Sagid Salles - Argumento cético contra os argumentos ontológicos

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  • 8/7/2019 Sagid Salles - Argumento ctico contra os argumentos ontolgicos

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    Investigao Filosfica: vol. 1, n. 1, artigo digital 2, 2010.

    Argumento ctico contra os argumentos ontolgicos

    Sagid Salles FerreiraUniversidade Federal de Ouro Preto

    Resumo: Meu objetivo neste texto apresentar uma resposta ctica ao argumentoontolgico tal como aparece em algumas de suas principais variaes. O que todas essasvariaes tm em comum tentar provar a existncia de Deus a priori. Sustentarei que osucesso de qualquer argumento desse tipo depende de dois pressupostos fundamentais,

    o primeiro que existncia uma propriedade e o segundo que uma perfeio. Mesmoaceitando que existncia seja uma propriedade, recusarei que possamos saber se ela uma perfeio e, portanto, que possamos saber se devemos atribu-la a um ser perfeito.Sero trabalhadas quatro formulaes diferentes desse argumento, comeando porAnselmo, Descartes, e a formulao que Norman Malcom acredita haver em Anselmo.Por fim, considerarei a verso de Alvin Plantinga, que defende o argumento ontolgicosem sustentar que existncia uma perfeio. Sustentarei que seu argumento falha emprovar que Deus existe, pois invlido.

    Palavras-chave: Anselmo. Argumento ontolgico. Blackburn. Existncia de Deus.Perfeio.

    Abstract: This article aims at presenting a skeptical answer to the ontological argumentas it appears in some of its variations. What all those variations have in common is toattempt at proving Gods a priori existence. I will show that such variations to besuccessful need to fulfill two basic presuppositions: first, existence is property and,second, existence is perfection. Even if we accept that existence is a property, I will

    refuse the fact that we come to know it as perfection. Therefore, we will not be able toknow if we should apply it to a perfect being. In this article, I will analyze theformulations made by Anselm, Descartes and Norman Malcoms review of Anselmsargument. Finally, I will analyze Alvin Plantingas version which defends the argumentwithout maintaining it as existence. I will argue that his version fails to prove Godsexistence since it is invalid.

    Key Words: Anselm. Ontological Argument. Blackburn. Gods Existence. Perfection.

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    Introduo

    A pergunta ser que Deus existe? provavelmente j ocorreu a grande parte das

    pessoas. possvel tambm que haja pessoas que nunca se fizeram tal pergunta e, ainda

    assim, acreditem em Deus. Dentre aqueles que acreditam, boa parte nunca ouviu falar do

    argumento ontolgico, dentre aqueles que no acreditam, ocorre o mesmo. Podemos

    crer em Deus por uma questo de pura f ou podemos crer porque pensamos ter razes

    para isso. Seja como for, parece que podemos ser atestas pelos mesmos modos. Ou ser

    que no? Imagine que algum tentasse sustentar que possvel provar a existncia de

    Deus recorrendo apenas a operaes do pensamento, do mesmo modo que fazemos

    quando calculamos o resultado de 2+2 sem auxlio de calculadora ou qualquer outro

    meio do tipo. Agora imagine que essa pessoa acredite ser capaz de mostrar que a

    proposio Deus no existe to inaceitvel quanto a proposio o tringulo no tem

    trs lados. Se isso fosse possvel, diramos, ento o ateu seria um tolo. A tarefa parece

    bastante complicada, mas exatamente isso que Santo Anselmo, no sculo XI, acreditou

    ter feito.

    O argumento de Anselmo se tornou muito influente, sendo defendido

    posteriormente pelo filsofo Ren Descartes em sua famosa Meditaes1 e

    contemporaneamente por filsofos como Alvin Plantinga (2000) e Norman Malcom

    (2003). Surgiram algumas variaes importantes entre os argumentos defendidos por

    esses filsofos, sendo que quando falamos em argumento ontolgico estamos nos

    referindo a uma famlia de argumentos e no a um nico. O que todos eles tm emcomum o fato de tentarem estabelecer a existncia de Deus sem recorrer experincia

    alguma. Todos comeam por propor um conceito de Deus e, em seguida, mostram que

    no podemos negar sua existncia sem incorrer em contradio. Alm disso, todas as

    formulaes que so tratadas aqui, com exceo da de Plantinga, dependem de um

    1

    Descarte, Ren. Meditaes. In Coleo Os Pensadores. Traduo: J. Guinsburg e Bento Prado Jnior. SoPaulo: Abril Cultural e Industrial. 1973.

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    pressuposto fundamental; todas elas precisam assumir que existncia uma perfeio.

    justamente esse pressuposto que contestarei.

    Este texto ser dividido em trs partes. Na primeira exponho as verses de

    Anselmo e Descartes do argumento ontolgico. Sustentarei, com base nos argumentos

    de Simon Blackburn (2001), que ambos cometem o mesmo erro, tomar como bvio que

    existncia uma perfeio. Na segunda, apresento duas posies contemporneas. A

    primeira de Norman Malcom, que defende que h uma segunda verso do argumento

    ontolgico de Anselmo que mais forte. Essa verso nega que existncia seja uma

    perfeio, mas alega que existncia necessria o . Contra Malcom, sustento que no

    temos realmente razes para incluir existncia necessria no conceito de um Deus

    perfeito. A segunda a de Alvin Plantinga, que acredita ter uma verso do argumento

    ontolgico que no precisa supor que existncia ou mesmo existncia necessria seja

    uma perfeio. Acredito que Plantinga nos faz assumir mais do que precisaramos e s

    por isso seu argumento parece slido. Por fim, na terceira parte concluo e menciono as

    consequncias de minha tese para testas e atestas. Minha concluso que se

    dependermos do argumento ontolgico, ento no sabemos se Deus existe ou no.Portanto, ser uma concluso ctica.

