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    ARTCULOS

    Utopa y Praxis Latinoamericana /Ao 12. N 36 (Enero-Marzo, 2007) Pp. 35 - 55Revista Internacional deFilosofa Iberoamericana y Teora Social / ISSN 1315-5216

    CESA FACES Universidad del Zulia. Maracaibo-Venezuela

    Gramsci alm de Ma quiavel e Croce: Estado e sociedade

    civil nos "Quaderni del carcere"

    Gramsci beyond Maquavelo y Croce: State and Civil Society in"Prison Notes"

    lvaro BIANCHIDepartamento de Cincia Poltica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),

    Centro de Estudos Marxistas da Unicamp, Brasil

    RESUMEN

    Este artculo pretende investigar la cons-truccin gramsciana de los conceptos de Estado ysociedad civil en los Quaderni del carcere. Por

    intermedio de una lectura gentico-diacrnica,que valoriza el carcter fragmentario de la obra,las fuentes a las cuales recurre su autor y el tiem-

    po de su produccin, se bus ca revalorizar el ca-rcter unitario y orgnico del pensamiento deGramsci. Es po sible, de ese modo, encontrar unacomprensin de la sociedade civil y la sociedad

    poltica (Estadostrictu sensu) en la cual esos di-ferentes trminos no se encuentran en una rela-cin de antagonismo, como podra afirmarse deuna lectura hegemnica de esa obra, y si en unarelacin de unidad-distincin.Palabras-clave: Estado, sociedad civil, Grams-ci, Machiavelli, Croce.

    ABSTRACT

    This paper aims at investigating theGramscian construction of the concepts of Sta teand civil society within the Quaderni del carce-

    re. By means of a genetic-diachronic reading,which emphasizes the fragmentary character ofthis work, the sources to which re sorts its authorand the time period of its pro duction, it is soughtthe revaluation of the uni tary and organic cha rac-ter of Gramscis thought. Therefore, it is possibleto found an un derstanding of the civil society andthe political society (the Statestrictu sensu/) inwhich these distinct terms do not have an an tago-nistic relationship, as stated by a hegemonic rea-ding of this work and rat her a re lationship ofunity-distinction.Key words: State; civil society, Gramsci, Ma-chiavelli, Croce.

    Recibido: 15-10-2006 Aceptado: 11-12-2006

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    Buscar a real identidade na aparente diferena e contradio, eprocurar a substancial diversidade sob a aparente identidade amais delicada, incompreendida e contudo essencial virtude do crti-co das idias e do historiador do desenvolvimento histrico(Gramsci: Q 24, 3, p. 2268).

    No h como negar a existncia de uma leitura he gemnica da obra de Gramsci.Nela, o marxista sardoseafirmaria comoum terico das superestruturas, umprofeta da so-ciedade civil organizada e umdefensor da conquista de espaos na democracia. O epi-centro dessa leitura pode ser encontrado em uma apropriao reducionista do conceitogramsciano de Estado em seu sentido orgnico e mais amplo para a qual a in terpretaodeNorberto Bobbio tornou-separadigmtica. Nessaapropriao,aunidadeentreestruturae superestrutura, sociedade poltica e sociedade civil, ditadura e hegemonia era cindida euma relao de antagonismo era constituda entre cada um desses termos.

    O objetivo deste artigo proceder a uma reconstruo do conceito gramsciano deEstado, com vistasasuperarofalso antagonismoinstitudo entreessesconceitoserevalori-zar o carter unitrio e orgnico do pensamento de Gramsci. Tal reconstruo exige umaleitura gentico-diacrnica, que valorize o carter fragmentrio da obra do marxista sardo,as fontes s quais ele recorre e o tempo de sua produo.

    ESTADO EN SEU SENTIDO ORGNICO E MAIS AMPLOO ponto de partida para a anlise do conceito de Estado pode ser uma nota, presente

    j noPrimo Quaderno, intituladaLa concezione dello Stato secondo la produttivit [fun-zione]delle classi sociale. Nes sa nota, afirmava Gramsci: Para as classes produtivas (bur-guesiacapitalistaeproletariado moderno) o Estado no concebvel mais que comoformaconcreta deum determinado mundo econmico,deumdeterminado sistemadeproduo1

    OEstado a expresso, no terreno dassuperestruturas, de umadeterminadaformadeorga-nizao social da produo. Assim, a conquista do poder e a afirmao de um novo mundoeconmico e produtivo so indissociveis e dessa condio unitria que decorre a prpriaunidade da classe que , ao mesmo tempo, poltica e economicamente dominante.

    Esta definio , entretanto, apenas um ponto de partida. Perguntas pertinentes noencontram nes te marco preliminar, respos tas satisfatrias. Gramsci est ciente destas difi-culdades. Ainda nesse pargrafo coloca a necessidade de conceber essa relao entre eco-nomia e poltica sem descurar as complexas relaes existentes entre desenvolvimentoeconmico e poltico local (nacional) e internacional. Bem como o processo de racionali-

    lvaro BIANCHI36 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    1 GRAMSCI, A (1977):Quadernidelcarcere.Edizione critica dellIstituto Gramsci. A cura diValentinoGe-rratana. Tu rim: Giu lio Ei naudi, Q 1, 150, p. 132. Para fa cilitar a leitura e a comparao en tre diferentesedies, citamosos Quadernidel carceresempre a partir de sua edio crtica, adotando a seguinte nomen-clatura: Q xx, yy, p. Zz (onde Q indica a edio crtica, xx o nmero do caderno, yy o pargrafo e zz a pgi-na).Aediocrticapermite identificarospargrafos quesotextosA,redigidos noscadernos chamados demiscelneos e rees critos, com ou sem modificaes, nos cadernos especiais como textos C; e textos B, de re -dao nica, presentes na maioria das vezes nos cadernos miscelneos.

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    zao por meio do qual os intelectuais fazem com que a funo histrica do Estado apareacomo determinao do absoluto.

    Asegundaversodessanota,inscritanointerior do Quaderno 10, revela que Grams-ci considerava necessrio aumentar as salvaguardas que impedissem aconstituio deumaconcepo reducionista do Estado. Essa nova verso denotaumesforo crescentedoautorao longo dos Quaderni com vistasdepurar o materialismo histrico detodo resduo eco-nomicista. Esse empenho torna-se cada vez mais evidente medida que a redao avana

    no tempo e que as notas anteriores so retomadas nos cadernos especiais2

    . Na segundaverso do texto que est aqui sendo analisado, o marxista italiano reproduz uma importantepassagem da verso original, ms acrescenta alguns cuidados:

    Se bem que seja certo que para as classes produtivas fundamentais (burguesia ca-pitalistaeproletariado moderno) o Estado nosejaconcebvelmaisquecomofor-ma concreta de um determinado mundo econmico, de um determinado sistemade produo, no dito que a re lao en tre meios e fins seja fa cilmente determina-da e assuma o aspecto de um esquema simples e bvio a primeira vista3.

    As precaues tomadas pelo marxista italiano so plenamente justificadas. Afinal,como explicar, por exemplo, o caso de seu prprio pas no sculo XIX sem tomar esses cui-dadoseevitar umaconcepo instrumentalista?Anecessidadederenovao do Estado ita-liano no foi definida por uma profunda transformao na estrutura social. Se bem que estatransformao estivesse seprocessando, ela ainda no havia gerado foras sociais progres -

    sivas vigorosas o suficiente para dirigir amudana social. As foras sociais emergentes re-presentavam, mais do que a fora do presente, as possibilidades do futuro. As mudanasque se processavam no Estado no refletiam uma organizao econmica previamenteexistente. A renovao do Estado italiano precedia, assim, a modernizao da economia.

    Mas para alm dessa realidade que se apresentava sobre o terreno nacional italiano,havia uma situao internacional favorvel expanso e vitria dessas foras. E foi acombinao entre as foras progressivasescassas einsuficientes e essa situao internacio -nal o que permitiu a renovao do Estado italiano e determinou os limites sob os quais ela sedeu4. O caso italiano mos tra que as relaes en tre Estado capitalista e o mundo econmico(relaes entre superestruturaeestrutura)nopodemserdeterminadas de maneira fcil soba forma de um simples esquema. Para entend-las preciso ter em mente que es ses doisconjuntos formam uma totalidade que possui, em seu interior, diversas temporalidades.Este desencontro dos tempos das superestruturas e das estruturas constitui a maior dificul-dade enfrentada pelas teorias instrumentalistas do Estado que, definindo-o como mero re-flexo do mundo econmico,noconseguemexplicar astransies aocapitalismonasquaisa transformao do Estado se antecipa plena transformao do mundo econmico5.

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    2 Cf. COSPITO, G (2000): Struttura e sovrastruttura nei Quaderni di Gramsci, Critica Marxista(nuovaserie), Roma, n. 3-4, mag.-ago, p. 101.

