380
Universidade Federal de São Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências Programa de Pós-Graduação em Filosofia MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques SÃO CARLOS 2011

MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques

  • Upload
    others

  • View
    5

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques

Universidade Federal de Satildeo Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciecircncias

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZAtildeO

Rodrigo Vieira Marques

SAtildeO CARLOS 2011

2

MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZAtildeO

3

Universidade Federal de Satildeo Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciecircncias

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZAtildeO

Rodrigo Vieira Marques

Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal de Satildeo Carlos como parte dos requisitos para obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Doutor em Filosofia Orientador Dr Richard Theisen Simanke

SAtildeO CARLOS 2011

Ficha catalograacutefica elaborada pelo DePT da Biblioteca ComunitaacuteriaUFSCar

M357mp

Marques Rodrigo Vieira Merleau-Ponty e a crise da razatildeo Rodrigo Vieira Marques -- Satildeo Carlos UFSCar 2012 380 f Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de Satildeo Carlos 2011 1 Filosofia francesa 2 Merleau-Ponty Maurice 1908-1961 3 Fenomenologia I Tiacutetulo CDD 194 (20a)

6

Dedico este trabalho agrave minha famiacutelia solo fecundo e afaacutevel no qual se encontram minhas raiacutezes

7

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar ao Dr Richard Theisen Simanke por sua orientaccedilatildeo

segura valiosas sugestotildees e principalmente por sua consideraccedilatildeo de que

antes de tudo o pensamento eacute uma experiecircncia Tambeacutem ao Dr Pascal

Dupond especialmente por ter possibilitado meu acesso aos ineacuteditos de

Merleau-Ponty aleacutem de suas sugestotildees e cordial atenccedilatildeo Por fim a todos os

que direta ou indiretamente propiciaram a percepccedilatildeo que fez nascer o

presente trabalho

8

Una est quae reparet seque ipsa reseminet ales Assyrii phoenica uocant non fruge neque herbis sed turis lacrimis et suco uiuit amomi [] haec ubi quinque suae conpleuit saecula uitae ilicet in ramis tremulaeque cacumine palmae unguibus et puro nidum sibi construit ore quo simul ac casias et nardi lenis aristas quassaque cum fulua substrauit cinnama murra [] se super inponit finitque in odoribus aeuum inde ferunt totidem qui uiuere debeat annos corpore de patrio paruum phoenica renasci cum dedit huic aetas uires onerique ferendo est ponderibus nidi ramos leuat arboris altae [] fertque pius cunasque suas patriumque sepulcrum perque leues auras Hyperionis urbe potitus ante fores sacras Hyperionis aede reponit (Oviacutedio) Nichts ist drinnen nichts ist drauszligen denn was innen ist ist auszligen(Goethe)

9

RESUMO

Este trabalho parte de uma leitura da filosofia de Merleau-Ponty centrada na

noccedilatildeo de ldquoCrise da Razatildeordquo fundamentando-se no pressuposto de que se

trata de um conceito fundamental da fenomenologia contemporacircnea No

pensamento cartesiano jaacute era possiacutevel encontrar a ideia de crise poreacutem

tratava-se da constataccedilatildeo de uma ldquocrise das ciecircnciasrdquo Algo semelhante

havia tambeacutem em Valeacutery especialmente ao se falar de uma ldquocrise do

espiacuteritordquo A novidade de Husserl estava justamente em mostrar que a crise

tal como ele a vivia era mais profunda abalava a proacutepria Razatildeo Este

trabalho assume a tarefa de mostrar que natildeo se limitando a uma crise das

ciecircncias do espiacuterito ou da proacutepria Razatildeo Merleau-Ponty discute uma crise

presente no proacuteprio homem ou antes nos diversos pontos de vista que se

tem a seu respeito Eacute neste sentido que o seu projeto filosoacutefico se

fundamenta em primeiro lugar na tentativa de estabelecer um diaacutelogo entre

os pontos de vista da filosofia e da ciecircncia Por conseguinte justifica-se uma

investigaccedilatildeo da divergecircncia destes pontos procurando elucidar natildeo soacute o

cenaacuterio no qual o conflito se encontra mas tambeacutem a sua gecircnese Do mesmo

modo partindo de uma compreensatildeo merleau-pontiana da crise por fim

este trabalho assume tambeacutem a tarefa de se indagar acerca da repercussatildeo

desta mesma crise na relaccedilatildeo do saber filosoacutefico consigo mesmo logo no

modo da proacutepria filosofia entender a sua histoacuteria estando pois a

importacircncia desta incursatildeo no ensejo de explicitar o que para Merleau-

Ponty seria uma possiacutevel via de superaccedilatildeo

Palavras-chave Filosofia Francesa Maurice Merleau-Ponty Fenomenologia

10

ABSTRACT

This work takes its point of departure in Merleau-Pontyrsquos Philosophy

centered in the notion of ldquoCrisis of Reasonrdquo basing itself on the

presupposition that this is a fundamental concept of contemporary

phenomenology In the Cartesian thought already it was possible to find the

idea of the crisis however it was the finding of a ldquocrisis of sciencesrdquo

Something similar was also in Valeacutery especially when he speaks of a ldquocrisis

of spiritrdquo The novelty of Husserl was exactly in showing that the crisis as he

lived it was deeper shook the Reason itself This work assumes the task of

showing that not limiting to a crisis of sciences of the spirit or of Reason

itself Merleau-Ponty discusses a present crisis in the man himself or rather

in the diverse points of view that has about him In this sense his

philosophical project is based primarily on the attempt to establish a

dialogue with the points of view of the philosophy and of the science

Therefore an inquiry of the divergence of these points is warranted

elucidating not only the scenario in which the conflict is but also its genesis

Likewise starting from a Merleau-Pontian understanding of the crisis

finally this study also assumes the task of asking about the repercussions

of this crisis in the relation of philosophical knowledge to itself then in the

way of his own philosophy to understand its history being therefore the

importance of this incursion in the desire to explain what according to

Merleau-Ponty would be a possible way of overcoming

Keywords French Philosophy Maurice Merleau-Ponty Phenomenology

11

REacuteSUMEacute

Ce travail a son point de deacutepart dans la philosophie de Merleau-Ponty

centreacute dans la notion de laquo Crise de la Raison raquo en srsquoappuyant donc sur la

preacutesupposition qursquoelle srsquoagit drsquoun concept fondamental de la pheacutenomeacutenologie

contemporaine Dans la penseacutee cartesienne crsquoeacutetait deacutejagrave possible de trouver

lrsquoideacutee de crise cependant elle srsquoagissait de la constatation drsquoune laquo crise des

sciences raquo Quelque chose de semblable se passait avec Valery notamment

quand il dit drsquoune laquo crise de lrsquoesprit raquo La noveauteacute de Husserl eacutetait juste

montrer que la crise telle qursquoil la vivait eacutetait plus profonde eacutebrahlait la

Raison elle-mecircme Ce travail assume la tacircche de montrer que en ne srsquoen

tenant pas agrave une crise des science de lrsquoesprit ou de la Raison elle-mecircme

Merleau-Ponty met en question une crise preacutesente chez lrsquohomme lui-mecircme

dans les divers points de vue qursquoon a sur lui Crsquoest pouquoi que son projet

philosophique tout drsquoabord se fonde sur la tentative drsquoeacutetablir un dialogue

entre les points de vue de la philosophie et de la science Une recherche de la

divergence des ces points de vue donc elle se justifie en cherchant agrave

eacutelucider non seulement le sceacutenario dont le conflit se trouve mais aussi la

geacutenegravese de celui-ci De mecircme en partant drsquoune compreacutehension merleau-

pontienne de la crise en fin de comptes ce travail assume la tacircche de se

demander sur la reacutepercussion de cette mecircme crise dans le rapport du savoir

philosophique agrave soi mecircme donc dans la maniegravere dont la philosophie elle-

mecircme comprendre son histoire en eacutetant alors lrsquoimportance de cette

incursion dans le deacutesir drsquoexpliciter ce qui serait drsquoapregraves Merleau-Ponty une

possible voie de deacutepassement

Mots-cleacute Philosophie Franccedilaise Maurice Merleau-Ponty Pheacutenomeacutenologie

12

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO PRIMEIRA PARTE ndash O ldquoMAL-ESTARrdquo DA RAZAtildeO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS Capiacutetulo I ndash Da Crise do Espiacuterito agrave Crise da Razatildeo o Mundo-da-Vida 11 O ldquomal-estarrdquo da Razatildeo A Crise do Espiacuterito 12 A Fenomenologia e a Crise da Razatildeo os limites do

cientificismo e o retorno ao Mundo-da-Vida 13 A Ruumlckfrage e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica a Lebenswelt como

proposta de superaccedilatildeo do naturalismo como Ursprungsklaumlrung como retorno ao mundo preacute-copernicano

Capiacutetulo II ndash Os limites do Mundo Claacutessico e o Teatro Cartesiano o problema da representaccedilatildeo 21 Um ponto de partida O mundo claacutessico e o mundo moderno 22 Descartes e o problema da ldquorepresentaccedilatildeordquo o

operacionalismo de Descartes e a intuitus mentis 221 O operacionalismo cartesiano e a identificaccedilatildeo de lux e lumen 222 A intuitus mentis e o positivismo da visatildeo 223 A similitude e o arbiacutetrio cartesiano do signo 224 Caminhos de desconstruccedilatildeo a reabilitaccedilatildeo do sensiacutevel e o

enigma do olhar 2241 A descorberta da afetividade das cores 2242 Os limites da noccedilatildeo claacutessica de perspectiva 2243 O enigma do olhar e os impasses da representaccedilatildeo 225 A transformaccedilatildeo da luz natural e a releitura do Cogito 23 A gecircnese da Crise nas relaccedilotildees com a Natureza Capiacutetulo III ndash O pseudocartesianismo e o Realismo Cientificista o paradoxo do Menon 31 Apresentaccedilatildeo do problema Descartes e o cientificismo 32 A psicologia claacutessica o objetivismo cientificista 33 A tradiccedilatildeo intelectualista e seus cenaacuterios 34 As ldquoruiacutenas do pensamentordquo e o ldquoconflito dos pontos de vistardquo a

crise na compreensatildeo do homem 341 O conflito dos pontos-de-vista na compreensatildeo do homem a

compreensatildeo do intervalo do saber cientiacutefico e do saber filosoacutefico

342 A encarnaccedilatildeo do sujeito e as faces da subjetividade encarnada ldquoesquema corporalrdquo e ldquocorpo proacutepriordquo

14

24

25

25

34

50

72 72

86 87 100 104

113 113 119 122 138 141

159 159 172 179

186

186

203

13

SEGUNDA PARTE ndash CRISE E FILOSOFIA O SENTIDO DA FEcircNIX Capiacutetulo IV ndash A Crise do Entendimento e o Sentido da Histoacuteria a Historiografia Filosoacutefica 41 A experiecircncia filosoacutefica da Verdade 42 A crise do entendimento e os entraves da historiografia

claacutessica o problema da histoacuteria 43 O horizonte intelectualista de fundo cartesiano presente na

histoacuteria da filosofia ldquoa ordem das razotildeesrdquo ndash Da leitura de Descartes agrave historiografia filosoacutefica

44 Merleau-Ponty e a Histoacuteria do Pensamento a filosofia interrogativa o ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] o sentido da Fecircnix

441 Um ponto de partida Da ldquoordem das razotildeesrdquo agraves ldquorazotildees da ordemrdquo ndash a busca pelo sentido da ldquoordem cartesianardquo

442 O entrecruzamento de objetividade e subjetividade o impensado [das Ungedachte]

45 A ldquoexperiecircncia do pensamentordquo nas trilhas de uma ldquoexperiecircncia da linguagemrdquo a filosofia interrogativa o sentido da Fecircnix

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS ANEXOS A arqueoriginaacuteria Terra natildeo se move ndash E Husserl (Traduccedilatildeo) Notas sobre o desenvolvimento de meus conceitos ndash K Goldstein (Traduccedilatildeo) Textos de Candidatura ao Collegravege de France ndash M Merleau-Ponty (Traduccedilatildeo) Referecircncias

218

219 219

222

241

251

251

264

281

292

303

322

336

371

14

INTRODUCcedilAtildeO A noccedilatildeo de ldquocriserdquo certamente natildeo eacute um privileacutegio do

pensamento contemporacircneo Ao contraacuterio ela oculta talvez uma pretensatildeo

que sempre tenha assombrado o saber filosoacutefico pretensatildeo esta que os

antigos poderiam chamar de ὕβρις [hybris] ou seja uma excessiva

confianccedila um desmedido orgulho semelhante agrave iniciativa dos homens em

querer superar o poderio dos deuses Em que consistiria este

desmensuramento Onde estaria a ausecircncia de seu oposto a saber a

virtuosa prudecircncia aquilo que os romanos tatildeo bem nomearam bona mens a

capacidade do homem em reconhecer a sua proacutepria humanidade Se

pensarmos na inserccedilatildeo deste termo no discurso positivista podemos talvez

compreender o sentido deste ldquoexcessordquo Trata-se justamente da crenccedila ou do

mito de que uma eacutepoca esteja isenta de conflitos que seja possiacutevel falar de

uma passagem do caos agrave ordem ou melhor que entre dois sistemas

ordenados podemos encontrar uma ldquozona de transiccedilatildeo caoacuteticardquo cujo

ordenamento se dissipa no exato instante em que mediante uma nova

configuraccedilatildeo um outro ordenamento ocupe o seu lugar Daiacute o ensejo de

romper na histoacuteria com toda e qualquer ldquofaixa de turbulecircnciardquo ateacute que

magicamente os conflitos sejam dissipados

Pensando assim de certa forma jaacute no pensamento antigo natildeo

encontrariacuteamos dificuldades em situar ldquomomentos de criserdquo O problema se

agrava contudo quando natildeo mais partimos do pressuposto de que a

histoacuteria siga um movimento linear deste modo fundada em uma

circularidade as faixas de conflitos se converteriam antes em nervuras

viriam a impregnar cada linha que constitui a vivecircncia que se tem de cada

momento ou melhor de cada acontecimento histoacuterico Qual seria entatildeo o

sentido de se falar em crise Seguramente natildeo mais como a passagem da

desordem agrave ordem Antes como o aceno de que como no teatro na

emergecircncia de um novo drama torna-se preeminente a mudanccedila do cenaacuterio

Pensando nestas consideraccedilotildees ao falar de uma ldquocrise das ciecircnciasrdquo natildeo era

esta ideia o que Descartes tinha em vista e cometeriacuteamos aqui ateacute mesmo

um equiacutevoco a legitimaccedilatildeo de uma ldquoilusatildeo retrospectivardquo se lhe exigiacutessemos

15

um compromisso com a circularidade da histoacuteria ou mesmo com a proacutepria

histoacuteria paisagem que lhe era desconhecida terra estrangeira a que seu

pensamento natildeo chegara a avistar Ao falar de crise o que alimenta o

pensamento cartesiano eacute a constataccedilatildeo de que algo faltava agraves ciecircncias de

seu tempo Partindo de uma unidade da sapientia humana como confiar em

uma construccedilatildeo projetada por vaacuterios arquitetos O que faltaria agraves ciecircncias

era o mesmo que nortearia os meandros do projeto filosoacutefico de Descartes

ou seja a descoberta de um fundamentum inconcussum capaz de lhe

garantir a seguranccedila tatildeo almejada Neste ldquoalicerce inabalaacutevelrdquo repousaria o

Cogito e suas certezas apodiacuteticas frutos de um meacutetodo bem elaborado e

dirigido pelos princiacutepios da Razatildeo A crise tinha pois uma soluccedilatildeo seguir

os preceitos da Prima Philosophia demonstrar agraves ciecircncias galhos de uma

uacutenica aacutervore a necessidade de se nutrirem de uma mesma raiz ou seja da

Metafiacutesica conduzida pela ldquoluz naturalrdquo

No caso de Valeacutery jaacute tendo sido fundada a razatildeo claacutessica a crise

parecia avanccedilar um pouco mais adiante ela quase invadia o terreno do

Espiacuterito Curiosamente neste caso ainda natildeo totalmente tematizada mas

ferozmente vivida seraacute a proacutepria histoacuteria que incitaraacute este sentimento a

Guerra o assombro da contradiccedilatildeo a ameaccedila de uma eminente derrocada

natildeo soacute dos ordenamentos de uma eacutepoca mas de seu saber Poreacutem ao

contraacuterio de um terremoto a repecursatildeo de um possiacutevel abalo natildeo poderia

significar outra coisa que o esquecimento ou enfraquecimento desta proacutepria

razatildeo ainda tida como legiacutetima Ao falar em crise Valeacutery apenas ressentia

um tempo no qual as luzes do espiacuterito comeccedilavam a se esconder por traacutes

das nuvens da ignoracircncia do natildeo-saber O que caberia agrave filosofia

Resguardar o seu tesouro proteger-se e denunciar o que ldquopoderiardquo vir a ser

um crime de lesa-majestade Eacute assim que a geraccedilatildeo de Merleau-Ponty antes

de ter sentido na carne as consequecircncias de uma Guerra tambeacutem iria viver

este descompasso da Razatildeo Mas por que a Guerra Natildeo seria confundir o

ldquoconceitordquo de crise por sua vez ldquoabstratordquo com os infortuacutenios dos

acontecimentos Natildeo seria alimentar o historicismo ou antes misturar o

transcendental e o empiacuterico Nesta ressalva jaacute encontramos a resposta Se a

vivecircncia da Guerra comeccedilava a afetar o terreno do Espiacuterito eacute porque de

16

fato a crenccedila que se tinha nele de certa forma ao menos nas paisagens de

pensamento que procuramos descrever ndash afinal natildeo nos esqueccedilamos dos

ldquolibertinos barrocosrdquo ndash natildeo tinha um papel coadjuvante mas principal

basilar Eacute assim que pouco a pouco encontramos na compreensatildeo do que

antes era uma crise de valores agravada pela desumanizaccedilatildeo das relaccedilotildees

sociais e poliacuteticas a clivagem para uma crise dos fundamentos que lhes

serviam de alicerce Quais seriam as consequecircncias disto

Em primeiro lugar o sentimento de que mais do que uma crise

das ciecircncias o que emergia era uma crise da proacutepria Razatildeo ou melhor de

um determinado projeto de Razatildeo Eacute assim que no pensamento husserliano

iraacute se configurar o sentimento de uma crise engendrada e agravada

especialmente pelo desenvolvimento das ciecircncias do homem e das ciecircncias

em geral Seria o reconhecimento de uma ldquozona de turbulecircnciardquo o

engendramento do mito positivista No caso da fenomenologia a mudanccedila

de um cenaacuterio que por sua vez natildeo se concentrava em uma fase a partir da

qual se anunciava uma evolutiva mudanccedila mas encontrava antes sua

gecircnese na eacutepoca que lhe antecedera daiacute o sentido de uma ldquoarqueologia

fenomenoloacutegica da razatildeordquo um ldquoeclipse dos absolutosrdquo Qual seria o papel da

Filosofia No caso de Husserl fazer com que a Razatildeo comparada a uma

Fecircnix renascesse poreacutem nas trilhas de um τέλοϛ [teacutelos] que encontrava

suas origens e projeto no pensamento grego Seria esta a percepccedilatildeo que

Merleau-Ponty tivera de sua eacutepoca Seraacute assim que entenderaacute os abalos dos

fundamentos da Razatildeo atestados na ciecircncia em geral pelos trabalhos de Le

Roy e Duhem nas ciecircncias do homem pelas pesquisas psicoloacutegicas

socioloacutegicas e histoacutericas na filosofia pelo ceticismo inserido pelo asseacutedio do

psicologismo do historicismo e do naturalismo No final das contas como se

daria a sua recepccedilatildeo da crise husserliana

Em um curso dado no Collegravege de France ao pensar na ideia de

crise Merleau-Ponty procurava justamente elencar os seus rastros Onde

podemos encontraacute-la Para o filoacutesofo haveria uma crise da racionalidade

que se estabelecia ldquonas relaccedilotildees entre os homensrdquo ldquonas relaccedilotildees com a

Naturezardquo na experiecircncia da verdade presente nas relaccedilotildees entre a ciecircncia e

o mundo vivido e por fim na proacutepria filosofia e sua possibilidade

17

(MERLEAU-PONTY 1996 p 40) Constantemente nas Notes du Travail e

nos Reacutesumeacutes des cours Merleau-Ponty voltava-se para sua eacutepoca procurava

entender o seu tempo e isto porque ao perceber os limites da Metafiacutesica

tinha por pretensatildeo elaborar uma ldquonova ontologiardquo Isso se torna eacuteclatant

principalmente nas notas ainda ineacuteditas por ocasiatildeo de seus Projets des

livres1 Em uma destas notas encontramos uma indagaccedilatildeo do filoacutesofo que

nos chama a atenccedilatildeo trata-se de uma nota datada de 25 de setembro de

1958 que a nosso ver constitui o coraccedilatildeo de seus derradeiros projetos

filosoacuteficos assim como um caminho de leitura para os seus primeiros

trabalhos Encontramos ali uma pergunta acerca do sentido das ldquoruiacutenasrdquo de

uma ldquoRuinenlandschaft unsere Tagerdquo ou confusatildeo na qual se encontra o

pensamento moderno assim como expressa nomeadamente Eugen Fink ao

afirmar que ldquovivemos em lsquoruiacutenas de pensamentosrsquordquo (MERLEAU-PONTY

2000b p 299)

Ora sabemos que de certo modo a existecircncia de ruiacutenas indica

sobretudo os sedimentos e os despojos do que antes poderiam ter sido os

monumentos de uma civilizaccedilatildeo antiga Esta imagem natildeo eacute gratuita em

Merleau-Ponty (2000b p 40) ela faz parte daquele movimento arqueoloacutegico

que ele assumira como componente de seu meacutetodo filosoacutefico2

Vislumbramos todavia nesta imagem duas possibilidades de compreensatildeo

ruiacutena pode significar tanto despojos ou destroccedilos quanto confusatildeo

desordem caos O interessante eacute que neste caso a confusatildeo tem nos

destroccedilos o signo do que poderia ter sido a sua origem Podemos falar

assim que o filoacutesofo denunciava antes de tudo uma proto-ruiacutena uma

arqui-ruiacutena uma ruiacutena originante e originaacuteria das discordacircncias e confusotildees

1 Algumas destas notas arquivadas na Biblioteca Nacional da Franccedila jaacute foram transcritas por alguns pesquisadores da obra merleau-pontiana dentre eles Lefort Barbaras e Dupond Quando se tratar das notas ainda ineacuteditas vale salientar que aqui seguiremos a transcriccedilatildeo de Dupond Iremos identificaacute-las como NBNF Os siacutembolos [ ] fazem referecircncia agrave paginaccedilatildeo da Biblioteca e os siacutembolos ( ) indicam a paginaccedilatildeo segundo os manuscritos de Merleau-Ponty 2 Cf Merleau-Ponty (2000b p 40) ldquoOr si la perception est ainsi lrsquoacte commun de toutes nos fonctions motrices et affectives non moins que des sensorielles il nous faut redeacutecouvrir la figure du monde perccedilu par un travail comparable agrave celui de lrsquoarcheacuteologue car elle est ensevelie sous les seacutediments des connaissances ulteacuterieuresrdquo

18

da filosofia consigo mesma e com as ciecircncias Como o interesse do filoacutesofo

natildeo era indutivo (MERLEAU-PONTY 2000b p 25)3 o seu empreendimento

soacute poderia beirar as tecircnues fronteiras entre epistemologia e ontologia mais

do que o pressuposto ldquoconflitordquo ndash jaacute resolvido em alguns comentadores do

filoacutesofo sem nunca ter existido radicalmente na obra merleau-pontiana ela

mesma ndash entre fenomenologia e ontologia4 O que constitui portanto esta

proto-ruiacutena que tanto inquieta o filoacutesofo O que estaacute de fato em jogo na

constataccedilatildeo de que ldquovivemos em ruiacutenas de pensamentosrdquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [2] (1)) Qual seria a razatildeo destas ruiacutenas Natildeo seria o

sentimento de que a filosofia tem muito mais a investigar e a compreender

do que a pergunta constante entre alguns de seus contemporacircneos se a

verdade estaria com Tomaacutes de Aquino ou com Engels5

Para o filoacutesofo a nosso ver natildeo eacute nada de outro que a iniciativa

reflexiva em definir a filosofia ldquoem relaccedilatildeo a certos seresrdquo atitude esta

presente no naturalismo no humanismo e no teiacutesmo os quais para

Merleau-Ponty nos escombros de uma crise da Razatildeo teriam perdido todo o

seu sentido (MERLEAU-PONTY NBNF [4] (2)) Esta iniciativa desdobra-se

no que se tornara um dos grandes alvos do deacutesaveu do filoacutesofo o ldquoneo-

criticismordquo ou ldquointelectualismordquo especialmente na compreensatildeo da

subjetividade em sua relaccedilatildeo com o mundo e o ldquooperacionalismo

3 ldquoMais en mecircme temps notre recherche demeure philosophique Notre traitement des faits reste distinct du traitement inductif et scientifique Il nrsquoest pas question pour nous de consideacuterer la parole ou la penseacutee comme la simple somme des faits de la langue ou des faits de penseacutee tels qursquoils se sont produits ici ou lagrave agrave telle date En chacun drsquoeux nou essayons de saisir ce qui reprend et sublime le preacuteceacutedent anticipe le suivant lrsquoeacutemergence drsquoune structure drsquoune champ drsquoexpeacuterience qui en font plus qursquoun eacuteveacutenement une institutionrdquo 4 A nosso ver Merleau-Ponty natildeo estaacute preocupado em se situar seja no campo da fenomenologia seja no da epistemologia seja no da ontologia Sua intenccedilatildeo eacute fazer filosofia e filosofar eacute atravessar todas essas proviacutencias haja vista que o que move a reflexatildeo eacute antes uma ldquoquestatildeordquo do que a legitimidade de um selo que confirme a participaccedilatildeo em uma ldquoseita filosoacuteficardquo 5 ldquoLrsquoideacutee qursquoen France aujourdrsquohui des ecirctres humains se divisent sur la question de savoir si saint Thomas et Engels ont raison ou tor dans ce qursquoils disent de la Nature ndash cette ideacutee me paraicirct consternante quand on pense agrave tout ce qursquoil y a agrave connaicirctre ou agrave comprendre On ne peut en quelques mots esquisser une philosophie Disons seulement qursquoil faudrait une philosophie de lrsquoecirctre brut et non cette philosophie de lrsquoecirctre sage qui voudrait faire croire qursquoil y a une maniegravere de rendre le monde explicable ndash et une eacutetude attentive du sens un autre sens que le sens des ideacutees un sens fuyant et allusif auquel manque toute puissance directe sur les choses quoi qursquoil y paraisse et srsquoy deacuteveloppe pour peu que certains obstacles aient eacuteteacute leveacutesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 299)

19

naturalistardquo presente no tratamento das ciecircncias6 Natildeo estaria na

divergecircncia radical destas clivagens em seus equiacutevocos e paradoxos mesmo

indiretamente um dos pressupostos e indiacutecios do sentimento de crise que

passaria a assediar epistemologicamente e filosoficamente o seacuteculo XX Do

mesmo modo conforme indicamos se o ldquonaturalismo o humanismo e o

teiacutesmo perderam toda a significaccedilatildeo em nossa culturardquo (MERLEAU-PONTY

2000a p 219) se ldquotodas essas concepccedilotildees natildeo deixam de imiscuir-se umas

nas outrasrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 219) fazendo pois do problema

ontoloacutegico um problema dominante o que resta a um pensamento

conduzido pelas categorias do mundo claacutessico Como sair deste labirinto

Onde estaria o fio de Ariadne

Para Merleau-Ponty natildeo estaria na tentativa de tatildeo-somente

denunciar os limites da ciecircncia nem muito menos no ensejo de recuperar o

que seria um autecircntico projeto de Razatildeo e seu τέλοϛ [teacutelos] Daiacute que a proacutepria

noccedilatildeo de crise ao ter sido direcionada para o conflito dos pontos de vista

que se tem acerca do homem deveria ela mesma sofrer um eclipse

convertendo-se na oportunidade de reencontro daquilo que

verdadeiramente encontra-se nas fibras da proacutepria Razatildeo portanto da

possibilidade que se abre agrave filosofia de repensar a si mesma e de rever em

sua ontologia suas relaccedilotildees com as outras ciecircncias e saberes voltando-se

pois para o fundo de silecircncio do qual ela mesma emergira ou seja para

uma experiecircncia preacutevia do mundo Seria ali que para Merleau-Ponty

poderiacuteamos encontrar o fio de Ariadne a nos guiar nos labirintos construiacutedos

pela metafiacutesica claacutessica Ora eacute pensando neste modo de encarar a crise de

purificar suas pretensotildees positivistas empreendimento de κάθαρσις

6 Nisto estaria inclusive aquilo que mutatis mutandis segundo Horkheimer deve ser entendido como uma espeacutecie de ldquodoenccedila da Razatildeordquo ldquoSe focircssemos falar de uma doenccedila afetando a razatildeo essa doenccedila natildeo deveria ser entendida como tendo acometido a razatildeo em algum momento histoacuterico mas como inseparaacutevel da natureza da razatildeo na civilizaccedilatildeo tal como a conhecemos ateacute entatildeo A doenccedila da razatildeo consiste no fato dela ter nascido da necessidade humana de dominar a naturezardquo (HORKHEIMER 1947 p 176) Neste sentido Horkheimer acrescentaria ateacute mesmo que ldquose poderia dizer que a loucura coletiva que hoje se estende dos campos de concentraccedilatildeo ateacute as aparentemente mais inofensivas reaccedilotildees da cultura de massas jaacute estava presente em germe na objetivaccedilatildeo primitiva na primeira contemplaccedilatildeo calculadora do mundo pelo homemrdquo (HORKHEIMER 1947 p 176)

20

[Kaacutetharsis] que teve seu iniacutecio no pensamento husserliano que

procuraremos estruturar o nosso trabalho

O nosso texto se encontra subdivido em duas partes Na

primeira parte que dispomos em trecircs capiacutetulos tratamos do que seria um

ldquomal-estarrdquo da Razatildeo presente em uma espeacutecie de eclipse dos ldquoabsolutosrdquo e

a proposta de um retorno ao Mundo-da-vida finalizando com a tematizaccedilatildeo

da crise que no entender de Merleau-Ponty estaria presente conforme jaacute

indicamos no conflito dos pontos de vista da ciecircncia e da filosofia tal como

se manifesta na compreensatildeo do homem Na segunda formada por um

capiacutetulo versamos sobre a relaccedilatildeo existente entre Crise e Filosofia Qual

seraacute o percurso que iremos percorrer em cada parte Primeiramente vale

lembrar que natildeo nos pautaremos aqui na disposiccedilatildeo das questotildees que

procuraremos elucidar na riacutegida obediecircncia do que seriam as mutaccedilotildees

sofridas pelo pensamento de Merleau-Ponty desde La Structure du

comportement ateacute Le Visible et lrsquoInvisible desobrigando-nos da necessidade

presente em alguns leitores do filoacutesofo de estabelecer um quadro evolutivo

cujas restriccedilotildees impossibilitariam um diaacutelogo presente dentre os diversos

momentos da obra De modo diverso partiremos antes do que ao longo de

sua filosofia parece unir cada momento de seu projeto natildeo nos parecendo a

ideia de ldquoevoluccedilatildeordquo apropriada ao seu modo de filosofar Evidentemente eacute

certo que por exemplo a noccedilatildeo de ldquoconsciecircncia perceptivardquo nos uacuteltimos

trabalhos perde o seu espaccedilo para o que nos revela a ldquofeacute perceptivardquo que nos

une ao mundo No entanto tendo por centralidade os problemas filosoacuteficos

e natildeo a cisatildeo fenomenologia e ontologia o que procuraremos mostrar eacute

justamente o modo pelo qual elas se integram no pensamento de Merleau-

Ponty

Eacute partindo deste pressuposto que na primeira parte

notadamente no terceiro capiacutetulo ao tratar da criacutetica feita pelo filoacutesofo ao

pensamento cartesiano tentaremos integrar La Structure du comportement e

Lrsquoœil et lrsquoesprit ou antes mostrar como neste uacuteltimo texto ao contraacuterio de

se tratar tatildeo-somente de uma filosofia da arte o que encontramos eacute o ensejo

de desconstruccedilatildeo do complexo ontoloacutegico no qual fomos relegados pelo

pensamento cartesiano Assim sendo apresentando o diaacutelogo de Merleau-

21

Ponty com Husserl desejamos explicitar o modo como se daraacute no filoacutesofo a

recepccedilatildeo da Krisis contrapondo por conseguinte o itineraacuterio que cada um

deles percorreraacute na elucidaccedilatildeo etioloacutegica dos descompassos nos quais se

encontra a Razatildeo Eacute assim que enquanto Husserl privilegia o projeto de

matematizaccedilatildeo de Galileu Merleau-Ponty opta por um diaacutelogo com

Descartes e com a tradiccedilatildeo cartesiana No entanto nem por isso havendo

um ldquodescompasso radicalrdquo ndash apesar de algumas divergecircncias no que se

refere a certos aspectos da ldquogenealogia da loacutegicardquo antes vinculadas a nosso

ver ao que constitui o projeto de cada filoacutesofo ndash e isto quando o que estaacute em

jogo eacute o convite a uma experiecircncia preacutevia do mundo daiacute o diaacutelogo que se

estabelece no primeiro capiacutetulo entre a Ruumlckfrage husserliana e a versatildeo

merleau-pontiana da Ursprungsklaumlrung em outros termos o ldquomundo preacute-

copernicanordquo e a ldquoNaturezardquo tambeacutem chamada por Merleau-Ponty

especialmente nos ineacuteditos como ldquomundo do silecircnciordquo No segundo capiacutetulo

trataremos tambeacutem do que seria em Descartes o ldquopositivismo da visatildeordquo a

passagem da ldquovisatildeo dos olhosrdquo para a ldquointuitus mentisrdquo para o ldquoolhar do

Espiacuteritordquo natildeo deixando de contrapor pois o modo como Merleau-Ponty iraacute

encarar estas questotildees A partir disto procuraremos mostrar o viacutenculo que

se estabelece entre Descartes e a ciecircncia claacutessica o Grande e o Pequeno

Racionalismo descrevendo portanto o que para Merleau-Ponty seria a

gecircnese da crise no diaacutelogo com as ciecircncias

Tendo por referecircncia estas consideraccedilotildees centraremo-nos no

que de acordo com Merleau-Ponty viria a constituir uma crise na

compreensatildeo do homem Seraacute a este desfeixo que conduziraacute os capiacutetulos

anteriores Comeccedilaremos pois mostrando a proposta merleau-pontiana de

um diaacutelogo entre filosofia e ciecircncia e isto mediante um solo que lhes eacute

comum uma espeacutecie de terceira dimensatildeo entre um discurso em primeira

pessoa e um discurso em terceira pessoa Por fim a partir da compreensatildeo

de uma subjetividade encarnada especialmente na Pheacutenomeacutenologie de

perception o nosso objetivo seraacute o de mostrar entre filosofia e ciecircncia a

compreensatildeo merleau-pontiana acerca do homem privilegiando as noccedilotildees

de ldquoesquema corporalrdquo e ldquocorpo proacutepriordquo como as duas faces de uma mesma

experiecircncia corporal logo inserindo a compreensatildeo do homem na condiccedilatildeo

22

de ser encarnado dotado de corpo que eacute seu proacuteprio corpo no entre-deux de

um diaacutelogo com o que a ciecircncia moderna nos apresenta sobre o ldquoesquema

corporalrdquo e a filosofia nos diz sobre a vivecircncia do ldquocorpo proacutepriordquo Na

compreensatildeo do humano segundo Merleau-Ponty natildeo lhe haveria um saber

que servisse de via uacutenica mas um conjunto de pontos de vistas a nos revelar

as vaacuterias faces do fenocircmeno humano o modo originaacuterio de uma

subjetividade encarnada que estaacute no mundo que o habita tem a sua carne

entrelaccedilada com a proacutepria carne do mundo o que a nosso ver expressa

justamente na ruptura com a concepccedilatildeo cartesiana de homem presente na

gecircnese da crise o que poderia vir a ser uma via de superaccedilatildeo

Na segunda parte o foco seraacute a descriccedilatildeo do que para alguns

dos contemporacircneos de Merleau-Ponty seria a presenccedila da crise no proacuteprio

exerciacutecio filosoacutefico na relaccedilatildeo da filosofia consigo mesma e

consequentemente com sua proacutepria historiografia Como partimos do

pressuposto de que a ldquocrise na filosofiardquo seja antes a ldquocrise de um certo modo

de filosofarrdquo consideraremos o que para o filoacutesofo viria a constituir um dos

embaraccedilos da historiografia filosoacutefica presentes no que seria o modo de

compreender a ldquohistoacuteria do pensamentordquo Daiacute o direcionamento no quarto

capiacutetulo ao horizonte aberto pela indagaccedilatildeo de que compreensatildeo de histoacuteria

se efetivaria na historiografia filosoacutefica e seus meandros e isto no intuito de

em seguida tomando como referecircncia a criacutetica de Merleau-Ponty ao meacutetodo

estrutural-geneacutetico de Gueacuteroult tentar encontrar os rastros destas questotildees

na histoacuteria do pensamento ao menos os de um determinado modelo

historiograacutefico aquele que nos poderia remeter agraves questotildees que se

encontram na ldquogecircnese de uma Crise da Razatildeordquo Eacute assim que notamos em

Merleau-Ponty na leitura de Descartes natildeo a legitimaccedilatildeo inquestionaacutevel de

uma ldquoordem das razotildeesrdquo mas a busca do que seria na obra cartesiana ldquoas

razotildees da ordemrdquo o que nos possibilitaria explicitar na compreensatildeo

merleau-pontiana da historiografia filosoacutefica em conformidade com uma

ldquohistoacuteria vivardquo e suas astuacutecias uma ldquohistoacuteria verticalrdquo por conseguinte a

compreensatildeo da experiecircncia filosoacutefica como a busca de um ldquoimpensadordquo e

natildeo sendo isto o que justamente se nega uma dissecaccedilatildeo de estruturas

expliacutecitas no encadeamento das ideias de um texto Este modelo de leitura se

23

enquadra nos horizontes de uma crise da filosofia natildeo para tatildeo-somente

confirmaacute-la mas precisamente para explicitar que o que realmente poderia

condenar a filosofia ao nons-sens seria justamente o esquecimento de que

ela eacute sobretudo interrogaccedilatildeo o que natildeo conduz ao relativismo da leitura

mas pelo contraacuterio agrave abertura do texto a uma experiecircncia viva entre o leitor

e o escritor a subjetividade do filoacutesofo que estudamos e a nossa

subjetividade o que natildeo significa desrespeitar as suas ideias mas convidaacute-

las a um diaacutelogo buscando reencontraacute-las como momentos de uma ldquovida

pensanterdquo uma vez que o contraacuterio seria relegaacute-las agrave respeitosa majestosa

e cruel indiferenccedila da biblioteca Em suma para Merleau-Ponty quando nos

contentamos a dizer de um filoacutesofo apenas aquilo que este mesmo filoacutesofo

gostaria que disseacutessemos perdemos efetivamente o que seria uma histoacuteria

autecircntica do pensamento esquecemo-nos de que suas ideias tambeacutem se

encontram na tradiccedilatildeo que com ela tentara dialogar

24

PRIMEIRA PARTE O ldquoMAL-ESTARrdquo DA RAZAtildeO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA

O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS

25

CAPIacuteTULO I DA CRISE DO ESPIacuteRITO Agrave CRISE DA RAZAtildeO

O MUNDO-DA-VIDA Maintenant sur une immense terrasse drsquoElsinore qui va de Bacircle agrave Cologne qui touche aux sables de Nieuport aux marais de la Somme aux craies de Champagne aux granits drsquoAlsace ndash lrsquoHamlet europeacuteen regarde des millions de spectres (VALEacuteRY 1943 p 993) Tendo noacutes proacuteprios vivido duas ou trecircs crises profundas de nosso modo de pensar ndash a ldquocrise dos fundamentosrdquo e o ldquoeclipse dos absolutosrdquo matemaacuteticos a revoluccedilatildeo relativista a revoluccedilatildeo quacircntica ndash tendo sofrido a destruiccedilatildeo de nossas antigas ideias e feito o necessaacuterio esforccedilo de adaptaccedilatildeo agraves ideias novas estamos mais aptos que nossos predecessores a compreender as crises e as polecircmicas de outrora

(KOYREacute 1991 p 13)

11 O ldquomal-estarrdquo da Razatildeo a Crise do Espiacuterito

O historiador do pensamento francecircs Castelli Gattinara ao

tratar do periacuteodo do entre-guerra inicia seu texto com a bela frase de Valeacutery

ldquonoacutes as civilizaccedilotildees sabemos agora que somos mortaisrdquo7 Trata-se da frase

de um texto de 1919 La crise de lrsquoesprit No entanto eacute acompanhando vis-agrave-

vis as reflexotildees de Valeacutery que podemos melhor compreender os sentimentos

de espanto e de indagaccedilatildeo que ele procura expressar Neste sentido ainda

ao pensar em outros filoacutesofos especialmente nos que iriam viver os

paradoxos e desdobramentos desta eacutepoca a ideia de crise parece-nos mais

do que uma ldquoinvenccedilatildeordquo ou uma ldquoespeculaccedilatildeo intelectualrdquo a vivecircncia do

crepuacutesculo de certezas ateacute entatildeo inquestionaacuteveis a demoliccedilatildeo de paisagens

de pensamentos cujas ruiacutenas deixaram marcas indeleacuteveis no imaginaacuterio

europeu Ora pensando na filosofia de Merleau-Ponty natildeo seria entre essas

trincheiras e abalos siacutesmicos de uma ldquocrise dos fundamentosrdquo ou conforme

veremos de uma determinada concepccedilatildeo de razatildeo que a encontrariacuteamos

Natildeo estaria o filoacutesofo tambeacutem mutatis mutandis em um diaacutelogo

epistemoloacutegico com as questotildees inerentes conforme expressatildeo de Koyreacute a

7 ldquoNous autres civilisations nous savons maintenant que nous sommes mortellesrdquo (VALEacuteRY 1943 p 988)

26

uma espeacutecie de ldquoeclipse dos absolutosrdquo Aqui se encontra pois uma das

pretensotildees de nossa tese pretensatildeo que talvez nenhuma novidade encerre

em si a saber a ideia de que natildeo compreende bem o projeto filosoacutefico de

Merleau-Ponty quem desconsidera sua pertenccedila agrave experiecircncia e ao

imaginaacuterio de uma crise da Razatildeo ou como diria Gattinara das ldquodiversas

crisesrdquo que passaram a assolar o pensamento claacutessico e seus sonhos

cabendo-nos contudo a tarefa de tentar explicitar por sua vez o sentido e o

peso que essa ideia tivera em seu pensamento (GATTINARA 1998)

A intrigante frase de Valeacutery ao falar de uma crise do Espiacuterito

apesar de seu peso semacircntico insere-nos ainda nas perspectivas de um

modo bastante francecircs de se encarar o problema que eclodia e se

manifestava com a emergecircncia cada vez mais crescente de um estado de

ldquodesrazatildeordquo daiacute haver ldquocrisesrdquo ndash e natildeo a Crise ndash daiacute a ldquocrise francesardquo natildeo ser

a ldquoKrisis alematilderdquo dado que cada um a viveria da sua maneira8 Valeacutery parece

nos dizer que ateacute entatildeo nunca se tinha tido o sentimento e de um modo

tatildeo traacutegico de que a Europa poderia ter o mesmo destino das antigas

civilizaccedilotildees que seus autores mais ceacutelebres poderiam ter seus escritos

transformados em miragens em enigmaacuteticos fragmentos tais como as

comeacutedias de Menandro Apesar da multiplicidade de crises que afloram em

vaacuterios setores segundo o poeta o que afligiria a alma europeia seria aquela

que se sucederia no proacuteprio acircmbito do espiacuterito ali ela seria muito mais

intensa Logo natildeo eacute sem sentido que ele nos diraacute que a ldquo[] a crise

intelectual mais sutil e que por sua proacutepria natureza toma as aparecircncias

mais enganadoras (porquanto se passa no reino mesmo da dissimulaccedilatildeo)

esta crise deixa dificilmente apreender o seu verdadeiro ponto a sua faserdquo

(VALEacuteRY 1943 p 990) Mantendo ainda uma simpatia por uma concepccedilatildeo

claacutessica de razatildeo a percepccedilatildeo da crise ainda era a percepccedilatildeo de tatildeo-somente

uma ldquofase criacuteticardquo na qual ldquoningueacutem pode dizer aquilo que amanhatilde estaraacute

8 ldquoCrsquoest le paradoxe de la crise on est certain de lrsquoincertitude Mais crsquoest aussi ce qui lui permet de se manifester de diverses faccedilons de srsquoarticuler selon des conjonctures historiques et geacuteographiques particuliegraveres Parce que lsquola crisersquo franccedilaise nrsquoest pas la lsquoKrisisrsquo allemande Ce que lrsquoon deacutefinit drsquohabitude comme lsquola penseacutee de la Krisisrsquo dans ce chaos geacutenial que fut la Mitteleuropa ne recouvre pas en effet totalement ce qursquoa eacuteteacute lsquola probleacutematique de la crisersquo en France durant la mecircme peacuterioderdquo(GATTINARA 1998 p 23)

27

morto ou vivo em literatura em filosofia em esteacutetica Ningueacutem sabe tambeacutem

quais ideias ou quais modas de expressatildeo estaratildeo escritas na lista de

perdas quais novidades seratildeo proclamadasrdquo (VALEacuteRY 1943 p 990) Sendo

assim em um trecho que consideramos fundamental apesar de longo

Valeacutery nos daacute independente de seu modo de interpretar essa ldquocrise do

espiacuteritordquo um diagnoacutestico muito claro do que se passava

A esperanccedila certamente permanece e canta a meia voz Et cum vorandi vicerit libidinem Late triumphet imperator spiritus [Vencedor do apetite voraz que o espiacuterito soberano estenda longe o seu triunfo] No entanto a esperanccedila eacute apenas a desconfianccedila do ser em relaccedilatildeo agraves previsotildees precisas de seu espiacuterito Sugere que toda conclusatildeo desfavoraacutevel ao ser deve ser um erro de seu espiacuterito Os fatos todavia satildeo claros e impiedosos Haacute milhares de jovens escritores e de jovens artistas que estatildeo mortos Haacute a ilusatildeo perdida de uma cultura europeia e a demonstraccedilatildeo de impotecircncia do conhecimento em saber o que quer que seja haacute a ciecircncia atingida mortalmente em suas ambiccedilotildees morais e como desonrada pela crueldade de suas aplicaccedilotildees haacute o idealismo dificilmente vencedor profundamente ferido coberto de crimes e de erros a cobiccedila e a renuacutencia igualmente ridicularizadas as crenccedilas confundidas nos campos cruz contra cruz [lua] crescente contra [lua] crescente haacute os proacuteprios ceacuteticos desconcertados por acontecimentos tatildeo repentinos tatildeo violentos tatildeo comoventes e que brincam com os nossos pensamentos como o gato brinca com o rato ndash os ceacuteticos perdem suas duacutevidas as encontram as perdem e natildeo sabem mais se servir do movimento de seu espiacuterito A oscilaccedilatildeo do navio foi tatildeo forte que os candeeiros mais suspensos chegaram a derramar (VALEacuteRY 1943 p 990-1)

Contudo poderiacuteamos nos indagar como a filosofia francesa

respondera a essas questotildees No que diz respeito agrave ciecircncia vale salientar o

contrapeso e a importacircncia que teve nesta eacutepoca a insurreiccedilatildeo de uma

ldquofilosofia do espiacuteritordquo Eacute contra essa ldquociecircncia ferida moralmenterdquo eacute contra a

aplicaccedilatildeo natildeo questionada de suas formulaccedilotildees eacute contra a estreita visatildeo de

ciecircncias como a fisiologia e psicologia nascentes9 que se levantaram as

diversas versotildees do espiritualismo francecircs As divergecircncias nasciam a partir

da convicccedilatildeo de que tais pressupostos natildeo condiziam com o que eacute proacuteprio da

9 Eacute contra um discurso da exterioridade que deixa escapar a pergunta pelo homem e seu sentido eacute contra um tempo que esquecendo-se de se comprometer com a verdade caracterizava-se conforme Le Senne por ldquouma monstruosa alianccedila entre ciecircncia e Estado aquela fornece o conhecimento teacutecnico e este o torna o instrumento de seu capricho despoacuteticordquo (LE SENNE 1951 p XVIII)

28

filosofia francesa10 No entanto mesmo colocando-se de imediato como a

resposta da filosofia francesa aos ataques do cientificismo e aos horrores da

Guerra o espiritualismo tinha tambeacutem em seu calcanhar de Aquiles a

defesa de uma ldquocerta tradiccedilatildeo cartesianardquo natildeo chegando por conseguinte a

alcanccedilar todos os sentidos e consequecircncias de um retorno agrave experiecircncia

humana Deste modo natildeo procurando desconstruir os princiacutepios que

alimentavam as ideias de seus antiacutepodas por fim acabaram por

compartilhar dos mesmos preacutejugeacutes que pensavam ter superado Talvez neste

ponto na falta de explicitaccedilatildeo das proacuteprias fibras de um posicionamento

contra o esquecimento da condiccedilatildeo humana encontrava-se a razatildeo pela

qual para Valeacutery o peso da crise se articulava no modo como essa mesma

crise encontrava o espiacuterito o estado intelectual de um tempo que mesmo

natildeo ousando historiaacute-lo o poeta esboccedilara em poucas linhas a sua

fisionomia trata-se de um tempo complexo carregado de informaccedilotildees e de

conhecimento de todas as ordens que se entrecruzam cuja desordem

encontra-se justamente na ldquolivre coexistecircncia em todos os espiacuteritos

cultivados das ideias mais dessemelhantes dos princiacutepios de vida e de

conhecimento mais opostosrdquo (VALEacuteRY 1943 p 992) Em outros termos na

raiz dos problemas encontramos como originante o ldquomodernismordquo ao qual a

Europa se entregou11 Eacute frente a essa confusatildeo ndash aquela que permitia em

10 No dizer de Lavelle ldquo[] eacute por excelecircncia uma filosofia da consciecircnciardquo (LAVELLE 1942 p 7) e como tal possui em si ldquo[] um aspecto metafiacutesico e um aspecto psicoloacutegico que ela natildeo pode separar um do outrordquo (LAVELLE 1942 p 8) Com efeito eacute preciso negar a ideia de um espiacuterito entendido a partir de sua capacidade de ldquoautoproduccedilatildeordquo Como acentua Lavelle Eacute preciso comeccedilar chegando a um consenso em torno de trecircs pontos essenciais que permitem perceber o que se deve entender pela palavra espiacuterito O primeiro eacute que o espiacuterito eacute uma atividade aliaacutes a uacutenica atividade que merece propriamente este nome sendo toda atividade material antes causada e sofrida do que causadora e agente () O segundo ponto eacute que o espiacuterito natildeo eacute absolutamente como se crecirc uma obscura espontaneidade da qual nos limitamos a conhecer os efeitos sem nada saber do poder que possui e que se exerceria fora de noacutes e sem noacutes () O terceiro ponto finalmente permite reavaliar e estender o sentido da palavra experiecircncia que todavia foi reservada por muito tempo agrave experiecircncia do objeto (LAVELLE 1942 p 268-9) 11 ldquoJe ne deacuteteste pas de geacuteneacuteraliser la notion de moderne et de donner ce nom agrave certain mode drsquoexistence au lieu drsquoen faire un pur synonyme de contemporain Il y a dans lrsquohistoire des moments et des lieux ougrave nous pourrions nous introduire nous modernes sans troubler excessivement lrsquoharmonie de ces temps -lagrave et sans y paraicirctre des objets infiniment curieux infiniment visibles des ecirctres choquants dissonants inassimilables Ougrave notre entreacutee ferait le moins de sensation lagrave nous sommes presque chez nous Il est clair que la Rome de Trajan et que lrsquoAlexandrie des Ptoleacutemeacutees nous absorberaient plus facilement que bien des localiteacutes

29

um uacutenico livro encontrarmos os ecos dos ldquobaleacutes russosrdquo de Pascal de

Nietzsche de Rimbaud da pintura da ciecircncia etc ndash que surge apesar de

alguns contra-sensos uma das mais belas imagens de Valeacutery o Hamlet

europeu que observa milhares de espectros o Hamlet intelectual que medita

sobre a vida e a morte das verdades que medita tendo em suas matildeos

cracircnios ilustres como os de Leonardo da Vinci de Leibniz de Kant de Hegel

de Marx e de tantos outros Cracircnios que por sua vez ainda refletem seus

sonhos ou melhor os sonhos da razatildeo os mesmos que paradoxalmente

pensando na pintura de Goya poderiacuteamos dizer podiam ocultar e suscitar

ldquomonstrosrdquo Caminhando entre os abismos da ordem e da desordem o

Hamlet valeriano certamente natildeo poderia abandonar seus cracircnios sob pena

de deixar de ser o que se eacute O que fazer As uacuteltimas palavras de Valeacutery

nesta carta parece-nos indicar o que para ele poderia ser um possiacutevel

caminho

Adeus fantasmas O mundo natildeo precisa mais de vocecircs Nem de mim O mundo que batiza com o nome de progresso sua tendecircncia a uma nitidez fatal busca unir aos benefiacutecios da vida as vantagens da morte Uma certa confusatildeo reina tambeacutem mais ainda um pouco tempo e tudo se esclareceraacute noacutes veremos enfim aparecer o milagre de uma sociedade animal um perfeito e definitivo formigueiro (VALEacuteRY 1943 p 994)

O paradoxo da crise ndash aquele que conforme Gattinara trata-se

da certeza de que natildeo se tem certezas ndash evidenciava que ldquoa certeza com a

qual se pensava a Verdade como algo que seria preciso desvelar eacute

substituiacuteda cada vez mais pela inquietude frente a uma verdade por

construir e portanto impossiacutevel de alcanccedilar posto que eacute apenas um

horizonte idealrdquo (GATTINARA 1998 p 25) Daiacute a afirmaccedilatildeo de Bachelard

ldquono final do uacuteltimo seacuteculo acreditava-se ainda no caraacuteter empiricamente

unificado de nosso conhecimento do realrdquo (BACHELARD 1970 p 11) Em

concomitacircncia com a crise da concepccedilatildeo claacutessica de razatildeo podemos notar

moins reculeacutees dans le temps mais plus speacutecialiseacutees dans un seul type de moeurs et entiegraverement consacreacutees agrave une seule race agrave une seule culture et agrave un seul systegraveme de vierdquo (VALEacuteRY 1943 p 992)

30

que natildeo soacute os saberes mas o proacuteprio ldquoeurdquo perde sua unidade a razatildeo

categorial torna-se uma ldquopretensatildeo ingecircnuardquo ou ldquouma ilusatildeo histoacutericardquo os

fundamentos se abalam e faz da estabilidade tambeacutem uma ilusatildeo o

abandono da materialidade das coisas perde-se em proveito do ldquovazio

mascarado pela linguagemrdquo e pelo ldquodevir fantasmagoacuterico das palavrasrdquo

resumindo o fio de Ariadne se perde Logo justifica-se o fato de

encontrarmos uma mesma experiecircncia embora vivida em cada um de um

modo diverso e por conseguinte ldquoos grandes signos do decliacutenio a Grande

Guerra o proacuteprio termo lsquocrisersquo os problemas da linguagem e do signo o

sentimento de um lsquomal de mar em terra firmersquo que Kafka descreveu mas

que se encontra um pouco por toda parterdquo (GATTINARA 1998 p 27) Ora

seraacute essa tambeacutem a percepccedilatildeo da geraccedilatildeo de Merleau-Ponty teria ela ido

aleacutem das constataccedilotildees do Hamlet valeriano Quanto a isso nos diraacute

Gattinara

[] Enquanto as geraccedilotildees de Brunschvicg e de Valeacutery tentavam salvar o que pode ser manifestando uma simpatia indiscutiacutevel pela certeza da razatildeo claacutessica a geraccedilatildeo de Bachelard De Broglie e Aragon encara a crise como uma ldquorevoluccedilatildeordquo na qual eacute preciso dar uma coerecircncia ao ldquodiscursordquo das ciecircncias As ciecircncias e a razatildeo cientiacutefica podem ser salvas se as fundarmos na crise no movimento de multiplicaccedilatildeo que a determina no problema (problemas) que suscita e portanto em uacuteltimo caso no incerto A crise pode ser definida como uma luta que faz triunfar a precariedade e a mudanccedila sobre a estabilidade [] (GATTINARA 1998 p 28)

Eacute a partir desta mudanccedila que segundo o historiador a

eternidade cede seu lugar a um tempo precaacuterio (vergaumlnglich) entrelaccedilado

uma ldquomistura de experiecircncia e espaccedilordquo que a evidecircncia cartesiana se

converte em uma ilusatildeo que se torna possiacutevel ldquoseguir o movimento por mais

desordenado e labiriacutentico que sejardquo (GATTINARA 1998 p 29) Mas natildeo

estaria tambeacutem a filosofia de Merleau-Ponty em meio a essas constataccedilotildees

indagaccedilotildees hesitaccedilotildees e perspectivas que marcariam a ldquogeraccedilatildeo de

Bachelard De Broglie e Aragonrdquo O que nos diz Merleau-Ponty sobre os

percalccedilos filosoacuteficos originados pela derrocada de um ldquoespiacuterito absolutordquo

Certamente os seus primeiros trabalhos versam justamente sobre esta

questatildeo Contudo gostariacuteamos de nos centrar em um nota da

31

Pheacutenomeacutenologie de la perception Ali a partir de uma criacutetica endereccedilada

especialmente a Alain e Lagneau filoacutesofos tidos geralmente como integrantes

do ldquoespiritualismo francecircsrdquo de modo particular no que diz respeito ao

posicionamento da ldquoanaacutelise reflexivardquo frente agrave percepccedilatildeo parece que se

delineiam algumas pistas para a resposta que procuramos Encontramos ali

um breve esboccedilo dos impasses criados por uma concepccedilatildeo equivocada do

ldquoespiacuteritordquo o que talvez tambeacutem esteja na gecircnese do que viria a ser a sua

ldquocriserdquo no caso a ldquocrise do espiacuteritordquo O interessante da criacutetica de Merleau-

Ponty natildeo estaacute simplesmente na explicitaccedilatildeo dos equiacutevocos presentes nas

concepccedilotildees destes filoacutesofos mas no sentimento presente neles de que aquilo

que eles postulavam a saber a ideia de uma ldquoconsciecircncia absolutardquo poderia

natildeo conter toda a verdade Jaacute natildeo seria este sentimento o pressentimento de

algum decliacutenio

Ao se tratar o sujeito como um ldquonaturante universalrdquo um

espiacuterito absoluto o que restaria ao espiacuterito seria tatildeo-somente ldquo[] o

sistema da experiecircncia compreendido aiacute meu corpo e meu eu empiacuterico

ligados ao mundo pelas leis da fiacutesica e da psicofisiologiardquo (MERLEAU-PONTY

1999 p 618-9) Eacute assim que o pensamento reflexivo acaba por ocultar ldquo[]

o noacute da consciecircncia perceptiva porque investiga as condiccedilotildees de

possibilidade do ser absolutamente determinado e deixa-se tentar por essa

pseudo-evidecircncia da teologia de que o nada natildeo eacute coisa algumardquo (MERLEAU-

PONTY 1999 p 618) Qual a consequecircncia disto A experiecircncia da

sensaccedilatildeo se torna apenas o desdobramento ldquopsiacutequicordquo oriundo das

excitaccedilotildees sensoriais e como tal natildeo pertence ao sujeito encontra-se

divorciada dele o que ndash como consequecircncia tendo em vista que o sujeito eacute

visto como um ldquonaturante universalrdquo ndash impossibilita ldquoqualquer ideia de uma

gecircnese do espiacuteritordquo uma vez que existindo o tempo mediante este espiacuterito

natildeo se poderia conceber a possibilidade de recolocaacute-lo ldquono tempordquo O espiacuterito

passa a ser visto pois sem historicidade vivendo em uma unidade indeleacutevel

com o verdadeiro Todavia se o ldquoeu empiacutericordquo natildeo fosse outro que o

desdobramento deste espiacuterito absoluto como entender o erro onde inserir a

ldquoopacidaderdquo Esta eacute a questatildeo que Lagneau se fazia em suas Ceacutelegravebres

Leccedilons Em razatildeo disso eacute que em seu pensamento a sensaccedilatildeo deixa de ser

32

um ldquoobjeto constituiacutedordquo em uma ldquorede de relaccedilotildees psicofiacutesicasrdquo Logo

concluiraacute Merleau-Ponty se ldquoo sentir natildeo pertence agrave ordem do constituiacutedordquo

se ldquoo Eu natildeo o encontra desdobrado diante de sirdquo eacute porque justamente

[] ele escapa ao seu olhar estaacute como que recolhido atraacutes dele estaacute ali como uma espessura ou uma opacidade que torna o erro possiacutevel delimita uma zona de subjetividade ou de solidatildeo representa-nos aquilo que estaacute ldquoantesrdquo do espiacuterito ele evoca seu nascimento e reclama uma anaacutelise mais profunda que esclareceria a ldquogenealogia da loacutegicardquo O espiacuterito tem consciecircncia de si como ldquofundadordquo nessa Natureza Haacute portanto uma dialeacutetica do naturado e do naturante da percepccedilatildeo e do juiacutezo no decorrer da qual sua relaccedilatildeo se inverte (MERLEAU-PONTY 1999 p 619)

Para Merleau-Ponty em Quatre-vingt-un chapitres sur lrsquoesprit et

les passions Alain faria um movimento semelhante ao de Lagneau De

acordo com o filoacutesofo ao pensar sobre a ldquograndeza aparenterdquo dos objetos

retirando do juiacutezo o papel de ldquoinstacircncia ratificadorardquo o que se vislumbrava

era o encaminhamento a uma subjetividade na qual a relaccedilatildeo com o mundo

natildeo se daacute mais mediante uma ldquoinspeccedilatildeo do espiacuteritordquo Logo se ldquo[] uma

aacutervore me parece sempre maior do que um homem mesmo se ela estaacute bem

distante de mim e o homem bem proacuteximordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 619)

isto se daacute natildeo graccedilas a uma alteraccedilatildeo promovida pelo juiacutezo pois

A percepccedilatildeo natildeo conclui a grandeza da aacutervore daquela do homem ou a grandeza do homem daquela da aacutervore nem uma e outra do sentido desses dois objetos mas ela faz tudo ao mesmo tempo a grandeza da aacutervore a grandeza do homem e sua significaccedilatildeo de aacutervore e de homem de forma que cada elemento se harmoniza com todos os outros e compotildee com eles uma paisagem em que todos coexistem Entra-se assim na anaacutelise daquilo que torna possiacutevel a grandeza e mais geralmente as relaccedilotildees ou as propriedades de ordem predicativa e nessa subjetividade ldquoanterior a toda geometriardquo que todavia Alain declarava incognosciacutevel (MERLEAU-PONTY 1999 p 620)

Merleau-Ponty nota em Alain o preluacutedio de uma anaacutelise

especialmente no que diz respeito agrave ldquograndezardquo dos objetos na qual o juiacutezo

encontra uma funccedilatildeo que lhe eacute mais profunda que lhe estaacute aqueacutem anaacutelise

semelhante agravequela que versando justamente sobre esta questatildeo

encontrariacuteamos nos psicoacutelogos ao se falar em uma Gestaltung da

33

paisagem12 O que isto quer nos dizer Se partirmos da filosofia de Merleau-

Ponty natildeo poderemos falar unicamente no asseacutedio que devido agraves distorccedilotildees

de um ldquomodernismordquo o Espiacuterito enfrentava Pelo contraacuterio ldquoo modernismordquo

natildeo eacute uma ldquocausardquo da crise mas o delineamento de uma mudanccedila Logo no

que se refere ao ldquomodernismordquo o que temos eacute a elucidaccedilatildeo de que o sentido

dos princiacutepios que moviam o Mundo Claacutessico se esvaziara mudara de

direccedilatildeo e as razotildees disto se encontram nestes mesmos princiacutepios encontra-

se propriamente em seus fundamentos

Por conseguinte parece-nos que para o filoacutesofo falar em ldquocriserdquo

natildeo significa tambeacutem acentuar uma passagem que vai do caos agrave ordem natildeo

significa corroborar a ilusatildeo positivista de que seria legiacutetima a tarefa de se

explicitar um progresso pelo qual mediante uma eacutepoca criacutetica uma idade

orgacircnica teria que ceder o seu lugar a uma outra idade igualmente orgacircnica

Em outros termos natildeo se trata da fantasia positivista em crer que eacute

possiacutevel a uma eacutepoca viver sem incertezas e sem lutas Deste modo acaba

sendo por uma ldquoilusatildeo retrospectivardquo que acreditamos ter sido o mundo

claacutessico o reino das certezas absolutas e das verdades apodiacuteticas Como natildeo

pensar nas obras inacabadas de Da Vinci Natildeo guardava tambeacutem a ciecircncia

claacutessica ldquoo sentimento de uma opacidade do mundordquo Natildeo era justamente ao

mundo segundo o filoacutesofo ldquo() que ela pretendia juntar-se por suas

construccedilotildees e por isso eacute que se acreditava obrigado a procurar para suas

operaccedilotildees um fundamento transcendente ou transcendentalrdquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 85) Igualmente natildeo acabamos de encontrar em filoacutesofos

tidos espiritualistas um encaminhamento a ideias que lhes deveriam ser

opostas

Conforme procuraremos mostrar para Merleau-Ponty ldquocriserdquo

significa pois a oportunidade que se tem quando se trata do pensamento

em rever e reformular seus princiacutepios e suas certezas Se eacute certo o que nos

diz Valeacutery acerca de uma ldquoCrise do Espiacuteritordquo eacute porque seguindo os

12 No proacuteximo capiacutetulo de certo modo retomaremos o tema da ldquograndezardquo e o seu significado filosoacutefico quando tratarmos da criacutetica de Merleau-Ponty agrave noccedilatildeo claacutessica de perspectiva

34

movimentos da histoacuteria a nossa concepccedilatildeo do ldquoespiacuteritordquo natildeo eacute mais a

mesma Mais do que uma ldquomudanccedila suacutebitardquo se nos atentarmos agrave

etimologia a Krisiv [Kriacutesis] eacute tambeacutem um momento decisivo como jaacute nos

ensina o verbo Krinw [Kriacuteno] do qual este termo se origina o poder de se

fazer escolhas de fazer distinccedilotildees Contudo se a Crise de Valeacutery aquela que

poderiacuteamos entender como a expressatildeo de uma ldquocrise francesardquo natildeo nos eacute

suficiente para compreendermos a filosofia de Merleau-Ponty certamente o

trabalho etimoloacutegico natildeo o seria assim como tambeacutem natildeo o seria a denuacutencia

dos impasses nas relaccedilotildees da filosofia com a ciecircncia Acaso natildeo encontramos

em seu pensamento mais do que a explicitaccedilatildeo dos ecos de uma crise que se

vecirc consolidada nos trabalhos da ciecircncia No entanto qual seria a razatildeo

disto O fato eacute que no caso de Merleau-Ponty no compasso de uma ldquocrise

do espiacuteritordquo encontrariacuteamos ainda e talvez com mais veemecircncia os ecos de

uma outra Krisis a Crise da Razatildeo Se a Crise francesa natildeo eacute a Krisis alematilde

no pensamento merleau-pontiano encontramos a tentativa de dialogar com

ambas a fim de melhor compreender o seu tempo Por conseguinte quando

procuramos compreender a filosofia de Merleau-Ponty nos horizontes de um

sentimento de crise a fenomenologia de Husserl natildeo deixa de ter um topos

privilegiado O que isso significa Quais as razotildees Vejamos

12 A Fenomenologia e a Crise da Razatildeo os limites do cientificismo e o retorno ao mundo-da-vida

Segundo Merleau-Ponty ldquodesde a sua origem a fenomenologia

aparece como uma tentativa de resolver um problema colocado no iniacutecio do

seacuteculo pela Crise da filosofia das ciecircncias do homem e das ciecircncias em

geralrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 151) A fenomenologia em outras

palavras seria justamente o intento de superar de uma soacute vez todas essas

crises No que diz respeito agrave ciecircncia claacutessica a nosso ver o intento

husserliano natildeo eacute outro eacute o reconhecimento de que em sua deacutemarche o

que se pretende efetuar eacute uma ideia equivocada de razatildeo um conceito

embargado por contradiccedilotildees desde o seu nascimento Logo a Crise das

ciecircncias natildeo eacute o simples empreendimento de anaacutelise dos limites daquilo que

35

se verifica a validade jaacute presente em Descartes e no qual a razatildeo se voltaria

criticamente contra os fundamentos das ciecircncias Em contrapartida

tampouco se limitaria agraves reflexotildees do Hamlet valeriano Quanto ao sentido

dessa Krisis satildeo esclarecedoras as seguintes palavras de Moura

[] esse tema [a crise da Razatildeo] parece ter a sua dataccedilatildeo circunscrita agrave primeira metade do nosso seacuteculo Pois se eacute verdade

que de maneira expliacutecita ou impliacutecita a noccedilatildeo de ldquocriserdquo sempre

frequumlentou a histoacuteria da filosofia eacute verdade tambeacutem que Descartes

por exemplo natildeo apontava para nenhuma ldquocrise da razatildeordquo mas para uma crise das ciecircncias ciecircncias cujos ldquoprinciacutepios incertosrdquo careciam

de uma legitimaccedilatildeo que a prima philosophia logo logo lhes viria

assegurar E se Kant apresentava a razatildeo pura como origem de

ilusotildees o que estava em questatildeo ali era apenas o ldquouso especulativordquo da razatildeo e natildeo a razatildeo ela mesma que se comportava muito bem no

domiacutenio da fiacutesica e da matemaacutetica ciecircncias que por si soacutes nunca

teriam suscitado o projeto criacutetico Ora seraacute muito diferente quando

Merleau-Ponty preocupado em restaurar a universalidade da razatildeo for censurar a proacutepria ciecircncia Por isso mesmo esse diagnoacutestico

longe de reeditar na atualidade a antiga e enfadonha suspeita da

ldquoseita ceacuteticardquo contra as pretensotildees da ldquorazatildeo dogmaacuteticardquo eacute formulado

hoje em dia por membros do proacuteprio partido racionalista Diagnoacutestico paradoxal sem duacutevida jaacute que enunciado no momento

histoacuterico em que as ciecircncias mais se expandem e se consolidam Era

exatamente desse paradoxo aparente que Husserl partia em A crise das ciecircncias europeacuteias e a fenomenologia transcendental de 1936 existe sim uma crise da razatildeo apesar do sucesso incontestaacutevel das

ciecircncias positivas (MOURA 2001 p 185-6)

Ora eacute neste sentido que a nosso ver o pensamento husserliano

eacute marcado pela busca constante por uma idealidade objetiva que se

evidencia antes no retorno ao mundo-da-vida do que no embaraccediloso

reducionismo psicologista em sua tarefa de tornar reais os ldquoestados de

consciecircnciardquo fazendo deles nada mais e nada menos do que ldquopedaccedilos da

naturezardquo O diagnoacutestico husserliano natildeo eacute o mesmo daquele elaborado quer

seja pelos existencialismos quer seja pelos pessimismos uma vez que natildeo

podemos negar ainda em Husserl a presenccedila latente de uma feacute na Razatildeo Eacute

esta mesma certeza que o leva a diagnoacutesticos nada simples para os seus

leitores que o conduz agrave certeza de que frente ao objetivismo cientificista

fundamentalmente histoacuterico e natildeo meramente ocasional a fenomenologia

pode se apresentar como uma soluccedilatildeo possiacutevel por seu rigoroso

reconhecimento e resgate daquilo que fora condenado pela cultura europeia

36

ao esquecimento a saber o mundo-da-vida a Lebenswelt Natildeo seraacute tarefa

da fenomenologia por sua vez frente agrave Crise elucidar aquilo que deve ser

ou se entender por ciecircncia o que lhe pode legitimar de iure a sua proacutepria

cientificidade demonstrando que o meacutetodo utilizado por elas ao colocar-se

frente a sua aplicabilidade carece de licitude O caminho eacute bem outro

Trata-se da busca daquilo que se constitui como o fundamento e a gecircnese

desta Crise colocando-se de modo historial em seus desdobramentos no

percurso que fizera com que o pensamento moderno se tornasse o seu

resultado cabal Nesta perspectiva uma criacutetica do psicologismo ultrapassa a

si mesma levando-nos antes agravequilo que o filoacutesofo nos indica como uma

ldquoespeacutecie de enigma do mundordquo o mesmo que as outras eacutepocas natildeo se deram

conta e que por conseguinte natildeo deixa de nos lanccedilar frente ao enigma da

proacutepria subjetividade

A proposta frente agrave Crise eacute que seja modificado o modo pelo

qual o pensamento se coloca em relaccedilatildeo agrave ciecircncia dizendo de modo

husserliano eacute preciso mudar o modo de ldquoestimarrdquo a ciecircncia deixando de ser

a pergunta por sua cientificidade conforme assinalado para se tornar uma

indagaccedilatildeo acerca de seu sentido para a existecircncia humana Natildeo basta

encantar-se com a ciecircncia e a prosperity que traz consigo eacute ateacute mesmo

problemaacutetica a ingecircnua passagem de uma ldquociecircncia de fatordquo para uma

ldquohumanidade de fatordquo O que eacute preciso mostrar eacute que existem questotildees

cruciais a serem feitas e que foram simplesmente excluiacutedas Quais seriam

elas Diraacute Husserl ldquosatildeo as questotildees que versam sobre o sentido ou sobre a

ausecircncia de sentido de toda esta existecircncia humanardquo (HUSSERL 1992 vol

8 p 4 1976 p 10)13 E por que elas satildeo tatildeo importantes assim O que

torna estas questotildees fundamentais no entender do filoacutesofo eacute a capacidade

de atingir o homem moderno em suas relaccedilotildees quaisquer que elas sejam e

no modo pelo qual senhor de si mesmo eacute capaz de dar uma ldquoforma de

razatildeordquo a si mesmo e ao seu mundo-ambiente [sich und seine Umwelt

vernuumlnftig zu gestalten] (HUSSERL 1992 vol 8 p 4 1976 p 10) sem

13 ldquo[] die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseinsrdquo (HUSSERL 1992 vol 8 p 4 1976 p 10)

37

todavia dar-se conta de suas consequecircncias14 Daiacute a preocupaccedilatildeo em

mostrar a partir de sua gecircnese os limites do naturalismo das ciecircncias

Pensando em suas construccedilotildees acaso ldquopodemos viver neste mundo cujo

acontecimento histoacuterico natildeo eacute nada de outro que um encadeamento

incessante de iacutempetos ilusoacuterios e de amargas decepccedilotildeesrdquo (HUSSERL 1992

vol 8 p 4-5 1976 p 11)15

Em outras palavras seguindo as pegadas de Husserl queremos

salientar que se a Crise natildeo eacute a denuacutencia da cientificidade que rege as

ciecircncias eacute porque a crise das ciecircncias eacute sobretudo uma ldquocrise de sentidordquo

Natildeo interessa saber se um determinado modelo ou proposta cientiacutefica

funciona ou natildeo Isso natildeo eacute para Husserl tarefa do filoacutesofo A questatildeo eacute

saber no entanto o que isso significa para a existecircncia humana e como

pode afetaacute-la dado que natildeo teria sentido falar em uma crise na condiccedilatildeo de

derrocada da proacutepria cientificidade cientiacutefica principalmente dados os

brilhantes desdobramentos da fiacutesica Mas como se inserem esses

desdobramentos em um determinado ldquoprojeto de vidardquo Pensando nesta

questatildeo podemos entender porque ao se voltar para os emergentes

desenvolvimentos da ldquoteacutecnicardquo o que estaacute em jogo eacute o modo como ela

funciona na condiccedilatildeo de um mecanismo de aumento das consequecircncias

geradas para a existecircncia humana por um determinado projeto de

14 Eacute o que assinala a Krisis ldquoUnseren nehmen wir von einer an der Wende des letzten Jahrhunderts hinsichtlich der Wissenschaften eingetretenen Umwendung der allgemeinen Bewertung Sie betrifft nicht ihre Wissenschaftlichkeit sondern das was sie was Wissenschaft uumlberhaupt dem menschlichen Dasein bedeutet hatte und bedeuten kann Die Ausschlieszligliechkeit in welcher sich in der zweiten Haumllfte des 19 Jahrhunderts die ganze Weltanschauung des modernen Menschen von den positiven Wissenschaften bestimmen und von der ihr verdankten bdquoprosperityldquo blenden lieszlig bedeutete ein gleichguumlltiges Sichabkehren von den Fragen die fuumlr ein echtes Menschentum die entscheindenden sind Bloszlige Tatsachenwissenschaften machen bloszlige Tatsachenmenschen Die Umwendung der oumlffentlichen Bewertung war insbesondere nach dem Kriege unvermeidlich und sie ist wie wir wissen in der jungen Generation nachgerade zu einer feindlichen Stimmung geworden In unserer Lebensnot ndash so houmlren wir ndash hat diese Wissenschaft uns nichts zu sagen Gerade die Fragen schlieszligt sie prinzipiell aus die fuumlr den in unseren unseligen Zeiten den schicksalsvollsten Umwaumllzungen preisgegebenen Menschen die brennenden sind die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseinsrdquo (HUSSERL 1992 vol 8 p 3-4 1976 p 10) 15 Cf o texto ldquoKoumlnnen wir uns damit beruhingen koumlnnen wir in dieser Welt leben deren geschichtliches Geschehen nichts anderes ist als eine unaufhoumlrliche Verkettung von illusionaumlren Aufschwuumlngen und bitteren Enttaumluschungenrdquo(HUSSERL 1992 vol 8 p 4-5 1976 p 11)

38

cientificidade Neste sentido o que preocupa na metodologia cientificista eacute

que natildeo possui por se dar como um mero instrumento fim em si mesma

pois ao perder o seu caraacuteter teleoloacutegico estaacute impossibilitada de trazer

consigo o sentido da vida e da histoacuteria ao passo que ldquoo investigador perfeito

que tende tambeacutem em direccedilatildeo agrave perfeiccedilatildeo como ser humano nunca perde de

vista as relaccedilotildees que entreteacutem a ciecircncia que ele pratica com os fins gerais e

mais elevados do conhecimento humanordquo (HUSSERL 1982 p 231) Se essa

constataccedilatildeo possui um caraacuteter eacutetico-poliacutetico eacute porque se esmera em

primeiro lugar em um desconforto filosoacutefico gerado fundamentalmente pela

proacutepria noccedilatildeo de razatildeo que estaacute em jogo nestas consideraccedilotildees16 Eacute neste

sentido que para Husserl torna-se necessaacuterio compreender as relaccedilotildees que

se estabelecem entre filosofia e ciecircncia Como se daria especialmente nos

uacuteltimos trabalhos de Husserl essa explicitaccedilatildeo Conforme Olesen pensando

na compreensatildeo husserliana de Galileu seria o de mostrar ldquo[] que a

ciecircncia recobre (filosoficamente) no mesmo movimento em que ela descobre

(cientificamente)rdquo (OLESEN 1994 vol 29 p 12) logo ldquo[] a anaacutelise

husserliana das relaccedilotildees da filosofia e das ciecircncias pode agora apresentar-

se como lsquocriacutetica histoacutericarsquo (Geschichtskritik) []rdquo (OLESEN 1994 vol 29 p

13) Por conseguinte eacute tendo por referecircncia essa ldquocriacutetica histoacutericardquo

[Geschichtskritik] (HUSSERL 1954 p 59) ou antes mediante uma

ldquourspruumlngliche Sinngebungrdquo (HUSSERL 1954 p 46) pelo qual se constitui a

ciecircncia que sua anaacutelise descobre em Galileu ldquoum gecircnio que ao mesmo

16 Eacute a partir desta perspectiva que melhor entendemos as seguintes palavras de Koyreacute em um dos textos de seus Estudos Newtonianos palavras dotadas inconfundivelmente com o sotaque husserliano da Krisis ldquoHaacute algo do qual Newton deve ser sido responsaacutevel ndash ou para dizer melhor natildeo unicamente Newton mas a ciecircncia moderna em geral eacute a divisatildeo de nosso mundo em dois Eu disse que a ciecircncia moderna tinha invertido as barreiras que separavam os Ceacuteus e a Terra que ela uniu e unificou o Universo Isso eacute verdade Mas eu disse tambeacutem que ela fez isso substituindo o nosso mundo de qualidades e de percepccedilotildees sensiacuteveis mundo no qual vivemos amamos e morremos por um outro mundo o mundo da quantidade da geometria reificada mundo no qual embora haja lugar para toda coisa natildeo haacute mais para o homem Assim o mundo da ciecircncia ndash o mundo real ndash afasta-se e se separa inteiramente do mundo-da-vida que a ciecircncia foi incapaz de explicar ndash inclusive por uma explicaccedilatildeo dissolvente que faria dele uma aparecircncia lsquosubjetivarsquo Na verdade estes dois mundos satildeo todos os dias ndash cada vez mais ndash unidos pela praacutexis Mas para a teoria satildeo separados por um abismo Dois mundos o que quer dizer duas verdades Ou nenhuma verdade em absoluto Eacute nisto que consiste a trageacutedia do espiacuterito moderno que lsquoresolveu o enigma do Universorsquo mas tatildeo-somente para substituiacute-lo por um outro lsquoo enigma de si mesmorsquordquo (KOYREacute 1968 p 42-3)

39

tempo (des)-cobre e (re)-cobrerdquo (HUSSERL 1954 p 49 OLESEN 1994 vol

29 p 12) pois

Originaacuterio este sentido natildeo deve todavia ser buscado em um lugar distante aleacutem da histoacuteria visto ser ele mesmo que devemos compreender como passagem saber como passagem do ldquomundo-da-vidardquo agrave ciecircncia De tal modo esta doaccedilatildeo de sentido originaacuterio por onde Galileu descobre a natureza como ldquoscritta in liacutengua matematicardquo recobrindo de uma soacute vez a natureza na medida em que ela eclode diferentemente de um suporte agrave matematizaccedilatildeo Todavia se a ldquodoaccedilatildeo originaacuteria de sentidordquo natildeo se faz alhures senatildeo na proacutepria ciecircncia natildeo cabe agrave ciecircncia enunciar em que esta doaccedilatildeo de sentido eacute doaccedilatildeo Digamos que cabe agrave ciecircncia fazer a passagem do mundo-da-vida agrave ciecircncia mas natildeo descrever essa passagem (OLESEN 1994 vol 29 p 13)

Por conseguinte o que significa entender Galileu a partir de uma

investigaccedilatildeo histoacuterica em um ldquosentido insoacutelitordquo [ungewohnten Sinn] como

acentua a traduccedilatildeo literal17 ou conforme Derrida a partir da investigaccedilatildeo

de uma ldquoproto-histoacuteriardquo [proto-histoire] Por que a atenccedilatildeo husserliana se

voltara para as investigaccedilotildees cientiacuteficas de Galileu18 De acordo com

Husserl ldquocertamente os Antigos conduzidos pela doutrina platocircnica das

Ideias jaacute tinham idealizado os nuacutemeros e as medidas empiacutericas as figuras

espaciais empiacutericas os pontos as linhas as superfiacutecies os corposrdquo19

Inclusive como ainda lembra Husserl

Com a geometria de Euclides tinha aparecido a ideia bastante impressionante de uma teoria dedutiva sistematicamente unificada orientada para um fim ideal de uma grande amplitude e de uma grande elevaccedilatildeo repousando em conceitos e princiacutepios fundamentais

17 Verbo ldquowohnenrdquo gewoumlhnt (habitual acostumado) 18 A este respeito vale salientar que segundo Franccedilois de Gandt Husserl tomara conhecimento de Galileu mediante uma ldquovulgata galileanardquo corrente em sua eacutepoca logo natildeo teria frequentado diretamente os seus trabalhos Por conseguinte a imagem do Galileu husserliano fora traccedilado tendo em vista o empreendimento de neo-kantianos como Hermann Cohen Paul Natorp e Ernst Cassirer (GANDT 2004 p 97-8) Teria saiacutedo inclusive das letras de Cassirer a certeza de que deveria ser pago a Galileu o tributo pela possibilidade de se lanccedilar uma ldquoponte entre Platatildeo e Kantrdquo Mas seria entatildeo a Krisis tatildeo-somente o locus de sedimentaccedilatildeo da recepccedilatildeo de uma determinada imagem inteiramente pronta de Galileu e de uma imagem pautada sobre um ldquofundo kantianordquo Eacute certo que natildeo e o proacuteprio Franccedilois de Gandt eacute levado a reconhecer no modus operandi da Krisis uma deacutemarche que por sua inegaacutevel originalidade natildeo deixara de repercutir com fecundidade na proacutepria histoacuteria das ciecircncias 19 (HUSSERL 1992 p 18 1976 p 26) ldquoDiese hatten zwar schon von der Platonischen Ideenlehre geleitet die empirischen Zahlen Maszliggroumlszligen die emprischen Raumfiguren die Punkte Linien Flaumlchen Koumlrper idealisiertrdquo

40

ldquoaxiomaacuteticosrdquo e progredindo por uma sequecircncia de raciociacutenios apodiacuteticos em suma um conjunto proveniente da racionalidade pura um conjunto de verdades absolutamente incondicionadas apreensiacuteveis diretamente ou indiretamente conjunto que se oferece a si mesmo aos olhares em sua verdade incondicionada (HUSSERL 1992 p 18-9 1976 p 26)20

Todavia se jaacute encontramos tudo isto em Euclides como salienta

Husserl qual seria entatildeo a novidade do pensamento moderno [claacutessico] Jaacute

natildeo havia ali uma conceituaccedilatildeo matemaacutetica da Natureza Na Krisis o

filoacutesofo nos responderia que natildeo De acordo com a Krisis ldquo[] a geometria de

Euclides e geralmente falando a matemaacutetica dos Antigos conhecia apenas

tarefas finitas ela conhecia apenas um a priori que se fecha de modo finitordquo21

Participando deste modo encontrar-se-ia por exemplo o silogismo

aristoteacutelico Neste sentido especialmente a partir de Galileu muda-se o

modo de se aproximar da Natureza Trata-se de um mundo ldquoinfinitordquo aquele

das idealidades que apenas pode ser atingido por um ldquomeacutetodo racional

sistematicamente unificadordquo Natildeo haacute mais sentido em se referir a uma

ldquorealidaderdquo que se aperfeiccediloa agrave medida que se aproxima de ldquoideiasrdquo perfeitas

mas ldquo[] eacute a proacutepria natureza que sob a direccedilatildeo da nova matemaacutetica

encontra-se idealizada ela proacutepria torna-se [] uma multiplicidade

matemaacuteticardquo (HUSSERL 1954 p 20 1976 p 26)22 A matemaacutetica como

instrumento de anaacutelise ao contraacuterio da loacutegica escolaacutestica torna-se

especialmente para Galileu o instrumento da ldquodescobertardquo23 No entanto

20ldquoNoch mehr mit der Euklidischen Geometrie war di houmlchst eindrucksvolle Idee einer auf ein weit-und hochgestecktes ideales Ziel ausgrichteten systematisch einheitlichen deduktiven Theorie erwachsen beruhend auf bdquoaxiomatischenldquo Grundbegriffen und Grund dsaumltzen in apodiktischen Schluszligfolgerungen fortschreitend ndash ein Ganzes aus reiner Rationalitaumlt ein in seiner unbedingten Wahrheit einsehbares Ganzes von lauter unbedingten unmittelbar und mittelbar einsichtigen Wahrheitenrdquo 21 (HUSSERL 1954 p 19 1976 p 26) ldquoAber die Euklidische Geometrie und die alte Mathematik uumlberhaupt kennt nur endliche Aufgaben ein endlich geschlossenes Apriorirdquo (HUSSERL 1992 p 19) 22ldquoIn der Galileischen Mathematisierung der Natur wird nun diese selbst unter der Leitung der neuen Mathematik idealisiert sie wird ndash modern ausgedruumlckt ndash selbst zu einer mathematischen Mannigfaltigkeitrdquo (HUSSERL 1954 p 20) 23 Assim embora reconheccedila o platonismo de Galileu do mesmo modo que Koyreacute Husserl sabe que mais do que uma admiraccedilatildeo o platonismo ao menos como fora recebido torna-se a base e o alicerce de um conhecimento marcado pela objetividade e a segura instabilidade das formas Nessa perspectiva a matemaacutetica natildeo eacute a expressatildeo de um amor pela Antiguidade que se revela no conhecimento de sua imagiacutestica mas vem a ser entendida

41

como se daria em Galileu a gecircnese de uma compreensatildeo matemaacutetica da

Natureza

Segundo Galileu a partir da nossa experiecircncia sensiacutevel eacute

possiacutevel identificar elementos tanto simples quanto absolutos que em

seguida podem ser traduzidos para uma linguagem matemaacutetica24 O

interessante eacute que apoacutes ter feito isto logo natildeo precisamos mais da proacutepria

experiecircncia Seraacute a matemaacutetica pura que ditaraacute as etapas posteriores Por

conseguinte natildeo haveria problema algum se nesta etapa algumas

hipoacuteteses natildeo se confirmassem empiricamente A demonstraccedilatildeo ou

verificaccedilatildeo cientiacutefica realizada a partir da experiecircncia seria simplesmente

um recurso facultativo para se usar com aqueles que natildeo confiam na

universalidade da matemaacutetica Contudo seraacute a distinccedilatildeo galileana herdada

de Kepler ldquoentre o que no mundo eacute absoluto objetivo imutaacutevel e

matemaacutetico e o que eacute relativo subjetivo flutuante e sensorialrdquo (BURTT

1991 p 67) que marcaraacute sua metafiacutesica Em outros termos eacute a separaccedilatildeo

do que haacute de manifesto em um fenocircmeno fiacutesico em ldquoqualidades primaacuteriasrdquo e

ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo que nos faraacute encontrar tambeacutem em Galileu um

dos alicerces do mundo moderno [claacutessico] aleacutem da fiacutesica newtoniana que

como salientaria Koyreacute teria dividido o mundo em dois

De um lado encontramos ldquoqualidades primaacuteriasrdquo que se referem

a tudo o que haacute de matematicamente traduziacutevel em um fenocircmeno Por outro

lado encontramos tambeacutem ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo que se referem a

experiecircncias como a sensaccedilatildeo Enquanto a primeira seria real concreta a

segunda natildeo sendo tatildeo real quanto a primeira encontrar-se-ia apenas

limitada agrave nossa subjetividade Aleacutem disso encontramos em Galileu ndash

semelhante em certos aspectos a Platatildeo ndash aqueacutem do mundo da exatidatildeo

matemaacutetica a distinccedilatildeo de um mundo de ldquoopiniotildees cambiantesrdquo e de um

como a proacutepria estrutura do Universo Essa eacute a razatildeo mediante a qual se entende tanto a substituiccedilatildeo da experiecircncia sensiacutevel por um mundo preacutevio ndash como diria Nietzsche por um Hinterwelt ndash como o atomismo galileano que tornava Platatildeo e Demoacutecrito estranhamente os fundamentos de uma mesma realidade 24 Eacute assim que conforme Burtt ldquovisto em sua totalidade o meacutetodo de Galileu pode ser decomposto em trecircs etapas intuiccedilatildeo ou resoluccedilatildeo demonstraccedilatildeo e experiecircncia empregando-se em cada caso seus termos prediletosrdquo (BURTT 1991 p 65)

42

mundo da ldquoexperiecircncia sensorialrdquo Assim ldquoos elementos confusos e

inconfiaacuteveis na figuraccedilatildeo sensorial da Natureza satildeo de algum modo efeitos

dos proacuteprios sentidosrdquo (BURTT 1991 p 67) pois ldquoeacute porque o quadro mental

resultante passou pelos sentidos que ele possui todas essas caracteriacutesticas

confusas e enganosasrdquo (BURTT 1991 p 67) Como podemos notar enquanto

as qualidades secundaacuterias natildeo passam de meros efeitos dos nossos sentidos

as primaacuterias seriam as que na Natureza satildeo de fato reais Como ressalta o

proacuteprio Galileu

() natildeo acredito que os corpos externos para provocar em noacutes esses gostos esses cheiros e esses sons requeiram mais que o

tamanho a figura o nuacutemero e o movimento vagaroso ou raacutepido e

julgo que se os ouvidos a liacutengua e as narinas fossem suprimidas a

figura os nuacutemeros e os movimentos certamente permaneceriam mas natildeo os odores nem os gostos nem os sons os quais sem o

animal vivo natildeo creio que constituam mais que nomes assim como

as coacutecegas natildeo satildeo nada mais que um nome se a axila ou a

membrana nasal fossem suprimidas (GALILEU 1942 vol IV p 333)25

A partir destas consideraccedilotildees portanto podemos entender as

razotildees que levaram Husserl a notar em Galileu aquele ldquosentido originaacuteriordquo

[urspruumlngliche Sinngebung] pelo qual se institui a ciecircncia claacutessica Tomando

Galileu como referecircncia a pretensatildeo husserliana eacute a de explicitar a cisatildeo

presente em seu tempo entre as ldquociecircncias do Espiacuteritordquo e as ldquociecircncias da

Naturezardquo que ao conduzir a um labirinto no qual a verdade se encontrava

fundada em teorias antagocircnicas acabava por nos situar frente a uma

espeacutecie de esquizofrenia da cultura26 Em especial nas Ideen II ao tratar da

25 ldquoPer lo che vo io pensando che questi sapori odori colori etc per la parte del suggetto nel quale ci par che riseggano non sieno altro che puri nomi ma tengano solamente lor residenza nel corpo sensitivo sigrave che rimosso lanimale sieno levate ed annichilate tutte queste qualitagrave tuttavolta perograve che noi sigrave come gli abbiamo imposti nomi particolari e differenti da quelli de gli altri primi e reali accidenti volessimo credere chesse ancora fussero veramente e realmente da quelli diverserdquo (GALILEU 1942 vol IV p 333) 26 Husserl reconhece sua diacutevida para com Dilthey ldquoo primeiro que observou as diferenccedilas essenciais que estatildeo em jogo aqui e o primeiro tambeacutem que tomou uma consciecircncia viva do fato de que a psicologia moderna ciecircncia natural do psiacutequico era incapaz de assegurar agraves ciecircncias concretas do espiacuterito a fundaccedilatildeo cientiacutefica que elas exigiamrdquo (HUSSERL 1952 p 175 1950 p 175) Contudo a seu ver ldquounicamente uma investigaccedilatildeo radical orientada rumo agraves fontes fenomenoloacutegicas da constituiccedilatildeo das ideias da natureza do corpo proacuteprio da alma e das diferentes ideias de ego e de pessoa pode aqui fornecer as explicitaccedilotildees

43

ldquoConstituiccedilatildeo do Mundo do Espiacuteritordquo o filoacutesofo nos acentua que a cultura

de um modo geral ou como ele mesmo diraacute ldquonossa visatildeo de mundo por

inteirordquo encontra-se determinada em sua ldquoessecircnciardquo e em seu ldquofundamentordquo

pela separaccedilatildeo entre o ldquomundo da naturezardquo e o ldquomundo do espiacuteritordquo ldquo()

entre uma teoria da alma proacutepria da ciecircncia de um lado e de outro uma

teoria da pessoa (teoria do ego egologia) assim como uma teoria da

sociedade (teoria da comunidade)rdquo (HUSSERL 1952 p 175 1950 p 246)

Encontramos pois seguindo em seus pressupostos uma variante leibniziana

da separaccedilatildeo entre quaestiones de facto e quaeligstiones de iure uma ciecircncia

que por si mesma natildeo conseguindo explicitar os fundamentos nos quais se

encontra alicerccedilada deixou no esquecimento o solo preacutevio de onde emergira

a saber o mundo-da-vida a Lebenswelt Daiacute por exemplo a necessidade de

uma nova psicologia de uma psicologia que natildeo sendo psicoloacutegica natildeo

compartilhe tambeacutem da incapacidade das ciecircncias de assegurar ldquoagraves ciecircncias

concretas do espiacuterito a fundaccedilatildeo cientiacutefica que elas exigemrdquo (HUSSERL 1952

p 175 1950 p 246) Como jaacute salientava o filoacutesofo em La philosophie comme

science rigoureuse

As ciecircncias da natureza natildeo nos desvelaram em nenhum ponto o misteacuterio da realidade atual da realidade em que vivemos agimos e

estamos A crenccedila geral de que tal eacute sua funccedilatildeo e que elas ainda natildeo estatildeo bastante avanccediladas para preenchecirc-la a opiniatildeo segundo a

qual elas poderiam por princiacutepio realizaacute-la revelou-se aos olhares

profundos como supersticcedilatildeo (HUSSERL 1993 p 170)

Por conseguinte mantendo o foco em Galileu conforme vimos

natildeo se daacute por acaso o empreendimento husserliano em natildeo centrar-se

unicamente naquela geometria ldquointeiramente prontardquo que lhe fora entregue

Nem mesmo eacute desconhecida do filoacutesofo a ameaccedila anacrocircnica que assombra

as suas reflexotildees Afinal natildeo estaria o pensador no direito de interrogar

antes de tudo ldquoo sentido originaacuterio da geometria que nos eacute entregue e nunca

deixa de advir com este mesmo sentido ndash geometria que natildeo deixa de advir e

ao mesmo tempo de se edificar ao permanecer atraveacutes de todas as suas

decisivas e ao mesmo tempo dar sua fecundidade e seu direito aos motivos plenamente vaacutelidos de todas as investigaccedilotildees desse gecircnerordquo (HUSSERL 1950 p 247)

44

novas formas na condiccedilatildeo de lsquoarsquo geometriardquo (HUSSERL 1992 p 365 1976

p 173 ndash traduccedilatildeo modificada por noacutes) 27 De acordo com Husserl a razatildeo e o

pensamento natildeo satildeo transluacutecidos pelo contraacuterio estatildeo sempre em processo

Neste sentido ao situarmos ldquoa geometriardquo em um horizonte histoacuterico eacute

preciso assinalar que natildeo se trata de um processo de determinaccedilatildeo mas de

um longo processo de indeterminaccedilatildeo haja vista que a ldquoconcreccedilatildeo histoacutericardquo

do mundo-da-vida natildeo se daacute por um mecanismo de mundificaccedilatildeo no qual o

todo seria simplesmente a soma das partes ela se encontra ao mesmo

tempo conforme veremos adiante ao falar da Terra como archeacute originaacuteria

em toda parte e em parte alguma Mas o que seria essa concreccedilatildeo A partir

dos anos 30 essa palavra passa a se encontrar nas letras de Husserl com

uma maior frequecircncia28 indicando as vaacuterias camadas que constituem a

nossa histoacuteria A histoacuteria eacute um todo constituiacutedo por camadas um modo de

reunir vaacuterios horizontes e assim por meio de junccedilotildees nascidas de uma

relaccedilatildeo entre o todo e a parte formarem uma realidade uma realidade que eacute

composta por uma concreccedilatildeo de vaacuterios horizontes Eacute assim que Husserl

vislumbra no mundo-da-vida o horizonte maior do qual se tornam possiacuteveis

todos os outros horizontes todas as outras concreccedilotildees Na concreccedilatildeo

temporal do mundo-da-vida encontramos o a priori de todas as outras

concreccedilotildees trazendo consigo em seu fundo tanto o horizonte da

subjetividade transcendental como da subjetividade relativa tanto da

transcendentalidade como da historicidade sendo por conseguinte o solo

concreto dos vaacuterios horizontes das vaacuterias relaccedilotildees de junccedilatildeo que constituem

a nossa histoacuteria Um objeto portanto natildeo eacute simplesmente um em-si posto

27 ldquoEs gilt vielmehr auch ja vor allem zuruumlckzufragen nach dem urspruumlnglichen Sinn der uumlberlieferten und weilterhin mit eben diesem Sinn fortgeltenden Geometrie ndash fortgeltend und zugleich fortgebildet und in allen neuen Gestalten bdquodieldquo Geometrierdquo (E Husserl 1992 p 365 1976 p 173) 28 No latim concreccedilatildeo eacute oriunda do verbo cōncrēscŏ [cōncrēscĕrĕ] significando crescer fazer-se espesso aumentar formar-se mediante uma agregaccedilatildeo de partes Por sua vez cōncrētŭs seria aquilo que foi formado por uma agregaccedilatildeo de partes composto por muitos elementos diferindo-se de ābstrăctŭs quer dizer o que foi tirado de o que foi separado Cōncrētio Cōncrētĭōnĭs eacute pois uma agregaccedilatildeo uma condensaccedilatildeo uma composiccedilatildeo eacute aquilo que foi formado por uma agregaccedilatildeo de partes

45

diante do sujeito mas antes uma rede de horizontes o mesmo valendo para

objetos da cultura como eacute o caso da geometria Daiacute a confissatildeo do filoacutesofo

Inevitavelmente nossas consideraccedilotildees conduziratildeo rumo aos

problemas mais profundos de sentido problemas da ciecircncia e da

histoacuteria da ciecircncia em geral e inclusive em uacuteltima instacircncia de uma

histoacuteria universal em geral embora nossos problemas e nossas explicitaccedilotildees que dizem respeito agrave geometria galileana detecircm uma

significaccedilatildeo exemplar (HUSSERL 1992 p 365 1976 p 174)29 [E o

que mostraraacute este exemplo Acrescenta Husserl] Aqui um exemplo

mostraraacute com evidecircncia em primeiro lugar que nossas investigaccedilotildees satildeo precisamente histoacutericas em um sentido insoacutelito isto eacute segundo

uma direccedilatildeo temaacutetica que daacute acesso a problemas de fundo

totalmente alheios agrave histoacuteria (Historie) habitual problemas que em

sua ordem satildeo tambeacutem indubitavelmente histoacutericos (historische) (HUSSERL 1992 p 365 1976 p 174)

Husserl remete agrave Lebenswelt na condiccedilatildeo de horizonte histoacuterico

tanto o transcendental como o histoacuterico conduzindo o problema da

horizontalidade para um solo preacutevio Falar em concreccedilatildeo histoacuterica e buscar

sua gecircnese natildeo se trataraacute portanto da busca pela materialidade pela qual

as coisas satildeo constituiacutedas mas do modo como suas partes se congregam

dado que como nos ensina a etimologia toda concreccedilatildeo seraacute sempre a

reuniatildeo de coisas distintas diversas Logo a Lebenswelt eacute tatildeo concreta como

qualquer ente do universo fiacutesico como uma cadeira uma aacutervore uma

montanha A sutileza estaacute em mostrar que o mundo-da-vida natildeo eacute um todo

constituiacutedo pela soma das partes tal como seria o mundo do fiacutesico mas o

horizonte maior que possibilita inclusive o universo fiacutesico que faz com que

as outras concreccedilotildees que se datildeo em seu interior sejam sempre relativas A

pergunta pela geometria pelo universo da fiacutesica e das ciecircncias eacute sobretudo

a pergunta pelo horizonte pelo solo pelo fundo que fez deles uma concreccedilatildeo

em nosso mundo sabendo ser histoacuterico este horizonte que nos permite

perceber um ente como componente do mundo o que significa dizer que haacute

uma concreccedilatildeo originaacuteria na qual todas as outras satildeo possiacuteveis o que faz da

29ldquoNotwendig werden unsere Betrachtungen an tiefste Sinnesprobleme heranfuumlhren Probleme der Wissenschaft und Wissenschftsgeschichte uumlberhaupt ja schlieszliglich einer Universalgeschichte uumlberhaupt so daszlig unsere die Galilesche Geometrie betreffenden Probleme und Auslegungen eine exemplarische Bedeutung erhaltenrdquo (HUSSERL 1992 p 365 1976 p 174)

46

Lebenswelt frente agraves geometrias de Euclides e de Galileu diante do

naturalismo das ciecircncias antes de tudo um a priori um solo originaacuterio

O direcionamento a Galileu por conseguinte implica a pergunta

por uma geometria que se torna concreta mediante a histoacuteria dado que eacute

proacuteprio das diversas concreccedilotildees que compotildeem o nosso mundo se tornarem

concretas na forma de histoacuteria o que faz dela uma categoria ontoloacutegica do

mundo-da-vida Consequentemente natildeo estaacute em jogo apenas uma histoacuteria

relativa ldquoa histoacuteria da geometriardquo mas o proacuteprio sentido que faz da

historicidade uma categoria capaz de transcender inclusive uma ciecircncia da

histoacuteria Encontramo-nos pois diante de um outro modo aqueacutem da criacutetica

de se fazer histoacuteria encontramo-nos pois frente a um caminho arqueoloacutegico

no qual se busca em primeiro lugar a gecircnese de sentido que tornam as

concreccedilotildees de um ente ou de um conceito possiacuteveis O movimento

arqueoloacutegico que nos leva ao mundo-da-vida eacute um movimento que nos

mostra o modo como percebemos o sentido de tudo aquilo que eacute fazendo

com que o nosso mundo contra o naturalismo das ciecircncias e seus

movimentos de geometrizaccedilatildeo da Natureza natildeo se resuma no universo

fiacutesico mas seja antes a luz na qual toda manifestaccedilatildeo se torna possiacutevel

Ora eacute neste sentido que para Husserl torna-se justificada a

necessidade de compreender e elucidar as relaccedilotildees existentes entre este

mundo entendido como um horizonte histoacuterico originaacuterio e o mundo

cientiacutefico entre ciecircncia e vida A pergunta pelo sentido da ciecircncia claacutessica

implica na fenomenologia husserliana uma pergunta pelas condiccedilotildees a

priori que tornaram essa ciecircncia possiacutevel assim como toda e qualquer

ciecircncia possiacutevel tendo em vista um mundo no qual a ciecircncia ainda natildeo

tenha estendido seu reino e no qual em contrapartida ela se encontra

situada Eacute mediante a tal questionamento que a Lebenswelt se insere como

solo preacutevio e como horizonte de toda evidecircncia solo cujo conhecimento as

ciecircncias deixaram escapar e que paradoxalmente ldquo() poderia fornecer

sentido e validade agraves formaccedilotildees teoreacuteticas do saber objetivo em geral e ao

mesmo tempo lhe fornecer a dignidade de um saber a partir do fundamento

uacuteltimordquo (HUSSERL 1976 p 135) De acordo com o filoacutesofo em outros

termos eacute preciso encarar a ciecircncia dentre os vaacuterios projetos culturais

47

presentes na histoacuteria sendo um dos modos pelos quais o mundo-da-vida se

encontra revestido Logo a Lebenswelt eacute o campo no qual se torna possiacutevel

toda e qualquer evidecircncia O que se pretende eacute pois lembrar agraves ciecircncias

que anterior ao campo da ἐπιστήmicroη [episteacuteme] haacute primeiramente um mundo

doacutexico o mundo de nossas primeiras evidecircncias natildeo lhe cabendo postular

ser portadora de toda evidecircncia possiacutevel Haacute no retorno ao mundo-da-vida

um caminho de integraccedilatildeo dos vaacuterios horizontes e evidecircncias que se

manifestam na Lebenswelt inclusive o mundo preacute-cientiacutefico haja vista que

se haacute um comeccedilo da verdade eacute ali que ele se encontra natildeo nas matemaacuteticas

e na ciecircncia em geral mas em nossa relaccedilatildeo originaacuteria com o mundo Daiacute o

direcionamento agrave percepccedilatildeo e a um ego encarnado e preacute-reflexivo no qual

tal relaccedilatildeo se daacute anterior agrave reflexatildeo em um horizonte corporal pelo qual

mediante siacutenteses passivas constituiacutemos como nosso campo de existecircncia

Eacute neste sentido que para Husserl a Lebenswelt oferece sobretudo uma

unidade ao saber uma vez que todas as ciecircncias particulares fazem parte de

um sistema global de sentido perdendo assim a sua pretensa e absoluta

autonomia e rompendo de vez com as ilusotildees do objetivismo cientificista

Natildeo haacute pois conhecimento sem referecircncia a uma subjetividade originaacuteria

dado que toda relaccedilatildeo com um objeto leva consigo as marcas de uma gecircnese

subjetiva que encontra em um mundo previamente dado o seu horizonte um

mundo que eacute ao mesmo tempo solo fundante [Bodenfunktion] e caminho

metodoloacutegico um pensar retroativo [Leitfadenfunktion] que nos leva agrave sua

gecircnese em noacutes mesmos

Por conseguinte natildeo podemos nos esquecer de que o

direcionamento agrave tematizaccedilatildeo da Lebenswelt como um mundo anterior agrave

ciecircncia situa-se no horizonte de uma criacutetica ao objetivismo das ciecircncias

negando-lhes por conseguinte a pretensatildeo de se compreenderem como uma

ontologia geral A ciecircncia natildeo estaacute acima deste mundo mas nele se encontra

incluiacuteda sendo que ateacute mesmo os seus juiacutezos remetem no final das contas

a uma experiecircncia originaacuteria Como jaacute nos assinalava o sect105 da Formale und

transzendentale Logik a verdade do cientista natildeo eacute mais autecircntica do que a

verdade do comerciante cada uma em seu campo e em sua relatividade por

48

natildeo originar-se de uma mesma intenccedilatildeo natildeo podem ser consideradas

absolutas uma em detrimento da outra natildeo havendo uma verdade em si O

problema da ciecircncia estaacute em crer que ldquoseja necessaacuteriordquo existir ldquouma

evidecircncia que apreenda a verdade de modo absoluto () pois do contraacuterio

natildeo poderiacuteamos ter nenhuma verdade nem ciecircncia alguma nem poderiacuteamos

ter a pretensatildeo de tecirc-lasrdquo (HUSSERL 1962b p 287) Por conseguinte

O comerciante tem sua verdade mercantil natildeo eacute em relaccedilatildeo agrave sua situaccedilatildeo uma boa verdade a melhor que pode servi-lo Acaso natildeo eacute

uma verdade aparente porque o cientista julgando com outra

relatividade distinta com outros objetivos e ideias busca outras

verdades com as que podemos fazer muito mais coisas embora natildeo possamos fazer precisamente o que se necessita no mercado

Devemos deixar de nos cegarmos com as ideias e meacutetodos

regulativos das ciecircncias ldquoexatasrdquo particularmente na filosofia e na

loacutegica como se seu caraacuteter ldquoem sirdquo fosse uma norma efetivamente absoluta tanto no que diz respeito ao ser objetivo como agrave verdade

Essa atitude significa na realidade por causa das aacutervores natildeo ver o

bosque significa passar por alto os aspectos infinitos da vida e de

seu conhecimento os aspectos infinitos do ser relativo que soacute eacute racional nos limites dessa relatividade passar por alto com tal

realizar um resultado cognoscitivo grandioso mas de significaccedilatildeo

teleoloacutegica muito limitada (HUSSERL 1962b p 287-8)

Haacute portanto um caminho retroativo que conduz os juiacutezos da

loacutegica e da matemaacutetica ao juiacutezo da experiecircncia a um mundo no qual se

situam os juiacutezos evidentes da intuiccedilatildeo imediata Mais do que uma negaccedilatildeo

da ciecircncia eacute a explicitaccedilatildeo de um a priori subjetivo de um a priori da

Lebenswelt que se faz presente nos trabalhos do cientista Logo a

metodologia cientiacutefica assim como fora compreendida desde Galileu natildeo

pode ser absoluta nem ser tida como o verdadeiro ser mas antes haacute que se

levar em conta ldquo() o mundo da experiecircncia sensiacutevel que sempre vem dado

de antematildeo como evidecircncia inquestionada ()rdquo (HUSSERL 1954 p 77

1976 p 80) aquela a partir da qual se alimenta toda vida mental quer seja

cientiacutefica ou natildeo cientiacutefica Nisto encontra-se o paradoxo de Husserl o

ensejo de fundamentar a proacutepria relativizaccedilatildeo que ocorrendo

historicamente natildeo acontece sem fundamento Logo a verdade encontra-se

em sua gecircnese o conhecimento eacute algo que natildeo se faz sem o a priori da

correlaccedilatildeo universal sem o modo de visar da consciecircncia daiacute natildeo haver

49

uma verdade absoluta mas antes uma ldquoverdade viva que proveacutem das origens

viventes da vida absolutardquo (HUSSERL 1976 p 289) Natildeo se trata de um

modo falso de absolutizar a verdade mas de modo diverso compreendecirc-la

em seus horizontes uma vez que ldquotemos a verdade em uma intencionalidade

viva (que se chama ldquoevidecircnciardquo) cujo conteuacutedo permite distinguir entre

lsquoefetivamente dadorsquo e lsquoantecipadorsquo ou lsquoretidorsquo ou lsquoapresentado como algo

alheio ao eursquo etcrdquo (HUSSERL 1976 p 289)

Para Husserl por fim neste processo de criacutetica da ciecircncia

encontra-se a ideia de que cabe agrave filosofia reencontrar o seu teacutelos aquele

que tem sua gecircnese no universo grego o reencontro do pathos da admiraccedilatildeo

pelo qual se realiza a atitude teoreacutetica Em outros termos para Husserl o

iniacutecio da filosofia se daacute pelo que constitui o seu proacuteprio teacutelos a saber o

desejo pela atitude teoreacutetica fundada no ldquoideal da teoria purardquo [reine Theoria]

(HUSSERL 1976 p 331) que nasce justamente de uma paixatildeo teoacuterica cuja

perda por sua vez eacute a explicitaccedilatildeo deste estado de crise Neste sentido

como salienta Slatman ldquoo meacutetodo histoacuterico de Husserl eacute pois teleoloacutegico

ele explica o decliacutenio da cultura europeia como a perversatildeo da razatildeo na

histoacuteriardquo (SLATMAN 2001 p 53) Neste sentido de modo inverso ldquo[] o

renascimento de uma cultura que estabelecesse relaccedilotildees com a teoria pura

seria possiacutevel por uma orientaccedilatildeo na direccedilatildeo do teacutelosrdquo (SLATMAN 2001 p

53)30 Contudo a seu modo o ensinamento da Krisis assume a tarefa de

mostrar natildeo meramente a partir de uma explicaccedilatildeo cronoloacutegica e causal ndash a

qual se encontra por sua vez em uma espeacutecie de projeto de matematizaccedilatildeo

30 Em contrapartida vale dizer que para Merleau-Ponty tal concepccedilatildeo natildeo deixaria de apresentar problemas Quais as razotildees ldquoPrimeiramente Husserl situa no centro da histoacuteria o animal rationale Eacute a racionalidade que determina a histoacuteria e de certo modo natildeo se pode mais ver como a histoacuteria mesma eacute constitutiva para a gecircnese da idealidade objetiva ou para a gecircnese da tradiccedilatildeo em geral A histoacuteria eacute considerada como o desenvolvimento da racionalidade segundo uma perspectiva teleoloacutegica Em segundo lugar a filosofia teleoloacutegica concebe toda histoacuteria da filosofia de um soacute ponto de vista desde entatildeo ela nos impede uma investigaccedilatildeo sobre sua proacutepria relaccedilatildeo com a histoacuteria Com efeito Husserl natildeo explica sua relaccedilatildeo vis-agrave-vis com a histoacuteria Longe disso explica a partir de sua proacutepria ideia da filosofiardquo (SLATMAN 2001 p 53) O modo como a histoacuteria se apresenta a Merleau-Ponty marcaria talvez neste aspecto a discordacircncia com Husserl Natildeo haveria para usar uma expressatildeo de Slatman ldquouma maneira lsquonatildeo-histoacutericarsquo de abordar a histoacuteriardquo mas a busca de uma ldquohistoacuteria vivardquo Logo o que fundamenta a criacutetica natildeo eacute um direcionamento negativo ao passado mas um redimensionamento mesmo havendo um retorno ao passado a partir do presente

50

da natureza ndash o geacutermen e a gecircnese de uma visatildeo moderna [claacutessica] de

mundo por sua vez entendidos como uma genealogia histoacuterica do

objetivismo cientificista Daiacute que a preocupaccedilatildeo husserliana seja antes a de

se dirigir a uma ldquoquestatildeo em retornordquo [Ruumlckfrage] sobre o ldquo[] o sentido mais

originaacuterio segundo o qual a geometria nasceu um dia ltegt desde entatildeo

permaneceu presente como uma tradiccedilatildeo milenar ainda permanece para

noacutes e se manteacutem no que haacute de vivo em uma tradiccedilatildeo incessanterdquo (HUSSERL

1992 p 175 1976 p 365)31 O que seria este ldquocaminho retroativordquo esta

ldquoquestatildeo-em-retornordquo Vejamos a seguir

13 A Ruumlckfrage e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica a Lebenswelt como proposta de superaccedilatildeo do naturalismo como Ursprungsklaumlrung como retorno ao mundo preacute-copernicano

De acordo com Husserl conforme jaacute indicamos a Lebenswelt eacute o

solo no qual todas as formas de concreccedilatildeo assim como todos os modos de

evidecircncia satildeo possiacuteveis O mundo de nossas primeiras evidecircncias o ponto

de partida de todo e qualquer outro mundo seraacute o ldquomundo doacutexicordquo O iniacutecio

mesmo da reflexatildeo encontra-se nesse mundo diria Husserl Ur-mundus Mas

uma questatildeo permanece se em meio agrave Lebenswelt que se constitui em

camadas vivemos em vaacuterias evidecircncias ingecircnuas como podemos trazecirc-las agrave

reflexatildeo O que Husserl propotildee Aqui estaacute a tarefa da fenomenologia da