    O Argumento Ontolgico de Anselmo

    Quando falamos do Deus testa, estamos falando daquela concepo defendida

    por religies como cristianismo, judasmo e islamismo, ou seja, estamos falando de um

    Deus que onipotente, eterno, sumamente bom... Em suma, um Deus que perfeito. Nas

    palavras de Anselmo, esse Deus o ser maior do que o qual nenhum ser concebvel

    (2000, p. 311).2 H alguns pontos importantes a serem mencionados aqui. Em primeiro

    lugar, por maior Anselmo no se refere a algo parecido com altura ou grandeza fsica.

    2 Os seguintes textos so retirados de um guia e ontologia intilulado Philosophy of Religion: a guide andantology. Oxford University Press: 2000. editado por Brian Davis. Textos: Cantebury, Anselmo. Proslogion(exertos). Traduo: M. Charleswort pp.311-312 / Cantebury, Anselmo. Reply to Gaunilo. (exertos).Traduo: M. Charleswort. pp. 318 326 / Marmoutiers, Gaunilo. Pro Insipiente. (exertos). Traduo: M.

    Charleswort. pp. 313 317 / Plantinga, Alvin. Defence of the Ontological Argument pp.342-352 / A partir deagora, quando citar ano e pgina, me refiro a este guia e ontologia.

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    Essa expresso deve ser entendida como sinnimo de melhor, no mesmo sentido que

    costumamos considerar que quanto mais sbios e morais nos tornarmos, melhores

    somos. Em segundo, Anselmo acredita que para negarmos a existncia de algo, devemos

    conceb-lo. Por exemplo, se nego que existem unicrnios, ento estou assumindo que

    posso pelo menos pensar em unicrnios, ou seja, que eles existem em pensamento. A

    partir de agora, quando falar que uma coisa existe, estarei dizendo que ela existe na

    realidade, como por exemplo eu, voc ou maracan. Dizer que uma coisa no existe

    significar apenas que ela existe em pensamento, como os unicrnios.

    Dentre as coisas existentes e inexistentes, h aquelas contingentes e aquelas

    necessrias. As contingentes so as que embora existam, poderiam no existir e as que

    embora no existam poderiam existir. Eu sou um exemplo do primeiro caso, porque

    embora eu exista, eu poderia no existir (imagine que meus pais no tivessem se

    conhecido, por exemplo). O filho que eu ainda no tenho um exemplo do segundo, pois

    apesar de eu no ter filhos, posso muito bem vir a ter um. Aquelas coisas que existem e

    no poderiam no ter existido, so existentes necessrios. Alm disso, h coisas

    possveis e impossveis. Possveis so aquelas que existem (eu e voc por exemplo) ouque poderiam existir (meu filho). Impossveis so aquelas que no existem e no

    poderiam existir, como um quadrado redondo. Devemos tomar cuidado para no

    confundir coisas possveis com coisas contingentes. Um existente necessrio sempre

    possvel, visto que aquilo que existe tambm possvel. Mas um existente necessrio

    nunca contingente, visto que o que existe necessariamente no poderia no existir. Por

    fim, por aquele maior do que o qual nenhum ser concebvel Anselmo quer dizer

    aquele maior do que o qual nenhum possvel. Ou seja, ele quer dizer que Deus, por

    definio, tal que nem existe nem poderia existir um ser que fosse maior que ele.

    Esclarecido esses conceitos, passemos finalmente ao argumento de Anselmo. Na

    introduo, eu mencionei que Anselmo pretendeu no apenas provar a existncia de

    Deus, mas tambm mostrar que aceitar o atesmo implica aceitar uma contradio. O

    mtodo que ele utilizou para fazer isso chama-se reduo ao absurdo e consiste

    basicamente em supor a negao da concluso que voc sustenta e mostrar que dela se

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    segue uma contradio, sendo, portanto, a sua concluso verdadeira. Faamos o passo a

    passo. Uma vez que a concluso sustentada por Anselmo Deus existe, ele supor a

    negao dessa concluso. Portanto, teramos:

    (1) Deus no existe.

    Lembremos que isso equivalente a afirmar que Deus existe apenas em pensamento.

    Ora, uma vez que Deus existe em pensamento e no parece ser um objeto impossvel tal

    como o quadrado redondo, podemos perfeitamente aceitar que ele possvel, ou seja,

    que ele poderia existir na realidade3. Assim chegamos a:

    (2) Deus poderia existir (na realidade).

    Agora, devemos nos perguntar o que melhor, aquilo que existe ou aquilo que no

    existe? Imagine que Deus no exista; ele seria maior se existisse? Parece que sim, afinal,

    se dois seres so iguais em tudo, e diferem apenas no fato de que um existe e outro noexiste, parece que aquele que existe seria, por isso mesmo, maior. Podemos expressar

    isso dizendo que existncia uma perfeio. Sendo que existncia uma perfeio e

    que assumimos anteriormente que Deus no existe e que poderia existir, somos

    obrigados a assumir que Deus poderia ter uma perfeio que ele no tem

    (nomeadamente a existncia). Portanto, teramos:

    (3) Deus poderia ser maior do que .

    A pessoa mais desatenta pode estar se perguntando onde est, afinal, a

    contradio que o atesta teria de alcanar se sustentasse que Deus no existe. No

    segundo pargrafo dessa parte mencionei que Anselmo definiu Deus como o ser maior

    3 Por hora, concedo que Deus seja um ser possvel, embora tenha quem conteste isso. Ver por exemplo: Grim,

    Patrick Argumentos da impossibilidade In: Compndio Cambridge de Atesmo. Traduo:Desidrio Murcho,Lisboa: Edies 70. no prelo.