    3 Q 10/II , 61, p. 1360.

    4 Q 10/II , 61, p. 1360.

    5 Cf. SAES, D (1994):Estado e democracia: ensaios tericos.Campinas, IFCH/Unicamp, 1994, p. 20.

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    O desenvolvimento da economia e da poltica encontra-se intimamente vinculado emarcado por influncias, aes e reaes recprocas, pelas lutas que protagonizam as clas-sesempresena eas formassuperestruturaisdestas no terrenonacional einternacional.Re-conhecer essesvnculos no implica em admitir que transformaes no mundo econmicoprovoquem uma reao imediata a modificar as formas superestruturais, ou vice-versa.Certodescompasso entreasmudanasocorridas nessesconjuntos,atmesmo,previsvel,muito embora exista uma tendncia ade quao de um a ou tro. Esta tendncia no , seno,a busca de uma otimizao das condies de produo e reproduo das relaes sociaiscapitalistas atravs da unidade econmica e poltica da classe dominante, unidade que seprocessa no Estado.

    Desta maneira, o Estado concebido como organismo prprio de um grupo, desti-nado acriar as condies favorveis mximaexpanso doprprio grupo6. Mas ateno,essa ex panso para ser eficazmente levada a cabo, no pode apa recer como a realizao dosinteresses exclusivos dos grupos diretamente beneficiados. Ela deve apresentar-se comoumaexpanso universal expresso de todaa sociedade, atravs da incorporao vidaestatal das reivindicaes e interesses dos grupos subalternos, subtraindo-os de sua lgicaprpria e enquadrando-os na ordemvigente. Incorporao essaque o resultado contradi-trio de lutas permanentes e da formao de equilbrios instveis e de arranjos de fora en-tre as classes. Processo li mitado pelas ne cessidades de reproduo da prpria ordem e quese restringe, portanto, ao nvel das reivindicaes econmico-corporativas.

    Chegamos ao ponto da exposio no qual se faz necessrio precisar os contornos doEstado. Os elementos gerais foram, em grande medida apresentados e o leitor mais atento e

    familiarizado com o tema no ter muitas di ficuldades em prever aonde se quer chegar. OEstado , aqui, entendido em seu sentido orgnico e mais amplo como o conjunto formadopela sociedade poltica e sociedade civil. no Quaderno 6, redigido entre novembro de1930 e janeiro de 1932 e composto em sua maioria de textos B que essa definio apre-sentada de modo explcito por Gramsci, sob o conceito de Estado integral.

    A formulao aparece pela primeira vez quando o marxista sardo analisa o processode constituio de uma ordem social aps a Revoluo Francesa de 1789 na qual a burgue-sia pode apre sentar-se como Estado integral, com todas as foras intelectuais e moraisnecessrias e suficientespara organizar uma sociedade completa perfeita7. A construodo texto gramsciano pem-se em nexo evidente com o prefcio de 1859. Tendo reunido ascondies necessrias e suficientes para a superao daantiga ordempdeaburguesia pro-ceder completa reorganizao da sociedade. No mesmo sentido, fazendo referncia aodesenvolvimento poltico da Revoluo Francesa aps 1793, Gramsci referia-se iniciativa jacobina de

    (...) unificar ditatorialmente os elementos constitutivos do Estado em senso org-nico e mais amplo (Estado propriamente dito e sociedade civil) em uma buscadesesperada de apertar no punho toda a vida popular e nacional, mas aparece tam-bm como a primeira raiz do Estado laico moderno, independente da Igreja, que

    lvaro BIANCHI38 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    6 Q 13, 17, p. 1584. Na redao original Gramsci refere-se ao conceito de Estado-governo (Q 4, 38, p.458).

    7 Q 6, 10, p. 691.

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    procura e encontra em si prprio, em sua vida complexa, todos os elementos desua personalidade histrica8.

    Fica claro que a de finio de Esta do at aqui esboada procura evitar uma concepoqueoreduz aoaparelho coercitivo. A construo doconsenso tambm encontra lugarnes-se Estado. De modo resumido, mas nem por isso menos significativo, Gramsci apresentasua concepo de maneira j clssica, Estado= sociedade poltica + sociedade civil, ouseja, hegemonia encouraada decoero9, ou como dir mais adiante, no mesmo Quader-no, Estado (no sentido integral: ditadura + hegemonia)10. esta de finio que ChristineBuci-Gluksmann sintetiza com a frmula de Estado ampliado11. Embora forte, essa fr-mula pode gerar, e tem ge rado, simplificaes excessivas e algumas confuses, por essarazo so prudentes as observaes de Liguori a respeito:

    Que sentido pode ter a definio desta categoria de Estado ampliado? Ela meaprece indicar ao mesmo tempo dois fatos: por um lado, acolhe o nexo dialtico,de unidade/distino, do Estado e da sociedade civil sem suprimir nenhum dosdois termos; por outro indique tambm, contextualmente, que esta unidade ad-vm, se a expresso me permitida,sob a hegemonia do Estado12.

    No mesmo sentido, Prestipino afirmaqueoesquema rudimentar Estado = coero esociedadecivil = hegemonia contrriocomplexa anlise gramsciana, na qual noexisteuma rgida di viso de tarefas entre as duas esferas e, pelo contrrio, tem em vista dar conta

    das novas tarefas hegemnicas prprias do Estado13

    .Deixarei de lado, por ora, o termo hegemonia, no sem antes enunciar que ele, aqui, usado como sinnimode consenso,distinto de coero, ou de direo de uma classe ou umgrupo social sobre as classes e grupos aliados, distinta de dominao.Tomemos estesdoistermos chaves: sociedade poltica e sociedade civil. O conceito de sociedade poltica estclaro no texto gramsciano. Trata-se do Estado no sentido restrito, ou seja, o aparelho gover-namental encarregadoda administrao direta e do exerccio legal da coero sobre aque-les que no consentem nem ativa nem passivamente, tambm chamado nos QuadernideEstado poltico ouEstado-governo.Gramscinoperde,emmomento nenhum,estadi-menso do Estado, ou seja, no perde de vista sua dimenso coercitiva, muito embora noreduza o Estado a essa dimenso. Retenhamos esta idia para voltarmos a elaposteriormente.

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    8 Q 6, 87, p. 763.

    9 Q 6, 88, pp. 763-764.

    10 Q 6, 155, pp. 810-811.

    11 BUCI-GLUCKSMANN, Ch (1980): Gramsci e o Esta do:por uma teoria materialistada filosofia. Rio deJaneiro: Paz e Terra, pp. 126-148.

    12 LIGUORI, G (2004): Stato-societ civile, In: FROSINI, F e LIGUORI, G.Le parole di Gramsci:per unlessico dei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, p. 208.

    13 PRESTIPINO, G (2004): Dialettica, In: FROSINI, F e LIGUORI, G.Le parole di Gramsci:per un lessicodei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, pP. 70-71.

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    Mais complexa a definio do conceito de sociedade civil. Seja porque no textogramsciano o conceito tem contornos bastante imprecisos; seja, porque no existe apenasumadefinioparaotermo;sejaporque na linguagempoltica contemporneaotermoso-ciedade civil foi incorporado fazendo, muitas vezes, referncias ao prprio Gramsci, em-bora com um sentido diferente; seja por tudo isso, a confuso grande14.

    A LEITURA DE BOBBIO E SEUS HERDEIROS

    Responsvel por parte considervel dessa confuso a influente interpretao deNorberto Bobbio15 do conceitode sociedade civil em Gramsci. Identificando uma dicoto-miaentresociedadecivileEstado no pensamento gramsciano, Bobbio afirmouqueGrams-ci afastou-se da acepo marxiana do primeiro termo. Enquanto para Marx o momento dasociedadecivil coincidiria coma base material da sociedade,aestrutura,poroposio su-perestrutura, parao marxista italiano, asociedadecivil no pertenceriaaomomento daes-trutura, mas aqueledasuperestrutura16 Segundo Bobbio, Gramsci,partilharia, comMarx,entretanto a idia deque a sociedadecivildeterminariaoconjunto dodesenvolvimento his-trico: tanto em Marx como em Gramsci a sociedade civil, e no o Estado como em Hegel,representa o momento ativo e positivo do desenvolvimento histrico. Mas em Marx essemomento ativo e positivo estrutural enquanto para Gramsci superestrutural17. Parasustentar sua tese, Bobbio toma como ponto de partida uma nota de Gramsci sobre osintelectuais:

    possvel, por enquanto, estabelecer dois grandes planos superestruturais, o

    que se pode chamar de sociedade civil, ou seja, do conjunto de organismos vul-garmentechamados privados e o dasociedadepoltica ou Estado e que corres-pondem funo de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a socie-dade e a de domnio direto ou de mando que se expressa no Estado e no governojurdico18.

