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    Criana no Manga, no Amadurece:

    Conceito de Maturao na Teoria Histrico-Cultural

    Children Are Not Mangos, Do Not Get Ripe: Concept Of Maturation In The Historical-Cultural Theory

    Un Nio No Es Un Mango, No Madura: Concepto De Maduracin En La Teora Histrico Cultural

    Artig

    o

    Flvia da Silva Ferreira Asbahr Universidade Estadual Paulista Jlio

    de Jlio de Mesquita

    Carolina Picchetti NascimentoUniversidade de So Paulo

    414

    PSICOLOGIA: CINCIA E PROFISSO, 2013, 33 (2), 414-427

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    Criana no Manga, no Amadurece: Conceito de Maturao na Teoria Histrico-Cultural

    Resumo :A ideia da maturao do desenvolvimento fundamenta, de modo bastante recorrente, as explicaes sobre o fracasso escolar: o aluno no aprende porque imaturo, e resta escola esperar que ele amadurea. Quando se diz que uma criana no est madura, em comparao ao desenvolvimento j alcanado por um adulto, foca-se apenas nas diferenas quantitativas entre eles e se esquece que essas novas qualidades do adulto no surgiram nele pela maturao, mas sim, pelo permanente processo de apropriao da cultura humana. Dessa forma, a referida ideia de maturao do desenvolvimento expressa uma profunda biologizao do ser humano, reduzindo ao aparato biolgico do indivduo a explicao de problemas sociais e educacionais. O objetivo deste ensaio analisar as relaes entre a maturao e o desenvolvimento, apontando os limites das explicaes biologicistas dos fenmenos humanos e as possibilidades da explicao elaborada pela teoria histrico-cultural para a organizao do trabalho pedaggico. Essa concepo reconfigura o papel da maturao no processo de aprendizagem e confere educao escolar um lugar central no desenvolvimento das funes psicolgicas superiores. Assim, no cabe escola esperar que a criana amadurea, ao contrrio, seu dever criar condies para que a maturao se efetive. Palavras-chave: Desenvolvimento humano. Aprendizagem. Desenvolvimento infantil. Teoria histrico-cultural.

    Abstract: The idea of mature development is based, frequently, on explanations of school failure: the student does not learn because he is immature and the school has to wait until he gets mature. When one says that a child is not mature compared to the development already attained by an adult, one focuses only the quantitative differences between them and forgets that these new qualities of the adult did not arise by the maturation, but by the permanent appropriation process of the human culture. Thus, this idea of maturity of development expresses a deep biologization of the human being, reducing social and educational problems explanation to the biological apparatus of the individual. The purpose of this essay is to analyze the relationship between maturation and development, pointing out the limits of biologists explanations of human phenomena and the possibilities of explanation formulated by the historical-cultural theory to the organization of pedagogical work. This concept gives a new configuration to the role of maturation in the learning process and gives the school education a central role in the development of higher psychological functions. Thus, the school does not have to wait for the childs maturation. Rather, it is its duty to create conditions for his/her maturation to become effective.Keywords: Human development. Learning. Childhood development. Cultural-historical theory.

    Resumen: La idea de la maduracin del desarrollo fundamenta, de modo bastante recurrente, las explicaciones sobre el fracaso escolar: el alumno no aprende porque es inmaduro, y le resta a la escuela esperar que l madure. Cuando se dice que un nio no est maduro, en comparacin al desarrollo ya alcanzado por un adulto, se focaliza apenas en las diferencias cuantitativas entre ellos y se olvida que esas nuevas cualidades del adulto no surgieron en l por la maduracin, sino, por el permanente proceso de apropiacin de la cultura humana. De esa forma, la referida idea de maduracin del desarrollo expresa una profunda biologizacin del ser humano, reduciendo al aparato biolgico del individuo la explicacin de problemas sociales y educacionales. El objetivo de este ensayo es analizar las relaciones entre la maduracin y el desarrollo, apuntando los lmites de las explicaciones biologicistas de los fenmenos humanos y las posibilidades de la explicacin elaborada por la teora histrico cultural para la organizacin del trabajo pedaggico. Esa concepcin reconfigura el papel de la maduracin en el proceso de aprendizaje y le otorga a la educacin escolar un lugar central en el desarrollo de las funciones psicolgicas superiores. As, no le cabe a la escuela esperar que el nio madure, al contrario, es su deber crear condiciones para que la madurez se efective. Palabras clave: Desarrollo humano. Aprendizaje. Desarrollo infantil. Teora histrico-cultural.

    Em nossas atuaes como psicloga escolar e como professora de educao fsica em escolas pblicas, uma questo sempre nos incomoda: os discursos cristalizados e fetichizados sobre a prtica pedaggica e sobre as relaes de ensino e aprendizagem que dela se depreendem. Um desses discursos, usados para explicar porque determinadas crianas no aprendem, refere-se maturao

    do desenvolvimento e da aprendizagem. comum escutarmos professores, psiclogos e pesquisadores dizendo que o aluno tal no aprende porque imaturo ou no tem maturidade. Nessa perspectiva, as hipteses para o fracasso escolar de determinados alunos poderiam ser expressas em frases como: idade mental inferior cronolgica, limtrofe, infantil, imaturo, bobinho.