Krisis como podemos pois explicitar este mundo originaacuterio que fora

soterrado pelo naturalismo das ciecircncias Para Husserl a resposta estaria em

um ldquoquestionamento retroativordquo [Ruumlckfrage] uma reformulaccedilatildeo da epocheacute A

partir de agora o iniacutecio dessa nova versatildeo da epocheacute fenomenoloacutegica

encontra-se no cotidiano e principalmente apoacutes ter estabelecido um diaacutelogo

com ele Haacute aqui um trabalho ldquoarqueoloacutegicordquo no qual as camadas satildeo

recuperadas apenas a partir de um diaacutelogo de um trabalho criacutetico Husserl

aponta para uma possibilidade de compreensatildeo dos diversos mundos que

31ldquo([] Unser Interesse sei stattdessen die Ruumlckfrage nach dem urspruumlnglichsten Sinn in welchem die Geometrie dereinst geworden ist ltundgt seitdem als Tradition der Jahrtausende da war noch fuumlr uns da und in lebendiger Fortarbeit ist)rdquo (HUSSERL 1992 p 175 1976 p 365)

51

compotildeem o mundo-da-vida a Lebenswelt sendo descartado qualquer

ldquorelativismo absolutordquo (JOSGRILBERG 2001)

Ora lembremo-nos de que jaacute no prefaacutecio da Pheacutenomeacutenologie de

la perception indagando-se sobre o sentido do movimento fenomenoloacutegico

Merleau-Ponty se aproximava dos temas basilares de Husserl a ldquoreduccedilatildeordquo e

a ldquointencionalidade da consciecircnciardquo com uma atitude interrogativa Nesse

texto ao propor um retorno agrave experiecircncia perceptiva Merleau-Ponty

encarava a reduccedilatildeo como um meio de fugir de uma filosofia da consciecircncia

indicando os estaacutegios da reflexatildeo desde a sua camada preacute-reflexiva Assim

sendo ele rejeitava a reduccedilatildeo entendida a partir do que considerava ser uma

atitude idealista pois ldquoum idealismo transcendental consequente despoja o

mundo de sua opacidade e de sua transparecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1945

p VI) embora a intenccedilatildeo husserliana direcionada para o Cogito fosse

encontrar um pensamento radical que a partir da noccedilatildeo de Sinngebung

(operaccedilatildeo ativa de significaccedilatildeo) fosse orientada a um cogitatum Sentindo a

enigmaticidade da reduccedilatildeo Merleau-Ponty dizia que

Sem duacutevida natildeo existe questatildeo em relaccedilatildeo agrave qual Husserl tenha despendido mais tempo em compreender-se a si mesmo ndash tambeacutem natildeo existe questatildeo agrave qual ele tenha mais frequentemente retornado jaacute que a ldquoproblemaacutetica da reduccedilatildeordquo ocupa nos ineacuteditos um lugar importante Durante muito tempo e ateacute em textos recentes a reduccedilatildeo era apresentada como o retorno a uma consciecircncia transcendental diante da qual o mundo se desdobra em uma transparecircncia absoluta animado do comeccedilo ao fim por uma seacuterie de apercepccedilotildees que caberia ao filoacutesofo reconstituir a partir de seu resultado (MERLEAU-PONTY 1945 p V)

A primeira versatildeo da epocheacute husserliana caracterizava-se por ser

uma suspensatildeo do ldquomundo naturalrdquo Todavia vale salientar que nesta

primeira versatildeo jaacute encontraacutevamos duas reduccedilotildees a ldquoreduccedilatildeo eideacuteticardquo

presente em seus primeiros trabalhos e a ldquoreduccedilatildeo transcendentalrdquo

especialmente a partir de suas Ideen zu einer reinen Phaumlnomenologie und

phaumlnomenologischen Philosophie [Ideias relativas a uma Fenomenologia pura

e uma Filosofia fenomenoloacutegica] aleacutem dos estudos reunidos em Erste

Philosophie [Filosofia Primeira] Em linhas gerais a ldquoreduccedilatildeo eideacuteticardquo eacute

marcada pelo ensejo de encontrar a essecircncia do fenocircmeno Ela tem iniacutecio

52

com a ldquocolocaccedilatildeo entre parecircntesisrdquo de todas as concepccedilotildees que se tem acerca

do mundo diferenciando-se da suspensatildeo cartesiana por se tratar tatildeo-

somente de uma suspensatildeo do juiacutezo A seguir por meio da ldquovariaccedilatildeo

eideacuteticardquo busca-se todas as perspectivas possiacuteveis de serem referendadas ao

fenocircmeno ateacute encontrar aquela que lhe seria constante a saber a proacutepria

essecircncia do fenocircmeno O problema que se procurava resolver eacute de que modo

sendo agora relativa agrave consciecircncia poderia o ser do fenocircmeno manter a sua

unidade Em outras palavras como superar Platatildeo sem retroceder a Leibniz

e por fim cumprir a tarefa de superar o psicologismo Ao retomar esta

questatildeo nas Ideen Husserl procurava descrever as essecircncias como

pertencentes diferentemente de Platatildeo agrave proacutepria consciecircncia logo estando

elas estruturadas em uma vivecircncia intencional intersubjetivamente possiacutevel

de ser experienciada Eacute a busca unicamente das essecircncias e natildeo dos fatos

em sua individualidade concreta Nesta perspectiva abre-se pois a via de

acesso a um mundo de essecircncias no qual a anaacutelise do eidos marcaria a

diferenccedila entre aspectos tanto particulares como contingentes da experiecircncia

e suas estruturas permanentes o que viria a se constituir como objeto da

intuiccedilatildeo intencional

Em contrapartida procurando ser radical Husserl contudo

inseria tambeacutem a ldquoreduccedilatildeo transcendentalrdquo na qual se visaria natildeo soacute deixar

em suspenso o mundo natural mas aleacutem disso ldquodirigir-serdquo agrave subjetividade

transcendental Por conseguinte ldquo[] o mundo das essecircncias que a primeira

reduccedilatildeo abria se fecha e a ontologia permanece uma simples virtualidade da

fenomenologiardquo (JORLAND 1981 p 30) Esta reduccedilatildeo esperava por fim

revelar a origem das formas de experiecircncia na atividade egoica de uma

subjetividade pura Apesar de seu valor onde estaria o problema desta

reduccedilatildeo Na tese metafiacutesica que lhe acompanhava naquilo que o sect49 das

Ideen (HUSSERL 1950 p 160) resumia bem ldquoo ser imanente eacute um ser

absoluto e o mundo das coisas transcendentes se refere inteiramente a uma

consciecircncia atualrdquo (HUSSERL 1950 p 160) Logo se eacute certo que natildeo haacute

mundo sem consciecircncia eacute certo tambeacutem que natildeo haacute consciecircncia sem

mundo Por conseguinte na segunda reduccedilatildeo proposta por Husserl a

Fenomenologia seria sobretudo uma ldquofenomenologia de essecircnciasrdquo

53

(HUSSERL 1950 p 160) E qual a razatildeo A este respeito Jorland parece

nos dar a resposta

Ao nos transportar para o interior dos fenocircmenos para intuicionar sua essecircncia ao ordenar o pensamento que visa (conceito) e o pensamento que vecirc (intuiccedilatildeo) este meacutetodo autoriza o estudo das conexotildees essenciais entre os fenocircmenos (Wesenzusammenhaumlnge) e suas leis (Wesensgesetze) Os estados de coisas (Sachverhalt) sobre os quais todo juiacutezo se funda (por exemplo o ser vermelho da rosa que torna possiacutevel o juiacutezo ldquoa rosa eacute vermelha) satildeo tais conexotildees essenciais e satildeo por conseguinte conhecidos a priori se bem que o a priori fenomenoloacutegico natildeo eacute unicamente epistemoloacutegico mas antes de tudo ontoloacutegico Satildeo conexotildees essenciais conhecidas a priori que fazem pensar no realismo platocircnico O fato de que elas natildeo se realizam nunca perfeitamente no mundo sensiacutevel natildeo impede que existam e que continuem a existir mesmo quando nenhum sujeito pensa nelas (JORLAND 1981 p 30)

Este processo poreacutem para o proacuteprio Husserl natildeo seria uma

negaccedilatildeo deste mundo mas o retorno a uma experiecircncia vivida Em

contrapartida negando a princiacutepio a existecircncia como um predicado do

sujeito e inclusive acreditando na possibilidade de se duvidar dela segundo

Merleau-Ponty Husserl ainda permanecia sob bases racionalistas Seria

apenas a partir de uma reduccedilatildeo aquela na qual natildeo haacute mais

transcendecircncia que se obteacutem um dado absoluto (Gegebenheit) Existindo ou

natildeo o mundo por meio de uma epocheacute livre o sujeito e sua vida

permanecem intocados De modo adverso poreacutem Merleau-Ponty acredita

que ldquoa melhor foacutermula da reduccedilatildeo eacute sem duacutevida aquela que lhe dava Eugen

Fink o assistente de Husserl quando falava de uma lsquoadmiraccedilatildeorsquo diante do

mundordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p VIII) Com isso ldquoa reflexatildeo natildeo se retira

do mundo em direccedilatildeo agrave unidade da consciecircncia enquanto fundamento do

mundordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p VIII) pois ldquoela toma distacircncia para ver

brotar as transcendecircncias ela distende os fios intencionais que nos ligam ao

mundo para fazecirc-los aparecer ela soacute eacute consciecircncia do mundo porque o

revela como estranho e paradoxalrdquo Neste sentido conclui que ldquotodo o mal-

entendido de Husserl com seus inteacuterpretes com os lsquodissidentesrsquo

existencialistas e finalmente consigo mesmo proveacutem do fato de que

justamente para ver o mundo e apreendecirc-lo como paradoxo eacute preciso

romper nossa familiaridade com ele e porque essa ruptura soacute pode ensinar-

54

nos o brotamento imotivado do mundordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p VIII)

Assim ldquoo maior ensinamento da reduccedilatildeo eacute a impossibilidade de uma

reduccedilatildeo completa () Longe de ser como se acreditou a foacutermula de uma

filosofia idealista a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute a foacutermula de uma filosofia

existencial () (MERLEAU-PONTY 1999 p IX) Esta concepccedilatildeo merleau-

pontiana natildeo se encontra tatildeo distante da ideia de reduccedilatildeo tal como eacute

esboccedilada nas paacuteginas da Krisis Nesta obra ela passa a ser vista conforme

jaacute indicamos como um ldquoquestionamento retroativordquo no qual a subjetividade

humana eacute encarada como capaz de dar ldquogecircneserdquo ao mundo Tendo iniacutecio no

delineamento histoacuterico de tudo o que faz parte de nossas experiecircncias

ldquodoacutexicasrdquo este ldquoquestionamento retroativordquo deve nos conduzir a uma

recuperaccedilatildeo das condiccedilotildees histoacutericas deste mesmo mundo por meio de um

diaacutelogo criacutetico com ele Assim apoacutes haver dialogado com ele eacute possiacutevel

efetivar a epocheacute ou seja a anaacutelise das camadas que estatildeo latentes no que

foi criticamente mostrado no que haacute de evidecircncia no mundo-da-vida

(JOSGRILBERG 2001)

Em outros termos por conseguinte podemos dizer que no

tocante ao direcionamento husserliano a uma Ruumlckfrage o que se visa eacute ao

mesmo tempo tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo intermitente O que significa entatildeo buscar

uma origem ou entender a presenccedila de certa instacircncia ou de certo momento

na gecircnese de uma concepccedilatildeo de mundo Parece-nos que se trata em

Husserl da busca pelo sentido ou melhor do pocircr em questatildeo o sentido pelo

qual algo se institui ldquoentra na histoacuteria pela primeira vezrdquo e isso quando

ldquonada se sabe de seus primeiros criadores ou nada se indaga a respeito

delesrdquo (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)32 Logo pensando por

exemplo em uma ldquoorigem da geometriardquo como Husserl mesmo nos salienta

A partir do que sabemos a partir de nossa geometria isto eacute de suas formas antigas e transmitidas (tal qual a geometria euclidiana) uma

questatildeo em retorno [Ruumlckfrage] eacute possiacutevel sobre os comeccedilos originaacuterios e englobados pela geometria tais como devem

32ldquowir fragen nach jenem Sinn in dem sie erstmalig in der Geschicht aufgetreten ist ndash aufgetreten sein muszligte obschon wir von den ersten Schoumlpfern nichts wissen und auch gar nicht danach fragenrdquo (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)

55

necessariamente ter sido enquanto ldquoproto-fundadoresrdquo Esta questatildeo em retorno [Ruumlckfrage] vincula-se inevitavelmente a generalidades

mas isto se manifestaraacute antes satildeo generalidades suscetiacuteveis de uma explicitaccedilatildeo fecunda e com as quais satildeo prescritas as possibilidades

de advir a questotildees singulares e a tiacutetulo de respostas a determinaccedilotildees evidentes A geometria inteiramente pronta por assim

dizer a partir da qual procede a questatildeo em retorno [Ruumlckfrage] eacute uma tradiccedilatildeo Eacute no meio de um nuacutemero infinito de tradiccedilotildees que se

move nossa existecircncia humana Eacute enquanto oriundo da tradiccedilatildeo que o mundo da cultura estaacute aiacute em sua totalidade e em todas as suas

formas Enquanto tais estas formas natildeo foram engendradas de modo puramente causal e sabemos sempre que a tradiccedilatildeo eacute

precisamente tradiccedilatildeo engendrada em nosso espaccedilo de humanidade a partir de uma atividade humana portanto em uma gecircnese

espiritual ndash mesmo se em geral nada ou pouco se saiba da proveniecircncia determinada e da espiritualidade que de fato opera-se

aqui (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)33

Ora se pensamos no naturalismo das ciecircncias quais seriam as

consequecircncias deste ldquoquestionamento retroativordquo Para Husserl

especialmente em seus uacuteltimos trabalhos compreendemos melhor estas

consequecircncias quando procuramos elucidar os limites do que seria a

Natureza segundo os cientistas quando assumimos a tarefa de demonstrar

as contradiccedilotildees de uma esfera de ldquopuras coisasrdquo (blosse Sachen) tal como

tivera sua gecircnese no pensamento cartesiano Contudo para Merleau-Ponty

eacute possiacutevel encontrar em Husserl duas posiccedilotildees em relaccedilatildeo agrave Natureza A

primeira esboccedilada nas Ideen I ainda presa em uma filosofia reflexiva

considera-a contingente em relaccedilatildeo agrave consciecircncia compreendida como

necessaacuteria A Natureza em meio a um processo de reduccedilatildeo fenomenoloacutegica

33 ldquoVon dem was wir wissen von userer Geometrie bzw von den tradierten aumllteren Gestalten aus (wie der Euklidischen Geometrie) gibt es eine Ruumlckfrage nach den versunkenen urspuumlnglichen Anfaumlngen der Geometrie wie sie als bdquourstiftendeldquo notwendig gewesen sein muszligten Diese Ruumlckfrage haumllt sich unvermeidlich in Allgemeinheiten aber wie es sich bald zeigt sind es reichlich auslegbare Allgemeinheiten mit vorgezeichneten Moumlglichkeiten Sonderfragen und evidente Feststellungen als Antworten gewinnen zu koumlnnen Die sozusagen fertige Geometrie von der die Ruumlckfrage ausgeht ist eine Tradition In einer Unzahl von Traditionen bewegt sich unser menschliches Dasein Die gesamte Kulturwelt ist nach allen ihren Gestalten aus Tradition da Als da sind sie nicht nur kausal wir wissen auch immer schon daszlig Tradition eben Tradition ist in unseren Menschheitsraume aus menshlichter Aktivitaumlt also geistig geworden ndash wenn wir auch im allgemeinen von der bestimmten Herkunt und der faktisch hierbei zustandebringenden Geistigkeit nichts oder so gut wie nichts wissen rdquo (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)

56

seria vista como um dos componentes da correlaccedilatildeo noese-noema Qual

seria a razatildeo da contingecircncia da Natureza Dado o simples fato de que ela

natildeo poderia ser pensada por si mesma haveria neste caso a necessidade

do espiacuterito do ldquoeu fenomenoloacutegicordquo Contudo nas Ideen II Husserl romperia

com esta perspectiva levando-nos a uma outra concepccedilatildeo de Natureza

aquela que nos apontaria para uma experiecircncia preacute-reflexiva ou seja

anterior agrave consciecircncia teacutetica e ateacute mesmo agrave atitude natural A princiacutepio o

retorno agrave atitude natural se dava no intuito de tecer uma criacutetica ao

esquecimento das razotildees que nos leva a crer no mundo cabendo agrave reduccedilatildeo

romper com esse viacutenculo equivocado Nesta postura a fenomenologia natildeo

estaria distante do idealismo transcendental compartilhando com ele o

ensejo de reabilitar a Natureza ldquono acircmbito de uma filosofia reflexivardquo o que

justificaria o fato de que em seu curso Merleau-Ponty tenha colocado

Husserl na sequecircncia de suas discussotildees sobre o romantismo alematildeo em

especial a filosofia de Schelling No entanto apesar da manifesta criacutetica do

filoacutesofo ao que considerava uma espeacutecie de incursatildeo idealista presente em

Husserl principalmente quando se tratava das ideias de constituiccedilatildeo e dos

ldquoatos intencionaisrdquo Merleau-Ponty toma nota de que se nos aproximamos

com rigor da filosofia husserliana sabemos que as coisas natildeo satildeo tatildeo

simples assim o que nos exige reconsiderar o que Husserl entendia por

constituiccedilatildeo e qual o sentido de seu aparente idealismo

Segundo o filoacutesofo o que justificaria a presenccedila de uma espeacutecie

de ldquoestrabismordquo em Husserl seria sobretudo o modo como iraacute lidar com a

atitude natural afinal ldquose a filosofia comeccedila pela atitude natural nunca

sairaacute dela e se por ventura sai por que razatildeo sairdquo (MERLEAU-PONTY

2000a p 130) A princiacutepio a postura husserliana seraacute a de tentar se

desvencilhar dela em negaacute-la por compartilhar daquilo que viria

fundamentar o naturalismo das ciecircncias Nesta perspectiva a Natureza se

apresenta como um correlato das ldquopuras coisasrdquo [blosse Sachen] furtando-se

a todo e qualquer predicado de valor arrogando-se uma objetividade tal qual

eacute possiacutevel quando se trata do reino do em-si enfim seguindo nisso um

preceito cartesiano Esta compreensatildeo se estende a todo o Universo agrave

Weltall ela natildeo tem limites A compreensatildeo das ldquopuras coisasrdquo se

57

confundiria com a explicitaccedilatildeo de uma ldquores extensardquo desvencilhada dos

equiacutevocos gerados pelas ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo seria a compreensatildeo do

mundo visto em um horizonte matematizado conduzindo-nos a uma

postura reflexiva na qual o mundo seria em todo caso purificado pelo olhar

atento de um sujeito imparcial Eacute evidente que a intenccedilatildeo de Husserl eacute negar

essa postura eacute desconstruiacute-la e eacute justamente esse movimento que Merleau-

Ponty esperava explicitar a tentativa husserliana em negar a atitude

cartesiana poreacutem a partir da reduccedilatildeo da correlaccedilatildeo noese-noema a partir

de um ponto de vista superior A aproximaccedilatildeo da atitude natural se daria no

intuito de fazer dela como diraacute Merleau-Ponty um ldquotrampolimrdquo para a

consciecircncia Em contrapartida e nisto estaria a razatildeo do ldquoestrabismordquo a

partir de seus uacuteltimos trabalhos Husserl mais do que apenas criticar a

ldquoatitude naturalrdquo tomaria a iniciativa de tentar reabilitaacute-la fazendo com que

o superior se apresentasse agora como ldquouma tese sobre um fundordquo

(MERLEAU-PONTY 2000a p 118) Consciente desses dois movimentos

Husserl ao contraacuterio segundo Merleau-Ponty considerava-a uma ldquoexigecircncia

plenardquo O que isso significa

Sabemos que se trata em primeiro lugar de uma negaccedilatildeo do

naturalismo das ciecircncias O primeiro movimento seria consciente de que haacute

justamente uma verdade do naturalismo que eacute preciso recuperar descobrir

a vida intencional que se encontra presente nele O ser objetivo natildeo seria

neste caso um privileacutegio das ciecircncias mas tudo estaria presente nele natildeo

escapando ateacute mesmo a vida da consciecircncia Se haacute algo que uniria tanto o

cientista como o filoacutesofo seria o fato de serem homens e como tal

pertencerem agrave Natureza possuiacuterem um corpo estarem inseridos em um

universum realitatis Dizer com Husserl que ldquoquando um filoacutesofo viaja leva

suas ideias consigordquo ou melhor que ldquoos homens e natildeo somente os corpos

humanos viajam em um automoacutevelrdquo (HUSSERL 1952 p 32) significa

lembrar que natildeo haacute uma dissociaccedilatildeo entre o sujeito pensante e o sujeito

empiacuterico haacute ldquouma natureza coextensiva agrave totalidade dos seresrdquo que

acompanha o habitante do mundo (TILLIETTE 2000 p 219) Todavia isto

natildeo significa negar e nisto estaacute a criacutetica de Husserl as referecircncias

intencionais presentes neste modo como o naturalismo nos abarca natildeo

58

significa admitir o aprisionamento da consciecircncia no universo das blosse

Sachen Pelo contraacuterio haveria uma vida da consciecircncia que precederia o

universo da ciecircncia fazendo com que inclusive este universo fosse a

construccedilatildeo de um sujeito puro do sujeito fenomenoloacutegico Aqui ainda natildeo se

pensa a abstraccedilatildeo cientiacutefica como fruto de um processo histoacuterico mas

oriunda de uma estrutura da percepccedilatildeo humana A partir de uma

purificaccedilatildeo de nossa experiecircncia em uma atitude reduzida fazendo-nos de

noacutes mesmos um sujeito teoacuterico deparamo-nos com ldquocoisas purasrdquo olhamos

a cadeira e vemos sua materialidade olhamos os animais e vemos sua

animalidade A nosso ver nisto encontramos algo comum agrave leitura que

Merleau-Ponty faz de Husserl Ora o vislumbra no quadro de uma filosofia

reflexiva permeada por um ldquoestrabismordquo ora percebe em seu pensamento

uma via de superaccedilatildeo dessa mesma filosofia reflexiva Ao comentar as Ideen

II Merleau-Ponty situa Husserl no difiacutecil paradoxo presente nos

posicionamentos contraditoacuterios que toma a respeito de uma ldquoconstituiccedilatildeo da

Naturezardquo em escolher por um lado entre a passagem da doxa [doca] agrave

ἐπιστήmicroη [episteacuteme] e por outro lado entre a passagem da doxa a uma Ur-

doxa a uma doxa originaacuteria Para Merleau-Ponty nas Ideen II ainda

encontramos de forma esquemaacutetica a tentativa husserliana de descrever a

gecircnese do Kosmotheacuteoros do sujeito imparcial do Ego puro das ciecircncias

aleacutem disso isto era contrariado ldquo[] a cada instante pela tese da

irrelatividade da consciecircnciardquo o que iria adquirir outro colorido nos

trabalhos do uacuteltimo periacuteodo como o que se contrapunha ao mundo

copernicano (MERLEAU-PONTY 1969 p 90)34 Todavia deixando de lado as

anotaccedilotildees de seus cursos sobre Husserl levando em conta um texto como Le

philosophe et son ombre ainda publicado em vida e com as letras do proacuteprio

filoacutesofo esta ambiguidade em relaccedilatildeo agraves Ideen II natildeo se torna tatildeo expliacutecita o

movimento seraacute o de identificar ali uma ruptura com as Ideen I O que

assinala Merleau-Ponty eacute o movimento pelo qual Husserl se aproxima da

34 Deste modo conforme mostraremos a seguir apesar de ter encontrado nas Ideen II uma possiacutevel via de superaccedilatildeo do enamoramento husserliano com o idealismo Merleau-Ponty iraacute considerar que tal ruptura toma uma maior proporccedilatildeo no texto husserliano A Terra como arque-originaacuteria natildeo se move (HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em anexo)

59

ldquoatitude naturalrdquo para demonstrar contra o naturalismo das ciecircncias o seu

caraacuteter histoacuterico e sua pertenccedila a um solo fundamental agrave Lebenswelt a um

ldquoloacutegos do mundo esteacuteticordquo Como diraacute Merleau-Ponty

De um lado entatildeo a reduccedilatildeo ultrapassa a atitude natural Natildeo eacute ldquode naturezardquo (natural) ou seja o pensamento reduzido jaacute natildeo diz respeito agrave Natureza tratada pelas ciecircncias da Natureza mas de um certo modo ldquoao contraacuterio da Naturezardquo isto eacute agrave Natureza como ldquosentido dos atos que compotildeem a atitude naturalrdquo ndash agrave Natureza que voltou a ser o nome que sempre fora reintegrada na consciecircncia que sempre a constituiu de ponta a ponta Em ldquoregime de reduccedilatildeordquo haacute apenas a consciecircncia seus atos e o objeto intencional destes uacuteltimos permitindo a Husserl escrever que haacute uma relatividade da Natureza ao espiacuterito o absoluto [] [Por outro lado] ao dizer que a reduccedilatildeo ultrapassa a atitude natural Husserl logo acrescenta que este ultrapassamento conserva ldquointeiro o mundo da atitude naturalrdquo A proacutepria transcendecircncia desse mundo deve conservar um sentido aos olhos da consciecircncia ldquoreduzidardquo e a imanecircncia transcendental natildeo pode ser sua simples antiacutetese (MERLEAU-PONTY 1975b p 213)

Quando lemos as Ideen II a nosso ver acreditamos que eacute

preciso sobretudo desvencilhar aquilo que constitui a criacutetica de Husserl e o

que se apresenta como uma proposta fenomenoloacutegica frente a essa situaccedilatildeo

e em diversos momentos Merleau-Ponty parece dar-se conta e nos dizer

justamente isso Daiacute o filoacutesofo ter encontrado neste livro a definiccedilatildeo de uma

Natureza que eacute ldquo[] aquilo com que tenho uma relaccedilatildeo de caraacuteter original e

primordial []rdquo(MERLEAU-PONTY 2000a p 129) que eacute ldquo[] a esfera de

todos os lsquoobjetos que podem ser apresentaacuteveis originariamente e que pelo

fato de que satildeo apresentaacuteveis originariamente a um determinado sujeito o

satildeo tambeacutem a todos os outros []rdquo(MERLEAU-PONTY 2000a p 129) o que

significa dizer que ldquoa Natureza eacute a totalidade dos objetos possiacuteveis

apresentaacuteveis originariamente os quais para todos os sujeitos

originariamente comunicantes constituem um domiacutenio de presenccedila

originaacuteria comumrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 129) Logo ldquoeacute a natureza

material espaccedilo-temporal o uacutenico mundo para todo o mundordquo (MERLEAU-

PONTY 2000a p 129) Por conseguinte se lermos atentamente as paacuteginas

deste texto eacute possiacutevel concluir que o grande ensejo husserliano eacute contrapor-

se a uma ldquoatitude naturalistardquo ao apresentaacute-la como natural e tatildeo natural

como a atitude do sujeito fenomenoloacutegico o que ele nomeia ldquoatitude

60

personalistardquo Logo natildeo eacute possiacutevel haver uma atitude de identidade entre a

atitude naturalista das ciecircncias da natureza e a ldquonova atitude naturalrdquo do

sujeito fenomenoloacutegico Eacute certo que ambos conduzem a um sujeito puro

poreacutem nisto Husserl eacute bastante enfaacutetico quando se trata da reduccedilatildeo

fenomenoloacutegica trata-se de uma espeacutecie de suspensatildeo na qual o proacuteprio

sujeito empiacuterico natildeo deixa de se colocar no interior dos parecircnteses haja

vista que ldquoo sujeito uacuteltimo o sujeito fenomenoloacutegico que natildeo eacute suscetiacutevel de

ser posto fora de cena [mise hors-circuit] e que eacute ele mesmo o sujeito de toda

investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica eideacutetica eacute o sujeito purordquo (HUSSERL 1952 p

175 2004 p 248) O que Husserl espera eacute mostrar que suas conclusotildees

partem sobretudo de uma experiecircncia fenomenoloacutegica e nisto natildeo segue a

metodologia das ciecircncias da natureza mais do que isso ele procura

demonstrar como equivocada a ideia de que a experiecircncia fiacutesica sirva de

fundamento especialmente na psicologia ao que seria posteriormente a

experiecircncia do corpo proacuteprio a experiecircncia de uma constituiccedilatildeo de

animalidade e humanidade que faria do ego sujeito uma instacircncia englobada

pelo ser psiacutequico Quanto a isto parece-nos que Merleau-Ponty

compreendeu bem inclusive La Structure du comportement seria um bom

exemplo de um trabalho inspirado na criacutetica husserliana ao naturalismo das

ciecircncias ao ensejo em romper com uma compreensatildeo de um homem

dividido em comportamentos superiores e em comportamentos elementares

ou reflexos embora natildeo tenha sido do interesse husserliano35

diferentemente de Merleau-Ponty mergulhar diretamente nos discursos

cientiacuteficos visto que como salientaria a Krisis ldquoas uacuteltimas pressuposiccedilotildees

da possibilidade do conhecimento objetivo natildeo podem ser conhecidos

objetivamenterdquo (HUSSERL 1954 p 254) Nas Ideen II Husserl deixa claro o

modo como espera se aproximar destas questotildees o que significa um retorno

agrave experiecircncia fenomenoloacutegica que se faz presente em uma ldquoatitude

personalistardquo Logo o direcionamento agrave ideia de uma Natureza que seja um

35 Jaacute nas Logische Untersuchungen encontraacutevamos uma indicaccedilatildeo disto ldquoE se de fato a ciecircncia constroacutei teorias para a soluccedilatildeo sistemaacutetica de problemas o filoacutesofo por sua vez pergunta o que eacute a essecircncia da teoria o que torna possiacutevel uma teoria em geral (HUSSERL 1975 p 254)

61

universo que seja uma Weltall faz com que nos demos conta de que na

verdade esse universo nos remete a um outro mais originaacuterio e bem mais

antigo a um mundo que ao inveacutes de ser construiacutedo se nos apresenta

Leibhaft ou seja em carne e osso Neste momento sobretudo

compreendemos as razotildees por que mais do que uma filosofia construtiva a

fenomenologia se apresenta como uma ldquoarqueologiardquo uma ldquogenealogiardquo no

caso do naturalismo das ciecircncias da natureza uma ldquoarqueologiardquo das blosse

Sachen O que isto significa

O que Husserl nos mostra em seus uacuteltimos trabalhos eacute que uma

anaacutelise intencional ao inveacutes de nos conduzir a uma reabilitaccedilatildeo do

idealismo ou mesmo subjetivisar ou psicologisar o mundo percebido revela-

nos uma arqueologia na qual antes encontramos um conjunto de quase-

objetos do que o sistema riacutegido das blosse Sachen Diraacute Merleau-Ponty ldquoas

blosse Sachen aparecem como idealizaccedilotildees satildeo conjuntos ulteriores

construiacutedos sobre a solidez do percebidordquo (MERLEAU-PONTY 1994 p 105-

6) A arqueologia husserliana ou se preferir a transfiguraccedilatildeo da anaacutelise

intencional em uma ldquointencionalidade retrospectivardquo em uma Ruumlckdeutung

leva-nos a um niacutevel preacutevio que cumpre o papel de relativizar aquilo que em

um horizonte cartesiano era tido como absoluto Abaixo das ldquocoisas purasrdquo

do universo da extensatildeo o filoacutesofo nos mostra o solo originaacuterio das ldquocoisas

preacute-teoreacuteticasrdquo o mundo vor aller Thesis traz agrave luz a ldquovida da consciecircnciardquo

que antecede o mundo construiacutedo pelo sujeito puro do naturalismo Neste

sentido a tarefa do objetivismo filosoacutefico natildeo seraacute o de demonstrar as

propriedades ou estruturas de um primado do em-si mas tornar manifestas

as motivaccedilotildees que fazem com que seja esse reino apenas uma camada

dentre tantas outras que constituem a Lebenswelt que compotildeem o mundo-

da-vida Por conseguinte naquilo que o cartesianismo considerava ser uma

descriccedilatildeo objetiva da realidade o que existe eacute um processo sedimentado

uma histoacuteria da consciecircncia que se cristalizou Quais as consequecircncias

disso Que conclusotildees podem ser tiradas quando a partir de um movimento

arqueoloacutegico assumimos a tarefa de cavar seus conceitos mais

fundamentais A uma visatildeo cientificista modelada na cisatildeo cartesiana entre

o reino da extensatildeo e o reino da consciecircncia o desmoronamento de seus

62

alicerces eacute inevitaacutevel ldquoo universo da ciecircncia natildeo repousa sobre si mesmordquo

(MERLEAU-PONTY 2000b p 220) Pelo contraacuterio ele nos remete a uma

esfera de experiecircncia na qual a proacutepria ciecircncia mesmo natildeo se dando conta

disso encontra-se assente ele nos remete em primeiro lugar ao ldquosujeito

encarnadordquo como diria Husserl ao Subjektleib ao corpo-sujeito em sua

condiccedilatildeo de ldquooacutergatildeo do Ich kann do Eu possordquo36

A experiecircncia do mundo se daacute em uma primeira instacircncia a

partir de um sujeito encarnado Mais do que um ato do espiacuterito toda

percepccedilatildeo supotildee ldquoa consciecircncia de meu corpo como oacutergatildeo de um poder

motor de um lsquoeu possorsquo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1968 MERLEAU-PONTY

1969 p 80) o que significa dizer que a percepccedilatildeo de um objeto implica a

consciecircncia das possibilidades motoras que nela se encontram implicadas

Isto explica o fato de que a experiecircncia do corpo proacuteprio natildeo siga as leis da

fiacutesica natildeo faz com que seus movimentos sejam situados no quadro de um

saber objetivo pois ele se manifesta antes como ldquo[] uma potecircncia indivisa e

sistemaacutetica de organizar certos desenvolvimentos de aparecircncia perceptiva O

meu corpo eacute aquele que eacute capaz de passar de tal aparecircncia para tal

aparecircncia como organizador de uma lsquosiacutentese de transiccedilatildeorsquordquo (MERLEAU-

PONTY 2000a p 122) Aqui Husserl se afasta da ideia de um Eu puro que

faria do corpo um objeto capaz de se relacionar com outros objetos Pelo

contraacuterio o corpo eacute capaz de compreender o mundo de habitaacute-lo logo a

ldquocoisa me aparece assim como um momento da unidade carnal de meu

corpo como encravada em seu funcionamento O corpo aparece natildeo soacute como

o acompanhante exterior das coisas mas como o campo onde se localizam

minhas sensaccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 122) O corpo se torna

nesta perspectiva um ldquocampo de localizaccedilatildeordquo no qual as sensaccedilotildees se

efetuam torna-se um corpo sentiente cumprindo ao mesmo tempo o papel

de sujeito e de objeto Encontramos aqui uma ruptura com a fisiologia

36 Deste modo podemos entender o que nos diz Merleau-Ponty ao tomar essas consideraccedilotildees como referecircncia a uma ontologia selvagem ldquoEsboccedilo de uma ontologia projetada como ontologia do ser bruto ndash e do loacutegos Configurar o Ser Selvagem prolongando meu artigo sobre Husserl Mas o desvelamento desse mundo desse Ser permanece mudo enquanto natildeo desenraizarmos a filosofia objetiva (Husserl)rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 164)

63

claacutessica segundo a qual a afirmaccedilatildeo de um corpo excitaacutevel significa

compreendecirc-lo como uma espeacutecie de projetor e lugar de eventos objetivos

mensuraacuteveis e acompanhados pela consciecircncia por um sujeito situado em

uma instacircncia superior Nas Ideen III tentando elucidar esta ruptura

Husserl faz uso da metaacutefora da locomotiva (HUSSERL 1980 p 104-105)37

37 ldquoSe considerarmos o organismo animado e a psique em suas reais relaccedilotildees reciacuteprocas e se nos colocarmos no solo da natureza encaixando as coisas materiais bem como os organismos animados e com eles as psiques na natureza o organismo animado e a psique se mostram em seguida estar conectados Mas a conexatildeo eacute acidental somente por um lado A realidade psiacutequica estaacute fundada na mateacuteria do organismo mas esta natildeo estaacute inversamente fundada na psique De modo mais geral podemos dizer o mundo material eacute no mundo Objetivo que chamamos natureza um mundo fechado em si mesmo natildeo precisando de ajuda de outras realidades Por outro lado a existecircncia de realidades mentais de um mundo real mental estaacute vinculado agrave existecircncia de uma natureza no primeiro sentido ou seja de uma natureza material e isso natildeo por razotildees acidentais mas por razotildees fundamentais Enquanto a res extensa se inquirimos a sua essecircncia natildeo conteacutem nada de um universo mental [mentalness] e nada que exigiria aleacutem de si mesma uma conexatildeo com um universo mental real [real mentalness] encontramos que inversalmente este universo mental real [real mentalness] essencialmente apenas pode ser em conexatildeo com a materialidade como mente real de um organismo animado Em tudo isso o termo lsquoorganismo animadorsquo significa natildeo apenas uma coisa material em geral que ndash de qualquer maneira ndash permanece em um complexo de dependecircncia funcional com uma segunda realidade chamada psique ou mesmo apenas com fenocircmenos de consciecircncia de um fluxo de consciecircncia Imaginemos uma consciecircncia (quer algo psiquicamente real lhe pertenccedila ou natildeo) a minha consciecircncia digamos que se posiciona em relaccedilatildeo a uma locomotiva de modo que se a locomotiva for abastecida com aacutegua essa consciecircncia teria a agradaacutevel sensaccedilatildeo que chamamos de saciedade se a locomotiva for aquecida teria a sensaccedilatildeo de calor etc Obviamente a locomotiva natildeo se tornaria em razatildeo da composiccedilatildeo de tais relaccedilotildees um lsquoorganismo animadorsquo para essa consciecircncia Se ao inveacutes daquilo que no momento eu chamo meu organismo animado a locomotiva estivesse em minha consciecircncia como campo de meu Ego puro entatildeo eu natildeo poderia tambeacutem chamaacute-lo de organismo animado pois simplesmente ele natildeo seria um organismo animado [] O organismo animado eacute digamos muitas vezes o portador de sensaccedilotildees e eacute sempre lsquoestimulaacutevelrsquo de novo Ele carrega sensaccedilotildees muacuteltiplas sensaccedilotildees como sensaccedilotildees de toque sensaccedilotildees cinesteacutesicas temperatura ndash cheiro ndash gosto ndash as sensaccedilotildees estatildeo lsquolocalizadasrsquo sobre ele e nele elas formam um estrato existencial situado sobre ele e nele Todas as outras sensaccedilotildees que natildeo estatildeo localizadas dessa maneira obtecircm apreensotildees de modo mediato e natildeo acidental em virtude de quais apreensotildees elas adquirem uma relaccedilatildeo com o organismo animado e seus vaacuterios lsquooacutergatildeos dos sentidosrsquo que ainda pressupotildeem sensaccedilotildees localizadas e portanto geralmente ldquopertencemrdquo igualmente ao organismo animado de modo essencialmente diferente do que aquelas sensaccedilotildees dependentes do exemplo acima da locomotivardquo Texto em inglecircs ldquoIf we consider animate organism and psyche in their real relationship to one another and if we put ourselves on the ground of nature fitting material things as well as animate organisms and with them the psyches into nature then animate organism and psyche show themselves to be connected But the connection is an accidental one only from one side The psychic reality is founded in organismal matter but this is not conversely founded in the psyche More generally we can say the material world is within the total Objective world that we call nature a closed world of its own needing no help from other realities On the other hand the existence of mental realities of a real mental world is bound to the existence of a nature in the first sense namely that of material nature and

64

O filoacutesofo pedindo para que imaginemos uma consciecircncia que em relaccedilatildeo

com uma locomotiva abastecida de carvatildeo pudesse nos dar uma sensaccedilatildeo

de calor ou estando com o reservatoacuterio cheio pudesse nos dar uma

sensaccedilatildeo de saciedade conclui que nem por isso esta mesma locomotiva

poderia ser o corpo desta consciecircncia dado ser um corpo puramente fiacutesico

sendo pois esta percepccedilatildeo impossiacutevel O sentir se daacute no corpo eacute o corpo

que sente eacute ele o campo de nossas sensaccedilotildees A famosa metaacutefora das matildeos

que se tocam citada por Merleau-Ponty tambeacutem servem de fundamento a

este argumento

Quando toco minha esquerda com minha matildeo direita minha matildeo tocante apreende minha matildeo tocada como uma coisa Mas de

suacutebito dou-me conta de que minha matildeo esquerda comeccedila a sentir As relaccedilotildees se invertem Fazemos a experiecircncia de um recobrimento

entre a contribuiccedilatildeo da matildeo esquerda e a da matildeo direita e de uma inversatildeo de suas respectivas funccedilotildees Essa variaccedilatildeo mostra que se

trata sempre da mesma matildeo Como coisa fiacutesica ela continua sendo sempre o que eacute e no entanto eacute diferente segundo for tocada ou

tocante (MERLEAU-PONTY 2000a p 123 1980 p 117)

Desta experiecircncia Merleau-Ponty conclui a existecircncia no corpo

de uma espeacutecie de reflexatildeo [eine Art von Reflexion] que ateacute entatildeo era

this not for accidental but for fundamental reasons While the res extensa if we inquire of its essence contains nothing of mentalness and nothing that would demand beyond itself a connection with real mentalness we find conversely that real mentalness essentially can be only in connection to materiality as real mind of an animate organism In all this the term ldquoanimate organismrdquo means not merely a material thing in general which ndash in whatever way ndash stands in a complex of functional dependence with a second reality called psyche or even only with phenomena of consciousness of a stream of consciousness Let us imagine a consciousness (whether something psychically real belongs to it or not) my consciousness say which would stand in relation to a locomotive so that if the locomotive were fed water this consciousness would have the pleasant feeling that we call satiety if the locomotive were heated if would have the feeling of warmth etc Obviously the locomotive would not because of the make-up of such relationships become ldquoanimate organismrdquo for this consciousness If instead of the thing that I at the time call my animate organism the locomotive stood in my consciousness as the field of my pure Ego then I could not call it animate organism also for it simply would not be an animate organism [] The animate organism is we say often the carrier of sensations and is always lsquostimulablersquo anew It carries sensations manifold sensations like touch sensations kinaesthetic sensations temperature- smell ndash taste ndash sensations are lsquolocalizedrsquo on it and in it they form an existential stratum lying on it and in it All other sensations that are not localized in this manner obtain apprehensions mediately and not accidentally by virtue of which apprehensions they acquire a relationship to the animate organism and to its various lsquosense organsrsquo which further presuppose localized sensations and therefore all in all likewise lsquobelongrsquo to the animate organism in essentially different manner than do those dependent sensations of the above example of the locomotiverdquo (HUSSERL 1980 p 104-105)

65

reportada apenas ao Cogito Por um lado ao tocar o corpo torna-se sujeito

ele sente a si mesmo por outro ao ser tocado ele se faz objeto leva-nos a

crer no universo das blosse Sachen Haacute pois uma reversibilidade presente

no corpo que natildeo nos permite nos esquecer de que haacute pois nas proacuteprias

coisas uma densidade presente na ldquopreacute-constituiccedilatildeordquo corporal que faz existir

entre o corpo e o mundo uma relaccedilatildeo de co-presenccedila Entre a matildeo que toca

e a matildeo tocada entre o corpo que sente e o corpo que eacute sentido haacute aquilo

que Husserl iraacute chamar de Deckung uma espeacutecie de recobrimento de

relaccedilotildees e na liacutengua de Merleau-Ponty receberaacute o nome de ldquoempiegravetementrdquo

tal como iraacute definir ldquo[a Deckung eacute] uma coincidecircncia sempre ultrapassada

ou sempre futura [que] natildeo eacute por conseguinte coincidecircncia fusatildeo real

como dois termos positivos ou dois elementos de uma mistura mas

recobrimento como de um oco [creux] e de um relevo que permanecem

distintosrdquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 163-4) Quanto a isto quanto a esta

espeacutecie de simetria e ao mesmo tempo de reversibilidade corporal no que

diz respeito agraves relaccedilotildees entre sujeito e objeto a dificuldade torna-se entatildeo

de tentar descobrir o modo como tais perspectivas se reconciliam ou

melhor o modo como o subjetivo e o objetivo o cientiacutefico e o primordial

possam dialogar Qual o caminho de reconciliaccedilatildeo

Lembra-nos Merleau-Ponty e nisto encontramos em Husserl

uma via de superaccedilatildeo ldquoo meu corpo eacute uma coisa-origem uma medida-

padratildeo [eacutetalon] o grau zero de orientaccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p

223) Haacute um modo que lhe eacute particular de se relacionar com as coisas

fazendo dele um modelo o grau zero de todos os outros lugares Mesmo

quando pensamos nas formas ldquootimaisrdquo por exemplo na experiecircncia de ver

um objeto com uma luneta ou com um microscoacutepio eacute a ldquoestranha teleologia

do olhordquo que possibilita esta relaccedilatildeo que define a sua forma que instaura

uma norma que possibilita um ldquofundamento de direitordquo [Rechtgrund] a partir

do qual todo conhecimento seraacute possiacutevel (MERLEAU-PONTY 2000a p 124)

Por conseguinte por meio do corpo funda-se um absoluto que se daacute no

relativo funda-se a possibilidade da ciecircncia Contudo natildeo seria isto uma

absolutizaccedilatildeo do corpo em sua individuaccedilatildeo O funcionamento de meu

corpo isolado eacute suficiente para superar o em-si cartesiano Sou conduzido

66

ao mundo e agraves coisas por meu corpo eacute verdade poreacutem para que eu possa

tomar consciecircncia dele para que possa encontrar um novo modo de

ldquoobjetivaacute-lordquo de compreendecirc-lo eacute preciso que o solipsismo corporal seja

superado eacute preciso que eu me compreenda como um corpo entre todos os

outros corpos humanos eacute preciso que mais do que um olho diria Husserl

eu tambeacutem tenha um espelho uma vez que como salienta Merleau-Ponty

A coisa percebida solipsista soacute pode tornar-se coisa pura se meu corpo entra em relaccedilotildees sistemaacuteticas com outros corpos animados A

experiecircncia que tenho do meu corpo como campo de localizaccedilatildeo de

uma experiecircncia e a que tenho dos outros corpos enquanto se

comportam diante de mim vatildeo ao encontro uma da outra e passam de uma agrave outra A percepccedilatildeo que tenho de meu corpo como

residecircncia de uma ldquovisatildeordquo de um ldquotatordquo e (posto que os sentidos

entranhem em meu corpo ateacute a consciecircncia impalpaacutevel a que

competem) de um Eu penso assim como a percepccedilatildeo que neste mundo tenho de outro corpo ldquoexcitaacutevelrdquo ldquosensiacutevelrdquo e (posto que tudo

isto natildeo possa prescindir de um Eu penso) portador de outro Eu penso estas duas percepccedilotildees digo se iluminam mutuamente e se

consomem juntas Daiacute que natildeo termine eu de ser o monstro incomparaacutevel do solipsismo Eu me vejo Subtraio de minha

experiecircncia aquilo que estaacute ligado a minhas singularidades

corporais Estou diante de uma coisa que verdadeiramente eacute coisa

para todos As blosse Sachen satildeo possiacuteveis como correlato de uma comunidade ideal de sujeitos encarnados de uma Intercorporeidade

(MERLEAU-PONTY 1969 p 90)

Conforme Husserl se as blosse Sachen satildeo possiacuteveis isso se daacute

apenas na condiccedilatildeo de correlato de ldquouma comunidade ideal de sujeitos

encarnadosrdquo38 No entender de Merleau-Ponty esta revisatildeo das ldquocoisas

purasrdquo se torna manifesta no texto sobre o mundo preacute-copernicano Para o

filoacutesofo como jaacute indicamos ali Husserl recomeccedila o trabalho de gecircnese do

Kosmotheacuteoros trabalho que seguia esquemaacutetico nas Ideen II mas rompe

com esta perspectiva ao descrever ldquoabaixo da Natureza cartesiana que a

atividade teoacuterica terminaraacute por construirrdquo a emergecircncia de ldquouma camada

anterior que nunca eacute suprimida e que exigiraacute justificaccedilatildeo quando o

desenvolvimento do saber revelar as lacunas da ciecircncia cartesianardquo

38 Encontramos aqui a experiecircncia da Einfuumlhlung poreacutem com a textura do que traz consigo a experiecircncia de um sujeito encarnado

67

(MERLEAU-PONTY 1969 p 90-1) No retorno husserliano ao mundo preacute-

copernicano encontramos a nosso ver o sentido de sua arqueologia o

sentido do que a Krisis nomeia de Ruumlckfrage o movimento de uma pensar

retroativo de uma ldquoquestatildeo em retornordquo que nos conduz a um mundo

originaacuterio O que significa esta incursatildeo husserliana Em contraposiccedilatildeo agrave

ideia de ldquopura coisardquo especialmente nas Ideen II e nas Ideen III a

arqueologia husserliana nos levaria de encontro especialmente a um ldquosujeito

encarnadordquo [Subjektleib] aliaacutes a uma comunidade de ldquosujeitos encarnadosrdquo

Contudo no texto em que nos remete a um mundo preacute-copernicano

pressupondo uma Umwelt preacutevia apoacutes tratar do corpo proacuteprio e da

intercorporeidade da Einfuumlhlung Husserl nos potildee em presenccedila natildeo soacute de

um sujeito-objeto mas tambeacutem de ldquoquase-objetosrdquo ele nos revela um

mundo originaacuterio primordial e inclusive fundador das blosse Sachen

Sendo um ldquoquase-objetordquo constituindo-se a raiz de nossa histoacuteria e uma

nova camada do ser este movimento de retorno a Ruumlckdeutung a retro-

referecircncia husserliana rompe radicalmente com o psicologismo pois o que se

visa satildeo ldquotermos noemaacuteticosrdquo eacute uma ldquocamada mais profunda que as blosse

Sachenrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 229) Dizer que a Terra eacute um ldquoquase-

objetordquo implica dizer que ldquoela possui um modo de ser anterior agrave idealizaccedilatildeo

ela eacute o solo o niacutevel primeiro que em seguida converteu-se em objetordquo

(MERLEAU-PONTY 2000b p 230) Em outros termos a anaacutelise se

concentra agora na explicitaccedilatildeo da correlaccedilatildeo existente entre ldquosujeitos-

objetosrdquo e ldquoquase-objetosrdquo aqueles que natildeo seriam inteiramente coisas eacute a

esta correlaccedilatildeo que agora a arqueologia husserliana nos conduz O que

Husserl nos diz neste texto O que seria este mundo preacute-copernicano Qual

a sua relaccedilatildeo com o mundo da ciecircncia

Neste texto o objetivo husserliano apesar do sentimento de que

possivelmente alguns complementos sejam necessaacuterios seraacute o de esboccedilar

uma ldquodoutrina fenomenoloacutegica da origem da espacialidade da corporeidade

da natureza no sentido das ciecircncias da natureza e por conseguinte para

uma teoria transcendental do conhecimento das ciecircncias da naturezardquo

(HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em anexo) O que se busca eacute uma

compreensatildeo de como a Terra nos eacute constituiacuteda de como se daacute a gecircnese de

68

sua representaccedilatildeo a fim de contrapor o modo como a fenomenologia iraacute

compreendecirc-la Mais uma vez como jaacute indicamos trata-se da denuacutencia de

que o mundo cientiacutefico natildeo eacute uacutenico mas haacute um outro que lhe eacute originaacuterio

No que diz respeito agrave Terra onde se encontra o problema Em considerar a

concepccedilatildeo copernicana como uma verdade absoluta Diraacute Husserl ldquonoacutes

copernicanos noacutes homens dos tempos modernos noacutes dizemos A Terra natildeo

eacute a lsquonatureza inteirarsquo ela eacute uma das estrelas do espaccedilo infinito do mundordquo

(HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em anexo) Para Merleau-Ponty esta

seraacute tambeacutem a definiccedilatildeo cartesiana A Terra eacute vista apenas como objeto de

uma pesquisa cientiacutefica como um corpo [Koumlrper] dentre outros logo regido

por leis preso a uma cadeia de causalidade Deste modo Contudo assinala

Husserl se procuramos compreendecirc-la no campo de nossa percepccedilatildeo

sabemos que natildeo podemos vecirc-la de uma soacute vez a experiecircncia que fazemos

dela nasce de uma ldquosiacutentese primordialrdquo de uma unidade de ldquoexperiecircncias

individuais unidas umas agraves outrasrdquo (HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em

anexo) O que significa esta incursatildeo husserliana Como Merleau-Ponty iraacute

encaraacute-la Vejamos

Como nos adverte Merleau-Ponty Husserl nos direciona a uma

experiecircncia preacute-cientiacutefica do mundo a um mundo preacute-copernicano O que

isto significa Ele nos conduz a uma vivecircncia da Terra natildeo mais

compreendida como Koumlrper como um corpo material dentre outros um

planeta a mais entre outros planetas mas uma terra como nosso horizonte

de experiecircncia nosso Boden nosso solo Em uma experiecircncia originaacuteria a

Terra natildeo se encontra nem em movimento nem em repouso natildeo eacute regida

por princiacutepios matemaacuteticos e fiacutesicos natildeo eacute o objeto de estudo da astronomia

dentre tantas outras ciecircncias mas encontra-se ldquoaqueacutemrdquo ldquoeacute algo inicial uma

possibilidade de realidade [Moumlglichkeit an Wirklichkeit] a terra como fato

puro o berccedilo a base e o solo de toda experiecircnciardquo (MERLEAU-PONTY

2000b p 227) Em substituiccedilatildeo agrave Terra como nosso horizonte de

experiecircncia a ciecircncia nos ofereceu uma realidade infinita transformando-a

em um ldquomundo objetivo e homogecircneordquo Esta criacutetica e o eco deste ineacutedito de

Husserl jaacute encontraacutevamos tambeacutem na Pheacutenomeacutenologie de la perception

quando apoacutes tratar da temporalidade Merleau-Ponty fazia uma espeacutecie de

69

revisatildeo e retomada do caminho que havia trilhado ateacute ali vinculando nesse

momento o projeto deste livro com aqueles jaacute desenvolvidos em La Structure

du comportement A questatildeo era compreender como se datildeo as relaccedilotildees entre

consciecircncia e Natureza entre o interior e o exterior entre as visadas do

idealismo e os resultados do realismo entre o sens e o non-sens entre as

diferentes visadas presentes na compreensatildeo do homem O que possibilita

no mundo a criaccedilatildeo de sentido Enquanto o realismo procurava inserir as

consciecircncias em um uacutenico ldquotecido do mundo objetivordquo ldquoo proacuteprio do

idealismo eacute admitir que toda significaccedilatildeo eacute centriacutefuga eacute um ato de

significaccedilatildeo ou de Sinn-gebung [expressatildeo ainda presente nas Ideen I] e que

natildeo existe signo naturalrdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 574) A percepccedilatildeo

compreendida a partir da fenomenologia havia justamente mostrado que a

coisa mais do que sua ldquosignificaccedilatildeordquo era a presenccedila em noacutes do proacuteprio

mundo Diante de uma compreensatildeo ek-staacutetica do sujeito mais do que uma

ldquointencionalidade de atordquo do que um ato de significaccedilatildeo o que se

manifestava era um ldquoLoacutegos do mundo esteacuteticordquo uma ldquoarte escondida nas

profundezas da alma humanardquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 575) Se haacute

pois uma diferenccedila entre estrutura e significaccedilatildeo eacute que ldquoa segunda eacute

reconhecida por um entendimento que a engendrardquo ao passo que a primeira

ldquopor um sujeito familiar ao seu mundo e capaz de compreendecirc-la como uma

modulaccedilatildeo deste mundo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 575) Se algo tem

sentido para mim eacute porque sou capaz de olhaacute-lo de experienciaacute-lo e isto a

partir de um determinado ponto de vista Por conseguinte

No mundo em si todas as direccedilotildees assim como todos os movimentos satildeo relativos o que significa dizer que ali eles natildeo existem Natildeo haveria movimento efetivo e eu natildeo teria a noccedilatildeo do movimento se na percepccedilatildeo eu natildeo deixasse a terra enquanto ldquosolordquo de todos os repousos e de todos os movimentos aqueacutem do movimento e do repouso porque eu a habito e da mesma maneira natildeo haveria direccedilatildeo sem um ser que habite o mundo e que por seu olhar trace ali a primeira direccedilatildeo-referecircncia [] Com o mundo enquanto berccedilo das significaccedilotildees e solo de todos os pensamentos noacutes descobriacuteamos o meio de ultrapassar a alternativa entre realismo e idealismo acaso e razatildeo absoluta non-sens e sens O mundo tal como tentamos mostraacute-lo enquanto unidade primordial de todas as nossas experiecircncias no horizonte de nossa vida e termo uacutenico de todos os nossos projetos natildeo eacute mais o desenvolvimento visiacutevel de um Pensamento constituinte nem uma reuniatildeo fortuita de partes nem bem entendido a operaccedilatildeo de um pensamento diretriz sobre uma

70

mateacuteria indiferente mas a paacutetria de toda racionalidade (MERLEAU-PONTY 1999 p 575-576)

Ora eacute interessante como de certo modo este trecho nos lembra

a ceacutelebre abertura de LrsquoOEil et lrsquoEsprit ldquoa ciecircncia manipula as coisas e

renuncia a habitaacute-las Fabrica para si modelos internos delas e operando

sobre esses iacutendices ou variaacuteveis as transformaccedilotildees por sua definiccedilatildeo soacute de

longe em longe (se) defronta com o mundo atualrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b

p 85 o grifo eacute nosso) Para Merleau-Ponty o que a fenomenologia nos

ensina sobretudo eacute o retorno a uma experiecircncia originaacuteria do mundo a ldquo[]

este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala e

em relaccedilatildeo ao qual toda determinaccedilatildeo cientiacutefica eacute abstrata significativa e

dependente []rdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 4) agrave Terra como ldquopaacutetria de

toda racionalidaderdquo ou como diraacute Husserl o retorno a um solo e a uma

camada originaacuteria ao berccedilo de toda significaccedilatildeo Trata-se por conseguinte

de uma criacutetica a uma ciecircncia que recusando-se a ldquohabitarrdquo o mundo

esqueceu-se de seu nascimento fazendo para si um mundo artificial e

crendo ser ele o mundo verdadeiro pois ldquoo mundo eacute natildeo aquilo que eu

penso mas aquilo que eu vivo eu estou aberto ao mundo comunico-me

indubitavelmente com ele mas natildeo o possuo ele eacute inesgotaacutevelrdquo (MERLEAU-

PONTY 1999 p 14) Por conseguinte com a compreensatildeo da Terra como

ldquoarqui-originaacuteriardquo ao contraacuterio de um universo de ldquopuras coisasrdquo Husserl

introduz um sistema de experiecircncia fundado na vivecircncia dos ldquoquase-

objetosrdquo Ao falar em uma Terra como morada de uma ldquoespacialidaderdquo e

ldquotemporalidaderdquo preacute-objetivas preacute-teoreacuteticas Husserl a tornou o solo e a

historicidade de um sujeito encarnado transtornando inclusive a nossa

concepccedilatildeo da verdade uma vez que ldquo[] antes de ser lsquoobjetivarsquo ela habita a

ordem secreta dos sujeitos encarnadosrdquo (MERLEAU-PONTY 1969 p 91) Se

a Natureza cartesiana nos insere em universo de ldquopuras coisasrdquo a arqui-

originaacuteria Terra nos mergulha em um campo de presenccedila no domiacutenio de

uma Urpraumlsenz de uma presenccedila originaacuteria A relaccedilatildeo existente entre o

sujeito e a ldquocoisa material objetivardquo natildeo eacute mais dada pelas normas do meacutetodo

e da representaccedilatildeo mas se torna uma espeacutecie de nervura dado que ldquoentre

71

os movimentos do meu corpo e as lsquopropriedadesrsquo da coisa revelada por eles

emerge uma relaccedilatildeo do lsquoeu possorsquo com as maravilhas que tem o poder de

suscitarrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 247)

Por fim procuramos mostrar o modo como Husserl esboccedila uma

ldquocrise da Razatildeordquo e como a relaciona a um projeto claacutessico de matematizaccedilatildeo

da Natureza Como personagem principal encontramos Galileu Contudo de

que modo Merleau-Ponty assumiria estas reflexotildees A este respeito parece-

nos que a presenccedila de Descartes torna-se fundamental pois seraacute nele que o

filoacutesofo iraacute encontrar as trilhas que o conduziratildeo a uma compreensatildeo

etioloacutegica das peripeacutecias do cientificismo ou antes do naturalismo das

ciecircncias e portanto de uma situaccedilatildeo de ldquocriserdquo Eacute pensando nisso que no

proacuteximo capiacutetulo tentaremos apresentar primeiro o que Merleau-Ponty

entende por ldquomundo claacutessicordquo elucidando os embaraccedilos da concepccedilatildeo

cartesiana de ldquorepresentaccedilatildeordquo Por uacuteltimo apoacutes estes delineamentos iremos

nos centrar no modo como isso se articula segundo o filoacutesofo em uma ldquocrise

nas nossas relaccedilotildees com a Naturezardquo

72

CAPIacuteTULO II OS LIMITES DO MUNDO CLAacuteSSICO E O TEATRO CARTESIANO

O PROBLEMA DA REPRESENTACcedilAtildeO

21 Um ponto de partida o mundo claacutessico e o mundo moderno

Para Merleau-Ponty se fosse o caso de datar o pensamento

moderno ele se manifesta no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX eacute

assim que em suas Causeries de 1948 diz entender por arte e pensamento

modernos os que se apresentavam no cenaacuterio filosoacutefico de seu tempo haacute uns

50 ou 70 anos (MERLEAU-PONTY 2002d p 21) Anterior a isto o que

encontramos tendo sua gecircnese no seacuteculo XVII eacute o pensamento claacutessico o

mesmo que iria fincar raiacutezes e servir de modelo apesar de algumas

transformaccedilotildees para o ideaacuterio cientificista do iniacutecio do seacuteculo XIX Contudo

como podemos entender o pensamento moderno ou como diraacute o filoacutesofo o

ldquomundo modernordquo Tendo em vista o modo como fora recebido certamente

natildeo passaria de um ldquopensamento bizantinordquo aquele mesmo que ldquonatildeo tendo

nada para dizerrdquo acabava substituindo a ldquoarte pela sutilezardquo (MERLEAU-

PONTY 2002d p 27) Para o filoacutesofo contudo tal juiacutezo se dava pela

dificuldade em compreender que na verdade o que norteava tal pensamento

era sobretudo um retorno agrave experiecircncia pois se encontramos dificuldades

nele se o consideramos radicalmente oposto ao senso comum eacute justamente

ldquo() porque tem a preocupaccedilatildeo da verdade e porque a experiecircncia jaacute natildeo lhe

permite honestamente ater-se a ideias claras ou simples agraves quais o senso

comum estaacute ligado porque lhe datildeo a tranquilidaderdquo (MERLEAU-PONTY

2002d p 27) Natildeo tendo mais a ilusatildeo de esgotar a verdade do mundo resta

aos modernos tatildeo-somente se enveredar pelos misteacuterios que este mesmo

mundo lhes revela Neste sentido o que gera a impressatildeo de decliacutenio ou de

decadecircncia na verdade eacute o que lhe impulsiona eacute o reconhecimento de um

pensamento marcado ao mesmo tempo pelo inacabamento e pela

ambiguidade Se outrora Descartes julgava ldquo() poder deduzir de uma vez

por todas dos atributos de Deus as leis da queda dos corposrdquo (MERLEAU-

73

PONTY 2002d p 64) a ciecircncia moderna natildeo cultiva a mesma pretensatildeo

suas constataccedilotildees se apresentam sempre ora como ldquoprovisoacuteriasrdquo ora como

ldquoaproximadasrdquo ocorrendo o mesmo na arte que ao contraacuterio de obras

completas parece nos oferecer antes simples ldquoesboccedilosrdquo Daiacute a conclusatildeo de

Merleau-Ponty

O coraccedilatildeo dos modernos eacute pois um coraccedilatildeo intermitente e que natildeo chega a conhecer-se Nos modernos natildeo soacute as obras satildeo inacabadas mas o proacuteprio mundo tal como elas o expressam eacute como que uma obra sem conclusatildeo e acerca da qual natildeo se sabe se alguma vez teraacute uma Desde que natildeo se trate unicamente da natureza mas do homem o inacabamento redobra-se com um inacabamento de princiacutepio [] (MERLEAU-PONTY 2002d p 65)

O ldquocoraccedilatildeo intermitente dos modernosrdquo como diraacute o filoacutesofo

esboccedila pois a proacutepria ambiguidade do pensamento ambiguidade que os

claacutessicos especialmente no Pequeno Racionalismo munidos pela eficaacutecia do

meacutetodo pensavam ter expurgado de vez do universo da filosofia e das

ciecircncias Ora o que seria este Pequeno Racionalismo Para acompanhar a

percepccedilatildeo de Merleau-Ponty sobre a histoacuteria do pensamento ao inveacutes de um

conceito uniacutevoco precisamos compreender o mundo claacutessico desdobrado em

dois racionalismos o Grande Racionalismo do seacuteculo XVII e o Pequeno

Racionalismo ldquo[] aquele professado ou discursado por volta de 1900 e que

consistia na explicaccedilatildeo do Ser pela ciecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1960 p

179) O que ocorre na passagem de um para outro No Pequeno

Racionalismo perde-se a ldquoambiguidaderdquo que movia o seacuteculo XVII perde-se o

sentimento presente na ciecircncia daquele tempo de uma ldquoopacidade do

mundordquo Seria pois o caso de se buscar o ldquocomeccedilo perdidordquo O que

percebemos ocorrer no mundo claacutessico Para Merleau-Ponty neste

momento deparamo-nos com o que viria a ser um dos limites do Pequeno

Racionalismo a saber o engendramento das bifurcaccedilotildees conceituais que satildeo

por ele engendradas e cristalizadas por um lado e por outro a valorizaccedilatildeo

de uma espeacutecie de lekton [leacutekton]39 de uma entidade incorpoacuterea de cunho

39 A critica a um universo em si do leacutekton surge especialmente nas Notas de Trabalho ldquoReacuteflexion = ideacutee drsquoune coiumlncidence avec constituant drsquoun retour ideacutee drsquoun Sinnesquelle Le faitest que nous avons cette ideacutee ndash Mais solidaire de lrsquoideacutee de Wesen ou Wesheit cad de

74

loacutegico-racional que serviria de orientaccedilatildeo para todo o arcabouccedilo teoacuterico que

institui O que isto quer dizer

Se haacute algo que nos ensina o mundo moderno para Merleau-

Ponty eacute que filosofar natildeo significa comeccedilar seja pela Natureza seja por

Deus seja pelo homem nem muito menos substituir a experiecircncia vivida do

mundo por um arcabouccedilo de significados pela ordem loacutegica das

significaccedilotildees40 Ao privilegiar um determinado ente as ciecircncias a filosofia e

a arte claacutessicas acabaram por se situar no interior de um labirinto uma vez

que cada objeto tornado uma espeacutecie de modelo arquetiacutepico no mesmo

instante em que de uma tendecircncia filosoacutefica (assim como o Naturalismo o

Teiacutesmo o Humanismo) tornaram-se originantes tambeacutem

consequentemente de seacuterios estrabismos ou jogos epistemoloacutegicos nos

quais por exemplo um humanismo naturalista pode ao mesmo tempo

compartilhar de um naturalismo humanista e assim por diante41 Em outros

termos para Merleau-Ponty a definiccedilatildeo de um pensamento em relaccedilatildeo a

lrsquounivers du lekton ndash la reacuteflexion derniegravere ne peut ecirctre celle-lagrave il faut que ce soit preacuteciseacutement non la Wortbedeutung mais sa confrontation avec expeacuterience muette ie ne preacutesupposant pas la Wesheit fondant le langagerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VII [125]) Para Merleau-Ponty trata-se sobretudo de uma criacutetica a um absolutismo do ldquouniverso da significaccedilatildeordquo A seu ver para que haja uma ldquoontologia radicalrdquo eacute preciso saber apreciar o valor de noccedilotildees tais como ldquoessecircncia existecircncia sujeito objeto espiacuterito mateacuteria possiacutevel atualrdquo como ldquomaneiras de serrdquo ao inveacutes de tomar uma dessas noccedilotildees como fundamento de todas as outras Eacute preciso compreender de que modo ldquotodas essas maneiras de ser tecircm em comum sua pertenccedila a um mesmo mundordquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VII [147]) Neste sentido o problema da loacutegica estaria em entender o mundo como ldquoum caso particular de algo em geralrdquo fazendo deste ldquoalgo em geralrdquo objeto de seu estudo Logo a loacutegica torna-se um estudo de um modo de ser apenas ou seja o leacutekton natildeo podendo a ontologia lhe ser submissa Pelo contraacuterio a questatildeo natildeo estaacute em pensar em ldquosubmissatildeordquo mas em ldquointeraccedilatildeordquo quer dizer em compreender ldquocomo se articulam as maneiras de ser no interior do serrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VII [147]) Para o filoacutesofo a existecircncia de um universo em si do leacutekton o positivismo da Wortbedeutung significa a negaccedilatildeo do ldquomundo brutordquo Em 212 retomaremos estas questotildees 40 ldquoMon plan 1 le visible 2la Nature 3le logos doit ecirctre preacutesenteacute sans aucun compromis avec lrsquohumanisme ni drsquoailleurs avec le naturalisme ni enfin avec la theacuteologie ndash Il srsquoagit preacuteciseacutement de montrer que la philosophie ne peut plus penser suivant ce clivage Dieu lrsquohomme les creacuteatures - qui eacutetait le clivage de Spinozardquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 322) 41 Referimo-nos aqui especialmente agrave leitura merleau-pontiana de Marx para o qual ldquolrsquohumanisme est antihumanisme degraves lors que le neacutegatif est dans lrsquoecirctre mecircmerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VI [2]) ldquoLrsquohumanisme Un humanisme [anthropologiste] est deacutenonceacute avec raison comme une forme de naturalisme Mais alors qursquoest-ce que le vrai humanisme Le vrai humanisme renferme un anti-humanisme ndash Heidegger Sartre Deacutebut du question avec Marx le vrai naturalisme est humanisme et le vrai humanisme est naturalisme rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF vol VI [7] B)

75

certos seres seraacute uma das razotildees das ruiacutenas ou confusatildeo que viriam a ser

desdobradas pelo mundo claacutessico pois ldquoacreditava-se que a filosofia

consistia em investigar se estes seres satildeo ou natildeo e se um pode lsquoexplicarrsquo e

lsquofundarrsquo o resto a partir de sirdquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2)) No

entanto pensando na tarefa da filosofia em uma de suas notas a postura

de Merleau-Ponty eacute contundente ldquoPartir de um ser definir a filosofia como

partindo de eacute jaacute abandonar a filosofiardquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4]

(2)) Nisto se explicam as anotaccedilotildees feitas nas margens desta mesma nota

Pois a filosofia busca o que faz com que um ser seja e esteja em conexatildeo com os outros Seu ponto de partida eacute provisoacuterio ele seraacute transformado pela sequecircncia Ele eacute a notaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de partida que ela mesma deve ser [recolocada] em uma [unidade] totalidade Desenvolvimento circular ndash Eacute a diferenccedila com os pontos de vista ou as sagesses ndash Ela natildeo pode se contentar com o ponto de vista do homem ou de Deus ou da Natureza nem ver todas as coisas do ponto de vista de um dos seres (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))

Contra um pensamento articulado por categorias42 o filoacutesofo

nota antes especialmente partindo do mundo moderno a existecircncia de uma

ldquomisturardquo entre elas entre estas instacircncias uma ldquomisturardquo entre o ldquoser

naturalrdquo e o ldquoser humanordquo a existecircncia de uma ldquocoesatildeo do ser que faz com

que natildeo seja possiacutevel verdadeiramente lsquocomeccedilarrsquo pelas criaturasrdquo

(MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2)) O mesmo se daria com a afirmaccedilatildeo de

um Deus todo ldquopositivordquo do qual o homem seria consequecircncia e que

acabaria por se tornar todo ldquonegativordquo no instante em que a reflexatildeo se vecirc

obrigada a postular um irrefletido posto que o homem que eacute consequecircncia

de Deus eacute precisamente o mesmo que assumiria a tarefa de pensaacute-lo logo

ldquopartir de Deus natildeo eacute partir de Deus (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))

Da mesma forma o comeccedilo pelo homem conduzira a embaraccedilos como o

problema da autoposiccedilatildeo da consciecircncia frente a uma Natureza ndash que

perdera todo o seu sentido ao ser entendida unicamente como a negaccedilatildeo do

espiacuterito ndash e frente ao outro ndash que perdera a sua autonomia em meio agraves

42 Pensamos aqui por exemplo nas relaccedilotildees essecircncia existecircncia possiacutevel atual causalidadefinalidade mateacuteria forma

76

visadas de uma subjetividade absoluta O que este quadro nos revela Diraacute o

filoacutesofo ldquo[] o acabamento da Filosofia concebida como Erklaumlrung ou

Begruumlndung instalaccedilatildeo em um ser e construccedilatildeo de todo o resto a partir

deste ser []rdquo(MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2)) Para Merleau-Ponty

nesta aparente decadecircncia e decliacutenio encontramos justamente a

necessidade de um ldquorecomeccedilordquo O que podemos aprender disto

Eacute preciso que seja entendido que o comeccedilo eacute apenas comeccedilo de fato que natildeo determina a sequecircncia de maneira linear onde encontrariacuteamos um comeccedilo que conteacutem tudo (mesmo se fosse Deus ndash eu ao menos como distinto dele ele natildeo me conteacutem) Eacute preciso que seja entendido que a filosofia eacute circularidade Natildeo a falsa circularidade hegeliana ciacuterculo no qual eu natildeo sou tomado [] (contra a filosofia da certeza ou criacutetica e Filosofia da [razatildeo] que parte da [circularidade] de um pensamento que lhe atinge e que todavia natildeo dispotildee de nenhuma verdade concreta [separada] de minha certeza de pensar em geral) Isto quer dizer tambeacutem eacute preciso que seja [entendido] que noacutes natildeo sabemos o que eacute a Natureza o cogito ou o pensamento nem Deus e que temos inteiramente que redefinir estes seres a partir de um problema do ser que ignora essas bifurcaccedilotildees essecircnciaexistecircncia fimcausa espiacuteritocorpo sujeitoobjeto finitoinfinito e que natildeo compartilha mais dos [pressupostos] das ciecircncias os quais satildeo da Filosofia Quando se retorna mais aqueacutem procura-se o sentido do Ser que natildeo seja ser da Natureza ser do homem ser de Deus mas que seja o estofo no qual tudo isto estaacute talhado no qual tudo isso foi talhado o visiacutevel o invisiacutevel e o invisiacutevel em segundo potecircncia isto eacute Deus (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))43

Como podemos notar se para Merleau-Ponty haacute uma

circularidade ou seja a ideia de que ldquohaacute um mundo antes de mim (natildeo

43 ldquoLeccedilon agrave tirer de tout cela il faut qursquoil soit entendu que le commencement nrsquoest que commencement de fait qursquoil ne deacutetermine pas la suite de maniegravere lineacuteaire ougrave trouverait-on un commencement qui contienne tout (mecircme si crsquoest Dieu ndash moi du moins comme distinct de lui il ne me contient pas) Il faut qursquoil soit entendu que la PH est circulariteacute Non pas la fausse circulariteacute heacutegeacutelienne cercle ougrave je ne suis pas pris ndash Mais la circulariteacute qui tient agrave ce que je suis deacutejagrave apporteacute quand je pense et je ne mrsquoapporte pas moi-mecircme] (contre PH de la certitude ou critique et PH de la[raison] qui part de la [circulariteacute] drsquoune penseacutee qui y atteint et qui cependant ne dispose drsquoaucune veacuteriteacute concregravete [seacutepareacutee] de ma certitude de penser en geacuteneacuteral) Ceci veut dire aussi il faut qursquoil soit [entendu] que nous ne savons pas ce que crsquoest que la Nature le cogito ou la penseacutee ni Dieu et que nous avons entiegraverement agrave redeacutefinir ces ecirctres agrave partir drsquoune probleacutematique de lrsquoEtre qui ignore toutes les bifurcations essence existence fin cause esprit corps sujet objet fini infini et qui ne partage pas non plus les [preacutesupposeacutes] de la science lesquels sont de la PH Quand on revient en deccedilagrave on cherche sens de lrsquoEtre qui ne soit pas ecirctre de la Nature ecirctre de lrsquohomme ecirctre de Dieu mais qui soit lrsquoeacutetoffe dans laquelle tout cela a eacuteteacute tailleacute le visible lrsquoinvisible et lrsquoinvisible agrave la seconde puissance ie Dieurdquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))

77

somente fiacutesico mas de cultura histoacuteria) a linguagem e a cultura estatildeo

[nele]rdquo44 natildeo haacute sentido em falar apenas de ldquocomeccedilordquo que seja tido por sua

vez como absoluto tal como encontramos no mundo claacutessico o mesmo

ensejo que encontrariacuteamos dentre as ruiacutenas de um pensamento estraacutebico

aquele fruto de uma diplopia instaurada conforme veremos adiante pelo

pensamento cartesiano Eacute assim que o Pequeno Racionalismo perdendo o

horizonte que movia o seacuteculo XVII fez de seus anseios um projeto

cristalizado preso aos equiacutevocos que sua ausecircncia mesma de movimento

que suas idealizaccedilotildees ou esquecimento da ldquopluralidade de relaccedilotildeesrdquo vieram

instituir Eacute assim que a ambiguidade e o inacabamento do mundo moderno

mesmo tendo-se em vista ser fruto de uma ldquoilusatildeo retrospectivardquo que se

tornara instituiccedilatildeo ndash aquela que levara o Pequeno Racionalismo a cristalizar

as tensotildees filosoacuteficas do Grande Racionalismo ndash em contrapartida agraves

acusaccedilotildees de natildeo passar de um pensamento difiacutecil ou bizantino cumpre a

tarefa de nos mostrar os equiacutevocos do mundo claacutessico Nisto encontramos

talvez as razotildees pelas quais Merleau-Ponty vislumbrara entre a ciecircncia

claacutessica e a ciecircncia moderna uma diferenccedila de natureza as razotildees pelas

quais tomando a identificaccedilatildeo dos prejulgamentos do mundo claacutessico como

tarefa ele desejara romper com uma visatildeo que ainda se fazia presente natildeo

soacute na filosofia mas tambeacutem na arte na literatura na psicologia na ciecircncia e

na cultura Por conseguinte para o filoacutesofo

natildeo eacute uma decadecircncia que nos separa do seacuteculo XVII mas um progresso de consciecircncia e de experiecircncia Os seacuteculos seguintes aprenderam que o acordo de nossos pensamentos evidentes com o mundo existente natildeo eacute tatildeo imediato que nunca estaacute sem apelo que nossas evidecircncias nunca podem vangloriar-se de regular na sequecircncia todo o desenvolvimento do saber que as consequecircncias refluem sobre os ldquoprinciacutepiosrdquo que precisamos nos preparar ateacute para refundir as noccedilotildees que acreditaacutevamos ldquoprimeirasrdquo que a verdade natildeo eacute obtida por composiccedilatildeo indo do simples ao complexo e da essecircncia agraves propriedades que natildeo podemos nem podemos instalar-nos no centro dos seres fiacutesicos e mesmo matemaacuteticos que eacute preciso inspecionaacute-los tateando de fora abordaacute-los com procedimentos

44 Na margem ldquocirculariteacute qui veut dire il y a un monde avant moi (non seulement physique mais de culture histoire) le langage et lrsquohistoire [en] [y] sontrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))

78

obliacutequos interrogaacute-los como pessoas (MERLEAU-PONTY 1975b p 229-230)45

Contudo para Merleau-Ponty algo mais ocorre na passagem do

Grande para o Pequeno Racionalismo fazendo com que ocorra nas relaccedilotildees

entre filosofia e ciecircncia uma mudanccedila radical Quais as razotildees De acordo

com o filoacutesofo a noccedilatildeo de ldquoinfinito positivordquo ou ldquoinfinitamente Positivordquo46 que

servia de fundamento comum agraves filosofias do seacuteculo XVII conforme veremos

mais adiante fazia desta eacutepoca um ldquomomento privilegiadordquo capaz de

estabelecer uma certa harmonia entre ldquoo conhecimento da naturezardquo e a

ldquometafiacutesicardquo uma espeacutecie de acordo entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 227) Filosofia e ciecircncia participariam de um

mesmo interior que natildeo seria de modo algum asfixiado por uma pura

exterioridade Sendo assim eacute que podemos notar de que modo o mundo

claacutessico pocircde reconhecer uma espeacutecie de ser que apesar de encontrar-se em

uma cadeia de relaccedilotildees causais natildeo romperia com ela47 Este ser reenviava

justamente agrave ideia que possibilitou de modo paradoxal segundo Merleau-

Ponty o sucesso do Grande Racionalismo e que se manteria soacute enquanto ela

permanecesse48 Todavia tendo perdido esta unidade filosofia e ciecircncia

passariam a se encontrar em lados opostos Mesmo havendo jaacute no Grande

45 Assim como continua o filoacutesofo ldquoEra preciso entatildeo voltar aos princiacutepios recolocaacute-los no plano das lsquoidealizaccedilotildeesrsquo justificadas enquanto anima a investigaccedilatildeo desqualificadas quando a paralisam aprender a medir nosso pensamento com a existecircncia que como iria dizer Kant natildeo eacute um predicado regressar agrave origens do cartesianismo para ultrapassaacute-lo reencontrar a liccedilatildeo desse ato criador que instituiacutera um longo periacuteodo de pensamento fecundo mas cuja virtude se esgotara no pseudocartesianismo dos epiacutegonos e exigia doravante ser recomeccedilado Foi preciso aprender a historicidade do saber estranho movimento onde o pensamento abandona e salva suas foacutermulas antigas integrando-as como casos particulares e privilegiados em um pensamento mais compreensivo e geral que natildeo pode decretar-se exaustivo Esse ar de improviso e provisoacuterio esse jeito meio desvairado das investigaccedilotildees modernas tanto em ciecircncia como em filosofia na literatura ou nas artes eacute o preccedilo que se paga para adquirir uma consciecircncia mais madura de nossas relaccedilotildees com o serrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 229-230) 46 A este respeito provavelmente seguindo nisto a tese de Koyreacute (KOYREacute 1988) 47 Especialmente pensadores como Descartes Espinosa Leibniz e Malebranche 48 Haacute nisso inclusive um elogio de Merleau-Ponty ao ldquoGrande Racionalismordquo fazendo com que veja ali de certa forma algo comum com o seu projeto filosoacutefico Eacute assim que confessaraacute ao se referir a este periacuteodo que ldquocomo ele procuramos natildeo restringir ou desacreditar as iniciativas da ciecircncia mas situaacute-la como sistema intencional no campo total de nossas relaccedilotildees com o Ser e se a passagem ao infinitamente infinito natildeo nos parece ser a soluccedilatildeo eacute somente porque retomamos mais radicalmente a tarefa que aquele seacuteculo intreacutepido acreditara ter cumprido para semprerdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 231)

79

Racionalismo uma cisatildeo entre racionalismo e empirismo faltava poreacutem

uma radicalidade o que jaacute natildeo iria ocorrer no Pequeno Racionalismo

principalmente quando essa cisatildeo passara a apresentar novas antinomias ndash

tais como vemos nas disputas entre ldquomecanicismordquo e ldquovitalismordquo ndash cujos

antagonismos diferentemente do seacuteculo XVII natildeo iriam mais se tratar de

uma simples ldquoopccedilatildeo filosoacuteficardquo49 o que nos leva a verificar portanto uma

ruptura no interior disto que o proacuteprio Merleau-Ponty apelidara unicamente

de ldquomundo claacutessicordquo Por que entatildeo dada a diferenccedila entre estes dois

racionalismos natildeo buscar uma outra denominaccedilatildeo Eacute que para o filoacutesofo

em meio a essa ruptura o Pequeno Racionalismo natildeo deixara de ser na

verdade uma espeacutecie de ldquofoacutessilrdquo do Grande Racionalismo um ldquofoacutessilrdquo que

por conseguinte iraacute se desdobrar em uma ldquometafiacutesica cientificistardquo cuja

pretensatildeo paradoxalmente era romper o seu parentesco com a filosofia e

suas abstraccedilotildees Encontramo-nos pois em um cenaacuterio no qual ldquo() em

toda parte onde um condicionamento era revelado pensava-se ter silenciado

toda questatildeo resolvido o problema da essecircncia com o da origem

restabelecido o fato sob a obediecircncia de sua causardquo (MERLEAU-PONTY

1975b p 227) Logo

a questatildeo entre ciecircncia e metafiacutesica reduzia-se somente a saber se o mundo era um soacute e grande processo submetido ao mesmo ldquoaxioma geradorrdquo cuja foacutermula miacutestica seria a uacutenica coisa que restaria para ser repetida no fim dos tempos ou se havia por exemplo no ponto em que a vida surge lacunas descontinuidades onde se pudesse alojar a potecircncia antagocircnica do espiacuterito Cada conquista do determinismo era uma derrota do sentido metafiacutesico cuja vitoacuteria exigia a ldquofalecircncia da ciecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 227)

Apesar disso poreacutem o que a ciecircncia do Pequeno Racionalismo

natildeo podia negar era a presenccedila em seus fundamentos de um ldquonaturalismordquo

que tivera sua gecircnese no seacuteculo XVII Basta notar nos discursos cientiacuteficos

49 Deste modo Merleau-Ponty refere-se ao seacuteculo XVII como ldquo[] um tempo em que o universo mental natildeo estava dilacerado e onde um mesmo homem podia sem concessatildeo ou artifiacutecio dedicar-se agrave filosofia agrave ciecircncia (e se o desejasse agrave teologia) Natildeo obstante essa paz essa indivisatildeo soacute poderiam durar enquanto se permanecesse na entrada dos trecircs caminhosrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 229) Qual a razatildeo dessa possibilidade Continua o filoacutesofo estaacute no fato de que ldquoo seacuteculo XVII acreditou no acordo imediato da ciecircncia com a metafiacutesica e ademais com a religiatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 230)

80

a constante presenccedila de ideias marcadamente cartesianas como ldquogeraccedilatildeo

continuadardquo ldquoaccedilatildeo produtorardquo ldquorepresentaccedilatildeordquo ldquocausalidaderdquo dentre

outras valendo o mesmo para o ldquohumanismordquo o ldquoteiacutesmordquo ou mesmo o

ldquoneopositivismo loacutegicordquo Eacute assim que em meio a estes parentescos e desvios

percebemos emergir ao mesmo tempo um primado da exterioridade e o

compromisso com as consequecircncias de uma ideia cujos princiacutepios se

perderam atitude esta que podemos nomear de ldquomitordquo segundo Merleau-

Ponty seja ele o das ldquoleis naturaisrdquo ou da ldquoexplicaccedilatildeo cientiacuteficardquo seja ele por

exemplo o da ldquoexplicitaccedilatildeordquo do ldquonadardquo que encontrariacuteamos apoacutes a vida tal

como se estivesse se tratando de um ldquodestino supra-sensiacutevelrdquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 277) Em outros termos mantendo em seus fundamentos

as consequecircncias do seacuteculo XVII sem repensar os seus princiacutepios por

conseguinte nutrindo em suas bases uma clivagem configurada em anaacutelises

fiacutesico-matemaacuteticas a ciecircncia claacutessica de um modo geral via-se jaacute em seus

alicerces envolta em muitos embaraccedilos Nisto estaacute a razatildeo pela qual

mergulhado em uma metafiacutesica realista campo dos embates entre vitalismo

e mecanicismo o pensamento bioloacutegico ainda permanecia claacutessico era ainda

a expressatildeo de uma ldquoontologia do objetordquo sendo que ldquoa imagem do

organismo eacute em sua grande parte aquela de uma massa material partes

extra partesrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 29) Do mesmo modo no que diz

respeito agrave psicologia ldquono iniacutecio do seacuteculo o materialismo fazia do lsquopsiacutequicorsquo

um setor particular do mundo real dentre os acontecimentos em si alguns

no ceacuterebro tinham a propriedade de existir tambeacutem por sirdquo (MERLEAU-

PONTY 2006 p 29) jaacute que tendo-se em conta o pensamento criticista natildeo

lhe restava outro recurso senatildeo o de ser ldquo() por um lado uma lsquopsicologia

analiacuteticarsquo que paralelamente agrave geometria analiacutetica reencontraria o juiacutezo

sempre presente e por outro lado um estudo de certos mecanismos

corporaisrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 30) Todavia para Merleau-Ponty eacute

preciso que se abandone a concepccedilatildeo da Natureza como uma maacutequina

regida pelas leis de uma ldquofiacutesica matematizadardquo que tanto marcaria tambeacutem o

Grande Racionalismo e as ciecircncias que tentassem se modelar em suas

consequecircncias Daiacute o fato de que suas criacuteticas dirigidas por exemplo agrave

psicologia e agrave fisiologia claacutessicas datildeo-se justamente no intuito de levaacute-las a

81

natildeo mais reduzir o homem a uma maacutequina psiacutequica ou a um organismo

determinado por leis naturais necessaacuterias e universais

Todavia em contrapartida de acordo com Merleau-Ponty a

fiacutesica de sua eacutepoca parecia neutra ante o embate entre filosofia e ciecircncia

Aparentemente aquela abordagem fiacutesica mesmo que no campo cientiacutefico

natildeo apresentava grandes problemas ao pensamento criticista Para o fiacutesico

moderno neste sentido a metafiacutesica natildeo passaria de uma mera ldquoquestatildeo de

estilordquo Em Einstein et la crise de la raison eacute interessante assinalar o modo

como segundo Merleau-Ponty Einstein ilustraria bem esta crise na qual o

fiacutesico ainda utilizava a mesma linguagem da metafiacutesica claacutessica embora

suas descobertas ironicamente rompessem radicalmente com esta mesma

metafiacutesica Contudo embora o fiacutesico moderno se sinta um sujeito absoluto

ante seu objeto o fato eacute que suas descobertas transcendem a linguagem na

qual ainda se encontrava cativo Sendo assim mais do que neutra ante o

Pequeno Racionalismo tanto do cientista (Realismo Mecanicismo) quanto do

filoacutesofo (Espiritualismo Vitalismo) e mais do que promover por meio de sua

neutralidade a legitimaccedilatildeo do pensamento criacutetico o fato eacute que a fiacutesica

moderna romperia com estas clivagens do pensamento

No mundo moderno a ldquonova ciecircnciardquo natildeo se prende mais a

um discurso alicerccedilado em antagonismos50 Natildeo se trata mais de um

discurso fundamentado apenas no sujeito ou de um discurso fundamentado

apenas no objeto Neste contexto a anaacutelise cartesiana da cera por exemplo

o despojamento das qualidades ao qual o objeto se sujeitava na fiacutesica

claacutessica em sua ldquoobsessatildeo matemaacuteticardquo apresenta-se como um contra-

senso Contudo em linhas gerais como podemos diferenciar ldquofiacutesica

modernardquo e ldquofiacutesica claacutessicardquo A fiacutesica claacutessica aquela promulgada pelo

Grande Racionalismo e tatildeo bem expressa em Laplace afirmava-se no dizer

de Merleau-Ponty ou por um causalismo ou por uma concepccedilatildeo analiacutetica

do Ser ou ateacute mesmo por uma concepccedilatildeo espacial do ser natural na qual

os seres teriam uma existecircncia meramente extensiva Deste modo citando

50 A este respeito poderiam atestar os estudos de Le Roy Poincareacute e Duhem

82

Bachelard Merleau-Ponty ressaltava que ldquoos seres laplacianos natildeo satildeo

simples substancializaccedilotildees da funccedilatildeo ser situadordquo (BACHELARD 1951 p

294) ldquoo que exclui a ideia de um ser em devirrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p

143)

Desta afirmaccedilatildeo bachelardiana ele concluiraacute que ldquoa diferenccedila

entre esse classicismo e o pensamento cientiacutefico moderno eacute que um pensa

que se deve compreender o Ser antes de compreender o seu comportamento

ao passo que o outro soacute apreende seu ser apreendendo seu comportamentordquo

(MERLEAU-PONTY 2000a p 143) Neste sentido vale-nos a suspeita de

Bachelard segundo o qual a negaccedilatildeo laplaciana de Deus natildeo seria nada

menos do que uma troca de hipoacutetese51 No fundo o espiacuterito do cientista

assumiria o papel do espectador universal do Kosmotheacuteoros ateacute entatildeo

ocupado por Deus52 Deste modo na fiacutesica moderna por estar abalizada

mais em ldquorelaccedilotildeesrdquo as instacircncias do sujeito e do objeto se encontram

embaralhadas mesmo que no caso de Einstein ainda haja um ideal

claacutessico pois ldquonatildeo eacute reclamando para a ciecircncia um gecircnero de verdade

metafiacutesica ou absoluta que protegeremos os valores da razatildeo que a ciecircncia

claacutessica nos ensinourdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 219) O problema estaacute

que como salienta ironicamente Merleau-Ponty ldquoo mundo aleacutem dos

neuroacuteticos conta com um bom nuacutemero de lsquoracionalistasrsquo que satildeo um perigo

para a razatildeo vivardquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 29) Para Merleau-Ponty

ldquopelo contraacuterio o vigor da razatildeo estaacute ligado ao renascimento de um sentido

filosoacutefico que certamente justifica a expressatildeo cientiacutefica do mundo poreacutem

em sua ordem em seu lugar no todo do mundo humanordquo (MERLEAU-

51 Bachelard nos lembra do encontro que Laplace tivera com Napoleatildeo Nesta ocasiatildeo ao ser indagado por Napoleatildeo sobre a ausecircncia de Deus em seu discurso Laplace simplesmente responde que natildeo precisara desta ldquohipoacuteteserdquo para fundamentar suas ideias 52 Esta suspeita torna-se bastante evidente a Merleau-Ponty nas seguintes palavras de Laplace proferidas no Essai philosophique sur les probabiliteacutes ldquoDevemos portanto considerar o estado presente do universo como o efeito de seu estado anterior e como a causa daquele que se seguiraacute Uma inteligecircncia que num instante dado conhecesse todas as forccedilas de que a Natureza estaacute afirmada e a situaccedilatildeo respectiva dos seres que a compotildeem se por outro lado ela fosse suficientemente vasta para submeter todos esses dados agrave anaacutelise englobaria na mesma foacutermula os movimentos dos maiores corpos do universo e aqueles do mais leve aacutetomo nada seria incerto para tal inteligecircncia e o futuro tanto quanto o passado estaria presente a seus olhosrdquo (LAPLACE Apud MERLEAU-PONTY 2000a p 142)

83

PONTY 2006 p 219) Nisto encontra-se o elogio de Merleau-Ponty agrave

mecacircnica quacircntica que ainda mais do que o proacuteprio Einstein subvertera

categorias fundamentais e se rebelara contra a antiga ontologia (MERLEAU-

PONTY 2000a p 143)

Eacute neste sentido que podemos compreender em Lrsquoœil et

lrsquoesprit a criacutetica que Merleau-Ponty faria a uma espeacutecie de ldquooperacionalismordquo

que ainda se fazia presente em algumas abordagens cientiacuteficas de seu

tempo Como ele mesmo diraacute ldquoa ciecircncia manipula as coisas e renuncia a

habitaacute-las Para si estabelece modelos internos das coisas ()rdquo visto que

ldquo() operando sobre estes iacutendices e variaacuteveis as transformaccedilotildees permitidas

pela sua definiccedilatildeo soacute se confronta de quando em quando com o mundo

atualrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 13) Prosseguindo estas ideias o

filoacutesofo chega agrave constataccedilatildeo de que

Haacute hoje em dia ndash natildeo na ciecircncia mas numa filosofia das ciecircncias assaz divulgada ndash isto de completamente novo a saber que a praacutetica construtiva se considera e se estabelece como autocircnoma e que o pensamento se reduz deliberadamente ao conjunto das teacutecnicas de apreensatildeo ou de captaccedilatildeo por si inventadas Pensar eacute experimentar operar transformar com a uacutenica reserva de uma verificaccedilatildeo experimental na qual natildeo interveacutem senatildeo fenocircmenos altamente ldquotrabalhadosrdquo e que os nossos aparelhos mais que registram produzem (MERLEAU-PONTY 1975b p 14)

Nestas palavras contudo natildeo podemos simplesmente

reconhecer uma negaccedilatildeo radical da ciecircncia Se pensarmos em Cavallier natildeo

podemos deixar que a celebridade destas linhas a primeiras de Lrsquoœil et

lrsquoesprit atrapalhe a compreensatildeo que possamos ter do projeto filosoacutefico de

Merleau-Ponty Ao inveacutes de se negar a ciecircncia em geral o que encontramos eacute

a explicitaccedilatildeo e recusa de um determinado modelo de ciecircncia de um dito

saber cientiacutefico que nos afasta de nossa vivecircncia do mundo e

consequentemente rompe o viacutenculo ontoloacutegico pelo qual nos encontramos

unidos a este mesmo mundo Por conseguinte mais do que uma recusa da

ciecircncia o que se visa eacute sobretudo uma determinada ldquofilosofia das ciecircnciasrdquo

84

seja aquela fundada somente no criticismo53 seja aquela resultada dos

desdobramentos de uma ldquofilosofia analiacuteticardquo54 No que diz respeito a esta

uacuteltima para o filoacutesofo ldquodizer que o mundo eacute por definiccedilatildeo o objeto X das

nossas operaccedilotildees eacute tornar absoluta a situaccedilatildeo de conhecimento do saacutebio [do

cientista] como se tudo aquilo que foi ou eacute soacute o fosse para entrar no

laboratoacuteriordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 15) Por conseguinte ldquoo

pensamento lsquooperatoacuteriorsquo converte-se em uma espeacutecie de artificialismo

absoluto ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 15) Como equiacutevoco o filoacutesofo

encontra nestas ideias o desejo de analisar o ser da ciecircncia apenas por

procedimentos de verificaccedilatildeo e de experimentaccedilatildeo esquecendo-se tambeacutem

de que ele pode se apresentar a partir de princiacutepios preacutevios Neste sentido

Merleau-Ponty lembra-se da afirmaccedilatildeo bachelardiana segundo a qual em

Le nouvel esprit scientifique a ldquoexperiecircncia adere agrave definiccedilatildeo do Ser Toda

definiccedilatildeo eacute uma experiecircnciardquo pois ldquodiz-me como te investigar e te direi quem

eacutesrdquo (BACHELARD 1973 p 49)55 Disto Merleau-Ponty concluiraacute que

() se natildeo se introduz nenhum princiacutepio anterior agrave operaccedilatildeo ao trabalho da ciecircncia natildeo se pode presumir essa operaccedilatildeo concluiacuteda Eacute preciso aceitaacute-la em sua obscuridade em sua espessura com todas as motivaccedilotildees que nela estatildeo implicadas que nela ldquofuncionamrdquo (muitas vezes preacute-cientificamente) ndash Senatildeo o operacionalismo eacute apenas retorno ao idealismo e agrave imanecircncia () Esse operacionalismo sabe de antematildeo o que encontraraacute somente encontraraacute relaccedilotildees fiacutesico-matemaacuteticas restringe o Ser ao que eacute manipulaacutevel por ele a objetos de conhecimento cientiacutefico ndash seja o que for que a ciecircncia nos mostre seratildeo sempre os objetos de nosso conhecimento (MERLEAU-PONTY 2000a p 328)

53 Trata-se aqui especialmente da ldquofilosofia das ciecircnciasrdquo de Brunschvicg um dos alvos da criacutetica de Merleau-Ponty conforme veremos melhor no proacuteximo capiacutetulo 54 Neste caso ao se pensar em uma ciecircncia na qual o mundo se tornara longe do ldquosentimento de opacidaderdquo dos claacutessicos tatildeo-somente um ldquoobjetordquo de nossas reflexotildees tal como se torna expliacutecito em um curso dado no Collegravege de France contemporacircneo a Lrsquoœil et lrsquoesprit acreditamos que se trata de uma referecircncia ao ldquooperacionalismordquo de Bridgman Em The Logic of Modern Physics o operacionalismo eacute introduzido como o referencial de uma metodologia na qual natildeo haveria o risco da interferecircncia de nenhum juiacutezo de valor Mergulhado em uma filosofia analiacutetica o conceito de operacionalizaccedilatildeo se daacute justamente na procura de um elemento capaz de unir diferentes concepccedilotildees metodoloacutegicas na descriccedilatildeo analiacutetica da accedilatildeo do cientista em seu campo de observaccedilatildeo Disto resulta a identificaccedilatildeo de sentenccedilas elementares conforme os intuitos filosoacuteficos do ldquoAtomismo Loacutegicordquo Deste modo para Bridgman um certo conceito natildeo apresentaraacute sua verdadeira definiccedilatildeo referindo-se a suas propriedades mas a suas ldquooperaccedilotildees efetivasrdquo 55 Este trecho eacute citado por Merleau-Ponty (2000a p 328)

85

A criacutetica dirigida pelo filoacutesofo ao operacionalismo no fundo

indica tambeacutem uma criacutetica ao ldquoPositivismo loacutegicordquo como um dos uacuteltimos

rebentos do Pequeno Racionalismo e seu consequente esquecimento da

unidade viva que mantemos com o nosso mundo Mas natildeo haveria tambeacutem

em Descartes notadamente na Dioptrique uma espeacutecie de

ldquooperacionalismordquo Em que poderiacuteamos diferenciar o operacionalismo das

ciecircncias e o operacionalismo cartesiano Qual seria seu grau de parentesco

o mesmo que serviria para nos mostrar a diferenccedila de natureza que se

estabelece entre o Grande e o Pequeno Racionalismo Como diraacute Merleau-

Ponty

Nossa ciecircncia rejeitou tanto as justificaccedilotildees como as restriccedilotildees de campo que Descartes lhe impunha Os modelos que inventa ela natildeo pretende mais deduzi-los dos atributos de Deus A profundidade do mundo existente e a do Deus insondaacutevel jaacute natildeo vecircm forrar a vulgaridade do pensamento ldquotecnicizadordquo O desvio pela metafiacutesica que apesar de tudo Descartes fizera uma vez em sua vida a ciecircncia dispensa-se dele ela parte daquilo que foi o seu ponto de chegada O pensamento operacional reivindica sob o nome de psicologia o domiacutenio de contato consigo mesmo e com o mundo existente que Descartes reservava a uma experiecircncia cega mas irredutiacutevel Ele eacute fundamentalmente hostil agrave filosofia como pensamento de contato e se lhe reencontrar o sentido seraacute pelo proacuteprio excesso da sua desenvoltura quando tendo introduzido toda sorte de noccedilotildees que para Descartes dependeriam do pensamento confuso ndash qualidade estrutura escalar solidariedade entre o observador e o observado ndash ele [de] suacutebito atinar com que natildeo se pode sumariamente falar de todos esses seres como de constructa (MERLEAU-PONTY 1975b p 100)

A partir destas consideraccedilotildees como concluiraacute Merleau-Ponty

podemos dizer que ldquonossa ciecircncia e nossa filosofia satildeo duas consequecircncias

fieis e infieacuteis do cartesianismo dois monstros nascidos do desmembramento

delerdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 100) Pensando assim como poderiacuteamos

compreender o modo pelo qual especialmente a partir de Descartes a

ciecircncia claacutessica funda seus alicerces Como se daria essa relaccedilatildeo de

ldquofidelidaderdquo e de ldquoinfidelidaderdquo ao cartesianismo ou antes agrave ldquo[] dimensatildeo

do composto de alma e de corpo do mundo existente do Ser abismal a qual

Descartes abriu e logo fechourdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 100) A seguir

tentaremos responder a estas questotildees refletindo primeiramente o problema

da representaccedilatildeo em Descartes

86

22 Descartes e o problema da ldquorepresentaccedilatildeordquo o operacionalismo de Descartes e a intuitus mentis

De modo especial Merleau-Ponty reflete sobre a concepccedilatildeo

cartesiana de representaccedilatildeo ao tratar da Dioptrique Eacute difiacutecil natildeo reconhecer

a importacircncia que este livro tivera para o filoacutesofo uma vez que ele estaacute

presente seja nos primeiros trabalhos como em La Structure du

comportement seja nos uacuteltimos como em Lrsquoœil et lrsquoesprit nas Notes du cours

ou nas Notes du travail Partindo deste livro Merleau-Ponty procura esboccedilar

uma leitura de Descartes que natildeo se esmere como veremos no quarto

capiacutetulo segundo uma ldquoordem das razotildeesrdquo do mesmo modo que natildeo se trata

de uma simples criacutetica mas da procura do que seria tanto o ldquoimpensadordquo de

Descartes como tambeacutem o modo como o projeto cartesiano estaacute presente

nas ldquoruiacutenas de pensamentordquo em que sentia encontrar as relaccedilotildees

estabelecidas entre filosofia e ciecircncia entendidas como suas consequecircncias

ldquofieisrdquo e ldquoinfieacuteisrdquo Ora o que Merleau-Ponty vira na Dioptrique Se pensamos

em Lrsquoœil et lrsquoesprit encontrariacuteamos ali em primeiro lugar ldquo[] o breviaacuterio de

um pensamento que natildeo mais quer assediar o visiacutevel e decide reconstruiacute-lo

segundo o modelo que dele se proporcionardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p

94) O que isto significa Para Merleau-Ponty o objetivo principal da

Dioptrique eacute o de fabricar ldquooacutergatildeos artificiaisrdquo de desenvolver uma teacutecnica

mediante o pensamento pela qual seja possiacutevel manipular a luz logo o que

se espera eacute conhecer o funcionamento da visatildeo a fim de aperfeiccediloaacute-la Assim

sendo eacute interessante notar o modo como se daacute o tratamento da luz

deixando de ser o meio que podemos habitar para se tornar unicamente uma

accedilatildeo que se efetiva mediante o contato Descartes natildeo interroga a luz natildeo se

preocupa em saber ldquode que modo a luz esclarece iluminardquo natildeo se preocupa

com este fenocircmeno natildeo se preocupa com uma experiecircncia entendida como

Erfahrung (MERLEAU-PONTY 1996 p 176) lembrando-nos

irresistivelmente os hozontes abertos pela obra Erfahrung und Urteil um dos

livros de Husserl fundamentais para Merleau-Ponty

87

221 O operacionalismo cartesiano e a identificaccedilatildeo de lux e lumen

A nosso ver Merleau-Ponty nota no pensamento cartesiano a

presenccedila de uma espeacutecie de operacionalismo que contudo estaria limitado

pelas ldquocondiccedilotildees da intuitus mentisrdquo Aqui o filoacutesofo se refere ao

procedimento cartesiano de pensar por ldquomodelosrdquo em se limitar ao explicar

a luz em se servir de algumas comparaccedilotildees tal como seraacute o exemplo do

cego do recipiente cheio de uvas ou da bola cuja reflexatildeo de seus

movimentos iraacute depender da superfiacutecie onde for lanccedilada Eacute assim que a

intuitus mentis cartesiana reduz o fenocircmeno da luz ao operar uma

identificaccedilatildeo entre lux e lumen Contudo para entendermos a mudanccedila feita

por Descartes precisamos compreender qual seria a diferenccedila apontada por

Merleau-Ponty existente entre estes dois termos Primeiramente no que diz

respeito ao aspecto etimoloacutegico vale lembrar que em latim talvez originado

do grego antigo leukov lux indica a luz na condiccedilatildeo de ser uma forccedila em

atividade daiacute a luz do dia o amanhecer daiacute significar tambeacutem brilho

resplendor Se pensarmos que lux seja proveniente do verbo lūcĕŏ neste

caso indica tambeacutem o que se torna visiacutevel ldquoatraveacutes derdquo o que se deixa ver o

que rompe a escuridatildeo ou seja a proacutepria luz Em contrapartida lumen

indica um meio pelo qual algo se torna luminoso natildeo eacute propriamente a luz

mas uma fonte de luz daiacute durante a noite indicar a candeia ou a lacircmpada

que ilumina na pintura expressar a luz a claridade no discurso o

ornamento presente em um estilo que esclarece a fala em um edifiacutecio a

perspectiva que possibilita uma vista mais liacutempida em nosso corpo o olhar

a luz dos olhos Diacronicamente torna-se notoacuterio o fato de que lux seja a

forma mais arcaica mais antiga do que lumen aleacutem do fato de que na

vulgata o que encontramos eacute ldquoFiat luxrdquo ldquofaccedila-se a luzrdquo e natildeo ldquoFiat lumenrdquo

Em resumo etimologicamente lux seria especiacutefica e originariamente a luz

do dia ao passo que lumen poderia ser qualquer outra luz Todavia seria

esta a concepccedilatildeo presente na Idade Meacutedia a mesma que seria modificada

por Descartes

88

No que diz respeito ao imaginaacuterio medieval mesmo que natildeo haja

uma referecircncia a isto em Merleau-Ponty a nosso ver seraacute nos trabalhos de

Bernardino de Sena que encontraremos melhor explicitada a compreensatildeo

que se tinha destes termos latinos confirmando de certa forma o que nos

diz a etimologia Em alguns de seus sermotildees em sua Opera Omnia

encontramos algumas referecircncias a isto Bernardino de Sena apresenta

Cristo como uma ldquofonte de luzrdquo sendo seu corpo comparado ao ldquobrilho do

Solrdquo Assim de modo miacutestico encontramos em Cristo a nossa salvaccedilatildeo

[salutatio] iluminaccedilatildeo [illuminatio] prazer ou beatitude [jucundatio] os quais

podem ser reduzidos a ldquotrecircs atos hieraacuterquicosrdquo a saber expiaccedilatildeo [purgatio]

iluminaccedilatildeo [illuminatio] e perfeiccedilatildeo [perfectio] Por sua vez tais atos segundo

Bernardino podem ser equiparados aos seguintes atributos divinos

potecircncia [potentia] sapiecircncia [sapientia] e bondade [bonitas] Contudo eacute

mediante a lumen de Cristo que tais atos alcanccedilam a sua plenitude Ele eacute

uma lumen para a revelaccedilatildeo para a iluminaccedilatildeo dos povos56 Em que

sentido poreacutem podemos dizer que Cristo eacute luz para os povos que andavam

nas trevas Eacute neste momento que Bernardino sente a necessitade de

estabelecer a diferenccedila que procuramos explicitar

Disse-se poreacutem lumen no intuito de indicar a pessoa de Cristo Posto que haja uma diferenccedila entre lumen e lux lux estaacute propriamente na fonte do corpo glorioso ao passo que lumen estaacute na transparecircncia diaacutefana da claridade da lumen que assim como o ar eacute receptiva Por conseguinte a divindade eacute lux em sua substacircncia Ele revela as profundezas e os segredos ele conhece o que estaacute nas trevas e junto dele habita a luz [Ipse revelat profunda O abscondita novit in tenebra constituta O lux cum eo est] (Dn 2 22) Lumen pois estaacute na natureza humana acerca da qual diz o Profeta Em tua luz

56 ldquoIn quo myſtitice demonſtratur quod ab ipſo amp in ipſo amp per ipſum eſt noſtra ſalutatio illuminatio jucundatio ſeu beatitudo amp poſſunt haeligc reduci ad trs actus Jerarchicos qui ſunt purgatio illuminatio amp perfectio vel ad tria Deo attributa ſcilicet potentiam ſapientiam amp bonitatem Comparat etiam eum ſecundum tria praeligfata nomina ad totam univerſitatem humani generis ſic tamen quod ut oſtendat ibi eſſe unitatem cum diſtinctionem primo ponit unite totam univerſitatem hominum cui quantum eſt ex parte Chriſti eſt generalis ſua ſalus ſeu ſalutifera gratia amp Judaeligos amp hoc cum quadam diſtincta correſpondentia ſecundi amp tertii nominis Christi ſcilicet luminis amp gloriaelig appropians gentibus lumen amp gloriam Iſraeli Ut autem haeligc diſtinctio ab unitate Chriſti non recedat duos effectus ſeu duas derivationes amp partipationes adſcribit lumini ſcilicet illuminationem amp gloriam ſeu glorificationem Unde dicit Christum eſſe lumen ad revelationem id est ad illuminationem gentium O gloriam id eſt glorificationem plebis ſuaelig Iſraelrdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116)

89

veremos a luz [In lumine tuo videbimus lumen] (Sl 3610) e em outro lugar Lacircmpada para os meus peacutes eacute a tua palavra [Lucerna pedibus meis verbum tuum] (Sl 119 105) isto eacute teu filho (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116)57

Pelo que notamos na figura de Cristo a luz adquire uma dupla

face Na condiccedilatildeo de divindade a luz apresenta-se como lux ou seja a

divindade tal como eacute em sua substantia Jaacute em sua encarnaccedilatildeo o que vemos

eacute sua condiccedilatildeo de lumen posto que se trata neste caso da divindade que se

revestira da natureza humana Haacute o jogo pelo qual como Deus Cristo eacute lux

eacute uma fonte de luz e como homem eacute lumen eacute um meio pelo qual a luz

manifesta o seu brilho A partir disto eacute interessante notar o que se pensa

acerca do humano Como vimos anteriormente a identificaccedilatildeo dos ldquoatos

hieraacuterquicosrdquo presentes no gecircnero humano com os atributos de Deus nos

revelava na verdade os seguintes pares intrinsicamente equivalentes

potentia-purgatio sapientia-illuminatio bonitas-perfectio Haacute pois uma

equiparaccedilatildeo de sabedoria e iluminaccedilatildeo o que nos manifesta tambeacutem sobre

a natureza humana aquilo que se torna uma das teses de Bernardino talis

enim illustratio proprie revelatio nominatur ou seja ldquotal ilustraccedilatildeo poreacutem

nomeia-se propriamente revelaccedilatildeordquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116)

Eacute mediante a lumen de Cristo em sua revelaccedilatildeo que podemos alcanccedilar a

nossa lumen a luz da sapiecircncia e portanto a iluminaccedilatildeo Sem esta lumen

que eacute reflexo da lux divina temos uma visatildeo in aelignigmate uma visatildeo

confusa58 A revelaccedilatildeo cumpre a tarefa de uma vez convertida a nossa

57 ldquoDicitur autem lumen ut incarnata perſona denotetur Differentia quippe eſt inter lucem amp lumen lux proprie eſt in fonte corporis gloriſi lumen vero eſt claritatis in perſpicuo diaphano luminis receptivo ut aeligre Divinitas ergo eſt lux in ſubſtantia ſua Dan 2 cap Ipſe revelat profunda O abſcondita novit in tenebris conſtituta O lux cum eo eſt Lumen vero eſt in humana natura de quo Propheta inquit Pſ 118 In lumine tuo videbimus lumen amp alibi Lucerna pedibus meis verbum tuum id eſt filius tuusrdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116) 58 ldquoProinde 2 Cor 13 cap loquens gentibus jam cretendibus Apoſt ait Nos vero omnes revelata facie gloriam Domini ſpeculantes in eandem imaginem transformamur a claritate in claritatem tanquam a Dei ſpiritu quaſi dicat Judaeligi adhuc velamen ſuper oculos habent nos vero credentes revelata facie id eſt expedita mente remoto velamine Dei gloriam ſpeculantes intraſitive id eſt Deum glorioſum ſpeculantes quia videmus nunc per ſpeculum in aelignigmate ut dicitur I Cor 13 in eadem imaginem ſcilicet divinam quam ſpeculamur id eſt Dei conformitatem transformamur ſcilicet a forma ignorante in formam lucidam veritatis Nos dico euntes in claritatem juſtificationis a claritate Moyſi in claritatem

90

imagem da divindade sermos capazes de uma transformaccedilatildeo que parta da

claridade (lumen) em direccedilatildeo agrave claridade (lux) uma transformaccedilatildeo que parta

de uma forma ignorante para uma forma luacutecida da verdade a forma

ignorante in formam lucidam veritatis

Todavia trata-se de um movimento que natildeo depende apenas de

nossa natureza como diraacute Bernardino pois tal eacute proferido ldquopara que se

mostre que [esta iluminaccedilatildeo] natildeo parte da natureza [ex natura] nem da

diacutevida [ex debito] nem das coisas naturais [de naturalibus] mas do

sobrenatural [ex supernaturali] e das coisas sobrenaturais [ex

supernaturalibus]rdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116-117)59 E

o que acontece neste processo Justamente a explicitaccedilatildeo de que sem a

revelaccedilatildeo ldquoos povos natildeo soacute eram natildeo videntes desta lumen mas tambeacutem

eram natildeo vistos ou desconhecidosrdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745

p 116-117) Por conseguinte este processo de iluminaccedilatildeo faz com que

sejamos iluminados e logo capazes de ver como tambeacutem capazes de nos

ver de sermos vistos (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 117)60 o

que nos reforccedila ainda mais aquilo que seria a sua teoria da luz fundada na

distinccedilatildeo entre lux e lumen

Daiacute que segundo Avicena no livro seis acerca das coisas naturais lux color e lumen sejam coisas distintas A cor com efeito delimita a coisa vista e natildeo se encontra encerrada em nenhum corpo Jaacute a lux estaacute no Sol e a lumen no meio como algo transparente e esta claridade parece ser suficiente porque mais se deleita os sentidos do homem na bela cor do corpo humano do que no corpo luminoso daiacute mais naturalmente se deleita vendo a face humana muito bem colorida do que o Sol (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 298)61