    Tal , sem dvida, a acep o mais freqente que o termosociedade civil encontranosCadernos do crcere. Nessa acepo, asociedade civil, entendida como o conjunto deorganismos vulgarmente chamados privados. Sobre esses organismos importantedestacar seu carter material, como faz Gramsci no j citado Quaderno 6, utilizando demodo preciso as expresses aparelho hegemnico deum grupo social19e aparelho pri-

    lvaro BIANCHI40 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    14 Vriossoosautoresqueidentificaramousovariado emuitasvezesindiscriminado doconceito desocieda-

    de civil. Des tacamos a respeito COSTA, S (1997): Categoria analtica ou passe-partout poltico-normati-vo: notas bibliogrficas sobre o conceito de sociedade civil, BIB Revista Brasileira de Informao Bi-bliogrfica em Cincias Sociais, So Paulo, n. 43, pp. 3-25.

    15 BOBBIO, N (1975): Gramsci e la concezione della societ civile, In: ROSSI, P (1975): Gramsci e la cul -tura contemporanea. Atti del Convegno internazionale distudi grasmcianitenuto aCagliariil 23-27 aprile1967. Roma: Riuniti/Istituto Gramsci, v. 1, pp. 75-100.

    16 Idem, p. 85.

    17 Idem, p. 86.

    18 Q 12, 1, p. 1518 e BOBBIO, N (1975): Op. cit., p. 85).

    19 Q, 6, 136, p. 800.

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    vado dehegemonia20.Amaterialidade dos processos de conformaodeumahegemoniaganha, assim, destaque21. A luta de hegemonias no apenas luta entre con cepes demundo, como, por exemplo, aparece no Quaderno 10, ela tambm, luta dos aparelhosque funcionam como suportes materiais dessas ideologias organizando-as e difundindo-as.

    A lista de tais aparelhos hegemnicos grande, ms conhecida: igrejas, escolas, as-sociaes privadas, sindicatos, partidos e imprensa, so alguns deles. A funo desses or-ganismos articular o consenso das grandes massas e a adeso des tas orien tao so cial

    impressa pelos grupos dominantes. Esseconjunto de organismos, entretanto, no social-mente indiferenciado. Os cortes classistas eas lutas entre os diferentes grupos sociais atra-vessam os aparelhos hegemnicos e contrapem uns a ou tros. Este aler ta se justifica na me-dida em que, no vocabulrio poltico hodierno, um conceito tocquevilliano de sociedadeciviltornou-sepreponderante.Nesteconceito,sociedadecivilpassou asignificarumcon-junto de associaes situadas fora da esfera estatal, indiferenciadas e potencialmente pro-gressistas, agentes da transformao social e portadoras de interesses universais nocontraditrios. Tal concepo partilhada implicitamente por Bobbio no momento em queafirma uma positividade imanente a essa esfera.

    Mas vale alertar a existncia da quilo que Simone Chambers e Je frey Kopstein deno-minaram apropriadamente de bad ci vil so ciety:odesenvolvimento de correntesautorit-rias ou, at mesmo, to talitrias, no in terior da prpria sociedade civil e no sua margem,como foi o caso do nazismo na Re pblica de Weimar e do fas cismo na Itlia de Gramsci 22.Percebida no como um todo indiferenciado, mas como um conjunto marcado pelos pro-fundos antagonismos classistas, a sociedadecivil perde seu vu ilusrio. No se trata ape-

    nas da distribuio desigual de recursos comunicativos que impediriam o livre acesso auma esfera pblica, trata-se, tambm, da defesa de desenhos societrios antagnicos. Aoinvs do local da universalizao de interesses particularistas ela passa a ser vista como umespao da luta de classes e da afirmao de projetos an tagnicos23.Aestratgia poltica deocupao de espaos na sociedade civil, advogadapor uma leitura reformista, quando noliberal de Gramsci, no faz sentido para o autor dos Quaderni. O que se trata da criao denovos espaos autnomos das classes subalternas e da negao dos espaos polticos dasclasses dominantes.

    Alm de afirmar a positividade imanente da sociedade civil, Bobbio lhe atribuiu opapel de determinao dahistria. Segundo Bobbio, o conceitodesociedadecivilexpressopor Gramsci derivaria diretamente de Hegel, e no de Marx, ao contrrio do que muitosacreditam. Pois em Hegel que a sociedade civil compreenderia no apenas o momento dasrelaes econmicas, como, tambm, as formas de organizao espontneas e voluntriasqueele identifica nas corporaes, consideradas pelo filsofo alemo asegunda raiz tica

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    20 Q, 6, 137, p. 801.

    21 Cf. LIGUORI, G (2004) : Op. cit., p. 221.

    22 CHAMBERS, S & KOPSTEIN, J (2001): Bad Ci vil Society,Political Theory, v. 29, n. 6, Dec., pp.837-865.

    23 Cf. DIAS, EF (1996): He gemonia: racionalidade que se faz his tria, In: DIAS, EF et alli (1996): O outroGramsci. So Paulo: Xama, pp. 66-68.

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    do Estado, a que est fundada na sociedade civil24.Afrmula hegeliana aparece de modoquase literal em um esclarecedor texto A inserido por Gramsci no Quaderno 6e citado,tambm, por Bobbio:

    preciso distinguir a sociedade civil tal como entendida por Hegel e no sentidoemque freqentemente emprega-se nestas notas (ou seja, no sentido de hegemo-niapoltica eculturaldeumgrupo socialsobre a sociedadeinteira, comocontedotico do Estado) do sentido que lhe do os catlicos, para os quais a sociedade ci-vil , pelo contrario, a sociedade poltica ou o Estado em confronto com a socieda-de familiar e a Igreja25.

    A proximidade da formula gramsciana daquela de Hegel , assim, no s evidentecomo assumida por ele prprio. de se notar, entretanto, que o conhecimento que Gramscipossua da obra de He gel nem sempre era consistente26. Assim, era provavelmente a par tirde Croce que o marxista sardo se aproximava de Hegel. Coube a Bobbio o mrito de colo-car em destaque de maneira en ftica esse nexo Gramsci-Hegel. Mas no pos svel deduzirapartir desse nexo a afirmao que Gramsci, apropriando-se livremente do conceito hege -liano, teria atribudo sociedade civil (e, portanto, superestrutura) o lugar ativo a elaatribudo por Marx.

    A aproximao de Gramsci a Hegel, por parte do filsofo turins teria como propsi-to marcar o rompimento do sardo com a teoria marxista e sua reconverso a um idealismo.Como um terico das superestruturas o marxista sardo veria, desse modo, sua teoria re-

    duzida denominada histria tico-poltica de Benedetto Croce27

    .A r e corrente crticaque Gramsci leva a cabo, prin cipalmente no Quaderno 10, hipstase do momentotico-poltico por parte de Croce desautoriza, entretanto, essa reduo.

    De modo adequado, Coutinho critica a interpretao de Bobbio afirmando que se oconceito de sociedade civil de Gramsci no mesmo de Marx, no haveria razo para atri-buir-lhe a mesma funo de determinao emltima instancia28. E no h, de fato, no textogramsciano, nada quepermitaafirmarqueomarxistasardo tivessereinvertido Hegel,colo-cando-o de novo sobre sua prpria cabea e afirmado a superestrutura como determinantedo processo histrico.

    O argumento de Bobbio revela-se ainda mais frgil quando analisados os demaissentidos queo conceitodesociedade civil assumeno pensamento gramsciano. Como aler-tou Texier a prpria passagem citada por Bobbio revela que Gramsci define freqente-mente (spesso, no texto em italiano), ms no de modo exclusivo, a sociedade civil

    lvaro BIANCHI42 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    24 HEGEL, GWF (2003): Linhas fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito natural e cincia do Estadoemcompndio. Terceira parte A Eticidade. Segunda seo A sociedadecivil. A sociedadecivil: tradu -o, introduo e notas Marcos Lutz Muller. ClssicosdaFilosofia: Cadernos deTraduo, Campinas, n. 6,out., 255, p. 68.

    25 Q 6, 24 p. 703. Grifos meus.

    26 Cf. nota SEMERARO, G(2001): Gramscieasociedade civil: culturaeeducao paraa democracia. 2 ed.Petrpolis:Vozes, p. 134 a partir da anlise de Q 1, 152, pp. 134-135.

    27 Cf. SEMERARO, G (2001): Op. cit.,p. 185.

    28 COUTINHO, CN (1999): Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento poltico.RiodeJaneiro: CivilizaoBrasileira, p. 122.

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    como lugar da hegemonia poltica e cultural de um grupo social29. De fato, esse pa receno ser o nico significado que Gramsci atribui ao termo sociedade civil. Vejamos, porexemplo, uma passagem do 19 do Quaderno 13,intituladaAlcuni aspetti teorici e praticidelleconomismo.