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    Em uma das escolas pblicas em que trabalhamos, uma professora de 4 srie dizia aos seus alunos que a classe era como uma grande mangueira, tinha algumas mangas j madurinhas, prontas para aprender, mas tambm tinha mangas verdinhas, imaturas, que precisavam ser regadas at ficarem prontas para a aprendizagem. Enquanto isso, esperar seria o melhor remdio, seria a estratgia pedaggica mais adequada.

    Na mesma perspectiva, temos escutado tais discursos vindos de psiclogos, que, ao buscarem explicar as dificuldades de aprendizagem das crianas que atendem, utilizam frequentemente a maturao (ou melhor, sua falta) como causa dessas dificuldades. Olhar os traos do desenho de uma criana, muitas vezes, j suficiente para dizer que ela imatura, logo, no aprende.

    As concepes acima mencionadas aparecem para ns como portadoras de uma verdade quase inquestionvel: as crianas que no aprendem determinados contedos (particularmente aqueles que so ensinados na escola) no desenvolveram determinadas qualidades psicolgicas. Assim, um aluno que no capaz de manter sua ateno ao realizar uma tarefa relativamente prolongada no desenvolveu, ainda, a sua ateno voluntria. Entretanto, essa verdade quase inquestionvel uma verdade apenas no nvel da aparncia. Trata-se de uma concluso a partir da observao da realidade que nos apresentada imediatamente. Avalia-se que o estudante no consegue aprender determinado contedo e sabe-se que tal contedo se relaciona a uma determinada funo psquica, logo, conclui-se que essa funo no amadureceu e que essa seria a causa de seu fracasso escolar.

    A r e l a o e n t r e ap rend i z a gem e desenvolvimento das funes psquicas captadas em sua imediaticidade, tal qual exposta no exemplo anterior oculta a essncia contida nessa relao ou a verdadeira explicao sobre os processos de ensino, aprendizagem e desenvolvimento.

    O objetivo deste ensaio analisar as relaes entre a maturao e o desenvolvimento, apontando os limites das explicaes biologicistas dos fenmenos humanos e as possibilidades da explicao elaborada pela teoria histrico-cultural de Vigotski e seus colaboradores para a organizao do trabalho escolar. Ressalta-se que outros autores elaboraram snteses das concepes sobre desenvolvimento e aprendizagem advindos da teoria histrico-cultural, como, por exemplo, Facci (2004), Teixeira (2003), Chaiklin (2011) e Pasqualini (2009), entre outros. No entanto, o enfoque deste artigo est no conceito de maturao e em como tal conceito tem permeado a prtica pedaggica.

    Primeiramente, apresentaremos a anlise crtica realizada por Vigotski s teorias do desenvolvimento de sua poca, especialmente ao conceito de maturao. Em um segundo momento, exporemos o conceito de maturao do desenvolvimento humano presente na teoria histrico-cultural.

    Teorias sobre o desenvolvimento e o conceito de maturao

    A explicao sobre os processos de aprendizagem e desenvolvimento baseadas no conceito de maturao expressa a aparncia dessa relao e, ao mesmo tempo, uma profunda biologizao desses processos. A biologizao das explicaes sobre o fracasso escolar, incorporada de forma hegemnica no discurso do senso comum, est presente em diferentes teorias psicolgicas sobre o desenvolvimento humano, teorias essas que, em ltima instncia, servem de fundamento para o prprio discurso do senso comum. Ao dizer que determinado aluno infantil ou imaturo, o professor remete-se a teorias do desenvolvimento infantil estudadas durante seu curso de formao que retratam o desenvolvimento humano como algo maturacional, linear, determinstico. E, mesmo sem ter estudado profundamente tais teorias do desenvolvimento, so elas que embasam seu trabalho. Sendo assim, apenas

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    desenvolvimento e aprendizagem em trs categorias fundamentais a concepo inatista, a concepo empirista/ambientalista e a concepo dualista , reconhece que, nessas concepes, h uma compreenso maturacionista do desenvolvimento e critica tais abordagens:

    Segundo essas teorias, a aprendizagem um processo puramente exterior, paralelo, de certa forma, ao processo de desenvolvimento da criana, mas que no participa ativamente neste e no o modifica absolutamente: a aprendizagem utiliza os resultados do desenvolvimento, em vez de se adiantar ao seu curso e de mudar a sua direo (Vigotski, 1988, p.103)

    Esse autor no s analisou tais teorias como tambm as criticou, principalmente no que se refere s suas implicaes pedaggicas. Segundo tais teorias, a escola s pode fazer seu trabalho depois que a criana atingir determinado nvel de maturao:

    O desenvolvimento deve atingir uma determinada etapa, com a conseqente maturao de determinadas funes, antes de a escola fazer a criana adquirir determinados conhecimentos e hbitos. O curso do desenvolvimento precede sempre o da aprendizagem. A aprendizagem segue o desenvolvimento. Semelhante concepo no permite sequer colocar o problema do papel que podem desempenhar, no desenvolvimento, a aprendizagem e a maturao das funes ativadas no curso da aprendizagem. O desenvolvimento e a maturao dessas funes representam um pressuposto, e no um resultado da aprendizagem (Vigotski, 1988, p. 104)

    Vamos a cada uma dessas concepes e a como analisam o papel da maturao no desenvolvimento infantil.