Chriſti tanquam a Dei ſpiritu ſcilicet ductirdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116) 59 ldquoAdvertendum eſt etiam quod iluminationem gentium vocat revelationem eorum Et hoc ex triplici cauſſa Primo ſcilicet ut innuat quod non ex naturali eſt neque ex debito neque de naturalibus ſed ex ſupernaturali amp ſupernaturalibusrdquo 60 ldquo[] gentes non ſolum erant non videntes hoc lumen ſed etiam erant invisaelig ſeu incognitaelig Dei notitiaelig amativaeligReputabantur enim ut nihil nec a Deo amp ſuis cognoſci poterant ut populus Dei aut exiſtens in numero fidelium ejus Et ideo revelandi erant id eſt de tenebroſo amp carnali ſtatu in lucem adducendi Et ſic illuminarentur non ſolum ad videre ſed etiam ad viderirdquo 61 ldquoUnde ſecundum Avicennam 6 naturalium iſta tria diſtincta ſunt lux color amp lumen Color enim terminat viſum amp nunquam niſi in corpore terminato lux eſt in ſole amp nunquam in medio ut in perſpicuo amp iſta claritas ſufficere videtur quia magis delectant ſenſus viſus

91

Em razatildeo disto Bernardino vecirc uma relaccedilatildeo entre a claridade da

beatitude da alma e o que seria a claridade do ldquocorpo gloriosordquo dos bem-

aventurados A alma poderia ser comparada pois agraves estrelas ou agrave lua que

natildeo tendo lux em si mesmas refletiriam a luz do Sol Do mesmo modo a

alma refletiria a lux de Cristo e a refletiria mediante a sua lumen (SANCTI

BERNARDINI SENENSIS 1745 p 303)62 Nisto encontramos pois uma

concepccedilatildeo da natureza humana mediante a metaacutefora da luz mediante os

jogos de lux e lumen Haacute portanto nesta natureza uma transparecircncia que

possibilita nela a repercussatildeo da lux Por sua vez sendo a cor densa e

consequentemente possiacutevel apenas em um corpo finito o ldquocorpo gloriosordquo

dos bem-aventurados diferemente da divindade eacute visto como ldquoluacutecidordquo e

ldquocoloridordquo ao inveacutes de ldquoluacutecidordquo e ldquoluminosordquo portanto detentores de lumen e

color e natildeo de lumen e lux Mas o que nos interessa nestas ideias o que nos

levou a esta digressatildeo A nosso ver a explicitaccedilatildeo de um certo modo de

pensar que a partir do mundo claacutessico tem sua configuraccedilatildeo transformada

E eacute justamente esta mudanccedila que nos parece ser o que nos diz Merleau-

Ponty ao notar em Descartes a partir de uma intuitus mentis ndash que acaba

sendo tambeacutem uma espeacutecie de visatildeo ndash o que seria uma reduccedilatildeo do

fenocircmeno da luz o esquecimento de uma luz que tambeacutem habitamos que

espera de noacutes uma abertura e pela qual a coisa se faz ver logo a reduccedilatildeo agrave

sua simultaneidade instantaneidade e capacidade de ser assimilada pelo

soacutelido Em outras palavras a conversatildeo da lumen em lux contiacutenua sem

transcendecircncia e despojada de sua distacircncia Vejamos o que nos diz a

Dioptrique a este respeito

hominis in colore pulchro humani corporis quam in corpore luminoſo unde amplius naturaliter delectatur in videndo faciem humanam optime coloratam quando ſolemrdquo 62 ldquoErit claritas corporum differens ſecundum differentiam gloriaelig animarum Quod quidem rationabile eſt nam ex claritate beatitudines animaelig in corpus claritas redundabit ſicut jam dictum eſt Propterea ſecundum proportionem qua beatitudo Animaelig Christi excedit cujuslibet Animaelig alterius beatitudinem ſic amp lux Corporis Chriſti claritati futuram in quocunque Sancto ſuperat amp excedit Unde in praeligdicto Apoſtoli verbo claritas Corporis Chriſti claritati ſolari aſſimilatur juxta illum Malach 4 Vobis timentibus nomen meum orietur Sol juſstitiaelig id est Christus Claritas vero Virginis glorioſaelig ſecundum quoſdam comparatur lunaelig Compari etiam poteſt ipſi lunaelig claritas puerorum qui poſt baptiſmum moriuntur antequam perviniant ad annos diſcretionis Nam ſicut luna a ſeipſa non habet lumen ſed ab ipſo ſole ſic amp iſti gloriam minime habent ex propriis meritis ſed ex meacuterito Christi Baptiſmus enim in quo ipſi abluti ſunt ex Christi paſſione efficiam habetrdquo

92

Ora natildeo tendo aqui outra ocasiatildeo de falar da luz [luce vel lumine] senatildeo para explicar como seus raios entram no olho e como eles podem ser desviados pelos diversos corpos que eles encontram natildeo eacute preciso que eu tente dizer qual eacute verdadeiramente a sua natureza e eu acredito que seraacute suficiente que eu me sirva de duas ou trecircs comparaccedilotildees que ajudam a conceber no modo que me parece mais cocircmodo para explicar todas as de suas propriedades que a experiecircncia nos fez conhecer e para deduzir em seguida todas as outras que natildeo podem tatildeo facilmente ser notadas Imitando nisto os astrocircnomos que embora suas suposiccedilotildees sejam quase todas falsas ou incertas entretanto porque elas se referem a diversas observaccedilotildees que satildeo feitas natildeo deixam de tirar delas vaacuterias consequecircncias muito verdadeiras e muito asseguradas (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 83)63

Para Descartes falar da lux eacute o mesmo que falar da lumen natildeo

haacute distinccedilatildeo afinal eacute suficiente conceber a natureza da luz tendo por

referecircncia as suas propriedades inteligiacuteveis assimiladas pelo intelecto64

Como diraacute Merleau-Ponty (1996 p 40) ldquoa Dioptrique [eacute] pensada por

modelos construiacutedos e natildeo por docilidade aos fenocircmenos por exemplo a luz

[eacute] definida por contato ndash Eacute o verdadeiro e o falso para noacutes que importamrdquo

logo o que unicamente importa eacute a transmissatildeo do movimento pois nada haacute

de mais sensiacutevel (nihil magis sensibile) (MERLEAU-PONTY 1996 p 40) Eacute a

partir disso que se desenharaacute o itineraacuterio que o filoacutesofo se propotildee neste

texto ldquoexplicar a luz e seus raiosrdquo ldquodizer como funciona a visatildeo a partir de

uma breve descriccedilatildeo das partes do olhordquo ldquodescrever as invenccedilotildees que satildeo

capazes de aperfeiccediloar a visatildeordquo e por fim ldquoensinar como eacute possiacutevel ampliar a

visatildeo por meio do uso destas mesmas invenccedilotildeesrdquo65 Abandonando tanto a

experiecircncia vivida da luz como se manifesta e se expressa de modo notoacuterio

63 ldquoHicircc autem de luce vel lumine loquendi cugravem aliam causam non habeam quagravem ut explicem quo pacto ejus radii oculos intrent et occursu variorum corporum flecti possint non necesse erit inquirere quaelignam genuina sit ejus natura sed duas aut tres comparationes hicircc afferam quas sufficere arbitror ut juvent ad illam concipiendam eo modo qui omnium commodissimus est ad ejus pro- | prietates quas jam experientia docuit explicandas et ex consequenti etiam ad alias omnes quaelig non ita facilegrave usu notantur detegendas Non aliter quam in Astronomia ex hypothesibus etiam falsis et incertis modograve iis omnibus quaelig in coelo observantur accurategrave congruant multaelig conclusiones circa ea quaelig non observata sunt verissimaelig et certissimaelig deduci solentrdquo 64 ldquoSufficere naturam luminis concipere ad omnes ejus proprietates intelligendumrdquo (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 83) 65 ldquoQuapropter exordiar agrave lucis ejusque radiorum explicatione postea partibus oculi breviter descriptis qua ratione visio fiat accurategrave exponam tandemque notatis iis omnibus quaelig ad illam perficiendam licet optare quibus artificiis ea ipsa possint praestari docebordquo (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 83)

93

na explicaccedilatildeo religiosa de Bernardino Descartes se fundamenta em

primeiro lugar no que que haacute de evidente segundo a razatildeo na observaccedilatildeo

do experimentum Daiacute encontrarmos no pensamento cartesiano como

modelo da visatildeo o tato uma vez que a luz encontraria o olhar assim como a

bengala do cego toca as coisas que encontra pelo caminho sendo a essecircncia

da visatildeo equiparada e reduzida ao que ele poderia apreender com sua

bengala Por conseguinte encontramos a desaprovaccedilatildeo de Merleau-Ponty

pois compreender a visatildeo por essa via equivaleria a eliminaacute-la Assim em

Descartes constata o filoacutesofo ldquodas coisas aos olhos e dos olhos agrave visatildeo nada

ocorre para aleacutem do que vai das coisas agraves matildeos do cego e das suas matildeos ao

seu pensamentordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Ora ldquoa visatildeo natildeo eacute a

metamorfose das coisas mesmas na sua visatildeo [vista] a dupla pertenccedila das

coisas ao grande mundo [koinov kosmov] e a um pequeno mundo privado [i1diov

kosmov]rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Ouccedilamos a Dioptrique

Provavelmente jaacute lhe aconteceu alguma vez andando durante a noite sem uma tocha por lugares um pouco difiacuteceis ser necessaacuterio usar um bastatildeo para conduzi-lo e deu-se conta entatildeo de que sentia por meio deste bastatildeo os diversos objetos que se encontravam ao seu redor e inclusive vocecirc pocircde distinguir se havia aacutervores ou pedras ou areia ou aacutegua ou erva ou madeira ou qualquer outra coisa semelhante Eacute verdade que este tipo de sentimento eacute um pouco confuso e obscuro naqueles que natildeo fizeram um longo uso dele mas considere-o naqueles que sendo cegos de nascenccedila serviram-se dele a vida toda e vocecirc o encontraraacute tatildeo perfeito e tatildeo exato nele que se poderia dizer que eles vecircem por meio das matildeos ou que o seu bastatildeo eacute o oacutergatildeo de algum sexto sentido que lhes foi dado na falta da visatildeo E para tirar uma comparaccedilatildeo disso eu gostaria que vocecirc pensasse que a luz natildeo eacute outra coisa nos corpos que se chamam luminosos senatildeo um certo movimento ou uma accedilatildeo muita raacutepida e muita viva que passa para os nossos olhos por intermeacutedio do ar e de outros corpos transparentes do mesmo modo que o movimento ou a resistecircncia dos corpos que aquele cego encontra passa para a sua matildeo por intermeacutedio de seu bastatildeo (DESCARTES 2007 p 154-155 1996ap 83-84)66

66 ldquoNemo nostrum est cui non evenerit aliquando ambulanti noctu sine funali per loca spera et impedita ut baculo usus sit ad regenda vestigia et tunc notare potuimus | per baculum intermedium nos diversa corpora sentire quaelig circumcirca occurrebant Itidem nos dignoscere num adesset arbor vel lapis vel arena vel aqua vel herba vel lutum vel simile quiddam Fatendum quidem hoc sentiendi genus obscurum et satis confusum esse in iis qui non longo usu edocti sunt sed consideremus illud in iis qui cugravem caeligci nati sint toto vitaelig tempore debuerunt eo uti et adeograve perfectum consummatumque inveniemus ut dicere possimus illos quodammodo manibus cernere aut scipionem tanquam sexti cujuspiam sensus organum iis datum ad defectum visus supplendumrdquo

94

Descartes potildee a visatildeo fora de si mesma ateacute parecer anulaacute-la

Ante a questatildeo de saber de que maneira as imagens formadas em nosso

ceacuterebro podem dar meio agrave alma para sentir as diversas qualidades dos

objetos com os quais se relacionam e natildeo o ponto que tecircm em si de

semelhanccedila a experiecircncia do cego fornece a resposta Qual a razatildeo O que

leva o cego a se tornar o modelo cartesiano da visatildeo Segundo Quinet

compreendemos melhor o modelo cartesiano de visatildeo com a compreensatildeo

que se estabelece especialmente a partir de Kepler do olho como um

dispositivo oacutetico e portanto ldquo[] conforme o princiacutepio dos aparelhos

fotograacuteficos uma cacircmera escura com uma abertura a pupila um diafragma

a iacuteris uma objetiva convergente o cristalino e a tela onde se forma a

imagem a retinardquo (QUINET 2002 p 27) Natildeo haacute mais um olho que vecirc mas

o que se torna o foco do interesse eacute a garantia dada pelas condiccedilotildees

geomeacutetricas que possitibilitam na retina a formaccedilatildeo de uma imagem uma

vez que ldquocom o surgimento da ciecircncia da luz e o impeacuterio da evidecircncia

inaugurado por Descartes o misteacuterio do olho desaparece para dar lugar agrave

fiacutesica da visatildeo que cria um espaccedilo matemaacutetico feito para quem natildeo vecircrdquo

(Ibidem) Para Quinet a Dioptrique seria justamente conduzida por estas

questotildees Nela o que encontramos eacute sobretudo um ldquoolharrdquo construiacutedo que

assim como o telescoacutepio precisa romper com os equiacutevocos da experiecircncia e

nos mostrar o mundo em sua transparecircncia Deste modo natildeo podemos nos

enganar com o modo elogioso com que Descartes inicia o seu primeiro

discurso ao falar que ldquotoda a conduta de nossa vida depende de nossos

sentidosrdquo (Totius vitaelig nostraelig regimen agrave sensibus pendet) ldquosendo o sentido

da visatildeo o mais nobre e mais universal (quorum cugravem visus sit nobilissimus et

latissimegrave patens) (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 81) Logo a seguir o

seu desmerecimento eacute manifesto no entanto ldquonatildeo haacute duacutevida de que as

invenccedilotildees que servem para aumentar o seu poder sejam as mais uacuteteis que

possam existirrdquo (non dubium est quin utilissima sint inventa quaelig vim illius

augere queunt) Eacute assim que a luneta o perspicillium torna-se para o

filoacutesofo o modelo da visatildeo

95

E eacute difiacutecil encontrar alguma que a aumente mais do que a destas maravilhosas lunetas que estando em uso apenas haacute pouco tempo jaacute nos descobriu novos astros no ceacuteu e outros novos objetos sobre a terra em maior nuacutemero do que satildeo os que antes tiacutenhamos visto ali de modo que levam nossa visatildeo muito mais longe do que tinha o costume de ir a imaginaccedilatildeo de nossos pais elas parecem nos ter aberto o caminho para chegar a um conhecimento da Natureza

muito maior e mais perfeito do que eles tiveram (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 81)67

O direcionamento cartesiano agrave invenccedilatildeo da luneta se justifica

de modo especial na relaccedilatildeo que estabelece Quinet entre existecircncia e visatildeo

ao nos dizer que ldquopor intermeacutedio das descobertas cientiacuteficas novos objetos

se tornam existentes porque passam a ser visiacuteveis A capacidade da visatildeo se

amplia sua extensatildeo quase jaacute natildeo conhece mais limites O olho nu eacute mais

nada em comparaccedilatildeo com essas maravilhosas lentesrdquo (QUINET 2002 p 29)

Deste modo ldquo[] o olho natildeo possui mais a accedilatildeo do ato de ver porque lsquoesses

objetos devem ser luminosos ou iluminados para serem vistos e natildeo

precisam de nossos olhos para vecirc-losrsquo A accedilatildeo natildeo eacute mais do olho e sim da

luzrdquo (QUINET 2002 p 29) Eacute neste sentido que a nosso ver Merleau-Ponty

entende o exemplo do cego principalmente tendo em vista a intenccedilatildeo

cartesiana em legitimar a tese da propagaccedilatildeo instantacircnea da luz Em outros

termos para Merleau-Ponty invocar a experiecircncia do cego permite

simultaneamente a Descartes despachar a visatildeo efetiva e fazer a economia

de uma demonstraccedilatildeo pois eacute no interior que nos convida a fazer a prova

Deste modo a cor natildeo eacute outra coisa ldquo[] nos corpos que chamamos

coloridos senatildeo os diversos modos com os quais estes corpos a recebem e a

remetem contra nossos olhosrdquo (DESCARTES 2007 p 154-155 1996a p

83-84) Eacute assim que a cor ao contraacuterio do que encontramos em Avicena e

Bernardino uma vez ocorrida a identificaccedilatildeo entre lumen e lux perde o seu

status torna-se meramente um reflexo semelhante a que o cego nota por

meio de seu bastatildeo sendo as diferenccedilas entre as cores semelhante aos

67 ldquoEt quidem difficile est ullum excogitare quod magis juvet quagravem miranda illa specilla quaelig brevi tempore quo cognita sunt jam in coelo nova sidera et in terra nova alia corpora numerosiora iis quaelig antea visa fuerant detexere Adeograve ut promota luminis nostri acie ultra terminos quibus imaginatio majorum sistebatur viam simul nobis videantur peruisse ad majorem et magis absolutam naturaelig cognitionemrdquo

96

diversos modos como este mesmo bastatildeo pode se mover A cor se torna

como em Galileu uma qualidade secundaacuteria e no caso do pensamento

cartesiano enganosa visto que ldquo[] no que diz respeito agrave imaginar a

distacircncia pelo tamanho ou pela forma ou pela cor ou pela luz aiacute estatildeo os

quadros em perspectiva para mostrar como eacute faacutecil se enganarrdquo (DESCARTES

1996a p 229) atitude que conforme veremos mais adiante seraacute criticada

por Merleau-Ponty Quanto agrave luz por sua vez vale lembrar o modo como

Descartes inicia o seu Traiteacute de la Lumiegravere

Propondo-me aqui a tratar da luz quero adverti-los em primeiro lugar que pode existir alguma diferenccedila entre o sentimento que temos dela ndash quer dizer a ideia que se forma em nossa imaginaccedilatildeo pela mediaccedilatildeo de nossos olhos ndash e o que existe nos objetos que produz em noacutes este sentimento ndash quer dizer o que haacute na chama ou no sol que se diz com o nome da luz [lumen] ndash Com efeito ainda que cada um normalmente se persuada de que as ideias que temos em nosso pensamento sejam inteiramente semelhantes aos objetos de que procedem natildeo vejo nenhuma razatildeo que nos assegure que seja assim mas pelo contraacuterio observo muitas experiecircncias que devem nos fazer duvidar disto (DESCARTES 1824b p 265 1824c p 14)68

No entanto teriam tais consideraccedilotildees sido resultado da

descoberta das lunetas Se pensarmos em Merleau-Ponty especialmente

como leitor de Koyreacute parece-nos que natildeo Ao menos eacute o que nos insinua o

filoacutesofo ao tratar da Natureza ldquonatildeo foram as descobertas cientiacuteficas que

provocaram a mudanccedila da ideia de Natureza Foi a mudanccedila da ideia de

Natureza que permitiu essas descobertasrdquo (M Merleau-Ponty 2000a p 10)

Ora se pensamos no olhar e no modelo do cego o que justificaria o

procedimento cartesiano Quanto a isto parece-nos que Lebrun nos daacute

algumas pistas No que diz respeito agrave figura do cego ou conforme Lebrun o

ldquomito do cegordquo podemos compreendecirc-la melhor quando a contrapomos com

68 ldquoCum in animum induxerim hic de Lumine agere in anteceſſum monitum velim differentiam obſervari poſſe inter perceptionem ſenſus quaelig in nobis datur hoc eſt inter ideam quaelig intervenientibus oculis in noſtracirc imaginatione formatur amp inter id quod eſt in objecto hanc ſenſus perceptionem in nobis efficiente ſive quod in flamma aut Sole Lumen dici ſolet Quamvis enim unusquisque ſibi vulgo perſuadeat quas in mente noſtra habemus ideas per omnia eſſe ſimles objectis agrave quibus proveniunt nullam tamen omnino rationem viacutedeo quaelig veritatem ejus evincat ſed multa e contrario experimenta occurrunt quaelig nos hac de re duacutebios redduntrdquo

97

o modo pelo qual o seacuteculo XVIII iraacute entendecirc-la Para Lebrun este mito

assim como visto por este seacuteculo poderia se inserir dentre os diversos

direcionamentos para o que constitui a figura do ldquooutrordquo ou melhor ldquoa visatildeo

pelos olhos do outrordquo (LEBRUN 2006b p 53)69 Deste modo ldquo[] a

confrontaccedilatildeo com o Outro tem o efeito de me fazer duvidar do ponto de vista

universal em que me instalarardquo (LEBRUN 2006b p 54) No que se refere ao

cego

Por conseguinte natildeo se trata mais da desconfianccedila em relaccedilatildeo aos sentidos tema favorito dos autores do seacuteculo XVII Trata-se ao contraacuterio de saber em que medida podemos criticar em nome da Razatildeo as ilusotildees da visatildeo Sabemos somente ateacute onde elas se estendem mas seraacute que natildeo nos tornamos seus prisioneiros inconscientes justamente no momento em que as denunciamos Temos consciecircncia disso mas seraacute que podemos medir em sua amplitude a importacircncia de tal fato Haveria apenas um meio de responder com certeza a essa pergunta ndash interromper totalmente nosso comeacutercio com o visiacutevel tornando-nos cegos de nascenccedila Como essa experiecircncia eacute impossiacutevel pediremos ao cego de nascenccedila que nos descreva essa noite que para ele natildeo eacute uma noite que acima de tudo nos diga como imagina o visiacutevel que nos responda agrave pergunta ldquoO que eacute ver Como se pode verrdquo (LEBRUN 2006b p 55-56)

Eacute assim que para Lebrun natildeo haveria na Lettres sur les

aveugles de Diderot o ldquoanuacutencio da psicologia cientiacuteficardquo mas ldquoa

fenomenologia da percepccedilatildeordquo ldquoaquele meacutetodo que consiste em recuar o

maacuteximo em relaccedilatildeo ao ato perceptivo em atribuir ao mundo cotidiano o

maacuteximo de estranheza para por meio dessa desrealizaccedilatildeo fictiacutecia tornar a

apreender a essecircncia da coisa percebida enquanto percebidardquo (LEBRUN

2006b p 57)70 Na Dioptrique encontramos pois um anuacutencio da psicologia

69 ldquoHaacute na literatura francesa e inglesa do seacuteculo XVIII um tema constante que se poderia chamar lsquoa visatildeo pelos olhos do outrorsquo Nas Cartas persas Montesquieu nos mostra a sociedade da Regecircncia pelos olhos de um persa e agrave pergunta friacutevola dos parisienses lsquoComo se pode ser persarsquo opotildee a pergunta lsquoComo se pode ser parisiensersquo Mais tarde eacute Voltaire quem leva um iroquecircs fictiacutecio para passear na corte de Versalhes fazendo-o descrever ingenuamente cerimocircnias que para ele natildeo tecircm sentido algum como por exemplo uma missa que se reduz a gestos mecacircnicos Eacute que sob os olhos do lsquobom selvagemrsquo nossas instituiccedilotildees se transformam em ritos burlescosrdquo 70 Deste modo para Lebrun ldquoantes de ser para Hegel o mundo destituiacutedo a filosofia foi para a Aufklaumlrung uma maneira de se tornar cego olhando o mundo visiacutevelrdquo (2006b p 61) Deste modo ldquoo mito do cego permitiu ao filoacutesofo reduzir nosso mundo a uma tecircnue aparecircncia mas dessa aparecircncia ele natildeo conseguiu se afastar tatildeo radicalmente como lhe recomendava o

98

cientiacutefica e seus princiacutepios os mesmos que no seacuteculo XVIII no caso de

Diderot seraacute posto em questatildeo haja vista que caso fosse operado ao se

iniciar em um novo campo sensorial o cego jaacute traria consigo a experiecircncia

do tato bastando-lhe ldquo[] uma inspeccedilatildeo refletida para fazer com que os

testemunhos dos dois sentidos correspondessem um ao outrordquo (LEBRUN

2006b p 58) pois

A questatildeo por conseguinte natildeo eacute de modo algum a de saber como o cego vai traduzir o mundo visiacutevel tanto para o receacutem-nascido como para o cego operado o espaccedilo jamais eacute o resultado de uma traduccedilatildeo ndash mesmo na infacircncia da visatildeo ver eacute uma coisa muito diferente de consultar um leacutexico Natildeo se tem o direito de fazer do cego operado o modelo do aprendiz da visatildeo de procurar no niacutevel do patoloacutegico a verdade da percepccedilatildeo visual o cego soacute veraacute realmente quando deixar de relacionar o espaccedilo a suas coordenadas musculares e taacuteteis quando esquecendo que foi cego puder mover-se com desembaraccedilo e sem espanto no vazio movediccedilo que se cava a sua volta (LEBRUN 2006b p 59-60)

Pensando nestas questotildees encontramos em Lebrun a indicaccedilatildeo

da inversatildeo que procuraacutevamos na mudanccedila que iraacute se estabelecer na

compreensatildeo que o seacuteculo XVII teraacute da visatildeo seja em relaccedilatildeo ao mundo

medieval seja em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII No que diz respeito ao ldquocego da

Aufklaumlrungrdquo ldquochegar a ver eacute portanto passar da noite do saber conceptual

ao pleno dia da ilusatildeo refazer em sentido inverso o caminho platocircnico da

caverna ao Sol inteligiacutevelrdquo (LEBRUN 2006b p 62) Se for antes uma

mudanccedila de concepccedilatildeo que possibilita o experimento cientiacutefico e natildeo o

contraacuterio que mudanccedila ocorrera no seacuteculo XVII que levaria a fazer da luneta

uma referecircncia para a visatildeo De acordo com Lebrun no que se refere agrave

visatildeo encontramos o engendramento de duas questotildees distintas pois

Natildeo eacute por acaso que o seacuteculo XVIII indaga ldquoComo aprendemos a ver Como deixamos de ser cegosrdquo quando o leitmotiv das Meditaccedilotildees de Descartes era ldquoComo desaprender a ver Como deixar de sentir-se ofuscadordquo [] Entre a denuacutencia pura e simples da ilusatildeo da vista efetuada pelo racionalismo nesse breve momento em que diante dos olhos entreabertos de um jovem cego se esboccedila um novo mundo a

racionalismo do seacuteculo anterior O ponto de vista do cego eacute o despojado olhar do entendimento ndash ou mesmo o equivalente dessa ascese artificial que os gestatilstas denominaratildeo visatildeo reduzida e que consiste por exemplo em olhar um objeto sombreado fora de seu contexto lumino de sorte que ele nos pareccedila objetivamente escurordquo (LEBRUN 2006b p 65)

99

psicologia nasce e o estudo da visatildeo humana desliga-se da oacutetica a que a havia relegado a Dioacuteptrica de Descartes Daiacute em diante a filosofia natildeo mais se contentaraacute em diluir a aparecircncia na subjetividade e na desrazatildeo (LEBRUN 2006b p 62)

Ora o que gera pois o direcionamento ao que o cego e as

lunetas podem nos ensinar sobre a visatildeo no seacuteculo XVII eacute o ensejo de

romper com o que se consideraria o ofuscamento do olhar gerado pelos

sentidos Eacute por esta razatildeo que ldquocom o surgimento do cogito cartesiano o

olho da razatildeo adquire a certeza As ideias constituiacutedas como matemas satildeo

acessiacuteveis ao homem bem-pensante a partir de sua razatildeordquo (QUINET 2002 p

27) Assim sendo pelo que podemos notar natildeo se tem mais como vimos em

Bernardino de Sena a ideia de um Deus-Sol de uma lux divina que

cumpriria a tarefa de iluminar a razatildeo humana semelhante ao que era em

Platatildeo o Bem-Sol Pelo contraacuterio seraacute a proacutepria razatildeo que cumpriraacute a tarefa

de iluminar as ideias Eacute assim que ganha sentido a articulaccedilatildeo de uma

ciecircncia da visatildeo principalmente quando se tem em vista o caraacuteter enganador

dos sentidos A compreensatildeo do olhar natildeo se daacute mais mediante uma

vivecircncia do mundo mas nos limites do saber cientiacutefico nos horizontes de

uma ldquofisiologia da visatildeordquo e de uma ldquoteoria fiacutesico-matemaacuteticardquo Sem deixar

contudo de estar associado ao saber ldquoo olho seraacute entatildeo ligado a res cogitans

onde o eu do cogito cartesiano eacute doravante instrumentalizado porque possui

uma visatildeo instrumentalizadardquo (QUINET 2002 p 28) Poreacutem o mais curioso

eacute notar que apesar disso em razatildeo do Cogito paradoxalmente o olhar deixa

de pertencer ao campo visual

Por um lado a percepccedilatildeo visual seraacute dividida em trecircs ordens fiacutesica (a partir do oacutetico) neuroloacutegica (a transmissatildeo nervosa da retina para o ceacuterebro) e mental (a representaccedilatildeo do objeto que provoca o fenocircmeno da visatildeo) O espaccedilo apesar de descrito em funccedilatildeo da vista natildeo eacute visual propriamente dito Trata-se do espaccedilo geomeacutetrico que um cego pode ldquoverrdquo Por outro lado em suas meditaccedilotildees o homem que seguir as regras da direccedilatildeo do espiacuterito alcanccedilaraacute a certeza das coisas como Descartes com as suas E assim teraacute necessidade de ver pelo contraacuterio pois a visatildeo engana A ordem do visiacutevel eacute excluiacuteda e ao mesmo tempo tudo se torna ldquovisiacutevelrdquo pela razatildeo O pensamento eacute cego e no entanto ldquovecircrdquo Na nova divisatildeo entre subjetivo e objetivo do sujeito e do objeto da res cogitans e da res extensa natildeo haacute lugar para o olhar (QUINET 2002 p 28)

100

Logo ldquoesclarecerrdquo [lux] conforme o seacuteculo XVII natildeo eacute o mesmo

que ldquoser iluminadordquo [lumen] ao menos como se entendia na Idade Meacutedia Por

conseguinte ao identificar lux e lumen Descartes parte de uma concepccedilatildeo

diferenciada da luz que o permite ao mesmo tempo trataacute-la mediante a

fiacutesica [Traiteacute de la Lumiegravere] ndash e uma fiacutesica pautada pelos ditames da

geometria ndash como tambeacutem situaacute-la no centro de sua metafiacutesica [La

Recherche de la veacuteriteacute par la lumiegravere naturelle]

222 A intuitus mentis e o positivismo da visatildeo

Tendo por referecircncia uma cuidadosa leitura das Regulaelig

Merleau-Ponty iraacute notar o que seria o modo pelo qual Descartes a partir de

um ldquopositivismo da visatildeordquo iraacute modificar a concepccedilatildeo que ateacute entatildeo se tinha

de ldquointuiccedilatildeordquo deixando de ser como no mundo medieval uma ldquovisatildeo

beatiacuteficardquo para se tornar o instrumento da razatildeo a intuitus mentis A

novidade de Descartes da qual ele era consciente estaria justamente em

fazer essa passagem daiacute a sua advertecircncia para que o novo uso da palavra

intuiccedilatildeo natildeo deixasse ningueacutem chocado [Caeligterum ne qui moveantur vocis

intuitus novo uso] (DESCARTES 1996k p 39)71 Todavia segundo

Merleau-Ponty tendo por referecircncia a Regula IX eacute preciso se ter em conta

portanto que esta intuitus mentis ou melhor esta ldquovisatildeo do espiacuteritordquo

articula-se no pensamento cartesiano nos movimentos de uma

metamorfose do olhar da visatildeo dos olhos pois de acordo com Descartes

A maneira pela qual nos servimos de nossos olhos eacute suficiente para nos ensinar o uso da intuiccedilatildeo O que quer abraccedilar muitas coisas de uma soacute vez e com um olhar natildeo vecirc nada distintamente do mesmo modo o que por um soacute ato do pensamento quer atingir vaacuterios objetos ao mesmo tempo tem o espiacuterito confuso Ao contraacuterio os artesatildeos que se ocupam de obras delicadas e que tem o costume de dirigir atentamente o seu olhar sobre cada ponto em particular

71 ldquoCaeligterum ne qui fortegrave moveantur vocis intuitus novo uſu aliarumque quas eodem modo in ſequentibus cogar a vulgari ſignificatione removere hicircc generaliter admoneo me no plane cogitare quomodo quaeligque vocabula his vltimis temporibus fuerint in ſcholis uſurpada quia difficillium foret ijſdem nominibus vti amp penitus diverſsa ſentire ſed me tantugravem advertere quid ſingula verba Latinegrave ſignificent vt quoties propria defunt illa transferam ad meum ſenſum quaelig mihi videntur aptiſſimardquo

101

adquirem pelo uso a facilidade de ver as coisas mais iacutenfimas e mais sutis Do mesmo modo os que nunca dissipam o seu pensamento entre mil objetos diversos mas que o ocupam por completo na consideraccedilatildeo das coisas mais simples e mais faacuteceis adquirem uma grande perspicaacutecia (DESCARTES 1824d p 249)

Como nos assinala Merleau-Ponty (1996 p 228) sobre esta

incursatildeo de Descartes ldquodeliberadamente expressamente ele controacutei a

intuitus mentis sobre a visatildeo dos olhos [] eacute preciso como os artesatildeos

dirigir o olhar sobre singula puncta [cada ponto]rdquo Eacute assim que seraacute ldquo[]

clara aquela [percepccedilatildeo] que estaacute presente e manifesta a um espiacuterito atento

de modo que digamos ver claramente os objetos quando estando presentes

agem muito forte que nossos olhos estatildeo dispostos a olhaacute-losrdquo

(DESCARTES 1996i p 22)72 Mediante a intuiccedilatildeo articula-se pois a

conversatildeo do mundo visiacutevel em um mundo em si podendo assim lanccedilar

sobre ele a luz do olhar mas uma luz capaz de recortaacute-lo de fragmentaacute-lo O

que isto significa Natildeo haacute em Descartes no dizer de Merleau-Ponty uma

preocupccedilatildeo pelo fundo que envolve a figura o invoacutelucro que se encontra ao

redor do ponto recortado o que faz com que seja eliminada uma relaccedilatildeo de

envolvimento de figura e fundo capaz de trazer consigo em nossa abertura

ao mundo um ldquovisiacutevel vor aller Thesisrdquo O que isto significa

Partindo da distinccedilatildeo Descartes se volta para um ser que eacute ldquode

tal modo preciso e diferente de todos os outrosrdquo que faz com que a percepccedilatildeo

ldquoapenas compreenda em si o que aparece manifestamente agravequele que a

considera como eacute precisordquo (DESCARTES 1996i p 22)73 Por conseguinte

natildeo eacute suficiente que o ser se apresente tal como os singula puncto de modo

particularizado recortado mas eacute preciso tambeacutem que ele seja claro estando

a clareza justamente na distinccedilatildeo que nos leve a natildeo confundi-lo que nos

possibilite distingui-lo de outro ser Ao ser compreendida na condiccedilatildeo de

intuitus mentis a luz natural deve seguir o mesmo procedimento da visatildeo

dos olhos pois ldquodo mesmo modo que na visatildeo haacute mais perfeiccedilatildeo em

72 ldquoClaram voco illam quaelig menti attendenti praeligsens et aperta est sicut e aclare a nobis videri dicimus oacuteculo intuenti praeligsentia satis fortiter et aperte illum moventrdquo 73 ldquoDistinctam autem illam quaelig cum clara sit ab omnibus aliis ita sejuncta est et praeligcisa ut nihil plane aliud quam quod clarum est in se contineatrdquo

102

distinguir com cuidado uma por uma as partes de um objeto do que vecirc-los

todos juntos como uma uacutenica parterdquo (1996b p 434-435)74 A positividade

da visatildeo estaria justamente nesta capacidade de ver cada coisa por vez

sendo a ldquofaculdade positiva verdadeiramente produtorardquo como assinala

Merleau-Ponty a de ldquoconceber duas coisas completamentamente a parte

uma da outrardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 230) A intuitus mentis funda-se

pois em uma exclusatildeo tornando absoluto aquilo que a visatildeo dos olhos

comporta de modo relativo Qual a razatildeo De acordo com Merleau-Ponty

Haacute uma acies mentis [mente aguda] que se volta para as coisas [] um olhar do espiacuterito que como o olhar vai ser luz recortante isolante e vai chegar sem duacutevida natildeo a elementos que seriam adequadamente conhecidos mas a ldquocoisasrdquo [elementos] das quais estamos seguros que mesmo sendo pouco conhecidas elas o satildeo por completo portanto natildeo satildeo complexas ndash dir-se-aacute que satildeo ldquoconhecidas de sirdquo natildeo aprendemos a vecirc-las noacutes as vemos ou natildeo as vemos o trabalho eacute apenas de ldquoseparaacute-lasrdquo e ao fixar a atenccedilatildeo ter sua intuiccedilatildeo em cada uma isoladamente [singulis seorsim defixa mentis acie intuendisrdquo] (MERLEAU-PONTY 1996 p 230-231)

Deste modo opera-se no pensamento cartesiano uma reduccedilatildeo

do ldquoser visiacutevelrdquo a um ldquoconhecimento do visiacutevelrdquo estando nesta reduccedilatildeo ldquoa

definiccedilatildeo da visatildeo do espiacuteritordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 229) haja vista

que sempre haveraacute no ver uma mesma operaccedilatildeo e isto porque ldquoa luz que

opera aqui eacute a mesma para todas as naturezas como a do sol eacute a mesma

para todos os objetosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 231) Daiacute que o lugar o

espaccedilo e o movimento para Descartes natildeo chegam a constituir problema

pois o olhar retirando da relaccedilatildeo visatildeo-coisa apenas o primado da coisa em

si converte-se tatildeo-somente em uma operaccedilatildeo do espiacuterito Em outros termos

a visatildeo ldquo[] natildeo pode ser senatildeo desencarnada pura referecircncia a algo

posiccedilatildeo de um ser em tudo ou nada que eacute ou natildeo eacute para mim sem meio

um gratildeo do ser a Natureza simplesrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 233) uma

vez que se retira dela o fundo que a envolve o seu invoacutelucro fazendo com

que ela se manifeste ldquonuardquo ou antes ldquopurardquo Em suma pensando nestas

consideraccedilotildees retomando o que dissemos ateacute aqui sobre a compreensatildeo

74 ldquoUt etiam in visu major perfectio est cum singulas objecti particulas accurate distinguit quam cum omnes simul instar unius tantum advertitrdquo

103

cartesiana da visatildeo parece-nos haver nas seguintes palavras de Quinet

uma siacutentese

Trata-se da synopsis um uacutenico olhar ndash aquele que domina apenas com um golpe de vista o conjunto das ideias Para Descartes com a intuiccedilatildeo natildeo se vecirc o conjunto mas cada elemento isolado em sua simplicidade utilizando as duas principais faculdades de nosso espiacuterito a perspicaacutecia (distinccedilatildeo entre uma coisa e outra) e a sagacidade (deduccedilatildeo de uma coisa a partir da outra) O modelo de apreensatildeo da coisa que se torna ldquovisiacutevelrdquo ao espiacuterito com a operaccedilatildeo da intuiccedilatildeo eacute justamente a vista natural O olho cartesiano perspicax eacute o dos especialistas como os dos artesatildeos acostumados a dirigir atentamente seu olhar para cada ponto Com Descartes inaugura-se uma nova relaccedilatildeo sujeito-objeto ver-visto determinando uma outra concepccedilatildeo do visiacutevel e a partir daiacute como nos diz Merleau-Ponty ldquonada mais resta do mundo da analogiardquo (QUINET 2002 p 32)

E o que teria levado Descartes a este positivismo da visatildeo agrave

transfiguraccedilatildeo da visatildeo dos olhos na intuitus mentis Teraacute sido justamente o

ensejo de romper com o ldquoofuscamento da visatildeordquo tal como se justifica

tambeacutem no seacuteculo XVII o direcionamento agrave experiecircncia do cego Voltemo-

nos agrave Dioptrique Como se efetivaria na experiecircncia esta ldquoinspeccedilatildeo do

espiacuteritordquo da qual falamos Como se articularia a nossa experiecircncia do mundo

quando para poder vecirc-lo natildeo mais bastam os nossos olhos de ldquocarnerdquo A

nosso ver eacute tendo em vista estas questotildees que como salienta Quinet ldquoa

lsquocavernarsquo de Descartes eacute o proacuteprio olho Ele o compara a uma cacircmara escura

com uma uacutenica abertura diante da qual foi colocada uma lente e a uma

certa distacircncia foi estendido um lenccedilol branco sobre o qual satildeo formadas

as imagens dos objetos que estatildeo do lado de forardquo (QUINET 2002 p 30)

Por conseguinte lembrando as palavras da Dioptrique no Quinto Discurso

ldquoessa cacircmara representa o olho a abertura a pupila esta lente o cristalino

ou melhor todas as partes do olho que provocam qualquer refraccedilatildeo e esse

lenccedilol a pele interna composta pelas extremidades do nervo oacuteticordquo (QUINET

2002 p 30)

223 A similitude e o arbiacutetrio cartesiano do signo

Ora pensando talvez nestas clivagens do pensamento

cartesiano em Lrsquoœil et lrsquoesprit Merleau-Ponty nota que em Descartes natildeo

haveria uma diferenccedila radical entre conceber o conhecimento a partir da

104

imagem ou antes a partir do signo75 Fazendo assim Descartes pocircde

identificar no quadro pintado a representaccedilatildeo comparando-o ao signo

linguiacutestico Deste modo poderia caber ao Espiacuterito e somente a ele a

responsabilidade de estabelecer a semelhanccedila76 necessaacuteria uma vez

tambeacutem que por exemplo pensando na pintura ldquoeacute para Descartes uma

evidecircncia que natildeo se possam pintar senatildeo coisas existentes que a sua

existecircncia consista em serem extensas e que o desenho torne possiacutevel a

pintura tornando viaacutevel a representaccedilatildeo da extensatildeordquo (MERLEAU-PONTY

1975b p 38) Nas Meditaccedilotildees tambeacutem encontramos algumas referecircncias ao

modelo pictoacuterico Jaacute na Primeira Meditaccedilatildeo Descartes declarava

primeiramente que ldquoas coisas que nos satildeo representadas durante o sonho

satildeo quadros e pinturas que natildeo podem ser formados agrave semelhanccedila de algo

real e verdadeirordquo (DESCARTES 1973 p 168) Para ele ldquoos pintores mesmo

quando se empenham com o maior artifiacutecio em representar sereias e saacutetiros

por formas estranhas e extraordinaacuterias natildeo lhes podem todavia atribuir

formas e naturezas inteiramente novas []rdquo (DESCARTES 1973 p 168) Na

Terceira Meditaccedilatildeo encontramos uma referecircncia ao axioma da luz natural

pois ela ldquome faz conhecer evidentemente que as ideias satildeo em mim como

quadros ou imagens que podem na verdade facilmente natildeo conservar a

perfeiccedilatildeo das coisas de onde foram tiradas mas que jamais podem conter

algo de maior ou mais perfeitordquo (DESCARTES 1973 p 187)

Deste modo eacute assim que na Dioptrique seguindo o Meacutetodo

Descartes natildeo concorda com aqueles que recorrem agraves ldquoespeacutecies

intencionaisrdquo Para ele estas ideias ldquoque trabalham tanto a imaginaccedilatildeo dos

75 Conforme Descartes nas palavras de Merleau-Ponty ldquovendo que nosso pensamento pode ser facilmente excitado por um quadro ao conceber o objeto que ali estaacute pintado parece que deveria secirc-lo da mesma maneira ao conceber aqueles que tocam nossos sentidos por alguns pequenos quadros que formassem em nossa cabeccedila lugar que devemos considerar que haacute muitas outras aleacutem das imagens que podem excitar nosso pensamento como por exemplo os signos e as palavras que natildeo se assemelham em nada agraves coisas que significamrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 168) 76 Considerando que Descartes tenha abandonado a ideia de semelhanccedila poderiacuteamos nos perguntar a partir da quarta Meditaccedilatildeo acerca da consideraccedilatildeo de que fomos feitos agrave imagem e semelhanccedila de Deus Parece haver uma certa mudanccedila no pensamento cartesiano posto que a semelhanccedila apresenta-se portanto como a marca do artiacutefice impressa sobre sua obra sendo a obra o proacuteprio sinal do artiacutefice

105

Filoacutesofosrdquo (DESCARTES 1996a p 85) impediriam a existecircncia de um ponto

de distinccedilatildeo entre o objeto e sua imagem dado que o pensamento entendido

como esse intentionale seria apenas uma imagem da coisa por sua vez

entendida como esse naturale Conforme Lebrun nisto encontrariacuteamos ldquo[]

um argumento polecircmico contra a teoria escolaacutestica que explicava a visatildeo

pela impressatildeo no corpo de imagens emanadas das coisas sensiacuteveisrdquo

(LEBRUN 2006a p 63) Em particular pensamos se tratar aqui da

definiccedilatildeo de Eustache de Saint-Paul que compreendia por ldquoespeacutecie

intencionalrdquo ldquoum signo formal da coisa oposta (objectaelig) ao sentido ou uma

qualidade que remetida pelo objeto e recebida no sentido tem a potecircncia de

representar o proacuteprio objeto mesmo se ela proacutepria fosse muito pouco

perceptiacutevel pelo sentidordquo (GILSON 1913 p 98 ndash Texto 169) recebendo o

nome de ldquointencionalrdquo dado que ldquo[] o sentido tende atraveacutes dela em direccedilatildeo

ao objetordquo (GILSON 1913 p 98 ndash Texto 169) O problema desta ideia estaria

em seus desdobramentos quer dizer na certeza de que os sentidos seriam

capazes de abstrair e receber das coisas reais ldquopequenos quadrosrdquo os

mesmos que assumiriam a tarefa de excitar a alma e assim tornar possiacutevel

a percepccedilatildeo Daiacute a ideia das ldquoespeacutecies intencionaisrdquo ou mesmo os

ldquosimulacrosrdquo de Epicuro ou como diraacute Descartes ldquotodas essas pequenas

imagens que volteiam com o arrdquo (DESCARTES 1824a p 39-40) Essas

imagens que como nos explica Merleau-Ponty trariam ldquo[] para o corpo o

aspecto sensiacutevel das coisas [pois] nada mais fazem do que transferir em

termos de explicaccedilatildeo causal e de operaccedilotildees reais a presenccedila ideal da coisa

para o sujeito perceptivo que []rdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 295) por sua

vez ldquo[] eacute uma evidecircncia para a consciecircncia ingecircnuardquo (MERLEAU-PONTY

2006 p 295) Dado natildeo haver uma identidade numeacuterica entre o percebido e

o real encontrariacuteamos pois uma espeacutecie de ldquomitologia explicativardquo segundo

a qual aqueacutem de uma identidade especiacutefica haveria um movimento pelo

qual o percebido retiraria das proacuteprias coisas ldquocaracteres distintivosrdquo pelo

qual a percepccedilatildeo seria vista tatildeo-somente como um ato de ldquo[] imitaccedilatildeo ou

um desdobramento das coisas sensiacuteveis em noacutes ou como a atualizaccedilatildeo na

alma de alguma coisa que estava em potecircncia num sensiacutevel exteriorrdquo

(MERLEAU-PONTY 2006 p 295) Deste modo podemos entender o

106

direcionamento cartesiano ao que nos ensina o cego e sua bengala diante

dos objetos vendo nisto o modo como a luz eacute capaz de transmitir suas

propriedades pois como nos assinala Lebrun

O cego natildeo acredita que haja uma semelhanccedila entre as sensaccedilotildees que experimenta e os estiacutemulos fiacutesicos que as provocam Sabe que sua percepccedilatildeo limita-se a traduzir movimentos em sentimentos desfazendo dessa maneira sem dificuldade a armadilha da imaginaccedilatildeo na qual o ldquoclarividenterdquo se deixa apanhar A Dioacuteptrica de Descartes inaugura a psicofisiologia mecanicista anunciando que a clarividecircncia do entendimento estaacute na razatildeo inversa da clarividecircncia sensiacutevel (LEBRUN 2006b p 63)

A nosso ver tendo em vista estas questotildees Merleau-Ponty nota

em Descartes um abandono agrave semelhanccedila e agrave analogia77 uma vez que

ldquoestamos dispensados de compreender como eacute que a pintura das coisas no

corpo as poderia fazer sentir a alma tarefa impossiacutevel pois tendo por sua

vez a semelhanccedila desta pintura com as coisas necessidade de ser vistardquo

consequentemente ldquoser-nos-iam necessaacuterios lsquooutros olhos no ceacuterebro com

os quais pudeacutessemos aperceberrsquo e o problema da visatildeo manteacutem-se intacto

quando se estabelecem estes simulacros errantes entre as coisas e noacutesrdquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Retomando a temaacutetica da representaccedilatildeo

pictoacuterica Descartes interpreta o deslizamento da semelhanccedila da imagem

pelo arbiacutetrio do signo pois natildeo poderia aceitar a ideia de que a alma receba

passivamente as imagens mas pelo contraacuterio a partir das impressotildees ela

assumiria a tarefa de formaacute-las e interpretaacute-las Natildeo agindo por semelhanccedila

77 Para os claacutessicos a ideia de semelhanccedila conteria em si uma fonte de erros e seria incapaz de alcanccedilar as essecircncias das coisas O conhecimento se daacute por meio da compreensatildeo das causas o que significa afirmar que a razatildeo torna-se capaz de discernir a identidade e a diferenccedila no que concerne agrave essecircncia invisiacutevel das coisas por meio da ordem e da medida Conhecer eacute relacionar estabelecer um nexo causal por meio de um meacutetodo que aspira a uma universalidade A medida e a ordem satildeo os alicerces desse meacutetodo Enquanto a medida seria suficiente para determinar as identidades e as diferenccedilas a ordem estabelece-se como a responsaacutevel em apresentar o encadeamento interno e necessaacuterio entre os termos que foram medidos apoacutes uma devida divisatildeo em partes Reconhecendo este procedimento em Descartes Merleau-Ponty afirma que ldquoa semelhanccedila da coisa e da sua imagem especular natildeo eacute para ambas mais que uma denominaccedilatildeo exterior pertencente ao pensamento A relaccedilatildeo ambiacutegua de semelhanccedila eacute nas coisas uma clara relaccedilatildeo de projeccedilatildeo Um cartesiano natildeo se vecirc ao espelho ele vecirc um manequim um lsquoexteriorrsquo sobre o qual tem todas as razotildees para pensar que eacute visto pelos outros da mesma maneira mas que nem para si nem para os outros eacute uma carne A sua lsquoimagemrsquo no espelho eacute um efeito da mecacircnica das coisas se aiacute se reconhece se a acha lsquoparecidarsquo eacute o seu pensamento que tece esta ligaccedilatildeo a imagem especular nada tem delerdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 34)

107

as gravuras por exemplo ldquoexcitam o nosso pensamento a conceber como o

fazem os signos e as palavras que natildeo se parecem de maneira nenhuma

com as coisas que significamrdquo (DESCARTES 1996a p 112) A dificuldade

estaria no entanto em compreender como a coisa sensiacutevel eacute capaz de

suscitar no corpo e depois no pensamento um ldquoduplordquo ou uma ldquoimitaccedilatildeo do

realrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 294) Deste modo haacute na Dioacuteptrica como

nota Merleau-Ponty um abandono deste ldquorealismo do sensiacutevelrdquo Natildeo haacute uma

relaccedilatildeo transitiva mediante a qual as coisas sensiacuteveis seriam capazes de

imprimir sua imagem no corpo sendo a alma apenas responsaacutevel por

encontrar no final deste processo duplos sensiacuteveis semelhantes agraves coisas

reais Natildeo eacute suficiente inclusive pensa Descartes que haja uma semelhanccedila

entre os objetos percebidos e os fenocircmenos corporais uma vez que

conforme citaccedilatildeo da Dioptrique ilustrada tambeacutem por Merleau-Ponty em

Lrsquoœil et lrsquoesprit

[] Ainda que esta pintura passando assim bem no interior de nossa cabeccedila retenha sempre alguma coisa da semelhanccedila com os objetos dos quais procede natildeo devemos contudo nos persuadir [] que seja por meio dessa semelhanccedila que ela faz que os sintamos como se houvesse outros olhos em nosso ceacuterebro com os quais pudeacutessemos percebecirc-la mas que satildeo antes os movimentos pelos quais ela eacute composta que agindo imediatamente em nossa alma agrave medida que esta eacute unida ao nosso corpo satildeo escolhidos pela natureza para lhe fazer ter esses sentimentos (DESCARTES 1824a p 54 ndash Sexto Discurso)

Ora para Merleau-Ponty Descartes teria razatildeo em sua criacutetica

contra os ei1dwla contra as ldquopequenas imagensrdquo pelas quais a visatildeo seria a

entrada do koinov kosmov no i1diov kosmov e a razatildeo estaria em considerar

como ldquo[] secundaacuteria a semelhanccedila da imagem retiniana com a coisardquo

(MERLEAU-PONTY 1996 p 179) Contudo onde estaria o problema Diraacute o

filoacutesofo o problema estaria em conceber as imagens ldquo[] como Em Si em

relaccedilatildeo de causalidade conoscordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 179) uma vez

que

a) ainda seriam necessaacuterios outros olhos no ceacuterebro para vecirc-las ndash Natildeo se avanccedila um passo no problema da visatildeo dando-se duplos objetivos que natildeo satildeo [uma] abertura agrave coisa b) a semelhanccedila aliaacutes natildeo eacute realizada no quadro [A] figuraccedilatildeo eacute um caso muito particular d[a] Darstellung do ser Aqui onde ela existe natildeo eacute ela que faz a

108

abertura do quadro ao Ser Mas se natildeo haacute semelhanccedila exterior quadro-coisa natildeo haacute muito menos diferenccedila como redondo e oval quadrado e losango quer dizer [o] quadro natildeo eacute outra coisa coisa substituiacuteda signalmente da coisa A diferenccedila eacute muito mais profunda (MERLEAU-PONTY 1996 p 179)

No entanto a ldquofraquezardquo de Descartes estaria em considerar o

signo como uma ocasiatildeo adequada para se pensar o significado (MERLEAU-

PONTY 1996 p 179) Daiacute a identidade que se estabelece ao se entender

ldquopercepccedilatildeordquo e ldquovisatildeordquo do quadro como ldquopensamentordquo sendo o signo o que

suficientemente eacute capaz de ldquodiscriminarrdquo logo ldquo[] permitindo-nos

lsquorepresentarrsquo [as] coisasrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 179) Eacute o mesmo que

parece observar Merleau-Ponty ao dizer que ldquoa magia das espeacutecies

intencionais a velha ideia da semelhanccedila eficaz imposta pelos espelhos e

pelos quadros perde o seu uacuteltimo argumento se todo o poder do quadro eacute o

de um texto proposto agrave nossa leitura sem nenhuma promiscuidade entre o

vidente e o visiacutevelrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Ora o que isto

significa A este respeito vejamos o que nos diz Lebrun

ldquoEntre meus pensamentosrdquo escreve Descartes ldquoalguns satildeo como a imagem das coisas (tanquam rerum imagines) e apenas a esses conveacutem propriamente o nome de ideiardquo E o proacuteprio Descartes natildeo se poupou de lembrar que essa comparaccedilatildeo natildeo deve ser tomada muito ao peacute da letra Contudo a palavra ldquoimagemrdquo designa uma semelhanccedila que deve sempre imiscuir-se entre a ideia e a coisa Ora o que entender por similitude O sentido pode ser bastante lato como indica Descartes a Burman Por que perguntava este uacuteltimo eu deveria assemelhar-me a Deus enquanto meu criador Resposta o que eacute criado por Deus deve ser ad minimum ens et substantiam et sic saltem Deo simile esse et ejus imaginem referre Uma pedra entatildeo seraacute dita imagem de Deus Resposta ldquoNatildeo tomo aqui a palavra imagem no sentido vulgar isto eacute como retrato ou pintura de uma coisa (id quod effigiam est et depictum) mas num sentido mais amplo o que possui semelhanccedila com outra coisa (id quod similitudinem cum alio habet) (LEBRUN 2006a p 434-5)

De acordo com Lebrun o que Descartes pretende eacute justamente

estabelecer uma diferenccedila ao conceber o pensamento na condiccedilatildeo de

imagem entre ideia e ldquoimagem sensiacutevelrdquo Deste modo assim como no

exemplo do cego o que se espera eacute esclarecer como se daacute a passagem de

uma semelhanccedila a um receptor questatildeo esta que a bengala do cego cumpre

bem a tarefa de responder uma vez que haveria uma proporccedilatildeo entre as

109

qualidades presentes na superfiacutecie que o cego toca com sua bengala e os

movimentos desta mesma bengala ou melhor as ldquovariedadesrdquo presentes

neste movimento Natildeo haveria pois na correspondecircncia destas etapas a

transmissatildeo de um ser real E o que ocorre De modo diverso ldquohaacute somente

codificaccedilatildeo dessa diversidade enquanto distinta de todas as outras Em

suma o movimento natildeo transmite nada daquilo que estaacute na causa ndash e eacute por

isso que ele natildeo garante nenhuma semelhanccedila ele apenas permite a uma

diversidade ser assinaladardquo (LEBRUN 2006a p 435) Logo constituindo-se

como uma ldquofiltragem diferencial das qualidades do objeto a sinalizaccedilatildeo natildeo

imprime nenhuma espeacutecie de imagem Portanto ela natildeo fornece para falar

claramente nenhum conhecimentordquo (LEBRUN 2006a p 435)

Sendo assim no intuito de combater a tendecircncia do senso

comum em converter esta codificaccedilatildeo em representaccedilatildeo para Descartes

ldquo[] pode ser uacutetil comparar o conhecimento a um quadro apenas para

distingui-lo de forma mais clara da informaccedilatildeo fornecida pelo signordquo

(LEBRUN 2006a p 435) Em consequecircncia disto ldquoa ideia como imago

mesmo que carente em relaccedilatildeo ao modelo natildeo deixa de ser lsquoa proacutepria coisa

enquanto estaacute no espiacuteritorsquo natildeo deixa de ser o contraacuterio de um signordquo

(LEBRUN 2006a p 436) Daiacute a importacircncia de natildeo nos equivocarmos com

aquilo que pretende Descartes ao fazer uso da ldquometaacutefora pictoacutericardquo uma vez

que ldquoenquanto o signo me indica simplesmente a presenccedila de uma diferenccedila

e me informa que estou lidando com um conteuacutedo = X a ideia por seu lado

mostra-me positivamente uma natureza mostra-me que ela eacute relativa a este

conteuacutedo e natildeo agravequele outrordquo (LEBRUN 2006a p 436) Daiacute que ela seja

ldquo[] ldquoquadrordquo pois nela posso ver por que ela eacute ideia desse conteuacutedo []

(LEBRUN 2006a p 436)

Ora onde estariam os limites desse modo cartesiano de

compreender a similitude Primeiramente como nos indicaraacute Leibniz o seu

erro estaria na oposiccedilatildeo que estabelece entre a ldquoinformaccedilatildeo psicofisioloacutegicardquo

e a ldquoinformaccedilatildeo teoacutericardquo entre o ldquosignordquo e o ldquoquadrordquo haja vista que ldquo[] o

senso comum ao contraacuterio tem razatildeo quando atribui uma funccedilatildeo teoacuterica agrave

sensaccedilatildeo e natildeo reduz as lsquoqualidades secundaacuteriasrsquo a sinais que nada nos

informariam sobre a natureza do emissorrdquo (LEBRUN 2006a p 437) Logo

110

no cartesianismo o problema estaria em ter subtraiacutedo a regra pela qual ldquo[]

soacute aparentemente as ideias sensiacuteveis lsquodiferemrsquo do movimento que elas

exprimem []rdquo(LEBRUN 2006a p 442) reduzindo-se agrave antinomia entre a

ldquoideia-quadrordquo e a sinalizaccedilatildeo fazendo com que se abandone a ldquosimilituderdquo

tatildeo-somente por natildeo ter visto a relaccedilatildeo presente nesta aparente disjunccedilatildeo

Por conseguinte o equiacutevoco cartesiano estaria tambeacutem em ter tomado como

referecircncia especialmente na Dioptrique a ldquodeformaccedilatildeo perceptivardquo que nos

impossibilitaria de mantermos uma fidelidade agrave coisa representada

concluindo disto a impossibilidade de que permaneccedila algo na passagem do

inteligiacutevel ao sensiacutevel Daiacute a censura de Merleau-Ponty (MERLEAU-PONTY

1996 p 179-180)

Haacute o verdadeiro em si (ciacuterculo) e o signo para noacutes (oval) e o pensamento reconstitui o em si a partir do signo para noacutes Mas ndash como ele explica aliaacutes ndash os signos natildeo nos satildeo dados Desloca-se a atenccedilatildeo d[a] dimensatildeo do corpo agrave [das] coisas em seu prolongamento d[a] percepccedilatildeo da matildeo agrave percepccedilatildeo da coisa encerrada nela ndash A percepccedilatildeo do corpo eacute percepccedilatildeo do mundo ndash O espaccedilo do corpo eacute matriz de todo espaccedilo ndash Ora este espaccedilo do corpo natildeo eacute pensamento a alma natildeo eacute um piloto pensando seu navio mas habitante do corpo portanto do mundo A anaacutelise em termos de pensamento [eacute] anaacutelise em parte dupla eacute como se nosso corpo tivesse sido instituiacutedo por um tal Pensamento ndash O que haacute eacute [a] causalidade ndash que produz [uma] aparecircncia maacutegica de adaptaccedilatildeo por fora porque o corpo foi disposto assim pel[o] Pensamento do Todo ndash Visatildeo disjunta em Pensamento e Causalidade (MERLEAU-PONTY 1996 p 179-180)

Para Merleau-Ponty o problema estaacute em dispor o ldquoquadrordquo

diante do pensamento de Deus ou antes a transposiccedilatildeo para Deus de uma

dualidade que existe em noacutes a saber entendimento e vontade78 Daiacute a

78 Deste modo mutatis mutandis a criacutetica de Merleau-Ponty se aproxima daquela feita por Leibniz ldquoNatildeo eacute necessaacuterio que aquilo que concebemos das coisas fora de noacutes seja semelhante a elas mas que as exprima como uma elipse exprime o ciacuterculo visto de traacutes O criteacuterio da lsquosimilitudersquo eacute pois deslocado natildeo mais reside na fidelidade a um original mas no retorno de um invariante Trata-se entatildeo efetivamente do mesmo conceito A questatildeo se coloca Comparemos por exemplo o ciacuterculo a suas projeccedilotildees elipse paraacutebola hipeacuterbole Nada parece tatildeo diferente nem tatildeo dessemelhante quanto essas figuras e no entanto haacute uma relaccedilatildeo exata de cada ponto a cada ponto Mas essa relaccedilatildeo natildeo tem mais nada que ver com aquela da coacutepia ao original enquanto o original eacute conteuacutedo que precede e domina a coacutepia o invariante por sua vez soacute aparece no encadeamento das variaccedilotildees e somente atraveacutes delas As variaccedilotildees natildeo o repetem propriamente falando ele natildeo eacute uma espeacutecie de modelo primitivo cujo vestiacutegio pode ser sempre encontrado Falando dessa forma nos

111

negaccedilatildeo em suma de natildeo se entender o olhar como uma ldquoabertura ao

visiacutevelrdquo ao ldquoser do visiacutevelrdquo como se expressa na citaccedilatildeo que o filoacutesofo faz do

Traiteacute de lrsquoHomme

Os objetos exteriores que soacute por sua presenccedila agem contra os oacutergatildeos dos seus sentidos e que assim determinam a maacutequina a se mover de diversas maneiras conforme a disposiccedilatildeo das partes de seu ceacuterebro satildeo como estranhos que entrando em algumas dessas fontes causam inconscientemente os movimentos que nela se fazem em sua presenccedila pois natildeo podem caminhar aiacute a natildeo ser sobre alguns canteiros de tal maneira dispostos que por exemplo se eles se aproximam de uma Diana que se banha eles a faratildeo esconder-se em algum caniccedilo se passarem mais adiante para persegui-la faratildeo vir contra si um Netuno que os ameaccedilaraacute com seu tridente ou se forem para algum outro lado faratildeo sair um monstro marinho que lhes vomitaraacute aacutegua contra o rosto ou coisas semelhantes conforme o capricho dos engenheiros que a fabricaram (DESCARTES 1996m p 131 ndash IIa Obj)

Figura-se aqui a imagem do autocircmato cujas respostas de seus

sentidos se datildeo em consonacircncia com uma determinada situaccedilatildeo natildeo sendo

esta relaccedilatildeo pensada por eles tarefa que seraacute cumprida por um

ldquoengenheirordquo Nisto Merleau-Ponty encontra uma comparaccedilatildeo com a

compreensatildeo cartesiana da visatildeo pois ldquodo mesmo modo [as] coisas que

agem sobre meus sentidos suscitam [uma] visatildeo na relaccedilatildeo dos sentidos com

elasrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 182) Natildeo haveria no entanto uma

relaccedilatildeo operante sendo nosso corpo uma consequecircncia do pensamento de

Deus sendo possiacutevel pois agrave ldquoinclinaccedilatildeo naturalrdquo perder-se no labirinto das

ilusotildees Igualmente ao se considerar uma homogeneidade entre uma

ldquopercepccedilatildeo verdadeirardquo e a ldquoilusatildeordquo natildeo haveria uma visatildeo do mundo sendo

a ldquomagia naturalrdquo da Perpectiva na verdade o Grande Enganador

confinando-nos consequentemente agrave solidatildeo ldquoeu estou confinado em

minha natureza e unicamente por Deus em acordo com o mundo A magia

perceptiva [eacute] reduzida agrave identidade em Deus de identidade e vontade

corpo alma lsquofinalizadarsquordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 182)

livramos das metaacuteforas intuitivas Ora o invariante designa justamente uma correspondecircncia tatildeo ampla ndash entre dois conteuacutedos entre duas seacuteries ndash que uma simples inspeccedilatildeo das imagens natildeo poderia deixaacute-la suporrdquo (LEBRUN 2006b p 440)

112

Da sua parte mais proacuteximo da filosofia de Merleau-Ponty o

intento de Leibniz ao natildeo identificar ldquoimitaccedilatildeordquo e ldquosemelhanccedilardquo

diferentemente de Descartes seria o de ldquo[] reabilitar a lsquofilosofia ordinaacuteria

que ensina a semelhanccedila de nossas sensaccedilotildees com os traccedilos dos objetosrsquordquo

(LEBRUN 2006b p 437) demonstrando ter sido um dos ldquograndes delitosrdquo

do pensamento ldquoclaro e distintordquo a ldquo[] propensatildeo que ele nos incute a

resignarmo-nos prematuramente com a ideia de uma codificaccedilatildeo sem que

se averiguacutee se o representante natildeo seria muito mais do que um signo de

reconhecimento cocircmodordquo (LEBRUN 2006b p 442) Como diraacute Lebrun a

partir da criacutetica de Leibniz a Descartes

Se o sensiacutevel eacute da mesma natureza que o inteligiacutevel eacute porque nenhum signo no limite eacute signo de instituiccedilatildeo ou melhor eacute porque desaparece a fronteira entre signos naturais e signos de instituiccedilatildeo substitutos que mostram e substitutos que dissimulam a razatildeo de sua relaccedilatildeo com a coisa Onde quer que seja toda representaccedilatildeo eacute fundada em razatildeo E vai-se contra essa universalidade do princiacutepio de razatildeo sempre que se considera como um substituto da coisa aquilo que eacute a proacutepria coisa sob um outro aspecto ndash sempre que se imagina tratar-se de um iacutendice aquilo que eacute ainda e sempre somente um dos perfis da coisa Ora eacute esse erro que a percepccedilatildeo irresistivelmente nos induz a cometer escondendo de noacutes os recursos da fina ldquosemelhanccedilardquo da verdadeira ldquosemelhanccedilardquo (LEBRUN 2006b p 444)79

Assim sendo natildeo haveria sentido a generalizaccedilatildeo equivocada

segundo a qual ldquoestar representadordquo seria o mesmo que ldquoestar expostordquo quer

seja diante da vista quer seja diante do entendimento o que excluiria a

compreensatildeo de uma representaccedilatildeo que signifique antes um outro modo de

estar presente A nosso ver estas consideraccedilotildees de Leibniz mutatis

mutandis como jaacute indicamos se harmonizam com o pensamento de

Merleau-Ponty Deste modo natildeo eacute gratuita em suas Notes de cours a criacutetica

79 Notamos tambeacutem em La Prose du Monde ao tratar da linguagem uma certa aproximaccedilatildeo de Merleau-Ponty desta criacutetica leibniziana mediante no entanto ao que ele iraacute denominar na ldquorelaccedilatildeo viva dos sujeitos falantesrdquo os limites e equiacutevocos de uma uma supremacia do ldquoenunciadordquo e do ldquoindicativordquo ldquoo que mascara a relaccedilatildeo viva dos sujeitos falantes eacute que se toma sempre por modelo da fala o enunciado ou o indicativo e faz-se isso porque se acredita que fora dos enunciados natildeo haacute senatildeo balbucios desrazatildeo Eacute esquecer tudo o que haacute de taacutecito de natildeo formulado de natildeo tematizado nos enunciados da ciecircncia que contribui para determinar seu sentido e que justamente oferece agrave ciecircncia de amanhatilde seu campo de investigaccedilatildeo (MERLEAU-PONTY 2002a)

113

a uma compreensatildeo da figuraccedilatildeo que se decirc como um caso particular da

Darstellung pois ao se legitimar o que seria uma espeacutecie de ocasionalismo

presente em Descartes o que temos eacute uma representaccedilatildeo entendida como

uma ldquoclasse restritivardquo da exhibitio ou seja da Darstellung o que nos leva

forccedilosamente ldquo[] a distinguir duas regiotildees o que eacute apresentaccedilatildeo da proacutepria

coisa e o que eacute indicaccedilatildeo por substituiccedilatildeo Essa reparticcedilatildeo entatildeo parece

impor-se ao naturalismordquo (LEBRUN 2006b p 445) pouco nos importando no

caso de Descartes que esta exhibitio ldquoseja confiada agrave ideia clara e distintardquo

(LEBRUN 2006b p 445) pois a imago acabaria sendo justamente a medida

do saber Em contraposiccedilatildeo como nos diz Lebrun quando natildeo mais

reduzimos a ldquosimilituderdquo ao ldquomodelo da semelhanccedila imaginativardquo

[] a palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo adquire toda a sua forccedila se por ldquoquadrordquo se decide entender aquilo que Merleau-Ponty entende na qualidade de neoleibniziano ldquoUm conjunto organizado que eacute fechado mas que estranhamente eacute representativo de todo o resto possui seus siacutembolos seus equivalentes para tudo o que ele natildeo eacute A pintura para o espaccedilo por exemplordquo Nesse ponto o que ainda pode significar verdadeiramente representaccedilatildeo [] Natildeo tanto um a priori do conhecimento como a certeza de que estaremos sempre em terras conhecidas Entendamos por isso ao mesmo tempo um lugar de onde esteja excluiacuteda a expatriaccedilatildeo ndash um lugar onde todo signo exprima por assim dizer a natureza daquilo que eacute sinalizado (LEBRUN 2006b p 447 448-9)

224 Caminhos de desconstruccedilatildeo a reabilitaccedilatildeo do sensiacutevel e o enigma do olhar 2241 A descorberta da afetividade das cores

Ao procurar romper com o modo cartesiano de encarar o

ldquosensiacutevelrdquo o que nos diria Merleau-Ponty da relativizaccedilatildeo da cor como

qualidade secundaacuteria em vista do desenho e da forma dos objetos contida

nas gravuras tal como se faz na Dioptrique O que o filoacutesofo nos diria do

gosto cartesiano pelos talhos-doces Ora em Lrsquoœil et lrsquoesprit encontramos

algumas respostas

Mas o que agrada Descartes nos talhos-doces eacute conservarem estes a forma dos objetos ou pelo menos nos oferecerem dela sinais suficientes Eles nos datildeo uma apresentaccedilatildeo do objeto pelo seu exterior ou envoltoacuterio Se houvesse examinado esta outra e mais profunda abertura agraves coisas que as qualidades segundas nos

114

proporcionam notadamente a cor como natildeo haacute relaccedilatildeo regulada ou projetiva entre elas e as propriedades verdadeiras das coisas e como no entanto a mensagem delas eacute compreendida por noacutes Descartes ter-se-ia achado diante do problema de uma universalidade e de uma abertura-agraves-coisas sem conceito ter-se-ia visto obrigado a indagar como o murmuacuterio indeciso das cores pode apresentar-nos coisas florestas tempestades enfim o mundo e talvez a integrar a perspectiva como caso particular num poder ontoloacutegico mais amplo Mas para ele eacute fora de duacutevida que a cor eacute ornamento coloraccedilatildeo que todo o poder da pintura assenta no poder do desenho e o poder do desenho na relaccedilatildeo regulada que existe entre ele e o espaccedilo em si tal como o ensina a projeccedilatildeo em perspectiva (MERLEAU-PONTY 1975b p 96)

Destas consideraccedilotildees notamos que o desmerecimento

cartesiano da cor se daacute justamente pela recusa em compreender a visatildeo

como uma abertura ao mundo Lembremo-nos de que jaacute na Pheacutenomeacutenologie

de la perception ao falar do sentir Merleau-Ponty inclusive nos salientava

dos ldquovalores motrizesrdquo presentes na experiecircncia da cor levando-nos deste

modo a pensar juntamente com este trecho de Lrsquoœil et lrsquoesprit naquilo que

segundo Villela-Petit seria a explicitaccedilatildeo presente no filoacutesofo de uma

ldquoafetividade das coresrdquo e isto ldquono momento originaacuterio da experiecircncia em que

o que se daacute nela eacute em primeiro lugar aquilo que em meio ao afluxo

incessante do mundo vem assenta em mim e me afeta tenta responder e

lhe corresponder a atividade picturalrdquo (VILLELA-PETIT 1995 p 197) No

texto de 1945 especialmente a partir dos trabalhos de Goldstein e

Rosenthal o filoacutesofo jaacute demonstrava a busca pelo que em seu uacuteltimo texto

publicado mediante sua criacutetica agrave ontologia cartesiana teria sido a

contribuiccedilatildeo da ciecircncia moderna ao lado dos trabalhos de Kandinsky a um

ldquoalcance ontoloacutegico da corrdquo ao menos podendo ser ela ldquo[] tomada como

remetendo agrave solidariedade essencial do sentir e do se mover []rdquo (VILLELA-

PETIT 1995 p 201) Como nos dizia o filoacutesofo

Soacute se compreende a significaccedilatildeo motora das cores se elas deixam de ser estados fechados sobre si mesmos ou qualidades indescritiacuteveis oferecidas agrave constataccedilatildeo de um sujeito pensante se elas atingem em mim uma certa montagem geral pela qual sou adaptado ao mundo se elas me convidam a uma nova maneira do avaliar e se por outro lado a motricidade deixa de ser a simples consciecircncia de minhas mudanccedilas de lugar presentes ou futuras para tornar-se a funccedilatildeo que a cada momento estabelece meus padrotildees de grandeza a amplitude variaacutevel de meu ser no mundo O azul eacute aquilo que solicita de mim certa maneira de olhar aquilo que se deixa apalpar por um

115

movimento definido de meu olhar Ele eacute um certo campo ou uma certa atmosfera oferecida agrave potecircncia de meus olhos e de todo meu corpo (MERLEAU-PONTY 1999 p 284)

Dirigindo-se agrave ciecircncia Merleau-Ponty jaacute tinha concluiacutedo que ao

contraacuterio de ser um espetaacuteculo objetivo ldquo[] a qualidade deixa-se

reconhecer por um tipo de comportamento que a visa em sua essecircncia e eacute

por isso que a partir do momento em que meu corpo adota a atitude do

azul eu obtenho uma quase presenccedilardquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 285)

Por conseguinte ldquoo sujeito da sensaccedilatildeo natildeo eacute nem um pensador que nota

uma qualidade nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela

eacute uma potecircncia que co-nasce em um certo meio de existecircncia ou se

sincroniza com elerdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 285) Ao falar da cor na

Pheacutenomeacutenologie de la perception o filoacutesofo tem em vista de modo especial

defender a ideia de que ldquotoda sensaccedilatildeo pertence a um certo campordquo

(MERLEAU-PONTY 1999 p 292) sendo pois a visatildeo ldquo[] um pensamento

sujeito a um certo campo e eacute isso que chamamos de um sentidordquo (MERLEAU-

PONTY 1999 p 292) haja vista que

Quando digo que tenho sentidos e que eles me fazem ter acesso ao mundo natildeo sou viacutetima de uma confusatildeo natildeo misturo o pensamento causal e a reflexatildeo apenas exprimo esta verdade que se impotildee a uma reflexatildeo integral que sou capaz por conaturalidade de encontrar um sentido para certos aspectos do ser sem que eu mesmo o tenha dado a eles por uma operaccedilatildeo constituinte (MERLEAU-PONTY 1999 p 292)

A compreensatildeo merleau-pontiana da cor por sua vez desde os

primeiros trabalhos encontra-se simetricamente oposta ao modo como

Descartes iraacute encaraacute-la Eacute assim que especialmente em Le Visible et

lrsquoInvisible torna-se possiacutevel entrever no tratamento da cor o que seria uma

espeacutecie de ldquotopologia do sensiacutevelrdquo que a nosso ver explicita tambeacutem uma

espeacutecie de ldquotopologia do imaginaacuteriordquo (VILLELA-PETIT 1995 p 209) uma vez

que ldquoa cor eacute aliaacutes variante em uma outra dimensatildeo de variaccedilatildeo a de suas

relaccedilotildees com a vizinhanccedila []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 129) Daiacute a

compreensatildeo do vermelho que eacute comparado por Claudel ao azul do mar ao

dizer que ldquocerto azul do mar eacute tatildeo azul que somente o sangue eacute mais

116

vermelhordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 129) Para o filoacutesofo ldquoeste vermelho eacute

o que se liga do seu lugar com outros vermelhos em volta dele com os

quais forma uma constelaccedilatildeo ou com outras cores que domina ou que o

dominam que atrai ou que o atraem que afasta ou que o afastamrdquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 129) sendo em suma ldquo[] uma espeacutecie de noacute

na trama do simultacircneo e do sucessivordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 129)

ou antes ldquouma concreccedilatildeo de visibilidade natildeo um aacutetomordquo (MERLEAU-

PONTY 1992 p 129) Por conseguinte segundo Merleau-Ponty

Com mais razatildeo a roupa vermelha liga-se com todas as suas fibras ao tecido do visiacutevel e por ele a um tecido de ser invisiacutevel Pontuaccedilatildeo no campo das coisas vermelhas que compreende as telhas dos tetos a bandeirola dos guardas das estradas de ferro a bandeira da Revoluccedilatildeo alguns terrenos perto de Aix ou de Madagascar ela tambeacutem o eacute no campo das roupas vermelhas que compreende aleacutem dos vestidos das mulheres as becas dos professores e dos advogados-gerais os mantos dos bispos como tambeacutem no dos adornos e dos uniformes E seu vermelho natildeo eacute precisamente o mesmo conforme apareccedila numa constelaccedilatildeo ou noutra conforme nela participa a pura essecircncia da Revoluccedilatildeo de 1917 ou a do eterno feminino ou do promotor puacuteblico ou das ciganas vestidas agrave hussarda que haacute vinte e cinco anos reinavam num restaurante dos Campos Eliacutesios Certo vermelho tambeacutem eacute um foacutessil retirado do fundo de mundos imaginaacuterios (MERLEAU-PONTY 1992 p 129)

Para o filoacutesofo natildeo eacute possiacutevel perceber uma ldquocor nuardquo tal como

se pretende a visatildeo cartesiana entendida como transmissatildeo de movimento

(MERLEAU-PONTY 1996 p 237) vista como ldquoqualidade secundaacuteriardquo

mesmo se a procuraacutessemos tal como se mostra em cada uma de suas

exibiccedilotildees dado ela natildeo ser assim como todo visiacutevel em geral ldquo[] um

pedaccedilo duro indivisiacutevel oferecido inteiramente nu a uma visatildeo que soacute

poderia ser total ou nula []rdquo Pelo contraacuterio o que se daacute eacute uma espeacutecie de

estreitamento de horizontes sempre abertos tanto exteriores como

interiores ou antes

[] algo que vem tocar docemente fazendo ressoar agrave distacircncia diversas regiotildees do mundo colorido ou visiacutevel certa diferenciaccedilatildeo uma modulaccedilatildeo efecircmera desse mundo sendo portanto menos cor ou coisa do que diferenccedila entre as coisas e as cores cristalizaccedilatildeo momentacircnea do ser colorido ou da visibilidade Entre as cores e os pretensos visiacuteveis encontra-se o tecido que os duplica sustenta alimenta e que natildeo eacute coisa mas possibilidade latecircncia e carne das coisas (MERLEAU-PONTY 1992 p 129-130)

117

Pensando nestas questotildees Merleau-Ponty procura nos advertir

de que ldquoo que haacute de indefiniacutevel no quale na cor nada mais eacute que uma

maneira breve peremptoacuteria de produzir num uacutenico tom de ser visotildees

passadas visotildees vindouras e aos cachosrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 132)

Deste modo a cor eacute natildeo soacute sentida mas habitada pelo olhar fazendo com

que aquele que a sente e a habita seja capaz de sentir ldquo[] tudo o que de

fora se assemelha de sorte que preso no tecido das coisas o atrai

inteiramente o incorpora e pelo mesmo movimento comunica agraves coisas

sobre as quais se fecha []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 132) portanto

ldquo[] essa identidade sem superposiccedilatildeo essa diferenccedila sem contradiccedilatildeo essa

distacircncia do interior e do exterior que constituem seu segredo natalrdquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 132) Natildeo haacute pois uma cor absoluta tal como

jaacute ensinava a Pheacutenomeacutenologie de la perception ao falar de um vermelho que

ldquo[] natildeo seria literalmente o mesmo se natildeo fosse o lsquovermelho lanosorsquo de um

tapeterdquo posto que a ldquoanaacutelise descobre portanto em cada ponto

significaccedilotildees que a habitamrdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 25 o grifo eacute

nosso) O que isto significa Como iraacute acentuar Le visible et lrsquoinvisible

proacuteximo ao texto de 1945 a impossibilidade de se crer que as cores sejam os

ldquorelevos taacuteteisrdquo de um outro ser Talvez tal compreensatildeo se efetue quando

partimos do ensejo de obter uma ldquoideiardquo uma ldquoimagemrdquo ou uma

ldquorepresentaccedilatildeordquo mas quando o que se tenciona eacute uma ldquoexperiecircncia

eminenterdquo diraacute o filoacutesofo ldquo[] basta que eu contemple uma paisagem que

fale dela com algueacutem entatildeo graccedilas agrave operaccedilatildeo concordante de seu corpo

com o meu o que vejo passa para ele este verde individual da pradaria sob

meus olhos invade-lhe a visatildeo sem abandonar a minhardquo (MERLEAU-PONTY

1992 p 138) Deste modo ldquoreconheccedilo em meu verde o seu verde como de

repente o guarda alfandegaacuterio reconhece no passageiro o homem cujos

sinais lhe foram fornecidosrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 138) Merleau-

Ponty nos apresenta a cor especialmente em seus uacuteltimos trabalhos a

partir do que seria uma ldquodimensionalidaderdquo do Ser Daiacute sua criacutetica a

Descartes pois cada cor diraacute uma de suas Notes seria semelhante a uma

nota musical que embora sendo a mesma possa ser tocada no ldquocampo de

outro tomrdquo ou seja a ldquomesmardquo ldquo[] tornada aquela no tom da qual estaacute

118

escrita uma melodiardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 202) Natildeo compreender

isso eacute o mesmo que se esquecer de que como diria Claudel (MERLEAU-

PONTY 1992 p 202) nas palavras de Merleau-Ponty ldquoo universal natildeo existe

acima mas abaixordquo logo

Cada ldquosentidordquo eacute um ldquomundordquo i e absolutamente incomunicaacutevel para os outros sentidos e no entanto constroacutei um algo que pela sua estrutura de imediato se abre para o mundo dos outros sentidos e com eles constitui um uacutenico Ser A sensorialidade por ex uma cor o amarelo ultrapassa-se a si mesma desde que se torna uma cor tem por conseguinte de per si uma funccedilatildeo ontoloacutegica torna-se apta a representar todas as coisas (como as gravuras de talhe-doce IV Discurso da Dioptrique) Num uacutenico movimento impotildee-se como particular e cessa de ser visiacutevel como particular O ldquoMundordquo eacute este conjunto onde cada ldquoparterdquo quando a tomamos por si mesma abre de repente dimensotildees ilimitadas ndash torna-se parte total (MERLEAU-PONTY 1992 p 202)

Ao contrapor-se ao modo pelo qual Descartes se aproxima da cor

como tambeacutem ao nos insinuar uma ldquoafetividade das coresrdquo e uma ldquotopologia

do sensiacutevelrdquo entrelaccedilada a uma espeacutecie de ldquotopologia do imaginaacuteriordquo o que

Merleau-Ponty tem em vista eacute a desconstruccedilatildeo da pretensatildeo cartesiana em

tentar diluir e resolver de uma vez por todas o enigma da visatildeo Para

Merleau-Ponty ldquoo enigma da visatildeo natildeo foi eliminado ele foi remetido do

lsquopensamento de verrsquo para a visatildeo em atordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 45)

Ao seguir o modelo do tato Descartes esquece-se da luz80 que natildeo agindo

sobre os nossos olhos segundo leis da fiacutesica vemos diante de noacutes Eacute o que

encontramos na Dioptrique quando reduzindo a luz aos seus movimentos

Descartes toma como modelo os movimentos de uma bola que passando

pelo ar ldquoencontra corpos moles duros ou liacutequidosrdquo capazes

consequentemente de paraacute-la amortececirc-la ou remetecirc-la para um outro lado

(DESCARTES 1996a p 90) Para Descartes os movimentos da luz

80 Para Descartes o cego ignorando o fenocircmeno puramente subjetivo da cor encontrar-se-ia liberado para receber a verdade da luz Assim procurando defender a ideia da identidade da luz que vemos e do bastatildeo do cego Descartes nos diz que ldquoo que pode levar-nos no iniacutecio a considerar estranho que esta luz pudesse estender seus raios em um instante desde o Sol ateacute noacutes eacute o fato de que vocecirc sabe que a accedilatildeo da qual percebe-se uma finalidade no bastatildeo passa assim em um instante de um a outro e que deveria passar do mesmo jeito mesmo que haja uma distacircncia maior que haacute de fato desde a terra ateacute os ceacuteusrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 45)

119

seguiriam estas mesmas leis pois ldquoconsidere enfim que os raios se

desviam tambeacutem do mesmo modo do que foi dito de uma bola quando

encontram obliquamente a superfiacutecie de um corpo transparente pelo qual

eles penetram mais ou menos facilmente do que aquele de onde vieram e

este modo de se desviar se chama neles refraccedilatildeordquo (DESCARTES 1996a p

92)

Ora se a luz se reduz agrave refraccedilatildeo de seus raios eacute o que parece

perguntar Merleau-Ponty ldquopor que continuar a sonhar a propoacutesito dos

reflexos a propoacutesito dos espelhos Estes duplos irreais satildeo uma variedade

das coisas satildeo efeitos reais como o ricochete de uma balardquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 43) Assim ldquose o reflexo se parece com a coisa mesma tal

acontece porque ele age sobre os olhos aproximadamente como o faria uma

coisa O reflexo engana o olho engendra uma percepccedilatildeo sem objeto mas

que natildeo afeta a nossa ideia do mundordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 43)

pois ldquono mundo haacute a coisa mesma e fora dela haacute essa outra coisa que eacute

um raio refletido dando-se o caso de ter com a primeira uma

correspondecircncia regrada dois indiviacuteduos portanto ligados pela

causalidaderdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 43)

2242 Os limites da noccedilatildeo claacutessica de perspectiva

Do mesmo modo poderiacuteamos encontrar a criacutetica de Merleau-

Ponty ao elogio cartesiano da noccedilatildeo claacutessica de perspectiva81 como salienta

a Dioptrique tal como era entendida pelo mundo renascentista Na

Renascenccedila as leis da perspectiva eram compreendidas como a vitoacuteria da

racionalidade humana e da objetividade cientiacutefica sobre a visatildeo natural que

era vista como primitiva Sendo originaacuteria do latim (perspicere olhar atraveacutes

de ver bem ver perfeitamente) a perspectiva daacute uma ilusatildeo tridimensional

a imagem de um mundo perfeitamente bem medido e formado por espaccedilos

81 Na pintura contemporacircnea em contrapartida especialmente com Ceacutezanne a perspectiva ganha outro perfil sendo encarada como estranha e paradoxal Por fim com uma arte abstrata a ldquoteacutecnica sagradardquo da Renascenccedila cedeu lugar agraves invenccedilotildees e agraves criaccedilotildees proacuteprias de cada artista

120

equidistantes Daiacute o elogio de Descartes uma vez que na pespectiva haveria

uma visatildeo mais apurada que romperia com as confusotildees da percepccedilatildeo

natural constituindo-se pois como uma correta interpretaccedilatildeo tal como

faria uma visatildeo do espiacuterito uma intuitus mentis

[] De acordo com as regras da perspectiva frequentemente elas representam melhor ciacuterculos por ovais que por outros ciacuterculos e quadrados por losangos que por outros quadrados e assim todas as outras figuras de modo que frequentemente para serem mais perfeitas em qualidade de imagens e melhor representar um objeto natildeo devem se lhe assemelhar (DESCARTES 2007 p 172 1996a p 114)82

Ora segundo a teoria claacutessica a profundidade apresentava-se

como uma largura considerada de perfil desprovida de qualquer

originalidade pois se aceitava a ideia de que ela se manifestava pela nossa

capacidade de decifrar a grandeza aparente dos objetos e por nossos olhos

seguir uma lei de convergecircncia que se efetivava quando lhes dirigiacuteamos a

nossa atenccedilatildeo Todavia para que seja possiacutevel pensar a profundidade como

largura teriacuteamos que aceitar a ideia de uma certa ubiquidade da visatildeo o

que se tornaria problemaacutetico tanto para o pensamento reflexivo como para o

empirismo Neste sentido segundo Merleau-Ponty a temaacutetica da

profundidade nos convida a abandonar os nossos preacutejugeacutes acerca do mundo

e a retornar agrave nossa experiecircncia Eacute assim que podemos encontrar na

profundidade uma dimensatildeo existencial O que isto significa Para o

filoacutesofo a profundidade apresenta um laccedilo indissoluacutevel entre o vidente e o

visiacutevel Buscando uma profundidade ainda natildeo objetivada portanto natildeo

fundada na concepccedilatildeo renascentista de perspectiva Merleau-Ponty desejava

ultrapassar as relaccedilotildees estabelecidas entre sujeito e objeto Para ele a ideia

de que o mundo seja um espelho diante do qual o nosso corpo se encontra

fazendo com que a imagem que se forma no corpo-tela seja como no

82 ldquoAtque etiam hanc similitudinem valde esse imperfectam cugravem in superficie plana corpora diversimodegrave surgentia aut subsidentia exhibeant et secundugravem regulas scenographiaelig meliugraves saepe circulos repraeligsentent per alios ellipses quagravem per alios circulos et quadrata per rhombos quagravem per alia quadrata et ita de caeteris adeograve ut saeligpius ad absolutam imaginis perfectionem et adumbrationem objecti accuratam dissimilitudo in imagine requiraturrdquo

121

espelho proporcional ao espaccedilo vazio entre o corpo e o objeto apresentava-

se confusa Pensando no modo como isto se articula na pintura por

exemplo o filoacutesofo nos diz o seguinte

O quadro todo estaacute no passado no modo do remoto e da eternidade tudo ganha um ar de dececircncia e de discriccedilatildeo as coisas natildeo me interpelam e natildeo estou comprometido por elas E se acrescento a esse artifiacutecio da perspectiva geomeacutetrica a perspectiva aeacuterea como o fazem particularmente tantos quadros venezianos sente-se a que ponto aquele que pinta a paisagem e aquele que olha o quadro satildeo superiores ao mundo como o dominam como o abarcam pelo olhar A perspectiva eacute muito mais do que um segredo teacutecnico para representar uma realidade que se daria dessa maneira a todos os homens ela eacute a proacutepria realizaccedilatildeo e a invenccedilatildeo de um mundo dominado possuiacutedo de ponta a ponta num sistema instantacircneo do qual o olhar espontacircneo nos oferece apenas um esboccedilo quando tenta em vatildeo conservar juntas todas as coisas cada qual existindo por inteiro A perspectiva geomeacutetrica natildeo eacute mais a uacutenica maneira de ver o mundo sensiacutevel tanto quanto o retrato claacutessico natildeo eacute a uacutenica maneira de ver o homem (MERLEAU-PONTY 1975b p 75)

Pelo que notamos a perspectiva mais do que uma teacutecnica

oculta a celebraccedilatildeo de um sonho um desejo de dominaccedilatildeo teoacuterica da

Natureza a busca de uma geometrizaccedilatildeo do mundo a ldquorealizaccedilatildeordquo e a

ldquoinvenccedilatildeordquo de um mundo dominado Ora ao se pensar em uma ldquocrise da

Razatildeordquo natildeo seria este mundo que se vecirc em ruiacutena Eacute pensando nisto que o

filoacutesofo iraacute vislumbrar como contra-senso a intenccedilatildeo de inserir o nosso

corpo e o exterior em um mesmo espaccedilo objetivo Assim compreendendo a

nossa percepccedilatildeo do mundo como anterior a qualquer visada de consciecircncia e

objetivaccedilatildeo da Natureza de que modo buscar sua fundamentaccedilatildeo em

relaccedilotildees objetivas distantes da proacutepria experiecircncia O estabelecimento da

proporcionalidade inversa entre a distacircncia aparente e o tamanho aparente

pela Renascenccedila apresenta-se como uma perspectiva artificial que exagera

as diferenccedilas de tamanho entre os objetos proacuteximos e distantes Por outro

lado tambeacutem reduz os aspectos expressivos e emocionais que a perspectiva

natural vivida pode nos permitir Na perspectiva vivida concluiacutemos que

tanto o vertical quanto o horizontal o proacuteximo como o longiacutenquo satildeo

dimensotildees abstratas que se referem a um uacutenico ser que se encontra em

situaccedilatildeo visto que ldquoa profundidade assim compreendida eacute antes a

experiecircncia da reversibilidade das dimensotildees de uma lsquolocalidadersquo global

122

onde tudo eacute ao mesmo tempo da qual a altura largura e distacircncia satildeo

abstraiacutedas ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 54) Por conseguinte natildeo se

trata de uma visatildeo absoluta de uma Wesenschau83 promovida por um

sujeito transcendental nem muito menos por um Kosmotheacuteoros por um

observador universal A relaccedilatildeo natildeo se daacute mais por cima a partir de um ver

nobre e puro mas de um olhar encarnado que se aproxima das coisas com

uma postura interrogativa Deste modo em contrapartida ao sujeito

universal e constituinte encontramos uma subjetividade encarnada

mergulhada no mundo e detentora de um certo estilo Merleau-Ponty sente

pois a necessidade de uma mudanccedila de enfoque tal como sua filosofia

tentaraacute promover a passagem de um Uninteressirter Zuschauer de um

espectador desinterassado para o vidente para um sujeito encarnado

Assim ocorre o abandono de uma luminosidade ofuscante aprisionada pelo

sujeito e pelas essecircncias para o direcionamento ao lusco-fusco no qual as

palavras e os corpos podem vir agrave luz

2243 O enigma do olhar e os impasses da representaccedilatildeo

Para Merleau-Ponty a vida representativa da consciecircncia natildeo eacute

primeira nem uacutenica natildeo pode fundar nem definir o que seja a consciecircncia e

o mundo O subjetivismo inerente agrave reflexatildeo filosoacutefica faz com que as coisas

exteriores se convertam em realidades cada vez menos reais na medida em

que natildeo passariam de representaccedilotildees e ideias de uma consciecircncia

constituinte O ldquopensamento de sobrevocircordquo na filosofia converte o ldquomundordquo em

representaccedilatildeo do mundo presente na mente do sujeito cognoscente e o ldquoverrdquo

num pensamento de ver Eacute assim que desviando a visatildeo fora de si mesma e

ignorando a proacutepria experiecircncia Descartes recusa o aprofundamento

83 ldquoSeria tempo de rejeitar os mitos da indutividade e da Wensenshau transmitidos como pontos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo No entanto estaacute claro que nem mesmo Husserl obteve uma uacutenica Wesenschau que natildeo tenha em seguida retomado e retrabalhado natildeo para desmenti-la mas para obrigaacute-la a dizer o que ela de iniacutecio natildeo dissera inteiramente de sorte que seria ingecircnuo procurar a solidez num ceacuteu de ideias ou num fundo de sentido ela natildeo estaacute nem acima nem abaixo das aparecircncias mas na sua juntura sendo o elo que liga secretamente uma experiecircncia agraves suas variantes Estaacute claro tambeacutem que a indutividade pura eacute um mitordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 114)

123

daquilo que constitui o enigma o misteacuterio Obrigado a ldquoclarificar a visatildeordquo a

dispersa para tentar com uma estrateacutegia artificial explicar ldquocomo ela se

realizardquo Em uma palavra renuncia a aprofundar o que constitui o enigma

Natildeo estou seguro de que ali exista um cinzeiro ou um cachimbo mas estou seguro de que penso ver um cinzeiro ou um cachimbo Seria tatildeo faacutecil quanto se acredita dissociar essas duas afirmaccedilotildees e manter fora de qualquer juiacutezo concernente agrave coisa vista a evidecircncia de meu ldquopensamento de verrdquo Ao contraacuterio isso eacute impossiacutevel A percepccedilatildeo eacute justamente este gecircnero em que natildeo se poderia tratar de colocar agrave parte o proacuteprio ato e o termo sobre o qual ele versa A percepccedilatildeo e o percebido tecircm necessariamente a mesma modalidade existencial jaacute que natildeo se poderia separar da percepccedilatildeo a consciecircncia que ela tem ou antes que ela eacute de atingir a coisa mesma (MERLEAU-PONTY 1999 p 500)

Ao contraacuterio de uma operaccedilatildeo do pensamento de uma decisatildeo

do espiacuterito guiado por representaccedilotildees o olhar seria para Merleau-Ponty um

aproximar-se do mundo e o movimento ldquoa sequecircncia natural e a maturaccedilatildeo

de uma visatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 20) Natildeo teria sentido como

pretendia o empirismo a ideia de um duplo enfraquecido nem muito menos

como o intelectualismo aspirava uma ideia perfeita O que nos ensina a

corporeidade o poder vidente do corpo caracteriza-se por ser uma

subjetividade que vecirc tanto a si quanto os outros seres por ldquoconfusatildeo

narcisismo inerecircncia daquele que vecirc em relaccedilatildeo aquilo que vecirc daquele que

toca em relaccedilatildeo agravequilo que toca do que sente ao que eacute sentidordquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 21) Como acontece quando olho um quadro o que vejo natildeo

se encontra simplesmente em uma parede ou em meu imaginaacuterio pois ldquoo

meu olhar passeia nele como nos nimbos do Ser e eu vejo segundo ele ou

com ele mais do que vejordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 23) Eacute neste

sentido que para Merleau-Ponty

O imaginaacuterio estaacute muito mais proacuteximo e muito mais distante do atual mais proacuteximo pois ele eacute o diagrama da sua vida no meu corpo a sua polpa ou o seu reverso carnal expostos aos olhares pela primeira vez e que neste sentido como o diz energicamente Giacometti ldquoo que me interessa em todas as pinturas eacute a semelhanccedila o que me faz descobrir um pouco o mundo exteriorrdquo Muito mais distante pois o quadro soacute eacute um anaacutelogo segundo o corpo ele natildeo oferece ao espiacuterito a ocasiatildeo de repensar as relaccedilotildees constitutivas das coisas mas ao olhar para que ele os despose os traccedilos da visatildeo do interior agrave visatildeo o que a reveste interiormente a textura imaginaacuteria do real (MERLEAU-PONTY 1975b p 24)

124

A partir destas conclusotildees Merleau-Ponty nos fala de uma

interioridade que natildeo se reduz agrave imanecircncia do sujeito pensante e que eacute

refrataacuteria a uma explicaccedilatildeo baseada em fenocircmenos fiacutesico-fisioloacutegicos Deste

modo seraacute o que considera ser o ldquoimpensado de Husserlrdquo ldquo[] marginalia de

algumas paacuteginas antigasrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 242) que o filoacutesofo

iraacute invocar Eacute assim que a partir de Le Philosophe et son Ombre Merleau-

Ponty nos apresenta a ldquocarnerdquo como uma ldquodimensatildeordquo na qual nem o espiacuterito

nem a Natureza seriam fundantes mas estando abaixo deles seria capaz de

constituiacute-los Aleacutem disto a nosso ver a noccedilatildeo de ldquocarnerdquo seraacute um dos

uacuteltimos recursos de Merleau-Ponty contra os desdobramentos da ciecircncia

claacutessica e do mundo cartesiano Ora o que Merleau-Ponty entende por

carne

A carne natildeo eacute mateacuteria natildeo eacute espiacuterito natildeo eacute substacircncia Seria

preciso para designaacute-la o velho termo ldquoelementordquo no sentido em que era empregado para se falar da aacutegua do ar da terra e do fogo

isto eacute no sentido de uma coisa geral meio caminho entre o

indiviacuteduo espaacutecio-temporal e a ideia a espeacutecie de princiacutepio

encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua Neste sentido a carne eacute um elemento do

ser () Pois se haacute carne isto eacute se a face escondida do cubo irradia

em algum lugar tatildeo bem como a que tenho sob os olhos e coexiste com ela e se eu que vejo o cubo tambeacutem participo do visiacutevel sou

visiacutevel de alhures se ele e eu juntos estamos presos num mesmo ldquoelementordquo ndash deve-se dizer do vidente ou do visiacutevel ndash essa coesatildeo

essa visibilidade de princiacutepio prevalece sobre toda discordacircncia momentacircnea (MERLEAU-PONTY 1992 p 136)

Por conseguinte encontrando-se na base de um campo

fenomenoloacutegico a noccedilatildeo de carne eacute o ponto de partida para um ldquocampo

transcendentalrdquo mediante o qual poderiacuteamos chegar ao mundo vivido um

criteacuterio pelo qual o ser mesmo se manifesta Em outras palavras ela

possibilita-nos dar uma fisionomia concreta agrave ldquocoisa mesmardquo uma inerecircncia

histoacuterica agrave subjetividade e um estado nascente agrave unidade vivente entre noacutes

mesmos e o mundo Deste modo natildeo sendo simplesmente um pensamento

a ldquocarnerdquo tambeacutem natildeo eacute mateacuteria nem tampouco substacircncia mas o

desdobrar-se do visiacutevel em um corpo vidente Assim sendo uma textura

uma presenccedila entrelaccedilada de corpo e coisa em um mesmo tecido

125

intencional ela possui por principal estrutura a sua reversibilidade Esta

estrutura ao contraacuterio de uma ldquodialeacutetica embalsamadardquo natildeo estaacute sujeita agrave

siacutentese pois seu logoj [loacutegos]84 eacute o proacuteprio mundo da experiecircncia comum eacute

a adesatildeo total ao Ser e o ponto de partida de toda possiacutevel reflexatildeo Como

diraacute Le Visible et LrsquoInvisible

Basta-nos apenas constatar que quem vecirc natildeo pode possuir o visiacutevel a natildeo ser que seja por ele possuiacutedo que seja dele que por princiacutepio conforme o que prescreve a articulaccedilatildeo do olhar e das coisas seja um dos visiacuteveis capaz graccedilas a uma reviravolta singular de vecirc-los ele que eacute uno Compreende-se entatildeo por que ao mesmo tempo vemos as proacuteprias coisas no lugar em que estatildeo segundo o ser delas que eacute bem mais do que o ser-percebido e estamos afastados delas por toda a espessura do olhar e do corpo eacute que essa distacircncia natildeo eacute o contraacuterio dessa proximidade mas estaacute profundamente de acordo com ela eacute sinocircnima dela Eacute que a espessura da carne entre o vidente e a coisa eacute constitutiva de sua visibilidade para ela como de sua corporeidade para ele natildeo eacute um obstaacuteculo entre ambos mas o meio de se comunicarem (MERLEAU-PONTY 1992 p 131-2)

Como notamos haacute segundo Merleau-Ponty a carne do corpo e a

carne do mundo Observando a reflexibilidade do nosso corpo o filoacutesofo

descobre que ele sempre apresentou aquilo que caracteriza a consciecircncia

Poreacutem observando tambeacutem a sua visibilidade percebe que ele conteacutem em si

o que sempre foi particularidade do objeto Portanto o corpo eacute o vidente que

se vecirc o tocado que se toca um sentido que se sente Corpo e mundo

transformam-se em campos de presenccedila onde emergem todas as relaccedilotildees da

vida perceptiva e do mundo sensiacutevel Contudo mais que o estabelecimento

de uma relatividade absoluta de uma indefiniccedilatildeo permanente no interior do

corpo proacuteprio haacute definitivamente uma unidade e uma reversibilidade entre

ldquosujeitordquo e ldquoobjetordquo conforme ilustra-nos como jaacute ilustramos no primeiro

capiacutetulo o exemplo jaacute claacutessico das matildeos que se tocam

84 Segundo Merleau-Ponty em nossa relaccedilatildeo com o mundo encontramos a presenccedila de um Loacutegos do mundo esteacutetico ou seja do mundo percebido que expressa uma unidade indivisa do corpo e das coisas uma unidade que natildeo permite as rupturas proacuteprias da reflexatildeo entre sujeitoobjeto Esse loacutegos do mundo esteacutetico torna possiacutevel a intersubjetividade como intercoporeidade fazendo com que atraveacutes da manifestaccedilatildeo corporal na linguagem surja o Logos cultural ndash o mundo humano da cultura e da histoacuteria

126

Quando minha matildeo direita toca a esquerda sinto-a como uma ldquocoisa fiacutesicardquo mas no mesmo instante se eu quiser um

acontecimento extraordinaacuterio se produz eis que minha matildeo esquerda tambeacutem se potildee a sentir a matildeo direita es wird Leib es empfindet A coisa fiacutesica se anima ou mais exatamente permanece como era o acontecimento natildeo a enriquece e entretanto uma

potecircncia exploradora vem pousar sobre ela ou habitaacute-la Assim porque eu me toco tocando meu corpo realiza ldquouma espeacutecie de

reflexatildeordquo Nele e por ele natildeo haacute somente um relacionamento em sentido uacutenico daquele que sente com aquilo que ele sente haacute uma

reviravolta na relaccedilatildeo a matildeo tocada torna-se tocante obrigando-me a dizer que o tato estaacute espalhado pelo corpo que o corpo eacute ldquocoisa

sentienterdquo ldquosujeito-objetordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 247)

Neste contexto a ldquocarnerdquo significa entrelaccedilamento e

reversibilidade coincidindo com a ideia de abertura e pertenccedila a um mesmo

mundo A sua existecircncia implica uma superaccedilatildeo das distacircncias entre o eu e

o outro entre o interno e o externo Nesta perspectiva consolida-se uma

relaccedilatildeo sem fronteiras entre meu corpo e as coisas semelhante a uma

espeacutecie de desdobramento de ambas as instacircncias e ao inverso e reverso de

uma folha Para Merleau-Ponty natildeo haacute limites fixos entre o orgacircnico e o

inorgacircnico entre o psiacutequico e o fiacutesico mas uma imbricaccedilatildeo tal como a

existente entre significante e significado aderecircncia e reversibilidade de um a

outro Assim sendo as coisas visiacuteveis satildeo dobras secretas do nosso corpo e

haacute uma mescla de pensamento e mateacuteria pois

Ao falarmos de carne do visiacutevel natildeo pretendemos fazer antropologia descrever um mundo recoberto por todas as nossas projeccedilotildees salvo que possa estar sob a maacutescara humana Queremos dizer ao contraacuterio que o ser carnal como ser das profundezas em vaacuterias camadas ou de vaacuterias faces ser de latecircncia e apresentaccedilatildeo de certa ausecircncia eacute um protoacutetipo do Ser de que nosso corpo o sensiacutevel sentiente eacute uma variante extraordinaacuteria cujo paradoxo constitutivo poreacutem jaacute estaacute em todo visiacutevel [] (MERLEAU-PONTY 1992 p 133)

A concepccedilatildeo merleau-pontiana de carne apresenta-nos uma

realidade submetida a uma espeacutecie de entrelaccedilamento entre o visiacutevel e o

invisiacutevel natildeo sendo contraditoacuteria a afirmaccedilatildeo de que o visiacutevel eacute invisiacutevel de

que o visiacutevel sempre se daacute sobre um fundo invisiacutevel Deste modo invisiacutevel eacute o

que sendo relativo ao visiacutevel natildeo poderia ser visto como coisa mas talvez

como condiccedilatildeo de possibilidade de toda presenccedila O sentido eacute invisiacutevel mas

o invisiacutevel natildeo eacute o oposto natildeo estaacute numa relaccedilatildeo de contradiccedilatildeo com o

127

visiacutevel pois constitui com o visiacutevel uma textura O que eacute visiacutevel para mim

pode agraves vezes ser invisiacutevel para outro Contudo natildeo devemos admitir que o

invisiacutevel seja outro visiacutevel possiacutevel ou algo que seja simplesmente visiacutevel para

outro pois o invisiacutevel estaacute aleacutem sem ser objeto

Trata-se pois de superar as dicotomias mediante o

estabelecimento de uma ldquofeacute perceptivardquo que nos situe aleacutem das condiccedilotildees

fiacutesicas e filosoacuteficas Com isto impede-se a reduccedilatildeo da realidade concreta a

uma relaccedilatildeo orgacircnica do mundo com as ideias claras e distintas do

pensamento Esta ldquofeacute perceptivardquo eacute uma experiecircncia original sem

pressupostos Ela eacute adesatildeo agrave experiecircncia vivida ao que eacute num sentido

primordial Natildeo se trata meramente de uma relaccedilatildeo entre ego e mundus

mas de uma inserccedilatildeo no mundo Ao enunciarmos que o mundo eacute o conjunto

das coisas que vemos estamos proclamando esta ldquofeacute perceptivardquo que nos

mostra a existecircncia incontestaacutevel de algo que nos escapa que se daacute

portanto como uma figura sobre um fundo inesgotaacutevel

Neste sentido quando Merleau-Ponty nos diz que a percepccedilatildeo eacute

inacabada que todo visiacutevel traz consigo um invisiacutevel que a consciecircncia tem

seu ponto cego que ver eacute sempre mais do que um ver isto implica que eacute

inerente agrave visibilidade uma certa natildeo visibilidade O visiacutevel enquanto visiacutevel eacute

presenccedila e como tal se oferece com caraacuteter primordial O invisiacutevel natildeo eacute

simplesmente o que se encontra oculto ausente em estado de silecircncio mas

sobretudo uma possibilidade verdadeira na medida em que se vincula a

uma visibilidade Se todo visiacutevel remete-nos a um invisiacutevel isto indica que a

percepccedilatildeo natildeo pode ser concebida em termos pontuais senatildeo que possui o

caraacuteter de uma funccedilatildeo privilegiada a partir da qual eacute possiacutevel tentar

compreender os fenocircmenos ou seja a presenccedila originaacuteria do mundo Em

uma de suas Notes du Travail datada de 1960 afirma que

eacute atraveacutes da carne do mundo que se pode enfim compreender o proacuteprio corpo ndash A carne do mundo eacute Ser-visto ie Ser que eacute eminentemente percipi e eacute atraveacutes dela que se pode compreender o percipere o percebido que se chama meu corpo aplicando-se ao resto do percebido ie encarando-se a si proacutepria como um percebido para si e portanto como percebedor tudo isso soacute eacute afinal possiacutevel e soacute quer dizer alguma coisa porque haacute o Ser natildeo o Ser em si idecircntico a si na noite mas o Ser que conteacutem tambeacutem sua negaccedilatildeo o seu percipi () (MERLEAU-PONTY 1992 p 227)

128

Por fim conforme nos diz Merleau-Ponty ldquoa carne (a do mundo

ou a minha) natildeo eacute contingecircncia caos mas textura que regressa a si e

conveacutem a si mesmardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 142) Assim o que ele

denomina carne ldquoessa massa interiormente trabalhada natildeo tem portanto

nome em filosofia alguma Meio formador do objeto e do sujeito natildeo eacute o

aacutetomo de ser o em si duro que reside num lugar e num momento uacutenicordquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 142) Eacute preciso pensaacute-la ldquonatildeo a partir das

substacircncias corpo e espiacuterito pois seria entatildeo a uniatildeo dos contraditoacuterios

mas diziacuteamos como elemento emblema concreto de uma reversibilidade do

vidente e do visiacutevel do tacto de uma reversibilidade sempre iminente e

nunca realizada de fatordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 143) Diante disto

podemos compreender o direcionamento de Merleau-Ponty a uma ontologia

indireta a um Ser Bruto e Selvagem a um Loacutegos do mundo esteacutetico Natildeo

significa um retorno agrave metafiacutesica mas a descoberta de um ldquoser de abismordquo

que natildeo se permite aprisionar em meros conceitos Enfim eacute a indicaccedilatildeo de

que ldquoeste mundo barroco natildeo eacute uma concessatildeo do espiacuterito agrave Natureza pois

se em toda parte o sentido estaacute figurado eacute sempre de sentido que se tratardquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 260) Logo

essa renascenccedila do mundo eacute tambeacutem renascenccedila do espiacuterito redescoberta do espiacuterito bruto que natildeo estaacute aprisionado por nenhuma das culturas e ao qual se pede que crie novamente a cultura O irrelativo doravante natildeo eacute a natureza em si nem o sistema das apreensotildees da consciecircncia absoluta nem muito menos o homem mas essa ldquoteleologiardquo de que fala Husserl ndash que se escreve e se pensa entre aspas ndash juntura e membrana do Ser que se cumpre atraveacutes do homem (MERLEAU-PONTY 1975b p 260)

Neste momento encontramos a uacuteltima tentativa de

desconstruccedilatildeo do que seria uma consciecircncia constituinte e seus domiacutenios

Poreacutem em contrapartida este estatuto natildeo cabe ao mundo ou agraves coisas A

experiecircncia sensiacutevel eacute entendida como anterior agrave clivagem sujeito-objeto ou

consciecircncia-mundo Ela natildeo eacute o atributo nem de um sujeito nem de um

objeto sem ser contudo siacutentese entre ambos ou ateacute mesmo oriunda de uma

entidade fundadora que as precederia O corpo natildeo eacute sujeito mas nem por

isso eacute um objeto diluiacutedo no mundo O mundo natildeo eacute objeto mas nem por

129

isso transforma-se no constituinte de nossa experiecircncia sensiacutevel Muito pelo

contraacuterio mundo e corpo satildeo simultaneamente sujeito e objeto sem deixa

de ser entretanto mundo e corpo Deste modo como entender o projeto

cartesiano de expatriar o mundo sensiacutevel O que levaria Descartes a romper

nossa pertenccedila ao mundo e transformaacute-la em um ldquopensamento de

sobrevocircordquo Para Merleau-Ponty a ldquoespiritualizaccedilatildeo cartesianardquo que se faz

presente por exemplo na identificaccedilatildeo de espaccedilo e espiacuterito parte na

verdade de um ldquopostulado ingecircnuordquo Eacute o que leva a crer que a distacircncia natildeo

pertenceria aos proacuteprios objetos mas seria antes a ldquopresenccedila imediata do

espiacuteritordquo Esta ideia para Merleau-Ponty teria sido sugerida pelo proacuteprio

mundo pois a sua ldquoaparente evidecircnciardquo funda-se no proacuteprio deslocamento

do olhar em sua capacidade de se ldquoreportarrdquo de si mesmo ao que o

condiciona Em outros termos nasceria da ldquoconvicccedilatildeo maciccedila tirada da

experiecircncia exterior onde tenho com efeito a seguranccedila de que as coisas

sob meus olhos permanecem as mesmas enquanto delas me aproximo para

inspecionaacute-las melhor []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 45) No entanto o

que permanece esquecido eacute que isso se daacute ldquo[] porque o funcionamento de

meu corpo como possibilidade de mudar de acircngulo de visatildeo ldquoaparelho de

verrdquo ou ciecircncia sedimentada do ldquoacircngulo de visatildeordquo me assegura que me

aproximo da proacutepria coisa que haacute pouco eu via de longerdquo (MERLEAU-PONTY

1992 p 46) Por conseguinte

[] Tendo pois aprendido pela experiecircncia perceptiva o que eacute ldquover bemrdquo a coisa e o que eacute preciso e possiacutevel para o conseguirmos dela nos aproximarmos sendo os novos dados assim adquiridos determinaccedilotildees da proacutepria coisa transportamos para o interior essa certeza recorremos agrave ficccedilatildeo de um ldquohomenzinho dentro do homemrdquo e assim chegamos a pensar que refletir sobre a percepccedilatildeo eacute permanecendo a coisa percebida e a percepccedilatildeo o que eram desvendar o verdadeiro sujeito que as habita e que sempre as habitou Na realidade eu deveria dizer que havia uma coisa percebida e uma abertura para essa coisa que a reflexatildeo neutralizou transformou em percepccedilatildeo-reflexiva e em coisa-percebida-numa-percepccedilatildeo-reflexiva e que o funcionamento refletido como o do corpo explorador usa de poderes obscuros para mim transpassa o ciclo de duraccedilatildeo que separa a percepccedilatildeo bruta do exame reflexionante e soacute manteacutem durante esse tempo a permanecircncia do percebido e da percepccedilatildeo sob o olhar do espiacuterito porque minha inspeccedilatildeo mental e minhas atitudes de espiacuterito prolongam o ldquoeu possordquo de minha exploraccedilatildeo sensorial e corporal (MERLEAU-PONTY 1992 p 46)

130

Em contrapartida constituindo-se como uma quase-presenccedila a

imagem do que foi visto deve ter o seu valor recuperado pois natildeo eacute uma

mera coacutepia em nosso bazar privado nem se reduziria ao modo como

Descartes tentara lidar com o problema da similitude no ensejo de romper

com a escolaacutestica85 Todavia para Merleau-Ponty ldquoeacute necessaacuterio tomar agrave letra

o que nos ensina a visatildeo que atraveacutes dela atingimos o Sol as estrelas

estamos ao mesmo tempo em todo lado tatildeo proacuteximos das distantes como

das proacuteximas ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 66) Fazendo uso de uma

linguagem poeacutetica o filoacutesofo nos afirma que o mundo semelhante aos carris

de uma estrada de ferro ldquoeacute segundo a minha perspectiva para ser

independente de mim que eacute para mim a fim de ser sem mim de ser mundordquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 67) Assim ldquoqualquer coisa visual por muito

indiviacuteduo que seja funciona tambeacutem como dimensatildeo porque se oferece

como resultado de uma deiscecircncia do Serrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 67)

