tempo. Cada pequena alegria sentida tornava-se logo passado e cada sonho de futuro me parecia já uma recordação […]. A fotografia permitiu-me viajar e ver a diferença entre o possível e o impossível. Podia guardar sem possuir, lembrar-me sem preocupação de esquecer, sobreviver em vez de viver. Sobretudo saber que tudo tem uma história, cada história duas versões, cada versão o seu passado.»

A viagem remete para um tipo de deslocamento e movimentação, que tem tanto de físico como de mental. O lugar estrangeiro é menos inibidor, refreia a familiaridade e a mecanicidade das rotinas, e desperta uma disponibilidade fortemente estimuladora e desafiadora da atenção. Não obstante, no caso de Nozolino, não existe a pretensão de conhecer ou descrever os traços característicos daquele lugar e das figuras que o habitam, facto que o distancia do quadro de motivações dos fotógrafos de intenções documentais. Para Nozolino, viajar é um modo – uma estra-tégia – de evasão, para repensar o seu mundo, para especular sobre a realidade de onde provém, um modo de assinalar sinais e sintomas de uma história simultaneamente individual e coletiva.

O início deste livro parece desvelar um movimento geográfico. Surgem imagens feitas entre 1978 e 1981 em Lisboa, Coimbra, Bruxelas, Karabük, Nova Iorque, El Paso, Los Angeles, Verona, e que integram a ideia de uma testemunha em fuga. Esse desejo de sair teve o seu primeiro ato em 1975, então com 20 anos, quando decidiu ir estudar para Londres (no London College of Printing), afastando-se de uma cidade – Lisboa – e de um país constringido numa realidade cultural incipiente e ainda fortemente conservadora. Mais tarde, a partir do início dos anos de 1990, percorreu vários países árabes – Marrocos, Egito, Mauritânia, Síria, Jordânia, Líbano, Iémen. Seguiram-se outras viagens por Itália, Alema-nha, Polónia, Macau, Córsega, Bósnia, Roménia, Ucrânia.

O que fotografa Nozolino durante estas viagens? O que vemos é um conjunto prolixo de instantes e situações testemunhadas, uma coleção de visões, gestos, coisas e fragmentos encontrados nesses lugares. Renunciando a qualquer tipo de hierarquia prévia, os diferentes assun-tos têm o mesmo valor – real, estético, simbólico – no interior desta cons-telação de imagens. Sobressaem os cenários urbanos, o grande teatro dos acontecimentos e dos protagonistas da história moderna e contem-porânea. A cidade surge como tema (espacial e material) mas também enquanto realidade propensa a uma certa frequência de perceções

Ne dure que ce qui a été conçu dans la solitude, face à Dieu, que l’on soit croyant ou non.Cioran

C’est que je ne connaissais pas encore les hommes. Je ne croirai plus jamais à ce qu’ils disent, à ce qu’ils pensent. C’est des hommes et d’eux seulement qu’il faut avoir peur, toujours.Céline

It is symptomatic that what Paulo Nozolino considers his first photo-graph is one that he took at the Acropolis, in 1972. It is a square, black-and-white image of a side view of the Erechtheion, the temple consecrated to Athena and Poseidon. This choice seems to confirm the tendency to identify points of start or origin that are the result of was done and seen later. It is a virtuous image, namely for its premonitory quality, which indicates an order of the sensible and a thematic horizon that both converge into the conceptual and aesthetic nexus the artist has been exploring over four dec-ades. The revisitation of the past, anchored on an attentive, critical stance regarding the world, calling to memory within the present and to the under-standing of the present within history, the attraction for ruins, the meto-nymic and allegorical quality of the debris, of what remains, but also the experience of the journey, of errancy, of solitary wandering. When that first image is displayed in this book alongside a photo of an execution wall in Auschwitz, taken 22 years later, this also confirms the impression that Paulo Nozolino’s photographic imagination has always shown the ineluctable weight of a tragic imagination, whose aesthetic, moral and discursive ori-gins can be found, as we know, in Greek Antiquity.