    At determinado momento da histria da cincia, particularmente com relao s teorias que procuravam explicar o desenvolvimento humano, a teoria inatista ou pr-formista aparecia como a viso hegemnica. Essa concepo, atualmente, est relativamente ausente das explicaes sobre o desenvolvimento humano, contudo,

    cabe ao professor esperar que seu aluno amadurea.

    En tendemos que a r e l a o en t r e desenvolvimento e aprendizagem uma questo central para a prtica pedaggica, sobretudo porque nos remete s questes relacionadas a o que ensinar (os contedos), como ensinar (o modo de organizar o ensino) e porque ensinar (a finalidade da educao escolar). Uma das importncias em se estudar o processo de desenvolvimento humano est justamente em sua relao com a aprendizagem. As teorias sobre o desenvolvimento humano, atravs de suas explicaes sobre o que se desenvolve no homem e como se desenvolve, delimitam as possibilidades da aprendizagem, ou seja, avaliam se ela pode ou no interferir nesse desenvolvimento e sobretudo como ela pode nele interferir.

    Nessa perspectiva, o desenvolvimento refere-se, de maneira geral, s mudanas que ocorrem ao longo do ciclo de vida de um indivduo. O estudo do desenvolvimento humano est voltado, entre outras coisas, para explicar os fatores que influenciam ou que determinam as mudanas no comportamento do indivduo ao longo do tempo. Nesse sentido, e ainda que no explicitamente, as teorias pedaggicas e as prticas educativas que se do na concreticidade das salas de aula esto fundamentadas por uma concepo de desenvolvimento humano, isto , tm por referncia alguma explicao sobre as possibilidades de vir a ser do homem. nessa medida que podemos afirmar que as teorias sobre o desenvolvimento humano possuem uma implicao prtica na formao do prprio homem.

    Vigotski um dos autores que analisa as concepes de desenvolvimento e aprendizagem subjacentes a algumas teorias psicolgicas de sua poca e suas possveis implicaes educacionais. O autor divide as teorias que explicam a relao entre

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    seu estudo ainda se mostra importante. Tal importncia se justifica tanto pelo seu valor histrico (como um estgio das teorias sobre o desenvolvimento humano, e que influenciou as teorias subsequentes) quanto pela persistncia de parte de suas ideias como modos de ao para as anlises. Ainda que uma teoria tenha desaparecido da cincia, de modo que no haja mais uma defesa aberta de suas ideias, no raro, elas se mantm presentes na forma de hbitos de pensamentos (Vigotski, 1995), que condicionam as prticas educacionais e de pesquisa.

    Para os adeptos da teoria inatista, o desenvolvimento humano caracteriza-se, fundamentalmente, pelo seu potencial intrnseco (hereditrio), com pouca ou nenhuma influncia do meio. Os processos de crescimento fsico e maturacional em ltima anlise, o organismo determinam incondic ionalmente o processo de desenvolvimento. Assim, o estado de desenvolvimento da criana de dez anos de idade seria produto direto do seu estado maturacional, isto , de suas foras internas.

    Nota-se, nessa concepo, que a explicao dada para o desenvolvimento humano no guarda diferena substancial com o tipo de explicao dada para o processo de desenvolvimento do animal; no h qualquer singularidade no processo de desenvolvimento do homem comparativamente ao do animal. Nesse sentido, o desenvolvimento humano resumir-se-ia a um processo de amadurecimento meramente biolgico, movido pelas foras e pelas transformaes internas do organismo.

    No existindo mais uma defesa aberta das ideias dessa teoria (ou ao menos no hegemonicamente), resta sabermos em que essa concepo influencia ainda hoje nosso pensamento ou nossos hbitos de pensamento, conforme Vigotski (1995).

    A primeira delas, um tanto quanto influente nas prticas educacionais, a manuteno

    da crena de um certo desenvolvimento natural da criana, da crena da existncia de uma fora intrnseca criana (processos maturacionais), que saberia ao certo para onde conduzi-la no seu desenvolvimento e na qual no deveramos interferir. Makarenko (1980), fazendo crtica a esse tipo de pensamento nos educadores o do espontanesmo do desenvolvimento infantil , cita uma interessante metfora, retrucando as crenas de alguns tericos de que a criana poderia desenvolver-se muito bem sem a interferncia dos adultos. Segundo o autor, em condies de natureza pura, crescem apenas ervas daninhas (p. 147).

    A segunda forma de influncia do pensamento inatista nos dias de hoje relaciona-se prtica de investigao cientfica e refere-se reduo do desenvolvimento humano a um processo puramente quantitativo. O indivduo reduzido, na teoria inatista, a um ser biolgico, cujas caractersticas j esto dadas desde o nascimento, restando apenas que elas sejam desabrochadas. Dessa forma, a descoberta do processo de desenvolvimento especificamente humano torna-se impossvel, assim como a captao e a explicao de todas as mudanas e transformaes verificadas na conduta da criana em uma sociedade histrica e culturalmente produzida. Desse modo, o desenvolvimento, para essa teoria, comanda a aprendizagem, cabendo a esta ltima apenas aproveitar aquilo que o desenvolvimento j lhe ofereceu. Nessa viso, o estudante rene ou no as condies ou aptides para aprender, de acordo com as caractersticas hereditrias que possui.