    A formulao do movimento da livre troca baseia-se num erro terico do qual nodifcil identificar a origem prtica: a distino entre sociedadepoltica esocieda -de civil, que de distino metdica se transforma e apresentada como distinoorgnica. Assim, afirma-se que a atividade econmica prpria da sociedade ci-vil e que o Estado no deve intervir em sua regulamentao. Mas, como na reali-dade factual sociedade civil e Estado se identificam, deve-se considerar que tam-bm o liberismo umaregulamentao de carter estatal, introduzida e mantidapor caminhos legislativos e coercitivos:umfatodevontade consciente dos pr-prios fins, e no a expresso espontnea, automtica, do fato econmico30.

    A idia de que Gramsci teria excludo a economia capitalista da sociedade civil, aocontrrio de Marx e, at mesmo de Hegel31, idia sustentada no s por Bobbio, como tam-bm por Cohen e Arato32no resiste a uma anlise detalhada da passagem acima. Nela a so -ciedade civil aparece como o locus da atividade econmica propriamente dita; o terrenodos interesses materiais imediatos, da propriedade privada; a sociedade econmicaburguesa; ou aquilo que hoje se chamaria o mundo dos negcios.

    Estes dois sentidos so utilizados de modos diferentes por Gramsci. No primeiro, a

    sociedade civil est associada s formas de exerccio e afirmao da supremacia de umaclasse sobre o conjunto da sociedade. Faz parte de um programa de pesquisa que visa escla-recer no s os processos de revoluo burguesa e de fundao de um novo Estado, como alongevidade e fortaleza das instituies polticas do Ocidente capitalista e a possibilidadede instaurao de uma nova ordem social e poltica. No segundo sentido, freqentementeapresentado entre aspas, destaca-se a capacidade de iniciativa econmica que o Estadopossui no capitalismo contemporneo.

    O nexo en tre essas duas formas de manifestao do con ceito nem sempre se encontraclaro em Gramsci, da que autores como Badaloni33 e Fran cioni34 possam afirmar queGramsci no trabalharia com um uma trplice distino: sociedade econmica, sociedadecivil esociedadepoltica. Nessa perspectiva, a anlise dos trs momentos da relao defor-

    Utopa y Praxis Latinoamericana. Ao 12, No. 36 (2007), pp. 35 - 55 43

    29 TEXIER, J (1988) : Significati di societ civile in Gramsci Critica Marxista, Roma, a. 26, n. 5, set. ott.,p. 8.

    30 Q, 13, 18, pp. 1589-1590.

    31 Vale destacar que para Hegel, a mediao da carncia easatisfaodosingularpelo seu trabalho e pelo tra-balho e pela satisfao de todos os demais,odenominado sistema de carncias, momento constitutivoda so ciedade civil. Cf. HEGEL, GWF. (2003): Op. cit., 188, p. 21.

    32 COHEN, J & ARATO, A (2000): Sociedadcivil yteora poltica.Mxico D.F.,Fondo de CulturaEconmi-ca, p. 174.

    33 BADALONI, N (1978): Liberdade individual e homem coletivo em Gramsci, In: INSTITUTOGRAMSCI.Poltica e histria em Gramsci. Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira, pp. 37-47.

    34 FRANCIONI, G(1984): LOfficinagramsciana: ipottesi sulla struttura deiQuaderni delcarcere. Napolis:Bibliopolis, pp. 191-193.

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    as presentes no Quaderno 13 seria uma anlise das relaes que se veri ficariam na socie-dade econmica, como relaes de foras objetivas; na sociedade civil, como relaes deforas poltico-ideolgicas; e na sociedade poltica, como relaes de foras poltico-mili-tares35.

    Entretanto, o que aqui cabe ressaltar que a sociedade civil num sentido conjuntodeorganismosprivados responsveispelaarticulaodoconsenso como nooutro locusda atividade econmica mantm uma relao de unidade-dis tinocomasociedadepol-

    tica. A reelaborao do nexo dos distintos croceano constitui-se uma importante contri-buio de Gramsci, fundamental para a compreenso desses nexosentre sociedadepolticaesociedadecivil. Croce procurava,emseuprojeto de reforma conservadora e especulativada dialtica a recusa da negao interna ao conceito:

    (...) a distino do conceito no implica negao do conceito e sequer qualquercoisa que esteja fora do conceito, mas apenas o prprio conceito em sua verdade,o uno-distinto: uno somente porque distinto, e distinto somente porque uno. Aunidade e a distino so correlativas, ou seja, inseparveis36.

    A crtica de Gramsci a essa concepo explcita e apon ta para a superao da dial-tica dos distintos croceana. Sem rejeitar a idia de que no in terior de uma unidade seja pos-svel encontrar no apenas opostos, como tambm distintos, o marxista sardo rejeita seve-ramente o carter especulativo do pensamento croceano, que reduz a dialtica histrica auma alternncia de formas puras do con ceito37. Rejeita, tambm, a supresso croceana da

    negao e a conseqentereproduoinfindveldatesequenonunca superada pela ant-tese. des se modo que para Gramsci a distino concebida como uma forma de oposiono antagonista na qual cada distinto encontra em uma relao de tenso (dialtica) comooutro38.

    pormeiodascategorias de unidadeedistino queGramsci tematiza a elaboraosuperiordaestruturaemsuperestrutura39, ou seja, o processo por meio do qual o particularquetemsedenasociedade econmica se universaliza na sociedadecivil. Nesse processo, asociedade econmica se faz Esta do, ou seja, no seu vir-a-ser a estrutura se superestrutu-raliza como sociedade civil no Estado integral40.

    Mantendo a sociedade poltica e sociedade civil uma relao de unidade-distino,formam dois planos superpostos que s podem ser separados com fins meramente analti-cos. por essa razo que Gramsci des taca que a unidade (identidade) entre Estado e so-ciedade civil sempre orgnica e que a distino apenas metdica41. No essa,

    lvaro BIANCHI44 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    35 Cf. tb. os comentrios de MEDICI, R (2000): Giobbe ePrometeo:filosofia epolitica nelpensiero diGrasm-ci. Firenze: Alnea, pp. 166-167.

    36 CROCE, B (1947):Logica come scienza del concetto puro. Bari: Laterza, p. 49.

    37 Cf. PRESTIPINO, G (2004): Op. cit., p. 56.

    38 Ibid., p. 68.

    39 Q 10/II, 61, p. 1244.

    40 PRESTIPINO, G (2004): Op. cit., p. 71.

    41 Idem.

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    entretanto, a interpretao de Texier, para quem a unidade orgnica apontada por Gramscina citao acima entre sociedade civil e sociedade poltica vale apenas para a relao entreEstado (sociedade poltica) e economia (sociedade civil) e no para a relao hegemo-nia-ditadura42.Aunidade existente entre sociedade poltica e sociedade civil como o locusda atividade econmica, aparece de forma explcita em Gramsci na passagem j citada de

    Alcuni aspetti teorici e pratici delleconomismo. Mas tambm existe a unidade entre asociedade poltica e a sociedade civil como o conjunto de organismos privadosresponsveis pela articulao do consenso.

    A incompreenso dessa unidade orgnica entre sociedade civil e sociedade poltica,tem levado alguns autores a afirmarem que Gramsci teria caracterizado a sociedade civilcomo uma esfera autnomado Estado, sustentada dentre outros por Baker43e por Cohen eArato44. Cou tinho partilha essa concepo e chega a afirmar a existncia de uma autono-mia material (e no s funcional) em relao ao Esta do em sen tido estrito45. A afirmaode Coutinho encontra-se assentada em um pressuposto histrico questionvel e em umaconcepo terica equivocada o estabelecimento de uma relao algbrica entre domi-nao e direo.

    Historicamente Coutinho afirma que a autonomia material da sociedade civil umtrao especfico de sua manifestao nas sociedades capitalistas mais complexas46. Nodeixa, entretanto,dereconhece aambigidade presente nos Quaderni, onde Gramsci pare-ceria oscilar entre uma posio que afirma a presena da sociedade civil em sociedadespr-capitalistas e outro, no qual esta seria caracterstica distintiva das sociedades nas quaishaveria nveis elevados de socializao da poltica e de auto-organizao de grupos so-

    ciais47. Como dito anteriormente, a tese historicamente questionvel e ampara-se emuma concepo historiograficamente ultrapassada sobre as sociedades pr-capitalistas e,particularmente sobre o medioevo.