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    do que o qual nenhum possvel, se substituirmos a palavra Deus em (3) por essa

    expresso, obtemos:

    (4) O ser maior do que o qual nenhum outro possvel tal que um ser

    maior possvel (nomeadamente, ele mesmo, se existisse).

    Em resumo, comeamos assumindo que Deus era o ser maior do que o qual nenhum

    possvel, em seguida percebemos que a alegao de que Deus no existe nos obriga a

    aceitar que Deus poderia ser maior do que . Isto equivale a aceitar que possvel haver

    um ser (Deus, quando existe) que maior do que o ser maior do que o qual nenhum

    possvel. Em outras palavras, ao mesmo tempo que eu aceito que Deus o maior ser

    possvel, eu aceito que possvel um ser maior que ele. Portanto, eu aceito que ele e

    no ao mesmo tempo o maior ser possvel. Logo, da proposio Deus no existe

    segue-se uma contradio. Assim, Anselmo estabelece sua prova a priori da existncia de

    Deus. Se a proposio Deus no existe falsa, ento sua negao verdadeira. Assim,

    Deus existe.

    O Argumento Ontolgico de Descartes

    O argumento de Descartes na 5 Meditao bastante semelhante ao de Anselmo.

    Em primeiro lugar, ele tambm toma como bvio que a existncia uma perfeio. Uma

    vez que Deus, por definio, o ser perfeito e que a existncia uma perfeio, a

    perfeio torna-se parte da essncia de Deus tanto quanto parte da essncia de um

    tringulo possuir trs lados. Para ver como o argumento funciona, pense em um cavalo

    com asas. Agora retire-lhe as asas e responda seguinte pergunta: deixou esse cavalo de

    ser um cavalo? Penso que no. Ser que temos tanta liberdade de pensar que Deus no

    existe como temos de pensar em um cavalo sem asas? Descartes declara que:

    ...mas, no obstante, quando penso nisso com maior ateno, verifico

    claramente que a existncia no pode ser separada da essncia de Deus,

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    tanto quanto da essncia de um tringulo retilneo no pode serseparada a grandeza de seus trs ngulos iguais a dois retos (...). 4

    Descartes acredita ser simplesmente impossvel negar a existncia de Deus. Se Deus o

    ser perfeito e existncia uma perfeio, ento quando negamos que Deus existe, no

    estamos falando de Deus, mas de um ser imperfeito que, por definio no pode ser

    Deus. Assim, Deus existe.

    Discutindo os Argumentos de Anselmo e Descartes

    At aqui tratei do argumento ontolgico defendido por Anselmo e Descartes.

    Agora vejamos o que h de errado com eles. Em primeiro lugar, h muitos meios pelos

    quais podemos formular objees ao argumento ontolgico e a maior parte deles no

    ser tratada neste texto. Duas objees interessantes so aquelas feitas pelo monge

    Gaunilo (2003) e pelo filsofo alemo Imannuel Kant (CRP B 620, 623). A principal

    objeo de Gaunilo que se o argumento de Anselmo for bom, ento podemos us-lo

    para provar a existncia de um variado tipo de coisas que no estaramos to dispostos aaceitar. Eu poderia provar, por exemplo, que existe a ilha perfeita melhor do que a qual

    nenhuma possvel. Ora, se sustentamos que essa ilha no existe, ento estaremos

    dizendo que ela no a ilha perfeita, pois a ilha perfeita tem que possuir todas as

    perfeies referentes a uma ilha, e existncia seria uma delas. Assim, quando negamos a

    existncia dessa ilha, afirmamos que a ilha perfeita no perfeita, o que uma

    contradio. Portanto, a ilha existe.

    Kant, por outro lado, recusa que existncia seja uma propriedade que se aplica s

    coisas, assim como vermelho o . O conceito de existncia no deve ser confundido com

    conceitos como vermelho ou alto ou magro. Quando afirmo que Deus no

    onipotente, estou recusando que ele tenha uma propriedade determinada, mas se digo

    que ele no existe estou recusando que ele possua qualquer propriedade que seja. Neste

    sentido, existncia no seria uma propriedade, mas uma condio para algo possuir

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    propriedades. Lembremos que para considerar que existncia uma perfeio Anselmo

    e Descartes precisam considerar que ela seja uma propriedade, tal como sabedoria ou

    fora.

    Essas duas objees, embora interessantes, no so definitivas. Quanto a objeo

    de Kant, no certo que existncia seja ou no uma propriedade de coisas. H filsofos

    defendendo ambos os lados contemporaneamente5. Contra Gaunilo, o caminho seria

    mostrar que uma ilha perfeita algo impossvel, assim como o quadrado redondo. No

    faz sentido falar de nada que seja limitado, como uma ilha, e que ao mesmo tempo seja

    perfeito. Seja como for, para os propsitos desse texto concedo ao testa tanto que as

    objees de Gaunilo no funcionam como que existncia seja realmente uma

    propriedade. O que contestarei em seguida apenas que aceitar que a existncia uma

    propriedade implica aceitar que ela seja uma perfeio.

    Tanto o argumento ontolgico de Anselmo como o de Descartes dependem

    explicitamente da considerao de que existncia uma perfeio. Para supor isso,

    supe-se que podemos comparar Deus, quando no existe, com Deus, quando existe. O

    filsofo Simon Blackburn, em sua obra Pense (2001), sustenta que esse tipo decomparao envolve ambiguidades insuperveis. So os argumentos dele que eu

    pretendo desenvolver para alcanar minha concluso ctica. Pensemos na seguinte

    proposio:

    (5) Perus reais so mais pesados que os perus imaginrios.