Essa realidade indica ao filoacutesofo que ldquoeacute proacuteprio do visiacutevel ter uma dobragem

invisiacutevel em sentido estrito que ele torna presente como uma certa

ausecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 67) uma vez que a imposiccedilatildeo de

que o ldquorealrdquo e o ldquoimaginaacuteriordquo sejam como diraacute Merleau-Ponty duas ldquoordensrdquo

dois ldquopalcosrdquo ou ldquoteatrosrdquo a saber ldquoo do espaccedilo e o dos fantasmasrdquo

ldquomontados em noacutes antes dos atos de discriminaccedilatildeo que apenas intervecircm

nos casos equiacutevocos e onde o que vivemos vem instalar-se por si fora de

todo controle critereoloacutegicordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 47) proveacutem tanto

do ldquo[]simples fato amiuacutede observado que a imaginaccedilatildeo mais verossiacutemil

mais conforme ao contexto da expressatildeo natildeo nos faz avanccedilar um passo na

direccedilatildeo da ldquorealidaderdquo sendo imediatamente posta por noacutes do lado do

85 Vale lembrar que se tratava tambeacutem de se negar a noccedilatildeo de semelhanccedila tal como era entendida pelos renascentistas negando-se a ideia de que o fundamento do conhecimento encontrava-se sobretudo em uma operaccedilatildeo descritiva e interpretativa Como observa Foucault por meio da noccedilatildeo de Semelhanccedila encontramos conceitos como por exemplo empatia e antipatia serem empregados por ciecircncias tais como a medicina a astronomia a teologia nas doenccedilas e nos movimentos dos astros a utilizaccedilatildeo de noccedilotildees tais como a imitaccedilatildeo e a emulaccedilatildeo sendo empregadas para indicar relaccedilotildees entre os seres humanos entre as coisas vivas entre os homens e as coisas Por fim na semelhanccedila encontrava uma espeacutecie de saber e de poder (FOUCAULT 1999)

131

imaginaacuterio []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 47) como tambeacutem de modo

inverso do simples fato de que ldquo[] tal barulho absolutamente inesperado e

imprevisiacutevel eacute de imediato percebido como real por fracas que sejam suas

ligaccedilotildees com o contextordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 48) No entanto

Que algumas vezes os controles se tornem necessaacuterios e terminem em juiacutezos de realidade que retificam a experiecircncia ingecircnua isso natildeo prova que juiacutezos dessa espeacutecie estejam na ordem dessa distinccedilatildeo ou a constituam natildeo nos dispensando por conseguinte de compreendecirc-la por si proacutepria Se o fizermos natildeo seraacute preciso definir o real por sua coerecircncia e o imaginaacuterio por sua incoerecircncia ou suas lacunas o real eacute coerente e provaacutevel por ser real e natildeo o real por ser coerente o imaginaacuterio eacute incoerente ou improvaacutevel porque eacute imaginaacuterio e natildeo imaginaacuterio porque eacute incoerente A menor parcela do percebido o incorpora de imediato ao ldquopercebidordquo o fantasma mais verossiacutemil escorrega na superfiacutecie do mundo eacute esta presenccedila do mundo inteiro num reflexo sua ausecircncia irremediaacutevel nos deliacuterios mais ricos e mais sistemaacuteticos que devemos compreender e essa diferenccedila natildeo eacute do mais ao menos (MERLEAU-PONTY 1992 p 48)

Eacute que nos parece mostrar por exemplo a experiecircncia da pintura

pois mesmo que um cartesiano possa ldquoacreditar que o mundo existente natildeo

eacute visiacutevel que soacute existe a luz do espiacuterito que toda visatildeo se faz em Deusrdquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 65) o pintor de modo contraacuterio ldquonatildeo pode

consentir que a nossa abertura ao mundo seja ilusoacuteria ou indireta que

aquilo que noacutes vemos natildeo seja o mundo mesmo que o espiacuterito soacute tenha algo

a ver com os seus pensamentos ou outro espiacuteritordquo (MERLEAU-PONTY 1992

p 65) Aceitando o mito das janelas da alma ele sabe ldquoque aquilo que eacute sem

lugar esteja adstrito a um corpordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 66) embora

reconheccedila tambeacutem que ldquoseja iniciado por ele em todos os outros e na

naturezardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 66)86 Por isso

86 Eacute neste sentido que a falar da representaccedilatildeo artiacutestica por exemplo Merleau-Ponty nos diz que a filosofia precisa reconhecer que o que eacute celebrado pela pintura natildeo eacute outra coisa senatildeo o fato de ldquo[] que a mesma coisa estaacute ali no coraccedilatildeo do mundo e aqui no coraccedilatildeo da visatildeo a mesma ou se fizer questatildeo uma coisa semelhante mas segundo uma similitude eficaz que eacute analogia gecircnese metamorfose do ser na sua visatildeo (MERLEAU-PONTY 1992 p 65) Em outras palavras ldquoeacute a proacutepria montanha que dali se daacute a ver ao pintor eacute a ela que ele interroga com o olharrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 65) Para Merleau-Ponty pensando no olhar ldquoa visatildeo eacute o encontro como numa encruzilhada de todos os aspectos do Serrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 109) pois eacute ldquoo proacuteprio Ser mundo que vem a manifestar seu proacuteprio sentidordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 109)

132

Eacute preciso compreender o olho como a ldquojanela da almardquo ldquoO olho pelo qual a beleza do universo eacute revelada agrave nossa contemplaccedilatildeo eacute de uma tal excelecircncia que quem se resignasse agrave sua perda privar-se-ia de conhecer todas as obras da natureza com as quais a vida faz permanecer a alma contente na prisatildeo do corpo graccedilas aos olhos que lhe emprestam a infinita variedade da Criaccedilatildeo quem os perde abandona esta alma numa obscura prisatildeo onde cessa toda esperanccedila de rever o sol luz do universordquo O olho realiza o prodiacutegio de abrir agrave alma o que natildeo eacute alma o bem aventurado domiacutenio das coisas e o seu Deus o Sol (MERLEAU-PONTY 1992 p 65)

Por conseguinte pensando nestas consideraccedilotildees no abandono

de uma possiacutevel ldquoexpatriaccedilatildeordquo que ldquorelaccedilatildeordquo encontramos entre o visiacutevel e o

in-visiacutevel Em uma nota de trabalho datada de novembro de 1959 Merleau-

Ponty nos diz que ldquoo sentido eacute invisiacutevel mas o invisiacutevel natildeo eacute contraditoacuterio do

visiacutevel o visiacutevel possui ele proacuteprio uma membrura de invisiacutevel e o in-visiacutevel

eacute a contraparte secreta do visiacutevel natildeo aparece senatildeo nele ()rdquo (MERLEAU-

PONTY 1992 p 200) Deste modo se todo visiacutevel tem uma armaccedilatildeo de

invisiacutevel eacute preciso supor que a visibilidade mesma aponta uma natildeo

visibilidade Segundo o filoacutesofo natildeo haacute mais essecircncias acima de noacutes

direcionadas a um olho espiritual mas uma essecircncia sob noacutes nervura

comum do significante e do significado Por sua vez o sujeito cognoscente

estaacute no meio da Lebenswelt e eacute incapaz de uma visatildeo direta das essecircncias

visto que fatos e essecircncias satildeo puras abstraccedilotildees pois

no que respeita agrave essecircncia como ao fato basta que nos coloquemos no ser de que se trata em vez de olhaacute-lo de fora ou ainda o que vem a ser a mesma coisa cabe recolocaacute-lo no tecido de nossa vida assistir por dentro agrave deiscecircncia anaacuteloga agrave de meu corpo que o abre para si mesmo e nos abre para ele e que tratando-se da essecircncia eacute a do falar e a do pensar Como meu corpo que eacute um dos visiacuteveis vecirc-se tambeacutem a si mesmo e por isso torna-se luz natural abrindo para o visiacutevel seu interior a fim de que venha a ser paisagem minha realizando como se diz a miraculosa promoccedilatildeo do Ser agrave ldquoconsciecircnciardquo ou como dizemos de preferecircncia a segregaccedilatildeo do ldquointeriorrdquo e do ldquoexteriorrdquo ndash do mesmo modo a fala sustentada pelas mil relaccedilotildees ideais da liacutengua e que para a ciecircncia como linguagem constituiacuteda eacute pois certa regiatildeo no universo das significaccedilotildees eacute tambeacutem oacutergatildeo amplificador de todas as demais e por conseguinte co-extensiva ao pensaacutevel (MERLEAU-PONTY 1992 p 115)

Nisto notamos nos uacuteltimos trabalhos de Merleau-Ponty tanto

em sua oposiccedilatildeo aos desdobramentos da ontologia cartesiana como em sua

aproximaccedilatildeo da filosofia leibniziana o seu direcionamento ao que segundo

133

Chauiacute seria uma ldquoharmonia na diferenciaccedilatildeordquo haja vista que por meio dela

o filoacutesofo ldquotrabalha simultaneamente com a individuaccedilatildeo como segregaccedilatildeo

de campos na massa compacta e diaacutefana do sensiacutevel e com a comunicaccedilatildeo

ou o parentesco ontoloacutegicos desses campos isto eacute carne como lsquoconveniecircncia

a si mesmarsquordquo (CHAUIacute 1983 p 248) Esta harmonia da qual fala Merleau-

Ponty diferentemente da proposta cartesiana eacute o que o levaraacute a entender e

isto jaacute em seus primeiros trabalhos ldquo[] a percepccedilatildeo como exploraccedilatildeo

concordante essa feacute perceptiva que nos faz crer com forccedila inabalaacutevel que a

sexta face de um cubo aquela que nunca vimos e jamais veremos natildeo eacute um

olho maleacutefico nem um riso perverso mas serenamente a sexta face de um

cubordquo (CHAUIacute 1983 p 248) Do mesmo modo seria ela que o levaria a

compreender ldquo[] por que a ilusatildeo permite a desilusatildeo menos como

passagem do ldquofalsordquo ao ldquoverdadeirordquo e mais como correccedilatildeo da evidecircnciardquo

(CHAUIacute 1983 p 248) Ora esta ldquoharmoniardquo muito proacutexima da ldquoharmonia

preestabecidardquo de Leibniz seria o que em sua linguagem Merleau-Ponty

denomina quiasma termo que tambeacutem cumpriria a tarefa de indicar a

reflexibilidade e a reversibilidade da carne Eacute o que nos parece dizer o

filoacutesofo em uma nota de trabalho datada de 1 de novembro de 1959

A clivagem natildeo consiste essencialmente em para Si para Outro (sujeito-objeto) eacute mais exatamente a de algueacutem que se dirige ao mundo e que do exterior pareccedila permanecer no seu lsquosonhorsquo Quiasma atraveacutes do qual o que se anuncia a mim como o ser parece aos olhos dos olhos natildeo ser mais do que lsquoestados de consciecircnciarsquo ndash Mas como o quiasma dos olhos esse eacute tambeacutem o que faz com que pertenccedilamos ao mesmo mundo ndash um mundo que natildeo eacute projetivo mas que realiza a sua unidade atraveacutes das incompossibilidades tais como a de meu mundo e do mundo do outro ndash Essa mediaccedilatildeo pela ruiacutena este quiasma fazem com que natildeo haja simplesmente antiacutetese para-Si para-Outro que haja o Ser como contendo tudo isso de iniacutecio como Ser sensiacutevel e em seguida como Ser sem restriccedilatildeo ndash O quiasma em lugar do Para Outro isso quer dizer que natildeo haacute apenas rivalidade eu-outrem mas co-funcionamento Funcionamos como um uacutenico corpo (MERLEAU-PONTY 1992 p 199)

Melhor que a expressatildeo leibniziana de ldquoharmonia

preestabelecidardquo o quiasma parece sugerir ao filoacutesofo uma medida que

melhor expressa esta ligaccedilatildeo existente entre um avesso e um direito como

conjuntos antecipadamente unificados e em vias de diferenciaccedilatildeo Portanto

para Merleau-Ponty este conceito como indica Chauiacute ldquo[] natildeo soacute eacute o

134

equivalante para o caacutelculo dos possiacuteveis do melhor dos mundos87 mas ainda

eacute lsquopregnacircncia dos possiacuteveisrsquo infinito que natildeo eacute positivo nem negativo mas

simultaneidade da conveniecircncia a si mesma e da transcendecircnciardquo (CHAUIacute Da

Realidade sem Misteacuterio ao Misteacuterio do Mundo Espinosa Voltaire Merleau-Ponty p

249) Deste modo ldquosobretudo o quiasma isto eacute a reversibilidade do direito e

do avesso cruzamento do interior e do exterior por dentro natildeo exige um

lsquoespectador que esteja dos dois ladosrsquordquo (CHAUIacute Da Realidade sem Misteacuterio ao

Misteacuterio do Mundo Espinosa Voltaire Merleau-Ponty p 249) Pensando nestas

consideraccedilotildees podemos entender porque apoacutes ter observado a

reversibilidade presente no corpo e a reversibilidade existente no mundo o

filoacutesofo chega agrave conclusatildeo de que a principal questatildeo estaacute na pergunta pelo

ldquoonderdquo do limite existente entre o nosso corpo e o mundo pois ldquocabe-nos

rejeitar os preconceitos seculares que colocam o corpo no mundo e o vidente

no corpo ou inversamente o mundo e o corpo do vidente como numa caixardquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 134) Afinal como perguntaraacute Merleau-Ponty

Onde colocar o limite do corpo e do mundo jaacute que o mundo eacute carne Onde colocar no corpo o vidente jaacute que evidentemente no corpo haacute apenas ldquotrevas repletas de oacutergatildeosrdquo isto eacute ainda o visiacutevel O mundo visto natildeo estaacute ldquoemrdquo meu corpo e meu corpo natildeo estaacute ldquonordquo mundo visiacutevel em uacuteltima instacircncia carne aplicada a outra carne o mundo natildeo a envolve nem eacute por ela envolvido Participaccedilatildeo aparentamento no visiacutevel a visatildeo natildeo o envolve nem eacute nele envolvida definitivamente A peliacutecula superficial do visiacutevel eacute apenas para minha visatildeo e para meu corpo Mas a profundidade sob essa superfiacutecie

87 Neste sentido ldquoem que a percepccedilatildeo altera o alcance da ideia de expressatildeo posta por Leibniz Em primeiro lugar porque a percepccedilatildeo (e aqui a Pheacutenomeacutenologie de la Perception tambeacutem eacute atingida) natildeo eacute relaccedilatildeo expressiva entre esquemas corporais e esquemas espaccedilo-temporais graccedilas a siacutenteses (corporais linguumliacutesticas conscientes) natildeo eacute preparaccedilatildeo ou primeiro momento confuso da apercepccedilatildeo mas trabalho de uma diferenciaccedilatildeo inesgotaacutevel que efetua a experiecircncia do mesmo sem jamais chegar ao idecircntico Em segundo lugar porque natildeo eacute relaccedilatildeo de expressatildeo reciacuteproca entre perspectivas tomadas sobre o mundo das quais o absoluto seria autor Natildeo tanto porque haveria um sujeito infinito no centro do mundo mas sobretudo porque as perspectivas em Leibniz emanam dele como pensamentos de modo que natildeo haacute ontologicamente percepccedilatildeo Por isso a mocircnada natildeo precisa de portas nem janelas Nossa alma diz Merleau-Ponty natildeo tem janelas porque jaacute estaacute inteiramente aberta Eis porque o quiasma eacute a lsquoverdade da harmonia preestabelecida bem mais exata do que elarsquo O corpo natildeo eacute mens momentanea mas guardiatildeo do passado indestrutiacutevel e o espiacuterito como dizia Proust eacute voluacutevel Em terceiro lugar porque a comunicaccedilatildeo corpo-espiacuterito e espiacuterito-espiacuterito natildeo eacute transposiccedilatildeo da Weltilichkeit da natureza como em Leibniz onde as pequenas percepccedilotildees e Deus como geometral vecircm restabelecer do lado do espiacuterito uma continuidade simeacutetrica agrave da Natureza Essa continuidade escreve Merleau-Ponty natildeo existe na Natureza e a fortiori natildeo pode existir na dimensatildeo do espiacuteritordquo (CHAUIacute 1983 p 250-1)

135

conteacutem meu corpo e por conseguinte conteacutem minha visatildeo Meu corpo como coisa visiacutevel estaacute contido no grande espetaacuteculo Mas meu corpo vidente subtende esse corpo visiacutevel e todos os visiacuteveis com ele Haacute reciacuteproca inserccedilatildeo e entrelaccedilamento de um no outro Ou melhor se renunciarmos como eacute preciso ainda uma vez ao pensamento por planos de perspectivas haacute dois ciacuterculos dois turbilhotildees ou duas esferas concecircntricas quando vivo ingenuamente e desde que me interrogue levemente descentrados um em relaccedilatildeo ao outro (MERLEAU-PONTY 1992 p 134)

Assim diferentemente da concepccedilatildeo cartesiana de visatildeo em

Merleau-Ponty o olhar indaga a partir do visto e aleacutem dele elaborando uma

configuraccedilatildeo do mundo em que dimensotildees como tangibilidade e visibilidade

se unem constituem um quiasma um entrelaccedilamento entre o tangiacutevel e o

visiacutevel pois ldquoeacute preciso que nos habituemos a pensar que todo visiacutevel eacute

moldado no sensiacutevel todo ser taacutectil estaacute votado de alguma maneira agrave

visibilidade havendo assim imbricaccedilatildeo e cruzamento natildeo apenas entre o

que eacute tocado e quem toca mas tambeacutem entre o tangiacutevel e o visiacutevel ()rdquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p131) Deste modo ldquohaacute visatildeo tato quando certo

visiacutevel certo tangiacutevel se volta sobre todo o visiacutevel todo o tangiacutevel de que faz

parte ou quando de repente se encontra por ele envolvido ou quando entre

ele e eles e por seu intercacircmbio se forma uma Visibilidade uma

Tangibilidade em sirdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 135) pois natildeo

pertenceriam propriamente ldquonem ao corpo como fato nem ao mundo como

fatordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 135)88

Merleau-Ponty observa portanto uma reversibilidade existente

no corpo a apalpaccedilatildeo das coisas promovida pelo olhar e a visatildeo delas

promovidas pelo tato Da mesma forma no mundo encontramos tambeacutem

uma reversibilidade como a de um vermelho nos reenviando a um mundo

colorido que tambeacutem eacute taacutetil pois ldquose nos voltarmos para o vidente

88 ldquoEacute a essa Visibilidade a essa generalidade do Sensiacutevel em si a esse anonimato inato do Eu-mesmo que haacute pouco chamaacutevamos carne e sabemos que natildeo haacute nome na filosofia tradicional para designaacute-lo A carne natildeo eacute mateacuteria no sentido de corpuacutesculos de ser que se adicionariam ou se continuariam para formar os seres O visiacutevel (as coisas e meu corpo) tambeacutem natildeo eacute natildeo sei que material lsquopsiacutequicorsquo que seria soacute Deus sabe como levado ao ser por coisas que existem como fato e agem sobre meu corpo de fato De modo geral ele natildeo eacute fato nem soma de fatos lsquomateriaisrsquo ou lsquoespirituaisrsquo Natildeo eacute tampouco representaccedilatildeo para um espiacuterito um espiacuterito natildeo poderia ser captado por suas representaccedilotildees recusaria essa inserccedilatildeo no visiacutevel que eacute essencial para o videnterdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 135)

136

constataremos que este natildeo eacute analogia ou vaga comparaccedilatildeo devendo ser

aceito ao peacute da letra O olhar diziacuteamos envolve apalpa esposa as coisas

visiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 130) Assim ldquocomo se estivesse com

elas numa relaccedilatildeo de harmonia preestabelecida como se as soubesse antes

de sabecirc-las move-se agrave sua maneira em seu estilo sincopado e imperiosordquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 130) Contudo ldquoas vistas tomadas natildeo satildeo

quaisquer natildeo olho um caos mas coisas de sorte que natildeo se pode dizer

enfim se eacute ele ou se satildeo elas quem comandardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p

130) Notamos deste modo que entre o vidente-visiacutevel e o visiacutevel-invisiacutevel

natildeo existem delimitaccedilotildees natildeo existem mais fronteiras Pensando assim

como se daria a visatildeo do outro Conforme Merleau-Ponty

uma vez que vemos outros videntes natildeo temos apenas diante de noacutes o olhar sem pupila espelho sem estanho das coisas este paacutelido reflexo fantasma de noacutes mesmos que elas evocam ao designar um lugar entre elas de onde as vemos doravante somos plenamente visiacuteveis para noacutes mesmos graccedilas a outros olhos Essa lacuna onde se encontram nossos olhos nosso dorso eacute de fato preenchida mas preenchida por um visiacutevel de que natildeo somos titulares por certo para acreditarmos numa visatildeo que natildeo eacute a nossa para a levarmos em conta eacute sempre inevitaacutevel e unicamente ao tesouro da nossa visatildeo que recorremos e portanto tudo quanto a experiecircncia nos pode ensinar jaacute estaacute nela previamente esboccedilado Mas eacute proacuteprio do visiacutevel diziacuteamos ser a superfiacutecie de uma profundidade inesgotaacutevel eacute o que torna possiacutevel sua abertura a outras visotildees aleacutem da minha (MERLEAU-PONTY 1992 p 139)

Para Merleau-Ponty no momento em que outras visotildees aleacutem da

nossa realizam-se ldquoacusam os limites de nossa visatildeo de fato salientam a

ilusatildeo solipsista que acredita que toda superaccedilatildeo eacute auto-superaccedilatildeo Pela

primeira vez o vidente que sou me eacute verdadeiramente visiacutevelrdquo (MERLEAU-

PONTY 1992 p 139) pois ldquooutrem natildeo eacute tanto uma liberdade vista de fora

como destino e fatalidade um sujeito rival de outro sujeito mas um

prisioneiro no circuito que o liga ao mundo como noacutes proacuteprios e assim

tambeacutem no circuito que o liga a noacutesrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 241)

sendo este mundo comum um verdadeiro intermundo Portanto natildeo

podemos separar um i1diov kosmov nosso mundo privado de um koinov

kosmov o mundo comum pois eles se encontram interligados Contudo o

ldquoque aconteceria se eu contasse natildeo somente com minhas visotildees de mim

137

mesmo mas tambeacutem com as que outrem teria de si e de mim Meu corpo

como encenador da minha percepccedilatildeo jaacute destruiu a ilusatildeo de uma

coincidecircncia de minha percepccedilatildeo com as proacuteprias coisasrdquo (MERLEAU-

PONTY 1992 p 20) Assim ldquoentre mim e elas haacute doravante poderes

ocultos toda essa vegetaccedilatildeo de fantasmas possiacuteveis que ele soacute consegue

dominar no ato fraacutegil de olharrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 20)

Antes de ser submetido agraves suas condiccedilotildees de possibilidade e

reconstruiacutedo agrave sua imagem o outro deve apresentar-se como participante de

uma uacutenica Visatildeo da qual ele tambeacutem participa Mesmo natildeo vivendo a vida

dela sob uma certa ausecircncia e longa distacircncia o sujeito que percebe torna-

se tatildeo proacuteximo ldquoassim que se reencontra o ser do sensiacutevel pois o sensiacutevel eacute

precisamente aquilo que sem sair de seu lugar pode assediar mais de um

corpordquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 15) O olhar toca manifesta este enigma

do nosso corpo vidente-visiacutevel que se encontra mergulhado em uma textura

de invisibilidade Quando um dos meus visiacuteveis se faz vidente assisto ao

milagre de uma metamorfose que faz com que ldquodoravante ele deixa de ser

uma das coisas estaacute em circuito com elas ou interpotildee-se entre elas Quando

o olho meu olhar jaacute natildeo se deteacutem jaacute natildeo termina nele como se deteacutem e

termina nas coisasrdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 15) O olhar temporaliza

pre-sentifica tem o poder de da mesma forma que a fala autecircntica em

relaccedilatildeo agrave fala secundaacuteria dar um sentido novo de mudar de sentido com

todas as possibilidades que esta palavra ndash sentido ndash possa expressar

225 A transformaccedilatildeo da luz natural e a releitura do Cogito

Nestas consideraccedilotildees encontramos pois a criacutetica de Merleau-

Ponty especialmente nos uacuteltimos trabalhos ao pensamento cartesiano em

seu modo de lidar com a representaccedilatildeo com a similitude fazendo do mundo

uma mero ldquoespetaacuteculordquo para o sujeito No entanto apesar de tudo isto

mediante seu modo de encarar a histoacuteria da filosofia conforme veremos no

proacuteximo capiacutetulo Merleau-Ponty tambeacutem encontra em Descartes algumas

vias de superaccedilatildeo ou ao menos o reconhecimento dos embaraccedilos para os

quais a intuitus mentis o havia conduzido Eacute neste sentido que para

138

Merleau-Ponty haveria tambeacutem no pensamento cartesiano uma retomada

da ldquoluz naturalrdquo e a transformaccedilatildeo da compreensatildeo que se tinha dela

estando o problema justamente no fato de que talvez volens nolens a

intuitus mentis natildeo deixaria de ser tributaacuteria de uma ldquovisatildeo dos olhosrdquo Por

conseguinte para Merleau-Ponty entre as Meacuteditations e a Regulaelig o que

encontrariacuteamos seria antes um descompasso Conforme diraacute em um de seus

cursos ldquoa foacutermula das Meacuteditations natildeo eacute cogito ergo sum ndash mas eu sou eu

existo ndash o que sou eurdquo pois

A primeira verdade natildeo eacute senatildeo o reverso da duacutevida (texto da Recherche de la veacuteriteacute) ela eacute um estofo fino tecido de negaccedilatildeo eu sou presenccedila a si da negaccedilatildeo mesma e indeclinaacutevel negaccedilatildeo da negaccedilatildeo natildeo como puro e simples restabelecimento de um positivo o positivo eacute envolvido pela duacutevida e para sempre Mas o natildeo que a excluiacutea aparece como uma nova maneira de ser que subentende todos os juiacutezos negativos e atraveacutes deles todas as verdades da simples visatildeo Qual eacute esta maneira de ser eu sou mas qual eacute meu ser Eacute o ser de apariccedilatildeo um ser 1) do aparecer-se 2) do aparecer (MERLEAU-PONTY 1996 p 257-8)

No cartesianismo apesar de toda evidecircncia da intuitus mentis a

verdade passa a ter ldquofios de natildeo-serrdquo a ldquoluz naturalrdquo se purifica e a uacutenica

certeza que se tem eacute de natildeo ter certezas (MERLEAU-PONTY 1996 257-8)

tal como nas Regulaelig acenava Descartes ao falar da duacutevida socraacutetica Logo

na compreensatildeo cartesiana do Cogito como res extensa para Merleau-Ponty

natildeo haveria necessariamente um puro substancialismo uma vez que ldquoa

lsquonatureza pensantersquo que eu apercebo e desenrolo reflexivamente natildeo eacute

ativamente pensante senatildeo porque ela eacute minha porque ela eacute tomada em

estado nascente porque eu sou ou ela eacute em mimrdquo (MERLEAU-PONTY 1996

p 259) Haveria pois um Cogito antes do Cogito uma Cogitatio entendida

como centro de uma abertura a ser preenchida pelo pensamento de algo

dado que se eu duvido eu duvido de alguma coisa Por conseguinte como

iraacute acentuar Merleau-Ponty apresentando sua tese a partir de uma ruptura

com a ldquoordem das razotildeesrdquo ldquohaacute o cogito operante ou eu sou e o cogito reflexivo

ou enunciado cogito vertical que funda o horizontal e que natildeo eacute simplicidade

de uma natureza pura (todo o resto natildeo eacute menos lsquoinseparaacutevelrsquo de mim)rdquo

(MERLEAU-PONTY 1996 p 244) Como diraacute Descartes

139

Vocecirc mal me mostrou a fraca certeza que temos da existecircncia de coisas das quais o conhecimento natildeo nos adveacutem senatildeo pelos sentidos que eu jaacute comecei a duvidar delas e isto foi suficiente para me fazer aparecer ao mesmo tempo minha duacutevida e a certeza desta duacutevida de tal modo que eu posso afirmar que comecei a me conhecer com certeza no momento mesmo em que comecei a duvidar Mas minha duacutevida e minha certeza natildeo se relacionariam com os mesmos objetos Com efeito minha duacutevida se aplicava unicamente agraves coisas que estatildeo fora de mim ao passo que minha certeza diria respeito agrave minha duacutevida e a mim mesmo O que diz Eudoxo eacute portanto verdadeiro que haacute coisas que natildeo podemos aprender senatildeo as vendo (DESCARTES 1996j p 525)89

Logo a conclusatildeo de Merleau-Ponty de que ldquoo ego existo ego

sum eacute um estreitamento de duacutevida e de certeza natildeo eacute pura constataccedilatildeo

positiva reestabelecimento de um ser-objetordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p

245) Daiacute que o sentido da visatildeo tenha mudado passando a ser a visatildeo de

minha duacutevida logo a visatildeo de um invisiacutevel A existecircncia do sujeito natildeo

permanece mais um ldquopedaccedilo de existecircncia comumrdquo ou mesmo um mero

ldquoser-objetordquo sendo em contrapartida ldquo[] a presenccedila a lsquosirsquo de toda visatildeo

enquanto unicamente minha de toda negaccedilatildeo enquanto modo de ser ou de

aparecer tambeacutem enquanto nada negaccedilatildeo da negaccedilatildeo mas que natildeo eacute

como em aacutelgebra resultado positivordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 247)

Ora o que nos indica Merleau-Ponty ao falar neste Cogito operante O

filoacutesofo nos diz em primeiro lugar que na articulaccedilatildeo cartesiana de um

ldquoCogito verticalrdquo o que encontramos eacute o esboccedilo de uma fenomenologia

Sendo assim no que Merleau-Ponty denomina uma ldquomudanccedila de sentido da

luz naturalrdquo o que perde o seu sentido eacute justamente o seu caraacuteter

recortante fragmentador aprisionado pela tatildeo-somente apreensatildeo das

figuras Ora o que podemos ganhar com este outro Cogito Para Merleau-

Ponty o fato de se diferenciar das verdades matemaacuteticas deixando de ser a

89 ldquoVixdum mihi exiguam illam quam habemus de rerum quarum cognitio non nisi sensuum auxilio ad nos pervenit exsistentia certitudinem ostenderas cum de iis dubitare incepit idque simul ad mihi meam dubitationem ejusdemque certitudinem commonstrandum suffecit ita ut possim adfirmare simulac dubitare sum adgressus etiam cum certitudine me cognoscere occepisse Sed non ad eadem objecta mea dubitatio meaque certitudo referebantur Quippe mea dubitatio circa eas tantum versabatur res quaelig extra me exsistebant certitudo vero meam dubitationem meque ipsum spectabat Verum itaque est quos Eudoxus dicit dari quaeligdam quaelig nisi ea videmus discere non possumusrdquo (DESCARTES 1996j p 525)

140

ldquocerteza do que eacute visto como distintordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 266)

ldquoseparaacutevelrdquo ldquoeideacuteticordquo ldquoresiacuteduo invariante do fatordquo passasando a ser antes

[] a certeza da apresentaccedilatildeo da apariccedilatildeo a do testemunho interior do ldquoconhecimento interiorrdquo natildeo teacutetico da natildeo-dissimulaccedilatildeo de mim a mim e de todas as coisas a mim e esta accedilatildeo de mostrar porque ela renuncia a ser imediatamente verdade (distinccedilatildeo) por que ela acolhe tudo (sono sonho sentir imaginar) sem nada recalcar em nome da distinccedilatildeo natildeo eacute mais somente minha natureza como fato contigente mas minha natureza como testemunho uacuteltimo [] apoacutes

o qual natildeo haacute nada (MERLEAU-PONTY 1996 p 267)

Aleacutem disso para Merleau-Ponty ganhamos tambeacutem pelo fato de

que a luz natural fora purificada ldquonatildeo eacute mais somente minha constituiccedilatildeo

psiacutequica tal qual evidecircncia psicoloacutegicardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p267)

Mas o que possibilitou isto Para o filoacutesofo tatildeo-somente graccedilas agrave mediaccedilatildeo

de ldquouma e0poxh [epocheacute] que renuncia agrave distinccedilatildeo imediata do verdadeiro e do

falso e que a tiacutetulo de cogitationes aceita tudordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p

267) Por conseguinte nesta transformaccedilatildeo o que temos eacute uma certa

purificaccedilatildeo da luz natural que ao contraacuterio de fundar um abismo entre o

verdadeiro e o falso torna-se capaz de ldquoesclarecer ao mesmo tempo a

mistura dela mesma e da obscuridaderdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 267)

Certamente podemos notar esta conversatildeo na concepccedilatildeo cartesiana de

Natureza estando na variaccedilatildeo de duas atitudes simetricamente opostas a

razatildeo tambeacutem do que Merleau-Ponty iraacute considerar a sua ldquodiplopiardquo Eacute o que

a seguir tentaremos tratar

23 A gecircnese da Crise nas relaccedilotildees com a Natureza Em suas Notes de Cours Merleau-Ponty fala de uma ldquocrise da

racionalidade nas relaccedilotildees com a Naturezardquo Neste contexto o filoacutesofo faz

referecircncia aos perigos de um ldquoultranaturalismordquo que na verdade oculta um

ldquoultra-artificialismordquo Eacute uma criacutetica ao que seria o ldquocaraacuteter teacutecnico da fiacutesica

modernardquo ldquoa teacutecnica natildeo eacute mais unicamente a aplicaccedilatildeo da ciecircncia mas

condiccedilatildeo da ciecircncia O espiacuterito (artificialista) da teacutecnica jaacute estava presente

intencionalmente desde o iniacutecio da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica ndash universo de

objetos em princiacutepio transparentes para o sujeitordquo (MERLEAU-PONTY 1996

141

p 42) Pelo que notamos Merleau-Ponty se aproxima aqui da Krisis eacute assim

que iraacute compreender a ciecircncia moderna no quadro da etiologia husserliana

nos horizontes de um projeto de matematizaccedilatildeo que nos remete ao mundo

claacutessico Contudo se o ldquoespiacuterito artificialistardquo da ciecircncia jaacute estava presente

em seu comeccedilo como o encontramos agora Teria ele permanecido Para o

filoacutesofo ldquo[] agora [o que encontramos eacute o] envolvimento visiacutevel da ciecircncia

na teacutecnica de onde um novo prometeiacutesmo O universo eacute universo de

constructa O universo todo humano e todo inumanordquo (MERLEAU-PONTY

1996 p 42) Deste modo seraacute no ensejo de uma dominaccedilatildeo da Natureza

mediante uma ldquoreconciliaccedilatildeo do homem com o homemrdquo que justamente

encontraremos este ldquonovo prometeiacutesmordquo

Constituindo-se como um ldquoverdadeiro complexo do pensamento

contemporacircneordquo Merleau-Ponty considera este pensamento duplamente

falso ldquotanto em sua afirmaccedilatildeo da Natureza como em sua negaccedilatildeo da

Naturezardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 43) Daiacute os problemas que o filoacutesofo

vislumbra no paradoxo presente jaacute na gecircnese do saber cientiacutefico moderno

[claacutessico] que se desenrola a partir da ideia de uma ldquoNatureza em sirdquo e de

uma ldquoNatureza construiacuteda na histoacuteria humanardquo Por conseguinte ldquoa

estupidez de querer compreender o acontecimento mesmo da ciecircncia fato

atual como fato da Natureza (em si) no sentido que a ciecircncia daacute a esta

palavrardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 43) Se no mundo claacutessico os

paradoxos desta oposiccedilatildeo natildeo se tornaram problemaacuteticos conforme nos diz

o filoacutesofo eacute justamente por terem sido durante muito tempo mascarados

pela mediaccedilatildeo de uma Razatildeo divina Mas poderia a ciecircncia de hoje fazer uso

deste mesmo subterfuacutegio ou de um subterfuacutegio similar Para Merleau-Ponty

Ao contraacuterio a ciecircncia de hoje natildeo pode pretender a um tal fundamento ela eacute manifestamente humana e entatildeo o ciacuterculo homem-natureza eacute evidente Mas isto que eacute a situaccedilatildeo de crise para nosso pensamento poderia ser ponto de partida de um aprofundamento as energias que saem do quadro do mundo constituiacutedo desvelam a contingecircncia Mas esta tomada de consciecircncia de um Boden de uma sedimentaccedilatildeo poderia ser redescoberta da Natureza (com a condiccedilatildeo de que natildeo se conceba esta Natureza como a descreve a ciecircncia objetivista e como causa universal em si) redescoberta de uma Natureza-para-noacutes como solo de toda a nossa cultura e onde se enraiacuteza em particular nossa atividade criadora que natildeo eacute portanto incondicionada que tem de

142

manter [a] cultura em contato com o ser bruto no confronto com ele Eacute a loacutegica do mundo da teacutecnica que reduz o ser agrave alternativa e agrave antinomia do em si puro objeto e do artefato (MERLEAU-PONTY 1996 p 43-44 O grifo eacute nosso)

Trata-se pois da recusa do que seria na verdade o conceito

cartesiano de Natureza vendo nele a genecircse dos conflitos presentes na

ciecircncia moderna em seu direcionamento a um artificilismo incapaz de um

diaacutelogo com uma concepccedilatildeo da Natureza que natildeo esteja previamente

condenada a um objetivismo absoluto Eacute assim que o filoacutesofo procura

elaborar seus cursos sobre o conceito de Natureza indagando-se sobre os

elementos histoacutericos presentes no pensamento moderno buscando neles

uma relaccedilatildeo com os ldquosintomas de uma nova tomada de consciecircncia da

Naturezardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 43-44) Todavia adverte Merleau-

Ponty sua finalidade natildeo consiste em elaborar a ldquohistoacuteria de um conceitordquo

daiacute a sua opccedilatildeo em ldquo[] tomar como referecircncia uma concepccedilatildeo lsquocartesianarsquo

que com razatildeo ou sem ela ainda hoje domina a nossas ideias sobre a

Natureza mas com a condiccedilatildeo de trazer agrave superfiacutecie ao discuti-la os temas

preacute-cartesianos que natildeo deixam de ressurgir depois de Descartesrdquo

(MERLEAU-PONTY 1968 p 97) Daiacute a justificativa do filoacutesofo

Ao dar por tema uacutenico aos cursos deste ano ndash e ateacute aos do proacuteximo ano ndash o conceito de Natureza pareceria que insistimos em um tema inatual Mas o abandono em que caiu a filosofia da Natureza abarca certa concepccedilatildeo do espiacuterito da histoacuteria e do homem Tal eacute a permissatildeo que nos concedemos de fazecirc-los aparecer como pura negatividade De modo inverso ao retornar agrave filosofia da Natureza natildeo nos desviamos senatildeo em aparecircncia destes problemas preponderantes pois tratamos de preparar uma soluccedilatildeo que natildeo seja imaterialista Deixando agrave parte todo naturalismo uma ontologia que omite a Natureza se encerra no incorporal e daacute justamente por esta razatildeo uma imagem fantaacutestica do homem do espiacuterito e da histoacuteria Se insistimos no problema da Natureza eacute com a dupla convicccedilatildeo de que ela natildeo eacute por si soacute uma soluccedilatildeo do problema ontoloacutegico e de que muito menos eacute um elemento subalterno ou secundaacuterio de tal soluccedilatildeo (MERLEAU-PONTY 1968 p 91-92)

Esta justificativa a nosso ver se harmoniza com o que o filoacutesofo

procura refletir em suas Notes du Travail quando tenta responder agrave

pergunta que ele mesmo se formulara ldquoPor que a Naturezardquo Merleau-Ponty

reconhece que a tentativa de tratar todos os ldquogecircneros do serrdquo como variantes

143

do ldquoser naturalrdquo estaacute fadada ao descreacutedito e com a devida razatildeo

principalmente se levarmos em conta existir tatildeo-somente uma experiecircncia

humana e isto de tal modo a fazer com que se torne absurdo o ensejo de

empreender uma transcriccedilatildeo dessa experiecircncia que se expressa por

siacutembolos em realidades ldquonaturaisrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)

Contudo o problema ainda persistiria se nos esquececircssemos de que ldquoestes

siacutembolos natildeo existem sem relaccedilotildees com os que fazem o tecido de nossa

histoacuteria A lsquonaturezarsquo natildeo eacute pois somente o artefato de uma consciecircncia

cientiacutefica [] ela eacute um mito no qual as subjetividades histoacutericas projetam e

ocultam a cada momento os seus conflitosrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25]

vol VI) Por conseguinte ldquofalar dela como de um objeto de reflexatildeo separaacutevel

do homem ou da histoacuteria seria de fato subordinar de antematildeo o ser do

homem a um princiacutepio exterior e desconhecido seria se tornar cego agrave

negaccedilatildeo da natureza que o faz homem e capaz de conceber ou de sonhar

uma naturezardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)

Diante destas consideraccedilotildees encontramos os motivos pelos

quais se torna necessaacuterio fazer uma oposiccedilatildeo a uma compreensatildeo da

Natureza que se decirc como omnitudo realitatis No entanto acentua Merleau-

Ponty natildeo pode haver nisto uma justificativa e um ultimato para se ldquoremeter

o conceito de natureza a um capiacutetulo de antropologiardquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [25] vol VI) capaz de natildeo soacute deixar escapar o problema em questatildeo

mas a proacutepria filosofia visto que tal humanismo preso em uma visatildeo moral

ao impedir o proacuteprio exerciacutecio da interrogaccedilatildeo acabaria por dissolver ldquocom

os falsos problemas os verdadeirosrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)

Esta eacute a razatildeo pela qual o humanismo natildeo se permite perguntar sobre a

Natureza a recomendaccedilatildeo para que natildeo a ldquotomemos ao peacute da letrardquo dado

que ldquo[] cada propriedade que ela avanccedila deve ser tida por uma operaccedilatildeo do

sujeito traduzida diante do tribunal da filosofia ou da filosofia da histoacuteria e

finalmente apreciada sob este vieacutesrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)

Encontrariacuteamos aqui pois a negaccedilatildeo da relaccedilatildeo que se estabelece entre

Natureza e Histoacuteria Pelo contraacuterio natildeo se trata da negaccedilatildeo de que haja

entre elas e o conceito de homem uma espeacutecie de ldquonovelordquo o que se recusa eacute

a ideia de que a Natureza seja tratada apenas como um ldquodetalhe da histoacuteria

144

humanardquo Diante disto o esforccedilo de Merleau-Ponty passa a ser o de tentar

restitui-la encontrar em meio agraves ideologias nas quais ela se vecirc inserida o

que seriam os ldquotraccedilos verdadeiros do lsquoidolo veladorsquordquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [25] vol VI) tendo-se em conta que ldquotoda posiccedilatildeo de uma natureza

implica uma subjetividade e mesmo uma intersubjetividade histoacutericardquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI) Natildeo estaria nisto a recusa do

filoacutesofo mas o que se pretende mostrar eacute que tal afirmaccedilatildeo natildeo faz com que

ldquoo sentido do ser natural seja esgotado pelas transcriccedilotildees simboacutelicas com

que natildeo haja nada a pensar antes delasrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25]

vol VI) mas em contrapartida ldquo[] mostra somente que o ser da natureza

estaacute por ser buscado aqueacutem de seu ser postordquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[25] vol VI) Por conseguinte

Se eacute permitido a uma filosofia reflexiva tratar toda filosofia da natureza como uma filosofia do espiacuterito ou do homem disfarccedilada e de julgaacute-la em nome das condiccedilotildees de todo objeto possiacutevel para um espiacuterito ou para um homem esta suspeita generalizada que eacute a reflexatildeo natildeo poderia se exceptuar da busca eacute preciso que se volte contra ela mesma e que depois de ter mensurado o que se arrisca perder ao comeccedilar pela natureza se faccedila a conta do que se perdeu seguramente ao comeccedilar pela subjetividade o ser primordial contra o qual toda reflexatildeo se institui e sem o qual natildeo haacute mais filosofia na ausecircncia de um fora ao qual ela deve ser medida (MERLEAU-PONTY NBNF [25-26] (3) )

Para Merleau-Ponty ao se perguntar sobre o porquecirc de um

direcionamento ao conceito de Natureza o problema natildeo estaacute em tentar

compreendecirc-la mediante a subjetividade ou mesmo a partir do problema da

liberdade mas em mostrar que tomando estas questotildees especialmente

como ponto de partida a consequecircncia seraacute a estagnaccedilatildeo e o recalque do

que realmente se espera elucidar visto que alimentariam ainda o equiacutevoco

em se entender todo ser na condiccedilatildeo de ser-objeto Daiacute a legitimidade em se

crer que um comeccedilo pela Natureza natildeo seja uma restriccedilatildeo Ao fazer isso o

que espera Merleau-Ponty eacute que

[] se leve em consideraccedilatildeo natildeo somente o ser que eacute objeto de nosso olhar e de nossa escolha mas o que nos precede circunda-nos sustenta-nos que nos traz misturados com os outros homens e eacute acessiacutevel atraveacutes de mais de uma perspectiva que jaacute estaacute ali diante delas precede-as funda-as faz a junccedilatildeo de uma a outra e no interior de cada uma que ldquomanteacutemrdquo por si mesma manteacutem todas as coisas juntas e natildeo se reduz ao que cada um de nos deve ser Isto

145

natildeo quer dizer que se faccedila do ser natural a causa do ser visiacutevel nem da filosofia da natureza a filosofia primeira Na verdade natildeo haacute filosofia primeira em si nem secunda tudo eacute primeiro tudo eacute segundo em filosofia cada tema filosoacutefico eacute um disfarce de todos os outros Justamente se levarmos a seacuterio esta ideia natildeo podemos mais reduzir a filosofia da natureza agrave filosofia da histoacuteria do que a filosofia da histoacuteria agrave filosofia da natureza Eacute preciso somente seguir uma ordem que eacute indicada pelo sentido mesmo de nossa experiecircncia Se a natureza eacute positividade e o homem negaccedilatildeo se eacute preciso dizer ao menos em primeira aproximaccedilatildeo que o ser eacute e que o nada natildeo eacute ou que o nada precisa do ser para vir ao mundo entatildeo haacute mais razotildees de ir do ser ao nada do que de ir do nada ao ser a perspectiva da filosofia natildeo pode ser somente centriacutefuga nem a definiccedilatildeo do ser reduzida a do ser objeto (MERLEAU-PONTY NBNF [27] (6))

O que o filoacutesofo pretende dizer com estas palavras eacute justamente

que natildeo podemos nos esquecer de compreender o homem como um

ldquoacontecimentordquo que natildeo podemos nos olvidar de seu nascimento do que

constitui a vivecircncia de sua passividade e de sua existecircncia Logo o que se

espera de uma ldquoontologia da naturezardquo eacute que nos ensine os ldquomodos de

conexatildeordquo um ldquosentido dos sentidosrdquo que estaacute presente na origem de ldquotoda

histoacuteria humanardquo daiacute que o direcionamento agraves premissas do subjetivismo

ou de uma filosofia da liberdade natildeo seja suficiente Por conseguinte

A natureza natildeo nos interessa pois nem por si mesma nem como princiacutepio universal de objetividade mas como iacutendex do que nas coisas resiste agrave operaccedilatildeo da subjetividade livre e como acesso concreto ao problema ontoloacutegico Se recusaacutessemos todo sentido filosoacutefico agrave ideia de natureza e se refletiacutessemos diretamente sobre o ser correriacuteamos o risco de nos situar de imediato no niacutevel da correlaccedilatildeo sujeito-objeto que eacute elaborada e segunda e de deixar escapar um componente essencial do ser o ser bruto ou selvagem que natildeo foi convertido ainda em objeto de visatildeo ou de escolha (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7))

Tendo em vista estas consideraccedilotildees compreendemos o que

levaraacute Merleau-Ponty a se concentrar no conceito cartesiano de Natureza

principalmente por haver ali a pretensatildeo de reduzir o ser da Natureza tanto

agrave extensatildeo como tambeacutem agrave exterioridade Mas o que justificaria a

centralidade do pensamento cartesiano Em que sentido estaria ele na

gecircnese do naturalismo cientificista Primeiramente vale lembrar a mudanccedila

que sofre em relaccedilatildeo aos antigos a concepccedilatildeo de Natureza no mundo

claacutessico Em Aristoacuteteles por exemplo o Cosmos eacute em primeiro lugar

146

qualitativo Eacute neste sentido que o De Cœlo natildeo ousa ultrapassar no

movimento dos corpos o viacutenculo que se estabelecia entre o ldquoleverdquo e o

ldquopesadordquo E qual a razatildeo A Natureza ainda permanecia estreita ela ainda

seguia a ldquomedida do homemrdquo Pensando nisso pois entendemos o interesse

de Merleau-Ponty por Descartes eacute que a partir dele notamos a formulaccedilatildeo

de uma nova ideia de Natureza Eacute assim que Descartes encontra um

conceito que nasce tanto da recepccedilatildeo da compreensatildeo galileana dos

fenocircmenos fiacutesicos como da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde mediante sua

sublimaccedilatildeo em Deus da finalidade aristoteacutelica estando nisto justamente

na ideia de ldquoinfinitordquo o elemento novo da nova concepccedilatildeo de natureza que

viria a ser delineada Por conseguinte a Natureza natildeo seraacute mais vista

mediante sua divisatildeo em ldquoregiotildees qualitativamente distintasrdquo mas a partir

de sua simultacircnea cisatildeo em uma natureza naturante (natura naturans) e

uma natureza naturada (natura naturata) ou seja entre uma natureza

capaz de subsistir por si mesma e uma natureza criada e produzida sendo

portanto a natureza naturada um produto da natureza naturante Todavia

mais do que assimilar a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde Descartes opera uma

mudanccedila Enquanto Tomaacutes de Aquino mantinha o termo Natureza no intuito

de estabelecer um viacutenculo com a noccedilatildeo grega em Descartes o que temos eacute

uma radical cisatildeo Do mesmo modo enquanto na tradiccedilatildeo judaico-crista se

falava que a razatildeo de haver duas naturezas estava sempre na distinccedilatildeo entre

um ldquoestado de naturezardquo anterior ao pecado e outro posterior no

pensamento cartesiano o que encontramos eacute a oscilaccedilatildeo entre uma

natureza que nos conduz a uma ldquoontologia do objetordquo e outra natureza que

nos leva a uma ldquoontologia do existenterdquo Ora quais as razotildees desta oscilaccedilatildeo

A primeira oscilaccedilatildeo centrada em uma ldquoontologia do objetordquo

funda-se principalmente no modo como Descartes iraacute entender o conceito

de ldquofinalidaderdquo ao vinculaacute-lo a um Deus pensado como ldquoinfinitordquo Uma vez

que na infinitude divina os efeitos e as causas satildeo dados de modo

simultacircneo natildeo havendo uma dissociaccedilatildeo entre os fins e os meios

(MERLEAU-PONTY 2000a p 11) mas manifestamente um acordo o mundo

criado por Deus natildeo poderia lhe ser imprevisiacutevel Natildeo haveria pois uma

anterioridade do todo em relaccedilatildeo agraves partes Por conseguinte o que temos eacute

147

uma Natureza despojada de sua interioridade Se ela eacute feita agrave imagem de

Deus logo seraacute ldquose natildeo infinita ao menos indefinidardquo visto ser ldquo[] a

realizaccedilatildeo exterior de uma racionalidade que estaacute em Deus Finalidade e

causalidade jaacute natildeo se distinguem e essa indistinccedilatildeo exprime-se na imagem

da lsquomaacutequinarsquo a qual mistura um mecanismo e um artificialismo Eacute preciso

um artesatildeo nesse sentido tal ideia eacute antropomoacuterficardquo (MERLEAU-PONTY

2000a p 12) Natildeo possuindo interioridade a Natureza passa a ser um em

si existindo como uma maacutequina regida por leis seguindo um

ldquofuncionamento automaacuteticordquo Sendo criada por um Deus infinito natildeo

haveria razatildeo em compreender a finalidade do ser natural como a luta de

uma forccedila que pondo-se contrariamente agrave ldquocontingecircncia das coisasrdquo

tentaria reconduzi-las agrave ordem (MERLEAU-PONTY 2000a p 12) o que

justifica a ideia de que havendo as mesmas leituras mesmo Deus tendo

criado um outro mundo o resultado natildeo seria diferente Como entatildeo

compreender nessa primeira concepccedilatildeo de Natureza a ldquofinalidaderdquo Ao

compreender a ordem como uma noccedilatildeo de iure a finalidade natildeo eacute outra

coisa senatildeo o proacuteprio ldquoexerciacutecio do pensamento infinito de Deusrdquo daiacute que

A Natureza eacute como Deus um ser que eacute tudo aquilo que pode ser possibilidade absoluta ela eacute mesmo essecircncia senatildeo natildeo teria podido ser A experiecircncia soacute tem um papel auxiliar em fiacutesica ela nos ajuda a natildeo nos perdermos pelo caminho mas jamais serve de prova Quando se opotildeem a Descartes argumentos experimentais ele responde que eacute como se quiseacutessemos mostrar com um esquadro defeituoso que os acircngulos de um triacircngulo natildeo satildeo iguais a dois retos sua fiacutesica eacute deduzida tal como sua geometria A natureza exterior seria por conseguinte sinocircnimo da natureza simples de que falam as Regulaelig e da qual elas parecem apresentar todas as caracteriacutesticas [] A realidade possui um certo quid a partir do qual tudo o que lhe pertence pode ser extraiacutedo (MERLEAU-PONTY 2000a p 17)

Por conseguinte para Descartes segundo Merleau-Ponty ldquoseja

qual for a ruptura entre a existecircncia de Deus e a do mundo eacute preciso dizer

que este mundo tal como eacute eacute uma consequecircncia desse aparecimento

ilimitado que eacute Deusrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 206) Esta ontologia se

apresenta pois como ldquoretrospectivardquo haja vista que como salientaraacute

Merleau-Ponty ldquoo nervo desse pensamento eacute a ideia segundo a qual de uma

certa maneira tudo estaacute dado que atraacutes de noacutes haacute a plenitude que conteacutem

148

tudo aquilo que pode aparecerrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 206) O que

isto significa Que relaccedilatildeo haveria com a concepccedilatildeo de um Deus ldquoinfinitordquo

Como dissera Descartes em uma carta endereccedilada a Clerselier

Digo que a noccedilatildeo que tenho do infinito estaacute em mim antes que a do finito porque disto unicamente que concebo o ser ou o que eacute sem pensar se eacute finito ou infinito eacute o ser infinito que eu concebo mas a fim de que eu possa conceber um ser finito eacute preciso que eu subtraia algo desta noccedilatildeo geral do ser a qual por conseguinte deve preceder (DESCARTES 1996c p 356)

Para Merleau-Ponty ao conceber assim o infinito o que se

atesta eacute que ldquo[] a intuiccedilatildeo do ser eacute de imediato a do ser diante de uma

liberdade ou para uma liberdaderdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7) ) Em

outros termos ldquo[] noacutes tiramos de nossa ideia de liberdade a ideia do

infinito e a lsquotransferimosrsquo daiacute agrave naturezardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7))

Tal procedimento eacute o mesmo que encontramos tambeacutem na tradiccedilatildeo judaico-

cristatilde O que o ldquoinfinitordquo nos diz pois desta ldquoprimeira concepccedilatildeo de

naturezardquo Em sua nota diraacute Merleau-Ponty

A absoluta plenitude e densidade do ser que Descartes exprime de modo ingecircnuo ao dizer que eacute de si infinito e que quando falamos sem outra precisatildeo do ser visamos espontaneamente um ser sem restriccedilotildees eacute o impacto sobre os fenocircmenos de uma liberdade indiferente em relaccedilatildeo a eles que ela os contempla ou os assume eacute o correlato de uma pura visatildeo distante ou de um fazer em uacuteltima anaacutelise imotivado Que o ser deva ser assim definido no halo de uma liberdade que o encontra como ser absoluto porque ela mesma natildeo eacute nada isto natildeo eacute evidente mas esquecemos que esta maneira de interrogaacute-lo tem sua data histoacuterica e natildeo se impotildee a toda filosofia possiacutevel [] A concepccedilatildeo cartesiana de natureza eacute solidaacuteria de todo um complexo ontoloacutegico no qual as noccedilotildees de infinito de possiacutevel e de atual de corpo em particular estatildeo implicadas e que noacutes precisamos desfazer se queremos recolocar o problema do ser (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7))

Frente a isto eacute que o filoacutesofo nota a necessidade de encontrar

uma ldquofilosofia mais satisfatoacuteriardquo de nos desfazer portanto desta ontologia

Mas de que modo se para isto seria preciso natildeo participar dela Eacute aqui que

Merleau-Ponty situa a concepccedilatildeo cartesiana de Natureza e de infinito no seio

de uma mesma histoacuteria da qual fazemos parte logo a dificuldade em nos

desfazer dessa ontologia segundo o filoacutesofo estaacute no fato de que em noacutes ela

jaacute se tornou uma instituiccedilatildeo Daiacute que para ele a histoacuteria da filosofia

149

conforme veremos no quarto capiacutetulo natildeo deve se construir sem um diaacutelogo

que situe um pensamento em confronto com a tradiccedilatildeo nascida de seus

proacuteprios desdobramentos logo a constataccedilatildeo do viacutenculo que une o

complexo ontoloacutegico no qual nos encontramos ao pensamento cartesiano

natildeo sendo pois um non-sens lecirc-lo fora das ldquoordens da razatildeordquo mas a partir

de uma histoacuteria viva e vertical Qual o caminho

Noacutes seremos verdadeiramente conscientes disso apenas se fingirmos nada saber das noccedilotildees das quais falamos tatildeo frequentemente que perdemos de vista a instituiccedilatildeo ontoloacutegica que elas pressupotildeem e se noacutes considerarmos os pensamentos de Descartes como o etnoacutelogo encontra os costumes sobre a terra Nossa primeira tarefa eacute aqui sendo bem entendido que a histoacuteria da filosofia apenas interveacutem aqui para explicitar e elucidar uma [histoacuteria] do pensamento conexotildees habituais e prontas que estatildeo em obra em noacutes como o meio de uma criacutetica de noacutes mesmos Pode-se tanto menos se dispensar deste exame que a ontologia de Descartes foi apenas em filosofia decadecircncia e regressatildeo Pode ser que a identificaccedilatildeo do ser com o infinito e a concepccedilatildeo que resulta disso tenha feito esquecer certos elementos da filosofia antiga que precisamos reencontrar mas isto natildeo eacute um impasse eacute um caminho pelo qual seria preciso passar para reencontraacute-los em movimento em seu sentido futuro (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7) [29] (9) )

Merleau-Ponty se aproxima do pensamento cartesiano

diferentemente do modo como a tradiccedilatildeo procurou fazer assumindo a tarefa

de um etnoacutelogo O que isto significa Como entender a partir disto a noccedilatildeo

de infinito Certamente o direcionamento aos antigos como encontramos

em Heidegger eacute uma tarefa importante poreacutem para Merleau-Ponty natildeo

compreenderemos melhor o infinito cartesiano apenas retrocedendo ao que

se pensava antes dele e isto mesmo se partiacutessemos do pressuposto de que a

Natureza pensada em si mesma tal como fora compreendida em sua

gecircnese natildeo se deixasse deduzir da noccedilatildeo de infinito Do mesmo modo

mesmo que a ldquoa finitude a qual se pode voltar hoje natildeo eacute aquela de onde a

filosofia partiurdquo caso queiramos compreender bem ldquoo gecircnero de ser que

pertence agrave naturezardquo ldquoseria preciso o desenvolvimento intreacutepido da ideia de

infinitordquo pois ldquouma concepccedilatildeo moderna e diferente da natureza natildeo se

encontra senatildeo no fim desta experiecircnciardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7)

[29] (9)) Eacute por isso que como nos acentua o filoacutesofo

150

[] o movimento cartesiano em direccedilatildeo ao infinito tem um duplo sentido por um lado noacutes vamos vecirc-lo ele encerra o conceito da natureza ele a faz aparecer em sua existecircncia e no ser tal como o que eacute evidente sem alternativa a consequecircncia inevitaacutevel de um ser infinito que ele mesmo natildeo poderia ser Neste sentido aqui ele [forja] e mascara a natureza Mas aleacutem disso e sempre porque ela eacute pensada no fundo do infinito ela eacute uma concreccedilatildeo muito particular do ser sem restriccedilatildeo da qual ela natildeo esgota as possibilidades ele a sustenta com toda sua potecircncia mas a potecircncia pela qual ele a faz existir natildeo eacute solicitada por ela como por um destino ele a cria entatildeo e natildeo precisa dela para ser ele mesmo Neste horizonte ela eacute ela mesma ao menos indefinida (MERLEAU-PONTY NBNF [29] (9) (10) )

Mediante isto em consequecircncia da noccedilatildeo de infinito o que

significa dizer que a natureza seria ldquoao menos indefinidardquo Ao se tornar um

mero produto a natureza deixa de ser consequentemente o nosso meio

natal deixa de ser a ldquoganga da vida humanardquo Merleau-Ponty utiliza aqui o

termo ganga comparando a natureza ao invoacutelucro que envolve um mineacuterio

ou mesmo o meio no qual um elemento anatocircmico ou um oacutergatildeo se encontra

mergulhado Eacute justamente por se oferecer a um interminaacutevel esforccedilo de

objetivaccedilatildeo o mesmo que congrega o infinito e o finito que a natureza deixa

de ser nossa paacutetria ou como diria Husserl a Terra se torna tatildeo-somente um

objeto de investigaccedilatildeo Aqui a nosso ver o filoacutesofo se aproxima da

concepccedilatildeo husserliana de Natureza em sua criacutetica ao mundo claacutessico ao

menos tal como se esboccedila no texto que versa sobre o mundo preacute-

copernicano Eacute o que notamos nas seguintes consideraccedilotildees de Merleau-

Ponty

Dado que na raiz da natureza existente haacute um surgimento de ser ilimitado todas as suas partes envolvidas nele satildeo homogecircneas e comparaacuteveis os astros natildeo satildeo mais divinos o sol tem tarefas um campo infinito de objetos se abre agrave investigaccedilatildeo [natildeo contemplamos mais uma hierarquia dada gostariacuteamos de seguir as accedilotildees e as reaccedilotildees que as suas divisoacuterias e a gecircnese que tirou da produtividade infinita a variedade concreta dos seres e a figura deste mundo (MERLEAU-PONTY NBNF (10) )

Conforme jaacute dissemos antes do mundo claacutessico o que

encontramos eacute apenas o estabelecimento de relaccedilotildees qualitativas imperando

ainda o Cosmos aristoteacutelico logo um Cosmos qualitativo Eacute por isso que

como nota Merleau-Ponty recordando-se certamente de Koyreacute haacute em Kepler

a impossibilidade de articular a lei da gravitaccedilatildeo universal Qual a razatildeo

151

Diraacute o filoacutesofo em uma nota muito similar a um de seus cursos sobre La

Nature ldquo[] a fim de que e antes que esta lei tenha podido ser formulada foi

preciso que uma concepccedilatildeo fosse substituiacuteda por uma outra segundo a qual

o ser material eacute por toda parte perfeitamente e absolutamente homogecircneordquo

(MERLEAU-PONTY NBNF (10)) posto que ldquoencontramos vemos os fatos

porque uma nova ontologia preparou o mundo para ser conhecidordquo

(MERLEAU-PONTY NBNF (10)) Mas seria vaacutelido este argumento Natildeo deveria

a filosofia antes se preocupar com uma compreensatildeo do ser do que partir do

ldquodesenvolvimento de consequecircncias empiacutericasrdquo Segundo Merleau-Ponty ldquoas

operaccedilotildees realizadas pela ciecircncia do seacuteculo XVII tecircm sua verdade ao menos

relativa e parcial e cabe agrave ontologia mostrar de que modo elas foram

possiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [30] (11) ) haja vista que para instituir

uma ontologia natildeo seriam suficientes o que eacute descoberto pela ciecircncia mas

tendo em vista que tais descobertas foram motivadas pela ontologia a tarefa

que se assume eacute encontrar entre a ontologia e as descobertas cientiacuteficas

uma unidade Daiacute a conclusatildeo do filoacutesofo

A teoria [ciecircncia] faz parte do homem natildeo eacute depois de tudo senatildeo uma seacuterie de operaccedilotildees humanas e natildeo vemos de que modo a filosofia poderia compreender entre outras coisas como uma das possibilidades do homem mesmo se isto natildeo eacute a uacutenica nem a mais profunda A ontologia do infinito que de um lado encerrava a Natureza abria aleacutem disso os seus horizontes ela era dispensaacutevel para que pudesse ser reconhecida a facticidade da Natureza e os horizontes que ela desvelava Ela tinha somente o erro de povoar de objetos em si e de um infinito objetivo Haacute neste empreendimento uma verdade a guardar A noacutes de dissipar o equiacutevoco e desfazer o complexo Natildeo se trata para a filosofia de ignoraacute-lo faz parte de sua proacutepria histoacuteria e ainda estaacute no coraccedilatildeo da nossa (MERLEAU-PONTY NBNF [30] (11))

Ora segundo Merleau-Ponty este modo de conceber a natureza

seria aquele conduzido pela ldquoluz naturalrdquo em sua configuraccedilatildeo de intuitus

mentis de entendimento puro logo a partir de uma ldquoontologia do objetordquo No

entanto lembremo-nos de que segundo Merleau-Ponty tambeacutem

encontramos no pensamento cartesiano uma outra concepccedilatildeo de natureza

aquela nascida no horizonte de uma ldquoontologia do existenterdquo tal como

procuramos esboccedilar a partir do que o filoacutesofo considera ser especialmente

nas Meacuteditations uma transformaccedilatildeo da ldquoluz naturalrdquo O que mudaria com

152

isso A passagem de uma natura lato sensu entendida em seu sentido

amplo e uma natura stricto sensu entendida em seu sentido estrito Assim

como vimos ao falar em um Cogito vertical haacute nesta concepccedilatildeo de natureza

uma certa resistecircncia a um mundo totalmente idealizado algo que resista ao

ldquoentendimento purordquo Deste meodo como era de se esperar

consequentemente haacute um modo diferenciado de encontrar a separaccedilatildeo que

se estabeleceu entre res cogitans e res extensa uma vez que o sensiacutevel como

privaccedilatildeo considerado negativo para a inteligecircncia converte-se em uma

negaccedilatildeo da negaccedilatildeo ou seja torna-se ldquopositivordquo quando confrontado com a

vida Eacute neste contexto e de acordo com esta clivagem que se daacute no

pensamento cartesiano a compreensatildeo da natureza humana postulando-se

por um lado no entendimento puro e seus objetos uma natura lato sensu e

por outro lado no composto corpo-alma uma natura stricto sensu

Para Merleau-Ponty podemos ver melhor esta clivagem nas

Meacuteditations uma vez que ldquonas Meditaccedilotildees I a III Descartes toma a luz

natural como termo de referecircncia nas Meditaccedilotildees III a VI eacute a inclinaccedilatildeo

natural que nos impele a crer na existecircncia do mundo exterior de meu

corpordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 22) Ora seria o caso de reconhecer no

pensamento cartesiano uma cisatildeo capaz de dividir sua filosofia em partes

antagocircnicas pois ldquocomo em nome da evidecircncia conferir um valor ao que eacute

obscuro sem cair numa contradiccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 23)

Para Gueacuteroult natildeo haveria nisto nenhuma dificuldade pois vendo uma

ldquoordem das razotildeesrdquo que atravessa todo o sistema cartesiano bastava que

consideraacutessemos o que fugisse ao entendimento puro como seu simples

excedente tomando como base para isto a carta de Descartes a Chanut

Para dizer que uma coisa eacute infinita deve-se ter alguma razatildeo que a faccedila conhecer como tal o que podemos ter somente de Deus mas para dizer que ela eacute indefinida basta natildeo ter razatildeo nenhuma pela qual se possa provar que ela tem limites Natildeo tendo portanto nenhuma razatildeo para provar e mesmo natildeo podendo conceber que o mundo tenha limites eu o denomino indefinido Mas isso natildeo me permite negar que talvez existam alguns limites que satildeo conhecidos de Deus embora me sejam incompreensiacuteveis eacute por isso que natildeo digo absolutamente que ele eacute infinito (DESCARTES apud MERLEAU-PONTY 2000a p 23)

153

Ao inveacutes de notar em Descartes uma ambiguidade latente pela

qual surgiriam os frutos de um Cogito vertical operante o que se passa

antes nas Meacuteditations para Gueacuteroult eacute uma mudanccedila de ordem haja vista

que haveria no mundo a mesma evidecircncia presente em Deus mesmo que o

conhecimento da substacircncia extensa soacute se desse mediante a substacircncia

divina O mundo por sua vez natildeo poderia ser visto fora da mesma cadeia de

razotildees na qual o infinito se encontrava fazendo com que a verdade se

dispusesse em razatildeo disto tanto na zona do ldquoverdadeiro absolutordquo como na

zona do que por natildeo ser falso poderia ser afirmado como verdadeiro pois

de acordo com Gueacuteroult ldquoao positivismo sucede uma negaccedilatildeo da negaccedilatildeo

Mas graccedilas agrave garantia divina Descartes obedece agrave ordem das razotildeesrdquo

(MERLEAU-PONTY 2000a p 24) Eacute neste horizonte que deveriacuteamos

entender a ideia cartesiana de infinito haja vista que

O resultado desta posiccedilatildeo do infinito e do perfeito como princiacutepio uacuteltimo tanto de meu conhecimento (Cogito) quanto de meu ser finito (eu pensante que tem a ideia de Deus) eacute de conferir ao Cogito na 3a Meditaccedilatildeo uma caracteriacutestica oposta agrave que apresentava na segunda o de uma posiccedilatildeo inacabada insuficiente por ela mesma pois natildeo se pode conceber nem subsistir caso o destaque do infinito uacutenico concreto completo ou subsistente capaz de se conceber ou de se explicar inteiramente por si O eu finito natildeo podendo ser destacado dele senatildeo por uma abstraccedilatildeo a qual torne confusa minha ideia o Cogito pode ser claramente e distintamente conhecido apenas pela intuiccedilatildeo da ideia de perfeito Por isto esboccedila-se a distinccedilatildeo entre duas ordens de substancialidade uma absoluta e positiva a outra relativa e negativa (GUEacuteROULT 1968 p 231-2 v1)

Em contrapartida rompendo com a ordem das razotildees Merleau-

Ponty natildeo vecirc sentido na justificativa gueroultiana de que o postulado

cartesiano de ldquoduas zonas da verdaderdquo se efetivasse tatildeo-somente em razatildeo de

sua busca pela clareza A partir de uma outra concepccedilatildeo da histoacuteria da

filosofia segundo Merleau-Ponty haveria na ldquoluz naturalrdquo ora mediada pela

intuitus mentis ora manifesta como ldquoatitude naturalrdquo em primeiro lugar

uma transformaccedilatildeo uma passagem o que nos impediria de considerar estes

dois momentos da obra cartesiano em um mesmo domiacutenio Por conseguinte

o direcionamento de Descartes a uma ldquoontologia do existenterdquo nos revela

sobretudo uma mudanccedila na noccedilatildeo de infinito mudanccedila esta que natildeo fora

explicitada por Gueacuteroult O que teria mudado Natildeo seraacute mais da ideia de

154

Deus que se origina o infinito mas antes da liberdade humana do proacuteprio

homem E o que faria a diferenccedila Para Merleau-Ponty o simples fato de

que partindo do homem o infinito natildeo se fundamenta mais em nossa

submissatildeo a um Ser que nos eacute antecedente logo natildeo nos remete mais a

uma liberdade que fosse tributaacuteria da divindade cujo ldquosimrdquo fosse tatildeo

somente o ldquosim absoluto de Deusrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 207) pois

ldquoessa ideia da liberdade eacute apreendida com a ajuda de um meacutetodo muito

diferente da elucidaccedilatildeo essencialista O lsquoque eu soursquo eacute enunciado antes de lsquoo

que eacute que eu soursquordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 207) O que isto nos diz

Ao contraacuterio de uma ldquoordem das razotildeesrdquo o que temos eacute uma

mudanccedila de meacutetodo daiacute que no lugar da finalidade a partir da ideia de que

a alma foi feita para o corpo o que encontramos eacute uma ideia que ateacute entatildeo

encontrava-se inoperante a saber a ideia de ldquocausardquo90 Eacute assim que

mediante uma ldquoontologia do existenterdquo torna-se possiacutevel falar em Descartes

de uma extensatildeo como ldquoindefinidardquo de um ldquojuiacutezo naturalrdquo que natildeo se

assemelha mais ao que sob o ditame da intuitus mentis era tido como

ldquojuiacutezordquo O mundo tal como se encontra no presente eacute produzido por Deus

tatildeo-somente mediante as leis da natureza uma vez que ldquoa nossa extensatildeo

natildeo eacute uma essecircncia ela tem uma certa existecircncia de direito deve estar

ancorada em cada instante daiacute a criaccedilatildeo continuadardquo (MERLEAU-PONTY

2000a p 209) Daiacute tambeacutem que pensando em um mundo ldquo() que se

caminha para a totalidade e corresponde a uma visatildeo de Deus sobre as

coisasrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 209) natildeo seja contraditoacuterio pensar em

sua ldquopreacute-ordenaccedilatildeordquo Pelo que notamos a partir desta ldquomudanccedila de

meacutetodordquo natildeo seraacute o essencialismo que nortearaacute a nossa compreensatildeo da

Natureza o que nos leva a encontrar em Descartes por um lado uma

concepccedilatildeo fundada em uma ldquoontologia do objetordquo retrospectiva e

essencialista e por outro lado mas ao mesmo tempo uma ldquoontologia do

90 Disto talvez se segue segundo Gueacuteroult que o racionalismo de Descarte embora rigoroso natildeo eacute absoluto ldquonatildeo enquanto absoluto ou seja enquanto reduziria os elementos irracionais ao racional os quais entatildeo natildeo seriam mais que sua aparecircncia mas na medida em que ele determina inteiramente pela razatildeo os elementos irracionais que se crecirc poder descobrir na obra de Deus (erro sentimento) e no proacuteprio Deus (incompreensibilidade)rdquo (GUEacuteROULT 1968 v 2 p 299)

155

existenterdquo projetiva e presa na obscuridade do mundo Ora natildeo haveria

nisto uma contradiccedilatildeo Como pensar uma natureza que se fundamenta na

exterioridade e ao mesmo tempo uma natureza que traz uma extensatildeo que

obscura e aberta esquiva-se ao olhar do espiacuterito

Afastando-se de Gueacuteroult Merleau-Ponty percebe nas

consideraccedilotildees de Laporte um modo de tentar compreender estas questotildees

Por conseguinte a presenccedila de duas naturezas em Descartes que nos

levaria ao mesmo tempo tanto a um mundo mecacircnico como a um mundo

preordenado por Deus pois ldquo() mais aleacutem de uma filosofia finalista e de

uma filosofia do entendimentordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 209) na qual

se engendraria uma contradiccedilatildeo revela-nos antes a apresentaccedilatildeo de um

pensamento que se encontra em funccedilatildeo de categorias humanas uma vez

que o equiacutevoco na verdade manifesta-se segundo a ordem do homem No

niacutevel de Deus tanto uma ldquoontologia retrospectivardquo como uma ldquoontologia

projetivardquo seriam superadas por Descartes O problema justamente surge

segundo Laporte no momento em que o pensamento cartesiano busca a

soluccedilatildeo de seus impasses a partir da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde Estaria

inclusive em Tomaacutes de Aquino a ideia de que em Deus finalidade e

causalidade perdem a sua operabilidade Neste retorno de Descartes ao

pensamento monoteiacutesta a dificuldade se potencializa principalmente

porque natildeo se tem mais a ideia aristoteacutelica de que a divindade seja apenas

atributo de uma classe de seres O que isto quer dizer De acordo com a

tradiccedilatildeo judaico-cristatilde Deus eacute verdadeiramente o Ser que natildeo pertencendo

mais a uma classe de seres exclui todo predicado tendo-se em vista a sua

infinitude Incompreensiacutevel por estar aleacutem de todo predicado este conceito

de Deus possui um excesso de positividade que paradoxalmente conduz-

nos a um perigo de negaccedilatildeo do proacuteprio mundo uma vez que como salienta

Gilson ldquoa partir do momento em que se diz que Deus eacute o Ser eacute claro que

num certo sentido soacute Deus existerdquo (GILSON 1932 p 48) Eacute por isso que

impossibilitado de negar quer seja o ontologismo quer seja o essencialismo

por exemplo Tomaacutes de Aquino encontra-se em um ldquovaiveacutemrdquo entre essecircncias

e existecircncias com o qual Descartes compartilha Eacute o que nos confirma

Merleau-Ponty

156

Para Descartes Deus eacute causa sui daiacute sua infinidade e daiacute o fato de que em essecircncia ele eacute tudo aquilo que o mundo poderaacute ser Mas haacute natildeo obstante uma distinccedilatildeo entre dois planos de realizaccedilatildeo Em face do mundo existente eacute necessaacuterio um ato absolutamente novo que natildeo deva nada agrave substacircncia de Deus em face do mundo existente tudo estaacute por recomeccedilar Aleacutem disso em Descartes Deus soacute eacute apresentado como causa sui com reservas sem o que se corre o risco de panteiacutesmo Descartes utiliza um subterfuacutegio A esse propoacutesito soacute podemos exprimir-nos negativamente Deus natildeo pode ter causa exterior a si mesmo donde se segue que eacute preciso admitir algo entre a causa sui e a causa exterior mas natildeo sabemos exatamente o quecirc (MERLEAU-PONTY 2000a p 217)

Ora eacute justamente nesta alternacircncia existente entre um

ldquoessencialismo condicionalrdquo e um ldquoexistencialismo subordinadordquo originada

pela tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e herdada por Descartes que se estabelece no

dizer de Blondel tal como nos assinala Merleau-Ponty uma espeacutecie de

ldquodiplopia ontoloacutegicardquo presente na contradiccedilatildeo de um mundo criado por

Deus o uacutenico Ser no qual ldquonatildeo haacute mais ser no plural mas tampouco haacute ser

no singularrdquo (BLONDEL Apud MERLEAU-PONTY 2000a p 218) O impasse

do cartesianismo estaria deste modo no fato de comungar desta ideia daiacute a

sua constante oscilaccedilatildeo entre uma ldquoontologia do objetordquo e uma ldquoontologia do

existenterdquo fazendo da ideia de um Ser infinito e naturante o centro de sua

filosofia Mais do que isto segundo Merleau-Ponty seria esta uma ideia

fundamental para o seacuteculo XVII pois ldquosejam quais forem as diferenccedilas os

cartesianos seratildeo unacircnimes neste pontordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p

229) Quais as consequecircncias disto Por um lado a Natureza decorreria das

propriedades da res infinita do Deus infinito e por outro viria a ser

inoperante a rejeiccedilatildeo da teleologia haja vista que no final o proacuteprio homem

seria uma finalidade Por conseguinte o objeto cientiacutefico seria apenas um

dos graus do ser e natildeo o seu cacircnone pois na relaccedilatildeo entre filosofia e

ciecircncia seria esta compreensatildeo do infinito e da natureza apesar da tensatildeo

constante que se estabelecia entre interioridade e exterioridade que

garantiria a possibilidade de um acordo Deste modo

o Ser natildeo estaacute inteiramente vergado ou achatado sobre o plano do Ser exterior Haacute tambeacutem o ser do sujeito ou da alma e o ser de suas ideias e o das relaccedilotildees reciacuteprocas entre elas a relaccedilatildeo interna de verdade e este universo eacute tatildeo vasto quanto o outro ou melhor engloba-o visto que por mais estreito que seja o viacutenculo dos fatos

157

exteriores nenhum deles daacute a razatildeo uacuteltima do outro ndash juntos participam de um ldquointeriorrdquo manifestado por suas ligaccedilotildees (MERLEAU-PONTY 1975b p 228)

Por fim pelo que pudemos notar a partir da ideia de ldquoinfinitordquo

ou ldquoinfinitamente infinitordquo o Grande Racionalismo procurou estabelecer

especialmente em Descartes ao menos em um certo Descartes a sua ideia

de verdade Por meio dela os sentidos teriam a sua confusatildeo dissipada Daiacute

que esta noccedilatildeo tenha marcado uma eacutepoca na qual como diraacute Merleau-

Ponty o ldquouniverso mentalrdquo natildeo se achava dilacerado pois encontrava uma

unidade que permeava as suas investigaccedilotildees Todavia a ruptura com essa

unidade natildeo indica uma mera ldquodecadecircnciardquo mas marca antes uma mudanccedila

do proacuteprio olhar Eacute assim que o Pequeno Racionalismo na passagem do

simples ao complexo natildeo encontraraacute mais o suporte e a garantia que o

Grande Racionalismo dava agrave ideia de infinito Daiacute que mediante o medo de

um retorno agrave escolaacutestica o que encontramos eacute a negaccedilatildeo de um saber que

tem sua origem no interior da experiecircncia cuja medida teria por referecircncia o

ser do sujeito A inspeccedilatildeo do mundo se daraacute radicalmente do exterior o

pensamento de sobrevocirco se potencializa passa a fazer uso de

ldquoprocedimentos obliacutequosrdquo se desloca de uma vez por todas para o

experimento No Pequeno Racionalismo a tensatildeo e a ambiguidade do seacuteculo

XVII se perde pois nada mais haacute a nutrir e tentar superar os descompassos

da interioridade e da exterioridade Eacute por isso que de modo paradoxal

apesar de seus limites o Grande Racionalismo acaba se tornando uma

espeacutecie de ldquointermediaacuterio obrigatoacuteriordquo para todo pensamento que deseja

recusaacute-lo

Negada a possibilidade de uma representaccedilatildeo formal do

infinito o que nos resta eacute o cientificismo ou seja o mundo da extensatildeo e a

capacidade formal da consciecircncia Eacute por isso que de acordo com Merleau-

Ponty em meio aos restos arqueoloacutegicos do seacuteculo XVII no Pequeno

Racionalismo o que temos eacute radicalizaccedilatildeo do impeacuterio da exterioridade a

experiecircncia de um ser constituiacutedo partes extra partes logo achatado e

vergado pela razatildeo cientificista Daiacute que o que iraacute mover a ciecircncia claacutessica

natildeo seraacute o Cogito vertical mas a intuitus mentis que operacionalizada acaba

158

legitimando o que de mais equiacutevoco poderiacuteamos herdar do cartesianismo

Daiacute a ideia de que no Pequeno Racionalismo e em seus desdobramentos o

que encontramos seja antes um pseudocartesianismo aquele que faria da

causalidade ainda considerada um problema natildeo resolvido para o proacuteprio

Descartes uma consequecircncia suficiente e necessaacuteria para todo saber

cientificamente legitimado O que isto significa Como daria a repecursatildeo do

cartesianismo no pensamento cientiacutefico emergente dos escombros do Grande

Racionalismo A seguir no proacuteximo capiacutetulo pensemos nestas questotildees

159

CAPIacuteTULO III O PSEUDOCARTESIANISMO E O REALISMO CIENTIFICISTA

O PARADOXO DO MENON

Celui qui voudra limiter la lumiegravere spirituelle agrave lrsquoactualiteacute repreacutesenteacutee se heurtera toujours au problegraveme socratique laquo De quelle maniegravere trsquoy prendras-tu pour chercher ce dont tu ignores que tu ne connais pas celle que tu te proposeras de chercher Et si tu la rencontres justement par hasard comment sauras-tu que crsquoest bien elle alors que tu ne la connais pas raquo (Meacutenon 80 D) (LACHIEgraveZE-REY 1950 p 17-18)

31 Apresentaccedilatildeo do problema Descartes e o cientificismo

Na Pheacutenomeacutenologie de la perception jaacute encontraacutevamos em uma

criacutetica natildeo soacute dirigida a Descartes mas tambeacutem ao intelectualismo de um

modo geral especialmente o de Brunschvicg ndash conforme veremos mais

adiante ndash a tentativa de elucidar a experiecircncia que fazemos do mundo A

questatildeo eacute muito simples o filoacutesofo encontra-se diante de sua escrivaninha e

se pergunta pelo Cogito Juntamente com suas indagaccedilotildees encontra-se

assediado pelo mundo Ao mesmo tempo vecirc-se enveredado por um mundo

de coisas e um mundo de ideias e de repente o problema estaacute posto

Acompanhemos o que ele nos diz

Penso no Cogito cartesiano quero terminar este trabalho sinto em

minha matildeo o frescor do papel atraveacutes da janela percebo as aacutervores

da avenida A cada momento minha vida precipita-se em coisas transcendentes ela se passa inteira no exterior Ou o Cogito eacute esse

pensamento que se formou a trecircs seacuteculos no espiacuterito de Descartes

ou eacute o sentido dos textos que ele nos deixou de qualquer maneira ele

eacute um ser cultural para o qual meu pensamento antes se dirige do que o abarca assim como meu corpo em um ambiente familiar se

orienta e caminha entre os objetos sem que eu precise representaacute-los

expressamente Este livro inicial natildeo eacute uma certa reuniatildeo de ideias

para mim ele constitui uma situaccedilatildeo aberta da qual eu natildeo saberia dar a foacutermula complexa e em que eu me debato cegamente ateacute que

como que por milagre os pensamentos e as palavras se organizem

por si mesmos Com mais razatildeo ainda os seres sensiacuteveis que me

circundam o papel sob minha matildeo as aacutervores sob meus olhos natildeo me entregam seu segredo minha consciecircncia se esvai e se ignora

neles (MERLEAU-PONTY 1945 p 423)

160

Ora haveria nestas linhas uma definiccedilatildeo dedutiva do Cogito

Natildeo haveria ali antes uma metamorfose do intelectualismo ndash quer seja o

cartesiano quer sejam as suas variantes ndash do que uma ruptura Jaacute teria

Merleau-Ponty indicado de antematildeo a sua posiccedilatildeo filosoacutefica antes mesmo

de apresentar o problema Caso a resposta seja afirmativa natildeo correriacuteamos

o risco de sermos injustos com quem sempre procurou antes configurar as

paisagens nas quais teriam espaccedilo os embates de seus argumentos Em

contraposiccedilatildeo natildeo bastaria entatildeo pensar que em particular as paacuteginas

precedentes deste livro jaacute natildeo seriam todas elas uma preparaccedilatildeo para este

momento especial da obra daiacute a mudanccedila de ritmo e a inserccedilatildeo imediata de

suas ideias Ora olhando mais de perto natildeo haacute duacutevida da densidade

enigmaacutetica destas palavras desta simples descriccedilatildeo como tantas outras ao

longo da Pheacutenomeacutenologie de la perception

Embora jaacute diversas vezes estudado e discutido por vaacuterios

inteacuterpretes a pergunta pelo Cogito na obra de Merleau-Ponty ndash

especialmente neste texto de 1945 ndash natildeo deixa de ser nem por isso menos

fecunda Poderiacuteamos entatildeo considerar as disjunccedilotildees impostas pelo filoacutesofo

como a apresentaccedilatildeo de posturas que ele trataraacute de desconstruir tais como o

sensualismo ou realismo empiacuterico o positivismo loacutegico da Escola de Viena e

o idealismo transcendental ndash seja qual for a sua confissatildeo e isto ao tratar

do Cogito cartesiano Frente aos impasses gerados por estas abordagens

filosoacuteficas ndash apenas insinuadas pelo filoacutesofo ndash a proposta seria pois o

exerciacutecio da reduccedilatildeo e mediante isto o resgate da experiecircncia Todavia aqui

percebemos a sutiliza de Merleau-Ponty trata-se apenas de uma descriccedilatildeo e

jaacute em meio a este processo encontramos indicaccedilotildees do caminho que seraacute

percorrido por sua criacutetica inclusive sua criacutetica ao realismo cientificista o

que nos faz encontrar um eco destas linhas tambeacutem em La Structure du

comportement

A escrivaninha que vejo diante de mim e na qual escrevo o cocircmodo

em que estou e cujas paredes para aleacutem do campo sensiacutevel se

fecham agrave minha volta o jardim a rua a cidade enfim todo meu horizonte espacial natildeo me aparecem se me atenho ao que diz a

consciecircncia imediata como causa da percepccedilatildeo que tenho deles os

quais imprimiriam em mim sua marca ou produziriam uma imagem

161

deles mesmos por uma accedilatildeo transitiva Parece-me antes que minha percepccedilatildeo eacute como um feixe de luz que revela os objetos no lugar em

que estatildeo e que manifesta a presenccedila deles ateacute entatildeo latente Que eu mesmo perceba ou que considere outro sujeito perceptivo parece-

me que o olhar ldquopousardquo nos objetos e os atinge agrave distacircncia como bem exprime o uso latino de lumina para designar o olhar

(MERLEAU-PONTY 2006 p 281-2)

Eacute certo que neste texto o filoacutesofo tem o ensejo de criticar o

realismo a partir do perspectivismo da percepccedilatildeo Mas no texto sobre o

Cogito aleacutem de Descartes o alvo natildeo era tambeacutem realismo Vejamos Nos

dois textos ao menos o que encontramos eacute o filoacutesofo e seu meio o filoacutesofo

diante do mundo e eacute neste horizonte que a pergunta que atravessa estes

dois momentos parece se configurar o que seriam estes entes que se

encontram agrave sua volta e como se daacute a sua relaccedilatildeo com eles Eacute neste

momento que a nosso ver vem agrave tona especialmente na Pheacutenomeacutenologie de

la perception o mesmo problema que encontraacutevamos presente dentre as

indagaccedilotildees dos antigos ldquocomo buscar o que natildeo se conhece e caso

encontremos como saber se encontramos o que justamente natildeo

conheciacuteamos antesrdquo91 A nosso ver o ldquoparadoxo de Menonrdquo92 estaacute no

coraccedilatildeo das indagaccedilotildees de Merleau-Ponty e eacute justamente esta aporia que o

filoacutesofo ndash tal como acreditamos ter sido tambeacutem mesmo que por outras vias

e com outras conclusotildees o intento do Bergson do Ensaio ndash tentaraacute elucidar

91 καὶ τίνα τρόπον ζητήσεις ὦ Σώκρατες τοῦτο ὃ microὴ οἶσθα τὸ παράπαν ὅτι ἐστίν ποῖον γὰρ ὧν

οὐκ οἶσθα προθέmicroενος ζητήσεις ἢ εἰ καὶ ὅτι microάλιστα ἐντύχοις αὐτῷ πῶς εἴσῃ ὅτι τοῦτό ἐστιν ὃ σὺ οὐκ ᾔδησθα 92 (80d) (Μένων) καὶ τίνα τρόπον ζητήσεις ὦ Σώκρατες τοῦτο ὃ μὴ οἶσθα τὸ παράπαν ὅτι ἐστίν

ποῖον γὰρ ὧν οὐκ οἶσθα προθέμενος ζητήσεις ἢ εἰ καὶ ὅτι μάλιστα ἐντύχοις αὐτῷ πῶς εἴσῃ ὅτι

τοῦτό ἐστιν ὃ σὺ οὐκ ᾔδησθα (80e) (Σωκράτης) μανθάνω οἷον βούλει λέγειν ὦ Μένων ὁρᾷς

τοῦτον ὡς ἐριστικὸν λόγον κατάγεις ὡς οὐκ ἄρα ἔστιν ζητεῖν ἀνθρώπῳ οὔτε ὃ οἶδε οὔτε ὃ μὴ

οἶδε οὔτε γὰρ ἂν ὅ γε οἶδεν ζητοῖ - οἶδεν γάρ καὶ οὐδὲν δεῖ τῷ γε τοιούτῳ ζητήσεως - οὔτε ὃ μὴ

οἶδεν - οὐδὲ γὰρ οἶδεν ὅτι ζητήσει (Soacutecrates Menon 80d-e) ndash Trad MEN ndash E de que maneira investigaraacutes Soacutecrates aquilo que ignoras totalmente o que eacute Qual das coisas que natildeo sabes vais propor como objeto de tua investigaccedilatildeo Ou ainda no caso favoraacutevel de que o descubras como vais saber que eacute precisamente o que tu natildeo sabias SOacuteC ndash Compreendo Menon o que queres dizer Daacutes-te conta do argumento polecircmico que nos traz a saber que natildeo eacute possiacutevel para o homem investigar nem o que sabe nem o que natildeo sabe Natildeo seria pois capaz de investigar o que sabe visto que o sabe ndash e nenhuma necessidade tem um homem assim de investigaccedilatildeo ndash nem o que natildeo sabe visto que nem sequer sabe o que eacute que vai investigar (PLATAtildeO 2001)

162

uma vez que como diraacute Lachiegraveze-Rey citado por Merleau-Ponty ldquoaquele que

deseja limitar a luz espiritual agrave atualidade representada sempre se

encontraraacute com o problema socraacuteticordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 429) Se

isto eacute verdade contudo o que explicaria no texto de 1945 um retorno ao

que na tradiccedilatildeo serve de fundamento aos intelectualismos em outros

termos por que o retorno ao Cogito cartesiano93

No que diz respeito a esta questatildeo pelo que vimos

anteriormente uma das grandes dificuldades do cartesianismo estava

justamente no fato de que no final das contas o ldquouniverso de consciecircnciardquo

que o Cogito revela limita-se apenas a um ldquouniverso de pensamentordquo Daiacute

tambeacutem uma espeacutecie de intelectualismo ou mesmo de criticismo presente

em Descartes Por conseguinte eacute certo que se procuraacutessemos no proacuteprio

criticismo ao menos tal como ele se esboccedilava em Brunschvicg uma

tentativa de soluccedilatildeo ao ldquoparadoxo do Menonrdquo isto se daria a partir da

distinccedilatildeo entre ldquouma forma geral da consciecircncia que natildeo pode ser derivada

de nenhum acontecimento corporal e psiacutequicordquo e ldquoconteuacutedos empiacutericos cuja

existecircncia atual poderia se ligar a certos acontecimentos exteriores ou a

certas particularidades de nossa constituiccedilatildeo psicofiacutesicardquo (MERLEAU-

PONTY 2006 p 309-10) Os limites de tal tentativa para Merleau-Ponty

estariam na desconsideraccedilatildeo do que viria a ser para o sujeito tanto a

experiecircncia de sua passividade como a sua ldquoconsciecircncia sensiacutevelrdquo presente

no hiato entre a Esteacutetica e a Analiacutetica como a mateacuteria em sua condiccedilatildeo de

componente cognoscitivo assim como tambeacutem a perda da fenomenalidade

do proacuteprio fenocircmeno o que converteria a percepccedilatildeo tatildeo-somente em uma

ldquovariedade de intelecccedilatildeordquo na qual lhe ficaria de positivo apenas o juiacutezo

Frente aos problemas levantados pelas relaccedilotildees entre a forma e a mateacuteria o

93 Para o leitor apressado de imediato haacute uma contradiccedilatildeo grave em Merleau-Ponty ao tomar a noccedilatildeo cartesiana de razatildeo como ponto de partida de seu projeto filosoacutefico assim como em suas primeiras obras parecera partidaacuterio da noccedilatildeo claacutessica de Natureza Parece haver quase que uma relaccedilatildeo mal resolvida entre o filoacutesofo e o cartesianismo para natildeo dizer apesar de suas criacuteticas com o proacuteprio Descartes Se os conceitos dos quais se serve encontram-se corrompidos natildeo estaria a sua filosofia ameaccedilada a qualquer momento por algum abalo siacutesmico Onde estaria a razatildeo desse impasse Encontramos algumas possibilidades quando discutirmos o que o filoacutesofo entendera como ldquoimpensadordquo de Descartes a sensibilidade o corpo-sujeito o corpo proacuteprio

163

dado e o sensiacutevel a soluccedilatildeo proposta pelo criticismo seria pois ldquouma teoria

intelectualistardquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 310-11) Por conseguinte

O problema das relaccedilotildees entre a alma e o corpo se colocaria apenas

no niacutevel de um pensamento confuso que se ateacutem aos produtos da

consciecircncia em vez de ver neles a atividade intelectual que os faz ser

Recolocada no contexto intelectual que lhe confere um sentido a ldquoconsciecircncia sensiacutevelrdquo se suprime como problema O corpo

reencontraria a extensatildeo da qual sofre a accedilatildeo e da qual eacute apenas

uma parte a percepccedilatildeo reencontra o juiacutezo que a baseia Toda forma

de consciecircncia pressupotildee sua forma acabada ndash a dialeacutetica do sujeito

epistemoloacutegico e do objeto cientiacutefico (MERLEAU-PONTY 2006 p 311)

Eacute neste sentido que ao contraacuterio da tradiccedilatildeo cartesiana ao

contraacuterio de uma ldquoconsciecircncia intelectualrdquo que faz com que o fato da visatildeo e

o seu ldquoconjunto de conhecimentos existenciaisrdquo lhe sejam exterior o que

Merleau-Ponty propotildee eacute uma percepccedilatildeo que seja uma experiecircncia incipiente

ou seja a consideraccedilatildeo de uma ldquoconsciecircncia sensiacutevelrdquo e a explicitaccedilatildeo de

uma ldquoconsciecircncia naturadardquo que vive mergulhada em um comeacutercio com o

mundo nascendo juntamente com ele Daiacute a conclusatildeo do filoacutesofo

A intelecccedilatildeo que o Cogito havia encontrado no coraccedilatildeo da percepccedilatildeo

natildeo esgota seu conteuacutedo na medida em que a percepccedilatildeo se abre para um ldquooutrordquo na medida em que eacute a experiecircncia de uma

existecircncia ela proveacutem de uma noccedilatildeo primitiva que ldquosoacute pode se entendida por ela mesmardquo de uma ordem da ldquovidardquo na qual as

distinccedilotildees do entendimento satildeo pura e simplesmente anuladas Assim Descartes natildeo procurou integrar o conhecimento da verdade e

a prova da realidade a intelecccedilatildeo e a sensaccedilatildeo Natildeo eacute na alma eacute em Deus que elas unem-se uma agrave outra Mas depois dele essa

integraccedilatildeo devia aparecer como a soluccedilatildeo dos problemas postos pelo realismo filosoacutefico Ela permitiria com efeito renunciar agrave accedilatildeo do

corpo ou das coisas sobre o espiacuterito defini-los como os objetos de uma consciecircncia e superar a alternativa do realismo e do ceticismo

associando segundo os termos de Kant um idealismo transcendental e um realismo empiacuterico (MERLEAU-PONTY 2006 p

305-6)

No entanto se o cartesianismo apresenta problemas o que

justificaria a centralidade que o filoacutesofo daacute ao Cogito Conforme vimos

Descartes identificara em seu enfrentamento do problema da similitude o

que constituiacutea a questatildeo das ldquoespeacutecies intencionaisrdquo ao aproximar-se da

164

problematicidade da explicaccedilatildeo causal em sua aplicaccedilatildeo ao processo

perceptivo Apesar disto como iraacute acentuar La Structure du comportement

ele ainda permaneceria preso a esta mitologia explicativa ao tentar superar

esta questatildeo por meio de uma espeacutecie de ocasionalismo ou seja a ideia de

que ldquoas impressotildees cerebrais satildeo apenas as causas ocasionais da percepccedilatildeordquo

(MERLEAU-PONTY 2006 p 296 o grifo eacute nosso) haja vista que ainda

permanece a necessidade de uma correspondecircncia existente entre ldquocertas

impressotildees cerebraisrdquo e ldquocertas percepccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p

296) Daiacute a permanecircncia da causalidade como fundamento da

representaccedilatildeo94 fazendo com que haja apenas no final das contas uma

ldquosubstituiccedilatildeo das causas exemplares pelas causas ocasionaisrdquo Neste ponto

poreacutem encontramos mais uma vez a deacutemarche merleau-pontiana em natildeo

se contentar com uma compreensatildeo historicista de Descartes mas procurar

tambeacutem no movimento que mantinha vivo o seu pensamento a experiecircncia

da ambiguidade Eacute por esta razatildeo que para Merleau-Ponty em Descartes

encontrariacuteamos pois uma negaccedilatildeo dessa atitude e ao mesmo tempo a

possibilidade de um fundamento capaz de propiciar o seu engendramento

ou seja tal como aconteceraacute nas ciecircncias do Pequeno Racionalismo a

necessidade de encontrar no corpo as condiccedilotildees determinantes e

adequadas da percepccedilatildeo No caso de Descartes em meio agrave ambiguidade de

94 De certo modo podemos encontrar aqui uma aproximaccedilatildeo com o Holzwege Conforme Heidegger a ideia de uma ldquoimagem do mundordquo traz em si o que eacute proacuteprio do mundo claacutessico natildeo por fazer do mundo um decalque uma simples pintura mas por tornaacute-lo um sistema logo uma ldquoimagem do mundo compreendida essencialmente natildeo quer por isso dizer uma imagem que se faz do mundo mas o mundo concebido como imagemrdquo (HEIDEGGER 1998 p 112)rdquo Soacute eacute possiacutevel ao ente ser ou seja existir na medida em que se dispotildee diante do sujeito cognoscente Eacute o proacuteprio ser de todo ente que eacute determinado procurado e encontrado no estar-representado [Vorgestelltheit] (HEIDEGGER 1998 p 113) A ruptura com os simulacros indica nesta perspectiva o engendramento de um primado da representaccedilatildeo Embora se nega a existecircncia de imagens ou duplos reais transportados materialmente ao ceacuterebro o que se sucede eacute a constituiccedilatildeo do proacuteprio mundo como imagem Haacute um mesmo processo pelo que simultaneamente o homem se faz sujeito [sub-jectum] e o mundo objeto [ob-jectum] Em outros termos embora a representaccedilatildeo natildeo seja um processo mimeacutetico em contrapartida ela se torna um mecanismo pelo qual se traz para diante de si ldquoo que-estaacute-perante enquanto algo contrapostordquo fazendo com que ele seja remetido ao que representa Logo percebemos neste processo a saber a conquista do mundo como imagem ldquoo processo fundamental da modernidaderdquo no qual ldquoo homem combate pela posiccedilatildeo na qual pode ser aquele ente que daacute a medida e estende a bitola a todo o enterdquo (HEIDEGGER 1998 p 117)

165

seu pensamento compreendemos a razatildeo de sua incursatildeo agrave glacircndula pineal

que na ciecircncia claacutessica seria substituiacuteda por uma ldquozona de associaccedilatildeordquo

Deste modo eacute possiacutevel encontrar no proacuteprio cartesianismo o

que seria uma possiacutevel superaccedilatildeo dos impasses nos quais ele mesmo se

colocara uma vez que mesmo que tenha possibilitado o realismo

cientificista segundo o qual a visatildeo soacute se faz possiacutevel por intermeacutedio do

ceacuterebro ainda na tentativa de romper com as ldquopequenas imagens que

volteiam pelo arrdquo Descartes chegara agrave conclusatildeo de que ao contraacuterio do que

se pensava natildeo eacute o olho que vecirc mas a alma (DESCARTES 1824a p 64) O

que isto significa Diraacute Merleau-Ponty ldquoeacute a alma que vecirc e natildeo o ceacuterebro eacute

pelo mundo percebido e suas estruturas proacuteprias que podemos explicar o

valor espacial atribuiacutedo em cada caso particular a um ponto do campo

visualrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 298) Eacute assim que conforme o filoacutesofo

ldquono que diz respeito agrave percepccedilatildeo a originalidade radical do cartesianismo

consiste em se colocar no proacuteprio interior dessa percepccedilatildeo em natildeo analisar

a visatildeo e o tato como funccedilotildees de nosso corpo mas lsquoapenas o pensamento de

ver e de tocarrsquordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 301) Conforme veremos a

seguir de certa forma esta ideia estaria presente na psicologia da Gestalt

fazendo com que Descartes houvesse de certo modo jaacute entrevisto a noccedilatildeo

moderna de consciecircncia servindo tambeacutem de inspiraccedilatildeo ao que iraacute

possibilitar a superaccedilatildeo kantiana do ceticismo e do realismo Nisto estaria

talvez aleacutem do que jaacute explicitamos ao tratar da imagem uma das

justificativas do retorno de Merleau-Ponty ao Cogito pensando ainda haver

nele apesar de suas dificuldades uma espeacutecie de ambiguidade que por sua

vez seria dissipada e silenciada no radicalismo do realismo cientificista e

isso no intuito de revisar a noccedilatildeo claacutessica de representaccedilatildeo mediante os

impasses que procuramos ilustrar com a questatildeo socraacutetica Mas como

ficaria em contrapartida o embate com o realismo Como o realismo se

posicionaria frente agraves questotildees levantadas por Merleau-Ponty em sua

descriccedilatildeo do Cogito Para o realismo grosso modo trata-se de seres

efetivamente transcendentes e dotados de uma existecircncia em si Teria o

realismo conseguido entatildeo resolver o problema Ora o retorno ao Cogito

nos deixa clara a insatisfaccedilatildeo de Merleau-Ponty com esta postura daiacute a

166

nossa pergunta se lhe eacute certo contudo como indicamos anteriormente

certos infortuacutenios do intelectualismo entatildeo por que natildeo uma incursatildeo ao

realismo

Antes de tudo o realismo natildeo se daacute conta do que constitui de

fato a questatildeo que tenta enfrentar nem se apercebe de que o que estaacute em

jogo em suas formulaccedilotildees e encontra-se nelas natildeo resolvido Deste modo

tambeacutem natildeo encontrariacuteamos nele a superaccedilatildeo da aporia socraacutetica Quais as

razotildees Ora se por um lado partimos do pressuposto de que o realismo

traga consigo a soluccedilatildeo do paradoxo levantado e por outro lado se o que

estaacute no fundamento deste uacuteltimo eacute a afirmaccedilatildeo de que as coisas satildeo

transcendentes isto implica tambeacutem que natildeo as possuiacutemos nem as

percorremos pois natildeo sabemos o que elas satildeo e afirmamos apenas a sua

ldquoexistecircncia nuardquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 423) Para Merleau-Ponty o

realismo seria na verdade compartilhando de seus mesmos prejuiacutezos a

outra face do intelectualismo ou melhor estariacuteamos diante por um lado de

intelectualismo racionalista e de outro de um intelectualismo realista ou

cientificista tratando-se sempre no final de um intelectualismo Sendo

assim ldquoque sentido haveria em afirmar a existecircncia de natildeo se sabe o querdquo

(Ibidem p 494) O embaraccedilo do realismo teria suas raiacutezes por conseguinte

no reducionismo da ldquoluz naturalrdquo agrave ldquoatualidade representadardquo atitude esta

que conforme Lachiegraveze-Rey natildeo poderia acarretar outra consequecircncia que

os impasses gerados pela aporia socraacutetica Natildeo seriam estes impasses que o

filoacutesofo tentou nos apontar cuidadosamente nas duras paacuteginas de La

Structure du comportement ao tratar dos problemas gerados pelo realismo

das ciecircncias Neste caso qual seria o parentesco deste realismo com o

pensamento cartesiano

Para Merleau-Ponty tanto na Dioptrique como no Traiteacute des

passions Descartes partiria de um ldquomundo jaacute prontordquo apenas em seguida

seriam inseridos o corpo e a alma havendo nisso um claro abandono da

existecircncia de ldquocoisas extramentaisrdquo tais como foram inseridas pelo realismo

logo a presenccedila de um direcionamento para uma descriccedilatildeo da experiecircncia

humana a partir de uma explicaccedilatildeo do que lhe eacute inerente e natildeo do que lhe eacute

exterior ou melhor nesta perspectiva natildeo haveria uma exterioridade a ditar

167

suas relaccedilotildees Por conseguinte a percepccedilatildeo natildeo seria um ldquoefeitordquo da

Natureza mas passaria a ser compreendida a partir de sua estrutura

interna a partir dos ldquo[] motivos que asseguram agrave consciecircncia ingecircnua que

ela tem acesso a lsquocoisasrsquo e que lhe permitem apreender num pedaccedilo de cera

um ser soacutelido para aleacutem das aparecircncias transitoacuteriasrdquo (MERLEAU-PONTY

2006 p 302) A partir disto Merleau-Ponty acentua as diferenccedilas entre a

ldquoduacutevida ceacuteticardquo e a ldquoduacutevida metoacutedicardquo Enquanto a primeira torna-se um

estado de incerteza insoluacutevel por centrar-se na existecircncia de coisas

extramentais a segunda por encontrar em si mesma aquilo que faz cessar

esta mesma duacutevida ldquo[] revela ao pensamento o domiacutenio indubitaacutevel das

significaccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 302) A questatildeo natildeo estaacute se a

aacutervore que vejo existe ou natildeo mas qual eacute o sentido desta operaccedilatildeo dado que

eacute certa minha existecircncia ou seja eacute a operaccedilatildeo de meu pensamento que faz

com que eu seja capaz de vecirc-la Logo

Desse ponto de vista a percepccedilatildeo natildeo podia mais aparecer como o

efeito em noacutes da accedilatildeo de uma coisa exterior nem o corpo como o intermediaacuterio dessa accedilatildeo causal a coisa exterior e o corpo definidos

pelo ldquopensamentordquo da coisa e pelo ldquopensamentordquo do corpo ndash pelo significado coisa e pelo significado corpo ndash tornavam-se indubitaacuteveis

tais como se apresentam para noacutes numa experiecircncia luacutecida ao mesmo tempo que perdiam os poderes ocultos que o realismo

filosoacutefico lhes confere (MERLEAU-PONTY 2006 p 303)

Em contrapartida eacute abandonando o recurso a construccedilotildees

meramente teoacutericas ou a simples epifenocircmenos que o proacuteprio fenocircmeno da

corporeidade eacute suscetiacutevel de ser compreendido quer dizer que a experiecircncia

de uma totalidade acima de tudo significante torna-se manifesta Mas natildeo eacute

este o procedimento da ciecircncia claacutessica Pelo contraacuterio tantos cientistas

quanto psicoacutelogos ldquo[] consideram a percepccedilatildeo e seus objetos proacuteprios como

lsquofenocircmenos psiacutequicosrsquo ou lsquointerioresrsquo funccedilotildees de certas variaacuteveis fisioloacutegicas

e psiacutequicasrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) Deste modo deparamo-nos

novamente com o realismo uma vez que ldquose entendemos por natureza um

conjunto de acontecimentos ligados por leis a percepccedilatildeo seria uma parte da

natureza o mundo percebido uma funccedilatildeo do mundo real das qualidades

168

primeirasrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) Seguindo este criteacuterio

entendemos a conclusatildeo de Merleau-Ponty ldquoa partir do momento em que

admitimos como quer o realismo que a alma lsquosoacute vecirc imediatamente por

intermeacutedio do ceacuterebrorsquo mesmo que esta mediaccedilatildeo natildeo seja uma accedilatildeo

transitiva ela obriga a procurar no corpo um equivalente fisioloacutegico do

percebidordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) O corpo entendido como mera

extensatildeo coisa entre as coisas natildeo estaria nas consequecircncias deste

princiacutepio algumas das referecircncias nas quais a psicologia claacutessica iria erguer

o arcabouccedilo teoacuterico de sua anaacutelise do corpo e do comportamento Mas a

questatildeo natildeo eacute tatildeo simples Como esta afirmaccedilatildeo poderia ser verdadeira se

pensamos estar Descartes justamente na antiacutepoda do realismo

A nosso ver aqui encontramos o elo que une La Structure du

Comportement e LrsquoŒil et lrsquoesprit a comeccedilar pelo tiacutetulo deste uacuteltimo Para

Merleau-Ponty sobretudo estaacute em jogo os desdobramentos que essa relaccedilatildeo

iraacute adquirir no intelectualismo da ciecircncia claacutessica e em nossa concepccedilatildeo de

homem Pensar as relaccedilotildees entre o olho e o espiacuterito significa pensar as

relaccedilotildees entre alma e ceacuterebro entre pensamento e ceacuterebro ndash certamente natildeo

eacute gratuita a semelhanccedila com o tiacutetulo e as questotildees discutidas em uma das

referecircncias de La Structure du Comportement Le Cerveau et la penseacutee de H

Pieacuteron ndash entre filosofia e ciecircncia Eacute assim que ele notaraacute a proximidade entre

esta concepccedilatildeo cartesiana de alma e os trabalhos dos gestaltistas assim

como por natildeo seguir as consequecircncias deste argumento a ciecircncia claacutessica

iraacute se afastar do que seria a intuiccedilatildeo originaacuteria do cartesianismo e se

perderaacute nas encruzilhadas especialmente na fisiologia claacutessica e suas zonas

de associaccedilatildeo de um pseudocartesianismo Aqui certamente somos levados

reconhecer que em LrsquoŒil et lrsquoEsprit aleacutem dos horizontes de uma discussatildeo

acerca da arte deparamo-nos com o projeto de uma ldquonova ontologiardquo aquela

mesma que ambicionava romper com o que se considerava ser os limites da

metafiacutesica claacutessica Logo natildeo eacute sem sentido que vaacuterios trechos de Lrsquoœil et

lrsquoesprit jaacute se encontravam nos cursos de Merleau-Ponty sobre a ontologia

cartesiana

Daiacute a importacircncia de reconhecer que a presenccedila da pintura neste

texto manifesta-se por haver ali a proposta de uma ontologia oposta agrave

169

metafiacutesica cartesiana Mais do que um simples elogio agrave arte ou o esboccedilo de

um tratado de esteacutetica o que encontramos eacute a recusa de uma metafiacutesca que

se fundamenta no divoacutercio entre o olho a visatildeo dos olhos nossa

corporeidade e o espiacuterito a intuitus mentis valendo o mesmo a nosso ver

para a visatildeo cientificista tanto em sua oposiccedilatildeo de ceacuterebro e pensamento

como tambeacutem na reduccedilatildeo da relaccedilatildeo existente entre eles agraves leis da

causalidade Eacute assim que encontramos nos uacuteltimos trabalhos de Merleau-

Ponty a retomada de algumas das questotildees que animaram La Sctructure du

comportement poreacutem neste horizonte vinculada a uma ldquofeacute perceptivardquo e na

nervura do imaginaacuterio a uma ldquofenomenologia da ausecircnciardquo

Pois eacute certo que vejo minha mesa que minha visatildeo termina nela que ela fixa e deteacutem meu olhar com sua densidade insuperaacutevel como tambeacutem eacute certo que eu sentado diante de minha mesa ao pensar na ponte da Concoacuterdia natildeo estou mais em meus pensamentos mas na ponte da Concoacuterdia e que finalmente no horizonte de todas estas visotildees estaacute o proacuteprio mundo que habito o mundo natural e o mundo histoacuterico com todos os vestiacutegios humanos de que eacute feito [] O que nos importa eacute precisamente saber o sentido do ser do mundo a esse propoacutesito nada devemos pressupor nem a ideia ingecircnua do ser em si nem a ideia correlata de um ser de representaccedilatildeo de um ser para a consciecircncia de um ser para o homem todas essas satildeo noccedilotildees que devemos repensar a respeito de nossa experiecircncia do mundo ao mesmo tempo que pensamos o ser do mundo (MERLEAU-PONTY 1992 p 17 18)

Pensando nestas palavras notamos portanto tambeacutem em Lrsquoœil

et lrsquoesprit a criacutetica merleau-pontiana agrave psicofisiologia que como nos

acentuava Lebrun nascia tambeacutem com a Dioptrique No entanto mesmo que

Lebrun tenha visto no cego do seacuteculo XVIII o nascimento da psicologia a

compreensatildeo do humano desligada da oacutetica pensamos que seguindo as

trilhas de Merleau-Ponty a ciecircncia do Pequeno Racionalismo ainda

permanecia tributaacuteria dos horizontes abertos pelo cego cartesiano Daiacute que

uma criacutetica inspirada em uma ldquoontologia da pinturardquo na encarnaccedilatildeo do

olhar a nosso ver tambeacutem implique uma criacutetica ao primado das relaccedilotildees

causais explicitadas pela ciecircncia claacutessica Cabe-nos todavia precisar o que

na leitura do filoacutesofo faz parte do pensamento cartesiano e aquilo que

pertence ao ldquopseudocartesianismordquo dos cientistas ou antes as dubiedades

que permeiam o proacuteprio cartesianismo propiciando agrave ciecircncia claacutessica retirar

170

dele o que melhor lhe convinha Tentemos entender primeiramente o que

seria este ldquopseudocartesianismordquo que serve de inspiraccedilatildeo para o realismo

das ciecircncias O ldquopseudocartesianismordquo dos cientistas para Merleau-Ponty

tem por fundamento o modo como eacute encarada uma espeacutecie de

ldquoocasionalismordquo presente em algumas paacuteginas da Dioptrique O problema

discutido por Descartes parece ser o mesmo que acompanha as Reacuteponses

aux Cinquiegravemes Objections ou o seu Traiteacute de lrsquohomme aleacutem do conhecido

recurso agrave ldquoglacircndula pinealrdquo tambeacutem presente no Traiteacute des passions de

lrsquoacircme Trata-se pois conforme jaacute indicamos da pergunta pelo modo

mediante o qual os objetos na consciecircncia podem ser considerados

realidades ou seja o que se procura satildeo os argumentos que nos

possibilitam falar da existecircncia de uma correspondecircncia entre as ideias que

se encontram no sujeito e as coisas que estatildeo fora dele Em outros termos

se a percepccedilatildeo eacute o resultado da accedilatildeo de uma coisa sobre o corpo e

consequentemente do corpo sobre a alma ndash dada a compreensatildeo do homem

como um composto de corpo e alma (DESCARTES 1996m p 139 ndash IIa Obj)

ndash resta saber como ldquo[] um duplo ou uma imitaccedilatildeo do real eacute suscitado no

corpo depois no pensamentordquo (MERLEAU-PONTY A Estrutura do

comportamento p 294) jaacute que ldquoeacute inicialmente o sensiacutevel o proacuteprio percebido

que instalamos nas funccedilotildees de coisa extramental []rdquo(MERLEAU-PONTY

2006 p 294)