    Foge completamente dos propsitos deste texto discutir a impropriedade histricadessa tese. Ressalte-se apenas que ela inconsistente com o texto dos Quadernino qual asrelaes Estado-Igreja na Idade Mdia, fornecem importante recurso analgico para a dis-cusso do Estado contemporneo e de suas relaes com a sociedade civil. Ms no se trataapenas de uma analogia histrica como revela a pesquisa gramsciana sobre a formaodos grupos intelectuais italianose seu lugar na sociedade civil, pre sente j no ndice do

    Primo Quaderno, datado de 1929. Pesquisa essa que extrapola em muito o reduzido mbitodas sociedades complexas, eufemismo com o qual Coutinho quer designar os pases deavanado desenvolvimento do capitalismo48.

    Utopa y Praxis Latinoamericana. Ao 12, No. 36 (2007), pp. 35 - 55 45

    42 TEXIER, J (1988): Op. cit., p. 10.43 BAKER, G (1998): Civil society and democracy: the gap between theory and possibility. Politics,Oxford, v. 18, n. 2, p. 81.

    44 COHEN, J & ARATO, A (2000): Op. cit.

    45 COUTINHO, CN (1999): Op. cit., p. 129.

    46 Ibid., p. 131.

    47 Idem.

    48 Uma anlise historicamente bem informada sobre o lugar desses intelectuais na Idade Mdia, prxima aGramsci em muitos sentidos e distante de Coutinho, pode ser encontrada em LE GOFF, J (2003): Osintelec -tuais na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Jos Olympio.

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    Certamente, no sepretendeaquiestabelecer umconceito trans-histrico de socieda -de civil que identifique formas desocializao que se desenvolveram emrealidades muitodiferentes entre si e sob diferentes maneiras. Mas tambm aqui histria e poltica se identi-ficam.Aquesto principal para Coutinho no deordemhistoriogrficaesimpoltica. Seuargumento construdo de modo rigoroso com o propsitode estabelecer uma identidadeentre sociedades complexas do capitalismo recente e a afirmao de uma con cepo al-gbrica da re lao en tre con senso e coero na qual uma varivel apresentariacomportamento inversamente proporcional outra. Segundo Coutinho:

    (...) o fato de que um Estado seja mais hegemnico-consensual e menos ditato-rial, ou vice-versa, depende da autonomia relativa das esferas superestruturais,da predominncia de uma ou de outra, predominncia e autonomia que, por suavez, dependem no apenas do grau de socializao da poltica alcanado pela so-ciedade em questo, mas tambm da correlao de foras en tre as classes sociaisque disputam entre si asupremacia49.

    Por mais que Coutinho afirme liturgicamentea unidade entre coero e consenso, overdadeiro sentido dessa unidadese perdeemsuafrmula algbrica. Poisse uma amplia-o da sociedade civil implica um esvaziamento das funes coercitivas do Estado isso spode ocorrer porque uma anula a outra. Nessa concepo algbrica perde-se a dialtica daunidade-distino que caracteriza a formulao gramsciana. O prprio exerccio da hege -monia entendido por Gramsci como uma combinao entre coero e consenso, mesmo

    nos regimes polticos nos quais imperam as formas democrtico-liberais:O exerccio normal da hegemonia, no terreno clssico do regime parlamentar,caracteriza-se pela combinao da fora e do consenso, que se equilibram varia -damente,semqueafora suplante muitooconsenso, ou melhor,procurando obterqueafora pareaapoiada noconsenso damaioria,expresso peloschamados rg-os da opinio pblica jornais e associaes os quais, por isso, em determina-das situaes, so artificialmente multiplicados50.

    Assim, se na conhecida frmula do Quaderno 6a hegemonia apa recia em uma fr -mula clssica encouraada de coero. Ora, na passagem acima apresentada, a foraque aparece encouraada pela hegemonia51. No se justifica, portanto, a pouca im-portncia que algunsautoresinspirados no pensamento gramsciano do dimensocoerci-tiva do Estado. Justificando a pouca importncia dada ao tema em sua obra Gramsci et lEtat, Christine Buci-Glucksmann afirmou que o pensamento marxista havia enfatizado

    tanto a coero, que julgava apropriado enfatizar o consenso para contrabalanar os resul-

    lvaro BIANCHI46 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    49 COUTINHO, CN (1999): Op. cit., p. 131.

    50 Q, 13, 37, p. 1638.

    51 A nota do Quaderno6 datada por Francioni entre maro e agosto de 1931. A nota do Quaderno 13 aprececomo texto A j noPrimo Quaderno ( 48, p. 59) e datada por Francioni ente fevereiro e maro de 1929 esua segunda redao (aquela que citamos) , datada entre maio de 1932 e os primeiros meses de 1934 pelomesmo autor. (Cf. FRANCIONI, G (1984): Op. cit., p. 140, 142 e 144).

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    tados.52 Oresultado, entretanto, uma anlise unidimensional, naqual a dupla perspecti-va gramsciana perde-se, restando apenas a articulao do consenso como forma deafirmao poltica. Gramsci como proto-habermasiano.

    MAQUIAVEL E A METFORA DO CENTAURO

    A respeito da relao dialtica de unidade-distino entre fora e consenso impor-tanteretomar as fontes do pensamento gramsciano e, em primeiro lugar Maquiavel. A im-

    portncia da pesquisa sobre o florentino torna-se evidente j noPrimo Quaderno, muitoembora esta no fizesse parte do n dice que Gramsci coloca em seu incio. O florentino era,entretanto, um dos temas enumerados tantonacoleo de argumento dos Saggi principa-li, como no Raggruppamentidimatriaantepostosao Quaderno 8. A respeito das notassobre Maquiavel, Leonardo Paggi destacou que possvel identificar dois grandes temas,queembora interconectados seapresentamdemodoformalmentedistinto:1)umapesquisasobre a interpretao marxista da obra de Maquiavel; 2) a traduo para o marxismo de al -guns conceitos presentes na obra de Maquiavel53. observao de Paggi necessrioacrescentar que Gramsci comea sua investigao noPrimo Quadernono mbito de umareflexo sobre a interpretao da obra de Maquiavel, ressaltando o tempo que lhe era pr-prio e a necessidade de trat-la de modo his trico54. A pesquisa a respeito de Maquiavel e aautonomia do fato poltico prpria daquele segundo bloco temtico apontado por Paggiaparecer apenas mais tarde, no Quaderno 4, 5655.

    A reflexo a respeito de Maquiavel, que a princpio aparecia do modo esparso nosQuaderni ganhou ritmo e intensidade no interior do importante Quaderno 8, em um con-junto de notas escritas entre janeiro e abril de 1932 e depois reescritas, em sua maioria noQuaderno 13, entre maio de 1932 e os primeiros meses de 1934.56 A abordagem correntedessas notas tende a destacar a metfora do moderno prncipe, presente j no 1 do Qua-derno 13 e o lugar do partido poltico no processo de constituio de um novo Estado. Demodo apropriado Rita Medici chamou a ateno para a escassez de referncias a essa te m-tica nos Quaderni57.Tal temtica , sem dvida, de grande importncia, mas ela nofornece um critrio interno de unidade da abordagem gramsciana de Maquiavel.

    A questo fundamental que permitecompreenderaimportncia de Maquiavelparaopensamento gramsciano aparece em uma nota naqual o comunista sardo pretendiaestabe-

    Utopa y Praxis Latinoamericana. Ao 12, No. 36 (2007), pp. 35 - 55 47

    52 BUCI-GLUCKSMANN, Ch (1980):Op. cit. e BUCI-GLUCKSMANN, Ch (1980): Entrevista con Chris-tine Buci-Glucksmann,Revista Mexicana de Sociologia, v. XLII, n. 1, pp. 289-301.

    53 PAGGI, L (1984):La strategia del potere in Gramsci. Roma: Riuniti, p. 387. Cf. tb. FINOCCHIARO, MA

    (2002): Gramsci and the history of dialectical thought. Cambridge: Cambridge University, pp. 125-126.54 Q 1, 10, pp. 8-9.

    55 Segundo Francioni,esse pargrafo data de novembro de 1930 (Op. cit.,p. 141). concomitante, portanto,daquelas discusses na prisonarradas por Athos Lisa, discusses essas que assinalamum giro poltico nointerior dos Quaderni.

    56 Maquiavel citado emtodos os quadernian teriores ao 8, com a exceo do 7. Mas neles nunca de dicou maisdo que trs pargrafos ao florentino. No Quaderno 8, ao invs, possvel encontrar referncias nos 21,37, 43, 44, 48, 48, 56, 58, 61, 78, 84, 86, 114, 132, 162 e 163.

    57 MEDICI, R (2000): GiobbeePrometeo:filosofia epolitica nelpensierodiGrasmci. Firenze: Alnea, p. 162.De fato, no Quadernoespecial de dicado a Maquiavel s h duas referncias ao prncipe moderno (Q 13, 1, p. 1558 e 21, p. 1601-1602).