    Por um lado essa proposio, alega Blackburn, parece verdadeira, afinal perus

    imaginrios no tem peso (no podemos com-los). Mas pensemos na proposio:

    (6) Podemos imaginar um peru mais pesado que qualquer peru real.

    5

    Um artigo interessante defendendo que existncia uma propriedade : Chisholm, Roderick M. Beyond Being__and Nonbeing.Philosophical Studies 24 (245-257).

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    Por outro, essa proposio tambm parece verdadeira, afinal eu posso muito bem

    pensar em um peru de 250 Kg, e no h perus reais que pesem tanto. O problema que 5

    e 6 so logicamente inconsistentes, ou seja, ambas no podem ser verdadeiras ao mesmo

    tempo. Ambiguidades como essas surgem porque tentamos comparar um peru

    imaginrio com um peru real, mas essa no uma comparao que se possa fazer.

    Vejamos o seguinte exemplo dado por Blackburn:

    como se um professor pedisse a seus alunos que imaginassem umperu mais pesado que qualquer peru real. E os seus alunos assim faziam:

    imaginavam um peru de 250 Kg. Mas depois o professor queixa-se deque, uma vez que os perus imaginrios pesam menos que os reais, osalunos no conseguiram imaginar aquilo que lhes foi pedido. O peruimaginado no tem peso (no podemos com-lo), e assim os alunos chumbam. E os alunos tero razo em sesentirem injustiados. No foram eles que erraram mas o professor.6

    Mais uma vez, Blackburn acredita que foi o professor que errou porque ele (o professor),

    assim como Anselmo, tentou fazer comparaes entre existentes e no existentes. Seria

    como se eu te perguntasse qual o peru mais pesado? O peru real de dois Kg que voctem em sua mo ou o peru imaginrio de 22 Kg no qual estou pensando?

    Uma primeira objeo que o testa poderia fazer perguntar por que a

    necessidade de comparao?. Ele poderia alegar que para saber que existncia uma

    perfeio ele precisa apenas olhar para aquilo que existe, assim como para saber que um

    objeto branco bonito precisamos apenas olhar para o objeto. Desse modo, no seria

    necessrio comparar seres existentes com seres inexistentes para vermos que existir

    bom.

    No entanto, devemos lembrar que no basta o testa alegar que existir bom

    para que seu argumento funcione. Ele deve tambm mostrar que existncia melhor

    que no-existncia. Ou seja, existir tornaria Deus melhor que no existir. Poderamos

    supor, por exemplo, que tanto existncia como inexistncia sejam perfeies. Nesse caso,

    qual deles devemos atribuir ao conceito de Deus perfeito? O cerne do argumento testa

    6 Blackburn, Simon. Deus In: Pense: uma contagiante introduo filosofia. Traduo: Antnio Infante,

    Antnio Paulo da Costa, Clia Teixeira, Desidrio Murcho, Ftima St. Aubyn, Francisco Azevedo e Paulo Ruas.Lisboa: Gradiva, 2001 p. 166.

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    supor que existir melhor que no existir e, obviamente, para sabermos que uma coisa

    melhor que outra, temos de poder compar-las.7

    claro que nesse exemplo estamos comparando duas coisas diferentes, uma que

    existe e outra que no existe. Neste ponto, o testa poderia argumentar que o argumento

    ontolgico no envolve esse tipo de comparao. O que Anselmo e Descartes fazem

    comparar Deus, quando no existe, consigo mesmo, quando existe. No h a comparao

    entre dois seres diferentes, mas apenas perguntamos se o prprio Deus (quando

    suposto no existir) seria melhor do que ele mesmo (quando suposto existir). Em outras

    palavras, supondo que Deus no exista, perguntamos ele seria melhor se existisse?. H

    pelo menos duas sadas contra essa objeo. A primeira negar que nesse caso haja

    comparao de Deus consigo mesmo, e a segunda afirmar que mesmo se assim fosse, o

    problema no estaria resolvido.

    A primeira sada a seguinte: se existncia uma propriedade, ento temos que

    assumir que ela uma propriedade essencial de tudo o que existe. A definio de

    propriedade essencial P uma propriedade essencial de R se, e s se, P possui R em

    todos os mundos possveis onde P existe. Por mundos possveis, entende-se que estamosfalando do modo como as coisas podem ser (incluindo o passado e futuro). Neste

    contexto, se afirmo que em um mundo possvel Lula no o presidente do Brasil (em

    2009), ento estou afirmando que as coisas poderiam ser tais que o Lula no seria

    presidente. Por exemplo, ele poderia ter perdido as eleies.

    Agora, voltemos definio de propriedade essencial; se substituirmos P pela

    propriedade existncia e R por Deus obtemos: Existncia uma propriedade

    essencial de Deus se, e s se, Deus existe em todos os mundos possveis onde ele existe.

    Como evidente que Deus existe em todos os mundos possveis em que ele existe,

    evidente que existncia uma propriedade essencial de Deus. Mas uma caracterstica

    importante das propriedades essenciais que se P (no caso, existncia) uma

    propriedade essencial de R (no caso, Deus), ento qualquer objeto idntico a R deve

    7 Agradeo ao professor Desidrio Murcho por ter sugerido, durante conversa, a necessidade de explicar por queo testa depende dessa comparao entre existentes e inexistentes para que seu argumento funcione. De toda

    forma, acho que essa necessidade j fica bem clara quando o testa pergunta Deus, quando existe, seria melhorque Deus, quando no existe?. A prpria pergunta, acredito, j pressupes a necessidade de comparao.