    Como negao da teoria inatista, a teoria empirista/ambientalista do desenvolvimento humano procurou deslocar todas as explicaes dadas para a formao do ser humano (que residiam no organismo) para o meio. Para essa teoria, todo o conhecimento dos seres humanos provm de sua experincia no meio fsico e social ao qual ele est inserido, meio esse que provoca mudanas no comportamento do indivduo. Esse processo caracterizaria o desenvolvimento, para essa teoria.

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    Trata-se, assim, de uma inverso, dentro da mesma concepo determinista do desenvolvimento humano; os ambientalistas negam o determinismo biolgico dado pela teoria inatista para afirmarem o determinismo ambiental no desenvolvimento do homem. E, justamente por ser uma teoria determinista do desenvolvimento, consideramos que seja, tambm, uma teoria reducionista, incapaz, portanto, de explicar em sua totalidade o desenvolvimento especificamente humano. De acordo com essa concepo, a educao era vista como mero processo de transmisso de contedos, transmitidos pelo professor e recebido pelos alunos, que teriam seu comportamento moldado de acordo com esse processo, ou seja, o meio determinaria inteiramente o desenvolvimento do homem; os seres humanos seriam uma cpia das condies externas.

    Apesar de as teorias inatistas e ambientalistas do desenvolvimento humano guardarem muitas diferenas entre si, apresentam um ponto em comum que parece aproxim-las mais do que as suas diferenas podem afast-las: trata-se de suas concepes deterministas e a-histricas do desenvolvimento humano.

    O terceiro grupo terico busca conciliar as concepes apresentadas anteriormente, fazendo com que coexistam. Trata-se da concepo dualista de desenvolvimento, que considera a existncia, por um lado, do processo de maturao que depende do desenvolvimento neurolgico, e, de outro, da aprendizagem considerada em si mesma como processo de desenvolvimento. Vigotski resume as novidades dessa teoria em trs pontos: conciliam-se dois pontos de vista antes considerados contraditrios, considera-se a questo da interdependncia de dois processos fundamentais, amplia-se o papel da aprendizagem no desenvolvimento infantil. O desenvolvimento, porm, continua expressando um mbito mais amplo do que a aprendizagem: A relao entre ambos os processos pode representar-se esquematicamente por meio de dois crculos

    concntricos; o pequeno representa o processo de aprendizagem, e o maior, o do desenvolvimento, que se estende para alm da aprendizagem (Vigotski, 1988, p.109).

    Vigotski procura uma nova soluo para o problema da relao desenvolvimento e aprendizagem que supere as concepes maturacionistas e ambientalistas presentes nas teorias analisadas. Uma psicologia verdadeiramente histrica e que supere esses determinismos (biolgicos e ambientalistas) nasce juntamente tentativa de elaborar uma psicologia fundamentada no materialismo histrico-dialtico: a teoria histrico-cultural.

    A concepo de desenvolvimento na teoria histrico-cultural. Ou, por que esperar a maturao no nos permite esperar que a criana se desenvolva?

    Carvalho (1999), em seu art igo De Psicologismos, Pedagogismos e Educao, critica a realizao de transposies diretas das teorias psicolgicas para a prtica educativa. Ser, ento, que no estaramos equivocados ao tentar explicitar uma outra teoria psicolgica e buscar nela fundamentos para nossa prtica pedaggica? A essa pergunta, respondemos que no.

    Antes de mais nada, a teoria histrico-cultural no uma metodologia nova ou um conjunto de tcnicas para auxiliar a prtica pedaggica, mas , fundamentalmente, uma forma de entender o homem naquilo que ele e naquilo que ele pode vir a ser. Trata-se, em essncia, da elaborao das questes psicolgicas sobre o que se desenvolve no homem e como se desenvolve, a partir da explicitao e da defesa de uma certa concepo de mundo e de homem: ambos essencialmente histricos.

    Mais do que isso, a teoria histrico-cultural tem as questes educacionais como base e finalidade de suas investigaes, posto que,

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    Carvalho (1999), em seu artigo De

    Psicologismos, Pedagogismos e

    Educao, critica a realizao de

    transposies diretas das teorias

    psicolgicas para a prtica

    educativa.

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    para ela, o desenvolvimento especificamente humano no ocorre sem o ensino, seja ele intencional ou no. Vigotski explicita e desenvolve em seus trabalhos a tese j bastante difundida atualmente de que o nico bom ensino o que se adianta ao desenvolvimento (1988, p. 114).

    Entretanto, essa explicao psicolgica embora possa e deva constituir fundamento da prtica educativa, no pode ser tomada como ponto final desta ltima. Queremos dizer com isso que essa fundamentao no retira a necessidade de estudarmos os problemas concretos da educao escolar e de cada disciplina em particular, embora seja capaz de criar as bases para tal estudo.