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    lecer a distino entre pequena poltica e grande poltica: Maquiavel examina espe-cialmente as questes de grande poltica: criao de novos Estados, conservao e defesadeestruturas orgnicas emseu conjunto; questes de ditadura ede hegemoniasobre vastaescala, isto , sobre toda a rea estatal58. O tema chave, que unifica a discusso so bre a in -terpretao histrica da obra do florentino e a traduo de alguns conceitos para o mbitodo marxismo , portanto, a criao e a conservao de novos Estados.

    nesse contexto terico-poltico que a passagem citada torna-se de grande im-

    portncia para uma va lorao ade quada das relaes entre coer o e consenso. A quest o antecipada na seqncia da frase acima citada. Referindo-se a distino que Luigi Russofazia no interior da obra maquiaveliana, destacandoIl Principecomo o tratado da ditadurae osDiscorsi sopra la prima deca di Tito Liviocomo o tratado da hegemonia, Gramsci ob-servava que emIl Principe no faltavam referncias ao momento da hegemonia ou doconsenso ao lado daquele da autoridade e da fora e conclua afirmando que no h opo-sio de princpio [em Maquiavel] entre principado e repblica mas que se trata, acima detudo, das hipstases dos dois momentosdaautoridadeedauniversalidade59. Na interpre-tao de Gramsci torna-se claro que a separao entre autoridade e universalidade, fora econsenso, ditaduraehegemonia eram, para Maquiavel, arbitrrias. emuma nota na qualGramsci fazrefernciaaumcontemporneodeMaquiavel, FrancescoGuicciardini, que talarbitrariedade revela-se plenamente:60

    Afirma Guicciardini que para a vida de um Estado duas coisas so absolutamentenecessrias: as armas e a religio. A frmula de Guicciardini pode traduzir-se em

    vrias outras frmulas menos drsticas: fora e consenso, coero e persuaso,Estado e Igreja, sociedade poltica e sociedade civil, poltica emoral (histria ti-co-polticadeCroce),direitoeliberdade,ordemedisciplina ou,comum juzo im-plcito de sabor libertrio, violncia e fraude61.

    A referncia no deixa de ser a Maquiavel, uma vez que Guicciardini pe a questoem um comentrio aosDiscorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Afirmava Maquiavelnessa obra, que a religio servia para comandar os exr citos, animar a Plebe, preservar oshomens bons e fazer com que os culpados se envergonhem e que onde h religio facil-mente podemseintroduzir as armas e onde h apenas armas dificilmente poder-se- intro -duzir aquela62. A esse respeito Guicciardini escrevia em suas Considerazioni intorno ai

    Discorsi del Machiavelli sopra la prima deca di Tito Livio: certo que armas e religioso fundamentos principais das repblicas e dos reinos e so to necessrios que faltandoqualquer um deles pode-se dizer que faltam as partes vitais e sub stanciais63.

    lvaro BIANCHI48 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    58 Q 13, 5, p. 1564. Grifos meus.

    59 Idem.

    60 possvel quea referncia aGuicciardini seja apenas indireta, decorrente da leitura deartigo de Paolo Tre-ves (cf. o aparelho crtico de Gerratana em Q, p. 2720).

    61 Q, 6, 87, pp. 762-763.

    62 MACHIAVELLI, N (1971): Tutte le ope re. Florena: Sansoni, p.94.

    63 GUICCIARDINI, F (1933):Scritti politici ericordi. A cura di Ro berto Palmarocchi. Bari: Laterza, p. 21.

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    O tema presente nosDiscorsino estranho aIl Prncipe. Nesta l tima obra, Ma -quiavel registrava que os principais fundamentos que devem ter todos os estados (stati),sejam no vos, velhos ou mistos, so as boas leis e as boas armas64. A questo dos funda-mentos do poder tem longa tradio no pensamento poltico e sua investigao foi, pormuitos, consideradaoobjeto dafilosofiapolticapar excellence. O tra tamento dado a essaquesto porMaquiaveleGuicciardinidestaca-senointeriordessatradioporduasrazes.Emprimeirolugar,porque unifica acondio do exercciodopoder poltico (acoero, asarmas) e a condio de legitimidade desse poder (a religio, as leis) criando umnexoindissocivel entre ambas. Em segundo lugar porque esta dupla fontedo poder poltico seafirma, em seu carter indissocivel, como necessria em todas as formas de Estado, sejamrepblicas ou reinos, novos, velhos ou mistos.

    O Estado marcado, dessa maneira pela presena de elementos que mantm entre siuma relao ten sa de distino, sem que cada um deles che gue a anular seu par no processohistrico mas, pelo contrrio, cada um moldando e at mesmo reforando o outro. A sepa-rao orgnica des ses elementos no sen o uma hipstase e, como tal, uma arbitrria abs -trao. esta concepo unitria do poder poltico que Gramsci denomina de duplaperspectiva:

    Outro ponto a ser fixado e desenvolvido o da dupla perspectiva na ao polti-ca e na vida estatal. V rios so os graus atravs dos quais se pode apresentar a du -pla perspectiva, dos mais elementares aos mais complexos. Mas eles podem se re-duzir teoricamenteadoisgrausfundamentais correspondentesnaturezadplice

    do Centauro maquiavlico, frica e humana, da fora e do consenso, da autorida-deedahegemonia,daviolnciaedacivilidade, domomento individualedaqueleuniversal (da Igreja e do Estado), da agitao e da propaganda, da ttica e daestratgia65.

    A imagem do Centauro forte e ser ve para des tacar a unidade orgnica entre a coer -o e o consenso. possvel se parar a metade fera da metade homem sem que oco rra a mortedo Centauro? possvel separar a condio de existncia do poder poltico de sua condiodelegitimidade?possvel haver coero semconsenso?Mastaisquestes podeminduzira um erro. Nessa concepo unitria, que de Maquiavel, mas tambm de Gramsci, no apenas a coero que no pode existir sem o consenso. Tambm o consenso no podeexistir sem a coero.

    Trata-se, portanto de umarelao dialtica entre essas duas naturezasdopoderpo-ltico.Omarxistasardo protestava nopargrafo citado contra aquelesquefaziamdaduplaperspectiva algo mesquinho oubanalreduzindo as duas naturezasdopoder poltico asuasformas imediatas e colocando-as em relao de sucesso primeiro uma, depois a outra.Esseprotesto torna-sepleno designificado sereferido quelaformadeapropriaodaobradosecretrio florentino jcitada que separavaIl PrncipedosDiscorsi,reduzindo aprimei-ra obra a uma anlise do momento coercitivo da fundao de um novo Estado e a segunda auma anlise do momento do consenso e da expanso de um Estado. A ressalva que Gramsci

    Utopa y Praxis Latinoamericana. Ao 12, No. 36 (2007), pp. 35 - 55 49

    64 MACHIAVELLI, N (1971): Op. cit., p. 275.

    65 Q 13, 14, p. 1576.

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    fez a res peito deIl Prncipe identificandonessa obra vrias refernciasaomomento dahe-gemonia lhe permitiu recusar a separao entre coer o e consenso. Agora, tratava-se dereconhecer que as duas naturezas do poder poltico, embora possuam tempos distintos, socoetneas entre si.

    Cabe ver, entretanto, se alm de coetneas, coero e consenso podem ser, tambm,coextensivas, ou seja, se podem atingir com intensidades diversas os mesmos espaos davida poltica. Gramsci, sabido, enfatizou que a coero tinha sede na sociedade poltica e

    oconsenso nasociedadecivil. Mas isso significariaparaomarxista sardoadefiniodees-feras ex clusivas e ex cludentes para uma funo e para a ou tra? A questo no tratada demodo direto no Quaderno 13, no qual parte importante da reflexo sobre o florentino en-contra seu lugar, nem nos quadernique o antecedem. Mas ela aparece em varias notas pre -sentes nos quaderni 14, 15 e17.

    Esse conjunto de quaderni tem caractersticas bastante particulares. A redao doQuaderno 14comea em dezembro de 1932, aps ter incio o Quaderno 13,portanto, como pargrafo 4. Os trs pargrafos precedentes so de maro de 1935, conforme constataFrancioni66 apartir do estudodasrefernciasneles citadas. Ele interrompido emfevereirode 1933, quando Gramsci empreende a redao do Quaderno 15, e retomado em maro de1935. O Quaderno 15, por sua vez, registra em uma importante advertncia em sua pri mei-ra folha a tnica desses no vos miscelneos: Caderno iniciado em 1933 e escrito sem ter emconta aquelas divises das matrias e dos reagrupamentos de notas em cadernos espe-ciais67. O ltimo desses novos quaderni o de nmero 17. Ele tem incio aps o trmino doQuaderno 15, em agosto de 1933, e ser concludo em junho de 1935, pouco antes de

    Gramsci interromper seu trabalho.A redao desses quadernicoincide com o momento no qual a confeco dos qua-

    derni 10, 11, 12e 13encontra-se bastante avanada ou em vias de concluso e marca umafase de transio que se estender at meados de 1933 constituindo o l timo perodo deuma atividade criativa intensa. Aps sua transferncia a Formia, em dezembro de 1933 ecom a piora de seu es tado de sade esse trabalho criativo chegou pra ticamente a seu fim. Apartir dao prisioneiro do fascismo limitou-se, praticamente, a transcreverparaoscadernosespeciais, de modo cada vez mais literal, os textos j presentes nos miscelneos68.