A nosso ver eacute ali inclusive neste pseudocartesianismo dos

cientistas que se efetiva e se encarna a diplopia cartesiana que elucidamos

ao tratar da natureza Daiacute a ideia de uma separaccedilatildeo existente entre o ldquoqualerdquo

e o sensiacutevel a ideia de um ldquoqualerdquo capaz de trazer consigo ao mesmo tempo

uma pura impressatildeo e sua funccedilatildeo correspondente Logo ldquoconhecer eacute pois

sempre apreender um dado em certa funccedilatildeo sob certo aspecto lsquoenquantorsquo

ele me significa alguma estruturardquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 306) Deste

modo eacute justamente por natildeo ter radicalizado a criacutetica cartesiana agraves ldquoespeacutecies

intencionaisrdquo aos ei1dwla que encontramos na ciecircncia claacutessica os caminhos

pelos quais na verdade ele acabara se tornando mediante uma vivecircncia

empiacuterica um desdobramento do que haacute de equiacutevoco na compreensatildeo do

171

Cogito entendido agora tatildeo-somente como fundamento de uma ldquoconsciecircncia

intelectualrdquo logo novamente possibilitando o que viria a ser o

ldquooperacionalismo das ciecircnciasrdquo e seu esquecimento do mundo-da-vida

Consequentemente na encruzilhada que configura Descartes a ciecircncia

claacutessica se perde nos labirintos abertos pela noccedilatildeo cartesiana de causalidade

e suas ldquocausas ocasionaisrdquo encontrando o seu assento na necessidade de se

ldquo[] colocar no ceacuterebro alguma representaccedilatildeo fisioloacutegica do objeto percebidordquo

(MERLEAU-PONTY 2006 p 297) sendo tal necessidade ldquo[] inerente agrave

atitude realista em geralrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) Por

conseguinte nesta incursatildeo que sentido iraacute adquirir o realismo

Se haacute uma tese central que permeia as diversas modalidades de

realismo como jaacute salientamos seraacute provavelmente a crenccedila de que existam

objetos reais independentes de nossa consciecircncia O mundo existe em si e

por si mesmo sem o nosso consentimento quer pensemos nele ou natildeo quer

o percebamos ou natildeo Assim sendo mesmo quando em um realismo

ingecircnuo natildeo distingo os conteuacutedos de minha consciecircncia e o objeto

percebido ou estabeleccedila partindo da diferenccedila uma correspondecircncia entre

eles em um realismo naturalista mesmo quando separo em um realismo

criacutetico percepccedilatildeo e representaccedilatildeo tomando o cuidado para natildeo confundir as

determinaccedilotildees quantitativas do mundo verdadeiro com as subjetivas

qualidades que dele apreendemos mediante os nossos sentidos uma certeza

permanece haacute um mundo que me eacute absolutamente exterior No entanto se

pensamos nas contribuiccedilotildees das ciecircncias claacutessicas o realismo criacutetico cada

vez se distanciaraacute mesmo mantendo os mesmos fundamentos do realismo

ingecircnuo e quem nos adverte isto seraacute o proacuteprio psicoacutelogo ldquohaacute seacuteculos vaacuterias

ciecircncias em particular a Fiacutesica e a Biologia comeccedilaram a solapar a

confianccedila singela dos seres humanos no sentido de considerar este mundo

como a realidaderdquo (KOumlHLER 1968 p 10) O mundo deixa de ser aquilo que

vejo quando abro os meus olhos assim se estou em uma sala escura e um

foco luminoso atrai o meu olhar natildeo seraacute uma luz real que vejo mas uma

ldquoluz fenomecircnicardquo aquela que soacute existe em mim pois a ldquoluz realrdquo natildeo

passaria de um ldquomovimento vibratoacuteriordquo (MERLEAU-PONTY 2006 cap I) O

que nos fez a ciecircncia Continua o psicoacutelogo ldquo[] a ciecircncia teve de construir

172

um mundo objetivo e independente de coisas fiacutesicas espaccedilo fiacutesico tempo

fiacutesico e movimento fiacutesico e de afirmar que tal mundo natildeo aparece de modo

algum na experiecircncia diretardquo (KOumlHLER 1968 p 11) Quais as razotildees Eacute

que nem tudo o que percebemos pertence agrave coisa percebida logo haacute

elementos que devem ser postos na conta do sujeito Como se daria esta

distinccedilatildeo entre o que cabe ao sujeito e o que cabe ao objeto percebido

Vejamos

32 A psicologia claacutessica o objetivismo cientificista

Retomando uma tradiccedilatildeo galileana95 na experiecircncia do mundo

e seguindo a separaccedilatildeo intelectualista entre o ldquoqualerdquo e a ldquocoisa sensiacutevelrdquo eacute

possiacutevel fazer uma distinccedilatildeo entre aquilo que eacute absoluto e matematicamente

imutaacutevel e aquilo que eacute relativo por estar condicionado por uma flutuante

subjetividade presa agrave mediaccedilatildeo dos sentidos ou seja entre qualidades

primaacuterias e secundaacuterias Assim ldquoos elementos confusos e inconfiaacuteveis na

figuraccedilatildeo sensorial da natureza satildeo de algum modo efeitos dos proacuteprios

sentidosrdquo (BURTT 1991 p 67) pois ldquoeacute porque o quadro mental resultante

passou pelos sentidos que ele possui todas essas caracteriacutesticas confusas e

enganosasrdquo (BURTT 1991 p 67) Por conseguinte (KOumlHLER 1968 Cap I)

enquanto as qualidades secundaacuterias natildeo passam de meros efeitos dos

nossos sentidos as primaacuterias seriam as que na Natureza satildeo de fato reais e

quantificaacuteveis96 Esta dualidade da experiecircncia cujas raiacutezes ndash caso

95 Lembremo-nos do que nos diz o proacuteprio Galileu ldquo() natildeo acredito que os corpos externos para provocar em noacutes esses gostos esses cheiros e esses sons requeiram mais que o tamanho a figura o nuacutemero e o movimento vagaroso ou raacutepido e julgo que se os ouvidos a liacutengua e as narinas fossem suprimidas a figura os nuacutemeros e os movimentos certamente permaneceriam mas natildeo os odores nem os gostos nem os sons os quais sem o animal vivo natildeo creio que constituam mais que nomes assim como as coacutecegas natildeo satildeo nada mais que um nome se a axila ou a membrana nasal fossem suprimidasrdquo (GALILEU 1942 vol IV p 333) 96 Como nos adverte o Koyreacute ldquosoacute assim eacute que as limitaccedilotildees do empirismo aristoteacutelico puderam ser superadas e que o verdadeiro meacutetodo experimental pocircde ser elaborado Um meacutetodo no qual a teoria matemaacutetica determina a proacutepria estrutura da pesquisa experimental ou para retomar os proacuteprios termos de Galileu um meacutetodo que utiliza a linguagem matemaacutetica (geomeacutetrica) para formular suas indagaccedilotildees agrave natureza e para interpretar as respostas que ela daacute Um meacutetodo que substituindo o mundo do mais ou

173

tiveacutessemos um interesse etioloacutegico ndash encontrariacuteamos jaacute no pensamento grego

(Demoacutecrito e Platatildeo) constituiraacute o realismo das ciecircncias claacutessicas cujos

experimentos ao mesmo tempo serviratildeo de base para o proacuteprio realismo O

fundamento do que desde entatildeo seraacute considerado real especialmente para

as nascentes ciecircncias preocupadas em serem verdadeiramente ciecircncias ndash e

como tais dotadas de um saber rigoroso ndash natildeo seraacute outro que aqueles

tomados de empreacutestimo da fiacutesica claacutessica e de sua cientificidade ou melhor

do que constitui filosoficamente os princiacutepios de uma ldquofiacutesica matemaacuteticardquo

(HEIDEGGER 1998) Se acompanhamos atentamente as reflexotildees de La

Structure du comportement natildeo teriam sido a Fisiologia e Psicologia claacutessicas

quem melhor aprenderam esta liccedilatildeo Caso se duvide do filoacutesofo basta ouvir

mais uma vez a confissatildeo do proacuteprio psicoacutelogo

De fato se os cientistas verificaram ser o mundo simples

impermeaacutevel ao seu meacutetodo que melhor esperanccedila de ecircxito podemos acalentar como psicoacutelogos E uma vez que jaacute foi executada pelos

fiacutesicos a extraordinaacuteria faccedilanha de passar do mundo da experiecircncia

direta mas confusa para um mundo de clara e rude realidade

pareceria aconselhaacutevel para o psicoacutelogo tirar partido desse grande acontecimento na histoacuteria da ciecircncia e tratar de estudar a Psicologia

partindo da mesma base mais soacutelida (KOumlHLER 1968 p 10)

Do mesmo modo como nos acentua Kofka ldquoa moderna

psicologia cientiacutefica foi iniciada pela quantificaccedilatildeordquo (KOFKA 1980 p 25) e

as razotildees jaacute sabemos natildeo eacute apenas o meacutetodo mas tambeacutem o proacuteprio

conceito de realidade que eacute importado da fiacutesica claacutessica A psicologia

inspirava-se nos procedimentos da quiacutemica e da fiacutesica fazendo o seu ofiacutecio

pousar no isolamento de elementos e na descoberta tanto de suas leis

quanto de suas combinaccedilotildees A psicologia do seacuteculo XIX para dizermos com

Guillaume por conseguinte ldquo[] tinha tomado por tarefa a anaacutelise dos fatos

de consciecircncia ou das condutasrdquo (GUILLAUME 1979 p 1) Por sua vez a

fisiologia cumprindo bem o seu papel projetava no coacutertex cerebral as

mesmas relaccedilotildees causais que marcam o mundo fiacutesico fazendo do substrato

menos conhecido empiricamente pelo Universo racional da precisatildeo adota a mensuraccedilatildeo como princiacutepio experimental e fundamentalrdquo (KOYREacute 1991 p 74)

174

fisioloacutegico de nossa relaccedilatildeo com o mundo um ldquodepoacutesito de vestiacutegios

cerebraisrdquo um ldquocentro de imagensrdquo ou de ldquopercepccedilotildeesrdquo tal como expressa o

famoso exemplo da central telefocircnica Nesta perspectiva o organismo eacute

considerado a partir de um pretenso substrato mecacircnico que norteia as

relaccedilotildees orgacircnicas com o meio ele eacute o objeto que serve de cenaacuterio para uma

ldquoexperiecircncia sensorial particularrdquo que tem sua origem em ldquoacontecimentos

fiacutesicosrdquo Em meio a este processo o corpo eacute o uacutenico objeto que nos eacute

imediato Neste jogo ora o corpo eacute compreendido como uma coisa dentre

outras ora eacute compreendido como um encadeamento fenomecircnico regido por

princiacutepios de causalidade assim ldquosoacute temos conhecimento do organismo

como de todas as outras coisas fiacutesicas atraveacutes de um processo de inferecircncia

ou construccedilatildeordquo (KOumlHLER 1968 p 11) Como salienta Koumlhler ldquomeu

organismo reage ante a influecircncia de outros objetos fiacutesicos mediante

processos que mantecircm o mundo sensorial em torno de mim Outros

processos no organismo fazem surgir a coisa sensorial que chamo de meu

corpordquo (KOumlHLER 1968 p 11) O corpo eacute uma realidade em si uma mera

sub-stacircncia e ao mesmo tempo frente ao entendimento uma ob-stacircncia

Considerando o corpo como uma mera circunstacircncia do mundo a ciecircncia

claacutessica natildeo somente natildeo se deu conta de sua dignidade ontoloacutegica como

deixou escapar tambeacutem o proacuteprio fenocircmeno corporal e suas consequecircncias

metafiacutesicas Eacute por considerar o corpo uma simples extensatildeo que a psicologia

claacutessica se crecirc poder de iure classificar os comportamentos em superiores e

inferiores e poder constituir via a fisiologia claacutessica o comportamento

reflexo como a entidade atocircmica a partir da qual seria possiacutevel entender

inclusive os comportamentos ditos superiores Perde-se pois a

potencialidade de se entender a relaccedilatildeo autecircntica que se estabelece na

experiecircncia perceptiva entre o corpo e seu objeto haja vista que uma

conduta um movimento vital natildeo se explica mediante a superposiccedilatildeo de

reflexos elementares ou de uma forccedila vital

Deste modo a psicologia claacutessica iria cair nas armadilhas do

pensamento cartesiano assim como as ciecircncias do Pequeno Racionalismo

no justo momento em que tentando romper com a abstraccedilatildeo filosoacutefica

pensava tecirc-la superado Eacute contra isto que a ciecircncia moderna se levanta e o

175

faz tendo por referecircncia o que de certa forma jaacute nos assinalava Merleau-

Ponty apesar de entrevisto por Descartes natildeo fora radicalizado eacute a alma

que vecirc e natildeo o olho O que isto significa A compreensatildeo de que a visatildeo natildeo

eacute simplesmente uma operaccedilatildeo fisioloacutegica mas estruturada ao passo que

em Descartes a negaccedilatildeo da visatildeo dos olhos se dava no intuito de legitimar

uma visatildeo do espiacuterito O curioso eacute que deste modo esta ruptura da ciecircncia

moderna se torna possiacutevel justamente no momento em que o

pseudocartesianismo dos cientistas ndash logo uma questatildeo cartesiana ndash perde a

sua cidadania em prol da estrutura da experiecircncia de uma percepccedilatildeo que

natildeo desconsidera o seu fundo que eacute na verdade a percepccedilatildeo de uma figura

sobre um fundo Eacute assim que ldquoo interesse da Teoria da Formardquo diz Paul

Guillaume ldquoseraacute o de estabelecer uma uniatildeo inteligiacutevel entre os termos

estiacutemulo-resposta distantes entre si e mostrar como a constelaccedilatildeo objetiva

dos estiacutemulos condiciona a organizaccedilatildeo perceptiva e como esta se reflete na

organizaccedilatildeo da reaccedilatildeordquo (GUILLAUME 1979 p 2)

Nestas consideraccedilotildees vemos aparecer as duas caracteriacutesticas

fundamentais sob as quais se nos apresenta a noccedilatildeo de forma no horizonte

da psicologia contemporacircnea a totalidade e a organizaccedilatildeo A noccedilatildeo de

forma tal como aborda Koumlhler e Koffka apresenta as mesmas

caracteriacutesticas que jaacute Wertheimer anunciara na hora de defini-la como ldquoo

conjunto cuja conduta natildeo se determina pela conduta de seus elementos

individuais mas pela natureza interna do conjuntordquo (WERTHEIMER 1938

p 13)97 O caraacuteter de organizaccedilatildeo inerente agrave ldquoformardquo eacute fundamental na

tentativa de encontrar uma soluccedilatildeo ao problema do comportamento

explicado sob os auspiacutecios da fisiologia claacutessica98 A adoccedilatildeo da noccedilatildeo de

97 ldquoBut there is a third kind of aggregate which has been but cursorily investigated These are the aggregates in which a manifold is not compounded from adjacently situated pieces but rather such that a term at its place in that aggregate is determined by the whole-laws of the aggregate itselfrdquo 98 A compreensatildeo e a explicitaccedilatildeo do comportamento como totalidade e organizaccedilatildeo se tornara inclusive a tarefa que Kurt Goldstein autor muito caro a Merleau-Ponty assumira em suas pesquisas A metodologia goldsteiniana ao evidenciar o caraacuteter dogmaacutetico e infundado do programa behaviorista intenta a desconstruccedilatildeo de uma psicologia atomista que natildeo entenda a natureza humana senatildeo como um soma de fragmentos Como nos diz Goldstein ldquoSe um estudioso da natureza humana embasa seus estudos sobre resultados de uma ciecircncia determinada conta apenas com um ponto de partida nunca teraacute de alcanccedilar

176

forma para a teoria do comportamento adquire uma importacircncia radical ela

possibilita acentuar o dinamismo interno e a orientaccedilatildeo para a accedilatildeo que lhe

eacute inerente Em contrapartida a referecircncia agrave Gestalt no estudo do sistema

nervoso teraacute dado um passo aleacutem daquele da atitude geomeacutetrica atitude

proacutepria da psicologia claacutessica Superando no organismo um reducionismo a

relaccedilotildees causais torna-se possiacutevel o estabelecimento da noccedilatildeo de ldquoordemrdquo

como categoria descritiva e portanto capaz de uma compreensatildeo integral do

comportamento A razatildeo disso eacute que na forma cada momento se encontraraacute

determinado pelo conjunto dos outros e seu valor respectivo depende de um

estado de equiliacutebrio total cuja foacutermula eacute um caraacuteter que lhe eacute intriacutenseco

(MERLEAU-PONTY 1942 p 101 2006 p 97) Todavia embora aponte

caminhos para uma superaccedilatildeo dos entraves outorgados pela anaacutelise

atomista de Pavlov a Psicologia da Forma apresentava para Merleau-Ponty

alguns problemas que tambeacutem precisam ser revistos O fato de que a forma

possa ser definida como um processo de ldquofigura-fundordquo natildeo nos permite

caso sejamos consequentes agrave superaccedilatildeo filosoacutefica que nos traz integraacute-la ao

mundo fenomecircnico Para Merleau-Ponty eacute preciso levar ateacute as uacuteltimas

consequecircncias a noccedilatildeo de forma apontada pelos trabalhos da Gestalt O que

isto significa

A teoria da Gestalt tem por objetivo acima de tudo superar as

antinomias claacutessicas que foram produzidas pela psicologia ao fazer uso da

noccedilatildeo de causalidade Caso se queira de fato assim como eacute o interesse de

Merleau-Ponty estabelecer uma relaccedilatildeo entre consciecircncia e natureza

especialmente nos primeiros trabalhos eacute preciso superar tanto a distinccedilatildeo

feita pela psicologia claacutessica dos campos ldquoexteriorrdquo ldquointeriorrdquo e ldquomentalrdquo

quanto a reduccedilatildeo deles aos ditames da causalidade fiacutesica Como integraacute-los

uma resposta correta para seus problemas a partir do material de um soacute campo da ciecircncia se o organismo fosse uma soma de partes agraves quais fossem possiacuteveis de estudar em separado natildeo teria nenhuma dificuldade em combinar o conhecimento sobre as partes para constituir a ciecircncia sobre a totalidade Mas todas as tentativas feitas para compreender o organismo como um todo diretamente a partir desses fenocircmenos tiveram muito pouco ecircxito Eacute liacutecito concluir que essas tentativas natildeo foram frutuosas porque o organismo natildeo eacute uma soma de partesrdquo (GOLDSTEIN 1961 p 18) Essa atitude metodoloacutegica de Goldstein natildeo passara despercebida nas pesquisas de Merleau-Ponty Vaacuterias satildeo as referecircncias que o filoacutesofo lhe faz especialmente nos primeiros trabalhos

177

Nesse sentido a Psicologia da Forma apresenta a possibilidade de que a

noccedilatildeo de forma seja aplicaacutevel aos trecircs campos integrando-os como trecircs tipos

de estruturas e assim apontando uma superaccedilatildeo das antinomias do

materialismo versus espiritualismo materialismo versus vitalismo Por

conseguinte ldquomateacuteriardquo ldquovidardquo e ldquoespiacuteritordquo participariam de uma maneira

desigual na natureza da forma chegando a inserir diferentes graus de

integraccedilatildeo e ao mesmo tempo uma hierarquia na qual a individualidade se

realizava frente ao todo Como Merleau-Ponty se posicionara diante disto

Para ele encontra-se aiacute justamente o fracasso da Psicologia da Forma ou

seja ao dirigir-se a um caminho que natildeo aquele prometido por seus

primeiros passos O problema estaacute em que ela natildeo se pergunta pelo ser que

pode ter a forma e erra ao colocaacute-la no nuacutemero dos acontecimentos da

natureza Por fim seu fracasso estaacute por natildeo pensar segundo a forma

(MERLEAU-PONTY 2006 p 147) Seraacute preciso conforme Merleau-Ponty

encontrar uma filosofia da forma Logo natildeo se pode considerar o que

frequentemente se chama ldquomateacuteriardquo ldquovidardquo ldquoespiacuteritordquo como classes de ser

mas como ldquoordens de significaccedilatildeordquo da mesma estrutura (MERLEAU-PONTY

2006 p 147) Entendemos melhor esta postura do filoacutesofo se nos fizermos

as seguintes questotildees Haacute um objetivismo da estrutura ou seja ela eacute uma

realidade independente Caso seja uma coisa seria dada e verificaacutevel pela lei

da causalidade

Efetivamente a estrutura natildeo eacute nem uma ideia nem um objeto de

pensamento pois carece da determinaccedilatildeo precisa para secirc-lo Eacute mister

assinalar que o termo estrutura eacute um simples indicativo da organizaccedilatildeo

interna e da orientaccedilatildeo para o exterior do objeto concreto natildeo sendo

independente deste objeto assim como natildeo eacute por exemplo a sua cor A

estrutura estaacute pois longe de ser um elemento acidental do objeto assim

como tambeacutem uma substacircncia Logo eacute compreensiacutevel a afirmaccedilatildeo de que ldquoa

mateacuteria eacute pregnante de uma formardquo na qual estrutura e organizaccedilatildeo

expressam tatildeo soacute o que fora realizado tanto na forma quanto na mateacuteria

pela pregnacircncia A estrutura pois natildeo eacute um ei1dov [eidos] mas a expressatildeo

de uma ordem imanente aos objetos Soacute a tiacutetulo de ldquoordemrdquo a estrutura eacute

178

objeto de uma consciecircncia mas de uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo e natildeo

constituinte que o capta por intermeacutedio da unidade harmocircnica de seus

elementos assim como captamos uma melodia

Ora se por um lado a forma natildeo eacute uma instacircncia a priori mas

contemporacircnea ao objeto ela tambeacutem natildeo eacute algo a existir ldquoem sirdquo na

Natureza especialmente quando nos referimos agrave fiacutesica Ao falar de formas

em fiacutesica postula-se pelo contraacuterio a existecircncia de uma ordem e

organizaccedilatildeo natural na qual as noccedilotildees de estrutura e de lei se integram

como momentos dialeacuteticos Se eacute certo que o objeto da fiacutesica pois eacute a ordem

dos fenocircmenos ou a organizaccedilatildeo da natureza ao inveacutes da postulaccedilatildeo de uma

fusiv [physis]rdquo que fosse o ldquolugarrdquo das estruturas eacute certo tambeacutem que esta

ldquocerta transcendecircnciardquo da forma natildeo se constituindo como um elemento do

mundo eacute o ldquolimiterdquo para o qual tende o conhecimento fiacutesico (MERLEAU-

PONTY 2006 p 152) aquele mesmo que faz aparecer a forma como um

objeto da percepccedilatildeo (MERLEAU-PONTY 2006 p 155) Desde o momento em

que a forma deixa de ser compreendida como um ser da natureza e se

apresenta como unidade de significaccedilatildeo potildee em primeiro plano esta

originalidade que comportam as formas vitais frente os sistemas fiacutesicos

Efetivamente esta originalidade se molda no fato de que as estruturas

orgacircnicas satildeo aquelas nas quais ldquoo equiliacutebrio natildeo se obteacutem em relaccedilatildeo a

condiccedilotildees presentes e reais mas em relaccedilatildeo a condiccedilotildees soacute virtuais que o

sistema mesmo traz agrave existecircncia enquanto que o equiliacutebrio obtido na forma

fiacutesica eacute em relaccedilatildeo a condiccedilotildees exteriores dadasrdquo (MERLEAU-PONTY 2006

p 157)

Em seus uacuteltimos trabalhos no entanto mais do que a ldquoestruturardquo

ou a ideia de um ldquoconsciecircncia perceptivardquo tida em La Structure du

Comportement como fundante em relaccedilatildeo agrave consciecircncia representativa por se

originar no mundo percebido mais do que a ideia de que a consciecircncia

perceptiva seja solidaacuteria com o corpo-proacuteprio ou vivido na tentativa de

minimizar o papel constituinte da consciecircncia e outorgar agrave relaccedilatildeo ldquocorpo

sensiacutevelrdquo e ldquomundo sensiacutevelrdquo o poder de doar sentido que Husserl atribuiacutea agrave

179

consciecircncia transcendental tal como fora esboccedilado na Pheacutenomeacutenologie de la

perception seraacute a noccedilatildeo de ldquocarnerdquo e seu ldquoquiasmardquo como pudemos notar ao

tratar da representaccedilatildeo que receberaacute a atenccedilatildeo de Merleau-Ponty Assim

neste capiacutetulo pensando no pensamento cartesiano pudemos fazer um

itineraacuterio que nos colocou no intervalo de La structure du comportement e de

Le Visible et lrsquoInvisible No proacuteximo toacutepico faremos um percurso semelhante

e retomaremos este mesmo itineraacuterio ao tratar da pergunta pelo homem

Antes poreacutem cabe-nos nos indagar sobre o modo a partir do qual no

horizonte de uma ldquocriserdquo Merleau-Ponty iraacute compreender a tarefa da

filosofia assim como pudemos notar na elaboraccedilatildeo do conceito de ldquocarnerdquo e

na maneira como o filoacutesofo se aproximara de Descartes no fundo buscando

sempre elucidar a experiecircncia de um ldquoimpensadordquo Eacute assim que conforme

veremos o filoacutesofo iraacute utilizar este termo heideggeriano em sintonia com a

sua concepccedilatildeo de linguagem e expressatildeo segundo a ideia de que na

linguagem o que encontramos eacute sempre a experiecircncia de um desequiliacutebrio

uma superaccedilatildeo do significante pelo significado Deste modo segundo o

filoacutesofo o sentido surgiraacute sempre do excesso do significado em relaccedilatildeo ao

significante havendo sempre uma espeacutecie de devir na vivecircncia da

linguagem Daiacute este modo de traccedilar a partir de Descartes o que poderia vir

a ser uma certa etiologia da crise pois jamais conseguiremos esgotar o

sentido de uma obra filosoacutefica ela sempre seraacute indecifraacutevel cabendo-nos o

exerciacutecio de sempre retomaacute-la em busca de um novo sentido pelo simples

fato de que ldquo[] o irrefletido ao qual nos voltamos natildeo eacute o que antecede a

filosofia ou que antecede a reflexatildeo eacute o irrefletido compreendido e

conquistado pela reflexatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1990 p 53)

33 A tradiccedilatildeo intelectualista e seus cenaacuterios

A princiacutepio eacute inegaacutevel que a Crise possua um caraacuteter negativo

conforme vimos no primeiro capiacutetulo no horizonte de uma criacutetica

husserliana a um naturalismo das ciecircncias (HUSSERL 1993) O proacuteprio

Merleau-Ponty chega a falar de um ldquoestado de natildeo-filosofiardquo confessa

inclusive que ldquoa crise nunca foi tatildeo radicalrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p19)

180

chegando agrave afirmaccedilatildeo extrema de que ldquoem todo caso na Franccedila hoje

filosoficamente natildeo sabemos o que pensamosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996

p165) Mas o diagnoacutestico natildeo eacute novo lembra-nos a abertura de La Structure

du comportement quando se tentava traccedilar um retrato do cenaacuterio filosoacutefico e

cientiacutefico de sua eacutepoca e a constataccedilatildeo natildeo podia ser outra ldquoassim acham-

se justapostas entre os contemporacircneos na Franccedila uma filosofia que faz de

toda natureza uma unidade objetiva constituiacuteda face agrave consciecircncia e

ciecircncias que tratam o organismo e a consciecircncia como duas ordens de

realidade e em sua relaccedilatildeo reciacuteproca como lsquoefeitosrsquo e como lsquocausasrsquordquo

(MERLEAU-PONTY 1942 p 2) Eacute muito esclarecedora a indagaccedilatildeo que o

filoacutesofo faz logo a seguir ldquouma volta pura e simples ao criticismo seraacute a

soluccedilatildeo E uma vez feita a criacutetica da anaacutelise real e do pensamento causal

natildeo haacute aiacute nada de fundado no naturalismo da ciecircncia nada que

lsquocompreendidorsquo e transposto deva encontrar lugar em uma filosofia

transcendentalrdquo (MERLEAU-PONTY 1942 p 2) Se este estado de crise e de

ruiacutenas explicitam uma espeacutecie de ldquodoenccedila da razatildeordquo e se conforme Kant ldquoa

criacutetica da razatildeo pura eacute um profilaacutetico contra uma doenccedila da razatildeo que tem o

seu germe em nossa naturezardquo (KANT 2005 p 209 ndash Reflexatildeo 5073 de

1776-78 Ak 1879) e sendo assim ldquoeacute o oposto da inclinaccedilatildeo que nos

aprisiona a nossa terra natal (nostalgia) a aspiraccedilatildeo de deixar o nosso

ciacuterculo e nos relacionarmos com outros mundosrdquo (KANT 2005 p 209 ndash

Reflexatildeo 5073 de 1776-78 Ak 1879) qual seria a recusa de um ldquoretorno ao

criticismordquo

Uma reduccedilatildeo pura e simples ao ldquocriticismordquo para Merleau-

Ponty natildeo resolveria aquela reduccedilatildeo pura e simples operada pelo

cientificismo a um universo de entidades mensuraacuteveis e calculaacuteveis Do

mesmo modo a defesa de uma ldquofilosofia purardquo aquela que entenderia a

atividade do espiacuterito como a uacutenica capaz de nos dar as coisas tais como satildeo

em si mesmas natildeo seria menos problemaacutetica Pelo contraacuterio em Merleau-

Ponty como salienta Slatman ldquoa filosofia natildeo deveria se separar da

experiecircncia mas acompanhaacute-lardquo (SLATMAN 2001 p14) daiacute que na

ruptura com uma ldquotradiccedilatildeo intelectualistardquo o ldquoretorno agraves coisas mesmasrdquo

realizado pelo filoacutesofo se fundamenta ldquo[] em termos de uma transformaccedilatildeo

181

da transcendentalidade pura em uma transcendentalidade impura ou

lsquocontaminadarsquordquo (SLATMAN 2001 p 12)99 Se o intento de resoluccedilatildeo desses

impasses a partir de uma ldquotranscendentalidade impurardquo jaacute estaacute presente nos

primeiros trabalhos de Merleau-Ponty cada vez mais se faz manifesto nos

uacuteltimos o que nos pode levar a compreender a elucidaccedilatildeo da Crise

entendida na condiccedilatildeo de uma ldquotensatildeo criacuteticardquo dessas questotildees como

basilar na gecircnese de seus projetos Para isto basta ouvir o proacuteprio filoacutesofo ao

propor-se conforme podemos ver em seus projetos de curso um movimento

semelhante agravequele realizado pela Krisis (HUSSERL 1954) pensando

elaborar assim a primeira parte de Le Visible et lrsquoInvisible (MERLEAU-PONTY

1964a) ldquotoda primeira parte deve ser concebida de maneira muito direta

atual como a Krisis de Husserl mostrar nossa natildeo-filosofia depois buscar a

sua origem em uma Selbstbesinnung histoacuterica e em uma Selbstbesinnung

sobre nossa cultura que eacute ciecircncia buscaremos nelas os Winkesrdquo (MERLEAU-

PONTY 1964a p 237) Mas o que haacute na Krisis de Husserl que tanto encanta

Merleau-Ponty Haveria ali conforme procuramos indicar anteriormente a

confirmaccedilatildeo que o filoacutesofo buscava para a sua suspeita de que no que diz

respeito agraves ciecircncias o problema radica-se no fato de que ali encontramos

mais ldquometafiacutesica do que se desejaria explicitarrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b

p 25) natildeo seria a ruptura com o kantismo a partir da convicccedilatildeo de que

como nos ensina a Krisis ldquoo caminho que conduz agrave filosofia transcendental

parte de uma questatildeo-em-retorno (Ruumlckfrage)rdquo na qual se poderia pensar os

conceitos de Lebenswelt de Zusammenleben de Leiblichkeit assim como a

distinccedilatildeo conforme veremos no proacuteximo toacutepico entre Leib e Koumlrper

(HUSSERL 1954 p 123) Natildeo seria a abertura de uma ldquoquestatildeo retroativardquo

(Ruumlckfrage) na qual seria possiacutevel um retorno filosoacutefico ao mundo da

percepccedilatildeo nos movimentos de uma genealogia do objetivismo cientificista

Antes de tudo a nosso ver vale salientar que quando se trata

do criticismo antes de ser uma recusa direta de Kant o que se nega eacute a

99 ldquoNotre analyse ici est conduite par la conviction que toute la philosophie de Merleau-Ponty cherche agrave determiner une voie pour retourner aux choses mecircmes mais contrairement agrave la conception de Husserl cette philosophie nrsquoaboutit pas ni agrave une philosophie transcendentale pure ni agrave une philosophie eacuteideacutetiquerdquo (SLATMAN 2001 p 12)

182

versatildeo apresentada por Brunschvicg aquela mesma que de forma elogiosa

Politzer apresentava como ldquo[] talvez a mais bela tentativa de siacutentese e de

criacutetica integrais que a interpretaccedilatildeo de Kant veio a conhecerrdquo (POLITZER

1978 p 11) uma vez que

O kantismo surge como o evangelho da consciecircncia moderna como expressatildeo da chegada do reino da civilizaccedilatildeo verdadeiramente moderna como a afirmaccedilatildeo da autonomia da soberania teoacuterica e praacutetica da consciecircncia uacutenica fonte de normas como a primeira expressatildeo consciente e eneacutergica deste fato essencialmente moderno a reparticcedilatildeo dos valores da lei e dos valores da feacute (POLITZER 1978 p 11)

Talvez nesta recusa esteja a confirmaccedilatildeo daquele paradoxo que o

proacuteprio Politzer sente estar presente entre os leitores de Kant o paradoxo

segundo o qual natildeo compreenderaacute bem o pensamento kantiano quem

propriamente natildeo tenha se exercitado em um meacutetodo racional o meacutetodo

racional empregado pelo proacuteprio Kant Logo a incompreensatildeo estaria na

incapacidade de percorrer o caminho que o proacuteprio pensamento kantiano

teria trilhado daiacute o descreacutedito frente ao kantismo Para Politzer Brunschvicg

teria tido o sucesso em ldquoformular a teoria criacutetica em sua pureza e em sua

generalidaderdquo ao reconhecer a descoberta de um ldquopoder constituinterdquo ldquo[] de

uma capacidade de invenccedilatildeo intelectual de criaccedilatildeo cientiacutefica que brota da

consciecircncia segundo a ordem humana e natildeo da razatildeo segundo a ordem

divinardquo (POLITZER 1978 p 12) Eacute o que diraacute o proacuteprio Brunschvicg ao

entender o ldquopoder constituinterdquo da consciecircncia como

uma noccedilatildeo de alcance capital a de que o conhecimento cientiacutefico eacute algo original consistente por si soacute que natildeo se poderia compreender tomando como referecircncia um modelo exterior ou anterior um dado imediato da percepccedilatildeo ou a intuiccedilatildeo de uma realidade transcendente que por consequecircncia a inteligecircncia humana em relaccedilatildeo contiacutenua e indefinida com o que atraiacute e o que repugna na experiecircncia deve ser constitutiva de uma realidade positiva (BRUNSCHVICG Apud POLITZER 1978 p 56) [Neste sentido salientaraacute tambeacutem Politzer ao citar Brunschvicg como Fecircnix das cinzas do sistema caduco levanta-se] ldquoa verdade do meacutetodo transcendental que sobre a ideia criacutetica permite-nos fundar Prolegocircmenos natildeo mais em um sentido uacutenico exclusivo para a metafiacutesica kantiana da natureza mas seguindo uma interpretaccedilatildeo muito mais ampla e mais rica para a ciecircncia dos matemaacuteticos e fiacutesicos da atualidaderdquo (BRUNSCHVICG Apud POLITZER 1978 p 12)

183

Ora se o idealismo criacutetico pintado por Brunschvicg eacute tudo isto

que nos diz Politzer por que a Fecircnix do ldquomeacutetodo transcendentalrdquo natildeo

despertaraacute encanto algum em Merleau-Ponty A razatildeo talvez natildeo esteja no

meacuterito pelo qual se procurava ldquojulgar Kant segundo aquilo que fez pela

humanizaccedilatildeo ou pela autonomia espiritual da consciecircnciardquo (POLITZER

1978 p 13) mas justamente na ideia de ldquohumanizaccedilatildeordquo ou de possibilidade

de uma ldquoautonomia espiritualrdquo assim como a necessidade de uma escolha

radical que se deveria fazer entre o homo credulus preso aos valores da feacute e

o homo sapiens liberto pelos valores da lei Eacute neste sentido que natildeo

podemos desconsiderar uma raacutepida nota de La Structure du comportement na

qual o filoacutesofo parece querer se justificar ao usar o termo ldquocriticismordquo e negaacute-

lo ldquoPensamos aqui em uma filosofia como a de L Brunschvicg e natildeo na

filosofia kantiana que em particular na Criacutetica do juiacutezo [Kritik der

Urteilskraft] conteacutem indicaccedilotildees essenciais no tocante aos problemas que

estatildeo aqui em discussatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1942 p 223) O que estaacute em

questatildeo pois eacute uma filosofia de ldquoinspiraccedilatildeo criticistardquo a mesma que jaacute o

incomodava em seu Projet de travail sur la nature de la perception de 1933

Uma doutrina de inspiraccedilatildeo criticista trata a percepccedilatildeo como uma operaccedilatildeo intelectual pela qual os dados inextensos (as ldquosensaccedilotildeesrdquo) satildeo postos em relaccedilatildeo e explicados de tal sorte que acabam por constituir um universo objetivo A percepccedilatildeo assim considerada eacute uma ciecircncia incompleta eacute uma operaccedilatildeo mediata (MERLEAU-PONTY apud SAINT-AUBERT 2005)

Quanto a Brunschvicg natildeo vale lembrar que Kant entrara em

cena na Franccedila no momento em que decepcionados tanto com o

materialismo e o racionalismo quanto com o cientificismo muitos ali se

lamentavam por terem se esquecido do Absoluto Natildeo estaria nisto o

desconforto da ldquogeraccedilatildeo existencialistardquo em ter tido uma formaccedilatildeo que natildeo

ousava ultrapassar as leituras de Kant (DE BEAUVOIR 1972) Ora natildeo eacute

sem sentido que Merleau-Ponty afirme que juntamente com Bergson100

100

Vale salientar que para Merleau-Ponty a filosofia bergsoniana conduzia a outros caminhos embora o pensamento de Bergson natildeo fosse tatildeo conhecido por volta de 1930 Nos

184

Brunschvicg ocupa um papel central na formaccedilatildeo de sua geraccedilatildeo Qual a

razatildeo Conforme Merleau-Ponty era o fato de ser um ldquopensador

extraordinariamente cultivadordquo um intelectual natildeo preso apenas ao discurso

filosoacutefico mas capaz de dialogar com a ciecircncia ou com a literatura era isto

pois o que tanto seduzia em seu ensino Nisto poder-se-ia dizer

encontrava-se o seu ldquovalor pessoal extraordinaacuteriordquo No entanto Brunschvicg

era um idealista A filosofia que ensinava era sempre a de um retorno para

si a de uma reflexatildeo na qual o fundamento encontrava-se sobretudo na

atividade criadora do ldquoespiacuteritordquo uma vez que ldquoo universo da experiecircncia

imediata conteacutem natildeo mais do que eacute requerido pela ciecircncia mas menos pois

eacute um mundo superficial e mutilado eacute como diz Espinosa o mundo das

consequecircncias sem premissasrdquo (BRUNSCHVICG 1922 sect 35 p 70) Assim o

motivo pelo qual se aproximava da ciecircncia ou da literatura acabava por

comprometer o seu pensamento pois se centrava sempre na necessidade de

se descobrir como todos participam do ldquounordquo como as accedilotildees do homem se

apresentam como uma atividade criadora do espiacuterito uma vez que o ldquounordquo

indicava justamente o espiacuterito a razatildeo universal que estava presente em

todos Como acentua Merleau-Ponty neste pensamento ldquonatildeo haacute o seu

espiacuterito e o meu e o dos outros homens Natildeo haacute um valor de pensamento ao

qual participamos todos e a filosofia comeccedilava e terminava em suma com o

principais centros acadecircmicos franceses embebidos pelo racionalismo havia inclusive uma certa hostilidade ao bergsonismo Mas nem por isso sua filosofia deixaria de adquirir notoriedade Apresentando-se como uma opccedilatildeo em relaccedilatildeo ao cartesianismo ou ao kantismo natildeo representando absolutamente um idealismo Bergson optou em natildeo comeccedilar pelo cogito mas pelo que denominou de ldquodados imediatos da consciecircnciardquo ldquoquer dizer que eu me apreendo a mim mesmo para comeccedilar a tiacutetulo de primeira verdade em filosofia sim mas eu me apreendo natildeo como puro pensamento eu me apreendo como duraccedilatildeo como tempo Ora a anaacutelise a qual Bergson se dedicou em Matiegravere et Meacutemoire por exemplo mostra que se noacutes consideramos o tempo eacute preciso considerar no tempo em particular a dimensatildeo do presente E esta dimensatildeo do presente em Bergson desenvolve a consideraccedilatildeo do corpo e a consideraccedilatildeo do mundo exterior Ele definiu o presente como aquele sobre o qual noacutes agimos e agimos evidentemente por nosso corpo De modo que vocecirc vecirc de imediato que esta duraccedilatildeo sobre a qual Bergson chama a atenccedilatildeo a princiacutepio implicava uma relaccedilatildeo ao nosso corpo e uma relaccedilatildeo de algum modo inteiramente carnal com o mundo atraveacutes do corpordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 252-3) Para Merleau-Ponty Henri Bergson estabelece algumas das bases que viriam a constituir futuramente o existencialismo francecircs Poreacutem como natildeo chegara a ser lido suficientemente como deveria naquele periacuteodo o meio acadecircmico natildeo percebera que o que chegava de novo na Franccedila jaacute havia sido de certo modo entrevisto

185

retorno a esse princiacutepio uacutenico de todos os nossos pensamentosrdquo (MERLEAU-

PONTY 2000b p 251) Haacute nestas palavras um acordo inegaacutevel com as

seguintes palavras da Pheacutenomeacutenologie de perception

Enquanto eu sou consciecircncia ou seja enquanto alguma coisa tem sentido para mim eu natildeo estou nem aqui nem ali natildeo sou nem Pedro nem Paulo natildeo me distingo em nada de uma ldquooutrardquo consciecircncia visto que todos noacutes somos presenccedilas imediatas no mundo e dado que esse mundo eacute por definiccedilatildeo uacutenico sendo o sistema das verdades Um idealismo transcendental consequente despoja o mundo de sua opacidade e de sua transcendecircncia O mundo eacute isso mesmo que noacutes nos representamos natildeo como homens ou como sujeitos empiacutericos mas enquanto somos todos uma uacutenica luz e participamos do Uno sem dividi-lo A anaacutelise reflexiva ignora o problema do outro como o problema do mundo porque faz aparecer em mim com o primeiro lampejo da consciecircncia o poder de ir a uma verdade universal de direito e porque o outro sendo tambeacutem sem ecceidade sem lugar e sem corpo o Alter e o Ego satildeo um soacute no mundo verdadeiro elo de espiacuteritos (MERLEAU-PONTY 1945 p VI)

Para Merleau-Ponty a filosofia de Brunschvicg torna-se a

expressatildeo das diversas nuances do racionalismo e do idealismo que sua

ldquofenomenologia da percepccedilatildeordquo passaraacute a criticar e denominar como

ldquointelectualismosrdquo101 levando-se em conta a observaccedilatildeo de Saint-Aubert de

que na obra Les eacutetapes de la philosophie matheacutematique Brunschvicg teria

batizado a sua proacutepria doutrina como um ldquointelectualismordquo (SAINT-AUBERT

2005 p 61) A criacutetica ao intelectualismo e agraves doutrinas de ldquoinspiraccedilatildeo

criticistardquo que natildeo consideram a percepccedilatildeo senatildeo uma ldquooperaccedilatildeo intelectualrdquo

torna-se inclusive um modo indireto de afrontamento desta filosofia que se

fundamentava em uma definiccedilatildeo estreita de razatildeo em uma ldquofilosofia magrardquo

na qual se efetivava uma reduccedilatildeo de toda ldquometafiacutesicardquo a uma ldquoteoria do

conhecimentordquo (SAINT-AUBERT 2005 p 64) O que Merleau-Ponty natildeo

podia aceitar como nos lembra Saint-Aubert era justamente o que se

constituiria como aquilo que seu projeto filosoacutefico assumiria o compromisso

de desconstruir ldquoa concepccedilatildeo do espiacuterito como uma espeacutecie de lsquoprojetorrsquo cuja

atividade se resume por completo em lsquoconstruirrsquordquo (SAINT-AUBERT 2005 p

64) Em contrapartida o que procuraraacute Merleau-Ponty ao negar uma

101 Em outros termos a criacutetica a Brunschvicg indica sobretudo uma desaprovaccedilatildeo do criticismo um distanciamento de Kant Nos cursos sobre a Natureza esta questatildeo retorna

186

ldquorepresentaccedilatildeo estaacutetica do universo percebidordquo tal como eacute fornecido pela

ciecircncia pautada pelo intelectualismo seraacute a iniciativa de ldquo[] projetar sobre

o processo inconsciente da percepccedilatildeo a luz que fornece a anaacutelise clara e

distinta do desenvolvimento da ciecircnciardquo (MERLEAU-PONTY apud SAINT-

AUBERT 2005 p 66)

O intelectualismo ou como diraacute La Structure du Comportement

uma ldquofilosofia de inspiraccedilatildeo criticistardquo assumindo as consequecircncias do

cartesianismo seguiria em outra direccedilatildeo Natildeo haveria no conhecimento esse

ldquoco-noscererdquo [co-nascer] que eacute vivido pelo olhar uma vez que para tal seria

necessaacuterio que fosse transformado o modo como a proacutepria filosofia lida

consigo mesma e com o que constitui o foco de sua interrogaccedilatildeo ou melhor

o modo como iraacute encarar o que seria uma ldquoexperiecircncia da verdaderdquo

34 As ldquoruiacutenas do pensamentordquo e o ldquoconflito dos pontos de vistardquo a crise na compreensatildeo do humano

Wir leben in einer Ruinenlandschaft verfallener Ideale (FINK 1974 p 212)102

Ruiacutena eacute ruiacutena deve ficar Eacute que as ruiacutenas sempre foram mais eloquentes do que a obra remendada (SARAMAGO)103 Dans le monde lhomme est entreacute sans bruit (DE CHARDIN 1956)

341 O conflito dos pontos-de-vista na compreensatildeo do homem a compreensatildeo do intervalo do saber cientiacutefico e do saber filosoacutefico Ao falar em um de seus cursos sobre uma crise da racionalidade

que se estabelece nas ldquorelaccedilotildees entre os homensrdquo (MERLEAU-PONTY 1996

102 A nosso ver esta frase constantemente relembrada por Merleau-Ponty [Nous vivons dans des ruines de penseacutees] refere-se ao seguinte trecho ldquoWir leben in einer Ruinenlandschaft verfallener Ideale lange Abendschatten des Zweifels des Miszligtrauens des Skepsis und der Muumldigkeit dunkeln uumlber dem lsquoAbendlandrsquo Vielleicht war der Mensch noch nie sich so fragwuumlrdig obwohl noch kein Zeitalter den riesigen Wissensstoff besaszlig wie das unsrige in zahllosen speziellen Wissenschaften haben wir den Menschen ausgeforscht in Soziologie Ethnologie vergleichender Kulturkunde eine raffinierte Psychologie hat die Masken abgenommen mit denen das Menschenleben sich verlarnte hat die geheimen Hintergruumlnde und Abgruumlnde der Seele ausgeleuchtet Aber wissen denn damit wer wir sind was unser Ziel Bestimmung istrdquo (FINK 1989 p 212) 103 SARAMAGO J Viagem a Portugal Lisboa Editorial Caminho 1984

187

p 40) para Merleau-Ponty a questatildeo certamente se trata antes de se

perguntar pela ldquocompossibilidade dos homensrdquo pela ldquopossibilidade de uma

sociedade orgacircnicardquo Embora se trate de um conceito leibniziano a

compossibilidade eacute pensada neste curso a partir de Marx Neste capiacutetulo

contudo o nosso objetivo central natildeo seraacute o de tratar sobre o que levaraacute o

filoacutesofo a negar a filosofia ldquosocial claacutessicardquo a partir de uma reflexatildeo da

histoacuteria mas refletir pensando em uma frase de Teilhard de Chardin que

detivera a atenccedilatildeo de Merleau-Ponty nos cursos sobre La Nature o modo

como o homem se torna uma questatildeo filosoacutefica tendo-se em vista que no

mundo ldquoo homem entrou sem ruiacutedordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 334) Eacute

certo que no contexto em que surgira a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo era de

investigar as possibilidades do conceito de evoluccedilatildeo No entanto

encontramos nessa frase uma imagem que nos apresenta o modo mediante o

qual emergira no cenaacuterio contemporacircneo uma reflexatildeo acerca do homem

da noccedilatildeo de subjetividade e por conseguinte da noccedilatildeo fenomenoloacutegica de

corpo-sujeito Natildeo eacute sem sentido que em seu estudo acerca do problema

antropoloacutegico em Merleau-Ponty Bimbenet comeccedilara justamente com esta

frase (BIMBENET Nature et humanite Le probleme anthropologique dans lrsquooeuvre de

Merleau-Ponty p 9) Nesta perspectiva cabe-nos aqui nos perguntar tanto pelo

sentido que adquire em Merleau-Ponty a indagaccedilatildeo acerca daquele que

sem ruiacutedo adentrara o cenaacuterio do Mundo Moderno como tambeacutem pelo

caminho que eacute aberto por esta reflexatildeo pelas sendas de pensamento que nos

satildeo agora permitidas percorrer104

Em contrapartida a nossa intenccedilatildeo natildeo seraacute a de elucidar a

presenccedila em Merleau-Ponty da proposta e defesa de uma antropologia

Permanecendo no horizonte filosoacutefico o que esperamos explicitar eacute o modo

pelo qual a partir de uma criacutetica agrave metafiacutesica claacutessica e seus

desdobramentos em uma visatildeo cientificista de mundo ndash conforme vimos nos

104 Ora desde Foucault sabe-se que a pergunta acerca do homem tivera um de seus primeiros clarotildees em Kant Para alguns o problema antropoloacutegico poderiacuteamos dizer natildeo eacute novo na histoacuteria da filosofia Jaacute poderiacuteamos encontraacute-lo nos antigos A este respeito eacute suficiente fazer referecircncia agraves Comeacutedias de Terecircncio e a importacircncia que tiveram as suas peccedilas em especial o Heautontimoroumenos na gecircnese do humanismo renascentista Contudo a possibilidade de tal etiologia natildeo constitui no momento o nosso interesse

188

rebentos do que seria o Pequeno Racionalismo ndash Merleau-Ponty nos aponta

caminhos de compreensatildeo das relaccedilotildees do homem consigo mesmo e com o

mundo de tal modo que natildeo nos deixe escapar na aproximaccedilatildeo daquilo que

eacute o foco de nossa pesquisa este mesmo foco o proacuteprio fenocircmeno humano

Trata-se pois de uma descriccedilatildeo mas de uma descriccedilatildeo que nem por isso

limita-se a se dar unicamente nos contornos da tradiccedilatildeo filosoacutefica Neste

sentido compreendemos a razatildeo pela qual Merleau-Ponty natildeo hesita em

tornar parte de suas investigaccedilotildees agravequilo que de autecircntico a ciecircncia pode

nos ensinar agravequilo que independente de sua ἐπιστήmicroη [episteacuteme] daacute

mostras de ser mais condizente com a compreensatildeo de nossas experiecircncias

Qual a razatildeo No ponto de partida do filoacutesofo natildeo cabe a concisa separaccedilatildeo

entre fatos e ideias ou essecircncias O fato se daacute impregnado por sua essecircncia

esta natildeo se encontra oculta vedada pelo denso veacuteu do sensiacutevel no proacuteprio

sensiacutevel manifesta-se o inteligiacutevel logo a mateacuteria jaacute eacute graacutevida jaacute traz em si a

sua forma

Ora seguindo a proposta deste trabalho vale salientar que estas

perspectivas emergem na tentativa de lidar com as questotildees que

acompanham o sentimento de crise que procuramos elucidar nos capiacutetulos

anteriores em meio a uma experiecircncia de non-sens mediante o

enfrentamento dos domiacutenios da teacutecnica da perda do proacuteprio homem

assombrado pelas investidas do cientificismo Vaacuterios satildeo os contemporacircneos

de Merleau-Ponty que falam constantemente que apesar de suas

conquistas o homem perdera a si mesmo perdera o sentido de sua

existecircncia que apesar de seus avanccedilos nos desvendamentos dos enigmas do

universo perdera a chave que lhe possibilita decifrar o maior e mais

importante dos enigmas o de si mesmo105 E tal constataccedilatildeo torna-se quase

unacircnime nomeadamente o fato de ser tal situaccedilatildeo a consequecircncia de um

projeto frustrado de humanidade o qual encontra o seu solo o seu

105 Eacute o que parece nos dizer Koyreacute ldquoEacute nisto que consiste a trageacutedia do espirito moderno que lsquoresolveu o enigma do Universorsquo mas tatildeo-somente para substitui-lo por um outro lsquoo enigma de simesmorsquordquo (KOYREacute 1968 p 42-3)Contemporacircneo de Merleau-Ponty colega de Bachelard na Sorbonne lembremo-nos do sentido dessa frase de Koyreacute em sua leitura de Husserl

189

fundamento (Grund) nas desventuras da metafiacutesica este ldquodeusrdquo do ocidente

que ndash conforme a leitura heideggeriana de Nietzsche ndash revelava estar

perdendo as suas forccedilas ensaiava seus uacuteltimos suspiros Daiacute a sensaccedilatildeo de

natildeo se saber o que se pensa a vivecircncia de uma eacutepoca determinada por

ruiacutenas ruiacutenas de pensamentos Conforme procuraremos mostrar eacute neste

contexto que insurge a pergunta pelo homem ou melhor tal pergunta torna-

se filosoficamente suscetiacutevel de ser engendrada acompanhada de todas as

suas consequecircncias filosoacuteficas

Pensando nestas questotildees o nosso intuito neste capiacutetulo eacute

mostrar como elas repercutem seguindo as pegadas husserlianas que

nascem e se articulam nos horizontes de uma ldquocriserdquo em nosso modo de

compreender o que eacute proacuteprio do homem elucidando o modo pelo qual o

filoacutesofo iraacute enfrentar a ideia de uma ldquocrise da Razatildeordquo presente na

compreensatildeo do homem em outros termos procurando mostrar como esta

tarefa se harmoniza com o breve itineraacuterio etioloacutegico da noccedilatildeo de crise tal

como jaacute procuramos mostrar Caminharemos pois ndash tendo em vista o

itineraacuterio e background que justificam nossas escolhas ndash no intuito de

refletir como de uma ldquocrise do espiacuteritordquo passando por uma ldquocrise da Razatildeordquo

vislumbrando essa vivecircncia nas relaccedilotildees com a Natureza deparamo-nos

neste capiacutetulo em Merleau-Ponty com uma espeacutecie de ressignificaccedilatildeo da

ideia de crise a saber com uma crise ou mal-estar da Razatildeo que se origina

no conflito existente entre as visotildees ou os pontos de vista antinocircmicos que se

tem acerca do homem dito de outro modo com uma crise do olhar na

compreensatildeo do homem

Quando pensamos no mundo claacutessico seraacute a noccedilatildeo de sujeito

que melhor expressa os seus fundamentos Isto explica talvez por que esta

questatildeo acabara por ocupar tanto a atenccedilatildeo do pensamento moderno

mesmo que diferentemente de outras eacutepocas a sua intenccedilatildeo fosse

desconstruiacute-lo ou quiccedilaacute reduzi-lo a cinzas sob a eacutegide quer seja da

estrutura dos determinismos sociais ou bioloacutegicos quer seja inclusive do

Dasein ou do inconsciente Eacute assim que em outros termos o Cogito

cartesiano se tornou uma das paacuteginas mais visitadas pela filosofia do seacuteculo

190

XX e esta deacutemarche tal como tentamos explicitar no segundo capiacutetulo natildeo

fora diferente com Merleau-Ponty Conforme o filoacutesofo a maior dificuldade

seria pois encontrar uma concepccedilatildeo de homem que natildeo fosse cuacutemplice de

um simples humanismo naturalista ainda embaraccedilado com as categorias

claacutessicas e isto dado o ensejo de promover um retorno coerente a uma

experiecircncia concreta e autecircntica do mundo Neste sentido a fenomenologia

apontara para o filoacutesofo um meacutetodo eficaz que pudesse viabilizar seu projeto

de encontrar uma compreensatildeo do humano aqueacutem do cientificismo e do

racionalismo aqueacutem portanto da noccedilatildeo claacutessica de sujeito Eacute assim que

encontramos os diversos movimentos e nuances das primeiras obras do

filoacutesofo o seu enamoramento com o pensamento moderno especialmente a

ciecircncia e a arte a sua desaprovaccedilatildeo da ciecircncia claacutessica a sua rejeiccedilatildeo do

realismo e do intelectualismo que norteavam as reflexotildees da tradiccedilatildeo

filosoacutefica A subjetividade se torna uma questatildeo revisitada em um primeiro

momento na tentativa de reformulaccedilatildeo do Cogito cartesiano que nos levasse

agrave elucidaccedilatildeo de um Cogito taacutecito de um ldquosujeito encarnadordquo Diraacute Merleau-

Ponty em uma entrevista dada em maio de 1946 ldquoA Pheacutenomeacutenologie de la

perception tenta responder a uma questatildeo que eu me coloquei dez anos

antes e que eu acredito todos os filoacutesofos de minha geraccedilatildeo se colocaram

como sair do idealismo sem cair novamente na ingenuidade do realismordquo

(MERLEAU-PONTY 1997b p 66) Para Merleau-Ponty a filosofia precisava

se voltar para um mundo vivido e concreto que a cumplicidade natildeo

declarada de antinomias como a do realismo e do idealismo por exemplo

colocara agraves margens do pensamento Um retorno agrave existecircncia neste

contexto significava uma possibilidade de superaccedilatildeo uma vez que

transpostas para o homem ldquocontradiccedilotildees fundamentaisrdquo como as do ldquoserrdquo e

do ldquonadardquo do ldquosujeitordquo e do ldquoobjetordquo entre outras alcanccedilavam uma

possibilidade de siacutentese a partir de sua proacutepria antiacutetese

A pergunta pela ldquoexistecircnciardquo a reaccedilatildeo contra o idealismo a partir

de temas como o da ldquoencarnaccedilatildeordquo do ldquomundo sensiacutevelrdquo e da ldquohistoacuteriardquo natildeo

representavam para a geraccedilatildeo de Merleau-Ponty apenas um dos itens de

um manual filosoacutefico um conjunto de temas a mais para ser discutido em

aporias interminaacuteveis ou no engessamento de um meacutetodo preestabelecido

191

mas acima de tudo o arcabouccedilo de um novo modo de filosofar daiacute como

mostramos a sua resistecircncia a modelos de leitura filosoacutefica como os de

Gueacuteroult Este novo ldquoolharrdquo nascia da experiecircncia da ambiguidade e dos

equiacutevocos presentes em um aacuterduo e sofrido confronto da vida com o

pensamento sendo o contraacuterio tambeacutem verdadeiro O palco da histoacuteria natildeo

se permitia ser contemplado como um espelho das especulaccedilotildees filosoacuteficas

tal como se esperava As noccedilotildees idealistas de ldquonatureza humanardquo natildeo

conseguiam expressar os paradoxos vividos nas relaccedilotildees pessoais na

poliacutetica na histoacuteria A experiecircncia da guerra em contrapartida corroboraria

este desejo desnudaria e tornaria ilegiacutetima uma filosofia que se colocava

apenas em busca daquilo que seja capaz de revelar em tudo e em todos o

ldquounordquo o ldquoespiacuteritordquo Eacute o que expressa Merleau-Ponty em La guerre a eu lieu

Convidavam-nos a colocar em duacutevida a histoacuteria jaacute feita a reencontrar o momento em que a Guerra de Troacuteia poderia ainda natildeo acontecer e no qual a liberdade num soacute gesto esfacelaria as fatalidades externas Essa filosofia otimista que reduziu a sociedade humana a uma soma de consciecircncias sempre prontas para a paz e para a felicidade era a filosofia de uma naccedilatildeo dificilmente vitoriosa uma compensaccedilatildeo imaginaacuteria recordaccedilotildees de 1914 Sabiacuteamos dos campos de concentraccedilatildeo que os judeus eram perseguidos mas essas certezas pertenciam ao campo do pensamento Natildeo viviacuteamos em presenccedila da alternativa de sofrecirc-las ou enfrentaacute-las () Ao mesmo tempo em que o objeto de horror o anti-semitismo nos aparecia como misteacuterio e formados pela filosofia que nos formara todo dia durante quatro anos perguntaacutevamos como o anti-semitismo eacute possiacutevel Havia um uacutenico meio de evadir-se da questatildeo podia-se negar que o anti-semitismo fosse verdadeiramente vivido por algueacutem (MERLEAU-PONTY 1966 p 246 251)

Frente a esta confissatildeo uma conclusatildeo possiacutevel eacute a de que a

Weltanshaung de uma intelectualidade francesa confessadamente pautada

pelo idealismo natildeo conseguia dialogar com os fatos suscitados por uma

guerra natildeo conseguia compreender por exemplo a resistecircncia nem orientar

um posicionamento colaboracionista ou natildeo-colaboracionista Faltava um

retorno ao ldquoconcretordquo que servisse de auxiacutelio agraves tentativas de superaccedilatildeo do

idealismo pelos jovens franceses da deacutecada de 30 Eacute por isso que neste

cenaacuterio ao propor um retorno ao proacuteprio mundo agrave experiecircncia vivida a

fenomenologia parecia expressar que de repente para se sair da caverna

bastava apenas abrir os olhos Eacute assim que houvera uma certa simpatia por

autores como Husserl e Heidegger em suas tentativas de desconstruccedilatildeo de

192

uma consciecircncia substancializada ou como diria Sartre de um ldquoespiacuterito-

aranhardquo condenado a deglutir o mundo a tornaacute-lo um ser de sua proacutepria

substacircncia para somente assim poder conhececirc-lo (SARTRE Uma ideia

fundamental de Husserl a intencionalidade in SARTRE Situaccedilotildees I) Pelo

contraacuterio eacute preciso reconhecer que ldquoo homem existente natildeo pode ser

assimilado por um sistema de ideias por mais que se possa dizer e pensar

sobre o sofrimento ele escapa ao saber na medida em que eacute sofrido em si

mesmo onde o saber permanece incapaz de transformaacute-lordquo (SARTRE 1972

p 122) Eacute neste sentido que Merleau-Ponty como nos testemunha Sartre

() virava as costas para as pompas da filosofia e dizia que as verdades satildeo prostitutas que jamais ultrapassam ndash a natildeo ser na Greacutecia antiga ndash o umbral dos filoacutesofos Natildeo sei se ele ficou tatildeo entusiasmado quanto eu quando aprendi pela primeira vez aquilo que nossos mestres nos haviam escondido que se pudesse refletir sobre um lampiatildeo a gaacutes Mais humanista ele fez com que se abandonasse o lampiatildeo para deslocar a reflexatildeo para o homem que o acende Enquanto as luzes e as avenidas de Paris me fascinavam ele se fascinava com ldquoa verdadeira vidardquo com os sofrimentos e o cotidiano dos homens O que eles fazem desejam e vecircem (SARTRE 1972 p 152)

A compreensatildeo do homem a partir de seu fazer desejar e ver

assim como podemos vislumbrar nos trabalhos de Merleau-Ponty e de

autores considerados ldquoexistencialistasrdquo indica-nos paisagens de uma eacutepoca

sequiosa pelo ldquoconcretordquo pela ldquoexistecircnciardquo pela ldquovidardquo Voltar para o homem

que acende o lampiatildeo significa romper com toda uma tradiccedilatildeo filosoacutefica que

preferira os ldquoespectrosrdquo e os ldquofantasmasrdquo do mundo das ideias de um ldquoCeacuteu

imaginaacuteriordquo ao inveacutes dos homens concretos no cotidiano de suas vidas

Compreender como ensinava a fenomenologia husserliana a consciecircncia

como intencionalidade significava naquele momento regressar a uma

experiecircncia anterior ao pensamento a uma unidade primordial e

indissoluacutevel entre o homem e seu mundo o homem e seus companheiros de

ldquocarne e ossordquo ou como indicaria Levinas o anuacutencio do que seria a ldquoruiacutena

da representaccedilatildeordquo uma ldquosuperaccedilatildeo da intenccedilatildeo na proacutepria intenccedilatildeordquo a

recusa da ilusatildeo de que o objeto estaria condenado a ser ldquoa todo instante tal

como o sujeito pensa atualmenterdquo (LEVINAS 1997) Como acentua Sartre o

que se negava era um ldquoidealismo oficialrdquo em nome do ldquotraacutegico da vidardquo logo o

193

que deveria chamar a atenccedilatildeo filosoacutefica deveriam ser os ldquohomens reais com

seus trabalhos e suas penasrdquo

Todavia ao contraacuterio de um humanismo romacircntico a pergunta

pelo homem que acende o lampiatildeo revelava em consequecircncia uma pergunta

pela histoacuteria e suas ambiguidades suas sombras e suas luzes uma vez que

ldquoo movimento das ideias soacute consegue descobrir verdades respondendo a

alguma pulsaccedilatildeo da vida interindividual e toda mudanccedila no conhecimento

do homem tem relaccedilatildeo com uma nova maneira pessoal dele de exercer sua

existecircnciardquo (SARTRE 1972 p 152) Assim

Se o homem eacute o ser que natildeo se contenta em coincidir consigo como uma coisa mas que se representa a si mesmo se vecirc se imagina oferece a si mesmo siacutembolos rigorosos ou fantaacutesticos fica bem claro que em contrapartida qualquer mudanccedila na representaccedilatildeo do homem traduz uma mudanccedila do proacuteprio homem (MERLEAU-PONTY 1991 p 254)

Das cinzas de uma ldquocrise do espiacuteritordquo parece emergir uma

verdadeira ldquocrise do homemrdquo O que eacute o homem Se eacute verdade o que nos diz

Merleau-Ponty que para melhor compreendermos o homem enquanto

questatildeo filosoacutefica precisariacuteamos evocar ldquo[] toda a histoacuteria deste meio

seacuteculo com seus projetos suas decepccedilotildees suas guerras suas revoluccedilotildees

suas audaacutecias seus pacircnicos suas invenccedilotildees suas fraquezas []

(MERLEAU-PONTY 1991 p 254) eacute verdade tambeacutem que todas essas

questotildees por sua vez apenas adquirem sentido se remetidas a investigaccedilatildeo

de como ali o humano fora compreendido o modo como ldquosem ruiacutedordquo o

homem adentrara o pensamento moderno Poreacutem vale salientar natildeo se

trata da constataccedilatildeo ou rememoraccedilatildeo de um humanismo como impeacuterio do

humano Natildeo haacute aqui a legitimaccedilatildeo daquela ldquosubstituiccedilatildeo do teocentrismo

medieval pelo ponto de vista humanordquo do qual nos alerta Koyreacute (KOYREacute

1991 p 18) ao falar da presenccedila deste processo no discurso religioso em

meio agraves fronteiras do pensamento moderno jaacute nas margens de um

esgotamento do espiacuterito da Idade Meacutedia Natildeo se trata da emergecircncia de um

nova tese mas do reconhecimento de uma eacutepoca na qual tanto as teses

como as antiacuteteses acerca do homem acabam se mesclando em uma

associaccedilatildeo inteiramente nova por exemplo do materialismo e do

194

espiritualismo Seria pois o reconhecimento de uma ordem originaacuteria do

humano Ao menos por volta de 1900 o que poderiacuteamos encontrar no dizer

de Merleau-Ponty ainda seria apenas a sua reivindicaccedilatildeo ora presente na

compreensatildeo da humanidade como o momento ou o episoacutedio de um

processo evolutivo de uma vida decomposta em processos fiacutesicos ou

quiacutemicos ora presente na instauraccedilatildeo de uma condiccedilatildeo humana perpassada

ateacute mesmo por forccedilas ldquosobrenaturaisrdquo forccedilas que transcendiam a sua

proacutepria natureza

O retorno a existecircncia frente a essa histoacuteria que mais indicava

por fim uma das faces de uma autecircntica crise tratava-se justamente da

dissociaccedilatildeo radical entre uma real compreensatildeo do homem e a ideia de uma

ldquohumanidade de pleno direitordquo assim como as consequecircncias que uma tal

dissociaccedilatildeo traria consigo Neste sentido se o sentimento de uma crise pelo

que parece apontar as linhas acima indica para a geraccedilatildeo de Merleau-Ponty

um retorno ao ldquohomem concretordquo ao conflito existente na compreensatildeo da

relaccedilatildeo do homem consigo mesmo com o mundo e com a histoacuteria106 parece-

nos que dificilmente haveria uma adesatildeo a uma soluccedilatildeo de cunho

exclusivamente espiritualista ou agraves reflexotildees apontadas no primeiro

capiacutetulo do Hamlet valeriano e seus cracircnios ilustres dado que o proacuteprio

Hamlet ainda seria sobretudo um belo retrato do sujeito claacutessico Ora

nesta perspectiva a Pheacutenomeacutenologie de la perception natildeo pode ser

simplesmente localizada no quadro de uma ontologia regional aquela dos

reinos ontoloacutegicos na qual ldquo[] Husserl era senatildeo o Josueacute pelo menos o

Moiseacutesrdquo (BEAUFRET 1976 p 127) Eacute claro que na Franccedila apesar das sutis

diferenccedilas107 Sartre e Merleau-Ponty fazem eco agrave obra husserliana ainda

marcada pelo valor dado agrave ideia de Constituiccedilatildeo Neste sentido segundo

106 O artigo de Merleau-Ponty ldquoO homem e a adversidaderdquo eacute um exemplo disso 107 Quanto a isso apontando as diferenccedilas que tivera a recepccedilatildeo de Husserl em Merleau-Ponty daquele ecoada em Sartre Beaufret nos diz que ldquo[] o livro de Sartre tem por eixo o primeiro Husserl o das Ideen cuja publicaccedilatildeo em 1913 eacute diz Sartre lsquoo grande acontecimento da filosofia anterior agrave guerrarsquo ao passo que Merleau-Ponty leu a Krisis isto eacute apoacuteia-se no Husserl de 1935 que tem vinte e dois anos a mais que o de Sartrerdquo (BEAUFRET 1976 p 128) Disso a compreensatildeo da Pheacutenomeacutenologie de la perception ldquo[] como uma trajetoacuteria arqueoloacutegica no campo do percebido agrave procura do lsquogecircnio perceptivo aqueacutem do sujeito pensantersquordquo (BEAUFRET 1976 p 128)

195

alguns inteacuterpretes haveria na Pheacutenomeacutenologie de la perception ainda

resquiacutecios de uma ldquofilosofia da consciecircnciardquo que o proacuteprio Merleau-Ponty natildeo

deixaria de lamentar futuramente Mas a intenccedilatildeo natildeo era simplesmente

descrever nossas vivecircncias O que haacute nisso de uma ldquofilosofia da

consciecircnciardquo Conforme Beaufret nos adverte ldquo[] no sentido de Husserl

[] descrever significa finalmente lsquoconstituirrsquo Merleau-Ponty por sua vez

teria podido dizer meu livro tem por finalidade lsquoconstituirrsquo a grande funccedilatildeo

realizante da consciecircncia ou percepccedilatildeo e seu correlativo noemaacutetico o

lsquopercebidorsquordquo (BEAUFRET 1976 p 128) Disto se poderia deduzir que o

filoacutesofo a partir de uma tarefa de constituiccedilatildeo do vivido assim como a

fenomenologia seria de fato omnium phoenomenum fidissimus interpres

(BEAUFRET 1976 p 128)108 Mas as coisas natildeo satildeo tatildeo simples a

Pheacutenomeacutenologie de la perception estaacute aleacutem de um mero ldquoreino ontoloacutegico das

origens absolutasrdquo A filosofia de Merleau-Ponty eacute uma fenomenologia

existencial que busca descrever o ambiente concreto no qual o sujeito

pensante se encontra em situaccedilatildeo Ele pretende nos levar a perceber o

mundo antes do conhecimento a ldquoretornar a este mundo anterior ao

conhecimento do qual o conhecimento sempre fala e em relaccedilatildeo ao qual

toda determinaccedilatildeo cientiacutefica eacute abstrata significativa e dependente como a

geografia em relaccedilatildeo agrave paisagem ndash primeiramente noacutes aprendemos o que eacute

uma floresta um prado ou um riachordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p III) visto

jaacute ser o nosso mundo carregado de sentido Conforme Rudolf Bernet

Na Pheacutenomeacutenologie de la perception Merleau-Ponty tenta esclarecer o sentido da distinccedilatildeo entre filosofia da natureza e filosofia do espiacuterito partindo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da existecircncia humana

(BERNET 1992 p 61) [Natildeo visualizando a ambiguidade apenas na histoacuteria o filoacutesofo a encontraraacute tambeacutem em nossa proacutepria estrutura ontoloacutegica o que demonstra sua negaccedilatildeo em compreendecirc-la a partir das dicotomias claacutessicas pois] [] eacute sem duacutevida atraveacutes do atestado de incapacidade do dualismo ontoloacutegico entre ldquoser em sirdquo e ldquoser para sirdquo ao descrever fenocircmenos mais correntes da existecircncia humana que Merleau-Ponty se converteu em pensador do entre-deux e ateacute mesmo da ambiguidade (BERNET 1992 p 59) [Desse modo] recusando uma forma da dialeacutetica que faz violecircncia aos fenocircmenos reduzindo-os todos a uma forma da oposiccedilatildeo dos contraacuterios e se engajando na via de um pensamento natildeo-hegeliano da diferenccedila

108 Traduccedilatildeo inteacuterprete fideliacutessimo de todos os fenocircmenos

196

tambeacutem foi levado a dar um novo sentido aos conceitos tradicionais da negatividade e da interrogaccedilatildeo Eacute este novo pensamento da diferenccedila e da negatividade que lhe permitiu propor uma anaacutelise ineacutedita dessa obra da liberdade que eacute a histoacuteria [] (BERNET 1992 p 59)

Neste sentido como jaacute tivemos a oportunidade de assinalar ao

nos voltar para o pensamento merleau-pontiano natildeo podemos nos esquecer

do peso que tivera em seu decurso saberes como a psicologia a fiacutesica a

biologia a fisiologia a psicanaacutelise entre outros Dentre estes no horizonte

da Pheacutenomeacutenologie de la perception a psicologia possui um papel especial

que pode ateacute nos levar a compreender os primeiros trabalhos do filoacutesofo na

perspectiva de um pensamento anfiacutebio Todavia poderiacuteamos nos indagar

haveria de ser vaacutelida a presenccedila da psicologia como um componente

importante na pesquisa filosoacutefica Que papel possui a psicologia na filosofia

de Merleau-Ponty Podemos pensar esta questatildeo a partir de duas

perspectivas Conforme a primeira haveria em Merleau-Ponty um

pensamento imaturo e seduzido pelo psicologismo que se oporia a um

pensamento mais ontoloacutegico fruto do encontro com a fenomenologia Na

outra perspectiva naquela em que ensaiamos compreender o filoacutesofo

haveria um desejo de estabelecer no fundo um diaacutelogo entre filosofia e

ciecircncia

Na primeira perspectiva seguindo especialmente as trilhas de

Sartre somos levados a concluir que Merleau-Ponty se aproximava da

psicologia apenas por ter ainda um pensamento juvenil e que esta

aproximaccedilatildeo inclusive seria futuramente lamentada109 Que conclusotildees

Sartre tiraraacute disto Conforme a oacutetica sartreana os trabalhos da psicologia

foram o primeiro machado usado por Merleau-Ponty para atravessar a densa

floresta dos problemas suscitados por uma filosofia voltada para a

existecircncia Contudo ldquo() com os gestaltistas e com os psiquiatras ele

109 Embora houvesse uma identificaccedilatildeo conforme indicamos anteriormente pelo fim que levaria os ex-colegas da Eacutecole Normale Supeacuterieure agrave filosofia a saber o desejo de partir do concreto de descobrir ldquoa verdade que habita as ruas e as faacutebricasrdquo109 Merleau-Ponty iria partir primeiramente dos trabalhos de autores como Weiszaumlcker Buytendijk Minkowski Gelb e Goldstein

197

avanccedilava sem teacutecnica e sem arte por instinto em direccedilatildeo lsquoagrave proacutepria coisarsquordquo

(SARTRE op cit p 152) Merleau-Ponty diante de certos impasses acabara

deparando-se com o medo do psicologismo o que o levaria agrave fenomenologia

Sartre natildeo tinha duacutevida de que ldquoo determinismo estatiacutestico dos psicoacutelogos

natildeo tinha nada a ver com esse esforccedilo cego ainda mas obstinado para

penetrar no fundo de si mesmo e assistir agrave gecircnese ndash ao menor piscar dos

olhos ndash do homem pelo homem e do mundo pelos homens []rdquo(SARTRE op

cit p 152) Foi assim que ele encontraria outro machado o da ldquointenccedilatildeordquo

Neste mesmo sentido poderiacuteamos dizer entatildeo que a filosofia de Merleau-

Ponty seria a tentativa fracassada de efetivaccedilatildeo conforme insinuaccedilatildeo de

alguns leitores como Kelkel (KELKEL 2002) do programa de uma

ldquofenomenologia psicoloacutegicardquo que Husserl aleacutem do anuacutencio natildeo fizera senatildeo

um esboccedilo

Ora o leitor atento sabe que de modo totalmente diverso a

Pheacutenomeacutenologie de la perception estaacute muito longe de ser o desenvolvimento

de uma ldquopsicologia fenomenoloacutegicardquo E para tal conclusatildeo natildeo precisariacuteamos

aguardar a descoberta em alguma gaveta do filoacutesofo em uma das Notes de

Travail na qual Merleau-Ponty corroboraria suas verdadeiras intenccedilotildees ao

dizer que antes de um tratado de psicologia o que se visava era sobretudo

uma ontologia (MERLEAU-PONTY 1992 p 228) Basta nos aproximar com

mais cuidado tanto das paisagens abertas pelo texto e das questotildees que

fazem parte de seu tecido quanto do modo como eacute feito cada um destes

movimentos A nosso ver a razatildeo deste descompasso eacute o mesmo que estaacute

presente nas leituras de Sartre Breacutehier e Alquieacute o mesmo que por sua vez

mostra-se ser um dos eixos centrais da filosofia de Merleau-Ponty a saber o

modo como satildeo encaradas as difiacuteceis relaccedilotildees entre o pensamento filosoacutefico e

o trabalho cientiacutefico Para tanto o seu pensamento fundamenta-se na

recusa de uma filosofia concebida seja como Erklaumlrung seja como

Begruumlndung o abandono de uma filosofia que assume por tarefa como jaacute

assinalado instalar-se em um ser a fim de construir os demais a partir dele

Eacute a ilusatildeo daquilo que o filoacutesofo chamaria de uma ldquofilosofia linearrdquo presa em

um ldquouacutenico centrordquo Um caminho de superaccedilatildeo se encontraria talvez em uma

ldquofilosofia circularrdquo que natildeo deixasse de se colocar a si mesma em causa e

198

acrescentemos que fosse suscetiacutevel de se estruturar em um ou vaacuterios

centros que fosse concecircntrica

Por conseguinte apesar da retoacuterica sartreana natildeo podemos

deixar de levantar algumas questotildees frente ao que dissera questotildees que

podem nos conduzir a uma outra perspectiva Assim em contrapartida

pensamos que apesar de toda ojeriza de Sartre agraves restriccedilotildees da psicologia

ele acabara de cometer um erro um tanto psicologista Tambeacutem seria difiacutecil

que fosse diferente Sartre encontrava-se proacuteximo demais de Merleau-Ponty

a sua leitura nos lembra a mesma que Zola fizera de Ceacutezanne A nosso ver eacute

preciso buscar um outro modo de ler a obra de Merleau-Ponty e neste

sentido somos seduzidos a inverter o olhar buscando pensar antes uma

ldquorepercussatildeordquo da obra sobre a vida do que uma ldquoinfluecircnciardquo da vida sobre a

obra (MERLEAU-PONTY 1966 p 15-16) A aproximaccedilatildeo merleau-pontiana

da psicologia se daacute no intuito de um projeto que posteriormente poderaacute

adquirir uma outra coloraccedilatildeo mas que a princiacutepio parte do desejo de

compreender as relaccedilotildees entre ldquoconsciecircnciardquo e ldquonaturezardquo ldquoprimeira pessoardquo

e ldquoterceira pessoardquo ldquofilosofiardquo e ldquociecircnciardquo para ver se entre ela e a filosofia

ainda eacute possiacutevel um diaacutelogo O filoacutesofo precisa saber dialogar com a ciecircncia e

a ciecircncia tambeacutem dialogar com o filoacutesofo Mas para isso eacute preciso

desconstruir toda uma tradiccedilatildeo que as apresenta ainda como rivais Eacute assim

que entendemos por exemplo a relaccedilatildeo que se estabelece entre La Structure

du comportement e Pheacutenomeacutenologie de la perception Nas palavras do proacuteprio

Merleau-Ponty

Nossos primeiros trabalhos publicados se dedicam a um problema que eacute constante na tradiccedilatildeo filosoacutefica mas que se colocou de uma maneira mais aguda a partir do desenvolvimento das ciecircncias do homem a ponto de conduzir a uma crise de nosso saber simultacircnea agrave de nossa filosofia Trata-se da discordacircncia entre a visatildeo que o homem pode ter de si mesmo pela reflexatildeo ou pela consciecircncia e a que obteacutem religando suas condutas a condiccedilotildees exteriores das quais elas dependem manifestamente Sob a primeira relaccedilatildeo o homem se apresenta como absolutamente livre Ele apenas pode reconhecer por verdade aquilo de que tenha consciecircncia Portanto eacute ele que daacute um sentido a todos os fatos que se lhe apresentam Ele constitui em uma autonomia absoluta todo ser e todo valor e nada pode vir de fora do sujeito pensante Esta perspectiva do homem sobre ele mesmo ou este contato consigo aparecem em grande parte dos filoacutesofos como absolutamente irrecusaacuteveis e vaacutelidas contra todo

199

argumento que se possa lhe opor Sunt quaeligdam quaelig quilibet debeat potius quam rationibus persuaderi (Descartes) E todavia desenvolveu-se todo um saber histoacuterico e psicoloacutegico do homem que o considera do ponto de vista do espectador estrangeiro e manifesta sua dependecircncia em relaccedilatildeo ao meio fiacutesico orgacircnico social e histoacuterico a ponto de fazecirc-lo aparecer como um objeto condicionado (MERLEAU-PONTY 2000b p 11)

Diante destas duas perspectivas acerca do homem Merleau-

Ponty percebe a impossibilidade de uma escolha radical Haacute uma dialeacutetica

constante entre o testemunho da consciecircncia110 e os olhares do espectador

estrangeiro Ao mesmo tempo o saber positivo se vecirc impossibilitado de negar

a validade do acesso que o pesquisador deve ter aos seus proacuteprios

pensamentos e o saber filosoacutefico incapaz de negar o fato de que ldquonosso

conhecimento de noacutes mesmos deve muito mais ao conhecimento exterior do

passado histoacuterico agrave etnografia agrave patologia mental por exemplo do que agrave

elucidaccedilatildeo direta de nossa proacutepria vidardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 12) A

tarefa do filoacutesofo se daacute no intuito de chegar agrave compreensatildeo de um homem

que se revela ao mesmo tempo sujeito e objeto Eacute claro que as criacuteticas

incisivas de Merleau-Ponty agrave ciecircncia claacutessica o convite a uma ldquopsicanaacuteliserdquo

110 Sobre este aspecto eacute interessante que a imagem utilizada pelo filoacutesofo seja retirada das Objectiones et Responsiones agraves Meditationes De Prima Philosophia especialmente nas Quintaelig Responsiones ldquoExistem certas coisas das quais cada um deveria experimentar por si mesmo mais do que ser persuadido por razotildeesrdquo [ldquoQuae postea de indifferentia voluntatis negas etsi per se manifesta sint nolo tamen coram te probanda suscipere Talia enim sunt ut ipsa quilibet apud se debeat experiri potius quam rationibus persuaderi tuque ocirc caro ad ea quae mens intra se agit non videris attendere Ne sis igitur libera si non lubetrdquo (DESCARTES 1996 l 19-20 ndash Ve Reacutep IV 3)] Por que essas palavras de Descartes servem de referecircncia para esse modo de compreender a razatildeo humana Vale lembrar que a resposta eacute dirigida especialmente agraves objeccedilotildees levantadas por Gassendi agrave Quarta Meditaccedilatildeo Dois argumentos centrais cruzam a nosso ver as objeccedilotildees de Gassendi a ideia de nada e o problema da liberdade (DESCARTES 1996g p 89-173 [182]) Frente a esses escolhos o que significa falar em um apud se experiri O que Descartes quer dizer ao falar de uma deacutemarche que natildeo se deixa levar por ldquorazotildeesrdquo Trata-se do que podemos entender aqui como a ldquoliberdade cartesianardquo tal como Sartre nos descreve ldquoDescartes que eacute acima de tudo um metafiacutesico toma as coisas pelo [] lado extremo a sua experiecircncia fundamental natildeo eacute a liberdade criadora ex nihilo mas principalmente a do pensamento autocircnomo que descobre pelas suas proacuteprias forccedilas relaccedilotildees inteligiacuteveis entre essecircncias jaacute existentes Eacute por isso que noacutes os Franceses que vivemos haacute trecircs seacuteculos agrave custa da liberdade cartesiana entendemos implicitamente por ldquolivre arbiacutetriordquo o exerciacutecio de um ldquopensamentordquo independente e natildeo tanto a produccedilatildeo de um ato criador e finalmente os nossos filoacutesofos assimilam como Allain a liberdade como ato de julgarrdquo (SARTRE 1968 p 282) Natildeo haveria nessa ldquoliberdade cartesianardquo a defesa de uma Razatildeo autocircnoma e absoluta a qual se encontra na gecircnese dessa Crise Natildeo estaria aqui desde jaacute a configuraccedilatildeo daquilo que se tornaria o fundamento dos intelectualismos tanto filosoacuteficos quanto cientiacuteficos Ao longo deste trabalho tentamos nos aproximar destas questotildees

200

rigorosa da ciecircncia natildeo perdeu o seu espaccedilo O diaacutelogo com a ciecircncia nasce

tendo em vista a ciecircncia moderna e a preocupaccedilatildeo filosoacutefica de natildeo promover

o renascimento de um ldquoconflito perpeacutetuordquo entre o saber empiacuterico e o

filosoacutefico tal como podemos visualizar nas desventuras do Pequeno

Racionalismo Com isso podemos entender os primeiros trabalhos de

Merleau-Ponty tambeacutem como uma revisatildeo da condiccedilatildeo humana longe dessas

dicotomias e consequentemente a descoberta de um ldquomeio comumrdquo da

filosofia e da ciecircncia que revelaria ldquo() aqueacutem do sujeito e do objeto puro

como que uma terceira dimensatildeo onde nossa atividade e nossa passividade

nossa autonomia e nossa dependecircncia deixariam de ser contraditoacuteriasrdquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 12) Eacute deste fundo que ecoa a confissatildeo do

filoacutesofo que nos ajuda a compreender as suas primeiras obras

Noacutes tentamos a princiacutepio um esforccedilo deste gecircnero no que concerne agraves relaccedilotildees entre o sujeito e as condiccedilotildees orgacircnicas de sua vida tocando em outros termos o problema tradicional das relaccedilotildees entre alma e corpo A percepccedilatildeo uma vez que eacute a junccedilatildeo de duas ordens devia tornar-se nosso tema e eacute sobre ela que versam nossos dois primeiros trabalhos publicados um La Structure du comportement considerando do exterior o homem que percebe e buscando liberar o sentido vaacutelido das pesquisas experimentais que o abordam do ponto de vista do espectador estrangeiro outro Pheacutenomeacutenologie de la perception situando-se no interior do sujeito para mostrar a princiacutepio como o saber adquirido nos convida a conceber suas relaccedilotildees com seu corpo e seu mundo e enfim por esboccedilar uma teoria da consciecircncia e da reflexatildeo que torne possiacuteveis estas relaccedilotildees (MERLEAU-PONTY 1975b p 13)

Os dois primeiros trabalhos de Merleau-Ponty natildeo satildeo obras

opostas Pelo contraacuterio elas satildeo complementares natildeo importando que o

autor tenha confessado isso por volta de nove anos apoacutes sua primeira obra

filosoacutefica Neste sentido natildeo se torna um contra-senso falar em um

horizonte ao mesmo tempo ontoloacutegico e fenomenoloacutegico comum a estas

duas obras filosoacuteficas como tambeacutem de um ldquomeacutetodordquo comum que as abraccedila

tal como revela o proacuteprio filoacutesofo nas linhas citadas acima Pensando nisto

neste ldquomeacutetodordquo de trabalho comum agraves duas obras Eacutetienne Bimbenet chega a

falar em Nature et Humaniteacute de um ldquomeacutetodo dos pontos de vistardquo (la

meacutethode des points de vues) que nortearia tanto La Structure du

comportement quanto a Pheacutenomeacutenologie de la perception No texto de 1942

Merleau-Ponty partiria do ldquoponto de vista do espectador estrangeirordquo ao

201

passo que no texto de 1945 ele privilegiaria o ldquoponto de vista da reflexatildeordquo

ou se preferirmos do ldquoobservador internordquo111 Mas natildeo seria isto uma

contradiccedilatildeo indaga Bimbenet Natildeo eacute de se achar estranho que no momento

em que o filoacutesofo se propotildee a compreender as relaccedilotildees existentes entre

ldquoconsciecircnciardquo e ldquonaturezardquo (MERLEAU-PONTY 1942 p 1) ele adote um

meacutetodo que acabe por cristalizar uma cisatildeo entre estes termos (BIMBENET

2004 p 36) Ao procurar compreender o uso destas expressotildees Bimbenet

descobre que ldquoespectador estrangeirordquo (spectateur eacutetranger) estaacute presente em

um texto (Le Moi le monde et dieu) de Pierre Lachiegraveze-Rey editado em 1928

no qual o autor falava de uma natureza que se revelava exterior a um sujeito

que por consequecircncia mostrava-se ldquoestrangeirordquo em relaccedilatildeo a ela As

coisas a natureza e todos os objetos existiriam apenas para este ldquoespectador

estrangeirordquo

Por outro lado a recusa de Marcel em seu Journal

meacutethaphysique em se colocar em uma ldquoatitude espetacularrdquo tatildeo atestada

pela filosofia antiga configurava tambeacutem o que se pode compreender por

aquela expressatildeo uma vez que poderiacuteamos entender que no fundo Marcel

se negava a ser um ldquoespectador estrangeirordquo diante do mundo o mundo era

a sua paacutetria Poreacutem seraacute em Bergson que compreenderemos melhor a

distinccedilatildeo destes pontos de vista ldquoquando a ciecircncia se coloca por fora da

coisa trabalhando sobre siacutembolos exteriores a ela a intuiccedilatildeo metafiacutesica se

define pelo contraacuterio como esta lsquosimpatia pela qual nos transportamos para

o interior de um objeto para coincidirmos com o que ele tem de uacutenico e

111 No entanto reconsiderando a leitura de Bimbenet de que haacute no filoacutesofo um jogo de pontos de vista articulado nas obras de 1942 e de 1945 no embate entre o ponto de vista do ldquoespectador estrangeirordquo e o ponto de vista da ldquoreflexatildeordquo e se pensamos agora esses pontos de vista a partir da dinacircmica dos movimentos proacuteximos aos de Husserl como indica Slatman entre uma ldquoarqueologiardquo e uma ldquogenealogiardquo como podemos entender a filosofia de Merleau-Ponty Seria a partir da identidade tanto do ponto de vista do ldquoespectador estrangeirordquo com o movimento arqueoloacutegico como do ponto de vista da reflexatildeo com o movimento considerado nas trilhas de Slatman como ldquogenealoacutegicordquo Parece-nos que natildeo haacute um simples paralelismo entre esses termos mas a indicaccedilatildeo de um modus philosophandi bastante sutil O movimento arqueoloacutegico eacute um movimento du dehors mas que em seu extremo possibilita uma desconstruccedilatildeo daquilo que um movimento du dedans o da reflexatildeo constitui equivocamente como fundamento Mas o que faz com que isso natildeo seja a simples defesa de um impeacuterio do Fora eacute o fato de que o inverso torna-se tambeacutem suscetiacutevel de ocorrer sem contudo esmerar um retorno a um sujeito abstrato

202

consequentemente de inexprimiacutevelrdquo (BERGSON) O ponto de vista do

ldquoespectador estrangeirordquo eacute o ponto de vista da ciecircncia do realismo

cientificista que ao buscar uma objetividade pura opotildee-se agrave intuiccedilatildeo

filosoacutefica Eacute nesta tensatildeo que Merleau-Ponty se localiza e aqui volta nossa

questatildeo anterior ao adotar estes posicionamentos Merleau-Ponty natildeo

legitima uma oposiccedilatildeo entre consciecircncia e natureza no momento em que se

propotildee a compreendecirc-la e superaacute-la O que o filoacutesofo quer dizer ao afirmar

que enquanto em La Structure du comportement partira do ponto de vista do

espectador estrangeiro ele se situava na Pheacutenomeacutenologie de perception no

interior do sujeito

Conforme Bimbenet o problema que se coloca para Merleau-

Ponty ao esboccedilar o seu projeto a partir de uma retomada de suas primeiras

obras eacute a compreensatildeo de que estes pontos de vista natildeo satildeo definitivos

Quando o filoacutesofo se posiciona em um horizonte estrangeiro agrave consciecircncia

em La Structure du comportement sua intenccedilatildeo eacute desconstruir

pacientemente os limites do realismo da ciecircncia Ele se propotildee a fazer isso

inclusive caminhando em direccedilatildeo ao ponto de vista da proacutepria consciecircncia

e uma vez situado ali ndash como se propunha a Pheacutenomeacutenologie de la perception

ndash fazer um mesmo movimento poreacutem em um sentido inverso Neste sentido

() as duas obras longe de legitimar a oposiccedilatildeo da consciecircncia e da natureza e de validar a oposiccedilatildeo das duas perspectivas sobre o homem natildeo fazem senatildeo partir de uma tal oposiccedilatildeo para melhor desqualificaacute-la uma parte do ponto de vista realista da natureza outro do ponto de vista reflexivo da consciecircncia mas eacute justamente para aproximar de uma maneira divergente o estranho meio onde a oposiccedilatildeo delas termina Eacute portanto uma mesma verdade um ldquomeio comumrdquo da consciecircncia e da natureza como do saber positivo e da filosofia que tentam colocar La Structure du comportement e a Pheacutenomeacutenologie de la perception Se elas natildeo tecircm o mesmo ponto de partida as duas obras tecircm em compensaccedilatildeo o mesmo ponto de chegada o meacutetodo eacute global e nos dois momentos complementares O ponto de vista do espectador estrangeiro caso sigamos todas as suas implicaccedilotildees acaba por retomar o ponto de vista da reflexatildeo a mesma exigecircncia descritiva mas tambeacutem a mesma inclinaccedilatildeo arqueoloacutegica prevalecem nos dois casos (BIMBENET 2004 p 36-7)

Neste sentido se assim entendermos as relaccedilotildees entre La

Structure du comportement e a Pheacutenomeacutenologie de la perception as relaccedilotildees

que se estabelecem entre elas e principalmente as paacuteginas desta uacuteltima

203

obra marcam e constituem um modo de filosofar a busca de uma regiatildeo

anterior agraves cisotildees agrave tematizaccedilatildeo de uma cisatildeo que nasce no interior do

proacuteprio Ser agrave gecircnese de uma filosofia da ldquoambiguidaderdquo do entre-deux

antes que de um simples ldquomeio termordquo ou de uma soma de partes Vaacuterias

vezes este procedimento se manifesta em Merleau-Ponty seja na busca de

uma ruptura com o idealismo que natildeo conduza ao realismo seja na

tentativa de ruptura com o subjetivismo filosoacutefico sem aceitar os dogmas de

um objetivismo da ciecircncia seja no enamoramento com a dialeacutetica que natildeo

implique uma paixatildeo por uma compreensatildeo atrapalhada da histoacuteria e seus

equiacutevocos seja na superaccedilatildeo do racionalismo que natildeo promova a simples

aprovaccedilatildeo de sua face intelectualista ou empirista etc

Ora pensando nestes pontos de vista acerca do homem a fim de

melhor compreendecirc-los vejamos como eles se efetivam em Merleau-Ponty

especialmente nos primeiros trabalhos Deste modo partiremos do

pressuposto de que os conceitos de ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoesquema corporalrdquo

estariam justamente nesta clivagem na tentativa de conciliar o ponto de

vista da ciecircncia e o ponto de vista da filosofia a explicitaccedilatildeo de duas

perspectivas complementares ou melhor de duas faces de uma mesma

experiecircncia O que Merleau-Ponty entende por ldquocorpo proacutepriordquo e por

ldquoesquema corporalrdquo Como iraacute apresentar em sua tentativa de

desconstruccedilatildeo do sujeito cartesiano a sua compreensatildeo da subjetividade

Vejamos

342 A encarnaccedilatildeo do sujeito e as faces da subjetividade encarnada ldquoesquema corporalrdquo e ldquocorpo proacutepriordquo

Se eacute possiacutevel pensar a subjetividade nos primeiros trabalhos de

Merleau-Ponty eacute justamente como subjetividade somaacutetica carnal

encarnada corporal Eacute neste sentido que ele nos falaraacute de um corpo que natildeo

eacute coisa mas tampouco eacute ideia libertando-se por esta via das antinomias

claacutessicas Eacute um corpo no mundo sempre em relaccedilatildeo Um corpo que escapa

assim dos limites do corpo imaginado pelo mundo claacutessico pela conversatildeo

cartesiana do mundo em ldquoespetaacuteculordquo Em contrapartida como ser

204

encarnado o sujeito passa a se encontrar constantemente mesclado com

as coisas com o mundo tornando possiacutevel uma intersubjetividade fundada

em uma experiecircncia corporal Corpo e psiquismo reuacutenem-se em uma mesma

experiecircncia original de acesso agraves coisas e ao proacuteprio ldquoeurdquo Com estas

ponderaccedilotildees Merleau-Ponty tanto nos mostra que o sujeito natildeo eacute um

espiacuterito puro uma substacircncia separada assim como tambeacutem que o corpo

como existecircncia encarnada natildeo eacute meramente uma ldquores extensardquo mas um

jogo vivido de significaccedilotildees O corpo eacute vivido e natildeo meramente um conjunto

de oacutergatildeos como um objeto funcional e apenas produtivo Sendo uma

subjetividade que se compreende no meio das coisas apesar disto o corpo

manteacutem as coisas agrave sua volta fazendo delas um prolongamento de si pois

tanto o corpo quanto o mundo satildeo feitos do mesmo estofo

Assim sendo este modo da subjetividade habitar o mundo

mediante o corpo equivale a assinalar que eacute a sua vida perceptiva que

assegura e garante a experiecircncia do conhecimento e conta como antecipaccedilatildeo

a toda noccedilatildeo de objeto desde o momento em que em virtude desta

experiecircncia realiza-se a abertura ao mundo A reflexatildeo transforma a

percepccedilatildeo em percepccedilatildeo refletida e eacute necessaacuterio admitir pois outra atitude

referida a uma espeacutecie sui generis de reflexatildeo que tomara nota de si e das

mudanccedilas produzidas sem anular as relaccedilotildees e laccedilos orgacircnicos existentes

entre a percepccedilatildeo e a coisa percebida Deste modo a partir de Merleau-

Ponty podemos dizer que se algueacutem adentrou sem barulho o cenaacuterio do

pensamento moderno pensando na epiacutegrafe deste capiacutetulo com certeza natildeo

fora um espiacuterito um sopro fantasmagoacuterico eteacutereo e universal nem muito

menos uma maacutequina de carne e ossos uma vez que ldquo[] fica cada vez mais

evidente que a encarnaccedilatildeo e o outro satildeo o labirinto da reflexatildeo e da

sensibilidade ndash de uma espeacutecie de reflexatildeo sensiacutevel ndash entre os

contemporacircneosrdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 294)

Ora estas consideraccedilotildees tornam evidente a existecircncia de uma

atividade simboacutelica (MERLEAU-PONTY 2006 p 163) que impossibilita a

consideraccedilatildeo da estrutura orgacircnica sob o ditado de uma lei ldquoas estruturas

orgacircnicas natildeo se compreendem por uma norma mas por um certo tipo de

accedilatildeo transitiva que caracteriza o indiviacuteduordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p

205

161) A presenccedila desta atividade orientada potildee em primeiro plano a tese que

Merleau-Ponty jaacute formulava no final de La Structure du comportement de que

todo o problema da percepccedilatildeo reside na compreensatildeo das noccedilotildees de

ldquoestruturardquo e ldquosignificaccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 240) O que isto nos

diz acerca do corpo nos primeiros trabalhos Abertamente dirigida contra as

posturas da fisiologia claacutessica e do behaviorismo Merleau-Ponty se esforccedilava

por elucidar que a forma e a mateacuteria da percepccedilatildeo satildeo aparentadas desde a

origem estando a mateacuteria como insinuamos anteriormente jaacute graacutevida de

sua forma Logo a siacutentese que compotildee os objetos percebidos natildeo eacute uma

siacutentese intelectual eacute uma siacutentese de transiccedilatildeo Ao contraacuterio de ser o fruto de

um ato intelectual que apreenderia o objeto ou como possiacutevel ou como

necessaacuterio na percepccedilatildeo ele eacute real ligado intencionalmente ao corpo A

percepccedilatildeo proporciona uma experiecircncia integral dos movimentos corporais

um ldquoesquema corporalrdquo muito mais aleacutem da simples soma de partes O que

seria este ldquoesquema corporalrdquo Efetivamente este conceito foi introduzido

pelos trabalhos de Henry Head (1926) e Paul Schilder (1951) Trata-se pois

de um termo nascido e utilizado especialmente pela neurologia no intuito

de informar o modo como a disposiccedilatildeo do corpo se apresenta no psiquismo

humano favorecendo a compreensatildeo de certos fenocircmenos patoloacutegicos que

no organismo podem apresentar distuacuterbios fisioloacutegicos neuroloacutegicos ou

mesmo psicoloacutegicos Ao se perguntar pelo ldquoesquema corporalrdquo o que visa

Merleau-Ponty eacute justamente contra certas posturas cientificistas explicitar

que natildeo haacute uma relaccedilatildeo causal entre nossa ldquoestrutura corporalrdquo e a

interioridade nascida do nosso contato com o mundo

O corpo se situa no mundo e nele constitui seu ponto de

referecircncia intencional Por esta natureza corporal os gestos as palavras os

silecircncios e os atos abrem sempre um campo inesgotaacutevel de significaccedilatildeo e de

intencionalidades O problema estaacute que a tradiccedilatildeo tanto filosoacutefica como

cientiacutefica acostumou-nos com uma consideraccedilatildeo parcial do corpo dada

uma compreensatildeo mecacircnica do organismo e de suas relaccedilotildees com o meio

Ora o corpo eacute examinado como coisa ora eacute examinado como fenocircmeno Mas

a natureza corporal eacute a de um conjunto composto por partes que se regem

por princiacutepios de causalidade Se partirmos da compreensatildeo cartesiana do

206

corpo como ldquoextensatildeordquo desembocaremos nos mesmos erros da psicologia

claacutessica ao colocar o corpo na condiccedilatildeo de base de sua investigaccedilatildeo

comportamental como fato como realidade em si Neste ponto

basilarmente concordam tanto o intelectualismo quanto o empirismo Diraacute o

filoacutesofo que ldquotanto o intelectualismo como o empirismo se datildeo por objeto de

anaacutelise o mundo objetivo que natildeo eacute primeiro nem segundo o tempo nem

segundo seu sentido um e outro satildeo incapazes de expressar a maneira

peculiar na qual a consciecircncia perceptiva constitui seu objeto Ambos

mantecircm sua distacircncia relativamente agrave percepccedilatildeo ao inveacutes de aderir-se a elardquo

(MERLEAU-PONTY 1945 p 34) Em outras palavras ambos consideram o

corpo como fato e esquecem seu sentido fenomenoloacutegico Do mesmo modo o

erro fundamental que Merleau-Ponty encontra nas posturas mecanicistas e

vitalistas estaacute precisamente no fato de esquecer a unidade significativa pela

qual o corpo se estrutura a fim de consideraacute-lo somente como um produto

real da natureza visto que a experiecircncia que temos do ldquocorpo proacutepriordquo faz

com este se nos apresente ao contraacuterio de um mosaico de sensaccedilotildees como

um fenocircmeno uma unidade de significaccedilatildeo Eacute neste sentido que notamos

na ldquopurificaccedilatildeordquo do conceito claacutessico de ldquoesquema corporalrdquo o

direcionamento de Merleau-Ponty aos trabalhos da ciecircncia moderna

especialmente os trabalhos de Goldstein Como Merleau-Ponty iraacute se

aproximar dos trabalhos de Goldstein O que eles lhe diratildeo sobre o

ldquoesquema corporalrdquo

Antes de tudo vale lembrar que a noccedilatildeo de ldquoesquema corporalrdquo

natildeo se daacute desvinculada do sentido atribuiacutedo aos fenocircmenos patoloacutegicos o

que nos ajuda a compreender a principal razatildeo pela qual encontramos na

Pheacutenomeacutenologie de la perception as indagaccedilotildees filosoacuteficas de Merleau-Ponty

acerca do patoloacutegico O peso que esta temaacutetica possui para Merleau-Ponty

manifesta-se principalmente nos vaacuterios momentos em que ele retoma por

exemplo os distuacuterbios patoloacutegicos do caso Schneider ou discute fenocircmenos

207

como a alucinaccedilatildeo112 Mas qual sua funccedilatildeo na compreesatildeo da corporeidade

A este respeito encontramos no proacuteprio Goldstein uma resposta

Noacutes tomamos como ponto de partida de nossas consideraccedilotildees os fenocircmenos que se manifestam em um homem atingido por lesotildees do coacutertex cerebral Noacutes escolhemos este material primeiramente porque pensamos ndash provavelmente com razatildeo ndash que eacute preciso atribuir uma significaccedilatildeo ldquocentralrdquo preeminente ao coacutertex cerebral Os fenocircmenos que se produzem quando ele foi lesado seratildeo portanto particularmente significativos para noacutes enquanto tentamos conhecer a essecircncia do homem Noacutes fizemos tambeacutem esta escolha porque ela nos permite demonstrar certas leis gerais da desintegraccedilatildeo funcional leis que importa conhecer para melhor conhecer o funcionamento do organismo (GOLDSTEIN 1951 p 15 2000 p 33)

A escolha de pessoas que sofreram uma lesatildeo no coacutertex cerebral

eacute significativa Eacute o modo de tentar compreender melhor a estrutura do nosso

organismo expresso na relaccedilatildeo entre suas partes A desintegraccedilatildeo funcional

para Goldstein possibilita a articulaccedilatildeo de um contra-argumento e de uma

resposta agrave compreensatildeo do organismo fragmentado em funccedilotildees

extremamente circunscritas e especializadas113 As suas famosas

experiecircncias em sobreviventes de guerra no entanto conduziratildeo a sua

pesquisa em outra direccedilatildeo Eacute assim que ele se posiciona contra ao que

chamou ldquomeacutetodo analiacutetico da ciecircnciardquo Eacute assim que propotildee uma leitura

holiacutestica do humano e de seus fenocircmenos uma vez que o ldquoordinaacuterio

aumentordquo de uma especializaccedilatildeo dos saberes cientiacuteficos a constituiccedilatildeo de

um meacutetodo ldquoatomiacutesticordquo embora tenha significado um certo enriquecimento

112 Poderiacuteamos pensar tambeacutem no modo como o filoacutesofo usa de seus estudos sobre os fenocircmenos patoloacutegicos para exemplificar discussotildees aparentemente distantes de uma compreensatildeo do corpo tais como o marxismo e a revoluccedilatildeo do proletariado (MERLEAU-PONTY 1945 p 201) 113 Lembremos que um ferimento cerebral em uma perspectiva claacutessica deveria liberar os diferentes automatismos do organismo o que traduziria no caso da sexualidade em um ldquo() comportamento sexual acentuado113rdquo Pelo contraacuterio frente agrave indiferenccedila de um paciente com ferimento cerebral agraves certos estiacutemulos sexuais como nos diz Merleau-Ponty ldquoa patologia potildee em evidecircncia entre o automatismo e a representaccedilatildeo uma zona vital em que se elaboram as possibilidades sexuais do doente assim como acima suas possibilidades motoras perceptivas e ateacute mesmo suas possibilidades intelectuais Eacute preciso que exista imanente agrave vida sexual uma funccedilatildeo que assegure seu desdobramento e que a extensatildeo normal da sexualidade repouse sobre as potecircncias internas do sujeito orgacircnico Eacute preciso que exista um Eros ou uma Libido que animem um mundo original decircem valor ou significaccedilatildeo sexuais aos estiacutemulos exteriores e esbocem para cada sujeito o uso que ele faraacute de seu corpo objetivordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 182)

208

teoacuterico acabara por trazer consigo diversos problemas para uma

compreensatildeo autecircntica da existecircncia humana (GOLDSTEIN 1961) Natildeo se

pode pensar o homem como uma simples soma de saberes fragmentados

pois ao contraacuterio do que pensa as metodologias atomiacutesticas ou analiacuteticas da

ciecircncia o organismo eacute um todo eacute uma unidade Sendo assim

Se o organismo eacute um todo e cada uma de suas partes funciona normalmente dentro deste todo entatildeo na experimentaccedilatildeo analiacutetica que isola as partes agrave medida que as estuda as propriedades e funccedilotildees de qualquer uma destas partes devem encontrar-se alteradas por seu isolamento do todo do organismo Portanto natildeo podem revelar o funcionamento destas partes na vida normal Satildeo inumeraacuteveis os fatos que provam como se altera o funcionamento de um setor de resultados de seu isolamento Se desejarmos utilizar os resultados de tais experiecircncias para compreender a atividade do organismo na vida normal (quer dizer como um todo) devemos conhecer em que forma essa condiccedilatildeo de isolamento modifica a funccedilatildeo e devemos levar em conta tais modificaccedilotildees (GOLDSTEIN 1961 p 19)

Goldstein compreende o organismo a partir da dinacircmica que se

estabelece entre figura e fundo Eacute a partir deste pressuposto que o ldquoesquema

corporalrdquo seraacute compreendido por Merleau-Ponty rompendo-se pois com a

fisiologia claacutessica No entanto como esta compreensatildeo se relacionaria com

aquilo que o filoacutesofo denomina ldquocorpo proacutepriordquo Gostariacuteamos de pensar esta

relaccedilatildeo seguindo as trilhas de Slatman (SLATMAN 2001 p 26-27) e de

Saint-Aubert (SAINT-AUBERT 2004 p 148 e seguintes) a partir da

repercussatildeo que tivera nos trabalhos do filoacutesofo as leituras dos ineacuteditos de

Husserl assim como a sua posiccedilatildeo frente a elas nomeadamente um aspecto

terminoloacutegico em particular114 Quando se trata dos textos husserlianos

lidos no original certamente duas palavras causam um certo desconforto agraves

liacutenguas que natildeo trazem consigo certas especificidades proacuteprias do alematildeo

como traduzir pois Leib e Koumlrper se para ambos apesar de suas nuances

significativas temos apenas o termo ldquocorpordquo como correspondente Neste

sentido talvez a liacutengua francesa consiga superar de certa forma esse

impasse pelo contraste dos termos chair e corps O que quer dizer as

114 A este respeito procuramos seguir as indicaccedilotildees de Slatmann Cf SLATMAN 2001

209

distinccedilotildees O termo Leib refere-se a um corpo entendido organicamente

vivido ou seja um corpo que eacute vivo que eacute ldquosomardquo115 Em contrapartida o

termo Koumlrper refere-se ao corpo entendido fisicamente como coisa material

O homem eacute neste sentido um ser leiblich [corpoacutereo] diferentemente da

pedra que eacute um ser koumlrperlich [corpoacutereo]

Na fenomenologia esta distinccedilatildeo se torna um pouco mais ampla

a ponto de acentuar o seu proacuteprio modo de abordagem do corpo humano em

sua radical diferenccedila do modo utilizado pela ciecircncia especialmente pelas

ciecircncias bioloacutegicas Assim qual seria o objeto da biologia O Koumlrper quer

dizer o corpo entendido como objeto de pesquisa aquele do qual podemos

dizer que temos a posse Na fenomenologia o corpo eacute antes compreendido

como Leib como uma intencionalidade encarnada aquele do qual dizemos

que noacutes mesmos somos A nosso ver nos primeiros trabalhos de Merleau-

Ponty a noccedilatildeo de ldquocorpo proacutepriordquo seraacute a sua compreensatildeo de Leib ao passo

que o conceito de ldquocorpo objetordquo ou ldquoesquema corporalrdquo estaraacute vinculado agrave

sua compreensatildeo de Koumlrper Por conseguinte ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoesquema

corporalrdquo adquirem no pensamento merleau-pontiano significados proacuteprios

que os distanciam do uso husserliano de Leib e Koumlrper116 Que significados

seriam estes Diferentemente de Husserl conforme vimos ao nos referir a

Goldstein Merleau-Ponty iraacute partir de um diaacutelogo com a ciecircncia moderna o

que o levaraacute a natildeo entender o ldquoesquema corporalrdquo como ldquoum resumo de

nossa experiecircncia corporalrdquo nem como um ldquocentro de imagensrdquo (MERLEAU-

PONTY 1945 p 114-5) nem tampouco como a consideraccedilatildeo que a Gestalt

possui de uma tomada de consciecircncia global tida no mundo intra-sensorial

Para o filoacutesofo esta expressatildeo eacute um pouco mais radical ela indica o nosso

115 Termo grego que no portuguecircs parece nos expressar melhor o termo alematildeo 116 Do mesmo modo quando nos uacuteltimos trabalhos a palavra Chair ganha cidadania no projeto merleau-pontiano seraacute bem outro o seu sentido expressando em primeiro lugar a relaccedilatildeo de incorporaccedilatildeo na qual Koumlrper Leib e Mundo encontram-se unidos em um mesmo tecido Em Le Visible et lrsquoInvisible Merleau-Ponty nos fala tambeacutem de ldquoum corpo sentienterdquo e de ldquoum corpo sensiacutevelrdquo como os dois lados de um mesmo corpo ldquo[] os dois lsquoladosrsquo de nosso corpo o corpo como sensiacutevel e o corpo como sentiente ndash o que outrora chamamos de corpo fenomenal e de corpo objetivo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 133) No entanto eacute versatildeo merleau-pontiana de Leib como ldquocorpo proacutepriordquo e Koumlrper como ldquoestrutura corporalrdquo que nos interessa neste momento

210

ser-no-mundo nossa abertura a ele nossa tensatildeo com ele (MERLEAU-

PONTY 1945 p 117) A introduccedilatildeo deste ldquoesquema corporalrdquo comporta

especiais ressonacircncias na teoria da percepccedilatildeo na medida em que permite

por um lado uma

oposiccedilatildeo ao movimento reflexivo que separa o objeto do sujeito e o sujeito do objeto dando-nos apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia e natildeo a experiecircncia do corpo ou o corpo na realidade Por outro lado tambeacutem eacute importante agrave teoria da percepccedilatildeo porquanto se articula como um lanccedilar do corpo proacuteprio em seu ser-no-mundo aquele de uma intencionalidade e da abertura do corpo que tem como base sua proacutepria espacialidade natildeo de posiccedilatildeo mas de ldquosituaccedilatildeordquo e que manifesta que o ldquouso que um homem faz de seu corpo [seja] transcendente [mesmo] ao olhar o corpo como ser bioloacutegico porque a simples presenccedila de um ser vivo transforma o mundo fiacutesico (MERLEAU-PONTY 1945 p 220-1)