    O primeiro aspecto a ser realado da concepo de desenvolvimento da teoria histrico-cultural a compreenso de que a criana no um adulto em miniatura. H uma constituio infantil especfica, tanto fsica como psicolgica, que diferencia adultos e crianas no apenas quantitativamente, mas principalmente qualitativamente. Alm disso, o desenvolvimento infantil no linear, causado por acumulaes sucessivas. H metamorfoses, revolues radicais no processo de desenvolvimento pelas quais passa a criana que iro garantir sua passagem de ser biolgico para ser cultural. Essas metamorfoses no so produzidas biologicamente, pelo curso natural do desenvolvimento, mas pela insero da criana no mundo histrico-cultural:

    Uma vez integrada num ambiente adequado, a criana sofre rpidas transformaes e alteraes: esse um processo surpreendentemente rpido, porque o ambiente sociocultural pr-existente estimula na criana as formas necessrias de adaptao, h muito tempo criadas nos adultos que a rodeiam (Vigotski & Luria, 1993, p.180)

    Assim, entender o que seja o desenvolvimento infantil na perspectiva da teoria histrico-cultural implica assumir que: a) existe uma linha histrico-cultural do desenvolvimento

    (Vigotski, 1995) que se diferencia de sua linha biolgica, b) para desenvolver-se culturalmente, preciso apropriar-se dos significados historicamente produzidos nas atividades humanas (Leontiev, 1983). Ao postular a existncia de uma linha biolgica e de uma linha histrica no processo de desenvolvimento humano, Vigotski procura ressaltar os aspectos essenciais que fizeram e fazem o homem constituir um ser cultural, o que nos indica a possibilidade de intervenes conscientes no processo de formao de cada sujeito. Segundo o autor, as duas linhas entrelaam-se dialeticamente no processo de desenvolvimento, formando uma unidade no processo de humanizao, ou seja, o aspecto biolgico o ponto de partida do desenvolvimento humano, mas altera-se no decorrer do processo de apropriao da cultura pelo sujeito, na medida em que:

    Tendo dominado os processos que determinam sua prpria natureza, o homem que hoje est lutando contra velhice e doenas ascender, indubitavelmente, a um nvel mais elevado e transformar sua prpria organizao biolgica. Mas essa a fonte do maior paradoxo histrico do desenvolvimento contido nessa transformao biolgica do tipo humano, que alcanada principalmente por meio da cincia, da educao social e da racionalizao dos modos de vida. A alterao biolgica do homem no representa uma condio prvia para esses fatores, mas, ao invs disso, um resultado da liberao social do homem (Vigotski, 1930)

    A linha biolgica do desenvolvimento humano caracteriza-se, sobretudo, por uma relao direta do homem com o mundo, por comportamentos espontneos ou imediatos, dos quais ele no tem conscincia e, assim, no pode controlar plenamente. O segundo tipo de desenvolvimento caracteriza-se pelo surgimento de novas formas de conduta condutas mediadas , fruto das conquistas culturais que o homem foi alcanando em suas atividades. Com essas formas culturais de conduta, o homem pde criar seus rgos

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    Vigotski explicita e desenvolve em seus trabalhos a tese j bastante

    difundida atualmente de

    que o nico bom ensino o que se adianta ao

    desenvolvimento (1988, p. 114).

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    artificiais (instrumentos e signos) e formar uma existncia consciente ou uma existncia para-si (Heller, 1991).

    A cultura origina formas especiais de conduta, modifica a atividade das funes psquicas, edifica novos nveis nos sistemas de comportamento humano em desenvolvimento (...) No processo de desenvolvimento histrico, o homem social modifica os modos e os procedimentos de sua conduta, transforma suas inclinaes naturais e funes, elabora e cria novas formas de comportamento, especificamente culturais (Vigotski, 1995, p.34)

    O esforo em se explicitar as especificidades dessas duas linhas de desenvolvimento no homem, a biolgica e a cultural, e mais amplamente o esforo em diferenciar os tipos de desenvolvimento do homem comparativamente ao dos animais, inclusive aqueles que nos so mais prximos (como os chipanzs), no se d com a finalidade de simplesmente estabelecer uma hierarquia de superioridade e, nesse sentido, de desqualificao dos demais animais. No se trata de um movimento antropocentrista; trata-se, sim, de compreender melhor as aes que permitem a cada homem se formar de acordo com as mximas possibilidades de desenvolvimento produzidas historicamente pela humanidade. E isso nos traz implicaes fundamentais para as questes educativas.

    Quando dizemos que a criana no est madura, ns a comparamos com um adulto e tomamos seu desenvolvimento como parmetro. Nesse processo, esquecemo-nos das diferenas qualitativas entre o desenvolvimento infantil e o adulto, focando-nos apenas nas diferenas quantitativas e esquecendo-nos que as novas qualidades do adulto no surgiram nele pela maturao, mas pelo permanente processo de apropriao da cultura humana.

    Apropriar-se da cultura humana, do mundo de objetos e de relaes humanas, no significa simplesmente o aprendizado de novos hbitos ou informaes fornecidos

    pelo ambiente. A apropriao (ou a ao de apropriar-se do mundo) um conceito que se aplica exclusivamente aos seres humanos por refletir um tipo especfico ou particular de aprendizagem, presente apenas no homem.