    Por que razo Gramsci teria dado incio a novos cadernos miscelneos depois de jter comeado a redao dos especiais? E por quea rubrica Maquiavel aparece nesses mis-celneos em um momento no qual a redao do Quaderno 13 encontrava-se adiantada ouemviasdeconcluso? possvel que tivesse constatado lacunas existentesemsuapesqui-sa e que retomasse desse modo o tra balho dos miscelneos com vistas a san-las, ao mesmotempo em que dava seqncia redao dos especiais. possvel, tambm, que pretendes-

    se posteriormente transcrever esse material em novos especiais, como sugere Frosini69

    . Defato, nos primeiros meses de 1934, depois de ter concludo o Quaderno 13, o marxista sar-do deu incio a um novo caderno especial intituladoNiccol Machiavalli. IIno qual escre-

    lvaro BIANCHI50 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    66 FRANCIONI, G (1984): Op. cit., p. 116.

    67 Q 15, p. 1748.

    68 Cf. FROSINI, F (2003): Gramsc ie la f i losofia: saggio sui Quaderni del crcere. Roma: Carocci, p. 26.

    69 Ibid., p. 27.

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    veu apenas trs pginas, recolhendo trs notas C presentes j no Quaderno 2. possvel,assim, que esta fosse a sede prevista das notas con tidas nos quaderni 14,15e 17.

    Os temas presentes nesses novos cadernos miscelneos so aqueles j identificadospor Paggi eaosquaisfoifeita meno acima. Predominam nitidamente, entretanto,asnotasreferentes ao segundo tema:a traduoparaomarxismo de conceitos e temas maquiavelia -nos. Uma comparao ente alguns temas presentes no Quaderno 13e no Quaderno 14importante para um maior enriquecimento dos conceitos de sociedade civil e Estado, bem

    como para uma identificao mais precisa dos nexos existentes entre consenso e coero.Discutindo as questes do homem coletivo e do conformismo social, registravaGramsci no Quaderno 13:

    Tarefa educativa e formativa do Estado,quesempre tem a finalidade de criar tiposde civilizao novos e mais elevados, de adequar a civilizao e a moralidadedas massas populares mais vastas s necessidades do contnuo desenvolvimentodo aparelho econmico deproduo,e,portanto, de elaborar tambm fisicamenteos novos tipos de humanidade70.

    Aconformaodohomemcoletivo encontraseumomento crucialna passagemdoindivduo singular para a esfera universalizada das classes, e, mais especificamente paraaquela esfera na qual asclasses seapresentamcomosujeitosuniversais, a esfera dapoltica.Essa passagem compreendida porGramsci como umarelao pedaggica ativa, distin-ta, portanto, de uma mera relao escolar. no nexo existente entre go vernantes e governa-

    dos, dirigentes e dirigidos, intelectuais e no intelectuais que se torna possvel identificarde modo mais preciso essa relao, e o processo de formao de uma personalidade his t-rica. Desse modo,todarelao dehegemonia ,necessariamente, uma relao pedaggi -ca de construo de novos sujeitos sociais e polticos71.

    essa relao pedaggica, relao de hegemonia, que Gramsci temem mente quan-do destaca atarefa educativa eformativa do Estado.oprocesso de afirmao de formascivilizatrias que se afirma nessa tarefa.Aincorporao doindivduo singular no homemcoletivo, a afirmaode uma formacivilizatriaqueencontreseuresumono Estado, exigea aquiescncia ativa ou passiva desses indivduos. Para tal o Direito cumpre uma importan-te funo. No , entretanto o Direito como mero dispositivo jurdico que atua por maio desanes legais do que se trata. O marxista sardo apresenta naquele pargrafo do Quaderno13uma concepo integral do Direito, o qual abrangeria, tambm,

    (...) aquelasatividadesquehojesocompreendidas na frmula de indiferenteju-rdico e que so de domnio da sociedade civil, que opera sem sanes e sem o-brigaes taxativas, mas que nem por isso deixa de exercer uma presso co letivaeobtm resultados objetivos de elaborao nos costumes, nos modos de pensar ede operar, na moralidade, etc72.

    Utopa y Praxis Latinoamericana. Ao 12, No. 36 (2007), pp. 35 - 55 51

    70 Q 13, 7, p. 1565-1566.

    71 Q 10/II, 44, p. 1331.

    72 Q 13, 7, p. 1566.

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    Sabe-se, desde Durkheim que presso co letiva no deixa de ser uma forma decoero. A sociologia simblica contempornea, que seguiu as trilhas abertas pelo funda-dor doLAnne sociologiquemuito contribuiu para desvelar essas formas de violncia sim-blica que se manifestam fora da esfera regulada pelas formas jurdicas do Direito. No hnada nos Quadernique permita indicar que Gramsci con hecesse a obra do francs. Mas Be-nedetto Croce a conhecia e a cita uma nica vez emMaterialismo storico ed economiamar-

    xistica73.O prprio Croce j havia, emEtica e poltica, chamado a aten o para a necessi-dade de ter um con ceito de fora que fosse alm da violncia fsica e re cobrisse ou tras for-mas de coao: A idia de fora no deve re duzir tosca representao que si su gerir essapalavra, quase a de tomar pe los ca belos e obrig-los a cur var-se74.

    Gramsci no partilhava com Croce a localizao dessa afirmao no mbito de umaconcepo na qual a sede dessa fora, o Esta do, no um fato, sim uma categoria espiri-tual75. Mas po dia, muito bem, sub screver a afirmao que o critico napolitano fazia a res-peito da relao entre fora e consenso:

    (...) fora e consenso so em poltica termos correlatos e onde aparece um o ou trono faltar. Consentimento forado objetar-se-; mas todo consentimento forado, ou seja, resulta da fora de certos fatos e, portanto, est condiciona-do. No existe formao poltica que elida essa vicissitude: no mais liberal dosEstados, assim como na mais opressora da tiranias, o consentimento est sempre,e sempre forado, condicionado e transitrio. Se assim no fosse no existiriamnem o Estado nem a vida do Estado76.

    Ao colocar aspas nas expresses sanes e obrigaes quando estas encontra-vam sua sede na sociedade civil, Gramsci afas tava-se da conotao que assumiam no sensocomum e apro ximava-se da frmula cro ceana. Mas no era, essa, entretanto, uma questoresolvida de modo explcitooumesmodefinitivo pelo sardo, embora houvessesinaisqueaconsiderava importante. A concepo ampliada do Direito aventada por Gramsci era umdesenvolvimento terico da idia de Estado integral. por essa razo que a resolveu ins-crev-la na nota do Quaderno 13 muito embora ela estivesse completamente ausente naprimeira redao77.

    O tema foi retomado em algumas notas do Quaderno 14,justamente aquele que abreum novo ciclo na pesquisa. A maioria dessas notas registrada sob a rubricaMachiavelli,muitoembora os temaspredominantesnodigamrespeitointerpretaodaobradosecre-trio florentino, que raras vezes citado diretamente nesse Quaderno. Mas o registro da ru-bricaimportante,pois assinalaacontinuidadedostemas tratadosno Quaderno 13, a uni-dade que exis te entre os diversos blocos temticos que se articulam nela e a insero dessas

    notas em um projeto de pesquisa abrangente.

    lvaro BIANCHI52 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    73 CROCE, B (1972):Materialismo storicoed economia marxistica. Bari: Laterza, p. 112.

    74 CROCE, B (1952):Etica y poltica: seguidas de la contribucin a la crtica de m mismo. Buenos Aires:Imn, p. 193.

    75 Idem.

    76 Idem.

    77 Q 8, 52, p. 972.

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    A propsitodeumartigo deMauro Fasiani, colaborador da revistaRiforma Sociale,o autor dos Quaderniperguntava:Quemolegislador?78.Ainterrogao motivava umasrie de importantes reflexes pertinentes para o desenvolvimento de uma teoria integraldoEstado. Aprimeiradelasdiziarespeitoanecessidade dedistinguiravoluntaslegislato-ris, ou seja, a inteno do legislador no ato de concepo da lei, da voluntaslegis o con-junto de conseqncias no previstas decorrentes da aplicao de determinada lei, aquiloqueateoriaeconomiacontemporneadenomina de unintended consequences. A investi-gao so bre a voluntas legislatrias no esgota todo o Direito e necessrio para a pes-quisa sobre o que este realmente levar em conta a volunta legis. O resultado efetivo daatividade legislativa marcado, assim, pela relao dialtica existente entre a produo dalei e sua aplicao efetiva.