Ora esta estrutura do ldquocorpo proacutepriordquo que percebemos atraveacutes

do ldquoesquema corporalrdquo e que se nos mostra como fonte de significaccedilatildeo eacute a

base para uma anaacutelise ontoloacutegica do corpo Os elementos fundamentais

deste esquema seratildeo indubitavelmente aqueles elementos estruturais da

proacutepria existecircncia ou seja a espacialidade e a motricidade O valor do

ldquoesquema corporalrdquo radica no importante papel que desempenha esta

espacialidade e esta motricidade que em outras palavras vecircm a significar

situaccedilatildeo e accedilatildeo Sem uma ancoragem corporal e sem uma inclinaccedilatildeo ou

tendecircncia do corpo para a coisa a percepccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Todavia

natildeo nos equivoquemos entre ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoestrutura corporalrdquo natildeo haacute

uma dualidade talvez no maacuteximo o jogo dos ldquopontos de vistasrdquo em relaccedilatildeo a

um mesmo foco tal como Bimbenet nos assinala (BIMBENET 2004 p 36-

7) Pensar o ldquocorpo proacutepriordquo implica para o filoacutesofo pensar uma realidade

estrutural Procurando desconstruir o cientificismo do tipo behaviorista

claacutessico e o idealismo cartesiano como jaacute indicamos a noccedilatildeo de um

comportamento que se daacute tatildeo-somente de modo estruturado soacute pode nos

apontar uma experiecircncia corporal um ldquoesquema corporalrdquo mediante o qual

percebemos o mundo temos acesso a ele Daiacute a consideraccedilatildeo existencial do

ldquocorpo proacutepriordquo como uma intencionalidade encarnada e espacial que

revelando-se ser um verdadeiro pivocirc expressa uma unidade de significaccedilatildeo

em sua constante transcendecircncia rumo a um mundo inesgotaacutevel A nosso

211

ver na interpretaccedilatildeo que Merleau-Ponty faz do membro fantasma na

Pheacutenomeacutenologie de la perception ajuda-nos a melhor compreender o modo

como ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoesquema corporalrdquo satildeo perspectivas entrelaccediladas a

nos revelar na experiecircncia do corpo uma unidade de fato e essecircncia O que

ela nos diz

Para Merleau-Ponty o importante deste fenocircmeno eacute o que pode

nos dizer acerca de como o nosso ldquoesquema corporalrdquo expressa o modo como

vivemos o nosso corpo Todavia uma leitura meramente fisioloacutegica natildeo eacute

suficiente pois nos limitariacuteamos agrave persistecircncia de ldquoestimulaccedilotildees

interoceptivasrdquo De imediato uma questatildeo crucial exige a atenccedilatildeo do filoacutesofo

como explicar o fato de que mesmo anestesiado o paciente continue a

sentir o membro que lhe fora amputado Como explicar tambeacutem aqueles

casos em que esta experiecircncia ocorre sem que tenha havido uma

amputaccedilatildeo Como salienta Merleau-Ponty uma explicaccedilatildeo perifeacuterica do

membro fantasma apresenta vaacuterios problemas Todavia natildeo se pode dizer

que uma explicaccedilatildeo central que postulasse a origem da sensaccedilatildeo na

conservaccedilatildeo de ldquotraccedilos cerebraisrdquo tambeacutem seja suficiente Frente agrave

impossibilidade de uma leitura fisiologista pensa Merleau-Ponty natildeo basta

recorrer a uma leitura psicologista aquela que pautando-se na anosognose

veria naquela experiecircncia uma simples negaccedilatildeo do paciente em se aceitar

com um membro mutilado O erro desta leitura no entanto encontra-se em

desconsiderar o substrato fisioloacutegico do paciente o fato de que uma secccedilatildeo

em seus nervos pode afetar sua percepccedilatildeo ilusoacuteria do membro Neste

sentido o problema natildeo estaria apenas na presenccedila indevida de uma

representaccedilatildeo Da mesma forma uma simples adiccedilatildeo das perspectivas

fisioloacutegicas e psicoloacutegicas tambeacutem natildeo seria suficiente uma vez que

Eacute preciso compreender entatildeo como os determinantes psiacutequicos e as condiccedilotildees fisioloacutegicas engrenam-se uns aos outros natildeo se concebe como o membro fantasma se depende de condiccedilotildees fisioloacutegicas e se a esse tiacutetulo eacute o efeito de uma causalidade em terceira pessoa pode por outro lado depender da histoacuteria pessoal do doente de suas recordaccedilotildees de suas emoccedilotildees ou de suas vontades Pois para que as duas seacuteries de condiccedilotildees possam em conjunto determinar o fenocircmeno assim como dois componentes determinam um resultante ser-lhes-ia necessaacuterio um mesmo ponto de aplicaccedilatildeo ou um terreno comum e natildeo se vecirc qual poderia ser o terreno comum a ldquofatos fisioloacutegicosrdquo que estatildeo no espaccedilo e a ldquofatos psiacutequicosrdquo que natildeo

212

estatildeo em parte alguma ou mesmo a processos objetivos como os influxos nervosos que pertencem agrave ordem do em si e a cogitationes tais como a aceitaccedilatildeo e a recusa a consciecircncia do passado e a emoccedilatildeo que satildeo da ordem do para si (MERLEAU-PONTY 1945 p 91)

Uma teoria mista do membro fantasma se apresenta ldquoobscurardquo a

Merleau-Ponty principalmente tendo-se em vista a perspectiva dicotomizada

na qual as explicaccedilotildees fisioloacutegicas e psicoloacutegicas se encontram Assim sendo

compartilham de um mesmo erro que as fazem perder o proacuteprio fenocircmeno

Em outros termos ainda natildeo conseguem se desvencilhar das categorias do

mundo objetivo natildeo se atentando que a experiecircncia se daacute em uma outra

ordem em uma camada ainda preacute-reflexiva ou seja na perspectiva do ser

no mundo Compreender esta vivecircncia patoloacutegica a partir deste acircngulo

significa compreender que ldquoa recusa da mutilaccedilatildeo no caso do membro

fantasma ou a recusa da deficiecircncia na anosognose natildeo satildeo decisotildees

deliberadas natildeo se passam no plano da consciecircncia teacutetica que toma posiccedilatildeo

explicitamente apoacutes ter considerado diferentes possiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY

1945 p 96) Neste caso a patologia revela a existecircncia de uma outra

dimensatildeo do humano aquela que natildeo sendo da ordem do ldquoeu pensordquo nasce

a partir de um ldquoeu possordquo de uma subjetividade corporal Mas o que

significa dizer que a recusa natildeo parte de um ldquosujeito esclarecidordquo de uma

ldquoconsciecircncia racionalrdquo Como nos elucida Merleau-Ponty

Aquilo que em noacutes recusa a mutilaccedilatildeo e a deficiecircncia eacute um Eu engajado em um certo mundo fiacutesico e inter-humano que continua a estender-se para seu mundo a despeito de deficiecircncias ou de amputaccedilotildees e que nessa medida natildeo as reconhece de jure A recusa da deficiecircncia eacute apenas o avesso de nossa inerecircncia a um mundo a negaccedilatildeo impliacutecita daquilo que se opotildee ao movimento natural que nos lanccedila a nossas tarefas a nossas preocupaccedilotildees a nossa situaccedilatildeo a nossos horizontes familiares Ter um braccedilo fantasma eacute permanecer aberto a todas as accedilotildees das quais apenas o braccedilo eacute capaz eacute conservar o campo praacutetico que se tinha antes da mutilaccedilatildeo [] Portanto o doente sabe de sua perda justamente enquanto a ignora e ele a ignora justamente enquanto a conhece Esse paradoxo eacute o de todo ser no mundo dirigindo-me a um mundo esmago minhas intenccedilotildees que finalmente me aparecem como anteriores a elas e que todavia soacute existem para mim enquanto suscitam pensamento e vontades em mim (MERLEAU-PONTY 1945 p 91)

213

Segundo Merleau-Ponty podemos vislumbrar na experiecircncia do

ldquocorpo proacutepriordquo camadas que distinguem por um lado um ldquocorpo habitualrdquo

e por outro lado um ldquocorpo atualrdquo Aqui natildeo se trata de uma dicotomia

proposta pelo filoacutesofo Pelo contraacuterio trata-se da constataccedilatildeo de um

problema que nasce na proacutepria experiecircncia do ldquocorpo proacutepriordquo expressa na

experiecircncia do membro fantasma A vivecircncia do corpo habitual eacute o que

garante a percepccedilatildeo do mundo como tangiacutevel dos objetos como manejaacuteveis

Cada membro traz consigo um verdadeiro campo que possibilita a

experiecircncia do mundo como o horizonte e o fundo possibilitam a percepccedilatildeo

de uma figura No entanto a ausecircncia de um membro representa ausecircncia

de um campo sem que os objetos que lhe pertencem deixem de existir

Como indaga Merleau-Ponty ldquocomo posso perceber objetos manejaacuteveis

embora natildeo possa manejaacute-los Eacute preciso que o manejaacutevel tenha deixado de

ser aquilo que manejo atualmente para se tornar aquilo que se pode

manejar tenha deixado de ser um manejaacutevel para mim e tenha se tornado

como que um manejaacutevel em sirdquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 98) Esta

experiecircncia conduz a uma vivecircncia do corpo natildeo mais como uma experiecircncia

espontacircnea mas generalizada quase que impessoal Como sair deste

impasse Para Merleau-Ponty eacute possiacutevel esclarecer este descompasso entre

o habitual e o atual a partir do fenocircmeno do recalque assim como eacute

entendido pela psicanaacutelise O que isto quer dizer

O recalque trata-se sobretudo de um presente que natildeo quer se

tornar passado de uma paralisaccedilatildeo do tempo pessoal Frente aos obstaacuteculos

gerados por um empreendimento opta-se em natildeo abandonaacute-lo mas

continuamente colocar-se a renovaacute-lo em espiacuterito sempre na abertura a um

futuro impossiacutevel Neste sentido o recalque natildeo pode ser encarado como

uma simples recordaccedilatildeo dado que permanece sempre um presente proacuteximo

natildeo se encontrando portanto distante de noacutes Assim sendo ldquo[] todo

recalque eacute a passagem da existecircncia em primeira pessoa a um tipo de

escolaacutestica dessa existecircncia que vive para uma experiecircncia antiga ou antes

para uma recordaccedilatildeo de tecirc-la tido depois para a recordaccedilatildeo de ter tido essa

recordaccedilatildeo e assim por diante a ponto de que finalmente ela soacute retenha sua

forma tiacutepicardquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 99) Haacute para Merleau-Ponty um

214

ldquoadvento do impessoalrdquo na vivecircncia do recalque que ldquo[] nos faz

compreender nossa condiccedilatildeo de seres encarnados ligando-a agrave estrutura

temporal do ser no mundordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 99) Sempre em

nossa existecircncia pessoal deparamo-nos com uma ldquoexistecircncia quase

impessoalrdquo na qual pertencemos primeiramente assim como um organismo

pertence antes a uma Ungebung para depois pertencer a uma Umwelt A

experiecircncia do recalque acaba portanto de nos clarear e confirmar a

existecircncia do nosso organismo como um solo originaacuterio e anterior a um

sujeito epistemoloacutegico um solo no qual a estrutura temporal de nossa

experiecircncia possibilita ldquoa fusatildeo entre a alma e o corpo no ato a sublimaccedilatildeo

da existecircncia bioloacutegica em existecircncia pessoal do mundo natural em mundo

cultural []rdquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 100) Nesta perspectiva salienta

Merleau-Ponty

Assim como se fala de um recalque no sentido estrito quando atraveacutes do tempo mantenho um dos mundos momentacircneos pelos quais passei e faccedilo dele a forma de toda minha vida ndash da mesma maneira pode-se dizer que meu organismo como adesatildeo preacute-pessoal agrave forma geral do mundo como existecircncia anocircnima e geral desempenha abaixo de minha vida pessoal o papel de um complexo inato Ele natildeo existe como uma coisa inerte mas esboccedila ele tambeacutem o movimento da existecircncia [] Com maior razatildeo o passado especiacutefico que eacute nosso corpo soacute pode ser reaprendido e assumido por uma vida individual porque ela nunca o transcendeu porque ela o alimenta secretamente e emprega nisso uma parte de suas forccedilas porque ele permanece seu presente como se vecirc na doenccedila em que os acontecimentos do corpo se tornam acontecimentos da jornada diaacuteria O que nos permite centrar nossa existecircncia eacute tambeacutem o que nos impede de centraacute-la absolutamente e o anonimato de nosso corpo eacute inseparavelmente liberdade e servidatildeo (MERLEAU-PONTY 1945 p 99-101)

Voltando ao fenocircmeno do membro fantasma a partir das

consideraccedilotildees acima devemos entendecirc-lo como ldquo[] a experiecircncia recalcada

um antigo presente que natildeo decide a tornar-se passado As recordaccedilotildees que

se evocam diante do amputado induzem um membro fantasma natildeo como no

associacionismo uma imagem chama uma outra imagem mas porque toda

recordaccedilatildeo reabre o tempo perdido e nos convida a retomar um olhar

diferenciado frente ao patoloacutegico aquele que deve partir do que Merleau-

Ponty denomina como a ldquoperspectiva do ser no mundordquo A experiecircncia do

215

membro fantasma se daacute portanto no entender do filoacutesofo porque as

excitaccedilotildees sensiacuteveis que ele traz consigo mantecircm ainda o membro amputado

no circuito da existecircncia Assim a posse de um ldquocorpo habitualrdquo eacute por

conseguinte uma necessidade proacutepria de uma existecircncia integrada Um

olhar filosoacutefico sobre o fenocircmeno do membro fantasma revela-nos por fim

uma compreensatildeo do homem natildeo mais como um psiquismo que

simplesmente se soma a um organismo mas pensando concretamente

como um ldquovai-vem da existecircnciardquo que vive entre o corporal e os atos

pessoais Nesta perspectiva a patologia expressaria justamente a

necessidade de reconhecer os acontecimentos aniacutemicos natildeo mais ora pela

fisiologia ora pela psicologia mas como um processo vital que estaacute

sobretudo ligado agrave existecircncia dado que o ldquodistuacuterbio dito somaacutetico delineia

comentaacuterios psiacutequicos sobre o tema do acidente orgacircnico e o distuacuterbio

ldquopsiacutequicordquo limita-se a desenvolver a significaccedilatildeo humana do acontecimento

corporalrdquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 104) Assim como assinala Merleau-

Ponty

Os motivos psicoloacutegicos e as ocasiotildees corporais podem se entrelaccedilar porque natildeo haacute um soacute movimento em um corpo vivo que seja acaso absoluto em relaccedilatildeo agraves intenccedilotildees psiacutequicas nem um soacute ato psiacutequico que natildeo tenha encontrado pelo menos seu germe ou seu esboccedilo geral nas disposiccedilotildees fisioloacutegicas Natildeo se trata nunca do encontro incompreensiacutevel entre duas causalidades nem de uma colisatildeo entre a ordem das causas e a ordem dos fins Mas por uma reviravolta insensiacutevel um processo orgacircnico desemboca em um comportamento humano um ato instintivo muda e torna-se sentimento ou inversamente um ato humano adormece e continua distraidamente como reflexo Entre o psiacutequico e o fisioloacutegico pode haver relaccedilotildees de troca que quase sempre impedem de definir um distuacuterbio mental como psiacutequico ou como somaacutetico (MERLEAU-PONTY 1945 p 104 grifo nosso)

Ora o que nos revela este modo de compreender o psiacutequico e o

fisioloacutegico a partir de ldquorelaccedilotildees de trocardquo nas quais se abre um campo de

existecircncia e de sentido Certamente em primeiro lugar a compreensatildeo de

que a espacialidade do ldquocorpo proacutepriordquo uma vez consagrada ao mundo

exige sobretudo uma ldquoespacialidade de situaccedilatildeordquo Eacute por esta razatildeo que uma

concepccedilatildeo cartesiana do corpo torna-se contraditaria uma vez que a uniatildeo

de corpo e alma era antes uma uniatildeo por justaposiccedilatildeo logo uma

216

espacialidade posicional Daiacute que uma compreensatildeo do ldquocorpo proacutepriordquo de

inspiraccedilatildeo cartesiana dava-se tatildeo-somente mediada por uma inspeccedilatildeo

ldquoespiritualrdquo desligada e separada da consciecircncia Eacute um ldquoobjetordquo para ela o

que faz consequentemente que exista uma posiccedilatildeo do corpo ante a

consciecircncia Em contrapartida para Merleau-Ponty pelo que pudemos notar

em sua leitura de Goldstein a espacialidade do ldquocorpo proacutepriordquo natildeo eacute

objetiva mas vivida eacute existencial Sem a orientaccedilatildeo do ldquocorpo proacutepriordquo

inclusive natildeo seria possiacutevel a espacialidade corporal uma vez que ldquoa

espacialidade do corpo eacute o desdobramento de seu ser de corpo a maneira

pela qual se realiza como corpordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 174) O que

isto significa A ligaccedilatildeo ao mesmo tempo entre espacialidade e motricidade

pois embora a espacialidade do ldquocorpo proacutepriordquo seja de situaccedilatildeo ela natildeo

seria possiacutevel sem a accedilatildeo e isto porque ldquoeacute na accedilatildeo que a espacialidade do

corpo se realizardquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 119) Ora compreendido

assim como se daria a relaccedilatildeo que o ldquocorpo proacutepriordquo estabelece com as

coisas que lhe satildeo exteriores

Desde o momento em que a espacialidade corporal aponta a um

horizonte na medida em que o ldquocorpo proacutepriordquo eacute no dizer de Merleau-Ponty

ldquo[] o terceiro termo sempre subentendido da estrutura figura-fundordquo

(MERLEAU-PONTY 1945 p 119) a realidade do espaccedilo estaacute no fato de que

a espacialidade externa das coisas unicamente se faz manifesta a noacutes na

relaccedilatildeo que elas mantecircm com o corpo com a espacialidade corporal Por sua

vez de acordo com o filoacutesofo sabe-se que a representaccedilatildeo exterior natildeo eacute

uma mera representaccedilatildeo dado que natildeo eacute para um ldquoeu pensordquo que se

evidencia a existecircncia real do espaccedilo exterior Haacute uma espacialidade das

coisas mas esta espacialidade estaacute em relaccedilatildeo direta com minha situaccedilatildeo

porquanto

O que eacute dado natildeo eacute somente a coisa mas a experiecircncia da coisa uma transcendecircncia em um rastro de subjetividade uma natureza que transparece atraveacutes de uma histoacuteria [] Para que percebamos as coisas eacute preciso que as vivamos [] Se o sujeito que percebe faz a siacutentese do percebido eacute preciso que ele domine e pense uma mateacuteria da percepccedilatildeo que organize e ligue ele mesmo do interior todos os aspectos da coisa quer dizer que a percepccedilatildeo perca sua inerecircncia a um sujeito individual e a um ponto de vista que a coisa perca sua transcendecircncia e sua opacidade Viver uma coisa natildeo eacute

217

nem coincidir com ela nem pensaacute-la de uma parte agrave outra Vecirc-se entatildeo nosso problema Eacute preciso que o sujeito perceptivo sem abandonar seu lugar e seu ponto de vista na opacidade do sentir dirija-se para coisas das quais antecipadamente ele natildeo tem a chave e das quais todavia ele traz em si mesmo o projeto abra-se a um Outro absoluto que ele prepara no mais profundo de si mesmo (MERLEAU-PONTY 1999 p 436)

Daiacute a conclusatildeo de que o corpo eacute o terceiro termo sempre

subentendido na estrutura figura-fundo pois a espacialidade das coisas

aparece sempre nesta estrutura captada pelo corpo A espacialidade corporal

e o espaccedilo exterior formam um ldquosistema praacuteticordquo Nele a espacialidade do

corpo serve de fundo no qual se destaca a espacialidade externa o que abre

espaccedilo a um outro elemento fundamental de nossa corporeidade que

tambeacutem apenas nos tornamos conscientes por meio do ldquoesquema corporalrdquo

trata-se aqui da motricidade Sem a motricidade corporal a espacialidade

externa permaneceria algo abstrato sem sentido e o corpo natildeo passaria de

um puro fragmento do espaccedilo Aqui estaacute pois em breves linhas uma

revisatildeo filosoacutefica tanto do conceito de ldquosubjetividaderdquo como do conceito de

ldquoobjetividaderdquo Em La Structure du comportement Merleau-Ponty jaacute havia nos

advertido que a alma e o corpo ldquonatildeo podem nunca distinguir-se sem deixar

de ser sua conexatildeo empiacuterica estaacute fundada sobre a operaccedilatildeo originaacuteria que

instala um sentido em um fragmento da mateacuteria e a faz habitar aparecer

serrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 236) Por sua vez na Pheacutenomeacutenologie de la

perception nos diraacute algo semelhante ldquoO exterior e o interior satildeo

inseparaacuteveis O mundo estaacute inteiramente dentro e inteiramente fora de mim

Quando percebo esta mesa eacute mister que a percepccedilatildeo da superfiacutecie natildeo

ignore a dos peacutes sem o qual o objeto se deslocaria os movimentos de uma

melodia se unem sua sucessatildeo lhes eacute essencialrdquo (MERLEAU-PONTY 1945

p 466-7) O que estes textos nos revelam Antes de tudo a unidade

humana

218

SEGUNDA PARTE CRISE E FILOSOFIA O SENTIDO DA FEcircNIX

219

Capiacutetulo IV A CRISE DO ENTENDIMENTO E O SENTIDO DA HISTOacuteRIA

A HISTORIOGRAFIA FILOSOacuteFICA

Il y a un etat de lrsquohumaniteacute ougrave nous sommes et qui est 1) destructeur de la philosophie au sens ordinaire et classique 2) appelle cependant au plus haut point prise de conscience philosophique ndash Le ldquoPheacutenixrdquo dit Husserl (MERLEAU-PONTY 1996 p 39) Holz lautet ein alter Name fuumlr Wald Im Holz sind Wege die meist verwachsen jaumlh im Unbegangen aufhoumlren Sie heiβen Holzwege Jeder verlaumluft gesondert aber im selben Wald Oft scheint es als gleiche einer dem anderen Doch es scheint nur so Holzmacher und Waldhuumlter kennen die Wege Sie wissen was es heiβt auf einem Holzweg zu sein (HEIDEGGER 1952 Epiacutegrafe)

ldquo[hellip] But as when the bird of wonder dies the maiden phoenix her ashes new create another heir as great in admiration as herselfrdquo (SHAKESPEARE)117

41 A experiecircncia filosoacutefica da Verdade

O que faltaria pois a um modo de filosofar fundado em alicerces

intelectualistas Ora se a histoacuteria adquire um papel fundamental no Mundo

Moderno ndash contrariando os conselhos cartesianos ndash natildeo eacute de se admirar que

as suspeitas ou constataccedilotildees de uma ldquoconsciecircncia histoacutericardquo afetem tambeacutem

frontalmente a validade apodiacutetica neste momento de uma ldquoverdade

filosoacuteficardquo O que isto significa Quando se coloca em questatildeo a

autenticidade do labor filosoacutefico o que se atinge visceralmente satildeo antes de

tudo as relaccedilotildees com o passado natildeo de ldquosimples eventosrdquo mas do proacuteprio

pensamento Como se pode notar natildeo eacute sem motivo que o historicismo seja

qual for a sua versatildeo incomode tanto a filosofia No entanto nem por isso

deixa de lhe ser suscetiacutevel tornar-se viacutetima de seus afrontamentos e

repercussotildees O que resta agrave filosofia se aleacutem do naturalismo erguem-se

contra ela ao mesmo tempo a denuacutencia de ser uma mera reproduccedilatildeo do

117 Traduccedilatildeo ldquoQuando o paacutessaro fantaacutestico morre a fecircnix-fecircmea suas cinzas se reproduzem criando seu novo herdeiro tatildeo admiraacutevel quanto ela mesma forardquo (King Henry VIII Ato V cena 2)

220

passado ou produto do presente Como fica a ldquoverdade filosoacuteficardquo mediante a

arquitetocircnica de uma ldquoverdade histoacutericardquo

Para Merleau-Ponty pensar a experiecircncia filosoacutefica da verdade

ou a verdade de uma experiecircncia filosoacutefica significa pensar tanto o nosso

modo de acesso aos filoacutesofos ndash a nossa ldquopercepccedilatildeo das filosofiasrdquo ndash como o

proacuteprio exerciacutecio do entendimento118 Nesta perspectiva qual seria o sentido

de uma historiografia filosoacutefica Em suma caso se parta do pressuposto de

que na lida com os problemas filosoacuteficos encontra-se um diaacutelogo com

passado cujos desdobramentos uma simples philosophia perennis natildeo daria

mais conta que caminho melhor conduziria agrave compreensatildeo de uma historia

philosophica Com certeza se partirmos de Merleau-Ponty natildeo seraacute

seguindo a ldquoordre des raisonsrdquo nem muito menos sem as devidas

consideraccedilotildees apesar de seu inquestionaacutevel meacuterito os procedimentos das

Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie (Hegel)119 Quais seriam os

argumentos para esta recusa Em vaacuterios momentos o filoacutesofo nos deixa

claro o seu afastamento de uma compreensatildeo da Histoacuteria da Filosofia como

uma simples rememoraccedilatildeo do passado a tentaccedilatildeo em pensaacute-lo apenas por

ele mesmo Eacute preciso tambeacutem nas fibras de uma leitura do passado

compreender nossa eacutepoca o que noacutes pensamos e o que nos faz pensar

assim A partir do horizonte presente o passado eacute antes de qualquer coisa

(e)-vocado [eacutevoqueacute] chamado para fora de si chamado para o ldquosi mesmordquo do

hoje120 pensar o passado no horizonte do presente pelo simples fato de que

natildeo sabemos o que pensamos121 Em outros termos natildeo bastaria uma

118 Por conseguinte trata-se de verticalizar por exemplo com radicalidade uma revisatildeo do Cogito e da Ontologia presente na fundaccedilatildeo desse mesmo Cogito 119 O desconforto de Merleau-Ponty com a concepccedilatildeo hegeliana de Histoacuteria se daraacute especialmente a partir de suas leituras de Marx e de Weber Por sua vez seraacute a partir de sua concepccedilatildeo de Histoacuteria e de Filosofia conforme veremos nas seccedilotildees seguintes que se daraacute a sua recusa ao meacutetodo historiograacutefico de Gueacuteroult 120 Natildeo seria essa a preocupaccedilatildeo mesma de Descartes (DESCARTES 1996a) 121 Se uma das caracteriacutesticas da Crise eacute a presenccedila de ldquoruiacutenas de pensamentordquo parece-nos que podemos entender melhor o pensamento de Merleau-Ponty remontando-nos ao periacuteodo que denominara conforme jaacute vimos de Grande Racionalismo Trata-se antes aqui do que entendemos como os movimentos de uma histoacuteria da filosofia constantemente presente em Merleau-Ponty embora confessadamente expliacutecito e direto como em Martial Gueacuteroult Eacute certo que a intenccedilatildeo do filoacutesofo eacute em primeiro lugar compreender a sua eacutepoca tal como tivera a oportunidade de salientar em seus cursos no Collegravege de France O que visa natildeo eacute o

221

recusa do intelectualismo filosoacutefico em sua lida com as ciecircncias ou com o

que excedia os limites de seu territoacuterio seria preciso caso se quisesse ser

radical uma recusa das marcas que o intelectualismo havia deixado no que

a proacutepria Filosofia compreendia como seu modo de ldquooperarrdquo como seu

proacuteprio meacutetodo Caberia agrave Filosofia pois tornar-se um problema para si

mesma e em consequecircncia ao filoacutesofo repensar o seu proacuteprio modo de

interrogar e de se fazer ldquointerrogaccedilatildeordquo

Nesta perspectiva quando Merleau-Ponty nos acentua em seus

cursos no Collegravege de France que o que estaacute em jogo em seus trabalhos natildeo

se situa no acircmbito de uma Historia da Filosofia compreendemos que haja

muito mais do que uma simples confissatildeo frente agrave possiacutevel incompreensatildeo

dos tiacutetulos de um curso sobre Lrsquoontologie carteacutesienne et lrsquoontologie

drsquoaujourdrsquohui haja muito mais do que um modo de desculpar suas

digressotildees frente agrave tradiccedilatildeo e as constantes incursotildees aos problemas de sua

eacutepoca Para Lefort em contrapartida natildeo se encontraria senatildeo nestes

cursos e na proacutepria justificativa do filoacutesofo o esforccedilo em ler o presente em

encontrar uma ldquonova ontologiardquo o que distanciaria Merleau-Ponty de um

embate historiograacutefico Ora concordamos com Lefort no que se refere aos

desdobramentos da investigaccedilatildeo merleau-pontiana mas acreditamos

tambeacutem que ali uma reflexatildeo sobre a Histoacuteria da Filosofia esteja

passado compreendido por si mesmo (MERLEAU-PONTY 1996 p 163) mas a sua eacutepoca a ontologia e a filosofia de seu tempo Mas esta deacutemarche natildeo eacute uma marca dos uacuteltimos trabalhos podemos encontraacute-la jaacute em seus primeiros livros Assim eacute comum encontrarmos ao longo de toda a sua obra desvios cesuras direcionamentos ao passado especialmente no diaacutelogo com os cartesianos com o pensamento claacutessico Qual seria as razotildees Responde-nos o filoacutesofo ldquoPorque natildeo sabemos o que pensamos Mais faacutecil dizer em que natildeo somos cartesianosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 163) Parece-nos pois que haacute aqui uma deacutemarche filosoacutefica que emerge de uma constataccedilatildeo Logo poderiacuteamos reformular porquanto natildeo sabemos o que pensamos porquanto vivemos em uma crise das ciecircncias e do sentido na qual deparamo-nos constantemente com ldquoruiacutenas de pensamentosrdquo o retorno arqueoloacutegico ao passado ndash semelhante ao Ruumlck-gang heideggeriano (HEIDEGGER 1978 p 390) ndash pode nos ajudar a melhor nos situar em relaccedilatildeo ao presente Por conseguinte a proposta de Merleau-Ponty se encaminha na lateralidade de um movimento negativo ndash busca daquilo em que natildeo somos claacutessicos ndash que se daacute em um movimento positivo ndash compreensatildeo do passado em vistas do presente O retorno agrave histoacuteria da filosofia ao passado justifica-se pois dada a constataccedilatildeo de que ali estaria a gecircnese do presente no entanto natildeo enquanto resultado de uma cadeia de causalidade mas como a repercussatildeo ou o fruto de uma seacuterie de mudanccedilas que perderam o sentido de sua origem logo como o resultado dialeacutetico inerente a todo acontecimento histoacuterico

222

marcadamente implicada embora por uma via negativa Por conseguinte

natildeo entendemos a afirmaccedilatildeo de que ldquoisto natildeo eacute histoacuteria da filosofia passado

por si mesmo ndash mas passado evocado para compreender o que noacutes

pensamos ndash no horizonte do presenterdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p163)

como a negaccedilatildeo de uma discussatildeo historiograacutefica mas como a negaccedilatildeo de

um determinado modo de se fazer Histoacuteria da Filosofia e portanto a

indicaccedilatildeo da radicalidade que o pensador pretendia dar a seu projeto

filosoacutefico Pensar a histoacuteria a partir do presente tornar o presente um ldquojuiacutezo

de valorrdquo para entender o ldquopassadordquo natildeo seria a versatildeo moderna da

deacutemarche claacutessica No final natildeo ressuscitaria uma versatildeo intelectualista da

histoacuteria Se esta afirmaccedilatildeo natildeo tem sentido o que distanciaria o filoacutesofo do

modo claacutessico ou mesmo intelectualista de tratar a histoacuteria

42 A crise do entendimento e os entraves da historiografia claacutessica o problema da histoacuteria A Crise da Filosofia proveniente de certos ldquomodos de filosofarrdquo

nasce tambeacutem a nosso ver nos horizontes de uma compreensatildeo equivocada

de ldquohistoacuteriardquo Em outros termos partir do pressuposto de que haacute um

problema no ldquomodo de filosofarrdquo implica assinalar os limites de um

determinado modelo ldquohistoriograacuteficordquo Antes poreacutem precisamos entender

como a histoacuteria se torna problema Para Merleau-Ponty encontramos uma

indicaccedilatildeo no que considera a ldquocrise do entendimentordquo a qual por sua vez

encontra sua origem na cisatildeo criticista estabelecida a partir do problema do

conhecimento entre Entendimento e Razatildeo Enquanto a Razatildeo poderia se

dirigir ao conhecimento das coisas tais como satildeo em si mesmas o

Entendimento se contentaria com a finitude dos fenocircmenos Como ficaria

nesta perspectiva a histoacuteria Natildeo caberia pois agrave Razatildeo a compreensatildeo da

histoacuteria dado natildeo ser possiacutevel um conhecimento em si dos acontecimentos

histoacutericos A objetividade presente nos procedimentos do Entendimento

exigiria do conhecimento histoacuterico a sua subserviecircncia aos meacutetodos

utilizados na lida com os fenocircmenos fiacutesicos fazendo do passado um objeto

223

submetido a regras determinadas a um meacutetodo e sua certificada eficaacutecia

Qual seria a consequecircncia disto Como diraacute Merleau-Ponty

Frequentemente noacutes raciocinamos como se houvesse face-a-face uma filosofia que potildee no homem valores determinaacuteveis fora do tempo uma consciecircncia desligada de todo interesse pelo acontecimento ndash e ldquofilosofias da histoacuteriardquo que pelo contraacuterio situam no curso das coisas uma loacutegica oculta da qual teriacuteamos tatildeo-somente que receber o veredito A escolha neste caso seria entre uma sabedoria do entendimento que natildeo se preocupa em encontrar um sentido agrave histoacuteria e tenta unicamente flexionaacute-la continuamente segundo seus valores e um fanatismo que em nome de um segredo da histoacuteria inverteria nossas avaliaccedilotildees mais evidentes (MERLEAU-PONTY 1996 p 42)

A transposiccedilatildeo da histoacuteria ao territoacuterio da teoria claacutessica do

conhecimento acaba nos revelando no projeto moderno de dar cientificidade

agraves ldquoCiecircncias do Espiacuteritordquo por exemplo um procedimento de mesmo cunho

daqueles utilizados nas ldquoCiecircncias da Naturezardquo Aqui nos deparamos dentre

outros com um dos grandes equiacutevocos do pensamento que se sedimentou e

teve sua gecircnese no seacuteculo XVII122 O maior limite desta concepccedilatildeo

certamente seraacute o reducionismo no qual se considera apenas como histoacuterico

o que se encontra preso a um campo circunscrito de objetos123 Nisto

122 Neste sentido seguindo as trilhas heideggerianas proacuteximas das percorridas por Merleau-Ponty encontrariacuteamos paralela a um ldquoprocedimento de verificaccedilatildeo da leirdquo na investigaccedilatildeo experimental da Natureza segundo Heidegger nas ldquociecircncias do espiacuterito historiograacuteficasrdquo a ldquocriacutetica das fontesrdquo Ora o que podemos entender por essa expressatildeo Como Heidegger mesmo nos salienta ldquoeste nome assinala aqui a totalidade da pesquisa de fontes do inventaacuterio da garantia da avaliaccedilatildeo da conservaccedilatildeo e da interpretaccedilatildeo Eacute certo que a explicaccedilatildeo historiograacutefica fundada na criacutetica das fontes natildeo reconduz os factos a leis e regras Mas tambeacutem natildeo se limita a um simples relatar dos factos Nas ciecircncias historiograacuteficas assim como nas ciecircncias da natureza o procedimento tende a representar o permanente e a tornar a histoacuteria objecto A histoacuteria soacute pode tornar-se objectiva quando se tornou passado O que eacute consistente no passado aquilo com base no qual a explicaccedilatildeo historiograacutefica calcula o que eacute uacutenico e o que eacute muacuteltiplo na histoacuteria eacute o sempre-jaacute-sido-alguma-vez o comparaacutevel No permanente comparar de tudo com tudo o compreensiacutevel eacute calculado verificado e fixado como o plano da histoacuteriardquo (M Heidegger 1998 p 104-5) Por conseguinte ldquoeacute porque a historiografia enquanto investigaccedilatildeo projecta e objectiva o passado no sentido de um conjunto de efeitos limitados e explicaacuteveisrdquo ndash lembra-nos Heidegger ndash ldquoque exige como instrumento de objectivaccedilatildeo a criacutetica das fontesrdquo (HEIDEGGER 1998 p 105) 123 Consequentemente pensando em Heidegger seraacute histoacuterico tudo aquilo que se encontra em exata ldquocorrespondecircnciardquo e ldquoverificabilidaderdquo com um preacutevio e determinante conjunto de ldquofontesrdquo No entendimento histoacuterico portanto encontramos a constataccedilatildeo de uma eacutepoca do representar [(Vor)-stellen] de um mundo feito imagem de uma objetivaccedilatildeo do real lanccedilada

224

encontramos a impossibilidade de diaacutelogos por exemplo entre histoacuteria e

literatura histoacuteria e arte etc124 Nesta perspectiva sob os auspiacutecios do

criticismo o problema da histoacuteria torna-se em suma tatildeo-somente uma

indagaccedilatildeo acerca da possibilidade de uma ldquociecircncia da histoacuteriardquo

permanecendo ainda preso em um horizonte epistemoloacutegico que tem por

referecircncia e fundamento nada menos do que a Kritik der reinen Vernunft As

Ciecircncias da Natureza ainda serviam pois de referecircncia e modelo o que natildeo

deixaria de constituir tambeacutem uma simples Kritik der historischen Vernunft

Como nos adverte Merleau-Ponty

Quando se trata de conhecimento nossas relaccedilotildees com a histoacuteria satildeo do mesmo gecircnero que a de nossas relaccedilotildees com a natureza segundo Kant o entendimento historiador como o entendimento fiacutesico forma uma verdade ldquoobjetivardquo na medida em que constroacutei e o objeto eacute apenas um elemento de uma representaccedilatildeo coerente que pode ser retificada e precisada indefinidamente sem nunca confundir-se com a proacutepria coisa (MERLEAU-PONTY 1975b p 29)

De acordo com o filoacutesofo primeiramente em meio a este cenaacuterio

criticista presente na histoacuteria instaura-se conforme jaacute salientamos uma

crise no justo momento em que natildeo se tendo a devida ldquodistacircnciardquo caindo

por terra a exigida exterioridade o presente tambeacutem se torna um objeto de

investigaccedilatildeo Neste sentido como pensar a neutralidade exigida pelo

entendimento posto que ldquoa invasatildeo da histoacuteria pelo historiador natildeo poderaacute

ser evitadardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 29) Como ficariam as

ldquomatemaacuteticas relaccedilotildeesrdquo estabelecidas pelo rigor do meacutetodo entre sujeito e

objeto no caso o sujeito e o seu presente A consequecircncia deste impasse

acabara se tornando segundo o filoacutesofo a entrada no entendimento de

antinomias antes reservadas apenas ao exerciacutecio da Razatildeo Torna-se

incontornaacutevel a emergecircncia de um dualismo reinante entre um saber e uma

praacutetica que se tornam antagocircnicos visto que de um lado ldquoo saber

frente a um sujeito no caso o pesquisador123 Aquele que investiga a histoacuteria agora se torna um verdadeiro (sub)-iectum frente a um (ob)-iectum calculaacutevel determinaacutevel o passado 124 Pensando assim o que foge a esse campo natildeo tem outra alcunha senatildeo a de ldquoexceccedilatildeordquo o desvio indesejado e transgressor agraves ldquofontesrdquo entendidas aqui no sentido heideggeriano e por isso merecedor do descaso da ldquoRazatildeo Histoacutericardquo

225

multiplica os pontos de vista por meio de conclusotildees provisoacuterias abertas

motivadas isto eacute condicionaisrdquo e de outro a praacutetica faria o mesmo

ldquomediante decisotildees absolutas parciais injustificaacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY

1975b p 30) Quais a razotildees deste infortuacutenio Segundo Merleau-Ponty

estaria no esquecimento de que ldquotodas as instacircncias que se queriam opor agrave

histoacuteria tecircm tambeacutem sua histoacuteria e graccedilas a ela se comunicam com a

Histoacuteria embora tenham sua proacutepria maneira de usar o tempordquo (MERLEAU-

PONTY 1968 p 45) Por conseguinte o erro encontra-se na tentativa de se

legitimar uma cisatildeo entre o entendimento e a histoacuteria tal como se tentou

fazer entre espiacuterito e mateacuteria quando na verdade a verdadeira separaccedilatildeo

estaria entre ldquo[] a histoacuteria como deus desconhecido ndash gecircnio bom ou mau ndash e

a histoacuteria como meio de vidardquo (MERLEAU-PONTY 1968 p 45) pois

A histoacuteria eacute um meio de vida se entre a teoria e a praacutetica entre a cultura e o trabalho do homem entre as eacutepocas entre as vidas entre as accedilotildees deliberadas e o tempo em que estas accedilotildees aparecem haacute uma afinidade que natildeo seja fortuita nem se fundamente em uma loacutegica onipotente O ato histoacuterico eacute inventado e no entanto responde tatildeo bem aos problemas do tempo que eacute compreendido e seguido como que se incorpora ndash dizia Peacuteguy ndash agrave ldquoduraccedilatildeo puacuteblicardquo Haveria ilusatildeo retrospectiva ao projetaacute-lo no passado que ele transforma mas haveria ilusatildeo prospectiva ao fazer cessar o presente no umbral de um porvir vazio como se cada presente natildeo se prolongasse em direccedilatildeo a um horizonte futuro e como se o sentido de um tempo do qual decide a iniciativa humana natildeo fosse nada diante dela (MERLEAU-PONTY 1968 p 45)

Neste sentido no esquecimento destes movimentos

encontrariacuteamos os limites da historiografia claacutessica O fato eacute que nolens

volens tanto a histoacuteria eacute uma accedilatildeo como tambeacutem a accedilatildeo eacute tambeacutem histoacuteria

logo ldquoa condiccedilatildeo do historiador natildeo eacute tatildeo diferente daquela do homem de

accedilatildeo Ele transporta para aqueles cuja accedilatildeo foi decisiva reconstitui as suas

decisotildees refaz o que fizeram (com a diferenccedila de que conhece o contexto

melhor do que eles e jaacute sabe quais seratildeo as consequecircncias)rdquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 31) O problema da histoacuteria por conseguinte natildeo pode

ser apenas um problema epistemoloacutegico mas ldquoum problema inerente agrave

nossa vidardquo natildeo podendo pois furtar-se agrave ldquobusca pelo sentido do nosso

serrdquo Ora o que incomoda portanto a Filosofia em uma problematizaccedilatildeo da

226

historicidade A emergecircncia de sentido ou de sua necessidade no acircmago da

finitude humana Eacute neste sentido que nos diraacute o filoacutesofo

[] natildeo se pode conceber um conhecimento histoacuterico que seja rigorosamente objetivo porque a interpretaccedilatildeo e a perspectivaccedilatildeo do passado dependem das escolhas morais e poliacuteticas que o historiador fez por sua conta como aliaacutes estes daquela e que neste ciacuterculo em que se encerrou a existecircncia humana nunca pode abstrair de si para aceder a uma verdade nua e soacute comporta um progresso na objetivaccedilatildeo nunca uma objetivaccedilatildeo plena (MERLEAU-PONTY 1975b p 65)

Faz-se mister no entender de Merleau-Ponty compreender uma

historicidade aqueacutem da proacutepria subjetividade e que natildeo sendo simplesmente

uma coisa nasccedila no interior e na vivecircncia da proacutepria histoacuteria Disto

concluiraacute o pensador precisamos reconhecer que ldquonossa relaccedilatildeo com a

histoacuteria natildeo eacute pois somente a relaccedilatildeo do entendimento a do espectador

com o espetaacuteculordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 31) pois ldquonatildeo seriacuteamos

espectadores se natildeo estiveacutessemos comprometidos com o passado e a accedilatildeo

natildeo seria grave se natildeo concluiacutesse a empresa do passado e natildeo desse ao

drama seu uacuteltimo atordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 31) Ora natildeo seria

assim que Merleau-Ponty iria entender a ldquofilosofia da histoacuteriardquo de Marx Natildeo

haveria em Marx em sua criacutetica ao sistema hegeliano a ruptura com uma

tradiccedilatildeo idealista que se acreditava distante do criticismo e de suas

antinomias A nosso ver natildeo podemos entender a compreensatildeo merleau-

pontiana de histoacuteria nos afastando de suas leituras de Marx e tambeacutem

mutatis mutandis de Weber No que diz respeito a Marx para o filoacutesofo vale

lembrar que o marxismo natildeo eacute pois ldquo() uma filosofia do sujeito mas

tambeacutem natildeo eacute uma filosofia do objeto Eacute uma filosofia da histoacuteriardquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 76) Eacute assim que em seu Eacuteloge de la

Philosophie afirmava com veemecircncia ldquoA novidade de Marx como criacutetico de

Hegel natildeo estaacute pois em ter feito da produtividade humana o motor da

histoacuteria e em considerar a filosofia um reflexo de seu movimento ()rdquo

(MERLEAU-PONTY 1986 p 64) Pelo contraacuterio estaacute ldquo() em haver

denunciado o artifiacutecio pelo qual a filosofia introduzia o sistema na histoacuteria

para depois o encontrar laacute e reafirmar a sua onipotecircncia quando parecia

227

renunciar a elardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 64) Em Marx Merleau-Ponty

visualiza a criacutetica de uma histoacuteria universal uma vez que ldquoem Hegel o

filoacutesofo tanto aparece como o simples leitor de uma histoacuteria jaacute concluiacuteda o

paacutessaro de Minerva que soacute levanta vocirco ao entardecer como parece ser a

uacutenica personagem da histoacuteria pois eacute o uacutenico ser que natildeo a experimenta e a

compreende elevando-a a conceitordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 64) O

leitor de Hegel no entanto poderia logo levantar objeccedilotildees a estas palavras

pois o autor das Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie natildeo teria

feito da filosofia uma intelecccedilatildeo da experiecircncia histoacuterica no mesmo instante

em que fazia da histoacuteria o devir da filosofia

Para Merleau-Ponty esta mesma objeccedilatildeo na verdade oculta um

conflito Diraacute o filoacutesofo que ldquosendo a filosofia para Hegel saber absoluto

sistema totalidade a histoacuteria de que fala o filoacutesofo natildeo eacute verdadeiramente

histoacuteria isto eacute algo que se construa mas a histoacuteria universal

compreendida feita mortardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 63) Esta certeza

adquire sentido para Merleau-Ponty uma vez que ldquoinversamente uma

histoacuteria sendo puro fato ou acontecer introduz no sistema em que se

incorpora um movimento interior que o destroacuteirdquo (MERLEAU-PONTY 1986 p

64) Ao deduzir isto Hegel pode ser compreendido no dizer de Alain como

um sutil vendedor de sonhos ldquo() aqueles que lsquooferecem um sono cujos

sonhos satildeo precisamente o mundorsquordquo (ALAIN apud MERLEAU-PONTY 1986

p 64) pois

A histoacuteria universal de Hegel eacute o sonho da histoacuteria Como nos sonhos tudo o que eacute pensado eacute real tudo o que eacute real eacute pensado Os homens nada podem fazer que natildeo esteja jaacute compreendido no reverso das coisas no sistema E o filoacutesofo faz-lhes a concessatildeo de admitir que nada pode pensar que natildeo tenha sido feito por eles concedendo-lhes tambeacutem o monopoacutelio da eficaacutecia Mas como reserva para si o do sentido eacute na filosofia e soacute nela que a histoacuteria adquire sentido Poreacutem eacute o filoacutesofo que pensa e decreta a identidade da histoacuteria e da filosofia o que equivale a dizer que natildeo haacute identidade (MERLEAU-PONTY 1986 p 65)

Em Marx pensa Merleau-Ponty estas ideias adquirem um outro

colorido No jovem Marx o proacuteprio exerciacutecio da filosofia o seu privileacutegio e a

sua pretensatildeo de esgotar o real natildeo podem ser entendidos como um ato

228

gerador da histoacuteria mas como um fato histoacuterico em si mesmo Assim

imanente agrave vida humana encontramos uma racionalidade histoacuterica dado

que para o pensamento marxista ldquoa histoacuteria natildeo eacute jaacute apenas a ordem do

fato ou do real a que com a racionalidade a filosofia viria conferir direito de

existecircncia eacute o meio onde se forma todo o sentido e em particular o sentido

conceitual ou filosoacutefico no que tem de legiacutetimordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p

65) Assim ldquoaquilo a que Marx chama praacutexis eacute este sentido que se desenha

espontaneamente no entrecruzar das accedilotildees com que o homem organiza as

suas relaccedilotildees com a natureza e com os outros Natildeo eacute dirigida por uma ideia

de histoacuteria universal ou totalrdquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 66) Em Marx

Merleau-Ponty natildeo enxerga aquele poder exaustivo da filosofia que estava

presente em Hegel natildeo havendo tambeacutem a compreensatildeo do ato filosoacutefico

como o simples reflexo de uma histoacuteria que jaacute fora dada Pensando ainda no

jovem Marx ldquoa filosofia como conhecimento separado lsquodestroacutei-sersquo apenas

para se lsquorealizarrsquo A racionalidade passa do conceito para o centro da praacutexis

inter-humana e certos fatos histoacutericos assumem um significado filosoacutefico

neles vive a filosofiardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 67)

A partir do que jaacute assinalamos natildeo se pode concluir que exista a

possibilidade de se ldquo() transformar a dialeacutetica da consciecircncia em dialeacutetica

da mateacuteria ou das coisas quando se diz que haacute uma dialeacutetica nas coisas natildeo

pode ser senatildeo nas coisas enquanto pensadas de modo que ao fim e ao

cabo esta objetividade eacute o cuacutemulo do subjetivismordquo (MERLEAU-PONTY

1986 p 67) Pensando nisso ldquoMarx natildeo desloca a dialeacutetica para as coisas

mas sim para os homens considerados bem entendido com todo o seu

ingrediente humano e enquanto empenhados pelo trabalho e pela cultura

numa empresa que transforma a natureza e as relaccedilotildees sociaisrdquo (MERLEAU-

PONTY 1986 p 67) De modo reciacuteproco ldquoa contingecircncia do acontecer

humano deixa de ser jaacute uma falha na loacutegica da histoacuteria para ser a sua

condiccedilatildeo Sem ela a histoacuteria natildeo seraacute mais do que um fantasmardquo Em sua

leitura de Marx o filoacutesofo chega agrave conclusatildeo de que ldquoa histoacuteria natildeo tem

sentido se o seu sentido for concebido como o de um rio que sob a accedilatildeo de

causas todo-poderosas corre para um oceano no qual desaparecerdquo

(MERLEAU-PONTY 1986 p 68) pois ldquoqualquer recurso agrave histoacuteria universal

229

corta o sentido do acontecer torna insignificante a histoacuteria efetiva e eacute uma

maacutescara do niilismordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 68) Deste modo ldquo()

como o Deus exterior eacute um Deus falso tambeacutem a histoacuteria exterior jaacute natildeo eacute

histoacuteria Os dois absolutos rivais vivem apenas se no seio do ser se instalar

um projeto humano que os recuse e eacute na histoacuteria que o filoacutesofo aprende a

conhecer esta negatividade filosoacutefica a que se opotildee em vatildeo a plenitude da

histoacuteriardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 68)

Ao ser compreendido a partir de si mesmo o pensamento

marxista no entender de Merleau-Ponty inova em sua compreensatildeo de

histoacuteria e no seu modo de se aproximar do fenocircmeno humano a partir de

suas relaccedilotildees Isto todavia natildeo ocorre na leitura de certos marxistas Pelo

contraacuterio afirma Merleau-Ponty ldquoteriacuteamos uma ideia bem estranha do

marxismo e de suas relaccedilotildees com a filosofia se focircssemos julgaacute-lo pelos

escritos de certos marxistas contemporacircneos Para estes visivelmente a

filosofia eacute inteiramente verbal desprovida de qualquer conteuacutedo e

significaccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 71) Aqui de modo especial o

filoacutesofo pensa em autores como Naville Garaudy Herveacute Mounin entre

outros Merleau-Ponty natildeo poderia deixar de achar estranha a proposta de

Naville em pensar a economia poliacutetica a partir das ciecircncias da natureza

como tambeacutem a criacutetica de Cogniot aos ldquofiloacutesofos de cafeacuterdquo por definirem o

homem como natildeo-ser125 Assim levando-se em conta tais pensadores que se

diziam marxistas Merleau-Ponty conclui que apesar do fato de que ldquocada

um tem pleno direito de adotar a filosofia que lhe agrade como por exemplo

o cientificismo e o mecanicismo ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 71) por

outro lado ldquoeacute preciso saber e dizer que esse tipo de ideologia nada tem a ver

com o marxismordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 71) Diraacute o filoacutesofo que

125 Ao elogiar Descartes por natildeo cometer esse erro Cogniot se esquecia das notaacuteveis palavras cartesianas da segunda Meditaccedilatildeo ldquoeu natildeo sou esse conjunto de membros que se denomina corpo humano natildeo sou um ar tecircnue e penetrante disseminado por todos esses membros natildeo sou um vento um sopro um vapor nem algo que posso fingir e imaginar ()rdquo (DESCARTES 1973 p 261) No seio do pensamento cartesiano para decepccedilatildeo de Cogniot jaacute se podia visualizar conforme Merleau-Ponty como fissura uma certa ldquonadificaccedilatildeordquo

230

Uma concepccedilatildeo marxista da sociedade humana e em particular da sociedade econocircmica vendo-a em movimento rumo a um novo arranjo em cujo interior as leis da economia claacutessica natildeo mais se aplicaratildeo natildeo pode submetecirc-la a leis permanentes como as da fiacutesica claacutessica Em O Capital o esforccedilo de Marx tende justamente a mostrar que as famosas leis da economia claacutessica frequentemente apresentadas como traccedilos permanentes de uma ldquonatureza socialrdquo na realidade satildeo atributos (e maacutescaras) de uma certa ldquoestrutura socialrdquo ndash o capitalismo que evolui agrave sua proacutepria destruiccedilatildeo A noccedilatildeo de estrutura ou totalidade que parece merecer a desconfianccedila de Naville eacute uma categoria fundamental do marxismo Uma economia poliacutetica marxista soacute pode falar em leis no interior de estruturas qualitativamente distintas que devem ser descritas em termos de histoacuteria A priori o cientificismo surge como uma concepccedilatildeo conservadora pois nos leva a tomar aquilo que eacute momentacircneo como se fora eterno De fato na histoacuteria do marxismo o fetichismo da ciecircncia apareceu sempre do lado em que a consciecircncia revolucionaacuteria estava prostrada (MERLEAU-PONTY 1975b p 71-2)

Natildeo eacute mais vaacutelido procurar pensar a sociedade humana a partir

de leis naturais permanentes uma vez que ateacute mesmo na fiacutesica caso

pensemos aqui na fiacutesica moderna esta concepccedilatildeo da Natureza e de suas leis

eacute questionaacutevel ldquoLonge de eliminar a estrutura a fiacutesica moderna soacute concebe

suas leis no quadro de um certo estado histoacuterico do universo fornecido por

coeficientes empiacutericos dados como tais e que natildeo podem ser deduzidos de

sorte que natildeo nos oferece qualquer criteacuterio que nos permita consideraacute-lo

como definitivordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 72) Conforme indicaccedilatildeo de

Chauiacute (CHAUIacute 1975) caso prestemos atenccedilatildeo natildeo podemos deixar de notar

que no fundo Merleau-Ponty deseja desvencilhar o materialismo marxista

do materialismo cientificista Para isto o filoacutesofo precisa investigar como a

noccedilatildeo de mateacuteria se apresenta em Marx e como ela se difere de uma

concepccedilatildeo cientificista (CHAUIacute 1975) O que Marx entende por mateacuteria

Merleau-Ponty procura responder a esta indagaccedilatildeo lembrando-nos de que

ldquo() Marx falava de uma lsquomateacuteria humanarsquo isto eacute assumida no movimento

da praacutexisrdquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 69) Mateacuteria natildeo seria portanto no

pensamento marxista uma coisa natural que se manifesta em relaccedilotildees

partes extra partes Pelo contraacuterio as relaccedilotildees sociais eacute que constituem a

mateacuteria a qual o filoacutesofo se refere Assim tanto materialismo histoacuterico

quanto materialismo dialeacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo um certo

231

desdobramento de uma dialeacutetica do trabalho que por sua vez eacute o motor do

mundo histoacuterico e social126 ldquoA dialeacutetica ()rdquo como assinala Chauiacute ldquo() natildeo

eacute materialista porque passou do sujeito espiritual para a coisa material mas

porque passou para o mundo sensiacutevel Este eacute o mundo natural tal como eacute

visto trabalhado e conhecido pela praacutetica social e poliacutetica dos homensrdquo

(CHAUIacute 1975 p 73) Como enfatizaraacute ainda Chauiacute

No ensaio Em torno do Marxismo Merleau-Ponty dissera que a cultura era natural para o homem Com isto natildeo queria dizer que a cultura eacute um fato natural a ser explicado pelas ciecircncias da natureza mas que o conceito de natureza se transforma dialeticamente quando se estabelece sua relaccedilatildeo com a cultura isto eacute com as formas historicamente determinadas das relaccedilotildees sociais mediatizadas pelas relaccedilotildees dos homens com as coisas atraveacutes do trabalho (CHAUIacute 1975 p 73)

A compreensatildeo merleau-pontiana de Marx afasta-se das

possibilidades de uma leitura mecanicista do marxismo Na Pheacutenomeacutenologie

de la perception o filoacutesofo jaacute havia chegado agrave conclusatildeo de que ldquonatildeo

podemos livrar-nos do materialismo histoacuterico assim como da psicanaacutelise

condenando as concepccedilotildees lsquoredutorasrsquo e o pensamento causal em nome de

um meacutetodo descritivo e fenomenoloacutegico ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p

633) Isso porque ldquo() assim como a psicanaacutelise o materialismo histoacuterico

natildeo estaacute ligado agraves formulaccedilotildees lsquocausaisrsquo que dele se puderam oferecer e

assim como ela ele poderia ser exposto em uma outra linguagemrdquo

(MERLEAU-PONTY 1999 p 633) Para Merleau-Ponty ldquoo materialismo

histoacuterico consiste tanto em tornar a economia histoacuterica quanto em tornar a

histoacuteria econocircmicardquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 633) pois

A economia na qual ele assenta a histoacuteria natildeo eacute como na ciecircncia claacutessica um ciclo fechado de fenocircmenos objetivos mas uma confrontaccedilatildeo entre forccedilas produtivas e formas de produccedilatildeo que soacute chega ao seu fim quando as primeiras saem do anonimato tomam consciecircncia de si mesmas e tornam-se assim capazes de pocircr em forma o futuro Ora a tomada de consciecircncia eacute evidentemente um fenocircmeno cultural e por aiacute podem introduzir-se na trama da histoacuteria todas as motivaccedilotildees psicoloacutegicas () A economia acha-se integrada agrave histoacuteria antes que a histoacuteria reduzida agrave economia O ldquomaterialismo

126 Aqui seguimos de perto a leitura que Chauiacute faz do pensamento merleau-pontiano em Marxismo e Filosofia assim como ela deixa expliacutecito em suas notas de traduccedilatildeo

232

histoacutericordquo nos trabalhos que inspirou frequentemente eacute apenas uma concepccedilatildeo concreta da histoacuteria que leva em consideraccedilatildeo aleacutem de seu conteuacutedo manifesto ndash por exemplo as relaccedilotildees oficiais entre os ldquocidadatildeosrdquo em uma democracia ndash o seu conteuacutedo latente quer dizer as relaccedilotildees inter-humanas tais como elas efetivamente se estabelecem na vida concreta Quando a histoacuteria ldquomaterialistardquo caracteriza a democracia como um regime ldquoformalrdquo e descreve os conflitos que atormentam esse regime o sujeito real da histoacuteria que ela procura recuperar sob a abstraccedilatildeo juriacutedica do cidadatildeo natildeo eacute apenas o sujeito econocircmico o homem enquanto fator da produccedilatildeo mas mais geralmente o sujeito vivo o homem enquanto produtividade enquanto ele quer dar forma agrave sua vida enquanto ama odeia cria ou natildeo obras de arte tem filhos ou natildeo os tem O materialismo histoacuterico natildeo eacute uma causalidade exclusiva da economia Seriacuteamos tentados a dizer que ele natildeo faz a histoacuteria e as maneiras de pensar repousarem na produccedilatildeo e na maneira de trabalhar mas geralmente na maneira de existir e de coexistir nas relaccedilotildees inter-humanas Ele natildeo reduz a histoacuteria das ideias agrave histoacuteria econocircmica mas as recoloca na histoacuteria uacutenica que ambas exprimem a histoacuteria da existecircncia social O solipsismo enquanto doutrina filosoacutefica natildeo eacute um efeito da propriedade privada mas na instituiccedilatildeo econocircmica e na concepccedilatildeo do mundo projeta-se uma mesma preferecircncia existencial de isolamento e desconfianccedila

(MERLEAU-PONTY 1999 p 633)

Pelo que notamos Merleau-Ponty procura fugir de um dualismo

que logo pode se erguer ao se estudar o ldquomaterialismo histoacutericordquo marxista no

qual se deveria optar pela certeza de que o drama da coexistecircncia tem uma

significaccedilatildeo puramente econocircmica ou pela certeza de que o drama

econocircmico se dissolve em um drama mais geral fazendo com que

acabaacutessemos nos defrontando com o espiritualismo A partir da noccedilatildeo de

existecircncia pensa o filoacutesofo esta alternativa acaba por ser superada Neste

sentido ldquouma teoria existencial da histoacuteria eacute ambiacutegua mas natildeo se pode

censurar essa ambiguidade pois ela estaacute nas coisasrdquo (MERLEAU-PONTY

1999 p 633) Para Merleau-Ponty inclusive ldquoeacute apenas com a aproximaccedilatildeo

de uma revoluccedilatildeo que a histoacuteria segue mais de perto a economia ()rdquo

(MERLEAU-PONTY 1999 p 633) Assim sendo ldquo() como na vida

individual a doenccedila sujeita o homem ao ritmo vital de seu corpo em uma

situaccedilatildeo revolucionaacuteria por exemplo em um movimento de greve geral as

relaccedilotildees de produccedilatildeo transparecem elas satildeo expressamente percebidas

como decisivasrdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 633) Ora ldquonem o conservador

nem o proletaacuterio tecircm consciecircncia de estar envolvidos em uma luta apenas

233

econocircmica e eles sempre datildeo agrave sua accedilatildeo uma significaccedilatildeo humanardquo

(MERLEAU-PONTY 1999 p 634) Por outro lado

() Uma concepccedilatildeo existencial da histoacuteria natildeo retira agraves situaccedilotildees econocircmicas seu poder de motivaccedilatildeo Se a existecircncia eacute o movimento permanente pelo qual o homem retoma por sua conta e assume uma certa situaccedilatildeo de fato nenhum de seus pensamentos poderaacute ser inteiramente desprendido do contexto histoacuterico em que vive e em particular de sua situaccedilatildeo econocircmica Justamente porque a economia natildeo eacute um mundo fechado e porque todas as motivaccedilotildees se ligam no interior da histoacuteria o exterior torna-se interior assim como o interior tornar-se exterior e nenhum componente de nossa existecircncia jamais pode ser ultrapassado Seria absurdo considerar a poesia de P Valeacutery como um simples episoacutedio da alienaccedilatildeo econocircmica a poesia pura pode ter um sentido eterno Mas natildeo eacute absurdo procurar no drama social e econocircmico no modo de nosso Mitsein o motivo dessa tomada de consciecircncia (MERLEAU-PONTY 1999 p 635)

Conforme Merleau-Ponty ao se colocar contra um materialismo

positivista e um idealismo dialeacutetico a contribuiccedilatildeo de Marx estaacute em inserir

tanto ldquomateacuteriardquo quanto ldquoconsciecircnciardquo em uma nova dimensatildeo aquela do

materialismo histoacuterico e do materialismo dialeacutetico pois como jaacute afirmamos

anteriormente mateacuteria seraacute conforme a compreensatildeo merleau-pontiana do

pensamento marxista

() as relaccedilotildees sociais entendidas como relaccedilotildees determinadas entre os homens mediadas por suas relaccedilotildees determinadas com as coisas Em uacuteltima instacircncia a dialeacutetica materialista eacute uma dialeacutetica do trabalho Natildeo o trabalho paciente do conceito como em Hegel mas o trabalho concreto dos homens sofrendo e fazendo a histoacuteria em condiccedilotildees determinadas isto eacute o trabalho inserido num modo de produccedilatildeo determinado (CHAUIacute 1975 p 75)

Ora a partir destas consideraccedilotildees podemos concluir com o

filoacutesofo que ldquoa histoacuteria eacute um objeto estranho um objeto que somos noacutes

proacuteprios mas onde nossa vida insubstituiacutevel nossa liberdade selvagem jaacute se

encontra prefigurada comprometida jaacute arriscada por outras liberdades hoje

passadasrdquo (CHAUIacute 1975 p 31) A histoacuteria torna-se apenas possiacutevel

consequentemente se houver uma ldquoloacutegica na contingecircnciardquo ldquouma razatildeo na

desrazatildeordquo uma ldquopercepccedilatildeo histoacutericardquo que ldquo[] como outra deixa em

segundo plano o que natildeo passar ao primeiro apreende as linhas de forccedila em

seu nascimento e conduz ao acabamento ativamente o traccedilado destas

234

mesmas linhasrdquo (MERLEAU-PONTY 1968 p 46)127 Por conseguinte tendo-se

em conta uma ldquofilosofia da histoacuteriardquo tal como se pode vislumbrar no

pensamento marxista ao retomarmos a nossa questatildeo inicial

compreendemos a conclusatildeo merleau-pontiana de que o dualismo criticista

presente na concepccedilatildeo claacutessica de histoacuteria funda-se sob um contra-senso O

entendimento tal como fora postulado em conformidade com a

epistemologia claacutessica desconsidera a relaccedilatildeo de sentido sem a qual natildeo

haveria histoacuteria mas uma mera representaccedilatildeo uma pura ficccedilatildeo Deste

modo

A compreensatildeo histoacuterica natildeo introduz portanto um sistema de categoria escolhido arbitrariamente apenas presume nossa possibilidade de termos um passado nosso de retomarmos em nossa liberdade a obra de tantas outras liberdades esclarecendo suas escolhas pelas nossas e as nossas pelas delas retificando umas pelas outras enfim nossa possibilidade de estar na verdade Natildeo haacute respeito maior objetividade mais profunda do que esta pretensatildeo de buscar seu conteuacutedo na proacutepria fonte onde a histoacuteria nasce A histoacuteria natildeo eacute um deus exterior uma razatildeo escondida de que soacute poderiacuteamos registrar as conclusotildees eacute o fato metafiacutesico pelo que a mesma vida a nossa corre em noacutes e fora de noacutes em nosso presente e em nosso passado de sorte que o mundo eacute um sistema com vaacuterias entradas ou caso se queira a afirmaccedilatildeo de que temos semelhantes (MERLEAU-PONTY 1975b p 40)

Para Merleau-Ponty a histoacuteria eacute antes de tudo uma ldquoinvenccedilatildeordquo

e natildeo uma simples descoberta Logo uma ldquotomada de consciecircnciardquo acerca da

histoacuteria significa na verdade a sua colocaccedilatildeo em forma a sua enformaccedilatildeo

[mise en forme] A ldquovivecircncia da histoacuteriardquo acompanha uma ldquoconsciecircncia da

histoacuteriardquo nasce em um determinado contexto dado natildeo estar previamente

pronta a histoacuteria surge quando ldquocomeccedilamos a falar delardquo No entanto natildeo

se trata de uma compreensatildeo idealista mas da ideia de uma histoacuteria

entendida antes em um movimento circular e isto porque seria ela a

proacutepria histoacuteria causa e efeito de seu conhecimento o que nos leva a

127 ldquoA histoacuteria tem sentido mas natildeo eacute um puro desenvolvimento da ideia constroacutei seu sentido no contato com a contingecircncia no momento em que a iniciativa humana funda um sistema de vida retomando os dados dispersos E a compreensatildeo histoacuterica que revela uma interioridade histoacuterica deixa-nos entretanto na presenccedila da histoacuteria empiacuterica com sua espessura e seus casos natildeo a subordina a nenhuma razatildeo escondidardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 35)

235

encontraacute-la apoacutes sua ldquoinvenccedilatildeordquo em um contexto onde ainda natildeo existia

poreacutem o paradoxo estaacute no fato de que tal ldquomovimento retroacutegradordquo soacute se

tornou possiacutevel apoacutes termos feito a experiecircncia de seu conhecimento Deste

modo natildeo haveria uma ruptura entre a ldquoconsciecircncia da histoacuteriardquo e a

ldquohistoacuteria-realidaderdquo ou mesmo entre a histoacuteria como ldquonomerdquo e como ldquocoisardquo

pelo contraacuterio o que se postularia antes seria um entrelaccedilamento de

conhecimento e experiecircncia de essecircncia e de fato Mas pensando na

circularidade da histoacuteria ndash aquela que nos situaria no intervalo entre o

sensiacutevel e o conceitual ndash o que acontece quando em determinado momento

passamos a ldquoviver e a pensar historicamenterdquo Para Merleau-Ponty neste

momento ao contraacuterio da constituiccedilatildeo de um ldquonovo objetordquo o que se efetiva

eacute sobretudo um novo modo de compreender o ldquotempordquo pois

Em todas as sociedades os homens sabem que haacute homens diante deles e vagamente ou precisamente sabem tambeacutem o que eles fazem Quando se colocam a viver e a pensar historicamente natildeo eacute um novo objeto que seu conhecimento se anexa eacute uma nova estrutura do tempo (uma nova relaccedilatildeo com os outros uma nova ideia do sentido e da verdade) que se estabelece (MERLEAU-PONTY 2000b p 205)

Eacute neste sentido que de acordo com Merleau-Ponty entre os

gregos natildeo encontramos a experiecircncia da histoacuteria Pelo contraacuterio ali natildeo se

tem uma compreensatildeo do tempo como ldquoponto de partidardquo mas um ldquoeterno

retornordquo o ldquoeterno retornordquo do mesmo a busca apenas pelo ldquoque eacuterdquo uma

visatildeo turva da ldquoespessura das geraccedilotildeesrdquo e dos mundos diferentes que

poderiam nascer Como diraacute o filoacutesofo ldquotudo se passa como se tivessem

recalcado em seus mitos as suas vertigens e o seu pessimismo Kronos

devora seus filhos haacute no centro do mundo uma potecircncia que natildeo daacute o ser

senatildeo para tiraacute-lordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 206) haja vista que ldquoo

tempo dos filoacutesofos eacute antes uma potecircncia que natildeo destroacutei o ser senatildeo para

recriaacute-lo uma cintilaccedilatildeo do ser um impulso ininterrupto que acrescenta o

ser ao ser e imita de seu meio o imutaacutevelrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p

206) Deste modo a compreensatildeo do tempo segue antes os ldquociclos da

naturezardquo o que faz com que seu ldquoarranquerdquo ou ldquoimpulsordquo seja na verdade

apenas um ldquoretornordquo uma vez que a ordem humana deveria ser apenas um

reflexo da ordem da Natureza que por sua vez ancorava sua perfeiccedilatildeo nos

236

fundamentos de uma total ausecircncia de movimento O que acontece poreacutem

quando se muda este modo de entender o tempo O que mudaria com os

ldquohomens da histoacuteriardquo

Para o filoacutesofo o surgimento de uma espeacutecie de ldquoatmosfera da

histoacuteriardquo na qual tudo o que eacute feito pelo homem traz consigo a ldquoabertura de

um campordquo faz com que algo seja sempre fundado instituiacutedo retomado e

antecipado Natildeo se tem mais a compreensatildeo do tempo como um ldquoimpulso

naturalrdquo que nos seria anterior mas sempre o ldquosentimento de algo por fazerrdquo

Neste momento Merleau-Ponty compara a experiecircncia do tempo agrave mesma

que fazemos ao acordar pois do mesmo modo que nos concentramos em

um objeto para ldquovoltarmos a ser uma condutardquo um comportamento uma

relaccedilatildeo viva com o meio ldquo[] o tempo mais antigo eacute convocado para assistir

ao que vai voltar a ser em noacutesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207) o que faz

de nosso presente no entender do filoacutesofo um ldquoempreendimentordquo pois ldquopor

mais que pensemos nossas instituiccedilotildees nossos planos invadem o porvir

descontam dele o seu aumento natildeo funcionam senatildeo no meio histoacuterico natildeo

satildeo como se diz lsquocondicionadosrsquo agrave histoacuteria ndash e instalam os homens sem se

dar conta disso na atmosfera da histoacuteriardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p

207)

No entanto esta dinacircmica da histoacuteria natildeo pode nos levar a crer

que seja ela apenas uma ldquosegunda naturezardquo que ainda mantenha a

causalidade e a finalidade da natureza e a sua ldquoastuacuteciardquo estaria justamente

ao se ldquoinsinuar nelasrdquo em fazer com que elas falem a ldquosua linguagemrdquo que

sejam ldquodesviadas de si mesmasrdquo e nos leve a uma histoacuteria que natildeo seja

absoluta que natildeo seja um ldquouniverso de imanecircnciardquo tal como podemos

vislumbrar na ideia de ldquoprogressordquo ou mesmo na insinuaccedilatildeo de uma ldquoloacutegica

da histoacuteriardquo que no fundo trazem consigo a crenccedila em ldquo[] uma potecircncia

que vela as mudanccedilas da histoacuteria como a natureza vela a nossa

permanecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207) Neste aspecto Merleau-

Ponty estaria a nosso ver proacuteximo de Gadamer ao identificar em Wahrheit

und Methode dentre os conflitos da historiografia claacutessica a ideia de uma

ldquohistoacuteria da decadecircnciardquo que exigiria do imaginaacuterio moderno a necessidade

de ainda copiar as receitas metodoloacutegicas das Ciecircncias da Natureza e isto

237

quando o que se estaacute em jogo eacute a sua elevaccedilatildeo ao patamar de ldquociecircnciardquo de

ldquoinvestigaccedilatildeo cientiacuteficardquo Daiacute no fundo ainda a busca pelo ldquoimpereciacutevelrdquo

pelo ldquoimutaacutevelrdquo (GADAMER 2004 p 37-38) Eacute o que nos parece confirmar

Merleau-Ponty

Desde que se pensa por exemplo que o mundo antigo trazia em si mesmo o capitalismo como a planta traz a semente desde que se

trata o passado como o simples esboccedilo do presente a preacute-histoacuteria

como chegada de uma histoacuteria inelutaacutevel e esta enfim como o

anuacutencio de um fim e de uma consumaccedilatildeo da histoacuteria restabelecemos o tempo histoacuterico sob a categoria do tempo natural

[] A Greacutecia era o que ela era e podia nada sair dela por completo

ou [mesmo sair] algo diferente do que dela saiu A loacutegica do desenvolvimento que conduz dela a noacutes foi apenas pensada e apenas foi porque o Ocidente criou o tipo de sociedade as condiccedilotildees

materiais e intelectuais que tornavam possiacutevel a ideia de um

universo econocircmico e portanto a da Greacutecia como sociedade ldquopreacute-

capitalistardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207)

Para o filoacutesofo haacute na histoacuteria pelo que se pode notar uma

recusa em assumir a condiccedilatildeo de uma ldquosegunda naturezardquo um ldquouniverso de

imanecircnciardquo no qual as ldquodimensotildees do tempordquo seriam complementares O que

isto significa O que levaria o filoacutesofo a negar por exemplo a ideia de que

haveria uma ldquoenteleacutequiardquo pela qual o capitalismo seria fruto de um preacute-

capitalismo A suspeita de que ldquoa introspecccedilatildeo natildeo segue os traccedilos de uma

causalidade e de uma finalidade preacutevias []rdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p

207) E o que dizer entatildeo da gecircnese de um novo tempo histoacuterico ou mesmo

de um novo sistema Para o filoacutesofo ldquoeacute preciso dizer unicamente que se

arruinou a si mesmo que deixou o campo livre para outra coisa e que o

novo sistema natildeo era necessaacuterio entatildeo mesmo se o precedente natildeo fosse

mais possiacutevelrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207) pois um tempo ldquo[] natildeo

traz em si seu futuro possiacutevel a natildeo ser na medida em que ele exclui certas

restauraccedilotildees impossiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 208)128 Daiacute no que

diz respeito agrave histoacuteria a conclusatildeo de Merleau-Ponty

128 A este respeito continua Merleau-Ponty ldquoTalvez um dia apareccedila na histoacuteria sob o nome de ldquopreacute-socialismordquo Se isto acontecer aconteceraacute porque o socialismo teraacute se instituiacutedo e natildeo porque ele aguardava oculto no coraccedilatildeo do capitalismo E isto aconteceraacute por caminhos e desenvolvimentos que natildeo satildeo necessariamente os que deixam prever a anaacutelise do

238

O conceito de histoacuteria representa uma aquisiccedilatildeo capital da filosofia com a condiccedilatildeo de que natildeo a empreguemos como uma anti-metafiacutesica Por muito que substitua a metafiacutesica ao contraacuterio ela traz uma luz incomparaacutevel agrave mais profunda das questotildees metafiacutesicas o que eacute esta verdade que nasceu e que morreraacute o que eacute este sentido que retoma seus antecedentes sem poder se encerrar neles nem em seu futuro o que eacute esta afinidade que faz com que no simultacircneo e no sucessivo o homem interesse ao homem Natildeo como o animal interessa o animal porque se assemelham ou se completam mas na diferenccedila e na rivalidade natildeo na monotonia da natureza mas na desordem da histoacuteria Haacute uma descoberta da histoacuteria mas natildeo eacute a de uma coisa de uma forccedila ou de um destino eacute a de uma interrogaccedilatildeo e caso se queira de uma anguacutestia (MERLEAU-PONTY 2000b p 208)

Ora pensando na historiografia filosoacutefica como iriam ecoar

estas questotildees Seria esta tambeacutem a concepccedilatildeo de histoacuteria que

encontrariacuteamos ou antes haveria ali uma tendecircncia em marchar tambeacutem

segundo as antinomias impostas pelo criticismo A este respeito natildeo

podemos deixar de salientar que tendo em vista as contradiccedilotildees de uma

historiografia marcada pelo modelo das Ciecircncias da Natureza paralela a ela

surgiria tambeacutem toda uma tradiccedilatildeo fundamentada na claacutessica distinccedilatildeo

entre ldquoexplicaccedilatildeordquo (Erklaumlren) e ldquocompreensatildeordquo (Verstehen)129 Diferentemente

das ldquoCiecircncias da Naturezardquo marcada pela ldquoexplicaccedilatildeordquo precisa de uma

relaccedilatildeo causal as ldquoCiecircncias do Espiacuterito Historiograacuteficasrdquo conforme esta

tradiccedilatildeo iriam se guiar pelo meacutetodo compreensivo a saber pelo

empreendimento de retirada do que haacute de sentido nos fatos humanos O que

natildeo se podia mais legitimar era o esforccedilo positivista em natildeo levar em conta

os procedimentos proacuteprios de apreensatildeo de nossas ldquovivecircnciasrdquo130 No

capitalismo no seacuteculo XIX Talvez este futuro comece em pontos de nosso sistema aos quais natildeo prestamos atenccedilatildeo e que poderiacuteamos jaacute localizar se olhaacutessemos mais livremente o presente para adivinhar o que faraacute sua figura definitiva diante do futurordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 208) 129 Trata-se aqui especialmente de Droysen e Dilthey 130 Ao contraacuterio de ser o sujeito epistemoloacutegico especialmente em Dilthey considerava-se a vida o cerne da existecircncia humana O pensamento eacute formado pelo ldquotrabalho da vidardquo o que natildeo daacute voz a uma relatividade histoacuterica A soluccedilatildeo natildeo estaacute simplesmente em somar como que por mera adiccedilatildeo um horizonte temporal agravequilo que pode ser considerado como incondicional Pelo contraacuterio a vida eacute o fundamento da relatividade ou seja ldquoa temporalidade do incondicionalrdquo o ldquoincondicional no tempordquo Todavia a este respeito vale lembrar que de acordo com Gadamer (2004) Dilthey parecia ainda natildeo trazer consigo in thesi a pergunta pela histoacuteria e se manter no horizonte kantiano de uma indagaccedilatildeo das

239

entanto esta cisatildeo seria suficiente Teria a separaccedilatildeo entre ldquoexplicaccedilatildeordquo e

ldquointerpretaccedilatildeordquo resolvido de vez os impasses criados por esta espeacutecie de

ldquonaturalismordquo do discurso histoacuterico Da sua parte seria por esta distinccedilatildeo

de territoacuterios que marcharia tambeacutem a historiografia filosoacutefica

Antes poreacutem de refletirmos sobre a legitimidade desta

separaccedilatildeo torna-se necessaacuterio por sua vez verificarmos a suspeita de que

em um primeiro momento antes da descoberta da ldquocompreensatildeordquo ou

mesmo na tentativa de negaacute-la o historicismo acabara deixando no proacuteprio

discurso histoacuterico algumas consequecircncias e a principal delas no afatilde de

salvar o que teria de legiacutetimo em sua objetividade foi justamente a projeccedilatildeo

de uma historiografia tida como ldquoimparcialrdquo na qual o passado poderia ser

contemplado sem as interferecircncias desvirtuantes do proacuteprio historiador e de

sua eacutepoca Em outros termos seria o caso pois antes de pensarmos a sua

possibilidade verificarmos como essa cisatildeo se encarna no proacuteprio discurso

filosoacutefico uma vez que paralelamente aos movimentos da histoacuteria e de sua

metodologia precavida a filosofia jaacute tinha tomado uma direccedilatildeo que lhe

podia tambeacutem servir de defesa a saber a ideia de que diferentemente de

uma histoacuteria dos fatos a histoacuteria das ideias na condiccedilatildeo de doutrina natildeo se

encontraria associada a um ldquoacontecimento histoacutericordquo131 o que lhe afastaria

de qualquer possibilidade de determinaccedilatildeo (MONDOLFO 1963 p 41)132

Frente a tal medida preventiva acreditou-se que a histoacuteria do

pensamento teria se livrado daquele paradoxo que assombrava o historiador

dos ldquoacontecimentosrdquo a saber o conflito entre um ideal de objetividade e os

ataques do historicismo e o que permitia isto era justamente o fato de que

possibilidades epistemoloacutegicas da proacutepria histoacuteria embora proponha uma metodologia agraves Ciecircncias do Espiacuterito 131 Cabe-nos pesquisar futuramente em outra oportunidade como ficaria essa problemaacutetica relacionada agrave noccedilatildeo heideggeriana de Ereignis e qual seria a posiccedilatildeo de Merleau-Ponty 132 Eacute por isso que conforme Mondolfo nos adverte na historiografia filosoacutefica podemos vislumbrar a realizaccedilatildeo do famoso dictum de Ranke ldquoAcostumou-se atribuir agrave histoacuteria a tarefa de julgar o passado instruindo assim o presente em benefiacutecio dos tempos futuros Mas nosso trabalho natildeo aspira a uma tal funccedilatildeo eminente e soacute pretende mostrar como sucederam realmente as coisas (will bloβ zeigen wie es eigentlich gewesen)rdquo (MONDOLFO 1963 p 40) Logo ldquoacima de tudo o que importa eacute natildeo lsquojulgar o passado [filosoacutefico neste caso] em benefiacutecio do presenterdquo jaacute que a histoacuteria da filosofia pretende mostrar primeiramente lsquocomo se pensou realmentersquordquo (MONDOLFO 1963 p 42-3)

240

natildeo tendo por interesse conhecer o passado a tarefa radicava-se em verificar

se a arquitetocircnica argumentativa que formava uma obra do pensamento

poderia ser considerada vaacutelida em conformidade com paracircmetros loacutegicos da

proacutepria razatildeo o que era possiacutevel por se tratar de ldquoideias abstratasrdquo Teria

sido tal incursatildeo suficiente para lhe salvar dos paradoxos que viriam sofrer

em geral uma ldquohistoacuteria dos acontecimentosrdquo e sua historiografia Natildeo teria

sofrido a filosofia do mesmo infortuacutenio de Eacutedipo ao tentar fugir de seu

ldquodestinordquo O fato eacute que esta ldquohistoriografia filosoacuteficardquo densamente

intelectualista trazia ainda consigo o ideaacuterio de uma imparcialidade

esboccedilada em uma tarefa de ldquoexplicaccedilatildeordquo (Erklaumlren) tal como no manuseio da

ldquoobjetidade cientiacuteficardquo Assim ela natildeo teria outro destino senatildeo as medidas

de um ldquosujeito imparcialrdquo No final das contas ao privilegiar a ldquoexplicaccedilatildeordquo a

historiografia filosoacutefica ainda permaneceria cativa da concepccedilatildeo claacutessica de

ldquohistoacuteriardquo que no fundo aqueacutem do criticismo apontava antes um fundo

claacutessico Eacute neste sentido que para Merleau-Ponty esta tradiccedilatildeo se

encontrava em meio a um impasse o mesmo impasse que a condenava ao

fracasso Em especial qual seria o ldquoalvordquo de sua criacutetica Quem melhor

expressaria essa tradiccedilatildeo Nos movimentos de qual historiografia filosoacutefica

encontrariacuteamos ainda as sombras e os fantasmas deste modo barroco de

tratar a histoacuteria

A nosso ver trata-se aqui do meacutetodo estrutural-geneacutetico de

Martial Gueacuteroult No que lhe diz respeito apesar da sua inquestionaacutevel

importacircncia para uma reflexatildeo acerca da filosofia e sua histoacuteria vale-nos

dizer que segundo Merleau-Ponty ainda faltaria ao meacutetodo gueroultiano

uma ldquoradicalidaderdquo A ressalva de Merleau-Ponty emerge justamente na

leitura que Gueacuteroult faz da obra de Descartes Como assinala o proacuteprio

Merleau-Ponty agraves margens de uma de suas notas ineacuteditas ldquoBem entendido

natildeo haacute nada a dizer contra uma leitura completa e que segue a ordem das

razotildees Resta saber se ela eacute suficiente noacutes dizemos [se eacute suficiente] agrave

proacutepria histoacuteria da filosofiardquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VI (67 verso)) O

que o filoacutesofo pretendia dizer com estas palavras A seguir tentaremos

encontrar uma possiacutevel resposta a esta questatildeo Vejamos

241

43 O horizonte intelectualista de fundo cartesiano presente na histoacuteria da filosofia ldquoa ordem das razotildeesrdquo ndash Da leitura de Descartes agrave historiografia filosoacutefica No cerne da recusa de Merleau-Ponty agrave historiografia filosoacutefica

tradicional certamente encontramos as criacuteticas feitas muitas vezes

discretas ao meacutetodo estrutural-geneacutetico de Gueacuteroult A criacutetica a Gueacuteroult

natildeo se daacute seguindo o modo tal como ela se apresenta em Merleau-Ponty no

sentido de desmerecer seus trabalhos de historiografia filosoacutefica mas

apontar alguns de seus limites Neste sentido partimos do pressuposto de

que a leitura de Descartes retratada em seu ceacutelebre livro Descartes seacutelon

lrsquoordre des raisons acabara por se instituir como um dos fundamentos de

sua historiografia tornando-a pois em alguns aspectos cartesiana133 Por

conseguinte iremos nos centrar especialmente no prefaacutecio desta obra ndash logo

em um texto sobre Descartes e natildeo propriamente sobre historiografia

filosoacutefica134 ndash por perceber ali uma espeacutecie de esboccedilo programaacutetico de seu

meacutetodo o que Deleuze parece nos corroborar como veremos mais adiante

aleacutem de tantos outros filoacutesofos que confirmam a importacircncia deste livro

importacircncia que transcende o acircmbito de uma simples monografia filosoacutefica

sobre um autor claacutessico do seacuteculo XVII

Nossa pretensatildeo seraacute pois assinalar como problemaacutetica a

instauraccedilatildeo ou a insinuaccedilatildeo de que a leitura proacutepria a um determinado

filoacutesofo possa instituir-se como modelo na leitura de outras filosofias

vislumbrando nisto alguns pressupostos proacuteprios ao ideaacuterio iluminista no

tratamento da histoacuteria Nossa incursatildeo a Descartes nas linhas a seguir natildeo

se daraacute no sentido de estudaacute-lo mas de ver como haveria uma relaccedilatildeo entre

a leitura de seus textos e o meacutetodo historiograacutefico em questatildeo Pensando

nisso nossa principal questatildeo seraacute a de compreender por que a partir de

133 ldquoOr il semble qursquoune fois satisfaites les exigences de la critique historique la meilleure meacutethode ce soit bien en lrsquoespegravece drsquoanalyser les structures de lrsquooeuvre Reommandable pour toutes les philosophies cette analyse paraicirct ici particuliegraverement neacutecessairerdquo (GUEacuteROULT 1968 vol 1 p 12) 134 Centramo-nos especialmente neste texto talvez em prejuiacutezo de tantos outros textos ceacutelebres de Gueacuteroult sobre historiografia filosoacutefica por considerar ali tambeacutem estarem mais bem expressas as questotildees que procuraremos elucidar

242

uma compreensatildeo da Filosofia e da proacutepria Razatildeo como experiecircncia do

pensamento haveria em Merleau-Ponty uma constante insatisfaccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao meacutetodo estrutural-geneacutetico e isso apesar de suas inquestionaacuteveis

contribuiccedilotildees

Conforme Gueacuteroult uma leitura seacuteria de qualquer filosofia deve

abandonar antes de tudo os ldquojogos de reflexatildeordquo que se esquecem de

subordinar a compreensatildeo agrave explicaccedilatildeo Tendo por referecircncia Victor Delbos

o filoacutesofo procura fugir das ilusotildees que invadem todo aquele que pretende

compreender uma filosofia prescindindo da (ex)-plicaccedilatildeo de um exerciacutecio

racional de ldquodesdobramentosrdquo de ideias Compreendendo apenas a si mesmo

o leitor natildeo tem outro destino senatildeo o de se tornar uma viacutetima da ldquofantasiardquo

deixando o entendimento exilado em algum caacutercere distante Pelo contraacuterio

longe do vocirco de Iacutecaro o leitor deve se prender ou melhor se deixar prender

pelas ldquoredes estreitas de um textordquo135 Ora tenhamos pelo pensamento o

devido respeito natildeo eacute ele um ldquomonumentordquo semelhante ao pensador de

Rodin a uma fortaleza agrave la Vauban Frente ao monumento pouco importam

as luzes que na histoacuteria jaacute o iluminaram Pouco importa a histoacuteria a

recomendaccedilatildeo de Descartes eacute justamente que fechemos o livro de histoacuteria

caso ela nos ldquodesencorajerdquo136 Eacute preciso abandonar toda ldquoteoria romanceadardquo

que tenha por vista a ldquocompreensatildeordquo como procedimento de leitura filosoacutefica

Como deixar de ser uma mariposa que apenas nas noites de veratildeo encontra

a verdade por acaso137 A resposta de Gueacuteroult eacute direta centremo-nos nas

estruturas arquitetocircnicas que constituem um texto O que isto significa

135 Movimento que se expressa tatildeo bem pelo verbo francecircs srsquoempieacuteger na ideia de um ldquoenvolvimento reciacuteprocordquo 136 ldquoLa veacuteriteacute historique est ce qursquoelle est Il faut fermer les livres drsquohistoire si elle vous rebute On se gardera en tout cas de la travestir pour la rendre plaisante Crsquoest le conseil que Descartes nous donne pour toutes les espegraveces de veacuteriteacute y compris celles qui nous concernent nous-mecircmes lsquoJe nrsquoapprouve point qursquoon tacircche agrave se tromper en se repaissant de fausse imaginations Crsquoest pourquoi voyant que crsquoest une plus grande perfection de connaicirctre la veacuteriteacute encore mecircme qursquoelle soit agrave notre deacutesavantage que de lrsquoignorer jrsquoavoue qursquoil vaut mieux ecirctre moins gai et avoir plus de connaissance Aussi nrsquoest-ce pas toujours lorsqursquoon a le plus de gaicircteacute qursquoon a lrsquoesprit plus satisfait au contraire les grandes joies sont ordinairement mornes et seacuterieuses et il nrsquoy a que les meacutediocres et passagegraveres qui soient accompagneacutees du risrsquordquo (GUEacuteROULT 1968 p 13) 137 ldquoIl est possible en effet de srsquoimaginer comprendre sans expliquer lorsque croyant comprendre autrui on ne fait que se comprendre soi-mecircme Cette illusion ne manque pas

243

O texto eacute sobretudo constituiacutedo por uma rede precisa de um

rigoroso encadeamento de ideias Nada mais distante da filosofia pensa

Gueacuteroult que o esquecimento do texto que a certeza de que o ldquodemocircnio da

filosofia natildeo faz caso do textordquo Ora como isto eacute possiacutevel Neste momento o

filoacutesofo natildeo deixa de lanccedilar uma linha do Fausto Ich Bin der Geist der stets

verneint138 O que eacute um espiacuterito O que eacute o ldquodemocircniordquo da Filosofia Na fala

de Mefistoacutefeles Gueacuteroult vislumbra a ilusatildeo e o deliacuterio do modo como os

filoacutesofos satildeo geralmente lidos Se a Filosofia tem algum democircnio com

certeza ele natildeo nega o texto ele natildeo eacute um fantasma enganador como o de

Goethe A Filosofia natildeo se ilude com fumaccedilas natildeo gosta de ldquojogosrdquo natildeo se

afirma por aquilo que ela natildeo eacute quer dizer pelo seu contraacuterio ou por sua

negaccedilatildeo O filoacutesofo natildeo frequenta o Oraacuteculo de Delfos Se Gueacuteroult

descrevesse o ldquodemocircniordquo da Filosofia certamente ele deixaria de lado as

sacerdotisas do Templo de Apolo Talvez diria que ousemos afirmar ldquoo

democircnio da filosofia natildeo faz caso da sibilardquo O texto natildeo exige para ser

decifrado nada menos do que uma teacutecnica que o filoacutesofo gentilmente nos

oferece a) a criacutetica propriamente dita b) a anaacutelise das estruturas

(GUEacuteROULT 1968 p 10)

Longe dos ldquoardisrdquo da interpretaccedilatildeo natildeo nos espanta que

Gueacuteroult se vanglorie do abandono do ldquotemperamento do inteacuterpreterdquo da

ldquosituaccedilatildeo existencialrdquo No entanto haacute um caso em que a ldquointerpretaccedilatildeo eacute

vaacutelidardquo quando desejamos conhecer ldquoreaccedilotildees pessoaisrdquo de um grande

pensador Nos outros casos qualquer incompatibilidade de interpretaccedilatildeo

deve ser entendida como um erro pois como nos ensina a Regula X ldquotodas

as vezes que dois homens versam um julgamento contraacuterio sobre a mesma

de naicirctre lorsque la fantasie lrsquoemporte sur lrsquoentendement On satisfait alors agrave une imagination vive et impatiente qui plutocirct que de srsquoempieacuteger dans les mailles eacutetroites drsquoun texte trouve en celui-ci lrsquooccasion de prendre librement son vol quitte agrave revenir de temps en temps se percher sur des reacutefeacuterences piqueacutees au bas de pages Ces geacuteneacutereuses effusions qui procegravedent par illuminations plutocirct que par stricte analyse peuvent sans doute rencontrer ccedilagrave et lagrave quelque veacuteriteacute mais comme par une heureuse fortune tel le papillon de nuit qui vient herteur par harsard le globe lumineux autour duquel il tourne Si elles peuvent procurer le sentiment du lsquocomprendrersquo crsquoest au profit drsquoune doctrine romanceacutee ougrave le roman impose agrave la doctrine des perspectives et un climat eacutetrangersrdquo (GUEacuteROULT 1968 p 9) 138 ldquoEu sou o espiacuterito que negardquo

244

coisa eacute certo que um dos dois se engana Aleacutem disso nenhum dos dois

possui a verdade pois se houvesse uma visatildeo clara e niacutetida poderia expocirc-la

a seu adversaacuterio de tal modo que acabaria por forccedilar sua convicccedilatildeordquo

(GUEacuteROULT 1968 p 10) O proacuteprio Gueacuteroult nota a pouca probabilidade

desta regra pois sabe das artimanhas da imaginaccedilatildeo frente o entendimento

Como resolver este problema Abandonando a preocupaccedilatildeo pela

ldquoexclusividade da verdaderdquo para pensar na ldquoaplicaccedilatildeo do meacutetodordquo Neste

movimento todavia Gueacuteroult esquece-se de pensar algo significativo a

incursatildeo para o meacutetodo resolve o problema da verdade A essa indagaccedilatildeo

talvez Gueacuteroult nos lembre do significado na cadeia das razotildees do Malin

Geacutenie Essa pergunta nesse momento pouco importa agrave arquitetocircnica do

texto O importante eacute que destas observaccedilotildees foi possiacutevel encontrar uma

ldquoanaacutelise particularmente necessaacuteriardquo para se ler Descartes e ldquorecomendaacutevelrdquo

a toda e qualquer obra filosoacutefica

Seguindo as recomendaccedilotildees de Descartes natildeo deixaremos de

entendecirc-lo de entendecirc-lo como ele gostaria de ser entendido honrosamente

por meio de um rationum nexus de um encadeamento racional totalmente

distante do non-sens da sucessatildeo biograacutefica da simples sequecircncia das

mateacuterias de temas e problemaacuteticas parciais Seguindo a ordem das razotildees eacute

possiacutevel explicar com exatidatildeo o pensamento cartesiano o pensamento

que como um monumento oferece ao entendimento a capacidade de

vislumbrar sua eternidade A cadeia das razotildees sabe muito bem acorrentar

as ideias que constituem a arquitetocircnica de um pensamento Com a

dignidade de quem deixa de ser como a Obra de Arte ldquosimples possibilidade

material de agir sobre a sensibilidade esteacutetica do sujeitordquo (GUEacuteROULT 1968

p 11) o pensamento resiste agraves injuacuterias assim como o pensador de Rodin a

toda leitura ldquoneuroacuteticardquo que possa acusaacute-lo de ansiedade depressatildeo ou

qualquer outra psicastenia A psicologia de Janet como toda psicologia natildeo

tem espaccedilo no gabinete de um filoacutesofo seacuterio que natildeo se deixa levar por

esvoaccedilantes deliacuterios Uma explicaccedilatildeo filosoacutefica portanto deve estar fechada

hermeticamente a toda leitura que se espraie pelo psicoloacutegico do mesmo

modo que natildeo se deve deixar iludir pela Histoacuteria mesmo ela no intuito de se

fazer ldquoapraziacutevelrdquo tenha sido travestida

245

Para o autor de Descartes selon lrdquoordre des raisons a criacutetica

propriamente dita se faz presente nas obras de Gilson Gouhier Laporte

dentre outros Poreacutem a anaacutelise das estruturas segundo ele apesar dos

esforccedilos de Brunschvicg eacute algo ainda por fazer algo que o seu livro procura

inaugurar apesar do despretensioso desejo de natildeo se prender agrave hybris da

ldquoinovaccedilatildeordquo Ler uma filosofia insiste Gueacuteroult natildeo eacute separar o ldquojoio do trigordquo

buscar o que haacute de verdadeiro em uma doutrina pensada per si frente agrave sua

recepccedilatildeo nas ciecircncias O segredo estaacute na anaacutelise objetiva das estruturas

Este procedimento no entanto natildeo seria vaacutelido apenas para Descartes O

filoacutesofo eacute enfaacutetico ao afirmar que ldquoa descoberta de tais estruturas eacute capital

para o estudo de toda filosofia pois eacute por elas que se constitui seu

monumento a tiacutetulo de filosofia eacute por oposiccedilatildeo agrave faacutebula ao poema agrave

elevaccedilatildeo espiritual ou miacutestica agrave teoria cientiacutefica geral ou agraves opiniotildees

metafiacutesicasrdquo (GUEacuteROULT 1968 p 10) Eacute certo que haacute na aplicaccedilatildeo desta

teacutecnica especificidades proacuteprias agrave leitura do pensamento cartesiano no

entanto eacute inegaacutevel que o historiador do pensamento vecirc neste procedimento

um modelo de se fazer Histoacuteria da Filosofia Ler um filoacutesofo eacute antes de tudo

descobrir as estruturas demonstrativas que satildeo dadas atraveacutes de uma

combinaccedilatildeo de meios loacutegicos e arquitetocircnicos Aqui longe de pensar que

haveria entre Filosofia e Obra de Arte uma arquitetocircnica comum Ao

contraacuterio da arquitetocircnica da Obra de Arte a da Filosofia natildeo afeta a nossa

sensibilidade natildeo afeta o sujeito mas apenas exige um consentimento do

Juiacutezo O leitor de filosofia natildeo tem outro papel senatildeo o de ser uma instacircncia

ratificadora Eacute neste espiacuterito que conforme Gueacuteroult devemos ler Descartes

Como todavia alcanccedilar estas estruturas Seguindo as recomendaccedilotildees

diretas ou indiretas do proacuteprio autor lendo-o como ele gostaria de ser lido

Neste caso seguindo um preceito cartesiano

Na aproximaccedilatildeo das estruturas arquitetocircnicas de Descartes

Gueacuteroult se inspira em algumas indicaccedilotildees que o filoacutesofo do seacuteculo XVII dera

sobre como melhor extrair o que haacute de grandioso nas obras dos ldquogecircnios

superioresrdquo Trata-se de cartas endereccediladas a Voeumlt a Mersenne e a

Eacutelisabeth em trechos das Meditationes das Regulaelig dos Principes e do

Discours de la Meacutethode Embora a Histoacuteria da Filosofia tenha sido

246

excomungada pelo Tribunal da Razatildeo Cartesiana Descartes daacute algumas

diretrizes nestas obras de como ler sua filosofia Natildeo se explica uma

filosofia por fragmentos seguindo a ldquoordem das mateacuteriasrdquo139 mas a partir do

seu todo Nada de ldquorecortesrdquo ou como diraacute o Prefaacutecio das Meditationes nada

de ldquoepilogar sobre o textordquo nada de se descuidar da seacuterie e do nexo das

razotildees prendendo-se em partes soltas ldquoin singulas tantum clausulasrdquo Agindo

por ldquorecortesrdquo nega-se a exatidatildeo exigida por uma explicaccedilatildeo seacuteria ofende-

se a proacutepria loacutegica do pensamento fazendo com que possam ser extraiacutedas

afirmaccedilotildees contraacuterias do seio de uma mesma filosofia comete-se o mesmo

crime pelo qual os sofistas foram mal-vistos pela tradiccedilatildeo e a razatildeo medieval

se tornara uma pedra salgada a insidiosa maacutequina da dialeacutetica

Haacute pensa Gueacuteroult uma dupla exigecircncia ou um duplo princiacutepio

em Descartes que emerge de uma ldquoideia seminalrdquo ldquo[] o saber tem limites

intransponiacuteveis fundados naqueles de nossa inteligecircncia mas que no

interior desses limites a certeza eacute inteirardquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 15) A

partir desta maacutexima emerge um princiacutepio que se faz notar nas Regulaelig e

outro que se articula melhor nas Meditationes Enquanto o primeiro eacute

filosoacutefico o segundo eacute metodoloacutegico O princiacutepio filosoacutefico se refere a um

ldquoprimado da reflexatildeo sobre sirdquo a um exame dos limites e do alcance do

entendimento O princiacutepio metodoloacutegico refere-se agrave duacutevida hiperboacutelica de

Descartes que podendo duvidar de tudo natildeo lhe eacute permitido duvidar da

razatildeo humana No uso da duacutevida como meacutetodo Descartes alcanccedila o Cogito

o espiacuterito visto que como professa a ldquoSegunda Meditaccedilatildeordquo ldquoo Cogito eacute o

primeiro de nossos conhecimentos o espiacuterito eacute mais faacutecil de conhecer que o

corpo pois o espiacuterito se conhece sem o corpo mas o corpo natildeo se conhece

sem o espiacuterito []rdquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 16) Nesta articulaccedilatildeo do

139 Aqui poreacutem faz-se necessaacuterio distinguir entre uma ldquoordem das razotildeesrdquo a qual Descartes se refere e uma ldquoordem das mateacuteriasrdquo que ele nega radicalmente A ldquoordem das mateacuteriasrdquo eacute caracterizada por ser convencional e por tratar cada mateacuteria como um todo por se prender a aspectos e temas de um determinado pensamento Pelo contraacuterio a ldquoordem das razotildeesrdquo eacute marcada pela necessidade cada mateacuteria ou tema tem sentido apenas se relacionados com outros se ligados entre si a ponto de constituiacuterem uma cadeia uma corrente na qual cada componente tem um lugar especiacutefico e um papel reservado Assim raciocinando por essa ordem Descartes pode organizar a cadeia de modo a seguir sempre no que se refere agraves ideias a faciolioribus ad difficiliora

247

pensamento cartesiano Gueacuteroult vecirc a abertura da ldquoera do idealismo

modernordquo e a inversatildeo do ldquoponto de vista escolaacutesticordquo (GUEacuteROULT 1968 v

1 p 16)

Todavia o importante no que foi dito como parece assinalar

Gueacuteroult eacute a preocupaccedilatildeo cartesiana em demonstrar a unidade da sapientia

humana o Cogito os limites do entendimento e o papel da duacutevida O

reconhecimento de uma ligaccedilatildeo entre ideias fundamentais do pensamento

cartesiano significa o reconhecimento da ldquounidade da continuidade e do

rigor racionaisrdquo que constituem o que eacute proacuteprio da filosofia de Descartes O

importante eacute perceber que

O esforccedilo do cartesianismo se engaja portanto desde o comeccedilo para a constituiccedilatildeo de um sistema total de saber certo ao mesmo tempo metafiacutesico e cientiacutefico sistema fundamentalmente diferente do sistema aristoteacutelico visto que inteiramente imanente agrave certeza matemaacutetica envolvida no intelecto claro e distinto mas ao menos total e mais estrito ainda em sua exigecircncia de rigor absoluto [] Nada mais sistemaacutetico para Descartes que sua doutrina Eacute para ele um uacutenico bloco de certeza sem fissura onde tudo estaacute ligado a tal ponto que nenhuma verdade pode ser ausentada sem que o conjunto desabe ldquoEu vejo que se engana facilmente em relaccedilatildeo agraves coisas que eu escrevi pois a verdade sendo indivisiacutevel a menor coisa que se retire dela ou que se acrescenta a ela a falsificardquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 18-9)

Ora qual eacute o cerne entatildeo do pensamento cartesiano A verdade

eacute um saber indiviso assemelha-se agrave luz que apesar de iluminar objetos

diferentes permanece a mesma Como fazer com que a filosofia se adeacuteque a

esta compreensatildeo de verdade Seguindo os passos da Matemaacutetica

tornando-se um ldquouacutenico e mesmo bloco de certezardquo ligando-se estritamente a

cadeias de ideias que natildeo deixem de seguir uma ordem a ordem das razotildees

A indivisibilidade da verdade exige uma reforma do modo de se fazer

filosofia agora voltada para o cumprimento de uma ordem140 O que isto

quer dizer O proacuteprio Descartes nos responde ldquoa ordem consiste nisto

140 Neste sentido conclui Gueacuteroult ldquola preacutecise restitution de lrsquoordre permettra de fixer non moins preacuteciseacutement la signification profonde de la doctrine et en deacuteceacutelera des aspects souvent ignoreacutes Notre intention toutefois nrsquoa pas de faire agrave tout prix du nouveau mais de faire de lrsquoexact Le banal pour nous vaut mieux que lrsquoineacutedit si lrsquoun est vrai et autre fauxrdquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 13)

248

somente que as coisas que satildeo propostas primeiras devem ser conhecidas

sem a ajuda das seguintes e que as seguintes devem estar dispostas de tal

modo que elas sejam demonstradas pelas uacutenicas coisas que as precedemrdquo

(DESCARTES 1996 l p 121 ndash IIa Obj) A doutrina cartesiana segundo

Gueacuteroult natildeo eacute outra coisa senatildeo um bloco de certeza que se constitui por

um encadeamento de verdades segundo a ordem (GUEacuteROULT 1968 v 1 p

20) A partir desta descriccedilatildeo como devemos ldquoexplicarrdquo a filosofia cartesiana

e fazendo dela um ldquomodelordquo de leitura outras filosofias tambeacutem O que isto

implica Uma leitura geograacutefica ndash situar onde uma ideia se encontra na

cadeia das razotildees ndash e estatiacutestica ndash apresentar a quantidade de ocorrecircncias de

cada ideia ndash da ldquoexplicaccedilatildeordquo filosoacutefica Eacute preciso seguir a ordem entender

porque uma ideia se encontra nesta ou naquela ldquoposiccedilatildeordquo do encadeamento

antes ou depois Cada mateacuteria se encontra posicionada na cadeia das

razotildees de modo ldquonecessaacuteriordquo Sendo assim natildeo haacute como criticar uma ideia

que natildeo fora anteriormente explicitada Ligados matematicamente os termos

natildeo podem ser inquiridos por algo que lhes seja ldquoestranhordquo Se A foi dito

antes de B A eacute condiccedilatildeo de B e pelo jeito condiccedilatildeo suficiente e necessaacuteria

Tarefa da Histoacuteria da Filosofia procurar saber o porquecirc do posicionamento

de uma ideia dentre outras no conjunto de um pensamento filosoacutefico A

verdade do pensamento encontra-se apenas nele mesmo no interior da

corrente das razotildees fazendo com que a referecircncia a questotildees exteriores

como a experiecircncia natildeo passe de non-sens A experiecircncia serve apenas para

verificar hipoacuteteses e princiacutepios previamente postulados pela razatildeo e natildeo

para sugeri-los

Para Descartes a ordem pode por sua vez subdividir-se em

duas a saber a ldquoordem sinteacuteticardquo e a ldquoordem analiacuteticardquo Assim o Discours de

la Meacutethode e as Meditationes seguem a ldquoordem analiacuteticardquo ao passo que os

Principes seguem a ldquoordem sinteacuteticardquo Qual a diferenccedila das duas ordens Na

ldquoordem analiacuteticardquo natildeo apenas haacute a ldquoapresentaccedilatildeordquo de um determinado

raciociacutenio mas a ldquodemonstraccedilatildeordquo de seu meacutetodo do modo pelo qual ele foi

elaborado Jaacute na ldquoordem sinteacuteticardquo haacute uma apresentaccedilatildeo simultacircnea do

raciociacutenio sem referecircncias a justificativas ou explicitaccedilotildees que conduziram

ateacute a conclusatildeo do argumento Sem duacutevida como ele mesmo confirmaraacute

249

Descartes prefere a via analiacutetica dado que em Metafiacutesica haacute sempre uma

ldquodiscordacircnciardquo com os sentidos que precisa ser elucidada Para Descartes a

ldquoordem analiacuteticardquo eacute a ordem da invenccedilatildeo da anaacutelise da ratio cognoscendi ao

passo que a ldquoordem sinteacuteticardquo eacute o que eacute instituiacutedo pelos resultados da

ciecircncia pela verdade da coisa pela ratio essendi (GUEacuteROULT 1968 v 1 p

26) Na ldquoordem analiacuteticardquo o Cogito eacute o ponto de partida ele se constitui como

a ldquoprimeira verdaderdquo do sujeito Soacute a partir deste princiacutepio eacute possiacutevel

conhecer uma ideia tatildeo perfeita como a de Deus e soacute depois as outras

ideias Haacute sempre um movimento na cadeia das razotildees dos elementos mais

simples para os mais complexos Na ldquoordem sinteacuteticardquo todavia Deus seria

apenas o componente de uma cadeia a argola de uma corrente O Cogito

estaria submetido agrave existecircncia real das coisas dos seres nesse caso de

Deus Como precisaraacute Gueacuteroult

Com efeito a demonstraccedilatildeo analiacutetica que se coloca no ponto de vista da ratio cognoscendi e que consiste em inventar conhecimentos verdadeiros de tal modo que eles nos apareccedilam como necessaacuterios e certos chega a pocircr fora de mim realidades que tendem a se dispor no ponto de vista de sua ratio essendi segundo a ordem sinteacutetica de sua dependecircncia em si Sendo dado que a ordem de condiccedilotildees de minha certeza que natildeo eacute de nenhum modo o da dependecircncia real das coisas remete a esse uacuteltimo como o conhecimento remete a seu objeto nada eacute mais faacutecil que fazecirc-los interferir e interromper assim a corrente demonstrativa Disso resultam confusotildees mestras fontes de graves erros de interpretaccedilatildeo e de censuras injustificadas concernentes agrave validade das provas (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 27-8)

No trecho acima temos um esboccedilo da distinccedilatildeo entre as ordens

O conhecimento desta diferenciaccedilatildeo se faz necessaacuteria sobretudo para que

natildeo caiacuteamos no erro de confundi-las embora isto seja um ldquoperigo

permanenterdquo Gueacuteroult apresenta estas diferenciaccedilotildees na tentativa de

compreender o pensamento cartesiano Eacute curioso a nosso ver que Deleuze

as entenda procurando talvez ser fiel agrave proposta gueroultiana como

componente de uma proposta geral vaacutelida para outros ldquosistemasrdquo uma vez

que tal uso do meacutetodo possa de certo modo contribuir para a leitura de um

250

texto filosoacutefico141 Deleuze natildeo vecirc nestas duas ordens apenas uma

ldquooposiccedilatildeordquo mas uma diferenccedila estruturalmente mais profunda Natildeo haacute uma

oposiccedilatildeo sumaacuteria mas um ldquoreviramento particularrdquo Haacute um meacutetodo de

invenccedilatildeo nas duas ordens pois o que diferencia natildeo eacute a ldquodisposiccedilatildeo do

argumentordquo mas a constataccedilatildeo de que ou a estrutura se constitui mais por

razotildees de conhecer (ratio cognoscendi) ou mais por razotildees de ser (ratio

essendi) Isto eacute o que permite a Gueacuteroult conforme a leitura deleuziana

considerar o meacutetodo de Kant (analiacutetico) em contraponto ao de Fichte

(sinteacutetico) Para Deleuze no entanto parece que o mais importante desta

compreensatildeo eacute que ldquoem nenhum caso a ordem das razotildees eacute uma ordem

oculta Ela natildeo remete a um conteuacutedo latente a algo que natildeo seria dito

mas ao contraacuterio estaacute sempre agrave flor da pele do sistema [] Eacute mesmo por

isso que o historiador da filosofia segundo Gueacuteroult nunca eacute um interpreterdquo

(DELEUZE 2006 p 190) E acrescenta

A estrutura nunca eacute um dito que devesse ser descoberto sob o que eacute dito soacute se pode descobri-la seguindo a ordem expliacutecita do autor E embora sempre expliacutecita e manifesta a estrutura todavia eacute o mais difiacutecil de se ver sendo negligenciada desapercebida pelo historiador das mateacuterias ou das ideias eacute que ela eacute idecircntica ao fato de dizer puro dado filosoacutefico (factum) mas constantemente desviado pelo que se diz pelas mateacuterias tratadas pela ideias decompostas Ver a estrutura ou a ordem das razotildees portanto eacute seguir o caminho ao longo do qual as mateacuterias satildeo dissociadas segundo as exigecircncias dessa ordem ao longo do qual as ideias satildeo decompostas segundo seus elementos diferenciais geradores ao longo do qual esses elementos ou essas razotildees se organizam em ldquoseacuteriesrdquo havendo tambeacutem cruzamento pelos quais as seacuteries independentes formam um ldquonexusrdquo e entrecruzamentos de problemas ou de soluccedilotildees (DELEUZE 2006 p 190-1)

141 A nosso ver eacute interessante o modo como Deleuze servindo-se de orientaccedilotildees aparentemente proacuteprias agrave leitura de Descartes tais como ldquorazotildees de conhecerrdquo e ldquorazotildees de serrdquo ndash expressotildees introduzidas em Descartes selon lrdquoordre des raisons respectivamente como ratio cognoscendi e ratio essendi ndash faz delas questotildees intriacutensecas a um meacutetodo geral de ldquoexplicarrdquo filosofias Deleuze afirma isso no momento em que comenta a publicaccedilatildeo do livro de Gueacuteroult sobre Espinosa O filoacutesofo para falar do meacutetodo geral que alcanccedila sua forma acabada na publicaccedilatildeo desse novo livro de Gueacuteroult parece-nos claramente centrar-se ao menos nas primeiras linhas de seu comentaacuterio no livro sobre Descartes especialmente no capiacutetulo do primeiro volume intitulado ldquoMeacutetaphysique carteacutesienne et ordre des raisonsrdquo Seguindo os movimentos da argumentaccedilatildeo deleuziana somos confirmados na impressatildeo de que o ponto central desse capiacutetulo estaacute na distinccedilatildeo cartesiana entre uma ordem sinteacutetica (ratio essendi) e uma ordem analiacutetica (ratio cognoscendi)

251

Encontramo-nos pois no delineamento da leitura gueacuteroultiana

de Descartes diante de importantes aspectos do meacutetodo estrutural-geneacutetico

que na opiniatildeo de Deleuze renovou a histoacuteria da filosofia e tratara com

profundidade avant la lettre questotildees proacuteprias ao estruturalismo

(DELEUZE 2006 p 189) A felicidade de Gueacuteroult assim parece salientar

Deleuze estaacute em seguir em cada autor a ordem que determina o seu

empreendimento filosoacutefico O meacutetodo estrutural-geneacutetico no prisma

deleuziano alcanccedilava seu auge na ldquoexplicaccedilatildeordquo de Espinosa feita por

Gueacuteroult O meacutetodo alcanccedila sua plenitude apoacutes uma serie de aplicaccedilatildeo em

autores como Descartes Malebranche Leibniz e Espinosa Seraacute este um

caminho coerente para a Histoacuteria da Filosofia Teraacute Gueacuteroult lanccedilado

mesmo as bases para uma compreensatildeo autenticamente vaacutelida das

filosofias da ldquocriaccedilatildeo filosoacuteficardquo Teraacute ele conseguido expurgar o vil

inteacuterprete que ardilosamente sente prazer em ser viacutetima da ldquofantasiardquo

Agora podemos nos voltar para Merleau-Ponty Em um curso dado no

Collegravege de France intitulado Lrsquoontologie carteacutesienne et lrsquoontologie

drsquoaujourdrsquohui como em vaacuterios outros momentos e inclusive desde os

primeiros trabalhos ele parece nos conduzir a uma outra direccedilatildeo Merleau-

Ponty seria neste caso um grande oponente ao meacutetodo estrutural-geneacutetico

Em oposiccedilatildeo a este meacutetodo qual seria a sua proposta Que trilhas iriam ser

percorridas pelo pensamento merleau-pontiano e que consequecircncias uma

ldquohistoriagrafia filosoacuteficardquo radical poderia auferir de sua deacutemarche