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    possuir P. Mais uma vez, se substituirmos P por existncia e R por Deus, obtemos

    que nenhum ser que no possua existncia pode ser idntico a Deus, e como Deus tem

    que ser idntico a si mesmo, quando falamos de Deus no existente no estamos falando

    de Deus (quando existe)8. Portanto, quando comparamos ambos estamos comparando

    seres diferentes, e o argumento de Blackburn volta a funcionar.

    Contudo, h um modo mais fcil de escapar objeo testa. Poderamos

    simplesmente perguntar como que conseguimos comparar Deus, quando no existe,

    consigo mesmo, quando existe, e saber que um melhor que outro?. Mesmo aceitando

    que nesse caso estamos comparando Deus consigo mesmo, no temos razes para

    aceitar essa comparao. O testa poderia responder alegando que Deus maior quando

    existe porque nesse caso ele poderia efetuar sua bondade em ns (o que no seria

    possvel se ele no existisse). Mas isso significaria que Deus maior porque pode fazer o

    bem para ns, o que bem estranho porque, na concepo testa, Deus seria to bom

    quanto , mesmo se ns no existssemos ou nunca vissemos a existir. Estamos falando

    da grandeza de Deus e sua existncia tem de ser um bem para ele e no para ns. Assim,

    o testa continua sem poder apontar um motivo pelo qual existncia uma perfeio. Arazo pela qual ele no consegue que para faz-lo ele teria que fazer comparaes

    entre seres existentes e no existentes, o que venho argumentando envolver

    ambiguidades insuperveis.

    Note-se que do fato de no sabermos se existncia ou no uma perfeio segue-

    se que no sabemos se devemos ou no inclu-la na definio de um Deus perfeito.

    Contra Descartes, diramos, no sabemos se consideramos (ou no) existncia como

    parte da essncia de Deus. Quanto a Anselmo, a premissa 3 de seu argumento, que

    afirma que Deus poderia ser maior do que s verdadeira se a existncia for uma

    perfeio. Se a existncia no uma perfeio, ento a afirmao de que Deus no

    existe no nos leva a ter que aceitar que Ele (o ser maior do que o qual nenhum

    possvel) poderia ser maior do que . Desse modo, no sabemos se a reduo ao absurdo

    tentada por Anselmo funciona a menos que saibamos que 3 verdadeira. Venho

    8

    Para saber mais sobre noes modais tais como mundos possveis, ver: Murcho, Desidrio: EssencialismoNaturalizado. Coimbra: ngelus Novus, 2002.

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    argumentando que no sabemos se existncia ou no uma perfeio, e por isso no

    sabemos se 3 verdadeira e, consequentemente, no sabemos se a concluso de

    Anselmo verdadeira. Portanto, se dependermos apenas do argumento ontolgico, no

    sabemos se Deus existe.

    Malcom: um Novo Argumento em Anselmo

    Norman Malcom (2003) acredita haver dois argumentos ontolgicos em

    Anselmo. O primeiro mais fraco e considera que a existncia uma perfeio. O

    segundo mais forte e, embora no considere a existncia uma perfeio, considera que

    a existncia necessria o . O argumento que Malcom considera mais fraco justamente

    aquele que discutimos at aqui. Se Malcom est correto, existe uma verso do

    argumento ontolgico que escapa a todas as objees relacionadas ao fato de a

    existncia ser ou no uma perfeio. Essa formulao seria praticamente a mesma com a

    diferena que, ao invs de considerar que a existncia seja uma perfeio, considera que

    a existncia necessria seja.Como j vimos, um ser que possui existncia necessria aquele que existe e no

    poderia no existir. Usando o idioma dos mundos possveis; um ser que possui

    existncia necessria aquele que existe em todos os mundos possveis. Ou seja, no

    pode haver um modo como as coisas poderiam ser tal que ele no existisse. Mas porque

    seria uma perfeio de Deus existir em todos os mundos possveis? Malcom acredita que

    ao compararmos existentes necessrios com existentes contingentes perceberamos

    facilmente que Deus seria maior se possusse a primeira que a segunda. Isso porque ser

    um existente contingente significa possuir limitaes.

    Um existente contingente aquele que no existe em pelo menos um mundo

    possvel. Minha casa um existente contingente, pois as coisas poderiam ser tais que ela

    no existiria. Pensemos numa situao onde estou planejando constru-la, porm no

    encontre pedreiros nem saiba realizar suas funes. Isso pode impedir-me de dar cabo

    ao projeto e, consequentemente, impedir que minha casa venha a existir. Este um

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    mundo possvel onde ela no existiria e o resultado que ela depende de outras coisas

    para vir a existir (pedreiros por exemplo). Uma outra situao possvel aquela em que,

    logo aps constru-la, ela completamente destruda por um furaco (deixando assim de

    existir). Aqui, temos um outro mundo possvel onde ela no existiria e o resultado que

    ela possui uma outra limitao, no resistente a furaces. Portanto, haver mundos

    possveis onde minha casa no existe uma limitao que ela possui. Com exemplos

    desse tipo Malcom pretende tornar claro que ser um existente contingente implica

    possuir limitaes. O mesmo ocorreria com Deus que, para no possuir limitaes desse

    tipo, deveria ser um existente necessrio. Do que foi dito at aqui teramos boas razes

    para considerarmos existncia necessria uma perfeio. Ademais para consider-la

    como tal, nem precisamos comparar seres existentes com seres inexistentes, bastando

    comparar existentes contingentes com necessrios.