Deeply rooted in life experience, meditative, poetic and Dionysian, Nozolino’s work reveals to us a visuality that is sensitive to the forms of pathos. Photography is employed as a privileged means to express and organise his restless, dramatic worldview. In a brief but revealing text from 2001, the photographer states: “I have always been on the brink of nothing. The sensa-tion of living in a non-time. Each small joy I felt became immediately past

A certain CantoSérgio Mah

Um certo CantoSérgio Mah

Paulo Nozolino, Nada, Paris, Les Carnets de la Maison Européenne de la Photographie nº 15, 2002, p. 29

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Peça a peça, um homem constrói a sua sombra. Com a coragem de quem regride (progride?) do olhar ausente de Deus para os seus próprios olhos. E assim descobre as múltiplas raízes da solidão.

Infatigável, procura o detrito, o bocado, o destroço. E neles encontra a incerteza de um recomeço. Não há, não quer um último sentido nem um início único. Vive as ruínas da proximidade (toda a proximidade é uma ruína?) com a exasperação do irremediável.

Não trai. Não se trai. Íntegro, na sua incompletude. Despreza a retórica da justificação, a cobardia dos que se escondem nas palavras e dos que desviam os olhos.É o que faz. Até à ausência de qualquer álibi. (um homem sem álibis)Desprotegido, desprotegendo-se, torna-se inatacável.

O ato de mostrar não é uma acusação mas um desvendamento. Os seus olhos veem, o seu olhar escolhe: não mostra o homem com medo, mostra o medo do homem; não mostra o mundo abandonado, mostra o abandono do mundo; não mostra a ausência de Deus, mostra o Deus da ausência: a solidão de todos nós.Descrente?

O que nele fascina, me fascina, é a violência da conciliação: a luminosidade da sombra, o orgulho no medo, a intempestividade da ternura, o absoluto da dádiva, nada quer em troca do que dá. Mas esse não querer é para os outros uma sedução (obrigação?) temível.

Intempestivo até à desolaçãoRui Nunes

Piece by piece, a man builds his shadow. With the courage of one who regresses (progresses?) away from God’s absent gaze and back to his own eyes. And thus he discovers the multiple roots of solitude.

Indefatigable, he searches for debris, bits, remains. And in them he finds the uncertainty of a new start. There is not, and neither does he want it, a single meaning or a single beginning. He experiences the ruins of proximity (is all proximity a ruin?) with the exasperation of the irremediable.

He does not betray. He does not betray himself. He is whole in his incompleteness. He despises the rhetoric of justification, the cowardice of those who hide in words and those who look away. This is what he does. Until there are no more alibis. (a man without alibis)Unprotected, refusing to protect himself, he becomes unassailable.

The act of showing is not an accusation, but an unveiling. His eyes see, his gaze chooses: he does not show a man who fears, he shows man’s fear; he does not show the abandoned world, he shows the world’s abandonment; he does not show the absence of God, he shows the God of absence: the solitude of us all. An unbeliever?

What is fascinating about him, to me, is the violence of conciliation: the luminosity of the shadow, the pride in fear, the intempestivity of tenderness, the absolute quality of his gift, for which he wants nothing in exchange. But that wanting nothing is to others a fearful seduction (duty?).

Intempestive until desolationRui Nunes

Série PH. 02 – Paulo Nozolino© Imprensa Nacional-Casa da Moeda© Paulo Nozolino© Sérgio Mah© Rui Nunes

Editor/PublisherImprensa Nacional-Casa da Moeda S.A.Av. António José de Almeida1000-042 Lisboawww.incm.pt

Direção editorial/Editorial directionCláudio Garrudo

Edição/EditingSérgio Mah/Paulo Nozolino

Textos/TextsSérgio Mah, Rui Nunes

Digitalização/ScansNuno Soares — Fineprint

Revisão/ProofreadingImprensa Nacional-Casa da Moeda

Tradução/TranslationJosé Gabriel Flores

Design/Graphic designNADA

Fonte/TypefacePF Regal StencilAperçuLyon

Papel/PaperSirio Ultra Black 185 g/m2

Sirio Color Antracite 210 g/m2, 80 g/m2

Symbol Tatami Ivory 170g/m2

Impressão/PrintingImprensa Nacional-Casa da Moeda

Tiragem/Print run1000

ISBN978-972-27-2669-6

Dep. Legal/Legal Deposit437802/18

Edição n.º/Edition no.1022383

1ª Edição Maio 2018/1st Edition May 2018

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