44 Merleau-Ponty e a Histoacuteria do Pensamento a filosofia interrogativa o ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] o sentido da Fecircnix 441 Um ponto de partida Da ldquoordem das razotildeesrdquo agraves ldquorazotildees da ordemrdquo ndash a busca pelo sentido da ldquoordem cartesianardquo Para Merleau-Ponty precisamos pensar uma historiografia que

natildeo seja simplesmente jaacute viacutetima de um arqueacutetipo de um modelo universal

previamente estabelecido mas que consiga aproximar-se sem romper com

as tramas da ldquoexplicaccedilatildeordquo de uma compreensatildeo da histoacuteria da filosofia em

sua multiplicidade de horizontes Eacute neste sentido que procuraremos

252

verificar em Merleau-Ponty o modo como se esboccedila esta historiografia

primeiramente voltando-nos agraves tentativas do filoacutesofo em suas notas

ineacuteditas de superaccedilatildeo da arquitetocircnica gueroultiana ao pensar no conceito

cartesiano de ldquoordemrdquo Em algumas delas podemos encontrar o modo como

Merleau-Ponty pretende ler a filosofia de Descartes o que nos daacute tambeacutem

algumas pistas de como poderiacuteamos compreender a sua posiccedilatildeo frente a

uma historiografia filosoacutefica (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN

9587)) O filoacutesofo comeccedila de imediato fazendo referecircncia a um trecho das

Meacuteditations e da Lettre de Descartes a Voeumlt trechos citados igualmente por

Gueacuteroult em Descartes selon lrsquoordre des raisons

O que haacute de importante e de uacutetil nos livros dos gecircnios anteriores natildeo consiste neste ou naquele pensamento que deles se possa extrair o fruto precioso que eles contecircm deve sair do corpo inteiro da obra (DESCARTES 1996d p 41 GUEacuteROULT 1968 v 1 p 11) [] Para os que sem se preocuparem muito com a ordem e a ligaccedilatildeo de minhas razotildees iratildeo se divertir em epilogar sobre cada uma das partes como fazem vaacuterios estes eu digo natildeo tiraratildeo grande proveito da leitura deste tratado (DESCARTES 1996f GUEacuteROULT 1968 v 1 p 12)

A dificuldade que se instala seria a de poder falar de Descartes

sem um conhecimento completo de sua obra partindo-se apenas de poucas

leituras meditando-se sobre textos isolados pondo-se a escrever de modo

contraacuterio agrave recomendaccedilatildeo cartesiana apenas comentaacuterios parciais Falar

sobre o pensamento cartesiano certamente exigiria mais do que a leitura

que se poderia fazer dele ldquoalgumas horas por mecircsrdquo Haveria pois a

necessidade para se ler e compreender uma linha de seus textos de se

poder localizar no todo de sua obra todos os locais em que cada tema e

cada mateacuteria se dispotildeem Acima de tudo natildeo poderiacuteamos nos esquecer do

fato de estarmos diante de um pensamento que ldquonatildeo se exprime por

proposiccedilotildees disjuntas mas por composiccedilatildeo progressivardquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587)) Qual a razatildeo Se seguirmos a ldquoordem

das razotildeesrdquo vale sempre a convicccedilatildeo de que no pensamento de Descartes

cada problema filosoacutefico natildeo eacute apresentado ldquofrequentemente e

deliberadamenterdquo em termos diferentes mas tem em vista uma ldquorelaccedilatildeordquo

tem o seu lugar assentado e situado em uma ldquoordemrdquo e soacute a partir dela

253

cada mateacuteria se torna compreensiacutevel Mas qual seria o problema deste

procedimento de leitura Natildeo eacute exatamente assim que o proacuteprio Descartes

gostaria de ser lido Para Merleau-Ponty o problema natildeo estaacute em se ler

Descartes tal como ele gostaria de ser lido nem muito menos em seguir a

ldquoordem de suas razotildeesrdquo pois

o que preocupa eacute que se opotildee este gecircnero de leitura agrave meditaccedilatildeo dos pensamentos ou das intuiccedilotildees uma a uma como se fosse necessaacuterio escolher como se houvesse uma verdade formal da ordem superior agrave verdade das intuiccedilotildees Porquanto eacute uma sequecircncia de pensamentos em nenhuma parte interrompidas a maneira pela qual nossas intuiccedilotildees acompanham a sequecircncia uma da outra e [] a ordem intriacutenseca deve-se poder recapitular o que Descartes diz aqui e ali de Deus do homem ou da Natureza sob diferentes relaccedilotildees ndash De outro modo a ordem iria se tornar respeito iria se tornar uma maneira de compartimentar de posicionar de ter agrave distacircncia pensamentos dos quais se quer evitar a confrontaccedilatildeo [] (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))142

A este respeito Merleau-Ponty nota o modo como este meacutetodo

acabaria por limitar a compreensatildeo existente em Descartes na relaccedilatildeo

entre a ldquoprova ontoloacutegicardquo e as ldquoprovas regressivasrdquo problema que nos

remete agrave difiacutecil dualidade radicalizada pelos claacutessicos entre o plano do prov

h9ma~v [prograves hemacircs] e o do kaqrsquoauto [kathrsquoautoacute] o plano do ldquopara noacutesrdquo e o do

ldquoem si mesmordquo143 Por conseguinte natildeo seria suficiente a constataccedilatildeo de que

a ldquoprova ontoloacutegicardquo eacute primeiro ldquoem sirdquo e as ldquoprovas regressivasrdquo satildeo primeiro

ldquopara noacutesrdquo Mais do que isto para Merleau-Ponty seria preciso estabelecer

um confronto entre estes dois planos investigar e verificar de que modo

ocorre e isto caso ocorra a passagem de um a outro Nas palavras do

filoacutesofo seria esta a ldquotarefa mesmardquo que Descartes assumira com sua

142 ldquoCe qui inquiegravete crsquoest qursquoon oppose ce genre de lecture agrave la meacuteditation des penseacutees ou des intuitions une agrave une comme srsquoil y avait agrave choisir comme rdquo srsquoil y avait une veacuteriteacute formelle de lrsquoordre supeacuterieure agrave la veacuteriteacute des intuitions Puisqursquoil est une suite de penseacutees nulle part interrompues la maniegravere dont nos intuitions srsquoentresuivent et [hellip] ordre intrinsegraveque on doit pouvoir reacutecapituler ce que Descartes dit ici et lagrave de Dieu de lrsquohomme ou de la Nature sous diffeacuterents rapports ndash Autrement lrsquoordre deviendrait respect il deviendrait une maniegravere de cloisonner de mettre en place de tenir agrave distance des penseacutees dont on veut eacuteviter la confrontation []rdquo 143 Para os antigos a diferenccedila entre o que uma coisa eacute ldquoem sirdquo e o que eacute ldquopara noacutesrdquo adquire uma outra feiccedilatildeo Basta pensar por exemplo na concepccedilatildeo aristoteacutelica para o qual na Eacutetica o que eacute bom ldquoem sirdquo deve ser tambeacutem bom ldquopara noacutesrdquo Geralmente quando se trata dos claacutessicos eacute notaria a distinccedilatildeo entre o que a coisa eacute ldquoem sirdquo e como eacute tal como ldquoaparecerdquo ldquopara noacutesrdquo

254

filosofia Natildeo podemos desconsiderar o fato de que o pensamento cartesiano

promova a junccedilatildeo destas duas provas talvez nos indicando a inexistecircncia de

ldquodois planosrdquo mostrando-nos que ldquo[] o ser eacute apenas acessiacutevel pela

meditaccedilatildeo quer dizer por um pensamento que prova menos por premissas

do que desenrola implicaccedilotildeesrdquo144 Logo natildeo precisariacuteamos escolher entre

ldquouma verdade formal da ordemrdquo e a ldquoverdade das intuiccedilotildeesrdquo dado que o

pensamento se instala no interior desta cisatildeo antes em uma postura de

ldquoconfrontordquo Se houve da parte de Descartes e certamente houvera o ensejo

de impor agrave filosofia a ldquoordem das matemaacuteticasrdquo natildeo eacute o que estaacute em

questatildeo pois o problema radica-se segundo Merleau-Ponty no fato de saber

se poderiacuteamos pensar as Meacuteditations a partir deste crivo situaacute-la no

horizonte das ldquomatemaacuteticasrdquo sem a tentativa em primeiro lugar de

descobrir se ldquo[] elas natildeo descobrem entre as coisas e a histoacuteria de nossos

pensamentos uma relaccedilatildeo que natildeo eacute simples e natildeo poderia vir a secirc-lordquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587)) visto ser verdade

que

[] quando Descartes busca pelas provas de Deus [ultrapassar] nossos pensamentos para atingir as coisas se [repartiacutessemos] as [provas] sobre os dois planos que elas tecircm por funccedilatildeo religar se [instalaacutessemos] umas sobre o plano do pros heacutemas [em relaccedilatildeo a noacutes para noacutes] a outra sobre o plano do kathrsquoauto [por si em si] esqueceriacuteamos o problema cartesiano [] O que se torna problemaacutetico o que eacute primeiro para noacutes eacute em si derivado e segundo Descartes natildeo eacute o que mostrou mais do que ningueacutem o que eacute problemaacutetico nesta correspondecircncia Certamente a filosofia de Descartes natildeo vive por intuiccedilotildees separadas [] mas muito menos ainda por uma seacuterie de proposiccedilotildees eu sou eu sou em pensamento Deus eacute [] quer as consideremos como os momentos da histoacuteria de um espiacuterito ou como enunciados objetivos das quais cada um poderia segui-lo more geometrico Ele vive pelo [] movimento de pensamento que narrou nas Meacuteditations e que descobre Deus implicado em nossa experiecircncia (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))

144 ldquoCe qursquoil nous dit quand il ajoute aux preuves reacutegressives la preuve ontologique crsquoest peut-ecirctre qursquoil nrsquoy a pas deux plans que lrsquoecirctre nrsquoest jamais en soi seulement lrsquoordre des penseacutees pour nous seulement facultatif avant la rencontre de lrsquoecirctre qui y mettrait fin que lrsquoecirctre nrsquoest accessible que par la meacuteditation cad agrave une penseacutee qui prouve moins par des preacutemisses qursquoelle ne deacutegage des implicationsrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))

255

Conforme podemos notar Merleau-Ponty nega uma leitura de

Descartes que compreenda sua filosofia como momentos da ldquohistoacuteria de um

espiacuteritordquo e como ldquoenunciados objetivosrdquo nas quais cada proposiccedilatildeo se

articularia seguindo um more geometrico Trata-se aqui da criacutetica a Gueacuteroult

mas tambeacutem de uma criacutetica a Alquieacute Natildeo eacute por acaso que Lrsquohistoire drsquoun

esprit seja justamente o tiacutetulo de um dos capiacutetulos de sua obra La

deacutecouverte meacutetaphysique de lrsquohomme chez Descartes Mas qual a razatildeo de

sua recusa Para Alquieacute a descoberta do Cogito antecede a descoberta do

Ser Somente apoacutes refletir sobre o Ser a partir da constataccedilatildeo de uma

insuficiecircncia do mundo Descartes seria capaz de perceber que ldquonossa

proacutepria consciecircncia eacute ultrapassamento do objetordquo vendo ldquo[] este

ultrapassamento mesmo como o signo que o Ser primeiramente encontrado

em Deus eacute tambeacutem de algum modo o proacuteprio da consciecircncia humana

imagem de Deusrdquo (ALQUIEacute 1966 p 132-133) Assim seria capaz de vencer a

confusatildeo das Regulaelig ldquo[] onde a evidecircncia do lsquoeu soursquo e a das propriedades

do triacircngulo eram postas no mesmo planordquo (ALQUIEacute 1966 p133) Ateacute

entatildeo inclusive no Discours de la Meacutethode o esforccedilo cartesiano natildeo tinha

senatildeo o meacuterito de ter apenas posto as verdades em conjunto mas ainda lhe

faltava o Cogito O movimento estava na dificuldade em saber distinguir

ldquodiversas ordens de verdaderdquo e mais do que isto em reconhecer que esta

separaccedilatildeo eacute constitutiva de uma ldquoautecircntica situaccedilatildeo do homemrdquo Entendido

como uma fonte de todo conhecimento que segue uma ldquoordem legiacutetimardquo

antes de ser atingido reflexivamente o Cogito ldquo[] eacute precedido

cronologicamente pela atenccedilatildeo agraves coisas e ontologicamente pelo Infinito

primeira relaccedilatildeo comigo mesmordquo (ALQUIEacute 1966 p 134) Nas coisas quando

natildeo cedemos ao monismo jaacute somos capazes de notar a distinccedilatildeo existente

entre Mundo e Infinito principalmente se levamos em conta a ldquopluralidade

de atitudesrdquo da consciecircncia quando confrontada com a realidade Neste

sentido na verdade o Cogito seria apenas um ldquoestatuto definitivordquo desta

distinccedilatildeo Precedendo a legitimaccedilatildeo deste estatuto o Discours acaba se

tornando um prolongamento do ldquo[] sonho cartesiano de um sistema total

do mundordquo que traduz tambeacutem ldquo[] os fracassos que este sonho encontrou

e manifesta a apariccedilatildeo da dimensatildeo metafiacutesica impossiacutevel de compreender

256

no sistema e que Descartes se esforccedila ainda no entanto em fazecirc-lo entrar

nele []rdquo (ALQUIEacute 1966 p 135) Para Alquieacute natildeo encontramos no Discours

os ares de uma ldquoconquistardquo mas de uma ldquonecessidaderdquo visto que ali e nos

textos teacutecnicos que lhe seguem

Descartes natildeo apresenta seu projeto de unidade como o de um homem que se sente muito forte para fundaacute-lo ele sozinho toda ciecircncia mas como a consequecircncia de dificuldades nas quais se encontra e das quais deve efetivamente sair mediante isto o texto exprime o drama intelectual que sem duacutevida Descartes estaacute vivendo [] No entanto eacute apenas nas Meacuteditations que o homem que eacute em Le Monde o espectador da luz seraacute apreendido como aquele pelo qual haacute luz a fiacutesica entatildeo seraacute sustentada pela metafiacutesica e o Mundo pelo Espiacuterito (ALQUIEacute 1966 p 135-136 143)

Ora Merleau-Ponty faria uma leitura diferenciada de Descartes

principalmente dado que para ele ldquonatildeo se vecirc de que modo se poderia opor a

leitura segundo a ordem agrave meditaccedilatildeo de pensamentos um a umrdquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [68])145 Para ele no que diz respeito agrave ordem que conduz os

movimentos do espiacuterito cartesiano que conduziria a esta passagem natildeo

seria ela a ordem o uacutenico nem o principal modo pelo qual Descartes iria

ldquoposicionarrdquo seus pensamentos compartimentar suas ideias seria preciso

pois centrarmo-nos na passagem entendida como paradoxal que se

estabelece entre estes mesmos pensamentos entendecirc-los natildeo como a

ldquomedida das coisasrdquo mas a ldquomedida de nossas afirmaccedilotildees no tocante agraves

coisasrdquo O paradoxo se instaura no momento em que a partir disto o

pensamento reivindica um poder de determinaccedilatildeo do ser e ao mesmo

tempo potildee-se a negaacute-lo (MERLEAU-PONTY NBNF [68])146 Logo ldquo[]

nossas lsquoafirmaccedilotildeesrsquo no tocante agraves coisas seriam irrisoacuterias se elas natildeo lhe

atingissem se a ordem em que noacutes as dispomos fosse apenas a receita

pessoal de um arranjo cocircmodo sem [intuiccedilatildeo] alguma quanto agraves coisasrdquo

145 ldquoOn ne voit pas comment on pourrait opposer la lecture selon lrsquoordre [suite du texte marginal p [68] note 31] agrave la meacuteditation des penseacutees une agrave une raquo 146 ldquoCrsquoeacutetait dans une mecircme phrase deacutenier agrave la penseacutee le pouvoir de deacuteterminer lrsquoecirctre et le revendiquer pour ellerdquo

257

(MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))147 Onde estaria a

novidade do pensamento cartesiano Para Merleau-Ponty na ldquoideia de um

pensamento que natildeo eacute adequado ao ser natildeo consegue esgotaacute-lo e que em

sua separaccedilatildeo afirma e nega de modo vaacutelido e portanto tem a pretensatildeo de

secirc-lordquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))148 Mais do que

pensar Descartes como o ldquofiloacutesofo da certezardquo Merleau-Ponty procura nos

salientar a importacircncia corroborada por sua filosofia de se ater tambeacutem agraves

ldquocondiccedilotildees da certezardquo ou da ldquoordem de nossos pensamentosrdquo mesmo

considerando-os como sendo apenas ldquopara noacutesrdquo logo de se ater ao

reconhecimento presente no pensamento cartesiano de que ldquo[] nossos

pensamentos satildeo nosso uacutenico acesso agraves coisasrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[31] (12) vol VI (BN 9587))149 Daiacute a releitura que o filoacutesofo faz dos planos

de distinccedilatildeo entre o prov h0ma~v e o kaqrsquoauto entre os planos de separaccedilatildeo do

que eacute ldquopara noacutesrdquo e do que eacute ldquoem sirdquo

A compreensatildeo que igualmente se tem no mundo claacutessico

especialmente em Descartes eacute que se daacute uma separaccedilatildeo radical e definitiva

entre um mundo tido como objetivo e um mundo da experiecircncia comum

entre a coisa em si e sua aparecircncia entre a essecircncia e o acidente Merleau-

Ponty natildeo nega isto mas procurando nos apontar a ambiguidade do

pensamento cartesiano natildeo reconhece em sua noccedilatildeo de ordem a ldquoarte da

distinguordquo a arte escolaacutestica da ldquodistinccedilatildeordquo a manutenccedilatildeo de pensamentos

distanciados uns dos outros e desvinculados das ldquocontradiccedilotildeesrdquo mas a

unidade que se estabelece com nossas intuiccedilotildees A ambiguidade situa-se no

fato de que paralelo a isto daacute-se tambeacutem o reconhecimento da

independecircncia das coisas em relaccedilatildeo a noacutes o reconhecimento de que as

coisas talvez ldquo[] se distingam de nossos pensamentos sendo por isto que

147 ldquoCar enfin nos ldquoaffirmations rdquo touchant les choses seraient deacuterisoires si elles nrsquoy atteignaient pas si lrsquoordre ougrave nous les disposons nrsquoeacutetait que la recette personnelle drsquoun arrangement commode sans [intuition] aucune quant aux chosesrdquo 148 ldquoLe plus neuf de Descartes est p-ecirc lagrave dans cette ideacutee drsquoune penseacutee qui [passage rayeacute nrsquoest pas adeacutequate agrave lrsquoecirctre] nrsquo[eacutepuise] pas lrsquoecirctre et qui pourtant dans sa seacuteparation affirme et nie valablement et donc preacutetend agrave lrsquoecirctrerdquo 149 ldquoDescartes est le PH de la certitude mais les conditions de la certitude ou lrsquoordre de nos penseacutees agrave moins de nrsquoecirctre que pour nous ont du rapport avec ce qui est puisque nos penseacutees sont notre seul accegraves aux chosesrdquo

258

natildeo haacute ordem nelas que as coisas elas satildeo todas juntasrdquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))150 Disto o filoacutesofo conclui que ldquoeacute

portanto um dever para com a ordem cartesiana confrontar o que

distinguiu romper a ordem como ordem de exposiccedilatildeo para reencontraacute-la

como movimento e gecircnese de pensamentos e enfim refazer o caminho que

traccedila e que natildeo eacute unicamente o seu mas o nossordquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))151 Daiacute o reconhecimento de que

contrariamente a leitura de Alquieacute tal como a seu modo de Gueacuteroult

Merleau-Ponty venha nos dizer que perderiacuteamos o problema cartesiano caso

ldquo[] [repartiacutessemos] as [provas] [no caso a ontoloacutegica e as regressivas] sobre

os dois planos que elas tecircm por funccedilatildeo religar152rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[31] (12) vol VI (BN 9587)) haja vista a consideraccedilatildeo de que ldquoDescartes natildeo

vive por intuiccedilotildees separadas153rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI

(BN 9587)) Daiacute o reconhecimento tambeacutem de que

para medir todo o seu sentido eacute necessaacuterio ver no preceito da ordem uma exigecircncia e uma audaacutecia natildeo eacute uma [] das matemaacuteticas o vago projeto de copiar o seu rigor eacute o enunciado de uma regra que eacute as matemaacuteticas o exigem imanente ao pensamento mas com a consciecircncia do que talvez lhe resista nas coisas e que a filosofia deve formular assim (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))154

Contudo voltando-nos a Gueacuteroult pergunta Merleau-Ponty ldquode

onde se sabe que todos os pensamentos devem poder se arranjar em uma

150 ldquoEt pourtant nous devons toujours [observer] lrsquoindeacutependance des choses agrave notre regard elles se distinguent peut-ecirctre de nos penseacutees par ceci qursquoil nrsquoy a pas drsquoordre en elles que les choses elles sont toutes ensemblerdquo 151 ldquoCrsquoest donc un devoir envers lrsquoordre carteacutesien de confronter ce qursquoil a distingueacute de rompre lrsquoordre comme ordre drsquoexposition pour le retrouver comme mouvement et genegravese des penseacutees et enfin de refaire le chemin qursquoil trace et qui nrsquoest pas seulement le sien mais le nocirctrerdquo 152 ldquoToujours est-il que quand Descartes cherche par les preuves de Dieu agrave [deacutepasser] nos penseacutees pour atteindre les choses on oublierait le problegraveme carteacutesien si lrsquoon [reacutepartissait] les [preuves] sur les deux plans qursquoelles ont pour fonction de relier si lrsquoon [installait] les unes sur le plan du pros hegravemas lrsquoautre sur le plan du kath auto [hellip]rdquo 153 ldquoCertes la PH de Descartes ne vit pas par des intuitions seacutepareacutees [hellip]rdquo 154 ldquoJustement pour en mesurer tout le sens il faut voir dans le preacutecepte drsquoordre une exigence et une audace ce nrsquoest pas une [hellip] des matheacutematiques le vague projet drsquoen copier la rigueur crsquoest lrsquoeacutenonceacute drsquoune regravegle qui est les matheacutematiques lrsquoexigent immanente agrave la penseacutee mais avec la conscience de ce qui peut-ecirctre y reacutesiste dans les choses et que la philosophie devra formuler ainsirdquo

259

seacuterie em que o que vem depois natildeo depende senatildeo do que vem antes e eacute

inteiramente justificado por elerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI

(BN 9587))155 Ao formular esta pergunta notamos em Merleau-Ponty antes

um levantamento de questotildees do que simplesmente uma resposta O que

seria preciso pensar com mais profundidade O fato de que natildeo lhe seria

suficiente a afirmaccedilatildeo cartesiana de que haacute um ldquonexordquo em suas razotildees de

que haveria uma ldquoordem serialrdquo do mesmo modo que seria preciso verificar

se a discordacircncia entre o pensamento filosoacutefico e nossa intuiccedilatildeo seria

simplesmente uma contradiccedilatildeo o tropeccedilo em ldquodificuldades teacutecnicasrdquo como

nos salientou Alquieacute ou antes uma exigecircncia nascida da proacutepria ordem tal

como se poderia pensar no ldquoprinciacutepio de uma produccedilatildeo ilimitada do

entendimentordquo Natildeo poderiacuteamos pois falar em ldquolegiacutetimos ciacuterculos

cartesianosrdquo De qualquer forma o que o filoacutesofo natildeo poderia concordar

seria com a concessatildeo apressada que poderiacuteamos fazer agraves recomendaccedilotildees

cartesianas com o ensejo de simplesmente lecirc-lo tal como ele gostaria de ser

lido Seria necessaacuterio pois entender a ldquoordemrdquo e principalmente uma

ldquoordem serialrdquo como um problema ao inveacutes de simplesmente e sem

ressalvas consideraacute-la como adquirida Como nos assevera o filoacutesofo

caso se entenda de antematildeo que a ordem linear eacute muito potente que por exemplo a luz natural tem o poder de justificar no seu lugar os dados dos sentidos [o que nos faz lembrar da citaccedilatildeo que fizemos de Alquieacute] e permanece ao fazer isto o uacutenico criteacuterio de verdade no momento em que Descartes for declarar que pensar a uniatildeo da alma e do corpo eacute pensaacute-los como uma uacutenica coisa natildeo se veraacute nesta contradiccedilatildeo [proclamada] senatildeo um uacuteltimo resiacuteduo [] para o pensamento cartesiano quando eacute talvez o enunciado dos frutos da filosofia dos [objetos] destacados e da filosofia serial (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))156

155 ldquoDrsquoougrave savons-nous que toutes les penseacutees vraies doivent pouvoir se ranger dans une seacuterie ougrave ce qui vient apregraves ne deacutepend que de ce qui vient avant et est entiegraverement justifieacute par lui rdquo 156 ldquoSrsquoil est entendu drsquoavance que lrsquoordre lineacuteaire est tout puissant que par exemple la lumiegravere naturelle a le pouvoir de justifier agrave leur place les donneacutees des sens et reste en le faisant le seul critegravere de veacuteriteacute au moment ougrave Descartes deacuteclarera que penser lrsquounion de lrsquoacircme et du corps crsquoest les penser comme une seule chose on ne verra dans cette contradiction [proclameacutee] qursquoun dernier reacutesidu [hellip] pour la penseacutee carteacutesienne quand crsquoest peut-ecirctre lrsquoeacutenonceacute des fruits de la philosophie des [objets] deacutetacheacutes et de la philosophie seacuteriellerdquo

260

Neste sentido podemos entender porque em nosso primeiro

capiacutetulo encontramos jaacute as criacuteticas de Merleau-Ponty ao modo como

Gueacuteroult nos apresentara as mudanccedilas que se efetivam na concepccedilatildeo

cartesiana de Natureza Por conseguinte a questatildeo que colocamos mais

acima se aprofunda ldquoUm autor ainda que seja Descartes estaacute no centro de

si mesmo [eacute] o uacutenico juiz do que escreve e do que pensardquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))157 Para Merleau-Ponty o risco de

uma resposta afirmativa seria ldquo[] quase arruinar a histoacuteria da filosofia

[]rdquo(MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587) )158 ldquo[] reduzir a

filosofia ao relato do que o filoacutesofo disse []rdquo(MERLEAU-PONTY NBNF [31]

(12) vol VI (BN 9587))159 dado natildeo haver historiador que sobreviveria a

isto que permanece neste limite Logo ldquonatildeo eacute preciso pois nos contentar

com o que Descartes nos diz [] alternadamente eacute preciso recapitular

buscar a junccedilatildeo aleacutem das [obscuridades] e das diferenccedilas em suma

abordar como se natildeo soubeacutessemos nada []rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31]

(12) vol VI (BN 9587))160 do problema sobre o qual se reflete Afinal como

nos assinala Merleau-Ponty natildeo nos esqueccedilamos de que ldquoo proacuteprio deste

espiacuterito [do espiacuterito cartesiano] sua forccedila e sua fraqueza natildeo aparece caso

se esteja muito imbuiacutedo delerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI

(BN 9587))161 Neste sentido ldquocaso se fizesse da ordem uma concepccedilatildeo []

que dilui as contradiccedilotildees e reparte os diferentes atributos contraditoacuterios

entre diferentes momentos do pensamento162rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[31] (12) vol VI (BN 9587)) pensando por exemplo na prova ontoloacutegica

157 ldquoUn auteur fucirct-il Descartes est-il au centre de lui-mecircme seul juge du sens de ce qursquoil eacutecrit et de ce qursquoil penserdquo 158 ldquoReacutepondre oui crsquoest agrave peu pregraves ruiner lrsquohistoire de la philosophie qui se reacuteduit alors agrave redire ce que la philosophe a ditrdquo 159 ldquoReacutepondre oui crsquoest reacuteduire la philosophie au compte-rendu de ce que le philosophe a dit et aucun historien ne srsquoen tient lagrave pour cette raison drsquoabord qursquoil y a sur presque tous les points des textes discordantsrdquo 160 ldquoIl ne faut donc pas nous contenter de ce que Descartes nous en dit tour agrave tour il faut reacutecapituler chercher le joint par dessus les [obscuriteacutes] et les diffeacuterences bref aborder comme si nous ne savions rien [35] (18) de Dieu et comme lrsquo[hellip] aborde les donneacutees drsquoune religion inconnuerdquo 161 ldquoMais le propre de cet esprit son fort et son faible nrsquoapparaicirct pas si lrsquoon en est trop imburdquo 162 ldquoSi lrsquoon se faisait de lrsquoordre une conception [hellip] qui dilue les contradictions et reacutepartit les diffeacuterents attributs contradictoires entre diffeacuterents moments de la penseacutee []

261

acabariacuteamos por ldquo[] negligenciar os diferentes atributos contraditoacuterios

entre diferentes momentos do pensamento iriacuteamos negligenciar talvez o

[fundo] de Descartes sua concepccedilatildeo original das provas tanto quanto do []

ser163rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587)) Daiacute a recusa de

Merleau-Ponty

Noacutes natildeo o encontraremos seguindo a ordem de Descartes (verdade no conhecimento ordem de seus pensamentos) bem entendido natildeo eacute preciso lhe preferir a ordem das mateacuterias (natureza homem Deus) que quebraria os viacutenculos e seria aceitaacutevel apenas se houvesse razotildees separadas Noacutes buscamos pelo contraacuterio a natildeo separaacute-los a encontrar uma relaccedilatildeo central operando por toda parte (em todas as mateacuterias) uma certa maneira de identificar e de diferenciar que seja o princiacutepio de coesatildeo a fibra do ser cartesiano Isto [eacute] diferente da ordem das razotildees nisto que eacute sempre feito de uma seacuterie de enunciados de provas [] Encontrar talvez sim uma fibra do Ser um nexus natildeo de razotildees ou pensamentos mas na experiecircncia no contato com o Ser Wahl por exemplo a ideia do instante e a ideia da luz (fiacutesica ndash accedilatildeo do pensamento auto-criaccedilatildeo de Deus) [a] ideia de instante que Descartes disse alternadamente sobre o instante como tempo menor como negaccedilatildeo do tempo e este como ficccedilatildeo) estas diversas significaccedilotildees sendo natildeo relacionadas uma a uma a um certo momento da ordem das razotildees mas religadas juntas em uma textura do Ser cartesiano (MERLEAU-PONTY 1996 p 222-3)

Por conseguinte se Descartes teve a pretensatildeo de construir

todos os seus pensamentos segundo o crivo da ldquoordemrdquo de acordo com

Merleau-Ponty certamente natildeo teriacuteamos o direito de examinaacute-lo a partir da

ldquodesordemrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587)) todavia

ldquomais precisamente caso se queira apreender tudo o que significa o nome

Descartes na Histoacuteria da Filosofia natildeo se pode concedecirc-lo de antematildeo que

todos os pensamentos verdadeiros sejam compossiacuteveis e formem

verdadeiramente uma seacuterie bem ligadardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12)

vol VI (BN 9587))164 Eacute preciso verificar o que de fato a noccedilatildeo de ordem

dissimula acaso haveria uma ordem da realidade Natildeo seria a ordem um

modo de ldquocobrir do melhor modo possiacutevel as fissuras da realidaderdquo

163 ldquo[] on neacutegligerait peut-ecirctre le [fond] de Descartes sa conception originale des preuves aussi bien que de [hellip] de lrsquoecirctrerdquo 164 ldquoMais preacuteciseacutement si lrsquoon veut saisir tout ce que signifie le nom de Descartes dans lrsquoH de la Ph on ne peut lui accorder par avance que toutes les penseacutees vraies soient compossibles et forment vraiment une seacuterie bien lieacuteerdquo

262

(MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))165 Para Merleau-

Ponty a ordem cartesiana seria muito mais do que como nos assinalaria

Gueacuteroult ldquouma sequecircncia de pensamentos na qual tudo o que vem depois

natildeo depende senatildeo do que vem antes e eacute inteiramente justificado por elerdquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [67 frente e verso])166 Fazer isto de acordo com

o filoacutesofo conforme jaacute salientamos seria natildeo problematizar a questatildeo mas

pelo contraacuterio muito facilmente e de antematildeo ldquolhe render as armasrdquo [lui

rendre drsquoavance les armes] Render-se muito rapidamente aos desejos de

Descartes significaria deixar escapar aquilo que poderia ser mais do que

uma ldquoreceita pessoal de arranjar pensamentosrdquo o que mais de importante se

encontra em sua noccedilatildeo de ordem a saber o seu reconhecimento como

sendo ldquo[] a maneira pela qual nossas intuiccedilotildees seguem e dependem umas

das outrasrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [67 frente e verso]) Encontra-se ali

antes a questatildeo sobre a possibilidade de uma ldquoordem existente nas coisasrdquo

do que precisamente uma ldquoreceita filosoacutefica pessoalrdquo Caso se trate tatildeo-

somente de um pedido para que natildeo tomemos o seu pensamento de modo

isolado certamente natildeo poderiacuteamos desapontaacute-lo Todavia se o que

encontramos eacute a afirmaccedilatildeo de que a ordem se torna mais fundamental do

que a soma de seus pensamentos do que as ideias que ela reuacutene por

conseguinte precisariacuteamos pensar o que ele tivera em vista ao negar uma

ldquoordem formalrdquo A ordem cartesiana natildeo eacute um simples artifiacutecio construiacutedo no

intuito de tornar coerente o que escapara ao rigor filosoacutefico o que resultara

de ldquodificuldades teacutecnicasrdquo pois

A ordem natildeo tem a virtude de tornar coerentes pensamentos que natildeo o seriam Que seja necessaacuterio dizer vaacuterias vezes o que haacute por dizer da natureza de Deus da liberdade tudo bem Mas enfim se eacute da Natureza de Deus ou da liberdade que se trata e natildeo mais de pensamentos de um homem sobre estes assuntos eacute preciso

165 ldquoDescartes aurait de bonnes raisons de recommander cette maniegravere de le lire crsquoest celle qui voile le mieux les fissures de la reacutealiteacute Mais elle nous dissimule une question de principe que nous ne pouvons pas nous abstenir de poser ne serait-ce que pour avoir Descartes avec tout son relief y a-t-il un ordre de la reacutealiteacute rdquo 166 ldquoReste agrave savoir cependant si agrave toujours suivre lrsquoordre qursquoil a chercheacute nous ne lui rendons pas drsquoavance les armes si lrsquoon peut postuler avec lui qursquoil y a un ordre une suite des penseacutees ougrave tout ce qui vient apregraves ne deacutepend que de ce qui vient avant et est entiegraverement justifieacute par luirdquo

263

efetivamente que haja passagem regulada de uma etapa a outra da meditaccedilatildeo e esta passagem deve se ler em nossa ideia da Natureza de Deus ou da liberdade ela mesma Descartes vive por suas intuiccedilotildees ou [68] pela ordem que ele pocircs entre elas Vive pela evidecircncia pelo Cogito pela criaccedilatildeo de verdades eternas a reflexatildeo sobre a ideia do perfeito em noacutes a causa sui o mecanismo a preacute-ordenaccedilatildeo divina por estas intuiccedilotildees descobridoras e secretamente aparentadas por sua separaccedilatildeo e o esforccedilo que ele faz que noacutes fazemos para juntaacute-los e ligaacute-los ndash ou para o [sonho] de uma ordem homogecircnea inspirada em uma certa eacutepoca das matemaacuteticas e cujas matemaacuteticas depois dele se libertaram (MERLEAU-PONTY NBNF [67 verso] [68])167

Conforme Merleau-Ponty um autor mesmo sendo Descartes

natildeo estaacute de jure no centro de seu proacuteprio pensamento Natildeo eacute o uacutenico juiz de

ldquosuas implicaccedilotildeesrdquo e de seu ldquosentido totalrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[68])168 Assim sendo o historiador natildeo assume apenas a tarefa de repetir o

que fora de dito mas de buscar o que de essencial fora dito logo aquilo que

fora pensado ou seja partindo de textos variados ou ldquoexcecircntricosrdquo de um

autor buscar o que viria a constituir o seu ldquopensamento principalrdquo Um

pensador natildeo eacute a simples soma das ideias que silenciosamente ou natildeo ele

formulou crer nisto seria arquitetar uma ldquoconcepccedilatildeo estranhardquo do que

efetivamente significa pensar Por conseguinte a tarefa do historiador natildeo

pode ser aquela de buscar simplesmente decifrar os segredos expliacutecitos em

um recenseamento de ideias em um inventaacuterio de pensamentos pois o

pensamento de um autor natildeo seria o fim de sua obra mas antes o seu

comeccedilo No entanto partindo deste pressuposto o que seria ldquopensarrdquo O que

uma reflexatildeo acerca da historiografia filosoacutefica pode retirar da leitura que

167 ldquoLrsquoordre nrsquoa pas la vertu de rendre coheacuterentes des penseacutees qui ne le seraient pas Qursquoil soit neacutecessaire de dire en plusieurs fois ce qursquoil y a agrave dire de la nature de Dieu de la liberteacute crsquoest bien Mais enfin si crsquoest de la Nature de Dieu ou de la liberteacute qursquoon traite et non plus des penseacutees drsquoun homme sur ces sujets il faut bien qursquoil y ait passage reacutegleacute drsquoune eacutetape agrave lrsquoautre de la meacuteditation et ce passage doit se lire dans notre ideacutee de la Nature de Dieu ou de la liberteacute elle-mecircme Descartes vit-il par ses intuitions ou [68] par167 lrsquoordre qursquoil a mis entre elles Vit-il par lrsquoeacutevidence le cogito la creacuteation des veacuteriteacutes eacuteternelles la reacuteflexion sur lrsquoideacutee du parfait en nous la causa sui le meacutecanisme la preacuteordination divine par ces intuitions deacutecouvrantes et secregravetement apparenteacutees par leur eacutecart et lrsquoeffort qursquoil fait que nous faisons pour les joindre et les lier ndash ou pour le [recircve] drsquoun ordre homogegravene inspireacute drsquoun certain acircge des matheacutematiques et dont les matheacutematiques apregraves lui se sont affranchies rdquo 168 ldquoUn auteur ndash et mecircme Descartes - est-il de droit au centre de sa propre penseacutee Est-il seul juge de ses implications et de son sens total rdquo

264

nos faz Merleau-Ponty da noccedilatildeo cartesiana de ordem O que estaacute em

questatildeo Vejamos

442 O entrecruzamento de objetividade e subjetividade o impensado [das Ungedachte]

ldquoJe groumlsser das Denkwerk eines Denkers ist das sich keineswegs mit dem Umfang und der Anzahl seiner Schriften deckt um so reicher ist das in diesem Denkwerk Ungedachte dh jenes was erst und allein durch dieses Denkwerk als das Noch-nicht-Gedachte heraufkommtrdquo (HEIDEGGER 1957 p 123-4) ldquoLe philosophe se reconnaicirct agrave ce qursquoil a inseacuteparablement le goucirct de lrsquoeacutevidence et le sens de lrsquoambiguiumlteacute Quand Il se borne agrave subir lrsquoambiguiumlteacute elle srsquoappelle equivoque Chez lecircs plus grands elle devient thegraveme elle contribue agrave fonder les certitudes au lieu de les menacer Il faudrait donc distinguer une mauvaise et une bonne ambiguiumlteacute () Ce qui fait le philosophe crsquoest le mouvement qui reconduit sans cesse du savoir agrave lrsquoignorance de lrsquoignorance au savoir et une sorte de repos dans ce mouvementrdquo (MERLEAU-PONTY 1960 p 14)

A historiografia filosoacutefica recusada por Merleau-Ponty ndash que

chamamos de ldquointelectualistardquo ou ldquotradicionalrdquo ndash ecoa os mesmos

movimentos que o problema da Histoacuteria traz consigo desde os

desdobramentos de uma determinada concepccedilatildeo de Meacutetodo o mesmo cujo

centro encontra-se incrustado em um projeto claacutessico de Razatildeo o qual por

sua vez repercute os resquiacutecios de um ideaacuterio cartesiano tal como fora

recebido pela tradiccedilatildeo Se natildeo fosse assim o que alimentaria a ilusatildeo de que

um ldquoacontecimento histoacutericordquo ndash uma vez registrado em fontes e resquiacutecios do

passado ndash exigiria um ldquoprocedimento matemaacuteticordquo para ser entendido e

corretamente ldquoexplicadordquo Por conseguinte se haacute um lugar-comum nas

investigaccedilotildees epistemoloacutegicas e filosoacuteficas de nossa era eacute sem duacutevida o

reconhecimento de uma tensatildeo nada agradaacutevel na gecircnese das Ciecircncias

Humanas que nos remete a uma visatildeo cartesiana de mundo Apesar das

especificidades do seacuteculo XVIII (CASSIRER 1970) o pensamento cartesiano

acabara por configurar o modo pelo qual o ocidente edificou e assumira uma

ldquovisatildeo de mundordquo capaz de determinaacute-lo ontologicamente ou seja de fundar

uma metafiacutesica inusitada ateacute entatildeo na histoacuteria do pensamento

Eacute talvez tendo por referecircncia estas questotildees que em uma de

suas notas ineacuteditas de modo mais direto conforme citaremos a seguir a

265

censura ao meacutetodo historiograacutefico gueroultiano acentua-se A nosso ver a

recusa se centra conforme indicamos anteriormente no que seriam os

equiacutevocos do meacutetodo a autonomia dada muito rapidamente ao autor que

se lecirc frente agrave sua proacutepria obra e a noccedilatildeo de ldquoordemrdquo seja no proacuteprio

cartesianismo seja no meacutetodo historiograacutefico filosoacutefico que ele inspira Por

conseguinte partindo do proacuteprio Gueacuteroult Merleau-Ponty percebe tambeacutem

que a objetividade exigida na leitura de Descartes natildeo valeria para a leitura

daqueles filoacutesofos nos quais ldquoestruturasrdquo satildeo bem diferentes de ldquoideiasrdquo

Merleau-Ponty considera mais significativa e instigante a orientaccedilatildeo

gueroultiana em entender a ldquoexplicaccedilatildeordquo como um procedimento no qual

deve haver um processo de validaccedilatildeo relativo agrave ldquoverdade do ensinamento

doutrinalrdquo Poreacutem nas explicaccedilotildees sobre Descartes e Malebranche o filoacutesofo

nota que o proacuteprio Gueacuteroult fora aleacutem de uma simples ldquoexplicaccedilatildeordquo

salientando talvez sem se dar conta ldquolacunasrdquo em ambos os sistemas Como

diraacute Merleau-Ponty curiosamente ldquoa ordem das razotildees eacute tambeacutem a acepccedilatildeo

dessas lacunas acepccedilatildeo taacutecita maacutescara visatildeo do ser que se desvia dessas

lacunas intuiccedilatildeo Tanto melhor pois eacute por aqui que resta algo de filosofia

na histoacuteria da filosofiardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 166) Ora o que

significa este ldquoalgo de filosofia que permanece na histoacuteria da filosofiardquo Ainda

sobre o meacutetodo de Gueacuteroult o filoacutesofo diz o seguinte em uma de suas Notes

de Travail datada de Junho de 1959

A histoacuteria da filosofia que seria preciso realizar (paralelamente agrave de Gueacuteroult) eacute a do subentendido Por ex as teses de Descartes sobre a distinccedilatildeo do corpo e da alma e sua uniatildeo natildeo podem ser expostas no plano do entendimento e justificadas em conjunto por um movimento contiacutenuo do pensamento Natildeo podem ser afirmadas juntas a natildeo ser que as aceitemos com o seu subentendido ndash Na ordem do subentendido a pesquisa da essecircncia e a da existecircncia natildeo satildeo opostas satildeo a mesma coisa ndash Considerar a linguagem mesmo filosoacutefica natildeo como uma soma de enunciados ou de ldquosoluccedilotildeesrdquo mas como um veacuteu esticado a trama de uma cadeia verbal (MERLEAU-PONTY 1964a p 249)

O meacutetodo de Gueacuteroult parte de um olhar em conformidade com

a compreensatildeo claacutessica de Razatildeo Neste sentido natildeo nos parece equivocada

tendo-se em conta o que jaacute foi mostrado a conclusatildeo de que o seu meacutetodo

estrutural-geneacutetico seja tambeacutem apesar de todo o seu meacuterito um itineraacuterio

266

de cunho claacutessico Assim sendo parece-nos que o que incomoda Merleau-

Ponty eacute antes de tudo o modo como a histoacuteria eacute tratada seguindo o

cuidado da mera ldquoexplicaccedilatildeordquo seja da filosofia seja da Franccedila iluminista

seja de qualquer eacutepoca ou lugar Neste tratamento da histoacuteria encontramos

os foacutesseis de uma eacutepoca do pensamento que ganha sua expressatildeo em seu

modo de lidar com os seres em geral no pensamento claacutessico especialmente

no imaginaacuterio iluminista Trata-se de ldquoexplicarrdquo e natildeo de ldquocompreenderrdquo

Talvez aqui encontremos um dos pontos que tenha intrigado o filoacutesofo aqui

nos voltamos a uma questatildeo que haviacuteamos acenado anteriormente natildeo

haveria nesta abordagem da Histoacuteria da Filosofia ainda uma pretensatildeo

claacutessica O convite agrave ldquoexplicaccedilatildeordquo natildeo seria inclusive a repercussatildeo de um

ideal de matematizaccedilatildeo no seio da proacutepria praacutexis filosoacutefica A ldquoexplicaccedilatildeordquo

supotildee leis ordenamentos e comportamentos inerentes a um ldquosistemardquo cujo

ldquofuncionamentordquo precisa ser esclarecido Natildeo eacute esse o imperativo de uma

ldquohistoriografia intelectualistardquo Quando nos aproximamos de um texto na

sede de esgotaacute-lo de espremer todas as suas ldquoinformaccedilotildeesrdquo e ldquoconteuacutedordquo

nada haacute de misterioso quando se tem um ldquomeacutetodo eficazrdquo capaz de fazecirc-lo e

isto tenha sido ele cedido bondosamente pelo Discours de la Meacutethode

(Descartes) ou pelas Regulaelig Philosophandi (Newton) ou por qualquer outro

ldquoprocedimento eficazrdquo neles inspirado Ler natildeo seria entatildeo apenas um

exerciacutecio de dissecaccedilatildeo em ldquopartes simplesrdquo que por tamanha ser a

simplicidade delas tecircm o poder de tornaacute-las ldquoprinciacutepios geraisrdquo Natildeo seria

este o meacutetodo assumido pelas ldquoCiecircncias da Naturezardquo Pensando nestas

consideraccedilotildees o meacutetodo cartesiano natildeo poderia ser portanto um modelo

coerente quando o que estaacute em jogo eacute uma experiecircncia do pensamento Do

mesmo modo natildeo podemos entender como gratuito o ensejo gueacuteroultiano

em abandonar a ldquoimaginaccedilatildeordquo do inteacuterprete em buscar a ldquoexatidatildeordquo das

estruturas que ldquovisiacuteveisrdquo no texto se renderiam ao trabalho da anaacutelise e da

explicaccedilatildeo A nosso ver haveria em Gueacuteroult ainda os ecos das desventuras

do pensamento claacutessico em sua recepccedilatildeo de um ideaacuterio matemaacutetico nas

ldquoCiecircncias do Espiacuteritordquo Em outros termos estaria o meacutetodo estrutural-

geneacutetico na complicada confluecircncia e confusatildeo entre o meacutetodo articulado

nas ldquoCiecircncias da Naturezardquo e o postulado nas ldquoCiecircncias do Espiacuteritordquo

267

presente no projeto de encontrar fundamentos que assegurem a cienficidade

do saber histoacuterico Como superar este impasse Seria suficiente o resgate da

figura do ldquointeacuterpreterdquo Seria o caso de assumir tatildeo-somente de modo

radical a via da ldquocompreensatildeordquo

No que diz respeito agrave claacutessica distinccedilatildeo entre ldquoexplicaccedilatildeordquo

(Erklaumlren) e ldquocompreensatildeordquo (Verstehen) pensando em Merleau-Ponty parece-

nos que caminho de resgate e exaltaccedilatildeo de uma via ldquomeramente

interessadardquo poreacutem conteria tambeacutem equiacutevocos semelhantes e isto porque

privilegiando um dos poacutelos ainda se legitima uma draacutestica separaccedilatildeo entre

ldquoverdaderdquo e ldquomeacutetodordquo que natildeo poderia desembocar senatildeo em contra-

sensos169 Por conseguinte mediante os limites de uma ldquohistoriografia

intelectualistardquo aquela pautada pela concepccedilatildeo claacutessica tanto de

subjetividade como de objetidade natildeo basta fazer uma siacutentese apressada

entre o que se entende por verdade a objetividade filosoacutefica e o meacutetodo

auferido das ldquoCiecircncias da Naturezardquo E a razatildeo disto jaacute encontraacutevamos

indicada por Merleau-Ponty na Pheacutenomeacutenologie de la perception por ocasiatildeo

de um fenocircmeno patoloacutegico ldquoNatildeo podemos escolher entre uma descriccedilatildeo da

doenccedila que nos daria seu sentido e uma explicaccedilatildeo que nos daria sua causa

e natildeo haacute explicaccedilatildeo sem compreensatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 146)

Poderiacuteamos dizer o que natildeo nos parece equivocado que uma historiografia

filosoacutefica do mesmo modo natildeo pode radicar-se em uma mera ldquodescriccedilatildeordquo

nem muito menos em uma mera ldquoexplicaccedilatildeordquo O que isto significa

Primeiramente lembremo-nos de que em sua obra de 1945 a

ldquodescriccedilatildeordquo se apresentava como componente da ordem husserliana no

ldquoretorno agraves coisas mesmasrdquo em uma clara ldquodesaprovaccedilatildeo da ciecircnciardquo em

seus procedimentos de ldquoanaacuteliserdquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Mas quando se trata da

ldquohistoacuteria do pensamentordquo explicaccedilatildeo passa a indicar mais do que um

169 Esta parece ser a insatisfaccedilatildeo hermenecircutica ndash expressa por autores como Ricœur ndash assim como a proposta de uma dialeacutetica entre explicaccedilatildeo e compreensatildeo em oposiccedilatildeo agrave proposta separatista de uma hermenecircutica romacircntica (RICŒUR 1976) Como indicaria o filoacutesofo o problema dessa cisatildeo estaacute em partir da existecircncia de duas metodologias correspondentes a duas regiotildees ontologicamente diferentes a saber a natureza e o espiacuterito Contudo para Ricœur natildeo se tratava de um terceiro termo mas de um ldquocaso particular de compreensatildeordquo

268

evento empiacuterico o resultado de uma historiografia que em sua oposiccedilatildeo e

negaccedilatildeo rigorosa agraves invenccedilotildees e distorccedilotildees do inteacuterprete identifica os limites

de uma ldquopostura desinteressadardquo Eacute assim que como nos lembra Merleau-

Ponty ldquoo historiador da filosofia oscila entre dois perigos ()rdquo (MERLEAU-

PONTY 2002c p 10) O primeiro seria ldquo[] o de ser cego comentando

literalmente os textos (ele se dispensa entatildeo de repensaacute-los)rdquo (MERLEAU-

PONTY 2002c p 10) O segundo seria ldquo[] o de julgar mais como filoacutesofo do

que como historiador e o de apreciar uma obra atraveacutes de nossas

interpretaccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2002c p 10) Em contrapartida no

caminho de enfrentamento e superaccedilatildeo destes perigos contra uma

compreensatildeo meramente objetiva da histoacuteria do pensamento percebemos

que natildeo eacute possiacutevel aproximar-se de um fato conforme procuramos mostrar

anteriormente sem interpretaacute-lo

Muitas vezes as objeccedilotildees que encontramos na leitura de alguns

autores natildeo se tratam de um veredicto da histoacuteria mas de um veredicto

nosso ao compreendermos a histoacuteria a partir do nosso ponto de vista Poreacutem

destas afirmaccedilotildees natildeo podemos concluir que a objetividade natildeo passa de

um contra-senso Pelo contraacuterio para Merleau-Ponty em nossa experiecircncia

da histoacuteria da filosofia sempre nos deparamos com uma ldquodialeacutetica vividardquo

entre a nossa subjetividade e a subjetividade do filoacutesofo que investigamos

Assim sendo haacute uma comunicaccedilatildeo que leva aquele que lecirc a retomar os

problemas que fomentaram a emergecircncia de uma clivagem do olhar o

nascimento de uma filosofia Deste modo haacute um estudo empiacuterico e preciso

da leitura um estudo dos textos e de suas relaccedilotildees internas e externas mas

que natildeo pode desmerecer o movimento de um pensar que busque retomar o

que ficou agrave margem do texto Eacute pensando assim que podemos compreender

a afirmaccedilatildeo merleau-pontiana de que ldquoa objetividade da histoacuteria da filosofia

natildeo se encontra senatildeo no exerciacutecio da subjetividaderdquo (MERLEAU-PONTY

2002c p 11) Deste modo torna-se possiacutevel identificar as diferenccedilas que

envolvem um discurso filosoacutefico confrontar nossas questotildees com as

questotildees que alimentam o mesmo discurso questotildees que os proacuteprios

filoacutesofos se colocavam uma vez que ldquoningueacutem entra para o Panteon dos

filoacutesofos por se dedicar somente a ter apenas pensamentos eternos pois o

269

tom da verdade soacute vibra longamente quando o autor interpela sua vidardquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 210)

Neste sentido podemos entender tambeacutem as razotildees pelas quais

encontramos nas Notes du Travail a preocupaccedilatildeo em repensar a Histoacuteria da

Filosofia sempre acompanhada com reflexotildees em torno de uma revisatildeo da

metafiacutesica claacutessica no mesmo horizonte de uma indagaccedilatildeo dos ldquolabirintos

da ontologiardquo Merleau-Ponty pensa em uma Histoacuteria da Filosofia que seja

histoacuteria do ldquosubentendidordquo o que a nosso ver tem suas diacutevidas com a

compreensatildeo heideggeriana de ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] Natildeo haveria

neste ensejo o erro que Deleuze vecirc superado no meacutetodo estrutural-geneacutetico

de Gueacuteroult (DELLEUZE 2006) a superaccedilatildeo em natildeo se buscar mais uma

ldquoordem ocultardquo um ldquoconteuacutedo latenterdquo a ldquoconversatildeordquo de quem natildeo comete

mais o sacrileacutegio de ler buscando as lacunares ldquoentrelinhasrdquo Ateacute poderia

haver se natildeo soubeacutessemos que em Merleau-Ponty tal como em Heidegger

o subentendido natildeo se assenta em uma positividade pura o ldquolatenterdquo o

ldquoinvisiacutevelrdquo o ldquointervalordquo o ldquoentre-deuxrdquo e o ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] satildeo

mais do que meras substacircncias escondidas ou vistas de muito longe Nada

mais distante do pensamento merleau-pontiano Ao falar em ldquosubentendidordquo

o filoacutesofo quer propor um modo diferente de se fazer filosofia de se fazer

experiecircncia do Ser Natildeo haacute a apresentaccedilatildeo de uma nova ldquoteacutecnicardquo de leitura

e de ldquoexplicaccedilatildeordquo mas pelo contraacuterio a proposta de uma nova filosofia de

uma ldquofilosofia do subentendidordquo ou mutatis mutandis conforme Heidegger

de ldquouma filosofia do impensadordquo [das Ungedachte] O enamoramento do

filoacutesofo pela compreensatildeo heideggeriana de ldquoimpensadordquo [das Ungedachte]

natildeo se daacute apenas mediante sua preocupaccedilatildeo com os cuidados que todo

pensador deve tomar no diaacutelogo com a tradiccedilatildeo com a historiografia que lhe

serve de fundamento Para Merleau-Ponty a importacircncia de natildeo se omitir

estas questotildees eacute que no final das contas eacute o proacuteprio pensar que estaacute em

questatildeo uma vez que haveria um viacutenculo entre a tarefa do historiador da

filosofia e a proacutepria experiecircncia do pensamento Neste sentido retomando

nossa questatildeo anterior o que seria pensar O que seria uma ldquohistoacuteria

filosoacutefica do subentendidordquo

270

Se pensamos nas notas ineacuteditas de acordo com Merleau-Ponty

pensar seria antes ldquo[] delimitar progressivamente um sentido aberto que se

descobre ele mesmo nas coisas que vecirc o filoacutesofo ou nas palavras que lhe

vecircm como em um todo de siacutembolos voltados em direccedilatildeo a uma ideia futurardquo

e isto ldquoantes de chegar se esta palavra quer dizer alguma coisa agrave expressatildeo

lsquodiretarsquordquo (MERLEAU-PONTY NBNF [68])170 Ora estas linhas nos lembra um

outro texto de Merleau-Ponty Le Philosophe et son Ombre quando ele se

punha a pensar na obra de Husserl e em seu ldquoimpensadordquo [das Ungedachte]

Neste sentido com as devidas consideraccedilotildees eacute inegaacutevel nesta referecircncia ao

pensar assim como tambeacutem no que diz respeito agrave historiografia filosoacutefica a

sua diacutevida com o pensamento heideggeriano Do mesmo modo citando

Husserl Merleau-Ponty jaacute nos mostrava encontrar-se em um estilo de

pensar bem diferente de Gueacuteroult ldquoa tradiccedilatildeo eacute esquecimento das origens

[]rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 241) Certamente para o filoacutesofo natildeo

poderia se tratar no direcionamento agrave tradiccedilatildeo de um trabalho meramente

ldquoobjetivordquo estando nisto talvez uma das razotildees do esquecimento Por

conseguinte natildeo seria possiacutevel como jaacute indicamos uma neutralidade

absoluta tal como se poderia imaginar ocorrer no trabalho do fiacutesico visto

que

Entre uma histoacuteria ldquoobjetivardquo da filosofia que mutilaria os grandes filoacutesofos naquilo que deram aos outros para pensar e uma meditaccedilatildeo disfarccedilada de diaacutelogo onde colocariacuteamos questotildees e dariacuteamos as respostas deve haver um espaccedilo onde o filoacutesofo de que se fala e aquele que fala estejam presentes juntos embora de direito seja impossiacutevel repartir a cada momento o que eacute de cada um Aquele que acredita que a interpretaccedilatildeo estaacute restringida ou a deformar ou a retomar literalmente a significaccedilatildeo de um obra na verdade deseja que tal significaccedilatildeo seja completamente positiva e suscetiacutevel de direito de um inventaacuterio capaz de delimitar o que estaacute

170 ldquoPenser nrsquoest pas former un certain nombre drsquoideacutees crsquoest cerner progressivement un sens ouvert qui se deacutecouvre lui-mecircme dans les choses que voit la philosophe ou dans les mots qui lui viennent comme dans un tout de symboles tourneacutes vers une ideacutee future avant de parvenir si ce mot veut dire quelque chose agrave lrsquoexpression lsquodirectersquordquo Em outro trecho semelhante mais sinteacutetico poreacutem que nos compreender melhor a referecircncia a uma ldquoexpressatildeo diretardquo constantemente criticada pelo filoacutesofo ele nos diz o seguinte ldquoPenser nrsquoest pas former un certain nombre drsquoideacutees crsquoest cerner progressivement un sens ouvert qui se deacutecouvre lui-mecircme dans les mots et dans les choses comme dans autant de symboles avant de parvenir srsquoil y parvient agrave lrsquoexpression directerdquo

271

e o que natildeo estaacute nela Quem acreditar nisto engana-se sobre a obra e sobre o pensar (MERLEAU-PONTY 1975b p 241)

Merleau-Ponty se inspira especialmente em algumas linhas do

livro Der Satz vom Grund [O Princiacutepio de Razatildeo] de Heidegger Se prestarmos

bem atenccedilatildeo aos uacuteltimos trabalhos de Merleau-Ponty o filoacutesofo daacute mostras

de conhecer bem este livro basta pensar em seus comentaacuterios nas Notes de

cours acerca do poema de Angelus Silesius analisado por Heidegger

justamente nesta obra ldquoDie Rose ist ohne Warum sie bluumlhet weil sie

bluumlhet sie achtet nicht ihrer selbst fragt nicht ob man sie siehetrdquo ldquoa rosa eacute

sem porquecirc floresce porque floresce natildeo cuida de si mesma natildeo pergunta

se a vemosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 107 HEIDEGGER 1962 p 97-98)

Poreacutem a referecircncia ao impensado [das Ungedachte] surge no momento em

que Heidegger discute a passagem ldquoDa physis agrave Razatildeo Purardquo O que seria

este impensado Seria um outro nome ao ldquoindiziacutevelrdquo [das Unsagbare]

Estaria nisto a referecircncia de Merleau-Ponty Sabemos que natildeo haja vista

que no proacuteprio Heidegger o impensado natildeo pode ser compreendido fora dos

limites do diziacutevel [das Sagbare] Como se manifesta o ldquoimpensadordquo

Poderiacuteamos dizer ele nasce do proacuteprio pensado [das Gedachte] eacute dele e em

seu modo que ele adveacutem Neste sentido o ldquoimpensadordquo natildeo se daacute desligado

do passado afastado da tradiccedilatildeo na verdade ele se encontra jaacute naquilo que

efetivamente se pensou uma vez que ldquoo jaacute pensado prepara o ainda natildeo

pensado que sempre retorna novamente em sua superabundacircncia

[Uumlberfluszlig]rdquo (HEIDEGGER 1978 p 44) O impensado natildeo eacute uma mera

carecircncia um vazio absoluto Conforme nos diz Heidegger citado por

Merleau-Ponty ldquotratando-se do pensar quanto maior for o trabalho feito ndash

que natildeo coincide de modo algum com a extensatildeo e o nuacutemero dos escritos ndash

mais ricos eacute o impensado nele isto eacute aquilo que atraveacutes dele e somente por

ele volta-se para noacutes como o jamais-pensado-aindardquo (HEIDEGGER 1978 p

44)

Confirmando estas palavras lembremo-nos de que em Identitaumlt

und Differenz a pergunta pelo que seria o ldquoimpensadordquo de uma obra se daacute

no momento em que Heidegger buscava compreender as implicaccedilotildees e as

272

medidas de um ldquodiaacutelogo com a histoacuteria do pensamentordquo Heidegger se

colocava em uma posiccedilatildeo contraacuteria a de Hegel natildeo lhe interessaria apenas

no diaacutelogo com a tradiccedilatildeo historial o que haacute de positivo em cada pensador a

sua identidade ldquoa forccedila e o acircmbitordquo do que foi pensado por cada um deles

Mas pelo contraacuterio o ldquoimpensadordquo pelo qual ldquo[] o que foi pensado recebe

seu espaccedilo essencialrdquo Isto natildeo significa a recusa do que foi pensado pois eacute

certo que se haacute um impensado ele constitui-se apenas a partir deste

primeiro Contrariamente agrave concepccedilatildeo hegeliana de um sobressumir

[Aufhebung] Heidegger natildeo vislumbrava a possibilidade de uma escala

evolutiva na qual os momentos anteriores seriam tirados [tollere] elevados

[elevare] e conservados [conservare] pelos posteriores o que nos leva a

concluir da parte do filoacutesofo tanto a negaccedilatildeo de um esprit de systegraveme (seacutec

XVII) quanto de um esprit systeacutematique (seacutec XVIII) O passado natildeo eacute um

objeto que eacute visto ao longe por um sujeito universal no alto de uma colina

ou quiccedilaacute em uma torre de marfim Em Sens et non-sens jaacute encontraacutevamos

tambeacutem em Merleau-Ponty proacuteximo de Heidegger uma recusa a esta

compreensatildeo do passado uma vez que ao contraacuterio da legitimaccedilatildeo de uma

neutralidade diante do passado o que se passa antes entre o presente e o

passado eacute o mesmo que se daacute na experiecircncia da comunicaccedilatildeo

Se noacutes podemos progredir em direccedilatildeo a um conhecimento adequado do passado natildeo seraacute nos elevando ao ponto de vista de um observador absoluto que crecirc dominar todos os tempos e nisto mesmo os ignora mas ao contraacuterio experienciando cada vez mais que esta convicccedilatildeo mesma tem sua data que a ideia mesma de um universo de verdade eacute enganosa e percebendo por contraste o que o passado foi para si mesmo Noacutes natildeo atingimos o universal deixando nossa particularidade mas fazendo dela um meio de atingir os outros em virtude desta misteriosa afinidade que faz com que as situaccedilotildees se compreendam entre si (MERLEAU-PONTY 1966 p 162)

Do mesmo modo parece-nos que para Heidegger na volta para

o passado natildeo haacute um mecanismo de fundaccedilatildeo absoluta mas um diaacutelogo

pois o que estaria em questatildeo seria um solo originaacuterio que em muito

distancia-se de ser originante O que haacute para o filoacutesofo eacute um ldquopassado-

presenterdquo que ao colocar-se em marcha rumo agrave tradiccedilatildeo torna-se capaz ao

mesmo tempo de precedecirc-la sem contudo constituir-se como uma

273

positividade como o que vem paralelo ou em substituiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo Em

contrapartida o procedimento hegeliano conduzia conforme nos diz

Heidegger para ldquodentro do acircmbitordquo no qual ao ser elevada e unificada em

uma verdade absoluta depara-se com uma ldquocerteza plenamente

desenvolvida do saber que se sabe a si mesmordquo (HEIDEGGER 1978) Pensar

o ldquoimpensadordquo significa dar um ldquopasso de voltardquo que ldquo[] aponta para o

acircmbito ateacute aqui saltado a partir do qual a essecircncia da verdade se torna

antes de tudo digna de ser pensadardquo (HEIDEGGER 1978) Heidegger

propotildee ao contraacuterio do progresso [Fort-gang] hegeliano um regresso um

passo de volta [Ruumlck-gang]171 Do mesmo modo a partir destas

consideraccedilotildees Heidegger e poderiacuteamos dizer o mesmo de Merleau-Ponty

distancia-se tambeacutem de uma ldquohistoacuteria dos conceitosrdquo pondo-se ldquona

experienciaccedilatildeo da proximidade de um porvir de abertura e de decisatildeordquo172

Todavia natildeo podemos nos esquecer de que em Merleau-Ponty o impensado

[das Ungedachte] se encontra em um determinado horizonte a experiecircncia

da percepccedilatildeo e da linguagem Logo mais do que um direcionamento

reflexivo agrave tradiccedilatildeo em busca do que ficou esquecido e soterrado o que

171 Nessa perspectiva poderiacuteamos concluir que para Merleau-Ponty embora ele mesmo natildeo tenha afirmado isto o que foi pensado pode ser entendido tambeacutem usando a linguagem dos gestaltistas como a figura o positivo diria Heidegger o mais questionaacutevel [Fragwurdigste] Em contrapartida quando o fundo se torna figura eis-nos na lida com o negativo que se positiva isso justamente no momento em que a figura aquilo que eacute pensado movimenta-se por alguns instantes para os limites da sombra Em outros termos tanto o que foi pensado quanto o ldquoimpensadordquo satildeo ao mesmo tempo e reciprocamente figura e fundo Por um lado o ldquoimpensadordquo eacute um fundo no qual se encontra aquilo que foi pensado Assim cabe-nos a tarefa em um exerciacutecio positivo de reconhecer suas relaccedilotildees com o que fora pensado Nessa perspectiva o que foi pensado eacute a figura o positivo o mais questionaacutevel [Fragwuumlrdigste] 172 Cf ldquoQuand nous sommes en quecircte de ce qursquoest la fusiv et de la maniegravere dont elle se conccediloit agrave premiegravere vue on dirait qursquoil srsquoagit drsquoune pure et simple recherche meneacutee par curiositeacute de savoir la provenance de lrsquointerpreacutetation tradicionelle et contemporaine de la lsquoNaturersquo Mais si nous portons attention au fait que cette parole fondamentale de la meacutetaphysique heacuteberge en elle des ouvertures qui enagent deacutecisivement le sens de la veacuteriteacute de lrsquoeacutetant si nous nous avisons qursquoaujourdrsquohui la veacuteriteacute qui porte sur lrsquoeacutetant dans son ensemble est devenue de fond en comble probleacutematique si enfin nous pouvons entrevoir que de ce fait le deacuteploiement de la veacuteriteacute demeure absolument indeacutecis indeacutefini et donc clos si en plus nous savons que tout cela a mecircme commune origine dans lrsquoHistoire de lrsquointerpreacutetation de ce qursquoest la fusiv ndash alors drsquoembleacutee nous nous situons hors de lrsquointeacuterecirct des historiens de la philosophie pour une lsquohistoire des conceptsrsquo alors nous faisons lrsquoeacutepreuve ndash ne serait-ce que de loin ndash de la proximiteacute drsquoun avenir drsquoouverture et de deacutecisionrdquo (HEIDEGGER 1968 p 182)

274

encontramos tambeacutem eacute a percepccedilatildeo de um ldquoimpensadordquo e mediante isto a

razatildeo de sua gecircnese Eacute o que nos diraacute o filoacutesofo

Assim como o mundo percebido soacute se manteacutem pelos reflexos sombras e niacuteveis por horizontes entre as coisas natildeo sendo eles coisas mas nem por isso sendo nada e que pelo contraacuterio sozinhos delimitam os campos de variaccedilatildeo possiacutevel na mesma coisa e no mesmo mundo assim tambeacutem a obra e o pensamento de um filoacutesofo satildeo feitos de certas articulaccedilotildees entre as coisas ditas frente agraves quais natildeo haacute dilema entre a interpretaccedilatildeo objetiva e a arbitraacuteria visto que ali natildeo estatildeo objetos de pensamento pois como a sombra e o reflexo tambeacutem eles seriam destruiacutedos se submetidos agrave observaccedilatildeo analiacutetica ou ao pensamento isolante Se quisermos reencontrar o pensamento e a obra e se quisermos ser fieacuteis a eles soacute nos resta um caminho pensar de novo (MERLEAU-PONTY 1975b p 242)

O que estava em jogo seria a transposiccedilatildeo do ofiacutecio do

historiador para o campo da percepccedilatildeo A experiecircncia do historiador do

pensamento eacute pois uma experiecircncia perceptiva logo conforme nos diraacute o

filoacutesofo pensando nas Ideen I de Husserl ldquonatildeo eacute portanto o irrefletido que

contesta a reflexatildeo mas proacutepria reflexatildeo que se contesta a si mesma porque

seu esforccedilo de retomada posse interiorizaccedilatildeo ou imanecircncia soacute tem sentido

frente a um termo jaacute dado que se abriga em sua transcendecircncia sob o olhar

que vai buscaacute-lo alirdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 243) Neste sentido

tambeacutem podemos entender o que levara Merleau-Ponty a crer que a relaccedilatildeo

da palavra com sua significaccedilatildeo seja a mesma daquela existente entre o

gesto e o alvo visado por este mesmo gesto Quando visamos algo de nosso

ambiente natildeo pressupomos qualquer tematizaccedilatildeo pois nossa intenccedilatildeo

significativa no momento eacute apenas um vazio determinado a ser preenchido

pelas palavras Embora apenas as perspectivas da significaccedilatildeo sejam

tematicamente dadas o fato eacute que passado um certo ponto do discurso as

perspectivas tomadas em seu movimento subitamente se contraem em uma

uacutenica significaccedilatildeo Neste sentido de acordo com o filoacutesofo uma nova

significaccedilatildeo a fala autecircntica eacute adquirida quando usando as palavras

disponiacuteveis da liacutengua e sua gramaacutetica ocorre ldquoum ultrapassamento do

significado pelo significanterdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 134) Esta

ldquodeformaccedilatildeo coerenterdquo das significaccedilotildees disponiacuteveis eacute precisamente o que as

ordena num sentido novo levando os ouvintes e tambeacutem o sujeito falante a

275

dar um passo decisivo O sentido das expressotildees eacute um sentido lateral que se

manifesta entre as palavras nos irrefletidos

Por conseguinte nesta ldquodeformaccedilatildeo coerenterdquo neste

ldquoultrapassamentordquo talvez possamos encontrar pistas de como fora recebida

na compreensatildeo de histoacuteria da filosofia esboccedilada em Merleau-Ponty a

concepccedilatildeo heideggeriana de ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] Contudo ao

inveacutes de manifestar um equiacutevoco a nosso ver esta releitura de Heidegger

apenas serve para nos confirmar a importacircncia que este pensador tivera na

filosofia de Merleau-Ponty especialmente nos uacuteltimos trabalhos Longe das

sendas abertas por esta noccedilatildeo certamente natildeo podemos compreender o que

tenciona Merleau-Ponty ao falar de uma ldquohistoacuteria filosoacutefica do subentendidordquo

em oposiccedilatildeo ao ldquomeacutetodo estrutural-geneacuteticordquo de Gueacuteroult Aliaacutes se

pensarmos bem a partir do que refletimos poderiacuteamos ateacute concordar com

Gueacuteroult apesar dos limites que encontramos em seu meacutetodo ao dizer que

ndash talvez com intenccedilotildees diferentes das nossas ndash quando nos pomos a pensar

sobre Descartes quando ldquoreviramosrdquo o seu pensamento permutamos a

ordem de suas ideias o que fazemos eacute ldquo[] alterar as estruturas de seu

pensamento ndash a configuraccedilatildeo de uma linguagem ontoloacutegica que certamente

daacute-se forma e se transforma agrave medida que a obra avanccedila mas cujo

equivalente visiacutevel da obra natildeo eacute senatildeo uma expressatildeo parcialrdquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [68])173 Afinal natildeo seria isto mais do que um equiacutevoco a

consequecircncia mesma de todo pensar Seria de fato suficiente repetir

apenas aquilo que o filoacutesofo dissera De acordo com Merleau-Ponty

Mesmo se nos bastasse dizer o que o filoacutesofo quis ser natildeo nos diria o que ele eacute na [memoacuteria] das filosofias que precederam ou seguiram a sua que natildeo instauraram a mesma ordem e que caso nos limitemos agrave ordem quista satildeo (19) incomensuraacuteveis com a sua Se em filosofia como em outro lugar natildeo nos contentamos com o que o pensador pensou ou quis ser se a histoacuteria eacute tambeacutem histoacuteria do que veio a ser agrave medida que uma posteridade fiel ou infiel o situa de outro modo que natildeo podia se situar eacute preciso efetivamente finalmente que a

173 ldquoRetourner sa penseacutee crsquoest donc comme le dit tregraves bien M Gueacuteroult par delagrave ses ideacutees remanier les structures de sa penseacutee ndash la configuration drsquoun langage ontologique qui certes se faccedilonne et se transforme agrave mesure que lrsquoœuvre avance mais dont lrsquoeacutequivalent visible de lrsquoœuvre nrsquoest qursquoune expression partiellerdquo

276

histoacuteria [forneccedila] o denominador comum que permita a compreensatildeo e este denominador eacute sua proacutepria filosofia Caso natildeo se permita pocircr questotildees e discutir senatildeo questotildees cartesianas se implicaria que realmente ele morreu e que natildeo haacute mais nada de comum entre ele e noacutes Coloquemos entatildeo que noacutes natildeo falamos de Descartes que noacutes sonhamos ao redor de seus textos Eacute com esta condiccedilatildeo que se pode saber natildeo o que disse mas o que nos diz (MERLEAU-PONTY NBNF [68])174

Ora o que podemos concluir destas consideraccedilotildees Em certas

medidas eacute preciso saber distinguir um determinado filoacutesofo da ldquoescolardquo ou

ldquocorrenterdquo que o reclama como ldquofundadorrdquo uma vez que o filoacutesofo natildeo pode

deixar de ser visto como algueacutem que em sua eacutepoca ldquorodeado de

circunstacircncias hoje abolidas atormentado com preocupaccedilotildees e com algumas

ilusotildees de seu tempo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 211) soube

responder ldquoa esses acasos de tal maneira que nos ensina a responder aos

nossos embora diferentes e diferente de nossa respostardquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 211) Eacute sempre da ldquovida pensanterdquo que denominamos

Descartes e de tantos outros de que nos aproximamos A verdade encontra-

se em toda filosofia sempre como uma tarefa inesgotaacutevel um labor

constante A relaccedilatildeo da leitura filosoacutefica com outros referenciais (elementos

psicoloacutegicos socioloacutegicos etc) daacute-se sempre como uma espeacutecie de

ldquodescentramentordquo que conduz o proacuteprio fato em questatildeo agrave ordem simboacutelica

que conduz como indicamos acima uma ldquofala faladardquo a uma ldquofala falanterdquo e

sedimentada em uma historicidade ldquoverticalizanterdquo Seria o caso de

compreender a obra a partir da vida ou de tornar a vida uma consequecircncia

da obra (MERLEAU-PONTY 1975b) Para Merleau-Ponty mais do que um

direcionamento agrave vida vale salientar tambeacutem que julgar apenas a obra pela

174 ldquoMecircme srsquoil suffisait agrave nous dire ce que le philosophe a voulu ecirctre il ne nous dirait pas ce qursquoil est dans la [meacutemoire] des philosophies qui ont preacuteceacutedeacute ou suivi la sienne qui nrsquoinstauraient pas le mecircme ordre et qui si lrsquoon srsquoen tient agrave lrsquoordre voulu sont (19) incommensurables avec la sienne Si en philosophie comme ailleurs nous ne nous contentons pas de ce que le penseur a penseacute ou voulu ecirctre si lrsquohistoire est aussi histoire de ce qursquoil est devenu agrave mesure qursquoune posteacuteriteacute fidegravele ou infidegravele le situe autrement qursquoil ne pouvait se situer il faut bien finalement que lrsquohistoire [fournisse] le deacutenominateur commun qui permettra la compreacutehension et ce deacutenominateur crsquoest sa propre philosophie Si lrsquoon ne se permet de poser et discuter que des questions carteacutesiennes on impliquerait qursquoil est bien mort et qursquoil nrsquoy a plus rien de commun entre lui et nous Mettons donc que nous ne parlons pas de Descartes que nous recircvons autour de ses textes Crsquoest agrave cette condition qursquoon peut savoir non ce qursquoil dit mais ce qursquoil nous ditrdquo

277

vida torna-se tatildeo contraditoacuterio quanto analisar apenas a vida pela obra

aliaacutes

Natildeo somos obrigados a escolher entre aqueles que pensam que a histoacuteria do indiviacuteduo e da sociedade deteacutem a verdade das construccedilotildees simboacutelicas do filoacutesofo e aqueles que pensam ao contraacuterio que a consciecircncia filosoacutefica tem por princiacutepio as chaves da histoacuteria social e pessoal A alternativa eacute imaginaacuteria tanto assim que os defensores de uma destas teses sempre recorrem sub-repticiamente agrave outra (MERLEAU-PONTY 1975b p 211)

Assim devemos saber que ldquonunca se opotildee ao estudo interno das

filosofias uma explicaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica mas sempre uma outra filosofia

escondida sob elardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 211) Haacute pelo contraacuterio

nos alicerces de uma discussatildeo de toda ldquohistoacuteria da filosofiardquo uma ldquohistoacuteria

intencionalrdquo que precisa ser elucidada Ao se falar em uma ldquohistoacuteria

intencionalrdquo precisamos abandonar todo posicionamento que parte apenas

de uma elucidaccedilatildeo de textos visto que toda seleccedilatildeo jaacute conteacutem

indiretamente tomadas de posiccedilatildeo decisotildees Haacute sempre uma interpretaccedilatildeo

ao se escolher e classificar textos filosoacuteficos Diante dos textos a principal

tarefa seraacute a de indicar aleacutem de ideias as intenccedilotildees que cada filoacutesofo

apresenta espontaneamente no desenvolvimento e expressatildeo de sua obra

Toda interpretaccedilatildeo apresenta-se como a verticalizaccedilatildeo de um sentido

presente na proacutepria trama que constitui o texto filosoacutefico que ao contraacuterio

de ser uma mera explicitaccedilatildeo de um saber originaacuterio e taciturno eacute um

discurso a produccedilatildeo de um pensamento que eacute sobretudo linguagem A

histoacuteria da filosofia eacute antes de tudo natildeo soacute uma mera constataccedilatildeo do que

fora dito mas a busca do que foi sugerido do que ficou de um ldquoimpensadordquo

[das Ungedachte] que se manifesta na lateralidade do proacuteprio discurso e do

que ele apresenta em uma significaccedilatildeo frontal Todo historiador da filosofia

estaacute em um constante confronto com os filoacutesofos que procura investigar

Todavia natildeo se trata de um mero confronto abstrato narciacuteseo apenas mas

de um confronto semelhante ao que tem com os seus contemporacircneos Natildeo

podemos nos esquecer de que toda histoacuteria eacute sempre norteada por escolhas

escolhas que ldquo(con)-figuramrdquo um todo que ao destacar-se de um ldquofundordquo

remete-nos a relaccedilotildees a diferenccedilas Como nos lembra Merleau-Ponty

278

() os partidaacuterios da filosofia ldquopurardquo e os da explicaccedilatildeo soacutecio-econocircmica trocam seus papeacuteis natildeo somos obrigados a participar do seu eterno debate natildeo temos que tomar partido entre uma falsa concepccedilatildeo do ldquointeriorrdquo e uma falsa concepccedilatildeo do ldquoexteriorrdquo A filosofia estaacute em toda parte ateacute mesmo nos ldquofatosrdquo e em parte alguma e em domiacutenio algum se acha preservada do contaacutegio da vida (MERLEAU-PONTY 1975b p 212)

Por conseguinte natildeo eacute apenas aquilo que eacute aquilo que foi

escolhido como discussatildeo por certa filosofia que nos chama a atenccedilatildeo mas

tambeacutem o sentido do que natildeo foi escolhido e o porquecirc de natildeo ter sido

escolhido O que sustenta nosso diaacutelogo seja com um texto seja com os

nossos contemporacircneos eacute o fundo diferencial que manteacutem nossas decisotildees

nossas relaccedilotildees eacute a diferenccedila que emerge silenciosamente das

positividades de nossas escolhas e percepccedilotildees A histoacuteria da filosofia natildeo se

desenvolve a partir de uma atividade desenvolta de ldquoingestatildeordquo de diversas

filosofias em uma escala evolutiva de momentos confusos que se dirigem agrave

perfeiccedilatildeo As tentativas de organizaccedilatildeo do saber em um sistema uacutenico em

uma histoacuteria fechada natildeo conseguem sufocar a agitaccedilatildeo das filosofias que

foram por ele englobadas Encarar a histoacuteria da filosofia como um ldquomuseurdquo eacute

promulgar a morte do proacuteprio pensamento pois ldquonatildeo haacute uma filosofia que

contenha todas as filosofias em certos momentos a filosofia estaacute inteira em

cada uma delasrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 211)

O mito tanto de uma ldquofilosofia purardquo quanto de uma ldquohistoacuteria

purardquo deve ser desconstruiacutedo Seria possiacutevel um equiliacutebrio entre a

importacircncia histoacuterica de um acontecimento e a significaccedilatildeo filosoacutefica que ele

possui Eacute portanto o excesso das significaccedilotildees de um acontecimento que

uma abordagem histoacuterica deve explicitar ao inveacutes de tentar apenas explicar

uma determinada filosofia Por sua vez o trabalho filosoacutefico apresenta-se na

explicitaccedilatildeo de um universal que ldquo[] reside no momento e no ponto em que

as limitaccedilotildees de um filoacutesofo investem numa outra histoacuteria []rdquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 212) Esta outra histoacuteria natildeo sendo ldquo[] paralela agrave dos

fatos psicoloacutegicos ou sociais () ora se cruza com ela ora se afasta dela ou

melhor natildeo pertence agrave mesma dimensatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p

212) Entre filosofia e histoacuteria eacute a ldquoambiguidaderdquo que as une natildeo como

279

conceito mas como um ponto de partida comum A histoacuteria da filosofia se

apresenta como uma paisagem que apesar de sua unidade apresenta

campos lagos ondulaccedilotildees Diante deste quadro

a pluralidade das perspectivas e dos comentadores por sua vez natildeo romperia a unidade da histoacuteria da filosofia a menos que fosse uma unidade de justaposiccedilatildeo ou de acumulaccedilatildeo Mas como as filosofias satildeo linguagens que natildeo podem ser traduzidas imediatamente uma na outra nem superpostas termo a termo uma vez que eacute por sua maneira singular que uma eacute necessaacuteria agrave outra a diversidade dos comentaacuterios aumenta muito pouco a da filosofia Aliaacutes se pedirmos a cada um como temos feito muito mais do que um balanccedilo ldquoobjetivordquo sua reaccedilatildeo diante de um filoacutesofo talvez nesse cuacutemulo de subjetividade reencontremos uma espeacutecie de convergecircncia e um parentesco entre as questotildees que num coloacutequio iacutentimo cada um dos contemporacircneos coloca para seu filoacutesofo ceacutelebre (MERLEAU-PONTY 1975b p 214)

Conforme podemos notar o que encontramos eacute antes de tudo

uma histoacuteria da filosofia que natildeo se olvida que seu ofiacutecio se daacute em primeiro

lugar a partir de uma experiecircncia da linguagem que por sua vez encontra-

se permeada pela vivecircncia da ldquoambiguidaderdquo O que seria esta ambiguidade

A este respeito vale lembrar as palavras de Merleau-Ponty ao proferir o seu

Eacuteloge de la Philosophie ldquoo filoacutesofo reconhece-se pela posse inseparaacutevel do

gosto da evidecircncia e do sentido da ambiguidaderdquo poreacutem ldquoquando se limita a

suportar a ambiguidade esta se chama equiacutevocordquo (MERLEAU-PONTY 1986

p 10) A ambiguidade eacute pois no entender do filoacutesofo inerente ao

pensamento em todo e qualquer movimento que o impulsione estando

inscrita inclusive ldquo() na proacutepria textura de nossa vida coletiva e natildeo

apenas nas obras dos intelectuais ()rdquo (MERLEAU-PONTY 2002d p 66)

Nesta perspectiva o equiacutevoco surgiria quando ldquolimitando-se a suportar a

ambiguidaderdquo o pensamento perde ldquo() o movimento que leva

incessantemente do saber agrave ignoracircncia da ignoracircncia ao saber e um certo

repouso neste movimentordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 11) O equiacutevoco

nasce quando o ldquocerto repousordquo se cristaliza e de uma vez por todas a

dialeacutetica presente nesta praacutexis se engessa torna-se uma ldquomaacute dialeacuteticardquo175

175 ldquoNos contradictions sont bien lagrave passage de la dialectique dans lrsquoantidialectique ndash Mais il ne srsquoagit pas non plus de rester dans la mauvaise dialectique qui est eacutequivoque qui est

280

aquela que natildeo mais em movimento faz de seu modo de negar tatildeo-somente

um modo de afirmar e na qual o negativo acaba por celebrar uma

reconciliaccedilatildeo com o positivo em nome de ldquouma verdade para mais tarderdquo que

natildeo cessa de firmar uma ldquoidentidade sem movimento dos contraacuteriosrdquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [226] (7) Vol VIII) Logo

a maacute dialeacutetica eacute aquela que natildeo quer perder sua alma para salvaacute-la que quer ser dialeacutetica imediatamente torna-se autocircnoma e termina no cinismo no formalismo por ter evitado seu proacuteprio duplo sentido O que chamamos hiperdialeacutetica eacute um pensamento que ao contraacuterio eacute capaz de verdade pois encara sem restriccedilatildeo a pluralidade das relaccedilotildees e o que chamamos ambiguidade A maacute dialeacutetica eacute a que acredita recompor o ser usando um pensamento teacutetico com um conjunto de enunciados com tese antiacutetese e siacutentese a boa dialeacutetica eacute a que tem consciecircncia de que toda tese eacute idealizaccedilatildeo de que o Ser natildeo eacute feito de idealizaccedilatildeo ou coisas ditas como acreditava a velha loacutegica mas de conjuntos ligados onde a significaccedilatildeo aparece apenas como tendecircncia onde a ineacutercia do conteuacutedo nunca permite definir um termo como positivo outro termo como negativo e ainda menos um terceiro termo como supressatildeo absoluta dele por ele mesmo (MERLEAU-PONTY 1992 p 127 grifo nosso)

A nosso ver e eacute o que justifica nossa digressatildeo ao que o filoacutesofo

denomina ldquomaacute dialeacuteticardquo a histoacuteria da filosofia abriga este mesmo

movimento aquele movimento que pode animar cada filosofia em seu

itineraacuterio de expressatildeo que pode animar uma eacutepoca Falar da ambiguidade

que alimenta a filosofia e sua histoacuteria eacute falar de uma hiperdialeacutetica capaz de

encarar sem impor limites ldquoa pluralidade de relaccedilotildeesrdquo natildeo havendo pois

uma superaccedilatildeo absoluta uma superaccedilatildeo que consiga conservar ldquotudo o que

as fases precedentes tenham adquiridordquo As verdades de uma eacutepoca e a

proacutepria filosofia ainda incertas e concretas para quem as vivia tornam-se

equiacutevocas no justo momento em que partem do pressuposto de terem

chegado a uma certeza definitiva No que diz respeito agrave filosofia podemos

dizer por conseguinte que o equiacutevoco ocorre no momento em que o

movimento circular que lhe eacute inerente se perdeu No trabalho do historiador

haacute pois um movimento constante sem repouso O que isto significa O que

pseudochoix car on ne choisit vraiment rien si les contradictoires sont identiques ndash Il faut donc deacutepassement sans doute mais dont on convient qursquoil nrsquoest ni refoulement ni veacuteritable conservationrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [13] C Vol VI)

281

seria este modo de encarar a proacutepria experiecircncia da filosofia nos horizontes

de uma experiecircncia da linguagem O que seria esta espeacutecie de

ldquohiperdialeacuteticardquo constante assediada pelo equiacutevoco cujo equiacutevoco estaria

justamente na tentativa de se abrigar em ldquocertezas absolutasrdquo em um

ldquomeacutetodo eficazrdquo Em suma a que concepccedilatildeo de filosofia nos remete este

modo de lidar com sua Histoacuteria A seguir pensemos nestas questotildees

45 A ldquoexperiecircncia do Pensamentordquo nas trilhas de uma ldquoExperiecircncia da Linguagemrdquo a filosofia interrogativa o sentido da Fecircnix

Pelo que refletimos ateacute aqui parece-nos que ao se pensar na

Histoacuteria da Filosofia um dos interesses tambeacutem de Merleau-Ponty seria o de

demonstrar os impasses tanto de uma historiografia como de uma

compreensatildeo da filosofia que almejam fundar a seguranccedila de seu ofiacutecio

tendo como referecircncia em seu alicerce o rigor da linguagem cientiacutefica

Contudo pensando na temaacutetica de nosso trabalho se os impasses

instaurados pelo Mundo Claacutessico os mesmos que nos conduziram a uma

eacutepoca na qual em meio agraves dificuldades em compreender o Mundo Moderno

natildeo soacute quando a ideia de um fundamento jaacute natildeo faz sentido naturalismo

humanismo e teiacutesmo perderem sua razatildeo de ser mas tambeacutem tais

derrocadas acabaram por deixar as suas marcas em uma metodologia

filosoacutefica seria o abismo [Buqov] ou o silecircncio [Sigh] aquilo que nos resta A

partir deste cenaacuterio como ficaria a proacutepria filosofia Conforme vimos no

primeiro capiacutetulo se pensamos em Husserl o que encontramos nestas

paisagens sobretudo satildeo ruiacutenas que trazem in profundis nada mais e nada

menos do que uma crise da proacutepria Razatildeo Haveria pois um projeto de

racionalidade cujas raiacutezes natildeo satildeo em nada superficiais e que precisariam

ser reavaliados os seus pressupostos e fundamentos Nisto estariam os

embaraccedilos da filosofia consigo mesma talvez o sentido da indicaccedilatildeo

merleau-pontiana de uma situaccedilatildeo na qual natildeo se sabe o que se pensa logo

mediante a Crise da Razatildeo o engendramento tambeacutem de uma crise da

proacutepria filosofia Como a filosofia poderia sair deste labirinto No caso de

Husserl o caminho da filosofia encontrava-se em sua capacidade de dar um

282

ldquosentido filosoacuteficordquo ao mundo-da-vida ao inveacutes de simplesmente soterraacute-lo

ou cobri-lo com uma ldquovestimenta de ideiasrdquo (Idennkleid) (HUSSERL La crise

des sciences europeacuteennes et la Pheacutenomeacutenologie transcendantale sect 9 p 60)

procedimento este presente nas ciecircncias como nos salienta o proacuteprio

filoacutesofo

A vestimenta de ideias ldquoMatemaacutetica e ciecircncia matemaacutetica da naturezardquo ou ainda vestimenta de siacutembolos de teorias matemaacutetico-simboacutelicas compreende tudo aquilo que para os cientistas e para os homens cultivados substitui-se (enquanto natureza ldquoobjetivamente real e verdadeirardquo) ao mundo-da-vida e o traveste Eacute a vestimenta de ideias que faz com que tomemos pelo Ser verdadeiro aquilo que eacute Meacutetodo ndash um meacutetodo que estaacute ali para corrigir em uma progressatildeo ao infinito por antecipaccedilotildees ldquocientiacuteficasrdquo as antecipaccedilotildees grosseiras que satildeo originalmente as uacutenicas possiacuteveis no interior do efetivamente-experimentado (real e possiacutevel) do mundo-da-vida Eacute a vestimenta de ideias que faz com que o sentido autecircntico do meacutetodo das foacutermulas das teorias tenha permanecido incompreensiacutevel e que na ingenuidade do meacutetodo em seu nascimento nunca fora compreendido (HUSSERL 1976 sect 9 p 60)

Pelo que podemos ver conforme o filoacutesofo o que diferiria a

ldquovestimentardquo da filosofia e a da ciecircncia no que cabe agrave filosofia estaria em ser

uma experiecircncia de sentido logo uma experiecircncia da linguagem daiacute a

importacircncia de legitimar uma experiecircncia filosoacutefica da linguagem ou melhor

enquanto linguagem ndash dado que a filosofia passa a ser entendida justamente

como uma instituiccedilatildeo linguageira a se dar em um processo historial ndash que

diferentemente da linguagem cientiacutefica assumiria o projeto de natildeo deixar

escapar a experiecircncia que fazemos da Lebenswelt de uma Ur-doxa de uma

Ur-glaube ou para usar uma expressatildeo de Merleau-Ponty de nossa ldquofeacute

perceptivardquo (foi perceptive) Para isso conforme a Krisis a filosofia deveria

assumir sua tarefa de a partir de um ideal de razatildeo graccedilas a um heroiacutesmo

da razatildeo (Heroismus der Vernunft) superar o naturalismo de modo definitivo

Eacute a assim que a filosofia adquire em Husserl as faces de uma Fecircnix

ressuscitada ndash sendo ela mesma a inauguraccedilatildeo de uma ldquonova vida interiorrdquo ndash

a sair das ldquocinzas do niilismordquo (HUSSERL Ibidem p 382-3) Pelo que

notamos contudo nas fibras da Krisis ainda se sonhava com um ldquosaber

rigorosordquo a se dar como Prima Philosophia ou lembrando-nos de suas raiacutezes

gregas como Prwth Filosofia [Proteacute Philosophia] Ora como Merleau-Ponty

283

entenderia a Fecircnix husserliana Certamente a Fecircnix merleau-pontiana

longe de ser aquela de um ldquobom europeurdquo nasceria de uma filosofia que

estaacute conforme procuramos mostrar anteriormente muito longe de ser um

pensamento puro e isto se evidencia no papel que a fenomenologia

desempenha nas pesquisas de Merleau-Ponty Contudo se a Fecircnix adquire

em Merleau-Ponty um outro estatuto poderiacuteamos encontrar nele tambeacutem no

que diz respeito ao modo pelo qual se procurava compreender uma

ldquoexperiecircncia do sentidordquo tal como parece percorrer seus trabalhos aquele

mesmo movimento presente em Husserl entre uma fenomenologia

ldquoestaacuteticardquo fundamentada em uma anaacutelise dos objetos da consciecircncia e uma

fenomenologia ldquogeneacuteticardquo176 centrada nos processos de constituiccedilatildeo de

sentido

De acordo com Slatman se pensamos em La Structure du

comportement e Pheacutenomeacutenologie de la perception como a explicitaccedilatildeo de duas

perspectivas frente a um uacutenico e mesmo fenocircmeno poderiacuteamos pensar que

haacute no pensamento merleau-pontiano um duplo movimento rumo agraves coisas

mesmas de um lado um movimento arqueoloacutegico entendido aqui como a

descoberta em meio aos sedimentos do mundo-da-vida unicamente de

outro como nomearaacute Slatman um movimento genealoacutegico mas que em

Merleau-Ponty iria se concentrar em uma experiecircncia filosoacutefica do sentido e

da expressatildeo presentes naquilo que fora descoberto como fundamento no

exerciacutecio arqueoloacutegico177 Por conseguinte o direcionamento merleau-

176 ldquoDeacutejagrave chez Husserl on peut faire une distinction entre la phenomenologie statique et la phenomenology geacuteneacutetique perspective statique concerne une analyse des objets de la conscience la perspective geacuteneacutetique se concentre plutocirct sur le processus de la constitution du sens Dans la penseacutee de Merleau-Ponty on peut eacutegalement reconnaicirctre une distinction semblable Pourtant chez lui il ne srsquoagit pas drsquoune distinction entre la vue statique et la vue geacuteneacutetique mais plutocirct drsquoune distinction entre la vue archeacuteologique et la vue geacuteneacutetique (ou geacuteneacuteologique) Selon la premiegravere la pheacutenomeacutenologie cherche agrave deacuteterminer les fondements de notre connaissance et selon la deuxiegraveme elle cherche agrave expliquer la genegravese du sens agrave partir de ces fondements archeacuteologiques rdquo (SLATMAN 2001 p 38) 177 Como acentua Slatman ldquoDans la penseacutee de Merleau-Ponty on peut eacutegalement reconnaicirctre une distinction semblable [agrave la de Husserl] Pourtant chez lui il ne srsquoagit pas drsquoune distinction entre la vue statique et la vue geacuteneacutetiquemais plutocirct drsquoune distinction entre la vue archeacuteologique et la vue geacuteneacutetique (ou geacuteneacutealogique) Selon la premiegravere la pheacutenomeacutenologie cherche agrave deacuteterminer les fondements de nostre connaissance et selon la deuxiegraveme elle cherche agrave expliquer la gecircnese du sens a partir de ces fondements archeologiquesrdquo (SLATMAN 2001 p 38)

284

pontiano agraves ciecircncias humanas pode ser entendido como esta procura

arqueoloacutegica e neste sentido parece-nos que a sua relaccedilatildeo com as ciecircncias

e o seu modo de encontrar uma saiacuteda para a Crise eacute diferente daquela

proferida por Husserl Merleau-Ponty ao voltar-se para as ciecircncias procura

desconstruir em primeiro lugar uma tradiccedilatildeo neo-kantiana sem contudo

fazer uso de um programa meramente empirista Daiacute o enveredamento pelos

caminhos da percepccedilatildeo como tentativa de uma dupla superaccedilatildeo ao mesmo

tempo do empirismo e do intelectualismo Assim a percepccedilatildeo mais do que

uma archeacute tenciona revelar a gecircnese de uma experiecircncia de sentido longe

de qualquer teleologia o qual tem seu berccedilo em uma vivecircncia perceptiva do

mundo no entrelaccedilamento que se articula entre o logoj [loacutegos] ndash entendido

como ldquologoj [loacutegos] do mundo esteacuteticordquo (MERLEAU-PONTY 1960 p 218) o

ldquologoj [loacutegos] perceptivordquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 233) o ldquologov

endiaqetov [loacutegos endiaacutethetos]rdquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 222 224 266)

o ldquologov proforikov [loacutegos prophorikoacutes]rdquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 222) o

ldquoespiacuterito selvagemrdquo a ldquopalavra silenciosardquo (Parole silencieuse) (MERLEAU-

PONTY 1964a p 322) a ldquopalavra verticalrdquo (Parole verticale) ndash por fim entre

physis e histoacuteria178 Na tensatildeo existente neste entrelaccedilamento por natildeo se

privilegiar um dos poacutelos inclusive o que estaacute em jogo eacute em primeiro lugar

a experiecircncia da expressatildeo e parece-nos aqui que haacute verdadeiramente um

caminho de enfrentamento da Crise no acircmbito filosoacutefico mas a partir de

uma indagaccedilatildeo crucial aquela que nos leva a querer entender o movimento

pelo qual seja possiacutevel agrave filosofia considerada como uma ldquoordem de

significaccedilotildeesrdquo ndash sem cair no operacionalismo da ciecircncia ndash desvelar a

178 ldquoLa recherche geacuteneacutealogique de la constitution du sens implique ainsi une recherche de lrsquoorigine lsquodissimuleacuteersquo en tant qursquoune forme du logos qui se lsquocachersquo dans le monde de la vie preacutepreacutedicative preacutescientifique comme une verborgene Vernunft (NC 77) Pour lrsquoindiquer Merleau-Ponty emploie des termes qui indiquent une transformation de la notion traditionelle de logos (ou de rationaliteacute) lsquologos endiathetosrsquo (VI 222 224 266) lsquologos perceptifrsquo (VI 233) lsquologos du monde estheacutetiquersquo (S 218) et lsquolrsquoesprit sauvagersquo Et au niveau du langage ce logos est appeleacute lsquoParole silencieusersquo (VI 322) ou lsquoParole verticalersquo Le premier but de la pheacutenomeacutenologie geacuteneacutealogique est donc deacutegager une forme de logos eacutetant impliqueacutee dans la vie percpetive De cette maniegravere le retour aux choses mecircmes exige qursquoon remonte agrave un logos ou langage qui se manifeste deacutejagrave dans la vie perceptive avant qursquoil soit langage explicite prononceacute La lsquochose mecircmersquo est justement la chose dans la perspective ouacute elle nrsquoa pas encore une signification seacutedimenteacutee ou une chose dite La pheacutenomeacutenologie lsquogeacuteneacutealogiquersquo doit retornour agrave ce niveau du langagerdquo (SLATMAN 2001 p 41)

285

experiecircncia deste logoj [loacutegos] tornar patente uma linguagem silenciosa

ainda muda Como indaga o filoacutesofo em uma nota datada de Abril de 1960

ldquocomo restituir pela filosofia (isto eacute na ordem das significaccedilotildees) a palavra

vertical (parole verticale) (que eacute anterior agraves significaccedilotildees) Mas as

significaccedilotildees que propotildee a filosofia satildeo enigmas a serem decifrados pela

proacutepria experiecircnciardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [342] (12)) Natildeo nos lembra

esta advertecircncia as primeiras paacuteginas de Le Visible et LrsquoInvisible

[] A filosofia natildeo eacute um leacutexico natildeo se interessa pelas ldquosignificaccedilotildees das palavrasrdquo natildeo procura substituto verbal para o mundo que vemos natildeo o transforma em coisa dita natildeo se instala na ordem do dito ou do escrito como o loacutegico no enunciado o poeta na palavra ou o muacutesico na muacutesica Satildeo as proacuteprias coisas do fundo de seu silecircncio que deseja conduzir agrave expressatildeo (MERLEAU-PONTY 1964a p 18)

Aqui se entende a filosofia como este movimento pelo qual as

ldquocoisas mesmasrdquo satildeo conduzidas agrave expressatildeo e natildeo satildeo simplesmente

substituiacutedas tarefa esta nada faacutecil de ser compreendida quiccedilaacute realizada

Mas esta dificuldade natildeo eacute desconhecida pelo filoacutesofo e nem por isso

considera impossiacutevel tal empreendimento A questatildeo eacute a necessidade

sentida por Merleau-Ponty em entender aquela ldquovestimenta de ideiasrdquo

(Idennkleid) da filosofia que desde Husserl tenciona separar-se da

ldquovestimenta de ideiasrdquo (Idennkleid) do discurso cientiacutefico Em outros termos

se a filosofia natildeo tem outro destino senatildeo a atividade meramente conceitual

eacute possiacutevel conceituar sem ao mesmo tempo um ldquoocultamento das origensrdquo

sem uma ldquosedimentaccedilatildeordquo ou velamento daquele mundo-da-vida que se

esperava justamente desvelar e liberar da cadeia das simbolizaccedilotildees Eacute

preciso pois romper com a concepccedilatildeo de uma filosofia que seja meramente

um tratamento do tipo lexical o que exige do olhar filosoacutefico uma mudanccedila

radical de seu modo de encarar a proacutepria experiecircncia do mundo e

poderiacuteamos acrescentar a sua Skeyij [skeacutepsis] 179

179 Skeacutepsis (Σκέψις) eacute uma palavra grega que pode ser traduzida como exame anaacutelise observaccedilatildeo consideraccedilatildeo olhar atento duacutevida sistemaacutetica reflexatildeo meditaccedilatildeo Vem do verbo grego skeptomai Liga-se a um ldquoolhar atentamenterdquo a realidade a uma verificaccedilatildeo rigorosa de toda doxa de toda opiniatildeo ou percepccedilatildeo Ceticismo origina-se dessa palavra grega embora como podemos notar em seu sentido originaacuterio significa antes uma

286

Neste sentido vale lembrar que um dos alvos de Merleau-Ponty

centra-se como nos eacute manifesto em seus trabalhos na legitimidade que toda

ἐπιστήmicroη [episteacuteme] ou antes que toda ciecircncia deve adquirir graccedilas a uma

Skeyij180 que eacute antes de tudo negativa Eacute assim que a skeacutepsis cartesiana

natildeo deixa de ser negativa ela rompe com o mundo afasta-se dele indaga

sobre sua existecircncia A proposta merleau-pontiana por sua vez funda-se

em uma inversatildeo no modo de entender a skeacutepsis entendendo-a antes

positivamente e como tal ao contraacuterio de procurar ldquoprovarrdquo (prouver) a

certeza da existecircncia do mundo procura explicitar o seu sentido

experimentaacute-lo (eacuteprouver) expressaacute-lo pois vecirc como impossiacutevel a proacutepria

negaccedilatildeo do mundo Ao contraacuterio da pretensa ingenuidade objetiva da

ciecircncia devemos encontrar a ingecircnua subjetividade do pensador que

formula uma experiecircncia do mundo estando primeiramente em contato

com este mesmo mundo Assim falar do mundo eacute referir-se ao ldquohorizonterdquo

maior donde todos os outros satildeo possiacuteveis e do ponto originaacuterio de toda

percepccedilatildeo Neste sentido se haacute algo que Merleau-Ponty natildeo se esquecera em

suas leituras de Husserl eacute que a percepccedilatildeo encontra um lugar privilegiado

quando se trata de nossa experiecircncia do mundo a ponto de a ldquovida

perceptivardquo se tornar inclusive um modelo de nossa relaccedilatildeo com o

verdadeiro181

Ora se a percepccedilatildeo eacute um dos leitmotiven da obra de Merleau-

Ponty natildeo seria situando-nos no interior do diaacutelogo entre os saberes que se

poderia compreendecirc-la melhor Afinal o que seria uma ldquofenomenologia da

ldquoduacutevidardquo sistemaacutetica e uma investigaccedilatildeo que natildeo tem por fim negar um conhecimento tido como absolutamente certo (DERRIDA 1992) 180 Sobre a skepsis na Krisis Husserl nos diz o seguinte ldquoToujours davantage lrsquohistoire de la philosophie regardeacutee de lrsquointeacuterieur prend le caractere drsquoun combat pour son existence agrave savoir le combat entre une philosophie dont la vie se passe agrave accomplir directement sa tacircche ndash la philosophie dans la foi naiumlve agrave la raison ndash et une skepsis qui en est la neacutegation ou la deacutevaluation empiriste Inlassablement cette skepsis remet en vigueur le monde veacutecu-en-fait celui de lrsquoeacutexperience reacuteelle comme ce dans quoi il nrsquoy a nulle raison ni aucune ideacutee rationelle agrave trouver Toujours davantage la raison elle-mecircme et son lsquoeacutetantrsquo deviennent eacutenigmatiques ou encore la raison comme ce qui donne sens par soi-mecircme au monde et le monde comme ce qui est par la raison tant qursquoagrave la fin le problegraveme du monde devenu problegraveme conscient celui de la plus profonde liaison essentielle de la raison et de lrsquoeacutetant en geacuteneacuteral lrsquoeacutenigme des eacutenigmes devait devenir proprement le thegraveme de la philosophierdquo (HUSSERL 1976 p 19) 181 (MOURA 2001 p 197 e seguintes)

287

percepccedilatildeordquo Aonde ela nos leva A que ela nos introduz A uma experiecircncia

preacutevia do mundo preacute-reflexiva anterior aos juiacutezos da ciecircncia e da filosofia a

um universo ainda mudo de opiniotildees latente e inesgotaacutevel Todavia natildeo se

trata de um aquecimento preacutevio agrave contemplaccedilatildeo de juiacutezos verdadeiros que

seriam elucidados melhor pelo entendimento O contraacuterio tambeacutem natildeo eacute

verdadeiro natildeo se trata de negar a reflexatildeo em vista de uma verdade uacuteltima

dos sentidos em uma ingecircnua retomada do realismo pois ldquonatildeo basta

constatar que haacute uma certa archeacute na percepccedilatildeo eacute preciso igualmente

explicar como esta percepccedilatildeo serve jaacute como raiz de toda forma de expressatildeo

quer dizer como a raiz natural de todas as instituiccedilotildees culturais como a

linguagem e a arterdquo (SLATMAN 2001 p 40) Logo a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo

seraacute bem diferente O seu projeto passa por uma revisatildeo da coerecircncia

existente entre quaeligstiones facti e quaeligstiones iuris que natildeo poderia deixar de

exigir uma revisatildeo da proacutepria experiecircncia da Filosofia e do logoj [loacutegos]

Pensando assim o olhar filosoacutefico ao menos como ldquoreflexatildeo radicalrdquo volta-se

para o mundo pode distanciar-se dele ndash a experiecircncia da percepccedilatildeo

inclusive eacute uma experiecircncia vivida na distacircncia vivida na dinacircmica do

desejo do que natildeo estaacute imediatamente presente ndash mas jamais abandonaacute-lo

O olhar se volta sobre o mundo natildeo para dissecaacute-lo mas para interrogaacute-lo

simplesmente porque o reconhece como inesgotaacutevel como misterioso Daiacute

natildeo ter sentido o ldquosecular argumento do sonho do deliacuterio ou da ilusatildeordquo

(MERLEAU-PONTY 1964a p 18) Pelo contraacuterio eacute a reabilitaccedilatildeo do

percebido enquanto este logoj [loacutegos] silencioso e como jaacute indicado como

experiecircncia do verdadeiro e isto porque contrariando os ensinamentos de

Lavelle especialmente De lrsquoecirctre e La presence totale na ontologia merleau-

pontiana o mundo perceptivo torna-se o Ser propriamente dito Daiacute o

sentido da confissatildeo do filoacutesofo em uma nota datada de janeiro de 1959

[Iteraccedilatildeo da Lebenswelt fazemos uma filosofia da Lebenswelt nossa construccedilatildeo (no modo da ldquoloacutegicardquo) faz-nos reencontrar esse mundo do silecircncio Reencontrar em que sentido Eu jaacute estava laacute Como dizer que laacute estava jaacute que ningueacutem sabia dele antes de o filoacutesofo falar a seu respeito No entanto implicava e o implica Ele estava precisamente como Lebenswelt natildeo tematizado Em um sentido ainda estaacute implicado como natildeo tematizado pelos proacuteprios enunciados que o descrevem pois os enunciados como tais vatildeo por sua vez sedimentar-se vatildeo ser ldquoretomadosrdquo pela Lebenswelt seratildeo incluiacutedos

288

nela na medida em que subentendem toda uma Selbstverstaumlndlichkeit ndash esta natildeo impede entretanto a filosofia de ter valor de ser outra coisa e mais do que simples produto parcial da Lebenswelt encerrado numa linguagem que nos conduz Entre a Lebenswelt como Ser universal e a filosofia como produto extremo do mundo natildeo haacute rivalidade ou antinomia eacute ela que o desvela] (MERLEAU-PONTY 1964a p 222)

Para Merleau-Ponty mesmo uma Selbstverstaumlndlichkeit a

evidecircncia diaacutefana e aparente ndash que por ser transluacutecida tornaria dispensaacutevel

todo e qualquer esforccedilo da razatildeo em tentar entendecirc-la ndash poderia impedir a

experiecircncia de um ser opaco misterioso e enigmaacutetico o ser mesmo da

Lebenswelt Nessa concepccedilatildeo parece-nos que estaacute em jogo aquilo que em

uma nota possivelmente de marccedilo de 1959 o filoacutesofo chama de ldquoa filosofia

como interrogaccedilatildeo pura desvelamento do universo do Ineinanderrdquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [161]) mas vale salientar interrogaccedilatildeo que natildeo eacute

simplesmente superada pela resposta que ainda permanece em seu tecido

porque natildeo se trata de outro modo senatildeo daquele pelo qual se pode

apreender o ldquoSer verticalrdquo transcendente distante dado que interrogar

significa apenas ldquofazer falar a experiecircncia mudardquo Se entendermos Gebilde

como criaccedilatildeo cultural182 formaccedilatildeo ou estrutura partilhada e como tal

carregada de um caraacuteter objetivo a filosofia seria justamente essa Gebilde

humana a efetuar-se em uma comunidade linguiacutestica logo tanto uma

ldquoarquitetura de signosrdquo como uma interaccedilatildeo social e histoacuterica tanto a

sedimentaccedilatildeo de um logov proforikov [loacutegos prophorikoacutes] de um logoj

[loacutegos] proferido como a gecircnese expressiva de um logov endiaqetov [loacutegos

endiaacutethetos] de um logoj [loacutegos] ao mesmo tempo silencioso e indireto183

182 ldquoLa philosophie comme creacuteation (Gebilde) reposant sur elle-mecircme ndash cela ne peut ecirctre la veacuteriteacute derniegravere Car ce serait une creacuteation qui se donne pour le but drsquoexprimer en Gebilde ce qui est von selbst (le Lebenswelt comme Nature) sont tous deux abstraits et insuffisants On ne peut srsquoinstaller agrave aucun de ces 2 niveaux Il srsquoagit drsquoune creacuteation qui est appeleacutee et engendreacutee par le Lebenswelt comme historiciteacute opeacuterante latente qui la prolonge et en teacutemoigne ndash rdquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 225) 183 ldquoOn ne peut en quelques mots esquisser une philosophie Disons seulement qursquoil faudrait une philosophie de lrsquoecirctre brut qursquoil y a une maniegravere de rendre le monde explicable ndash et une eacutetude attentive du sens un autre sens que le sens des ideacutees un sens fuyant et allusif auquel manque toute puissance directe sur les choses quoi qursquoil y paraisse et srsquoy deacuteveloppe pour peu que certains obstacles aient eacuteteacute levesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 299)

289

Em outros termos para o pensador natildeo haacute uma filosofia

exercida como um simples jogo de palavras entregues a si mesmas Pelo

contraacuterio a filosofia encontra-se justamente no ldquoseio da histoacuteriardquo

(MERLEAU-PONTY 1964a p 58) cumprindo a tarefa inesgotaacutevel de

substituir o ldquosimbolismo taacutecito da vidardquo por um ldquosimbolismo conscienterdquo do

mesmo modo que um ldquosentido latenterdquo por um ldquosentido patenterdquo184 Assim

conforme as palavras de Merleau-Ponty ldquoa filosofia volta-se para a atividade

simboacutelica anocircnima da qual emergimos e para o discurso pessoal que em noacutes

mesmos se constroacutei que somos noacutes mesmos perscruta aquele poder de

expressatildeo que os outros simbolismos se limitam a exercerrdquo (MERLEAU-

PONTY 1964a p 58) O que lhe compete fazer no momento em que tem

ldquocontatordquo com os fatos e com a experiecircncia Continua o filoacutesofo cabe-lhe

ldquocaptar rigorosamente os momentos fecundos em que um sentido toma

posse de si mesmo recupera e impele para aleacutem de qualquer limite o devir

da verdade que pressupotildee e faz com que haja uma uacutenica e mesma histoacuteria e

um uacutenico mundordquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 58) Mas como se daacute este

exerciacutecio de expressatildeo Como ocorre a passagem de um logov proforikov

[loacutegos prophorikoacutes] a um logov endiaqetov [loacutegos endiaacutethetos] na experiecircncia

filosoacutefica Como Merleau-Ponty a discute

No pensamento merleau-pontiano diretamente natildeo

encontramos uma tematizaccedilatildeo dessa passagem no que concerne agrave

filosofia185 Poreacutem isto natildeo significa que o filoacutesofo natildeo o faccedila atitude esta

184 Deste modo Merleau-Ponty estaria proacuteximo da fenomenologia husserliana no sentido em que ela portanto rejeita ldquo[] a teoria dos dois mundos segundo a qual haveria um mundo da percepccedilatildeo e um mundo do pensamento O que nos ensina [Husserl] eacute que haacute perspectivas diferentes sobre o mesmo mundo a perspectiva da atitude natural e a perspectiva da atitude transcendentalrdquo (SLATMAN 2001 p 36) 185 Eacute o que nos confirmaraacute Slatman ao dizer que ldquoil faut savoir que dans lrsquooeuvre de Merleau-Ponty on ne trouve pas une investigation de la philosophie concernant la relation entre ces deux moments du langage La relation entre le langage prononceacute prophorikos ou direct drsquoun cote et le langage silencieux endiathetos ou indirect de lrsquoautre est surtout examine par rapport agrave lrsquoexpression artistique et non pas par rapport agrave lrsquoexpression philosophique Crsquoest speacutecialement dans les eacutecrits qui portent sur la peinture comme Le Langage indirect et les voix du silence et Lrsquoœil et lrsquoesprit que Merleau-Ponty expose le voix du silence ou le logos endiathetos dans lrsquoexpression Son analyse conduit agrave la conclusion que crsquoest surout lrsquoart qui incarne les voix du silence et qui nous offre en premier lieu une image complete du pheacutenomegravene de lrsquoexpression Cette observation nous fait deviner que srsquoil est vrai que la philosophie est encore possible si elle peut faire justice au retour aux choses mecircmes

290

que por si soacute parece-nos jaacute querer dizer alguma coisa A passagem caso se

queira acompanhaacute-la eacute buscada no que se considerava ateacute entatildeo o fora da

filosofia a saber na experiecircncia artiacutestica nomeadamente na experiecircncia da

pintura186 O que isto significa Sem duacutevida grosso modo a negaccedilatildeo de uma

ldquofilosofia purardquo e natildeo como nos parece ser o erro de leitura de Robinet uma

ldquocezanizaccedilatildeordquo do texto na qual ldquose equivoca de objeto de linguagem de

meacutetodo e de lsquoestilorsquordquo (ROBINET 1993 p 335-6) dado que o que estaacute em jogo

eacute muito mais do que uma ldquopicturalizaccedilatildeo inspirada em Ceacutezannerdquo (ROBINET