    Nesse ponto algum poderia perguntar como ficaria a nova verso do argumento

    ontolgico. Em sua resposta a Gaunilo, Anselmo afirma que:

    Further: even if can be thought of, then certainly it necessarily exists.For no one who denies or doubts that there is something-than-which-a-greater-cannot-be-thought, denies or doubts that, if this being were toexist, it would not be capable of not-existing either actually or in themind otherwise it would not be that-than-which-a-greater-cannot-be-thought.9

    Este trecho claramente d margem para a interpretao feita por Malcom. O que

    Anselmo afirma a que do mero fato de que Deus poderia no existir ( um existente

    contingente) segue-se que ele poderia ser maior do que . Uma vez que Deus o sermaior do que o qual nenhum possvel, da afirmao de que ele poderia no existir

    somos levados afirmao de que o ser maior do que o qual nenhum possvel tal

    que possvel um maior do que ele. Portanto, dessa vez teramos, por reduo ao

    absurdo, que Deus necessariamente existe. E assim Malcom acredita que Anselmo

    provou que a noo de existncia contingente e no-existncia contingente no pode

    9

    Cantebury, Anselmo. Reply to Gaunilo. (exertos). Traduo: M. Charleswort. In: Davis, Brian. Philosophy ofReligion: a guide and antology. Oxford University Press: 2000. p. 319.

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    ter nenhuma aplicao a Deus. (2008. p.80). aqui que acredito ter uma sutileza

    importante.

    Por um lado, eu concordo que Malcom tenha tido sucesso em mostrar que

    existncia necessria uma perfeio em relao existncia e a inexistncia

    contingente10, por outro, no concordo que temos razes para atribuir existncia

    necessria a Deus. Malcom acredita poder considerar existncia necessria uma

    perfeio porque o ser que no a possui, possuiria algumas limitaes, como poder ser

    destrudo ou ser dependente (lembremos do exemplo da casa). Mas ele obteve esse

    resultado comparando existentes necessrios com existentes contingentes, ignorando

    completamente os seres impossveis. Se Deus for um ser impossvel, como o quadrado

    redondo, ento ele tambm no possuiria aquelas limitaes apontadas por Malcom.

    No dizemos de um ser impossvel que ele pode ser destrudo, ou que ele deva sua

    existncia a outros seres, afinal, seres que nem sequer podem existir no podem dever

    sua existncia a outros. Portanto, Malcom teria de mostrar porque existncia necessria

    e no impossvel, deve ser atribuda a Deus. Porque a primeira uma perfeio em

    relao a segunda. Do contrrio, o mximo que o segundo argumento de Anselmomostraria que ou Deus existe necessariamente ou Ele um ser impossvel. Para

    decidir entre ambos ele teria que comparar Deus, quando existe, consigo mesmo,

    quando no existe, e conferir qual dos dois seria maior. Mas isso exigiria fazer

    justamente o tipo de comparao que venho argumentando ser problemtica.

    O testa poderia ainda reivindicar alguma esperana do fato de eu mesmo ter

    comparado seres inexistentes com seres existentes quando afirmei que tanto seres

    necessrios como seres impossveis no possuem as limitaes mencionadas por

    Malcom. Como poderia saber disso se no fizesse comparao entre ambos? H uma

    peculiaridade importante nesse ponto. O fato de nem seres necessrios nem impossveis

    possurem essas limitaes segue-se trivialmente das prprias definies de ser

    10 Malcom poderia estender sua concluso tambm para inexistentes contingentes sem incorrer nas dificuldadesem comparar existentes com inexistentes que mencionei anteriormente. Isso, porque h um sentido em que

    podemos comparar seres existentes com inexistentes, podemos compar-los quando a comparao no envolve

    mais que o conhecimento da definio das modalidades de existncia que se aplicam a eles. No pargrafoseguinte explico isso a partir do exemplo da comparao de seres necessrios e impossveis.

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    necessrio e impossvel. Por exemplo, um ser impossvel aquele que inexiste em todos

    os mundos possveis. Assim, se x um ser impossvel, no h um mundo possvel onde

    ele exista. Isso significa que ele jamais poder ser criado (pois no h um modo como as

    coisas possam ser tal que ele exista) e, se ele nunca ser criado, tambm nunca ser

    destrudo. Do mesmo modo, um ser necessrio aquele que existe em todos os mundos

    possveis, o que significa que no h um modo como as coisas podem ser tal que ele no

    exista. Assim, ele jamais pode ser destrudo, ou mesmo criado, pois afirmar que um ser

    necessrio foi criado afirmar que ele no existia antes, o que no possvel. Portanto,

    eu s preciso saber as definies de ser necessrio e impossvel para saber que eles no

    podem ser criados nem destrudos. Ainda, eu no recuso que possamos fazer

    comparaes que envolvam apenas conhecimentos desse tipo.

    Concluindo: se por um lado a primeira verso do argumento de Anselmo no

    consegue concluir mais do que a condicional se existncia for uma perfeio, ento

    Deus existe, a segunda verso no consegue mais do que a condicional se existncia

    necessria for uma perfeio, ento Deus necessariamente existe. Uma vez que no vejo

    razes para considerar existncia ou existncia necessria uma perfeio, no vejorazes para aceitar qualquer um dos dois. Parece que o nico caminho seria formular

    uma verso que no dependesse de assumir que existncia ou existncia necessria seja

    uma perfeio. justamente isso que Alvin Plantinga fez.

    Uma ltima Tentativa: o Argumento Ontolgico de Plantinga

    Imaginem duas pessoas, uma chamada Joo e outra Pedro. Ambos trabalham em

    uma central para onde vo doaes, de todo pas, destinadas a ajudar famlias carentes.

    A funo de cada um deles separar as doaes que chegam e encaminh-las a essas

    famlias. Tanto Joo como Pedro realizam suas funes porque gostam do que fazem.