    O fato de os macacos poderem aprender uma poro de coisas, inclusive aes tidas como tipicamente humanas (como o uso de instrumentos), no significa que a diferena entre os processos de desenvolvimento de um e de outro inexista. Em primeiro lugar, aquilo que os macacos aprendem dificilmente, ou nunca, constitui uma atividade no sentido prprio dado por Leontiev (1983); trata-se, mais bem, de aes isoladas, com seus significados, mas no de uma atividade estruturada ou de inteiros modos de ao (Heller, 2000). Em segundo lugar, por mais complexo que seja o que o macaco aprende, tal aprendizado, e mais do que isso, o no aprendizado desse elemento no implica uma diminuio da sua condio de ser macaco. O que ele aprende no constitui uma necessidade de vida, ao menos no do ponto de vista da espcie.

    Um elefante quebra galhos das rvores e os utiliza para espantar as moscas. Porm, usar galhos para combater as moscas provavelmente no desempenhou nenhum papel considervel na histria do desenvolvimento da espcie o elefante. Os elefantes no se tornaram elefantes pela razo de que seus ancestrais mais ou menos tipo-elefante matavam moscas com galhos (Vigotski & Luria, 1996, p. 88)

    Um co domest icado (e os animais domsticos em geral) experimenta um certo grau de socializao. Aprende determinados comportamentos que o meio social lhe impe e cria para si determinadas necessidades tambm advindas desse meio (como, por exemplo, a necessidade de carinho de seu dono). Entretanto, tanto uma coisa quanto outra representam necessidades que no mudam substancialmente o seu comportamento de espcie e, em ltima anlise, no representam necessidades da espcie como tal para que ela mesma se efetive. Trata-se, no fim, de uma necessidade

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    A cultura origina formas especiais

    de conduta, modifica a

    atividade das funes

    psquicas, edifica novos nveis

    nos sistemas de comportamento

    humano em desenvolvimento

    (...) No processo de

    desenvolvimento histrico, o

    homem social modifica os modos e os

    procedimentos de sua conduta, transforma suas

    inclinaes naturais e

    funes, elabora e cria novas

    formas de comportamento, especificamente culturais (Vigotski,

    1995, p.34)

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    que lhe imposta pelo meio, de um comportamento que no afasta, e na verdade ratifica, o processo geral e universal de desenvolvimento dos animais: o processo de adaptao ao meio.

    Para o homem, o processo se d de forma diferente. Toda a existncia de um aborgene australiano depende de seu bumerangue, do mesmo modo que toda a existncia da moderna Inglaterra depende de suas mquinas (Vigotski & Luria, 1996, p. 88). No aprender determinadas coisas significa, concretamente, uma impossibilidade real de sua humanizao, uma diminuio ou cerceamento de suas possibilidades de se formar como homem. As suas possibilidades de vir a ser homem efetivam-se de acordo com as possibilidades concretas/objetivas para se apropriar daquelas objetivaes humanas historicamente formadas. Para estabelecer a verdadeira diferena entre os instrumentos humanos e os instrumentos nos animais, devemos analisar, de acordo com Leontiev (1978), a atividade em que eles tomam parte. Para os animais, a sua atividade confunde-se sempre com o seu motivo biolgico, e os instrumentos encerram, em si, uma possibilidade natural de realizar a sua atividade instintiva. Para o homem, por outro lado, o instrumento possibilita a criao e a apropriao de novas formas de sua atividade no mundo, com os outros e consigo mesmo.

    (...) Na vara usada pelo macaco, j podemos ver o prottipo no s de um instrumento em geral mas de toda uma srie de instrumentos diferenciados: ps, lanas, e assim por diante. Porm, mesmo no caso dos macacos que, no mundo animal, se encontram no ponto mais elevado quanto ao uso de instrumentos, esses instrumentos ainda no desempenham papel decisivo na luta pela sobrevivncia. Na histria do desenvolvimento do macaco, ainda no houve aquele salto para diante que constituiu o processo de transformao do macaco em homem, e isso, do ponto de vista que nos interessa, termina no fato de que os instrumentos de trabalho se tornam a base de adaptao natureza. No

    processo de desenvolvimento do macaco, esse salto para diante teve incio, mas no se completou. A fim de que se complete, preciso que se desenvolva uma nova forma especial de adaptao natureza, estranha aos macacos ou seja, o trabalho (Vigotski & Luria, 1996, p. 88)

    Em outras palavras, a imitao e a utilizao de instrumentos nos animais no cria neles um comportamento realmente novo (novos significados), mas apenas uma forma diferente de realizar o seu comportamento de espcie, tratando-se, assim, de um processo de adaptao. A imitao no ser humano, ou, mais amplamente, os processos de educao e de aprendizagem, os processos de objetivao e de apropriao da cultura so os processos universais de desenvolvimento de cada sujeito como indivduo pertencente ao gnero humano, so os mecanismos universais para a produo de indivduos cada vez mais ricos em necessidades humanas.