    Essa observao prepara o te rreno para outra, de maior alcance para uma teoria doEstado integral.Seavontadelegislativa nopode ser reduzida vontadedolegislador, ent-o, necessrio atribuir a palavra legislador um sentido mais amplo, at o ponto de indicarcom ela o conjunto de crenas, de sentimentos, de interesses e raciocnios difusosemumacoletividade em um dado perodo histrico79. A questo reaparecer poucas pginas frente, em uma nota inscrita sob a mesma ru brica. Afirmava Gramsci nela que o con ceito delegislador deveria ser identificado com o de poltico e dado que todos so polticos,na medida em que fazem parte ativa ou passivamente da vida poltica, todos, tambm, soativa ou passivamente legisladores80.

    Em seu sentido restrito, a palavra legislador tem um significado jurdico-estatalpreciso, indicando aquelas pessoas que tem um mandato para exercer a atividade legislati-

    vaetmessaati vidade reconhecida eregulamentada pelas leis de um pas. Acontece com aatividadedolegislador o mesmoquecomaatividadedeintelectual.Todos so legislado-res,masnemtodos tme funo legislativa. Mesmo adotando uma concepo ampliada doDireito e dolegislador necessrio estabelecer a esfera no qual esse Direito e esse legisla-dor cumprem uma condio de legitimidade, ou seja, so reconhecidos como tal por aque-les que representam. necessrio, tambm, identificar a efetividade real dessa atividade,ou seja, at que ponto os representados praticam, de fato, aquelas regras que nascem da ati-vidade do legislador e que tm expresso sistemtica normativa81.

    Oatolegislativo do legislador no pode, portanto, colocar-se alm da histria, assu-mindo a posio de demiurgo do real. Esse ato ganha significado, na medida em que esti-mula ou reprime tendncias j pos tas na vida social e poltica. Tal significado , ento, o re-sultado das aes e rea es in trnsecas a uma dada esfera social e ao ato legislativo em si.Por essa razo,

    (...) nenhum legislador pode ser visto como indivduo, salvo abstratamenteeporcomodidade de linguagem, porque na realidade, expressa uma determinada von-

    Utopa y Praxis Latinoamericana. Ao 12, No. 36 (2007), pp. 35 - 55 53

    78 Q 14, 9, p. 1662.

    79 Fasiani apudQ 14, 9, p. 1663.

    80 Q 14, 13, p. 1668.

    81 Idem.

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    tadecoletiva disposta a tornarefetivasua vontade, que s vontade porque a co-letividade est disposta a dar-lhe efetividade82.

    Revela-se nessa passagem o dilogo com Maquiavel nouso particular que seu autorfaz da expresso effetuale83. O dilogo torna-se mais intenso quando, na seqncia,Gramsci afirma que todo aquelequenoatolegislativo prescindir de uma vontadecoletiva,no passa de um fogo-ftuo, um profeta desarmado84. O profeta, o legislador precisater as ar mas disposio para legislar de modo efe tivo. A re ferncia a Maquiavel menosmetafrica do que parece a primeira vista, pois Gramsci afirmava que o legislador no apenas quem elabora diretrizes que devero tornar-se normas de conduta para outros. tambm aquele que elabora os instrumentos por meio dos quais essas diretivas sero im-postas e sua aplicao ser verificada85.

    Essa concepo ampliada a respeito do poderdelegislar integra uma concepo org-nica ou in tegral do Estado. Ela afirma a existncia de uma atividade le gislativa tan to nombito da sociedade poltica oque bastante evidente, como naquele da sociedade civil. Eafirma que a eficcia dessa atividade reside na capacidade de mobilizar os instrumentos decoero tanto no mbito da sociedade poltica, como no mbito da sociedade civil:

    (...)opoder legislativo mximoreside nopessoal estatal(funcionrioseleitosedecarreira), que tm disposio as foras coercitivas legais do Estado. Mas no sepode dizer que os dirigentes de organismos e organizaes privadas tambmno ten ham a sua disposio sanes coercivas, at mesmo a pena de morte86.

    Esse tema continua a ser desenvolvido no 11 do mesmo Quaderno, muito emborasoboutrarubrica(Argomentidicoltura).Discute-se nessa nota a capacidade que consti-tuies tmde adaptar-se a diversas conjunturas polticas, particularmente quelas que se-riam desfavorveis classe dominante. O modelo do autor dos Quaderni a an lise queMarxfezdaConstituio espanhola de1812. Nessa perspectiva, afirma Gramsci, retoman-do a idia da funo pedaggica do Estado: Pode-se dizer, em geral, que as constituiesso acima de tudo textos educativos ideolgicos e que a Constituio real est noutrosdocumentos legislativos (mas especialmente, na relao efetiva das foras sociais no mo-mento poltico-militar)87.

    A verdade efetiva da Constituio encontra assim seu espelho na relao de forasentre as classes sociais e, particularmente, na relao de foras sociais que se manifesta noconflito aberto, o momento poltico-militar. Conceber o direito como expresso dessasrelaes ,para Gramsci, um modo de combater aabstrao mecanicista e o fatalismo de-

    lvaro BIANCHI54 Gramsci alm de Maquiavel e Croce

    82 Q 14, 9, p. 1663. Grifos meus.

    83 Afirmava Maquiavel emIl Principeque seu objeto de pesquisa era a ver dade efetiva da coisa e no sua ima-ginao (MACHIAVELLI, N (1971): Op. cit., p. 280).

    84 Segue-se que to dos os profetas armados vencem e que os desarmados se arru nam (MACHIAVELLI, N(1971): Op. cit., p. 263).

    85 Q 14, 13, p. 1668.

    86 Idem.

    87 Q 14, 11, p. 1666.

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    terminista. Tal concepo necessita valorizar as particularidades histricas enacionais decada pas para ser realmente efetiva, bem como a capacidade legislativa (em um sentidoampliado) e, portanto, coercitiva, que emana da sociedade civil. A relao existente entrereligio e poltica nos Estados Unidos , nesse ponto, esclarecedora. Em uma observaode grande atualidade, registrava Gramsci,

    Nos Estados Unidos, legalmenteedefatonofalta a liberdadereligiosa dentrodecertos limites, como recorda o processo contra o darwinismo, e se legalmente(dentro de certos limites) no falta liberdade poltica, esta falta de fato pela press -o econmica e pela aberta violncia privada88.

    A fora das pa lavras no deixa dvida de que Gramsci reen contra ago ra a coerotambm na esfera da sociedade civil. A seqncia dessa nota permite ainda esclarecer queestaviolncia privadacoetnea ecoextensiva violncia jurdico-estatal. Para o autor dosQuaderni, o exame crtico da organizao judiciria e policial era de grande importnciapara a compreenso da configurao poltica dos Estados Unidos, pois revelava como es-sas organizaes da sociedade poltica deixam impunee apiam a violncia privadavol-tadaparaimpediraformaodeoutros partidos almdo republicano edo democrtico89.

    CONCLUSAO

    Gramsci no foi um contratualista, nem um terico do consenso comunicativo. Asleituras hegemnicas de sua obra tendem a conduzi-lo a uma segunda priso: a do pensa-

    mento dominante.Acomplexidade de seupensamento e o carter fragmentrio de suaobrafacilitam esse novo encarceramento. Sendodedifcil compreenso torna-se fcil substituiro escrito pelo dito. Prevalece assim um senso comum filosfico, uma leitura superficialmarcada por slogans: a sociedade civil con tra o Estado e ocupar es paos e seussucedneos, democratizar a democracia e reformismo revolucionrio.

    Mas tal senso co mum no seno a negao da radical contribuio de Gramsci teoria marxista. Sociedade civil e sociedade poltica (Estadostrictu sensu) no esto emuma relao de antagonismo e sim de unidade distino. O mesmo pode ser dito de outrosconhecidos pares conceituais:Oriente eOcidente,guerra de movimento eguerra de posi-o, revoluo permanente e hegemonia. Uma retomada crtica do texto dos Quaderni delcarcere, valorizando o ritmo do pensamento de seu autor e as fontes de pesquisa por elemobilizadas pode contribuir para um melhoresclarecimento a respeitodeseupensamento.Trata-se de um pensamento que no se caracteriza pela construo de dicotomias e sim pelaidentificao da radical unidade que existe na radical diversidade.

    Utopa y Praxis Latinoamericana. Ao 12, No. 36 (2007), pp. 35 - 55 55

    88 Q 14, 11. p. 1666. Grifos meus.

    89 Q 14, 11, pp. 1666-1667. Grifos meus.