    Alm disso, os dois jamais se apropriaram de alguma dessas doaes, impedindo que

    pudessem chegar a uma dessas famlias. A diferena entre eles que Pedro jamais

    praticaria um ato imoral como desviar para si bens que so destinados a famlias

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    carentes. De Joo no podemos dizer o mesmo, pois apesar de ele nunca ter feito,

    diramos que possvel (mesmo que remotamente) que ele faa isso (imagine que ele j

    pensou nisso algumas vezes). Qual dessas pessoas melhor? Intuitivamente a resposta

    seria Pedro?

    Esse exemplo simples pode ilustrar o ponto principal do argumento de Plantinga.

    Quando mencionei que Joo poderia agir de modo imoral em uma dada circunstncia,

    estava dizendo que h um mundo possvel onde ele age assim. H um mundo possvel

    onde Joo desvia para si bens que so destinados a famlias carentes. O mero fato de

    haver um mundo possvel onde isso ocorre depe contra ele. Do mesmo modo, o fato de

    no haver um mundo possvel onde Pedro realiza essa ao, depe a seu favor. Tanto um

    como outro agem de modo moral atualmente, mas Pedro melhor porque age

    moralmente em mais mundos possveis do que Joo. Disto podemos concluir que, dentre

    duas pessoas morais, melhor aquela que age moralmente em mais mundos possveis, e

    perfeitamente moralseria aquela que agisse moralmente em todos os mundos possveis.

    Agora pensemos no exemplo de Deus. Ele o ser que possui a propriedade da

    mxima grandeza, o ser maior do que o qual nenhum possvel. Possuir essapropriedade significa possuir todas as grandezas (como sabedoria, bondade, etc.) em

    grau mximo. Por sua vez, como vimos no caso da moralidade, possuir uma grandeza em

    grau mximo significa possu-la em todos os mundos possveis. Se Deus maximamente

    grande, ento Ele possui sua grandeza em todos os mundos possveis (cf.2000.p.348). O

    que nos resta saber se existe ou no um ser em nosso mundo que possua tal

    propriedade.

    Todos os argumentos ontolgicos que vimos at aqui consideram que alguma

    modalidade de existncia uma perfeio. Plantinga no depende dessa suposio. Ao

    contrrio, ele considera (como Kant) que a existncia uma condio para algo possuir

    perfeies. Desse modo, algo que no existe no possui perfeies to bem como no

    possui imperfeies. Sendo assim, um ser s pode possuir a propriedade da grandeza

    mxima, que uma perfeio, se ele existir. Plantinga acredita poder mostrar que existe

    um ser que a possui.

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    Em primeiro lugar, ele afirma que no parece ser impossvel que exista algo que

    possua a mxima grandeza. Se assumimos que possvel que algo possua essa

    propriedade, ento assumimos que h um mundo possvel em que um ser

    maximamente grande. A esse ser chamamos Deus. Entretanto, vimos anteriormente que

    se algo possui um grau mximo de grandeza, ento esse algo a possui em todos os

    mundos possveis. Portanto, se existe um mundo possvel no qual Deus possui a

    grandeza mxima, ento em todos os mundos Ele possui essa grandeza, incluindo o

    nosso, que chamamos mundo efetivo. Mas, uma vez que Deus possui a grandeza mxima

    em nosso mundo, Ele existe, pois somente o que existe pode possuir perfeies. Do mero

    fato de assumirmos a possibilidade de que exista algo que possui grandeza mxima,

    somos obrigados a assumir que esse algo realmente existe. Assim, Deus existe. Ou ser

    que no?

    Acredito que Plantinga comete um erro ao longo de seu raciocnio que nos faz

    aceitar mais coisas do que precisaramos. A partir do exemplo de Joo e Pedro parece ter

    ficado claro que se algo possui o grau mximo de perfeio em um mundo possvel,

    ento deve possu-lo em todos. Se, no caso de Joo, no agir moralmente em um mundopossvel indicou uma imperfeio, porque isso nos daria razes para ter desconfianas

    em relao a ele. Ora, no confiamos plenamente em algum que poderia nos roubar.

    Mas isso no implica que Joo, para ser perfeitamente moral, deveria s-lo em todos os

    mundos possveis. Para ser perfeitamente moral, basta que ele seja assim em todos os

    mundos possveis onde ele exista. E isso, como veremos, muda tudo.

    O fato de Joo no ser uma pessoa moral em algum mundo possvel simplesmente

    porque nesse mundo possvel ele no existiria, no parece depor contra Joo. No

    dizemos que ele uma pessoa digna de desconfiana porque, se no existisse, no seria

    uma pessoa moral. Ningum diria que Bertrand Russell foi, durante a vida, uma pessoa

    menos moral porque aps morrer, no poderia agir moralmente. Para que Joo seja uma

    pessoa perfeitamente moral, basta que ele aja moralmente em todas as situaes

    possveis em que ele existe. Analogamente, para que um ser possua grandeza mxima

    ele precisa apenas possu-la em todos os mundos possveis onde ele existe. Afinal, dizer

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    que Deus no seria sumamente bom se no existisse no depe contra ele (lembrando

    que Plantinga no considera existncia uma perfeio). Portanto, podemos concluir, no

    mximo, que grandeza mxima uma propriedade essencial de Deus, e no uma

    propriedade necessria. A diferena entre ambas que a primeira aquela que

    possumos em todos os mundos possveis onde existimos enquanto a segunda aquela

    que possumos em todos os mundos possveis. Somente se Deus fosse um existente

    necessrio poderia ter propriedades necessrias e, conforme argumentei anteriormente

    contra Malcom, no temos razes para supor que Deus seja um existente necessrio.

    Vejamos como ficaria o argumento de Plantinga aps essas consideraes.