    Assim, uma nova capacidade no surge no homem porque as capacidades orgnicas a ela vinculadas se aprimoram. Ao adquirir novas maneiras de ver e ouvir (e poderamos tambm pensar em funes mais complexas, como ler, focar a ateno voluntariamente em algo e pensar teoricamente), isso no significa que tenham surgido nos homens refinamentos de suas capacidades sensoriais ou orgnicas, mas sim, que tenham surgido novas realidades sociais, novos objetos sociais, produzidos pelo prprio homem, que permitiram s capacidades orgnicas se transformarem e se tornarem capacidades propriamente humanas. , portanto, nessa relao entre produo/apropriao de objetos culturais que o homem se formou como homem cultural, com capacidades e condutas culturais.

    As aquisies do desenvolvimento histrico das aptides humanas no so simplesmente dadas aos homens nos fenmenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas so a apenas postas. Para se apropriar desses resultados, para fazer deles as suas aptides, os rgos da

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    sua individualidade, a criana, o ser humano, deve entrar em relao com os fenmenos do mundo circundante atravs de outros homens, isto , num processo de comunicao com eles. Assim, a criana aprende a atividade adequada. Pela sua funo, esse processo , portanto, um processo de educao (Leontiev, 1978, p. 290, grifos do autor)

    A argumentao de Leontiev parece deixar claro que no se trata, portanto, de uma simples posse dos objetos culturais, para que os mesmos resultem em uma mudana em nossas capacidades e condutas. Os objetos materiais e no materiais apropriados pelo homem no processo educativo contm, apenas em termos de possibilidade, as formas de conduta especificamente humanas. Para que esses objetos possam, de fato, ser internalizados, o sujeito deve realizar uma atividade que reproduza as caractersticas essenciais da atividade humana em questo. Tal ato, por sua vez, s pode se dar mediante a colaborao de indivduos mais experientes, posto que os significados sociais contidos nos objetos, nas atividades humanas, s podem ser revelados em uma atividade coletiva (social).

    Ao estudar o desenvolvimento cultural do homem, a teoria histrico-cultural no nega a permanncia e a importncia das funes naturais (ou elementares) no desenvolvimento humano, mas afirma que no so essas funes que explicam a complexidade das funes especificamente humanas.

    A tese fundamental, que conseguimos estabelecer ao analisar as funes psquicas superiores, o reconhecimento da base natural das formas culturais de comportamento. A cultura no cria nada, apenas modifica as atitudes naturais em concordncia com os objetivos do homem (Vigotski, 1995, p. 152, traduo nossa)

    A Psicologia, como cincia, precisa sair do cativeiro da Biologia e passar ao terreno da Psicologia histrica humana (Vigotski, 1995, p.132); a maturao, portanto, compreendida como maturao biolgica, no nos ajuda a compreender e a explicar o desenvolvimento humano. Para o autor, a gnese das funes psicolgicas superiores

    o que interessa psicologia humana.

    Nesse sentido, Bernardes e Asbahr analisaram o desenvolvimento de algumas das funes psicolgicas superiores, a unidade interfuncional entre essas funes e o papel da educao escolar no desenvolvimento psicolgico. Os autores explicitam, tambm, essa passagem da primazia das funes biolgicas para as funes culturais, exemplificando com o desenvolvimento de uma das funes psicolgicas superiores, a memria:

    Luria, ao referir-se ao processo de transformao no uso da memria, afirma que (...) o desenvolvimento subseqente no significa melhora da memria natural, mas sim, substituio: substituio de mtodos primitivos por outros, mais eficientes, que aparecem no processo da evoluo histrica (grifo do autor). Refere-se tambm, nesse sentido, ao uso, por parte da criana, de objetos externos como instrumentos mediadores para controlar o processo interno da memria. Conforme a criana se insere no processo de escolarizao, faz uso de novas tcnicas, como a anotao, as quais suprem os procedimentos anteriores. O uso de novas tcnicas considerado pelo autor como um processo de reequipamento da memria por meios alternativos, culturais (Bernardes & Asbahr, 2007, pp. 325-326)

    Segundo os pressupostos da teoria histrico-cultural, a transformao da memria, bem como das demais funes psicolgicas superiores, no pode ser entendida como simples maturao estrutural, mas sim, como metamorfose cultural decorrente do processo de reequipamento cultural possibilitado pelo contedo das relaes interpessoais apropriadas pelos indivduos. A transformao da memria relaciona-se intimamente com a transformao das outras funes psicolgicas superiores, dando ao desenvolvimento psicolgico uma dimenso muito mais cultural do que natural.

    Nesse sentido, deve-se ressaltar que o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores ocorre a partir de mediaes culturais. Tal compreenso desloca o foco das dificuldades da aprendizagem do nvel individual para o social, e coloca o problema da qualidade das mediaes culturais

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    presentes na vida da criana (Facci, Eidt, & Tuleski, 2006).

    Verifica-se que as causas do atraso mental no podem ser explicadas somente a partir de anamneses, entrevistas e testagens psicomtricas, ou seja, com instrumentos que buscam as causas do no aprender na criana e em sua famlia, mas essa anlise deve ser ampliada para a atividade de ensino e de aprendizagem, especialmente no que se refere qualidade do contedo ministrado, relao professor-aluno, metodologia de ensino, adequao de currculo, ao sistema de avaliao adotado, em suma, ao acesso da criana ao mundo dos instrumentos e signos culturais (2006, p. 111)

    A mediao pedaggica vem sendo assumida cada vez mais como uma categoria central na atividade educativa nas mais diferentes perspectivas tericas. Nesse processo de adoo da referida categoria, comum ouvirmos a defesa, ampla e hegemonicamente aceita, de que os professores so os mediadores da aprendizagem. Alm disso, o papel de mediador aparece nessas defesas, tambm, como sinnimo de um facilitador da aprendizagem.