    Se supormos que em algum mundo possvel existe um ser que possua a

    propriedade da grandeza mxima, ento devemos aceitar (no mximo) que em todos os

    mundos possveis em que esse ser existe ele possui a grandeza mxima. Ainda resta

    saber se o nosso mundo um dos mundos possveis onde esse ser existe, e no h

    concluso alguma acerca disso que possamos tirar dos passos anteriores. A concluso

    Deus existe no segue da verdade das premissas, o que indica que o argumento

    invlido.Desse modo, concluo que Plantinga no tem sucesso em mostrar a existncia de

    Deus. O nico meio de ele fazer isso seria alegando que o conceito de existncia faz parte

    do conceito de grandeza mxima, assim como os conceitos de sabedoria ou perfeita

    bondade. Em outras palavras, ele deveria considerar que existncia uma perfeio e

    que se dizemos que Deus poderia no existir, ento estamos dizendo que ele no possui

    grandeza mxima. Assim, se algo possui grandeza mxima, deve existir em todos os

    mundos possveis. Todavia, isso seria considerar a existncia uma perfeio e

    justamente isso que argumentei anteriormente que no temos razoes para aceitar. O

    argumento de Plantinga parece ser o mais fraco que vimos at aqui, pois ao no

    considerar existncia (ou existncia necessria) uma perfeio, ele sequer alcana uma

    condicional do tipo se...ento Deus existe.

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    Concluso e Consequncia para Testas e Atestas

    Ao longo desse texto, trabalhei algumas verses diferentes do Argumento

    ontolgico. Defendi que a primeira formulao do argumento de Anselmo, e o

    argumento de Descartes, carregam o mesmo erro fundamental, tomar como bvio que

    existncia uma perfeio. Aps trabalhar o argumento de Blackburn, conclui que no

    sabemos se devemos ou no incluir existncia no conceito de um Deus perfeito porque

    no podemos comparar seres existentes com seres inexistentes. Entretanto, a concluso

    no foi a de que Deus no existe, mas apenas que, se dependermos somente do

    argumento ontolgico, nada poderemos concluir sobre isso. Em seguida, vimos que

    Norman Malcom acredita haver uma formulao mais forte do argumento ontolgico de

    Anselmo. Embora essa segunda verso no considere que existncia uma perfeio, ela

    considera que existncia necessria o . Essa verso parece ter sucesso em mostrar que

    se Deus existe, ele no pode ser um existente contingente ou um inexistente contingente.

    Entretanto, o mximo que ela nos leva a concluir que se Deus existe, Ele um

    existente necessrio. O problema que a questo relevante era justamente saber seDeus existe. Malcom no consegue oferecer uma razo pela qual deveramos incluir o

    conceito de existente necessrio e no o de ser impossvel no conceito de um Deus

    perfeito. De toda forma, de todas as formulaes que foram trabalhadas nesse texto essa

    a mais forte, por uma razo que mencionarei um pouco a frente. Por fim, vimos que

    Plantinga acredita possuir uma verso do argumento ontolgico que no precisa

    considerar que existncia uma perfeio. Todavia, ele nos leva a aceitar mais do que

    precisaramos, concluindo que as propriedades de Deus so necessrias quando, no

    mximo, ele mostrou que so essenciais. Quando desfazemos essa confuso vemos que

    ele nem sequer tem um argumento vlido, ou seja, mesmo que suas premissas sejam

    verdadeiras, no precisaramos aceitar que a concluso o .

    Voltando a Malcom, apesar de ter argumentado que ele no consegue fornecer

    uma razo pela qual devamos atribuir existncia necessria a Deus, ao delimitar a

    existncia de Deus entre necessria e impossvel ele fornece um novo argumento ao

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    testa. O testa poderia argumentar que se aceitarmos que possvel que Deus exista

    necessariamente, ento necessariamente Deus existe. Formalizado ficaria:

    PP

    Se em algum mundo possvel Deus um existente necessrio, ento ele existe em todos

    os mundos possveis, mas se ele existe em todos os mundos possveis, ento existe em

    nosso mundo efetivo (que tambm um mundo possvel). Assim, Deus existe.

    Esse argumento perfeitamente vlido, mas validade tudo o que testa tem,

    pois o que argumentei at aqui justamente que no h razes para considerarmos a

    premissa verdadeira, no h razes para atribuirmos existncia necessria a Deus. De

    toda forma, eu tambm no pretendia concluir que Deus no existe, mas apenas que a

    plausibilidade do argumento ontolgico depende considerarmos alguma modalidade de

    existncia uma perfeio. O problema que parece que nem testas nem atestas podem

    dizer nada no que diz respeito a esse ponto, uma vez que o atesta tambm no teria

    razes para supor que existncia no seja uma perfeio.Por fim, o atesta levaria uma pequena vantagem. Embora ele no possa mostrar

    que existncia no uma perfeio (assumindo que ela seja uma propriedade), e

    portanto, que o conceito de Deus no inclui existncia, ele pode ainda argumentar a

    favor da inexistncia de Deus por outras vias. O atesta poderia mostrar, por exemplo,

    que Deus um ser impossvel porque no poderia haver um ser onipotente, onisciente,

    etc. sem entrar na questo de existncia ser ou no uma perfeio. O testa, ao contrrio,

    mesmo mostrando que todas essas outras propriedades podem continuar juntas, no

    poderia, atravs do argumento ontolgico, mostrar que Deus existe. Seja como for,

    mesmo fracassando em encontrar uma prova a priori para existncia de Deus, o

    argumento ontolgico continua a ser uma das tentativas mais criativas de responder a

    uma pergunta que provavelmente j figurou a grande parte da humanidade: ser que

    Deus existe?

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