    Haveria algum problema em assumirmos essa defesa? No correto que o professor deve ser um mediador na sala de aula e deve facilitar o trabalho dos educandos?

    Ora, quando se pensa na mediao fundada na dialtica, deve-se considerar que ela requer a superao do imediato no mediato. Assim, provvel que o educador dificulte a aprendizagem do educando, pois o educador precisa fazer com que o educando supere a compreenso imediata assumindo outra que seja mediata (Almeida, 2002, p.8)

    Desse modo, o educador jamais pode ser o mediador do processo de ensino e aprendizagem, tampouco o facilitador, posto que ele mesmo um dos polos da relao a ser mediada: professor-aluno, ensino-aprendizagem, mediato-imediato. O educador, portanto, sujeito do processo de ensino e de aprendizagem, sujeito que

    organiza a atividade de ensino, esta sim, assumindo o papel de mediao entre os dois polos da relao, ou seja, buscando estabelecer a relao entre o imediato (os conhecimentos empricos que os educandos trazem de suas vidas) e o mediato (os conhecimentos tericos que o professor quer ensinar para os estudantes).

    Diante dessas argumentaes sobre a mediao, devemos considerar que se, por um lado, no basta esperar que as crianas se desenvolvam culturalmente, por outro lado, tambm no basta organizar o seu desenvolvimento. Especialmente na escola, preciso organizar de um determinado modo esse desenvolvimento, modo esse que permita s crianas se apropriarem das mximas possibilidades mediadas de relao do homem com o mundo que foram sendo criadas. Por isso, valorizar as experincias cotidianas dos educandos como estratgia pedaggica mediadora para a organizao do ensino (e, em consequncia, para o desenvolvimento dos sujeitos) significa uma hipervalorizao dessas experincias (que j so abundantes nas vidas cotidianas dos estudantes) e um abandono, dessa vez por outras vias, do processo de desenvolvimento cultural dos sujeitos em suas mximas possibilidades.

    Consideraes finais

    Na perspectiva terica assumida neste trabalho, a escola tem papel central no desenvolvimento de seus estudantes, na medida em que cria condies para que se apropriem atravs de mediaes culturais planejadas e intencionais dos conhecimentos acumulados pela humanidade, conhecimentos esses que encarnam as novas possibilidades de conduta das crianas, como a ateno voluntria, a memria lgica, o pensamento terico, a capacidade de leitura e escrita, etc. Essas funes ou condutas esto presentes para cada indivduo apenas como uma potencialidade, e esto presentes externamente aos indivduos, isto , sob a forma de objetos e de relaes externas.

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    Nesse sentido, esperar o desenvolvimento das crianas, esperar que elas em algum momento alcancem determinadas novas funes significa, na maioria das vezes, contentar-se com o no desenvolvimento da criana.

    A soluo parece estar, ento, em proporcionar condies timas de relaes das crianas com aqueles objetos culturais. Entretanto, essa estratgia pode resultar, na prtica pedaggica, no mesmo abandono do processo de desenvolvimento da criana, pois, como j afirmado, para desenvolver-se culturalmente, a criana, o ser humano, deve entrar em relao com os fenmenos do mundo circundante atravs de outros homens, isto , em um processo de comunicao com eles (Leontiev, 1978, p. 290), e a qualidade dessa comunicao com os outros que pode determinar de modo mais direto a qualidade do desenvolvimento da criana.

    Nesse sentido, cabe educao escolar ampliar o desenvolvimento do estudante,

    ou seja, a escola, a partir da organizao adequada do ensino, pode produzir desenvolvimento. Assim, os contedos escolares devem ser organizados de maneira a formar na criana aquilo que ainda no est formado, elevando-a a nveis superiores de desenvolvimento. Cabe ao ensino orientado produzir na criana neoformaes psquicas, isto , produzir novas necessidades e motivos que iro paulatinamente modificando a atividade principal dos alunos e reestruturando os processos psquicos particulares (Davidov, 1988).

    Tal concepo de desenvolv imento reconfigura o papel da maturao no processo de aprendizagem e d educao escolar um papel central no desenvolvimento das funes psicolgicas superiores. Em um sentido oposto ao que vemos nas teorias maturacionistas, no cabe escola esperar que a criana amadurea. Ao contrrio, seu dever criar condies para que a maturao se efetive.

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    Flvia da Silva Ferreira AsbahrDoutora em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo e docente da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP), Bauru SP Brasil.E-mail: [email protected]

    Carolina Picchetti NascimentoDoutoranda em Educao pela Universidade de So Paulo, So Paulo SP Brasil.E-mail: [email protected]

    Endereo para envio de correspondncia:Departamento de Psicologia/ Faculdade de Cincias Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho. Avenida Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, n 14-01, Vargem Limpa. CEP: 17033-360. Bauru, SP

    Recebido 05/05/2011, 1 Reformulao 01/10/2012, Aprovado 22/01/2013.

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