1993 p 335-6)

Por conseguinte diante do que se considerava o

enfraquecimento e a perdiccedilatildeo da filosofia eacute que a Fecircnix merleau-pontiana

adquire sentido ldquoa filosofia encontraraacute ajuda na poesia na arte etc em

uma relaccedilatildeo muito mais estreita com elas assim ela renasceraacute e

reinterpretaraacute seu proacuteprio passado de metafiacutesica ndash que natildeo eacute passadordquo

(MERLEAU-PONTY 1996 p 39) A ek-stasis do discurso filosoacutefico natildeo eacute o

seu proacuteprio fim muito pelo contraacuterio eacute aquilo que o torna propriamente

possiacutevel187 Por conseguinte se haacute uma Crise aqui ela eacute vista como uma

oportunidade de conciliaccedilatildeo do que se desenrolara na tensatildeo de dois reinos

a filosofia e a natildeo-filosofia a saber a ciecircncia a literatura a psicanaacutelise etc

O solo comum a estas duas instacircncias eacute o que interessa a Merleau-Ponty e eacute

por esta razatildeo que ele entenderaacute que neste conflito estaacute velada uma Crise

das ldquofilosofias do enterdquo ou das ldquoontologias regionaisrdquo que por sua vez vela

et donc agrave ce moment qui precede le langage direct il faut qursquoil y ait une certaine affiniteacute entre la philosophie et lrsquoart ou plus preacuteciseacutement entre lrsquoexpression philosophique et lrsquoexpression artistiquerdquo (SLATMAN 2001 p 36) 186 ldquoDans quelques notes de travail Merleau-Ponty preacutesente lrsquoideacutee drsquoune histoire verticale de la philosophie [] Elle se limite ni agrave poser des questions agrave une oeuvre historique qui y sont deacutejagrave poseacutees ni agrave poser des questions qui nrsquoy sont pas em jeu [] Une telle histoire est possible em approchant une oeuvre historique non pas comme une chose toute faite mais comme quelque chose qui invite agrave penser lrsquoimpenseacute une oeuvre qui est comparable agrave une oeuvre drsquoart lsquoMon point de vue une philosophie comme une oeuvre drsquoart crsquoest un objet qui peut susciter um sens hors de son contexte historique qui nrsquoa meme sens que hors de ce contexte (VI253)rdquo (SLATMAN 2001 p 56) 187 ldquoPour Merleau-Ponty [] le Pheacutenix de la penseacutee occidentale pourrait renaicirctre mais seulement agrave condition qursquoil ne soit plus purement philosophique Contrairement agrave lrsquoaspiration rationaliste de Husserl Merleau-Ponty cherche agrave deacutevelopper um chemin entre une philosophie transcendentale et la foi percpetive primordiale um chemin alors qui pourrait rendre justice agrave lrsquoattitude ambigueuml du retour aux choses mecircmesrdquo (SLATMAN 2001 p 44)

291

tambeacutem o que permearaacute o que consideramos como proto-ruiacutena188 Eacute preciso

revisar os conceitos metafiacutesicos que servem de carro-chefe de cada regiatildeo

ontoloacutegica sabendo que ao inveacutes de antagocircnicas as diacuteades que instalam

satildeo aleacutem de parentes fundamentalmente cuacutemplices189 uma vez que

[] a filosofia ainda eacute possiacutevel se deixar de ser uma filosofia pura E eacute neste contexto que se compreende o uso do termo ldquonatildeo-filosofiardquo na obra tardia de Merleau-Ponty o pensamento filosoacutefico se desenvolve notadamente por uma ldquoconversardquo com o que estaacute fora da filosofia seja as ciecircncias do homem seja a arte Mesmo se este termo natildeo apareccedila senatildeo nos uacuteltimos cursos pode-se afirmar que todo pensamento de Merleau-Ponty acontece na intersecccedilatildeo da filosofia com a natildeo-filosofia (SLATMAN 2001 p 43)

Eacute procurando entender a Fecircnix merleau-pontiana a partir de um

diaacutelogo constante entre filosofia e ldquonatildeo-filosofiardquo que no proacuteximo capiacutetulo

nos centramos no que seria uma ldquocriserdquo presente na ldquocompreensatildeo do

homemrdquo procurando mostrar como a partir de um diaacutelogo com a ciecircncia o

filoacutesofo apresenta uma via de compreensatildeo do humano que natildeo esteja

impregnado seja pelo racionalismo seja pelo cientificismo

188 Nas margens de uma nota datada de 23 de setembro assinalaraacute o filoacutesofo ldquoCette crise des PH de lrsquoeacutetant ou des ontologies reacutegionales recouvre une crise des concepts meacutetaphysiques agrave lrsquoaide desquels nous deacutefinissons chacune des reacutegions des eacutetants crise du possible et de lrsquoactuel de lrsquoessence et de lrsquoexistence de la causaliteacute et de la finaliteacute crise de lrsquoesprit et du corps du sujet et de lrsquoobjet crise de lrsquoinfini et du fini Ces notions (et non seulement les 3 eacutetants) passes lrsquoune dans lrsquoautrerdquo [MERLEAU-PONTY NBNF [2] (1)) 189 Eacute por essa razatildeo que se compreende a referecircncia constante de Merleau-Ponty por exemplo aos trabalhos da psicologia moderna Eacute superando o cordatildeo sanitaacuterio fincado entre filosofia e ciecircncia que eacute suscetiacutevel ao filoacutesofo encontrar um territoacuterio comum no qual seja possiacutevel compreender a relaccedilatildeo entre homem e mundo sem se tornar viacutetima de um discurso absoluto seja em primeira pessoa ndash no trabalho da filosofia ndash seja em terceira pessoa ndash no trabalho da ciecircncia (MERLEAU-PONTY 2000b p 11)

292

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

ldquoUna est quae reparet seque ipsa reseminet ales Assyrii phoenica uocant non fruge neque herbis sed turis lacrimis et suco uiuit amomi [] haec ubi quinque suae conpleuit saecula uitae ilicet in ramis tremulaeque cacumine palmae unguibus et puro nidum sibi construit ore quo simul ac casias et nardi lenis aristas quassaque cum fulua substrauit cinnama murra [] se super inponit finitque in odoribus aeuum inde ferunt totidem qui uiuere debeat annos corpore de patrio paruum phoenica renasci cum dedit huic aetas uires onerique ferendo est ponderibus nidi ramos leuat arboris altae [] fertque pius cunasque suas patriumque sepulcrum perque leues auras Hyperionis urbe potitus ante fores sacras Hyperionis aede reponitrdquo (OVIacuteDIO) 190 Nichts ist drinnen nichts ist drauszligen denn was innen ist ist auszligen (GOETHE)

Ao comeccedilar o nosso trabalho seguindo os objetivos de nosso

projeto a nossa intenccedilatildeo foi a de mostrar alguns delineamentos da ideia de

ldquocriserdquo Sendo assim partimos de Valeacutery e de Husserl procurando elucidar

frente agrave ideia de ldquocriserdquo presente nestes pensadores o posicionamento de

Merleau-Ponty seja diretamente como no caso de Husserl seja

indiretamente no caso de Valeacutery Mesmo que Merleau-Ponty natildeo tenha

diretamente feito referecircncia agrave ldquocriserdquo apresentada por Valeacutery consideramos

importante lhe fazer referecircncia por nos ajudar a melhor compreender as

questotildees filosoacuteficas que serviram de fundo ao pensamento merleau-pontiano

aleacutem do fato de que a apresentaccedilatildeo de uma ldquocrise do espiacuteritordquo pode tambeacutem

nos situar melhor frente ao sentido de uma ldquocrise da Razatildeordquo tal como foi

entendida por Husserl Daiacute a importacircncia que demos agrave noccedilatildeo husserliana de

190 Traduccedilatildeo ldquoHaacute sobre a terra um paacutessaro uacutenico que engendra a si mesmo e renova a si mesmo os Assiacuterios o chamam de Fecircnix Ele natildeo se alimenta nem de ervas nem de frutos ele vive das gotas de incenso e dos sucos de gengibre Quando viu cinco seacuteculos marcar o teacutermino de sua vida ele constroacutei com suas garras e com seu bico um ninho sobre os altos ramos de um carvalho ou sobre o cimo trecircmulo de uma palmeira ele preenche com leves varetas de canela de nardo de mirra e de cinamomo se deita sobre uma fogueira odoriacutefera e morre nos perfumes Relata-se que uma jovem fecircnix renasce entatildeo das cinzas de seu pai e que um mesmo nuacutemero de seacuteculos deve marcar sua existecircncia Quando a idade lhe deu forccedilas e quando pode carregar suas asas ela retira do peso do ninho os ramos da aacutervore levante este piedoso fardo o carrega nos ares chega agrave cidade do Sol e diante das portas sagradas do templo deste deus deposita o tuacutemulo de seu pai e seu proacuteprio berccedilordquo (As Metamorfoses [15 391-407])

293

crise mediante a proposta de um retorno agrave Lebenswelt ao mundo-da-vida

explicitando-a como uma criacutetica ao cientificismo e consequentemente ao

naturalismo Como se tratava de um ldquodiaacutelogordquo da tentantiva de situar o

projeto de Merleau-Ponty no campo dos horizontes abertos pela Krisis

husserliana natildeo poderiacuteamos deixar de dedicar algumas paacuteginas ao

pensamento husserliano tal como ele procurara se apresentar a si mesmo

Por conseguinte procuramos mostrar as faces ou consequecircncias de um

retorno agrave Lebenswelt ou seja o direcionamento a um mundo originaacuterio

preacutevio mostrando em linhas gerais o movimento arqueoloacutegico presente nos

uacuteltimos trabalhos de Husserl assim como a sua repercussatildeo em Merleau-

Ponty Aleacutem disso foi interessante notar as metamorfoses que a ideia de

ldquocriserdquo presente em outras eacutepocas sofrera e como ela se inseriu nos

cenaacuterios da filosofia contemporacircnea deixando de ser como em Descartes a

denuacutencia de uma ldquocrise das ciecircnciasrdquo para se tornar a constataccedilatildeo de uma

Crise do ldquoespiacuteritordquo de uma Krisis da Razatildeo e por fim de uma crise dos

ldquopontos de vistardquo acerca do homem Deste modo a partir deste horizonte o

que esperaacutevamos era apresentar alguns aspectos argumentativos que nos

auxiliassem a compreender o modo como Merleau-Ponty encarara estas

percepccedilotildees e desdobramentos filosoacuteficos de sua eacutepoca fazendo com que

embora compartilhasse tambeacutem deste sentimento tivesse uma compreensatildeo

proacutepria conforme se harmonizasse com os projetos de sua filosofia Eacute neste

sentido que sentimos a necessidade de apresentar a criacutetica feita pelo filoacutesofo

na gecircnese da crise tanto agrave transformaccedilatildeo cartesiana do mundo em um mero

ldquoespetaacuteculordquo para a consciecircncia enfocando o problema da representaccedilatildeo e

da similitude ndash o mesmo que fora um dos motores dos impasses presentes

na ciecircncia claacutessica ndash como tambeacutem aos embaraccedilos do conceito cartesiano de

Natureza Por conseguinte natildeo nos olvidando do modo como isso iria

modificar a compreensatildeo que se tinha do proacuteprio exerciacutecio filosoacutefico

Deste modo a partir deste fundo ao se pensar na ideia de uma

Crise da Razatildeo certamente tambeacutem natildeo poderiacuteamos ter fugido da ideia de

uma possiacutevel Crise da Filosofia Se a crise conforme procuramos discutir no

entender de Merleau-Ponty encontra-se na tensatildeo existente entre o saber

cientiacutefico e o saber filosoacutefico diante dos avanccedilos da ciecircncia raros natildeo seratildeo

294

dentre as letras de seus contemporacircneos os diversos diagnoacutesticos de uma

decadecircncia do proacuteprio labor filosoacutefico ou mesmo as indagaccedilotildees de sua

possibilidade A filosofia nesta perspectiva ainda presa no imaginaacuterio de um

sujeito absoluto natildeo teria acompanhado os desdobramentos e avanccedilos da

experiecircncia Estaria pois o filoacutesofo ainda preso na seguranccedila de seu

gabinete condenado agraves divagaccedilotildees de seu pensamento natildeo sendo capaz de

confrontar as suas ideias com o que o laboratoacuterio tatildeo-somente era capaz de

legitimar A filosofia estaria perdida portanto nos labirintos do non-sense

teria ela proacutepria se tornado cinzas Eacute neste sentido que segundo Revel

ldquoquando se eacute francecircs certamente haacute um bom tempo que se deixou de sentir

orgulho de ser filoacutesofo neste jardim da preguiccedila que eacute a filosofia a Franccedila

dorme uma sesta particularmente longa Nunca foi o pensamento filosoacutefico

tatildeo deacutebil como desde o iniacutecio do seacuteculo XIXrdquo (REVEL 1957 p 51) A criacutetica eacute

dirigida diretamente agrave cultura universitaacuteria pois a seu ver ldquonatildeo eacute por

causalidade que tal pobreza filosoacutefica impere na Franccedila desde o iniacutecio do

seacuteculo XIX isto eacute a partir da criaccedilatildeo da Universidaderdquo (REVEL 1957 p 51)

Eacute interessante o modo como Revel se aproxima das questotildees filosoacuteficas e do

modo como articula a histoacuteria da filosofia especialmente o seu meacutetodo

demonstrando as ilusotildees para parafrasear outra obra sua de um

ldquoconhecimento inuacutetilrdquo (REVEL 1988) Qual o sentido de um cacoete tatildeo

marcante nos historiadores da filosofia como por exemplo ldquoAristoacuteteles

deverdquo ldquoeacute preciso admitir querdquo ldquoDescartes insisterdquo ldquoo pensador

operardquo assim como as descriccedilotildees que mais lembram as de um espectador

de uma ldquocordilheirardquo191

191 ldquoNatildeo se sabe jaacute muito bem desde que ponto de vista escreve o historiador Desde o ponto de vista dos contemporaacuteneos do autor Mas os contemporaacuteneos natildeo levam nunca a seacuterio um autor como faz o historiador Desde o ponto de vista do leitor atual Mas o historiador natildeo tenta dizer o que significariam para noacutes os problemas do autor nem se significariam algo O historiador descreve como se descrevesse uma cordilheira ldquoEm linhas gerais (escreve outro historiador da filosofiacutea ainda mais eminente ao falar de Malebranche e de Berkeley) o problema do fundamento do objeto parece se abordar em termos anaacutelogos tanto em um como em outro Operam ambos com um universo de representaccedilotildees no eu e ambos devem explicar a afirmaccedilatildeo de um mundo de objetos sem recurso algum a uma mateacuteria exteriorrdquo Esta eacute uma admiraacutevel maneira de se expresar Aquiacute ainda mais que anteriormente em Mondolfo a confusatildeo entre a linguagem utilizada para expor os fatos e o que serve para analizar teoriacuteas eacute algo que preenche a medida ldquoOperamhelliprdquo ldquoambos devemhelliprdquo Mas porque

295

A filosofia no dizer do panfleto reveliano apresentava uma

linguagem embaraccedilada criava problemas que natildeo existiam tais como a

ldquopiedaderdquo de Merleau-Ponty em acreditar na novidade da criacutetica aos

dualismos ou a explicaccedilatildeo sartreana de que a partir da noccedilatildeo de

intencionalidade natildeo se pode mais crer que uma aacutervore encontra-se ldquodentro

dardquo consciecircncia quando ningueacutem pensa um tal absurdo Sendo assim natildeo

seria o dito ldquopensamento ingecircnuordquo uma invenccedilatildeo gratuita para se legitimar a

abstraccedilatildeo filosoacutefica Natildeo passam os filoacutesofos todo o seu tempo em tentar

refutar aquilo cuja falsidade ningueacutem ignora Enquanto os filoacutesofos se

empenham em impor construccedilotildees teoacutericas ditas cruciais e necessaacuterias a

vida continuava como se nada fosse dito assim como a fiacutesica seria a mesma

independentemente da existecircncia ou natildeo quer seja de Hume quer seja de

Kant Na mesma perspectiva conforme Revel a opiniatildeo heideggeriana acerca

da teacutecnica natildeo seria mais densa do que a de uma ldquosenhora de proviacutenciardquo

Para este autor natildeo caberia agrave filosofia frente a tantos problemas com

efeito um territoacuterio proacuteprio Ela natildeo possuiacutea nem mesmo um papel fundador

como almejava pois natildeo deveriam os filoacutesofos ldquo[] se inquietarem com o

fato de que todas as grandes inovaccedilotildees filosoacuteficas acontecidas sobretudo

desde haacute um seacuteculo devem-se a economistas naturalistas matemaacuteticos

fiacutesicos bioacutelogos ou meacutedicos mas em nenhum caso a um filoacutesofo de

profissatildeordquo (REVEL 1957 p 51) Neste caso teria a filosofia outro destino

que o do museu Natildeo seriam estas umas das provas mais do que

irrecusaacuteveis de uma ldquodecadecircncia da filosofiardquo Assim sendo como Merleau-

Ponty se posicionara frente a estas questotildees

Acompanhando os resumos de cursos dados pelo filoacutesofo no

Collegravege de France especialmente entre 1959 e 1961 ndash aleacutem de uma

entrevista dada a Madeleine Chapsal em 17 de fevereiro de 1958 (MERLEAU-

PONTY 2000b p 292) ndash vemos a sua posiccedilatildeo frente agraves controversas ideias

Quem os obriga Isto eacute o que teria que explicar seja desde um ponto de vista aceitaacutevel e compreensiacutevel para noacutes seja no marco de uma histoacuteria das ideias contemporaacuteneas dos autores e natildeo dando por admitido como algo natural em uma espeacutecie de meio intemporal da histoacuteria da filosofiacutea ndash e ainda isto quando se trata de discutir muito severamente um sistema ndash os pontos de partida que datildeo origen ou natildeo a uma teoriacutea que permitem que esta possua ou natildeo um sentidordquo (REVEL 1957 p 9)

296

e criacuteticas de Revel em seu conhecido livro Pourquoi des philosophes No

coraccedilatildeo da criacutetica encontrava-se certamente a denuacutencia tambeacutem vivida por

Merleau-Ponty de uma Crise do saber filosoacutefico poreacutem encarada de um

modo diferente O interessante eacute que para noacutes a posiccedilatildeo de Merleau-Ponty

em contraposiccedilatildeo agrave de Revel configurava tambeacutem a sua compreensatildeo

daquilo que seria uma possiacutevel Crise da filosofia Embora nos cursos jaacute

mencionados aleacutem do registro do tiacutetulo do livro indicado acima em uma

breve lista nas notas ineacuteditas Merleau-Ponty natildeo faccedila senatildeo uma breve

referecircncia a este panfleto em uma entrevista dada a Madeleine Chapsal

todavia o filoacutesofo era mais direto e sua criacutetica a Revel encontrava-se mais

acentuada

Acredito pelo contraacuterio que eacute um caso particular [a opiniatildeo de Revel] Sente-se ao ler o livro que o autor natildeo gosta de nada Haacute saudaccedilotildees respeitosas agraves ciecircncias ditas humanas (mas agraves quais visto que fere com palavras seus melhores representantes) haacute saudaccedilotildees respeitosas agrave grande filosofia (mas agrave qual visto que natildeo a reconhece nas investigaccedilotildees nas quais ela revive Quer se goste ou natildeo de Husserl e Heidegger eacute preciso confessar que com todos os defeitos dos modernos que satildeo o preccedilo de seu radicalismo eles meditam sobre os mesmos assuntos que Descartes e a grande filosofia a saber o ser o tempo o objeto o corpo) Esse livro eacute de um consumidor indiferente Ora o livro ridicularizou rapidamente com anedotas aqueles que tiveram a fraqueza de tentar fazer algo aliaacutes nada propondo no lugar daquilo que se pretendia substituir (MERLEAU-PONTY 2000b p 292)

Ao falar do sentido do panfleto de Revel Merleau-Ponty nos

indicava ao mesmo tempo a existecircncia de uma filosofia ldquono sentido

claacutessicordquo e de uma filosofia que rapidamente identificava-se com a

investigaccedilatildeo cientiacutefica Aleacutem do fato de que se houvesse uma crise da

filosofia ela deveria ser encarada sobretudo como uma oportunidade

assim como os desenvolvimentos dos saberes que natildeo pertencessem ao

domiacutenio da filosofia acadecircmica uma natildeo-filosofia era antes a oportunidade

para se revitalizar o que ateacute entatildeo entendia-se por filosofia pois uma

ldquodecadecircncia da filosofiardquo por si soacute caso existisse natildeo seria essencial O que

estaacute em causa natildeo era propriamente a filosofia mas um certo ldquomodo de

filosofarrdquo pautado por categorias por exemplo tais como a substacircncia a

causalidade e as relaccedilotildees bilaterais entre sujeito e objeto (MERLEAU-PONTY

297

1996 p 39) Neste sentido natildeo notamos uma neutralidade em Merleau-

Ponty frente a esstas questotildees poreacutem uma mudanccedila de foco Como nos

chamara a atenccedilatildeo em suas notas ineacuteditas no que diz respeito agrave filosofia eacute

verdadeira a certeza de que natildeo eacute suficiente encontrar o comeccedilo seria

preciso assumir radicalmente as suas consequecircncias e mais do que isso

tomar o cuidado de natildeo se perder em preacute-noccedilotildees capazes de desvirtuar de

modo principial o que propriamente se propotildee Natildeo seria este o caso dos

percalccedilos das concepccedilotildees de consciecircncia e de uma ldquoconsciecircncia constituinterdquo

em Husserl Natildeo seria a razatildeo das desventuras do arcaiacutesmo da procura de

um ldquotesouro perdidordquo de uma ldquoontologia diretardquo ou de uma liacutengua e de uma

histoacuteria esmerada no logoj [loacutegos] parmenidiano em Heidegger Natildeo seria o

sentido da controversa concepccedilatildeo sartreana de Nada e seus infortuacutenios

Claro estaacute que natildeo se trata aqui de uma mera criacutetica gratuita a estes

pensadores192 Pelo contraacuterio era a repercussatildeo dos impasses autecircnticos ou

natildeo que tiveram suas filosofias no cenaacuterio do pensamento contemporacircneo

Se o que estava drsquoentreacutee de jeu em questatildeo eram as relaccedilotildees entre o

homem Deus e a Natureza seria preciso pensaacute-los de modo mais radical o

que significava para o filoacutesofo o exerciacutecio de ldquo[] pensar a contradiccedilatildeo sem

mentira (Filosofia dialeacutetica) e sem niilismo ou caosrdquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [13] (C)) Quando o que estaacute em questatildeo eacute compreender e se

posicionar frente a uma dita ldquodecadecircncia da filosofiardquo ndash em uma Crise da

Razatildeo ndash mesmo que seja aquela de um certo ldquomodo de filosofarrdquo as relaccedilotildees

outorgadas pela tradiccedilatildeo do saber filosoacutefico consigo mesmo tambeacutem natildeo

poderiam ser mais as mesmas Se isto eacute certo que ldquomodo de filosofarrdquo

estaria no entender de Merleau-Ponty na gecircnese dos descompassos entre o

saber filosoacutefico e sua eacutepoca da filosofia consigo mesma Que tradiccedilatildeo

precisaria ser revisitada por um ldquosaber interrogativordquo Aquela que no

entender do filoacutesofo partia do pressuposto radical de uma separaccedilatildeo entre

192 Aqui fazemos referecircncia aos questionamentos levantados por Merleau-Ponty a estes filoacutesofos especialmente nas Notas ainda ineacuteditas da Biblioteca Nacional da Franccedila acentuando a releitura que nos uacuteltimos trabalhos o filoacutesofo iraacute fazer destes pensadores

298

filosofia e ciecircncia uma separaccedilatildeo que no final das contas comprometia

ldquotanto o saber como a reflexatildeordquo

Enquanto todas as grandes filosofias satildeo reconhecidas pelo seu esforccedilo para pensar o espiacuterito e a sua dependecircncia ndash as ideias e seu movimento o entendimento e a sensibilidade ndash haacute um mito da filosofia que a apresenta como a afirmaccedilatildeo autoritaacuteria de uma autonomia absoluta do espiacuterito A filosofia deixa de ser interrogaccedilatildeo Torna-se um certo corpo de doutrinas feito para assegurar a um espiacuterito absolutamente penetrante a fruiccedilatildeo de si mesmo e de suas ideias Por outro lado haacute um mito do saber cientifiacuteco que espera da mera notaccedilatildeo dos fatos natildeo soacute a ciecircncia das coisas do mundo mas tambeacutem a ciecircncia dessa ciecircncia [] que deveraacute fechar em si mesma o universo o universo dos fatos inserindo-lhe ateacute as ideias que inventamos para interpretaacute-lo e por assim dizer para nos desembaraccedilar de noacutes mesmos [] Esses dois mitos satildeo antagocircnicos e cuacutemplices [] A separaccedilatildeo eacute a guerra fria (MERLEAU-PONTY 1991 p 106)

Merleau-Ponty nos fala de um clima de ldquoguerra friardquo no qual se

levanta entre o saber filosoacutefico e o saber cientiacutefico um verdadeiro cordatildeo

sanitaacuterio Nada de pesquisas hiacutebridas nada de um pensamento anfiacutebio Pelo

contraacuterio ao se partir de uma pesquisa centrada em ideias a

desconsideraccedilatildeo dos fatos deveria ser seu ponto de partida uma vez que

estes deveriam ser entendidos antes como uma ldquograccedila peremptoacuteriardquo um

devir merecedor de desconfianccedila ao passo que os proacuteprios pensamentos

teriam a autonomia suficiente para se inserirem em um autecircntico confronto

consigo mesmos Daiacute que a ideia de um pensamento que buscasse nos fatos

ldquoos estiacutemulos e a garantia de um esforccedilo construtivo que vai ao encontro da

dinacircmica interna delesrdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 106) fosse antes um

pensamento bastardo negado tanto pela ciecircncia como pela filosofia Para

Merleau-Ponty no entanto o que encontramos nestes procedimentos eacute um

rigorismo cujas consequecircncias trazem consigo um obscurantismo Para o

filoacutesofo entre as pesperctivas filosoacuteficas e cientiacutetificas em primeiro lugar o

que temos eacute uma relaccedilatildeo de co-possibilidade Eacute o que nos parece dizer

Husserl por exemplo ao falar que uma ldquoeideacutetica da coisa fiacutesicardquo natildeo teria

tido o seu comeccedilo na fenomenologia ela estaria antes em Galileu daiacute que

como acentuava Merleau-Ponty o cientista tal como ao interpretar suas

proacuteprias pesquisas cientiacuteficas tem a possibilidade de se colocar na condiccedilatildeo

de filoacutesofo tambeacutem o filoacutesofo reciprocamente ldquotem o direito de ler e

299

interpretarrdquo os trabalhos do cientista A filosofia merleau-pontiana tal como

procuramos mostrar seria justamente neste caso a tentativa de combater

uma separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncia que no fundo seria prejudicial para

ambas Como se indagaraacute Merleau-Ponty

Como um filoacutesofo consciente poderia propor seriamente que a filosofia fosse impedida de conviver com a ciecircncia Pois afinal o filoacutesofo pensa sempre baseado em alguma coisa no quadrado traccedilado na areia no burro no cavalo na mula no peacute cuacutebico da extensatildeo no cinabre no Estado romano na matildeo que se introduz na limalha de ferro O filoacutesofo pensa a sua experiecircncia e o seu mundo Como a natildeo ser por uma decisatildeo arbitraacuteria dar-lhe-iam o direito de esquecer o que a ciecircncia diz dessa mesma experiecircncia e desse mesmo mundo Sob o nome coletivo de ciecircncia natildeo haacute senatildeo uma ordenaccedilatildeo sistemaacutetica um exerciacutecio metoacutedico ndash mais estrito e mais amplo mais e menos clarividente ndash dessa mesma experiecircncia que comeccedila com a nossa primeira percepccedilatildeo Eacute um conjunto de meios de perceber de imaginar e enfim de viver orientados para a mesma verdade cuja exigecircncia eacute estabelecida em noacutes por nossas primeiras experiecircncias Pode ocorrer que a ciecircncia adquira sua exatidatildeo ao preccedilo de uma esquematizaccedilatildeo Mas o remeacutedio eacute entatildeo confrontaacute-la com uma experiecircncia integral e natildeo lhe opor um saber filosoacutefico vindo sabe-se laacute de onde (MERLEAU-PONTY 1991 p 109)

Ora para Merleau-Ponty o filoacutesofo e o cientista

compartilhariam no fundo de uma mesma experiecircncia ao menos em sua

origem Daiacute a impossibilidade de se recusar um diaacutelogo com a ciecircncia

mesmo quando ela parece distanciar-se desta mesma origem parece dirigir-

se a labirinto de esquematizaccedilotildees e contradiccedilatildeo Frente a isto ao contraacuterio

de tambeacutem refugiar-se em labirinto antagocircnico de conceitos a tarefa do

filoacutesofo deve ser o de abrir-se a um diaacutelogo o de convidar a ciecircncia a rever

seus princiacutepios o filoacutesofo estando do mesmo modo disposto a reavaliar os

seus tambeacutem Para Merleau-Ponty o grande meacuterito da fenomenologia

husserliana estava justamente em ter possibilitado o espaccedilo deste diaacutelogo

Mesmo que Husserl tenha mantido entre os campos da ciecircncia e da filosofia

uma devida diferenccedila ao tratar de um ldquoparalelismo psicofenomenoloacutegicordquo

aquele que no entender de Merleau-Ponty fazia com que cada afirmaccedilatildeo do

saber positivo correspondesse a uma afirmaccedilatildeo da filosofia teria conduzido

ldquona verdade agrave ideia de um envolvimento reciacuteprocordquo (MERLEAU-PONTY 1991

p 109) Desde as Ideen I para Merleau-Ponty haveria em Husserl a

ldquodesaprovaccedilatildeo de um saber formalrdquo e isto ao notar que jaacute nesta obra ldquo[] a

300

intuiccedilatildeo eideacutetica sempre foi uma lsquoconstataccedilatildeorsquo a fenomenologia uma

lsquoexperiecircnciarsquordquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 1113) uma vez que por exemplo

ldquouma fenomenologia da visatildeo dizia Husserl deve ser construiacuteda com base

em uma Sichligkeit [visibilidade] de que primeiro fazemos a prova efetiva e

ele rejeitava em geral a possibilidade de uma lsquomatemaacutetica dos fenocircmenosrsquo de

uma lsquogeometria da vivecircnciarsquordquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 113) Em

contrapartida nos uacuteltimos trabalhos de Husserl no reconhecimento da

Lebenswelt a possibilidade de diaacutelogo entre os saberes de acordo com

Merleau-Ponty torna-se inegaacutevel pois

Quando o reconhecimento do mundo vivido e portanto tambeacutem da linguagem vivida torna-se como nos uacuteltimos escritos caracteriacutestica da fenomenologia isso eacute apenas uma maneira mais resoluta de expressar que a filosofia natildeo estaacute imediatamente de posse da verdade da linguagem e do mundo que eacute antes a recuperaccedilatildeo e a primeira formulaccedilatildeo de um Logos esparso em nosso mundo e em nossa vida ligado a suas estruturas concretas ndash esse ldquoLogos do mundo esteacuteticordquo de que jaacute falava a Loacutegica formal e transcendental (MERLEAU-PONTY 1991 p 113)

Eacute neste horizonte que por sua vez a histoacuteria torna-se um

problema manifesto para a proacutepria filosofia Haacute um processo de

transformaccedilatildeo no qual frente agrave tentativa de libertar a filosofia da histoacuteria

no final das contas ao perceber a impossibilidade disto a filosofia passa a

perceber o viacutenculo pelo qual se encontram unidas as ldquoverdades eternasrdquo e as

ldquoverdades de fatordquo Eacute assim que Husserl ateacute mesmo antes da Krisis jaacute em

seu artigo Die Philosophie als strenge Wissenschaft admitia a preciosidade

da histoacuteria no entender de Merleau-Ponty no fato de lhe revelar o ldquoespiacuterito

puacuteblicordquo o Gemeingeist Para Merleau-Ponty nisto estaria tambeacutem o

reconhecimento de que a histoacuteria na verdade daria ao filoacutesofo a

oportunidade de se pensar ldquoa comunicaccedilatildeo dos sujeitosrdquo O que isto

significa Na verdade

Ela o obriga a compreender de que maneira natildeo haacute somente espiacuteritos cada um deles titular de uma pespectiva sobre o mundo que o filoacutesofo poderia investigar um por um sem que lhe fosse permitido e muito menos prescrito pensaacute-los conjuntamente mas uma comunidade de espiacuteritos coexistindo uns para os outros e por isso revestidos todos de um exterior pelo qual se tornam visiacuteveis De forma que o filoacutesofo jaacute natildeo pode falar do espiacuterito em geral tratar todos e cada um por um uacutenico nome nem se vangloriar de constituiacute-los e sim deve ver-se a si proacuteprio no diaacutelogo dos espiacuteritos situado

301

como todos o satildeo e reconhecer-lhes a dignidade de constituintes no mesmo momento em que a reivindica para si (MERLEAU-PONTY 1991 p 114-5)

A histoacuteria assim como a Krisis iraacute aprofundar natildeo estaria na

cisatildeo de interioridade e exterioridade existente entre os sujeitos mas pelo

contraacuterio partindo-se de um ldquotranscendentalrdquo que ldquodesce agrave histoacuteriardquo natildeo haacute

mais tatildeo-somente o ldquopara sirdquo mas o ldquoum pelo outrordquo mediante o qual cada

um pode se aperceber como sujeito No reconhecimento do relativismo

histoacuterico o que encontramos antes eacute a necessidade de uma abertura da

filosofia aos trabalhos da ciecircncia Se houvesse pois uma autonomia do

saber filosoacutefico ela deveria vir depois do saber positivo ldquoe natildeo antesrdquo

(MERLEAU-PONTY 1991 p 116) Aleacutem disso o que nos diz a ldquoconsciecircncia

histoacutericardquo Para Merleau-Ponty fundamentalmente o fato de nos revelar

que ldquona verdade eacute a proacutepria concepccedilatildeo das relaccedilotildees entre o espiacuterito e seu

objeto que a consciecircncia histoacuterica nos convida a remanejarrdquo (MERLEAU-

PONTY 1991 p 117) pois

Se a histoacuteria nos envolve a todos cabe a noacutes compreender que o que podemos ter de verdade natildeo se obteacutem contra a inerecircncia histoacuterica e sim por seu intermeacutedio Superficialmente pensada a histoacuteira destroacutei qualquer verdade pensada radicalmente funda uma nova ideia de verdade [] [Eacute assim que a partir de uma verdade alicerccedilada na situaccedilatildeo] o saber seraacute fundamentado no fato irrecusaacutevel de que natildeo estamos na situaccedilatildeo como um objeto no espaccedilo objetivo e que ela eacute para noacutes princiacutepio de curiosidade de investigaccedilatildeo de interesse pelas outras situaccedilotildees enquanto variantes da nossa depois por nossa proacutepria vida esclarecida pelas outras e desta vez considerada como variante das outras enfim o que nos liga agrave totalidade da experiecircncia humana assim como o que nos separa dela (MERLEAU-PONTY 1991 p 117-8)

Estas satildeo no entanto as conclusotildees que Merleau-Ponty aufere

de sua leitura de Husserl as conclusotildees que iraacute retirar das consequecircncias

de um direcionamento ao mundo-da-vida agrave Lebenswelt Elas dizem respeito

por conseguinte ao pensamento merleau-pontiano e seu modo de encontrar

as relaccedilotildees entre o saber filosoacutefico e o saber cientiacutefico e isto tendo por

fundo o horizonte da histoacuteria Conforme procuramos mostrar eacute assim que

se estabelece em Merleau-Ponty a possibilidade da filosofia e

302

consequentemente os caminhos de superaccedilatildeo do impasse no qual a tradiccedilatildeo

a relegou pois natildeo teria sentido em falar de um fim da filosofia mas de sua

mudanccedila da mudanccedila de seu modo de lidar consigo mesma e com o

mundo solo originaacuterio de onde emerge a proacutepria reflexatildeo pois se haacute sentido

em vislumbrar no horizonte de uma crise da Razatildeo o exerciacutecio filosoacutefico

equiparado a uma Fecircnix isto natildeo poderia se dar sem o reconhecimento de

que em primeiro lugar

A filosofia eacute realmente eacute sempre ruptura com o objetivismo retorno dos constructa agrave vivecircncia do mundo a noacutes mesmos Entretanto esse procedimento indispensaacutevel e que a caracteriza jaacute natildeo a transporta para a atmosfera rarefeita da instrospecccedilatildeo ou para um campo numericamente distinto daquele da ciecircncia jaacute natildeo a coloca em rivalidade com o saber desde que reconhecemos que o ldquointeriorrdquo ao qual ela nos leva natildeo eacute uma ldquovida privadardquo e sim uma intersubjetividade que pouco a pouco nos une agrave histoacuteria inteira [] A renuacutencia ao aparelho explicativo do sistema natildeo rebaixa a filosofia agrave categoria de um auxiliar ou de um propagandista do saber objetivo porquanto ela dispotildee de uma dimensatildeo proacutepria que eacute a da coexistecircncia natildeo como fato consumado e objeto de contemplaccedilatildeo mas como acontecimento perpeacutetuo e meio da praacutexis universal A filosofia eacute insubstituiacutevel porque nos revela o movimento pelo qual vidas tornam-se verdades e a circularidade desse ser singular que num certo sentido jaacute eacute tudo quanto vier a pensar (MERLEAU-PONTY 1991 p 121)

303

ANEXOS

A Arqueoriginaacuteria Terra natildeo se move ndash Edmund Husserl193

Traduccedilatildeo de Rodrigo V Marques

As paacuteginas seguintes apesar das muacuteltiplas repeticcedilotildees e

retomadas satildeo em todo caso fundamentais para uma doutrina

fenomenoloacutegica da origem da espacialidade da corporeidade da natureza no

sentido das ciecircncias da natureza e por conseguinte para uma teoria

transcendental do conhecimento das ciecircncias da natureza Contudo

permanece a questatildeo aberta de saber se complementos natildeo seriam ainda

necessaacuterios

Diferenccedila o mundo na abertura do mundo ambiente ndash na

infinidade intelectualmente posta Sentido desta infinitude ndash ldquomundo

existente na idealidade da infinituderdquo Qual eacute o sentido desta existecircncia

(Existenz) do mundo infinito existente (seienden) A abertura enquanto

horizontalidade incompletamente imaginada representada mas jaacute

implicitamente formada Abertura da paisagem ndash saber que eu atinjo

finalmente as fronteiras da Alemanha ndash que vecircm em seguida as paisagens

francesas dinamarquesas etc Eu natildeo percorri nem aprendi a conhecer o

que se encontra no horizonte mas eu jaacute sei que outros aprenderam a

conhecer dele um fragmento outros novamente um fragmento tambeacutem ndash

representaccedilatildeo de uma siacutentese dos campos de experiecircncia atual que daacute

produziacutevel de modo mediato a representaccedilatildeo da Alemanha da Alemanha no

quadro da Europa e desta uacuteltima ela mesma etc ndash finalmente a Terra

Representaccedilatildeo da Terra enquanto unidade sinteacutetica vindo agrave estacircncia

analogicamente agrave maneira pela qual na experiecircncia vinculada e contiacutenua os

193 HUSSERL E Renversement de la doctrine copernicienne la Terre comme archeacute-originaire ne se meut pas Trad D Franck D Pradelle e JF Lavigne Paris Minuit 1989 ldquoUmstursz der kopernikanischen Lehrerdquo in Philosophical Essays in Memory of Edmund Husserl ed M Farber Cambridge Harvard University Press 1940 [die Erde als Ur-Arche bewegt sich nicht]

304

campos de experiecircncia dos indiviacuteduos humanos se unificam em um uacutenico

campo de experiecircncia Excetuando que eu me aproprio analogicamente os

relatos dos outros suas descriccedilotildees e asserccedilotildees e forma de representaccedilotildees

universais Eacute preciso expressamente diferenciar

1 o restituir-intuitivo dos horizontes da ldquorepresentaccedilatildeo do mundordquo a

partir de uma representaccedilatildeo do mundo toda inteira tal que ela tenha

sido formada nas transferecircncias aperceptivas antecipaccedilotildees

intelectuais projetos

2 o caminho da constituiccedilatildeo progressiva da representaccedilatildeo do mundo jaacute

pronta por exemplo mundo ambiente do Negro ou do Grego em

relaccedilatildeo ao mundo copernicano cientiacutefico dos tempos modernos

Noacutes copernicanos noacutes homens dos tempos modernos noacutes dizemos

A Terra natildeo eacute ldquonatureza inteirardquo ela eacute uma das estrelas do

espaccedilo infinito do mundo A Terra eacute um corpo de forma esfeacuterica que

certamente natildeo eacute integralmente perceptiacutevel de uma soacute vez e por um soacute mas

em uma siacutentese primordial enquanto unidade de experiecircncias individuais

unidas umas agraves outras Mas nem por isso deixa de ser um corpo Ainda que

seja para noacutes o solo de experiecircncia de todos os corpos na gecircnese empiacuterica de

nossa representaccedilatildeo do mundo Este ldquosolordquo natildeo eacute primeiramente

experimentado como corpo ele torna-se corpo-solo em um niacutevel superior da

constituiccedilatildeo do mundo a partir da experiecircncia e isto anula sua forma

originaacuteria de solo Ele se torna o corpo total o suporte de todos os corpos ateacute

o presente plenamente (normalmente) experimentaacuteveis por toda parte de

maneira empiacuterica suficiente no modo pelo qual eles satildeo experimentados

como estrelas natildeo ainda contados entre os corpos Mas agora a Terra eacute o

grande bloco sobre o qual eles estatildeo e a partir do qual para noacutes podem

sempre ou teratildeo podido sempre se tornar corpos menores e isto por

fragmentaccedilatildeo ou destruiccedilatildeo

Se a Terra como corpo adquiriu uma validade constitutiva ndash que

aliaacutes as estrelas satildeo apreendidas como corpos que aparecem nas aparecircncias

distantes sem ser integralmente acessiacuteveis entatildeo isto concerne agraves

representaccedilotildees do movimento e do repouso que devem lhe ser atribuiacutedas Eacute

sobre a Terra diretamente da Terra a partir dela e distanciando-se dela que

305

o movimento ocorre A proacutepria Terra na forma originaacuteria da representaccedilatildeo

natildeo se move nem estaacute em repouso eacute em primeiro lugar em relaccedilatildeo a ela

que movimento e repouso adquirem sentido Eacute apenas em seguida que a

Terra se ldquomoverdquo ou repousa e o mesmo se passa com os astros e a terra

como uma dentre eles De que modo na ldquointuiccedilatildeo do mundordquo alargada ou

fechada movimento e repouso adquirem um sentido de ser legiacutetimo ndash e sua

concebiacutevel intuiccedilatildeo verificadora evidecircncia Natildeo eacute uma transferecircncia

aperceptiva quista mas como sempre a evidecircncia deve poder se legitimar

Em geral a elaboraccedilatildeo da intuiccedilatildeo do mundo da intuiccedilatildeo dos

corpos singulares da intuiccedilatildeo do espaccedilo do tempo da causalidade da

natureza tudo isto eacute solidaacuterio e se manteacutem

O corpo que se move na funccedilatildeo intuitiva originaacuteria da Terra

como ldquosolordquo ou corpo compreendido na originariedade efetivamente em uma

mobilidade e em uma variabilidade possiacuteveis Ser projetado no ar ou se

mover de qualquer modo eu natildeo sei onde ndash em relaccedilatildeo agrave Terra como Terra

solo No espaccedilo terrestre os corpos satildeo moveis ndash tecircm um horizonte de

movimento possiacutevel e quando o movimento se acaba a experiecircncia

prescreve ainda a possibilidade de um movimento ulterior eventualmente

unido agrave possibilidade de uma nova causalidade do movimento graccedilas a um

choque possiacutevel etc Os corpos existem efetivamente nas possibilidades

abertas que se efetuam no que lhes pertencem efetivamente seus

movimentos e variaccedilotildees (invariaccedilatildeo como forma particular de possibilidade

das variaccedilotildees) Os corpos estatildeo em um movimento efetivo e possiacutevel e haacute a

possibilidade de possibilidades sempre abertas na efetividade na

continuaccedilatildeo na mudanccedila de direccedilatildeo etc Os corpos estatildeo tambeacutem ldquoentrerdquo os

corpos possiacuteveis e efetivos correlativamente os corpos satildeo experimentados

efetivamente ou no modo de possibilidade em seus movimentos e variaccedilotildees

efetivas etc em suas ldquocircunstacircnciasrdquo efetivas Possibilidades que de

antematildeo satildeo a priori abertas e enquanto tais enquanto possibilidades

existentes elas podem ser intuitivamente representadas intuitivamente

legitimadas Tais satildeo seus modos que pertencem ao ser dos corpos e ao ser

da multiplicidade dos corpos

306

Em toda formaccedilatildeo progressiva da apercepccedilatildeo do mundo a

unidade da ldquointuiccedilatildeo do mundordquo deve confirmar a possibilidade do mundo ndash

como a possibilidade e o universo de possibilidades abertas que constitui um

fundo uacuteltimo da efetividade do mundo O nuacutecleo da experiecircncia atual

(onticamente o que eacute experimentado do mundo sob tal ou tal lado e que

eventualmente vale jaacute a partir da siacutentese da experiecircncia concordante como

efetividade bem conhecida) torna-se como nuacutecleo da experiecircncia do mundo

o nuacutecleo do que eacute prescrito por ele e eacute prescrito como espaccedilo de jogo das

possibilidades e isto significa um espaccedilo de jogo de possibilidades

concordantes a prosseguir de maneira iterativa O mundo se constitui

progressivamente e eacute finalmente ndash no que concerne agrave natureza como seu

fundo suscetiacutevel de ser abstrato ndash constituiacutedo em uma horizontalidade no

seio da qual o ente eacute constituiacutedo como efetivo em possibilidades de ser

sempre prescritos a forma do mundo eacute prescrita ulteriormente submetida

aos conceitos e juiacutezos da ontologia ldquotomada em consideraccedilatildeordquo com eles e no

interior desta forma se move toda prescriccedilatildeo indutiva relativamente

determinada que a cada vez eacute determinada em conformidade com a

expectativa e no curso da experiecircncia efetiva quer ela seja proacutepria ou

comunicativa como efetividade se mostrando agora para ser confirmada ou

infirmada

A experiecircncia efetiva no quadro de possibilidades efetivas

indutivamente prescritas que penetram no horizonte de maneira sinteacutetica e

concordante e apreendendo efetivamente intuitivamente um fragmento do

campo mundano que se oferece como ser verificado ndash me daacute e

eventualmente nos daacute em uma comunidade atual corpos em movimento ou

em repouso variaacuteveis ou invariaacuteveis Mas o que se daacute aqui eacute um aspecto no

qual tudo natildeo eacute ainda decidido do que do lado das possibilidades ainda

horizontais eacute determinante do sentido para o mundo integralmente

constituiacutedo Disto o repouso se daacute como algo de decidido e de absoluto tudo

como o movimento e isto no niacutevel do estrato primeiro em si da constituiccedilatildeo

da Terra como solo

Mas movimento e repouso perdem sua absolutidade desde que a

Terra torna-se corpo mudano na multiplicidade aberta dos corpos

307

circundantes Movimento e repouso tornam-se necessariamente relativos E

se pudesse haver conflito a este respeito natildeo seria unicamente porque a

apercepccedilatildeo do mundo dos tempos modernos como mundo do horizonte

copernicano infinito natildeo se tornou para noacutes uma apercepccedilatildeo do mundo

confirmada por uma intuiccedilatildeo do mundo efetivamente completa

(ldquoApercepccedilatildeordquo do mundo apercepccedilatildeo em geral eacute a consciecircncia da validade

com o sentido de ser mundo e todos os estratos da constituiccedilatildeo) A

transferecircncia aperceptiva ocorreu de maneira tal que permaneceu apenas

uma referecircncia para uma intuiccedilatildeo verificadora ao inveacutes de ser efetivamente

e finalmente construiacuteda como uma legitimaccedilatildeo

De que modo eacute preciso pensar propriamente um corpo seu

lugar sua posiccedilatildeo temporal sua duraccedilatildeo e sua forma como satildeo ali

qualificados identificaacuteveis re-conheciacuteveis em si determinados e como tais

determinaacuteveis Toda legitimaccedilatildeo toda verificaccedilatildeo das apercepccedilotildees do mundo

que se forma e que se formaram progressivamente ndash como transferecircncias

aperceptivas progressivas nas quais a partir da objetividade e do mundo jaacute

constituiacutedos ldquoordquo mesmo mundo eacute dotado de um sentido de grau superior e

isto ateacute o uacuteltimo grau (e mundo integralmente constituiacutedo se constituindo

continuamente em seu proacuteprio estilo imutaacutevel) ndash toda legitimaccedilatildeo tem seu

ponto de partida subjetivo e sua uacuteltima ancoragem no ego que legitima A

verificaccedilatildeo da nova ldquorepresentaccedilatildeo do mundordquo a do sentido modificado

encontra sua primeira marca194 e nuacutecleo no campo de percepccedilatildeo e na

apresentaccedilatildeo orientada do setor mundano ao redor de minha carne como

corpo-central entre os outros todos dados com seu proacuteprio teor eideacutetico

intuitivo no movimento e no repouso na variaccedilatildeo e na invariaccedilatildeo Uma

certa relatividade do movimento e do repouso eacute aqui jaacute formada Eacute

necessariamente relativo um movimento experimentado em relaccedilatildeo a um

ldquocorpo-solordquo ele mesmo experimentado como repousante e se torna uno

com minha carne corporal Esta uacuteltima pode ser um movimento enquanto se

movendo mas pode a todo instante pocircr-se em repouso e experimentar-se

194 Marca pode ser entendida aqui tambeacutem como ldquoponto de referecircnciardquo (Nota do Tradutor doravante N do T)

308

entatildeo como repousante Mas naturalmente o corpo-solo relativo estaacute

relativamente em repouso e em movimento em relaccedilatildeo a uma Terra-solo que

natildeo experimentada como corpo ndash efetivamente e originariamente

experimentada ldquoCorpos-solosrdquo relativos eu posso estar em um automoacutevel

em movimento que eacute entatildeo meu corpo-solo eu posso tambeacutem ser levado por

um vagatildeo de trem195 entatildeo meu corpo-solo eacute primeiramente o corpo que

me leva em meus movimentos e a este corpo novamente o vagatildeo etc O

automoacutevel eacute experimentado como em repouso Mas se eu olho atentamente

para fora eu digo que ele se move ao passo que no lado de fora eu vejo que

eacute a paisagem que estaacute em movimento Eu sei que subi no automoacutevel eu jaacute vi

tais automoacuteveis em movimento com pessoas dentro eu sei que do mesmo

modo que eu quando estou no interior eles vecircem o mundo ambiente em

movimento Eu conheccedilo a inversatildeo do mundo da experiecircncia do movimento e

do repouso a partir do automoacutevel-joguete no qual eu frequentemente subi e

desci Mas tudo isto todavia estaacute referido em primeiro lugar ao solo de

todos os corpos-solos relativos agrave Terra-solo eu encontro implicadas na

apercepccedilatildeo todas as mediaccedilotildees e posso para confirmaccedilatildeo recorrecirc-las na

concordacircncia

Se agora eu ldquopensordquo a Terra como corpo movido entatildeo me eacute

preciso para poder pensaacute-la como tal saber como um corpo em geral no

sentido mais originaacuterio quer dizer a fim de poder atingir para ela uma

intuiccedilatildeo possiacutevel na qual sua possibilidade de ser como corpo possa tornar-

se diretamente evidecircncia me seria preciso um solo ao qual se refere toda

experiecircncia do corpo e portanto toda experiecircncia do ser perseverante no

movimento e no repouso Eacute preciso aqui sublinhar eu posso constantemente

prosseguir meu caminho sobre minha Terra-solo e seu ser ldquocorporalrdquo pode

ser sempre de uma certa maneira plenamente experimentado ele tem seu

horizonte nisto que eu posso precisamente caminhar sobre ele e partindo

dele e de tudo o que se encontra nele fazer dele sempre mais a experiecircncia

Do mesmo modo com os outros homens que corporalmente marcham

195 No caso um vagatildeo de trem no sentido de uma ldquocarruagem de comboiordquo (N do T)

309

sobre ela em comum comigo fazem a experiecircncia dela assim que de tudo

que estaacute sobre e acima dela pode lhe ter concordacircncia Eu aprendo a

conhecer de maneira fragmentada a Terra e experimento tambeacutem a

separabilidade das partes que satildeo os verdadeiros corpos tendo assim

fragmentados seu ser-em-movimento e repouso em relaccedilatildeo agrave Terra-solo em

repouso que agora funciona novamente Eu digo Terra em repouso ndash mas a

ldquoTerrardquo como Terra-solo uacutenico natildeo pode ser experimentada com os sentidos

do repouso por conseguinte o sentido do corpo se ldquoumrdquo corpo possui natildeo

somente extensatildeo e qualificaccedilatildeo mas tambeacutem seu ldquolugarrdquo no espaccedilo como

lugar suscetiacutevel de mudar de se mover ou repousar Sempre que eu natildeo

possua a representaccedilatildeo de um novo solo como tal a partir de onde a Terra

em seu curso encadeado e circular possa ter um sentido como corpo

compacto em movimento e em repouso sempre que ainda eu natildeo adquira

uma representaccedilatildeo de uma troca de solos e assim uma representaccedilatildeo do

devir corpo de dois solos sempre que a proacutepria Terra seja bem um solo e natildeo

corpo A Terra natildeo se move ndash talvez eu pudesse entretanto dizer que ela

repousa mas isso pode unicamente querer dizer que cada fragmento da

Terra quer esteja separado por mim por outros ou quer esteja separado de

si mesmo quer se mova ou se repouse eacute um corpo A Terra eacute um todo cujas

partes ndash se elas satildeo pensadas por si mesmas assim como elas o podem ser

como fragmentadas e fragmentaacuteveis ndash satildeo corpos mas que como ldquotodordquo natildeo

eacute um corpo Aqui um todo ldquoconstituinterdquo de partes corporais todavia nem

por isso eacute um corpo

O que resta agora da possibilidade de novos ldquocorposrdquo-solos ou

antes de novas ldquoTerrasrdquo como fundamento de referecircncia para a experiecircncia

destes corpos e da possibilidade alcanccedilada que de certa maneira a Terra

possa tanto quanto os outros corpos-solos tornar-se um corpo normal Em

primeiro lugar teria sido preciso dizer que eacute desprovido de sentido falar de

antematildeo de um espaccedilo mundial vazio como noacutes o fazemos unicamente no

mundo ldquoastronocircmicordquo infinito como espaccedilo no qual a Terra eacute do mesmo

modo que os corpos lhe satildeo espaccedilo que envolve a Terra Noacutes temos um

espaccedilo circundante como sistema de lugares ndash quer dizer como sistema de

fins possiacuteveis de movimentos dos corpos Neste sistema todos os corpos

310

terrestres tecircm bem um ldquolugarrdquo particular salvo a proacutepria Terra Isso

aconteceria talvez de um modo diferente se adquiriacutessemos uma

ldquopossibilidade de pensarrdquo a mudanccedila dos solos

Objeccedilatildeo A dificuldade da constituiccedilatildeo da Terra como corpo natildeo

eacute muito exagerada A Terra eacute todavia um todo de partes impliacutecitas cada

uma podendo ser realmente dividida e ser um corpo cada uma tem seu

lugar ndash e a Terra possui assim um espaccedilo interior como sistema de lugares

ou (quando mesmo pensado de maneira natildeo matemaacutetica) um continuum

local tendo em consideraccedilatildeo uma divisibilidade total Eacute por conseguinte

pela mesma razatildeo que cada corpo qualquer como divisiacutevel possui seu lugar

no ponto de vista das partes Mas o espaccedilo interior e o espaccedilo exterior da

Terra natildeo formam senatildeo um soacute e uacutenico espaccedilo Ou haacute ainda um resto Cada

parte da Terra poderia se mover A Terra tem movimentos internos Do

mesmo modo todo corpo ordinaacuterio natildeo eacute somente divisiacutevel mas possui suas

deformaccedilotildees e seus movimentos internos contiacutenuos ao passo que como

todo pode a sua maneira conservar ou modificar seu lugar no espaccedilo

Tambeacutem a Terra possui deformaccedilatildeo e movimento interno contiacutenuo etc Mas

como ela pode se mover como ldquotodordquo Como isto eacute pensaacutevel Natildeo como se ela

estivesse firmemente fixa ndash para isto o ldquosolordquo falta O movimento e portanto

a corporeidade tecircm um sentido para ela Seu lugar no espaccedilo universal eacute

efetivamente um ldquolugarrdquo para ela Por outro lado o espaccedilo universal natildeo eacute

precisamente o sistema de lugares de todos os corpos que por conseguinte

se dividem em partes implicadas da Terra (como fragmentadas e moacuteveis) e

em corpos exteriores livres Quais curiosidades de ldquointuiccedilatildeo do espaccedilordquo a

saber do espaccedilo deste niacutevel temos aqui

Mas agora noacutes temos ainda de considerar os corpos exteriores ndash

os corpos livres que natildeo satildeo fragmentos implicados da Terra ndash e as carnes

ldquominha carnerdquo e ldquoas outras carnesrdquo Estas uacuteltimas satildeo percebidas como

corpos no espaccedilo a cada vez em seu lugar e natildeo percebidas mas todavia

perceptiacuteveis (ou experimentaacuteveis de maneira modificada) como o que dura

continuamente em um movimento-repouso que se estende sobre esta

duraccedilatildeo (movimento e repouso internos tambeacutem)

311

Minha carne na experiecircncia primordial ela natildeo estaacute nem em

deslocamento nem em repouso somente movimento e repouso internos

diferentemente dos corpos exteriores Todos os corpos natildeo ldquose movemrdquo em

um ldquoeu vourdquo em geral em um ldquoeu me movordquo cinestesicamente e a Terra-solo

em seu conjunto natildeo se move sob mim Com efeito pertence a um repouso

corporal que os aspectos do corpo se escoam cinestesicamente em mim ldquode

maneira moacutevelrdquo ou natildeo se escoem sempre segundo eu me mantenha

tranquilo etc Eu natildeo estou em deslocamento que eu me mantenha

tranquilo ou que eu ande minha carne eacute o centro e os corpos em repouso e

moacuteveis estatildeo todos ao meu redor e eu tenho um solo sem mobilidade Minha

carne possui extensatildeo etc mas natildeo tem mudanccedila ou natildeo-mudanccedila local no

sentido em que um corpo exterior se daacute como em movimento se

aproximando se distanciando ou como imoacutevel proacuteximo distante Todavia

o solo sobre o qual minha carne vai ou natildeo natildeo eacute experimentado como um

corpo a deslocar ou natildeo integralmente As carnes dos outros satildeo corpos em

movimento e repouso (sempre des-locamento no sentido de se aproximar ou

de se distanciar de mim) mas satildeo carnes na forma do ldquoeu movordquo no qual o

eu eacute um ldquooutro eurdquo para o qual minha carne eacute um corpo e para o qual todos

os corpos exteriores que natildeo satildeo carnes satildeo os mesmos que os meus Mas

tambeacutem toda carne que para mim eacute uma carne alheia eacute para todos os

outros ego com exceccedilatildeo da proacutepria carne deles identicamente o mesmo

corpo e a mesma carne do mesmo ego e minha carne eacute para todo ego o

mesmo corpo e simultaneamente a mesma carne deste mesmo ego diferente

para eles do que eu proacuteprio sou para mim mesmo

A Terra eacute para todos a mesma Terra sobre ela nela acima dela

reinam os mesmos corpos ldquosobre elardquo etc os mesmos sujeitos encarnados

sujeitos de carnes que para todos e em um sentido modificado satildeo corpos

Mas para noacutes todos a Terra eacute solo e natildeo corpo no sentido pleno Admitamos

agora que eu seja um paacutessaro e que eu possa voar ndash ou melhor eu olho

atentamente os paacutessaros que co-pertencem agrave Terra Compreendecirc-los eacute se

substituir a eles enquanto eles voam O paacutessaro estaacute sobre o galho ou

pousado sobre o solo salta ao redor e em seguida levanta vocirco ele eacute como

eu em sua experiecircncia e seu agir quando estaacute sobre a Terra ele faz a

312

experiecircncia do solo dos diversos corpos dos outros paacutessaros tambeacutem as

carnes dos outros e os ego-carnes etc tudo como eu Mas ele alccedila vocirco ndash eacute

como caminhar de cabeccedila baixa uma cinestesia atraveacutes da qual todos os

escoamentos de aparecircncias que de outro modo seriam percebidas como

movimento e repouso dos corpos transformam-se e do mesmo modo que na

caminhada Com a pequena diferenccedila de que para o paacutessaro o manter-se

tranquilo e ldquoser-levado-pelo-ventordquo (o que natildeo deve todavia significar uma

apreensatildeo corporal) forma uma combinaccedilatildeo de experiecircncia com o ldquoeu movordquo

e fornece sempre tambeacutem por uma ldquomudanccedila de posiccedilatildeo de vocircordquo e um novo

manter-se-tranquilo um ldquomovimento aparenterdquo e isto de uma outra

maneira O manter-se-tranquilo se finaliza como ldquoquedardquo nisto que o paacutessaro

natildeo voa mais poreacutem pousa sobre a aacutervore ou sobre a Terra e entatildeo

eventualmente salta etc O paacutessaro deixa a Terra sobre a qual ele tem como

noacutes experiecircncias natildeo voadoras e alccedila vocirco e retorna novamente de volta ele

tem mais uma vez os modos de aparecircncias do movimento e do repouso

como eu que me fixei agrave Terra Voando e retornando o paacutessaro tem modos de

aparecircncias motivados por outras cinestesias (atraveacutes de suas cinestesias

especiacuteficas de voador) modos de aparecircncias analogicamente modificadas

todavia e que na modificaccedilatildeo possuem a significaccedilatildeo do movimento e do

repouso posto que as cinestesias do vocirco e as cinestesias da caminhada

formam para o paacutessaro um uacutenico sistema cinesteacutesico compreendendo o

paacutessaro noacutes compreendemos precisamente este alargamento de suas

cinestesias etc O que estaacute em repouso possui seu sistema de aparecircncias que

eacute preciso sempre novamente pro-duzir como natildeo-caminhada natildeo-vocirco etc

Se consideramos o salto e o ressalto de um corpo em movimento

a inversatildeo dos escoamentos de aparecircncias me fornece assim como ao

mundo inteiro movimento e repouso sobre o modo antigo ndash portanto eu

compreendo necessariamente o mundo inteiro Eu compreendo bem seu

salto como tal Os corpos sobrevindo em meu campo visual por exemplo

como caindo ldquodo espaccedilo vaziordquo eu os compreendo precisamente como tais

ldquoDe que modordquo isto Em movimento sobre a Terra eles o satildeo para mim do

fato que eu posso modificar e eventualmente acompanhar cinestesias e do

fato de que a mundana de aparecircncia manteacutem o repouso ndash este uacuteltimo mesmo

313

que significa para mim o repouso se eu me mantivesse cinestesicamente

tranquilo Eu posso fazer isto para corpos que natildeo se movem no espaccedilo

supraterrestre eu o poderia se quisesse Mas eu posso lanccedilar pedras no ar e

vecirc-las cair como as mesmas O arremesso pode ser mais ou menos no niacutevel

da terra as aparecircncias satildeo manifestamente tatildeo anaacutelogas aos movimentos

sobre o solo da Terra que elas satildeo expericienciadas como movimentos

Corpos tais como uma bola rolante etc satildeo assim postos em movimento por

choque satildeo assim lanccedilados etc Seria preciso tambeacutem mencionar a

experiecircncia de um movimento de queda no caso da queda a partir de um

corpo terrestre elevado um teto uma torre

Corpo moacutevel (automoacutevel) sobre ele minha carne-navio voador

ldquoEu poderia voar tatildeo alto que a Terra apareceria como uma esferardquo A Terra

poderia ser tatildeo pequena que eu poderia percorrecirc-la de todos os lados e vindo

dela indiretamente agrave representaccedilatildeo de esfera Eu descubro por

conseguinte que ela eacute um grande corpo esfeacuterico Mas trata-se precisamente

de saber se e de que modo eu posso chegar agrave corporeidade no sentido em

que ldquoastronomicamenterdquo a Terra eacute efetivamente um corpo entre os outros

entre os corpos celestes Poderiacuteamos tatildeo pouco dizer de que modo se eu me

imagino e viso agora o paacutessaro a qualquer altitude ele pode experienciar a

Terra como um corpo entre os outros Por que natildeo Para noacutes homens sobre

a Terra o paacutessaro e o aviatildeo se movem e isto vale para o proacuteprio paacutessaro e os

homens no aviatildeo porquanto eles experienciam a Terra como ldquocorpordquo-camada

ldquocorpordquo-solo Mas o aviatildeo natildeo pode todavia funcionar como ldquosolordquo Eu

posso permutar ou pensar permutar solo e corpo com o solo em movimento

como arquilugar de meus movimentos O que restaria de uma alteraccedilatildeo da

apercepccedilatildeo e o que restaria de sua legitimaccedilatildeo Natildeo deveria pensar

transferir para o aviatildeo toda a validez constitutiva (conforme a forma) que em

geral daacute sentido agrave Terra como meu solo como solo de minha carne

Eacute da mesma maneira que eu pressuponho ao compreender uma

carne alheia minha carne primordial e tudo o que lhe pertence Mas aqui eu

disponho necessariamente e de maneira inteligiacutevel do valor de existecircncia do

outro A dificuldade se repete para as estrelas Para poder fazer a

ldquoexperiecircnciardquo delas apreendecirc-las indiretamente como corpo eu devo jaacute ser

314

para mim homem sobre a Terra como meu solo-camada Talvez digamos natildeo

haveria dificuldade se eu e noacutes pudeacutessemos voar e tiveacutessemos duas Terras

como corpo-solo e se de uma pudeacutessemos sempre voar ateacute a outra Assim

uma se tornaria justamente corpo para a outra que seria solo Mas o que

significa duas Terras Dois fragmentos de uma Terra com uma humanidade

Estes dois fragmentos se reuniriam em um solo e cada um seria

simultaneamente corpo para o outro Eles teriam ao redor deles o espaccedilo

comum no qual cada um como corpo teria eventualmente um lugar moacutevel

mas o movimento seria sempre relativo ao outro corpo e irrelativo ao solo

sinteacutetico de seu conjunto Os lugares de todos os corpos teriam esta

relatividade de onde resultaria para o movimento e o repouso a questatildeo em

relaccedilatildeo a qual dos dois corpos-solos

Originariamente soacute ldquoardquo Terra-solo pode ser constituiacuteda com o

espaccedilo circundante dos corpos mas isto pressupotildee jaacute que minha carne os

outros conhecidos e os horizontes abertos dos outros sejam constituiacutedos

distribuiacutedos em espaccedilo no espaccedilo que como campo aberto do proacuteximo e do

distante dos corpos ao redor da Terra e daacute aos corpos o sentido de corpo

terrestre e ao espaccedilo o do espaccedilo terrestre A totalidade do noacutes dos homens

dos ldquoanimaisrdquo eacute neste sentido terrestre ndash e natildeo se opotildee em primeiro lugar

ao natildeo-terrestre Este sentido estaacute enraizado e encontra seu centro de

orientaccedilatildeo em mim e em um noacutes limitado aos que vivem uns com os outros

Mas eacute tambeacutem possiacutevel que a Terra-solo se amplia talvez agrave maneira pela

qual eu aprenda a compreender que no espaccedilo da primeira Terra-solo haacute

grandes navios aeacutereos que ali navegam haacute muito tempo eu nasci em um dos

dois minha famiacutelia vive ali era meu solo de ser ateacute eu aprender que noacutes natildeo

somos senatildeo navegantes na maior Terra etc Assim pode se unificar em um

uacutenico lugar-solo uma multiplicidade de lugares-solos de lugares-nuacutecleos

Mais tarde os complementos necessaacuterios sobre este ponto

Antes de tudo se a Terra eacute constituiacuteda de carne e de

corporeidade entatildeo o ldquoceacuteurdquo eacute tambeacutem necessaacuterio como campo de coisas que

no extremo satildeo para mim e noacutes todos ainda experimentaacuteveis

espacialmente ndash e isto a partir da Terra-solo Ou antes um horizonte aberto

de distacircncias acessiacuteveis eacute constituiacutedo a partir de todo ponto do espaccedilo que

315

me eacute acessiacutevel haacute um horizonte extremo um limite (esfera de horizonte) em

que este que eacute ainda experimentaacutevel como coisa distante desaparece

finalmente com o distanciamento Inversamente eu posso naturalmente me

representar que ldquopontosrdquo que se tornam visiacuteveis satildeo corpos distantes que se

aproximaram e podem agora se fazer mais proacuteximos ateacute atingir a Terra-solo

Mas agora tambeacutem eu posso me representar que satildeo lugares-nuacutecleos

Eacute preciso todavia observar cada um retira a sua ldquohistoricidaderdquo

do ego respectivo que eacute domiciliado nele Se eu nasci filho de marinheiro

uma parte de meu desenvolvimento ocorreu sobre o navio e este uacuteltimo natildeo

se caracterizaraacute pra mim como navio em relaccedilatildeo agrave Terra ndash como unidade

alguma teraacute sido produzida ndash ele seraacute mesmo minha ldquoTerrardquo minha paacutetria

originaacuteria Mas neste caso meus pais natildeo satildeo entatildeo originariamente

domiciliados no navio eles possuiacuteam ainda uma velha morada uma outra

arquipaacutetria Na mudanccedila dos nuacutecleos isto permanece universalmente

expresso (se nuacutecleo tem o sentido habitual de meu territoacuterio atual individual

ou familiar) todo ego tem um arquinuacutecleo ndash e um arquinuacutecleo pertence a

todo arquipovo com seu arquiterritoacuterio Mas cada povo e sua historicidade

cada sobrepovo (supranaccedilatildeo) eacute finalmente ele mesmo naturalmente

domiciliado sobre a ldquoTerrardquo e todos os desenvolvimentos todas as histoacuterias

relativas tecircm nesta medida uma uacutenica arqui-histoacuteria da qual eles satildeo os

episoacutedios Certamente eacute bem possiacutevel que esta arqui-histoacuteria seja um

conjunto de povos que vivem e que se desenvolvem de maneira inteiramente

separada excetuando que eles se mantecircm todos uns pelos outros no

horizonte aberto e indeterminado do espaccedilo terrestre

Uma vez clarificada a possibilidade de arqueacutes-voadores (o que

poderia ser tambeacutem um nome para o arquinuacutecleo) consideremos agora as

estrelas que se manifestam na ldquoexperiecircnciardquo (quer dizer na historicidade no

seio da qual se constitui o mundo e nele a natureza corporal o espaccedilo

natural e o espaccedilo-tempo a humanidade e o universo animal) como

simples ldquonavios aeacutereosrdquo ldquonaves espaciaisrdquo da Terra partindo e lhe

retomando sempre habitados e dirigidos por homens que conforme sua

uacuteltima origem generativa e para si mesma histoacuterica satildeo domiciliados sobre a

Terra-solo sua arqueacute Para isso noacutes consideramos portanto agora

316

ldquoestrelasrdquo ndash em primeiriacutessimo lugar manchas e pontos luminosos No curso

da experiecircncia em via de formaccedilatildeo elas satildeo apercebidas como corpo

distante mas sem que advenha nunca a possibilidade de uma verificaccedilatildeo

empiacuterica normal no sentido primeiro estreito de uma legitimabilidade

direta ldquoCorpos celestesrdquo noacutes os tratamos da mesma maneira que os corpos

que natildeo satildeo para noacutes (e eventualmente para outros) senatildeo acidentalmente e

factualmente presentes temporariamente inacessiacuteveis e noacutes retiramos deles

conclusotildees empiacutericas fazemos empiricamente nossas observaccedilotildees de lugar

observaccedilotildees de seus movimentos induzidos etc como se eles fossem corpos

como os outros Tudo isto eacute relativo agrave arqueacute Terra-solo agrave ldquoesfera-Terrardquo a

noacutes homens terrestres e a objetividade se relaciona agrave humanidade

universal Como a proacutepria Arquiterra Ela proacutepria jaacute natildeo eacute um corpo nem

um estrela entre as estrelas Eacute somente quando noacutes nos representamos

nossas estrelas como arqueacutes secundaacuterias com sua eventual humanidade

etc quando noacutes nos imaginamos transportados ali entre estas humanidades

e que voam ali talvez que se passa de outro modo Isto se passa entatildeo com

algumas modificaccedilotildees como com as crianccedilas nascidas em navios As

estrelas satildeo muitos corpos hipoteacuteticos em um sentido determinado de como-

se e tal eacute tambeacutem a hipoacutetese que elas satildeo nuacutecleos em um sentido acessiacutevel

de uma espeacutecie singular

A homogeneizaccedilatildeo das distacircncias celestes mesmo por iteraccedilatildeo

traz consigo suas questotildees fenomenoloacutegicas Qual eacute ali a possibilidade

eideacutetica e a possibilidade preacute-dada com o mundo terrestre como co-

constituinte de seu ser por seu modo de ser conforme agrave essecircncia Com a

interpretaccedilatildeo hipoteacutetica das estrelas visiacuteveis como corpos distantes e pela

forma eideacutetica do limite do que pode ser experimentado ao longe a infinitude

aberta do mundo terrestre eacute jaacute dada como dotada de uma infinitude de

corpos distantes que podem existir Noacutes compreendemos assim sem mais a

homogeneizaccedilatildeo de modo que a proacutepria Terra seja um corpo sobre o qual

acidentalmente rastejamos Com os problemas agora considerados noacutes

chegamos propriamente ao grande problema do sentido legiacutetimo de uma

ciecircncia universal e puramente fiacutesica da ldquonaturezardquo ndash de uma ciecircncia

astronocircmico-fiacutesica se mantendo na infinitude ldquoastronocircmicardquo no sentido de

317

nossa fiacutesica dos tempos modernos (no sentido mais amplo astrofiacutesica) e no

problema de uma ciecircncia de infinitude interna da infinitude do contiacutenuo e

da maneira de se atomizar ou quantificar na indefinitude aberta ou infinita ndash

a fiacutesica atocircmica Nestas ciecircncias da infinitude da totalidade da natureza

consideramos ordinariamente que as carnes natildeo satildeo senatildeo corpos

acidentalmente singularizados que poderiam entatildeo de maneira concebiacutevel

ser inteiramente suprimidos e que por conseguinte uma natureza eacute possiacutevel

sem organismos sem animais sem homens Falta pouco para que

acreditemos nisto e sem duacutevida tambeacutem de modo perioacutedico largamente

acreditamos que era uma pura e simples facticidade leis da natureza que

valem no mundo se a carne animal a vida psiacutequica fosse (causalmente)

vinculada a certos corpos ou tipos de corpos com estrutura fiacutesica seria

entatildeo concebiacutevel que estas mesmas carnes precisamente corpos assim

feitos natildeo sejam precisamente senatildeo puros e simples corpos Qualquer que

seja a maneira pela qual acreditamos poder provar que natildeo haja todavia

ldquovidardquo sobre a Terra foi preciso longos espaccedilos de tempo para que

substacircncias orgacircnicas altamente complexas viessem agrave formaccedilatildeo e assim a

vida animal aparecesse sobre a Terra E eacute considerado tambeacutem evidente que

a Terra seja apenas um dos corpos contingentes do mundo dentre outros e

seria quase ridiacuteculo querer acreditar depois de Copeacuternico que a Terra

ldquosimplesmente porque por acaso vivemos em cimardquo seja o centro do mundo

aleacutem disso privilegiado por seu ldquorepousordquo em relaccedilatildeo do qual tudo o que se

move eacute moacutevel Parece que noacutes temos com o que precede aberto uma larga

brecha na ingenuidade da ciecircncia da natureza (natildeo na medida em que ela

teoriza mas na medida em que ela crecirc atingir por suas teorias a verdade

absoluta do mundo ainda que fosse por graus de perfeiccedilatildeo relativos) A

fenomenologia ancorou talvez tanto a astrofiacutesica copernicana como a anti-

copernicana segundo a qual Deus teria fixado a terra em um lugar do

espaccedilo Eacute possiacutevel que no niacutevel da fenomenologia os caacutelculos e teorias

matemaacuteticas da astrofiacutesica consecutiva a Copeacuternico e por conseguinte a

fiacutesica inteira conservem igualmente em seus limites um direito ndash diferente

jaacute eacute a questatildeo de saber se uma biologia puramente fiacutesica ndash que deve ser

todavia biologia ndash pode conservar sentido e direito

318

Reflitamos entatildeo De que modo devemos alcanccedilar o direito de

deixar valer a Terra como um corpo como uma estrela entre as estrelas

Ainda que isto fosse em primeiro lugar e somente a tiacutetulo de possibilidade

Comecemos com uma outra possibilidade O naturalista admitiraacute como um

puro e simples fato que noacutes vemos em geral estrelas Ele diraacute as estrelas e

mesmo o Sol natildeo poderiam estar tatildeo distantes que natildeo nos fossem

presentes Eles poderiam bem estar invisiacuteveis pelo efeito de uma camada de

nevoeiro Teria sido portanto assim em todas as eacutepocas histoacutericas ndash noacutes

viveriacuteamos entatildeo em uma historicidade generativa e teriacuteamos tido nosso

mundo terrestre nossa Terra e nossos espaccedilos terrestres onde voam e

planam corpos etc assim como ateacute o presente mas somente sem estrelas

visiacuteveis e experimentaacuteveis para noacutes Talvez teriacuteamos uma fiacutesica atocircmica uma

microfiacutesica mas nem astrofiacutesica nem macrofiacutesica Seria preciso todavia

meditar o quanto as primeiras seriam modificadas Noacutes teriacuteamos nossos

telescoacutepios nossos microscoacutepios nossos instrumentos de medida cada vez

mais apurados teriacuteamos nosso Newton e a lei da gravitaccedilatildeo teriacuteamos podido

descobrir que os corpos exercem a gravitaccedilatildeo uns sobre os outros e

simultaneamente que podem ser considerados como divisiacuteveis como um

conjunto de partes corporais que exercem entatildeo sua gravitaccedilatildeo exatamente

como corpos autocircnomos e agindo segundo leis mecacircnicas produzindo

resultantes etc Noacutes teriacuteamos descoberto que a Terra eacute uma ldquoesferardquo divisiacutevel

em corpos que ela exerce como unidade total de partes corporais uma

gravitaccedilatildeo como totalidade sobre todos os corpos se dissociando dela corpos

que satildeo visiacuteveis ou natildeo no espaccedilo terrestre Que corpos estejam no espaccedilo

cada vez mais longe do que eacute nosso visiacutevel ordinaacuterio e suscetiacuteveis de ser

percebidos unicamente por meio de telescoacutepios e de telescoacutepios sempre mais

potentes ndash tudo isso noacutes o sabemos Noacutes poderiacuteamos em seguida nos dizer

seria bem possiacutevel finalmente que corpos de grandeza qualquer se

encontrem a distacircncias ainda e para sempre inacessiacuteveis a nossos sentidos

Sem os ver sem ter diretamente conhecimento deles mesmo se os copos

distantes sejam assimilaacuteveis por hipoacutetese aos corpos ordinaacuterios poderiacuteamos

fazer induccedilotildees e a partir dos efeitos da gravitaccedilatildeo etc calcular a existecircncia

de tais ldquoestrelasrdquo A Terra finalmente seria em todo o domiacutenio fiacutesico um

319

corpo como os outros e aleacutem disso envolvido de estrelas De fato noacutes jaacute

temos estrelas agrave vista e as descobrimos cientificamente nas relaccedilotildees fiacutesicas

calculaacuteveis com a Terra e descobrimos esta uacuteltima fisicamente assimilada agraves

estas estrelas como um corpo entre os corpos Nos natildeo abordamos entatildeo a

fiacutesica

Mas isto pois do qual tudo depende eacute natildeo esquecer o preacute-dado

e a constituiccedilatildeo pertencente ao ego apodiacutetico a mim a noacutes como fonte de

todo sentido de ser efetivo e possiacutevel de todas as ampliaccedilotildees possiacuteveis que

podem se desenvolver em seguida na historicidade em andamento de um

mundo jaacute constituiacutedo Natildeo podemos cometer o absurdo sim o absurdo de

pressupor de antematildeo e sem que pareccedila nisto com a concepccedilatildeo naturalista

e dominante do mundo para considerar em seguida de maneira

antropoloacutegica e psicologista a formaccedilatildeo da ciecircncia e da interpretaccedilatildeo do

mundo na histoacuteria dos homens histoacuteria das espeacutecies no interior do

desenvolvimento dos indiviacuteduos e dos povos como um acontecimento

terrestre evidentemente contingente que teria tatildeo bem podido ocorrer em

Marte ou Vecircnus Isto vale para a Terra e noacutes homens eu com minha carne e

eu em minha geraccedilatildeo meu povo etc Esta historicidade total tambeacutem

pertence portanto de maneira inseparaacutevel ao ego e natildeo eacute por princiacutepio

repetiacutevel mas tudo o que eacute estaacute referido a esta historicidade da constituiccedilatildeo

transcendental como nuacutecleo pertinente e nuacutecleo crescente ndash ou tudo o que eacute

recentemente descoberto como possibilidade do mundo estaacute vinculado ao

sentido de ser jaacute pronto Poderiacuteamos entatildeo pensar que eacute preciso disto

concluir o seguinte a Terra pode tatildeo pouco perder seu sentido de

ldquoarquinuacutecleordquo de arqueacute do mundo como minha carne o seu sentido de ser

inteiramente uacutenico de carne originaacuteria da qual toda carne deriva uma parte

de seu sentido de ser e que noacutes homens segundo nosso sentido de ser

precedemos os animais etc Por conseguinte todas as assimilaccedilotildees

(homogeneizaccedilotildees) que se co-constituem necessariamente da carne e do

corpo ou da carne corporal como corpo semelhante a outros da

humanidade como espeacutecie animal entre outras e portanto finalmente da

Terra como corpo mundano entre os corpos mundanos natildeo podem nada

mudar a esta dignidade constitutiva ou hierarquia de valor Eu posso muito

320

bem me imaginar transportado sobre o corpo lunar Por que eu natildeo deveria

me imaginar a Lua como uma espeacutecie de Terra como uma espeacutecie de

habitaccedilatildeo animal Sim eu posso muito bem me imaginar como um paacutessaro

que alccedila vocirco da Terra em direccedilatildeo a um corpo distante ou como um piloto de

aviatildeo decolando e pousando ali Sim eu posso mesmo me imaginar que haacute

jaacute ali animais e homens Mas se por acaso eu pergunto ldquoDe que modo

chegaram ali em cimardquo entatildeo eu interrogo da mesma maneira que sobre

uma ilha nova em que descobrindo inscriccedilotildees cuneiformes eu pergunto

ldquoDe que modo os povos em questatildeo chegaram alirdquo Todos os animais todos

os seres vivos todos os entes em geral natildeo tecircm sentido de ser senatildeo a partir

de minha gecircnese constitutiva e esta uacuteltima tem uma precedecircncia ldquoterrestrerdquo

Sim talvez um fragmento de Terra (como uma banquisa) pode ser

desprendido e isto tornou possiacutevel uma historicidade particular Mas isto

natildeo significa que a Lua assim como Vecircnus sejam pensaacuteveis como

arquinuacutecleos em uma separaccedilatildeo originaacuteria e isto natildeo significa que o ser da

Terra para mim e nossa humanidade terrestre natildeo seja justamente senatildeo

um fato Haacute apenas uma humanidade e apenas uma Terra ndash a ela pertencem

todos os fragmentos que satildeo ou foram sempre separados Mas se isto natildeo eacute

assim podemos dizer com Galileu eppur si muove [mas se move] E natildeo

pelo contraacuterio que ela natildeo se move Seguramente ela natildeo estaacute em repouso

no espaccedilo tendo a possibilidade de se mover mas como noacutes tentamos

mostrar mais acima ela eacute a arqueacute que torna primeiramente possiacutevel o

sentido de todo movimento e de todo repouso como modo de um movimento

Seu repouso natildeo eacute portanto um modo de movimento

Mas agora consideraremos isto um pouco forte simplesmente

louco contradizendo todo conhecimento cientiacutefico da efetividade e da

possibilidade real Eacute possiacutevel que um dia a morte teacutermica ponha fim a toda a

vida na Terra ou que corpos celestes caiam sobre a Terra etc Mesmo se noacutes

pudeacutessemos encontrar em nossa tentativa a mais inacreditaacutevel hybris

filosoacutefica noacutes natildeo recuaremos diante das consequecircncias de nossa

elucidaccedilatildeo de necessidades de toda doaccedilatildeo de sentido para o ente e para o

mundo Nem diante dos problemas da morte tais como em sua nova maneira

a fenomenologia os concebe Presente eu sou enquanto presente estando a

321

morrer os outros morrem para mim quando eu natildeo encontro a conexatildeo

presente com eles Mas aqui a unidade por re-lembrar atravessa minha

vida ndash eu vivo ainda embora no ser-outro e continuo a viver a vida que estaacute

atraacutes de mim e portanto o sentido de atraacutes-de-mim jaz na repeticcedilatildeo e na

possibilidade de repetir Assim o noacutes vive na repetibilidade e continua

mesmo a viver na forma de repetibilidade da histoacuteria no mesmo tempo em

que o indiviacuteduo ldquomorrerdquo quer dizer natildeo pode mais ser ldquorememoradordquo pelos

outros de maneira intropaacutetica mas somente pela lembranccedila histoacuterica na

qual os sujeitos do lembrar podem se representar

O que pertence agrave constituiccedilatildeo isto eacute e eacute unicamente a absoluta e

uacuteltima necessidade e eacute em primeiro lugar a partir daiacute que todas as

possibilidades imaginaacuteveis de um mundo constituiacutedo estatildeo finalmente por

determinar Que sentido podem ter as massas se desmoronando no espaccedilo

em um espaccedilo preacutevio como absoluto homogecircneo e a priori se a vida

constituinte eacute suprimida Com efeito uma tal supressatildeo ela mesma natildeo tem

o simples sentido se eacute que haacute disso de uma supressatildeo de e na subjetividade

constituinte O ego vive e precede sendo efetivo e possiacutevel quer cada ente

tenha um sentido real ou irreal O tempo do mundo constituiacutedo guarda bem

em si o tempo psicoloacutegico mas natildeo de tal maneira que se possa inverter a

esfera psicoloacutegica na esfera transcendental e antes de tudo inverter ali

todas as maneiras pelas quais se pressupotildee harmoniosamente de um ponto

de vista abstrato qualquer e relativamente justificado um mundo

homogecircneo e mais estreitamente uma natureza com a esfera psiacutequica que

lhe eacute psicofisicamente vinculada ndash todas pressuposiccedilotildees com as quais

operamos muito bem na praacutetica (a praacutexis natural humana que forma e

utiliza a ciecircncia) ndash para enfim graccedilas a esta inversatildeo opor como vaacutelidas agrave

fenomenologia os paradoxos que nascem

322

Notas sobre o desenvolvimento de meus conceitos196

Kurt Goldstein

Trad Rodrigo Vieira Marques

No claacutessico ginaacutesio alematildeo no qual fui educado nosso interesse

e aprendizagem eram essencialmente dirigidos para as humanidades e era

assim a minha leitura fora da escola Natildeo obstante no ginaacutesio os jovens

tendiam geralmente agrave escolha das ciecircncias naturais como profissatildeo Quando

tive que escolher entre as ciecircncias naturais e a filosofia antes de entrar na

Universidade eu natildeo soube qual escolher Ao decidir pela ciecircncia natural eu

estava certo de que a usaria somente como uma base para me tornar um

meacutedico Apenas a medicina pareceu ser adequada para a minha inclinaccedilatildeo ndash

cuidar dos seres humanos

O vago conhecimento que eu tinha de medicina dizia respeito

principalmente agraves pessoas com doenccedilas mentais que me pareciam

particularmente precisar de ajuda Naquela eacutepoca estas doenccedilas eram

consideradas a expressatildeo de condiccedilotildees anormais do ceacuterebro Assim o estudo

do sistema nervoso era tido como certo e eu me senti atraiacutedo pelos

professores que se ocupavam com os estudos neste campo o anatomista

Professor Schaper que estava interessado no desenvolvimento embrionaacuterio

do sistema nervoso o famoso psiquiatra professor Karl Wernicke que

tentou compreender os sintomas psicoloacutegicos dos pacientes e combinar esta

compreensatildeo com os resultados sobre os seus ceacuterebros e o professor Ludwig

Edinger que postulou os fundamentos da anatomia comparativa do sistema

nervoso e para o qual o estudo da anatomia era principalmente os meios de

compreender o comportamento de diferentes animais e do homem No meio

de minha vida universitaacuteria eu tinha comeccedilado o trabalho no laboratoacuterio e

jaacute tinha publicado dois artigos de anatomia negligenciando um pouco as

196 GOLDSTEIN K Selected Papers Ausgewaumlhlte Schriften [Editores Aron Gurwitsch Else M Goldstein Haudek William E Haudek] The Hague Netherlands Martinus Nijhoff 1971 Pp 1-12 Reproduzido de Journal of Individual Psychology Vol 15 1959 (pp 5014)

323

leituras exigidas em particular aquelas requeridas na cirurgia e na

ginecologia

O Sintoma em relaccedilatildeo ao Organismo Inteiro

Preparado com um certo conhecimento em meu campo favorito

eu fui trabalhar com pacientes neuroloacutegicos usando o maravilhoso meacutetodo

detalhado sobre o exame de Wernicke como meu modelo Em 1907 eu

obtinha uma posiccedilatildeo na cliacutenica psiquiaacutetrica universitaacuteria em Koenigsberg

Ali fiquei extremamente desapontado porque o cuidado psiquiaacutetrico naquele

tempo era principalmente carceraacuterio e a abordagem cliacutenica de Kraepelin

mediante a qual ele tentou trazer ordem agravequele campo um pouco confuso

natildeo me pareceu muita promissora para a terapia

Enquanto me concentrava sobre a investigaccedilatildeo de casos

neuroloacutegicos orgacircnicos e psiquiaacutetricos dei-me conta de que o procedimento

usual conforme o meacutetodo das ciecircncias naturais ao estudar com cuidado

os sintomas proeminentes e ao tentar basear a terapia nestes resultados

revelou muitos fenocircmenos interessantes poreacutem eram bastante

insatisfatoacuterios para finalidades terapecircuticas Quando eu comecei a examinar

igualmente as outras manifestaccedilotildees do comportamento patoloacutegico dos

mesmos pacientes que foram considerados geralmente simples

concomitantes e foram mais ou menos negligenciados na interpretaccedilatildeo os

resultados me pareceram mais promissores Na verdade eu natildeo estava certo

de que modo se deveria avanccedilar a este respeito e por qual meacutetodo se poderia

avaliar esta crescente quantidade de material Eu senti que eacuteramos

confrontados com um problema baacutesico em nossa abordagem cientiacutefica ao

compreender o comportamento natildeo soacute dos pacientes mas tambeacutem dos seres

vivos em geral Eu natildeo tinha previsto ainda que a tentativa de atacar este

problema fosse determinar permanentemente os meus esforccedilos cientiacuteficos197

197 K Goldstein The Organism a Holistic Approach to Biology Derived from Pathological Data in Man New York American Book Co 1939

324

O problema tornou-se particularmente urgente durante e apoacutes a

Primeira Guerra Mundial quando eu fui confrontado com a tarefa de cuidar

de um grande nuacutemero de jovens soldados com lesotildees cerebrais e defeitos em

diferentes capacidades mentais particularmente na linguagem Apoacutes o

tratamento ciruacutergico foram considerados geralmente objetos da caridade e

do cuidado porque pareceu que uma melhoria real nunca poderia ser

esperada Somente alguns neurologistas eu mesmo estava entre eles

protestaram que mediante um tratamento adequado estes pacientes

poderiam ser trazidos a uma condiccedilatildeo na qual a vida novamente valeria a

pena vivendo apesar de alguns defeitos remanescentes Com esta finalidade

alguns hospitais especiais foram instituiacutedos em oposiccedilatildeo agrave opiniatildeo da

maioria dos principais neurologistas do paiacutes198199

Minha ideia era construir uma instituiccedilatildeo que oferecesse a

oportunidade de observar o comportamento diaacuterio dos pacientes e estudaacute-los

em todos os aspectos Por conseguinte eu organizei em Frankfurt am Main

sob a administraccedilatildeo do governo um hospital que consistia em uma ala para

o tratamento meacutedico e ortopeacutedico um laboratoacuterio de fisiologia e de psicologia

para o exame especial de pacientes e interpretaccedilatildeo teoacuterica dos fenocircmenos

observados uma escola para readaptaccedilatildeo com base nos resultados desta

pesquisa e finalmente oficinas nas quais a aptidatildeo do paciente para

ocupaccedilotildees especiais seria testada e ele aprenderia um ofiacutecio de acordo com

sua habilidade Neste trabalho eu tinha a assistecircncia dos mais jovens

neurologistas professores e psicoacutelogos Ali a cooperaccedilatildeo de meu falecido

amigo o psicoacutelogo A Gelb provou ser por mais de dez anos de grande

importacircncia Este hospital um Instituto chamado mais tarde de Research on

the After-Effects of Brain Injuries [Instituto de Pesquisa sobre os Poacutes-efeitos de

Lesotildees Cerebrais] existiu ateacute Hitler chegar ao poder Para nossas

198 K Goldstein Die Behandlung Fuumlrsorge und Begutachtung des hirnverletzten Soldaten Leipzig Vogel 1919 199 K Goldstein Aftereffects of brain injuries in war their evaluation and treatment New York Grune amp Stratton 1942

325

finalidades era particularmente afortunado que pudeacutessemos manter e

observar pacientes durante muito tempo regularmente por anos200

Este intensivo trabalho cooperativo rendeu muitos resultados de

valor praacutetico e teoacuterico para a medicina e a psicologia como evidenciado por

uma seacuterie de publicaccedilotildees realizadas por meus colegas de trabalho e por mim

mesmo particularmente a Psychologische Analysen hirnpathologischer Faumllle

[Anaacutelise psicoloacutegica de casos patoloacutegicos do ceacuterebro]201 A enorme experiecircncia

obtida transformou-se em base para o desenvolvimento de meus conceitos

teoacutericos

Comportamento abstrato versus comportamento concreto

Noacutes logo descobrimos que uma razatildeo para a falha no tratamento

se deu porque negligenciamos o fato de que sintomas de aparecircncia similar

poderiam ser de origens essencialmente diferentes e que apenas ao

conhecer estas origens se poderia evitar um tratamento inadequado e

conseguir melhores resultados202

Descobrimos tambeacutem que estaacutevamos tratando com dois

diferentes grupos de sintomas No primeiro grupo os sintomas se devem aos

danos de uma capacidade mental especial que noacutes poderiacuteamos caracterizar

com base nos defeitos do comportamento destes pacientes e que chamamos

mais tarde de atitude abstrata ao passo que no segundo grupo os sintomas

representavam um dano de uma outra forma de comportamento humano o

comportamento concreto ao qual as atividades aprendidas pertencem de

modo particular203204

200 Supra n 2 201 K Goldstein and A Gelb Psychologische Analysen hirnpathologischer Faumllle Leipzig Barth 1920 202 K Goldstein ldquoDas Wesen der amnestischen Aphasierdquo Schweiz Arch Neurol Psychiat 1924 15 163-175 203 K Goldstein ldquoDas Symptom seine Entstehung und Bedeutung fuumlr unsere Auffassung vom Bau und von der Funktion des Nervensystemsrdquo Arch Psychiat Neurol 1925 76 84-108 204 K Goldstein and M Scheerer ldquoAbstract and concrete behavior an experimental study with special testsrdquo Psychol Monogr 1941 53 No 2

326

Como a observaccedilatildeo revelou que a modificaccedilatildeo caracteriacutestica do

comportamento no primeiro grupo dizia respeito mais ou menos a todos os

campos de atuaccedilatildeo era possiacutevel explicar atraveacutes de uma diferenciaccedilatildeo de

uma uacutenica e mesma funccedilatildeo muitos sintomas diferentes que antes foram

considerados o resultado do dano mais acidental de diferentes campos de

atuaccedilatildeo Isto deu uma maior perspicaacutecia ao nosso conceito do ceacuterebro

funcional em geral205206

Dentre os sintomas que consistem em modificaccedilotildees do

comportamento concreto poderiacuteamos distinguir207 aqueles que eram o efeito

direto da lesatildeo em um campo e208 aqueles que se tornaram compreensiacuteveis

a partir da mudanccedila do funcionamento do campo em questatildeo devido ao

isolamento209 deles a partir da influecircncia da capacidade abstrata Quando

vimos entatildeo que a modificaccedilatildeo da funccedilatildeo mediante o isolamento segue leis

definitivas noacutes ponderamos se o isolamento natildeo teria podido desempenhar

um papel decisivo no desenvolvimento de muitos fenocircmenos patoloacutegicos em

geral A verificaccedilatildeo crescente desta ideia transformou-se na base para uma

nova abordagem para estudar o funcionamento do ceacuterebro a assim

chamada abordagem holiacutestica que suporia que cada fenocircmeno ndash normal

assim como patoloacutegico ndash eacute uma atividade do organismo inteiro em uma

organizaccedilatildeo particular do organismo210

Pela aplicaccedilatildeo deste procedimento metoacutedico uma seacuterie bastante

discutida de fenocircmenos veio a ser explicada mais facilmente A respeito do

problema da localizaccedilatildeo cerebral a suposiccedilatildeo usual de funccedilotildees isoladas em

regiotildees isoladas do coacutertex provou ser insustentaacutevel211 A chamada relaccedilatildeo212

psicossomaacutetica encontrou uma nova interpretaccedilatildeo que pocircde resolver as

205 K Goldstein ldquoUumlber induzierte Veraumlnderungten des Tonusrdquo Klin Wschr 1925 4 294-299 206 K Goldstein ldquoDie Lokalisation in der Grosshirnrinderdquo In A Bethe et al (Eds) Handbuch der normalen und pathologischen Physiologie Vol 10 Berlin Springer 1927 600-842 207 Supra n 2 208 Supra n 5 209 Supra n 1 p 133 210 Supra n 1 211 Supra n 1 p 249 212 Supra n 1 p 335

327

dificuldades anteriores neste campo As experiecircncias com pacientes afaacutesicos

conduziram ao repuacutedio do conceito naquele tempo predominante que os

tipos diferentes de afasia relacionados agraves lesotildees em diferentes centros do

ceacuterebro podem ser distintos213 As vaacuterias formas de afasia poderiam ser

explicadas de uma maneira unitaacuteria a qual deu origem a um novo conceito

de linguagem com consequecircncias para a teoria da linguagem em

geral214215 De modo similar as novas explanaccedilotildees foram sugeridas para os

problemas dos reflexos216 da ansiedade217 do assim chamado

inconsciente218 e dos fenocircmenos do tocircnus219220221

Sauacutede Doenccedila e Terapia

O resultado mais geral de nossos estudos no campo da medicina

era um conceito conciso da sauacutede da doenccedila e da terapia que originou da

observaccedilatildeo de pacientes com lesotildees cerebrais mas obteve um significado

geral depois que provou ser uacutetil em aplicaccedilatildeo a todas as doenccedilas que natildeo

podem ser curadas totalmente

O paciente com lesatildeo cerebral apresenta natildeo somente falhas de

maior ou pouco grau mas uma ocorrecircncia frequente do que eu chamei de

condiccedilatildeo catastroacutefica isto eacute222 sintomas de desordem do funcionamento do

organismo inteiro que mostra todas as caracteriacutesticas da ansiedade grave

Considerando a condiccedilatildeo mental do paciente em sua totalidade noacutes

concluiacutemos que esta ansiedade natildeo pode ser uma reaccedilatildeo agrave experiecircncia da

213 K Goldstein ldquoDie zwei Formen der Stoumlrungsmoumlglichkeit der Spracherdquo Zbl ges Neurol Psychiat 1931 61 267-288 214 K Goldstein Uumlber Aphasie Zurich Orel Fuumlssli 1927 215 K Goldstein Language and language disturbances New York Grune amp Stratton 1948 216 Supra n 1 p 159 217 Supra n 1 p 291 218 Supra n 1 307 219 K Goldstein and W Riese ldquoUumlber induzierte Veraumlnderungen des Tonusrdquo Klin Wschr 1923 2 1201-1206 2339-2340 1924 3 187-188 220 Supra n 9 221 K Goldstein ldquoUumlber induzierte Veraumlnderungen des Tonusrdquo Schweiz Arch Neurol Psychiat 1926 17 203-288 222 Supra n 1 p 35

328

falha223 A condiccedilatildeo catastroacutefica e a ansiedade podem ser compreendidas

somente como uma reaccedilatildeo da personalidade ao perigo a que eacute exposta pela

impossibilidade de realizar suas capacidades essenciais devido agrave falha As

observaccedilotildees levaram-nos a caracterizar a ansiedade em geral como a

experiecircncia subjetiva de estar no perigo de perder a ldquoexistecircnciardquo224

Eacute este perigo agrave existecircncia que as experiecircncias individuais em

todas as condiccedilotildees noacutes chamamos de doenccedila225226 Em contraste com ela a

sauacutede parece ser a condiccedilatildeo da ordem pela qual a realizaccedilatildeo da natureza do

organismo sua ldquoexistecircnciardquo eacute garantida Mas a sauacutede estaacute nos casos em

que a restitutio ad integrum natildeo pode ocorrer caracterizada por um outro

fenocircmeno que noacutes igualmente estudamos primeiramente nestes pacientes

com lesatildeo cerebral

Se o paciente conseguiu um estado de ordem depois que noacutes

organizamos um ambiente no qual natildeo se faz a ele nenhuma exigecircncia que

natildeo pudesse cumprir e que o conduziria agrave cataacutestrofe entatildeo ele se sente

saudaacutevel e se poderia dizer que estaacute em um estado de sauacutede Mas a

observaccedilatildeo mostra que mesmo assim quando pode em princiacutepio usar

capacidades natildeo danificadas ele parece natildeo usar aquelas que podem levaacute-lo

ndash sob certas condiccedilotildees ndash apesar da proteccedilatildeo agrave cataacutestrofe Em outras

palavras para a manutenccedilatildeo da ordem assim como a existecircncia em uma

condiccedilatildeo objetiva natildeo totalmente restituiacuteda algumas restriccedilotildees satildeo

necessaacuterias para garantir a ordem e assim a existecircncia que corresponde agrave

sua natureza227

O que noacutes observamos no paciente com lesatildeo cerebral provou

igualmente se ajustar a pacientes com doenccedilas de diferentes tipos contanto

que a doenccedila natildeo possa completamente ser eliminada Nestes casos a

ordem ou a sauacutede podem ser obtidas somente se algumas restriccedilotildees satildeo

mantidas Mas mesmo assim a sauacutede pode ser mantida somente se o

223 Supra n 1 p 295 224 K Goldstein ldquoThe structure of anxietyrdquo In J H Masserman amp J L Moreno (Eds) Progress in psychotherapy Vol 2 New York Grune amp Stratton 1957 61-70 225 Supra n1 p 247 226 K Goldstein ldquoThe idea of disease and therapyrdquo Rev Relig 1942 13 229-240 227 Supra n 30

329

paciente natildeo encontra a cataacutestrofe devido a estas restriccedilotildees Tal cataacutestrofe eacute

evitada no ceacuterebro lesionado quando noacutes organizamos seu ambiente de

modo que comeccedilassem tanto quanto pudessem a apreciar da satisfaccedilatildeo

pessoal de que tanto precisam Devido ao comprometimento de sua

capacidade abstrata natildeo percebem nestas condiccedilotildees a contraccedilatildeo de seu

mundo e de suas personalidades pelas restriccedilotildees Quando indiviacuteduos

mentalmente normais com graves doenccedilas corporais neuroacuteticos e psicoacuteticos

se tornam cientes das restriccedilotildees dos desempenhos que se sentem capazes de

executar satildeo confrontados com um dilema A soluccedilatildeo deste dilema eacute

necessaacuteria para se tornarem ldquosaudaacuteveisrdquo de outro modo podem entrar em

cataacutestrofe e sua sauacutede seraacute prejudicada Eles devem ter restriccedilotildees e com

elas certo sofrimento e ansiedade Somente entatildeo tais pacientes

estaratildeo em um estado ordenado no qual possam ldquoexistirrdquo Assim noacutes

viemos de nossa ldquoabordagem organiacutesmicardquo ndash que leva em conta a natureza

inteira do indiviacuteduo (seu Wesen sua existecircncia) ndash a um conceito da doenccedila e

da sauacutede que deva considerar o fenocircmeno de aceitar algumas restriccedilotildees

como um preacute-requisito da sauacutede228

Nosso resultado refere-se agrave condiccedilatildeo de sauacutede natildeo somente nos

pacientes sem a restitutio ad integrum mas igualmente nos indiviacuteduos

normais desde que a vida exija sempre algumas restriccedilotildees Cada

desempenho patoloacutegico ou normal pode corretamente ser avaliado somente

se levarmos a sua relaccedilatildeo com a ldquoexistecircnciardquo do indiviacuteduo em consideraccedilatildeo

A relaccedilatildeo com a existecircncia eacute um fator tatildeo importante para a interpretaccedilatildeo de

cada desempenho de um indiviacuteduo que eacute essencial a toda e qualquer

tentativa de compreender em geral o comportamento humano

Eu quero mencionar aqui brevemente algumas consequecircncias

deste ponto de vista para a terapia Tornar-se saudaacutevel exige uma

transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo que o permita suportar

restriccedilotildees Este eacute o pressuposto para adquirir uma adequaccedilatildeo entre suas

capacidades remanescentes e o mundo isto eacute um estado ordenado ndash e

228 Supra n 30

330

deste modo a possibilidade de usar as capacidades natildeo danificadas a tal

ponto que a vida continue a ter valor apesar da restriccedilatildeo Eacute nossa tarefa na

terapia ajudar o paciente a compreender a necessidade das restriccedilotildees para

tornar-se saudaacutevel Eu gostaria de salientar outra vez que isto se refere a

todos os tipos da doenccedila

Noacutes seremos bem sucedidos na terapia somente quando

tivermos sempre em mente o objetivo acima mencionado Deste ponto de

vista noacutes temos que decidir por exemplo quais sintomas podem ser

eliminados e quais devem permanecer intactos e teremos que avaliar muitos

procedimentos que foram recomendados nas diferentes escolas da

psicoterapia

Uma parte particular da terapia consiste em fazer o paciente

compreender o problema tanto quanto possiacutevel em todos os seus detalhes

Ajudaacute-lo-aacute a ter restriccedilotildees particularmente caso se torne ciente que sua

situaccedilatildeo natildeo eacute em princiacutepio tatildeo muito diferente daquela em que os seres

humanos normais ldquoexistemrdquo

Em todos os aspectos mencionados a organizaccedilatildeo adequada da

relaccedilatildeo entre o meacutedico e o paciente seraacute da maior importacircncia Seu

desenvolvimento eacute de acordo com nossa experiecircncia um preacute-requisito para

o sucesso natildeo somente nas assim chamadas doenccedilas funcionais mas em

pacientes ldquoorgacircnicosrdquo tambeacutem Naturalmente seraacute organizado de um modo

um pouco diferente nas vaacuterias condiccedilotildees Nossa organizaccedilatildeo eacute baseada na

abordagem organiacutesmica e difere um pouco da transferecircncia de outras

escolas da psicoterapia em particular da psicanaacutelise229

Epistemologia e a Natureza do Homem

Ao salientar que a interpretaccedilatildeo de qualquer sintoma e da

organizaccedilatildeo da terapia deve ser baseada no conhecimento do organismo

total que noacutes sempre temos que considerar a personalidade individual no

229 K Goldstein ldquoThe concept of transference in treatment of organic and functional nervous diseasesrdquo Acta pscychother 1954 2 334-353

331

seu funcionamento e a maneira pela qual sua existecircncia eacute garantida noacutes

fomos confrontados com um seacuterio problema230 epistemoloacutegico que se referia

certamente do mesmo modo a qualquer conhecimento bioloacutegico Este

problema tornava-se evidente na consideraccedilatildeo mais aprofundada de nosso

conceito de ldquoaceitar algumas restriccedilotildees como um preacute-requisito da sauacutederdquo em

que tornar-se ldquosaudaacutevelrdquo exige uma escolha do indiviacuteduo A sauacutede adquire

assim o caraacuteter de um valor ndash o valor da existecircncia231 ndash no qual a existecircncia

natildeo significa simplesmente a sobrevivecircncia do indiviacuteduo em sua organizaccedilatildeo

psicofiacutesica mas a preservaccedilatildeo da natureza de seu ser O conhecimento desta

ldquonaturezardquo do indiviacuteduo natildeo pode ser obtido pelo meacutetodo das ciecircncias

naturais apenas Os dados obtidos com o meacutetodo das ciecircncias naturais que

ateacute agora estiveram quase completamente no primeiro plano na teoria

meacutedica e bioloacutegica natildeo satildeo considerados de modo nenhum inuacuteteis Apenas

possuem um outro lugar na totalidade de nosso conhecimento a respeito da

existecircncia organiacutesmica ndash um lugar no qual muitas interpretaccedilotildees erradas

podem ser evitadas e a teoria torna-se assente em uma base mais realista O

conhecimento que noacutes necessitamos pode ser compreendido somente por um

procedimento mental especial que eu tenho caracterizado como uma

atividade criativa baseada em dados empiacutericos atraveacutes da qual a ldquonaturezardquo

passa a estar como uma Gestalt cada vez mais ao alcance de nossa

experiecircncia232 Este procedimento jaacute natildeo pareceraacute tatildeo estranho quando se

percebe que eacute essencialmente semelhante agrave atividade do proacuteprio organismo

pelo qual ao conseguir a adequaccedilatildeo com seu ambiente a existecircncia do

organismo eacute garantida233 A aplicaccedilatildeo deste procedimento cognitivo estaacute

sujeita agraves dificuldades semelhantes agravequelas do procedimento do proacuteprio

organismo em encontrar a condiccedilatildeo em que pode existir Deste ponto de

vista resulta um conceito conciso da natureza humana que eu tentei

230 Supra n 1 p 399 231 K Goldstein ldquoHealth as Valuerdquo In A H Maslow (Ed) New Knowledge in Human Values New York Harper 1959 178-188 232 Supra n 1 p 402 233 Supra n 1 p 403

332

desenvolver com base nas experiecircncias conseguidas com os casos

patoloacutegicos234

Tornou-se compreensiacutevel que a nossa cogniccedilatildeo nunca pode ser

completa e definitiva Todo o nosso conhecimento na biologia humana eacute

baseado em alguma liberdade de escolha e portanto sempre corre algum

risco Consequentemente toda e qualquer accedilatildeo nesta base exige a

responsabilidade e a coragem Isto eacute verdadeiro igualmente para cada tipo de

terapia particularmente a psicoterapia A terapia natildeo eacute simplesmente um

procedimento objetivo O meacutedico natildeo deve somente estar ciente da natureza

da personalidade total do paciente que estaacute tratando mas deve igualmente

estar ciente de sua proacutepria responsabilidade para o efeito de qualquer accedilatildeo

que empreende A terapia eacute uma empresa conjunta do meacutedico e do paciente

baseada em um tipo de comunhatildeo entre eles235 em que o meacutedico conduz

porque aprendeu a lidar com problemas difiacuteceis A terapia seraacute bem

sucedida somente se o paciente participa nesta empresa adequadamente e

estaacute mais ou menos ciente de sua complexidade

Relaccedilatildeo com outras teorias

Eu gostaria de dizer algumas palavras a respeito da relaccedilatildeo de

meus conceitos com a opiniatildeo de outros na aacuterea Eacute desnecessaacuterio dizer que

eu fui influenciado de vaacuterios lados Na verdade eu fui influenciado mais por

visotildees contemporacircneas em geral do que pelas explanaccedilotildees teoacutericas de

homens ou de escolas especiacuteficas Eu sempre pensei que natildeo eacute possiacutevel

simplesmente tomar posse dos fatos ou dos conceitos de um campo de

conhecimento e transpocirc-los para outro Isto eacute frequentemente ateacute mesmo

prejudicial ao progresso Ainda que se deva nunca negligenciar os fatos

descritos por outros eacute preciso tornaacute-los compreensiacuteveis agrave luz de sua proacutepria

teoria

234 K Goldstein Human Nature in the light of Psychopathology Cambridge Mass Harvard Univ Press 1940 235 Supra n33

333

De acordo com o espiacuterito dos tempos na medicina eu fui atraiacutedo

pela ideia de que a doenccedila natildeo deve ser considerada algo que se abate sobre

o indiviacuteduo a partir do exterior mas que se deve tratar um pouco da

personalidade doente um conceito que ganhou larga consideraccedilatildeo na

Alemanha jaacute no iniacutecio do seacuteculo236

Eu fiquei impressionado pelas demonstraccedilotildees de Wertheimer e

dos psicoacutelogos da Gestalt que mostraram que muitos desempenhos podem

ser compreendidos somente sob o aspecto da Gestalt Eu tentei aplicar este

princiacutepio ao estudo do comportamento de meus pacientes porque eu senti

que era semelhante agrave minha abordagem a qual foi baseada na anaacutelise do

comportamento normal e anormal Eacute desnecessaacuterio dizer que isto nos

ajudou a compreender uma seacuterie de fenocircmenos Mas depois eu me tornei

cada vez mais ciente da diferenccedila entre a teoria da Gestalt e o meu proacuteprio

conceito organiacutesmico Assim eu penso que natildeo se justifica que muitas vezes

eu seja considerado um ldquoGestaltistardquo237

A maioria dos principais psiquiatras e dos neurologistas natildeo

concordaram com minhas ideias teoacutericas quando eu as apresentei pela

primeira vez Havia somente uns poucos que estavam pensando em moldes

similares O uacutenico com quem eu tive muito em comum o falecido Hughlings

Jackson foi muito pouco conhecido na Alemanha ou na Inglaterra na eacutepoca

Assim ele dificilmente poderia ter influenciado o desenvolvimento de minhas

ideias por mais que eu tenha aprendido mais tarde com seus escritos No

entanto houve sempre algumas diferenccedilas que natildeo permaneceram sem

importacircncia entre as suas opiniotildees e a minha

As ideias de Freud e de seus seguidores foram natildeo soacute natildeo

reconhecidas na Alemanha daquela eacutepoca a natildeo ser por ciacuterculos esoteacutericos

pequenos mas foram muito pouco conhecidas por um consideraacutevel tempo

apoacutes a publicaccedilatildeo de seus livros mais famosos que ndash por mais incriacutevel que

possa ser ndash eu aprendi sobre sua teoria somente um pouco antes de 1920

236 K Goldstein ldquoDie ganzheitliche Betrachtung in der Medizinrdquo In T Brugsch (Ed) Einheitsbestrebungen in der Medizin Dresden Steinkopff 1933 144-158 237 Supra n 1 p 369

334

eu fiquei impressionado mas natildeo atraiacutedo particularmente por causa da

aplicaccedilatildeo exclusiva do meacutetodo das ciecircncias naturais na tentativa de

compreender o comportamento e a interpretaccedilatildeo mecanicista resultante

dele Eu reconheci a similaridade entre os mecanismos psicanaliacuteticos e os

meus mecanismos bioloacutegicos mas apoacutes uma avaliaccedilatildeo cuidadosa eu percebi

a diferenccedila entre eles no que diz respeito a seu significado para o

comportamento normal e patoloacutegico Eu gostaria de salientar que eu fui

incentivado em minha interpretaccedilatildeo dos ldquosintomasrdquo pela suposiccedilatildeo de

Freud de que natildeo devem ser considerados fatos simples mas eles se tornam

compreensiacuteveis somente com relaccedilatildeo ao seu significado para o indiviacuteduo238

Eu fui mais influenciado no que diz respeito ao meu interesse em muitos

problemas que Freud tinha colocado em primeiro plano Eu sempre admirei

o gecircnio de Freud e tentei lhe fazer justiccedila mas nunca escondi a minha

oposiccedilatildeo fundamentada em uma anaacutelise cuidadosa de sua proacutepria descriccedilatildeo

dos fenocircmenos

Em minha atitude geral mais otimista eu me senti mais perto

de Adler Eu encontrei uma seacuterie de semelhanccedilas entre meus conceitos e os

seus os quais eu infelizmente conheci somente mais tarde Mas eu vejo o

problema das relaccedilotildees interpessoais de um modo um pouco diferente da

maneira como ele faz Eu percebo algumas semelhanccedilas igualmente com as

ideias de Fromm de Karen Horney e de Sullivan

Eu devo dizer que a principal diferenccedila entre estes escritores e

eu mesmo eacute que por mais que tenham posto a personalidade no primeiro

plano eles natildeo deram suficiente importacircncia ao fenocircmeno da existecircncia

Uma explicaccedilatildeo para isto deve ser que minha abordagem se originou na

anatomia na fisiologia e na observaccedilatildeo cliacutenica natildeo soacute dos neuroacuteticos e dos

psicoacuteticos mas particularmente de pacientes orgacircnicos Em tais pacientes

muitos fenocircmenos que satildeo essenciais para a terapia podem ser vistos mais

claramente do que naqueles com doenccedilas nervosas funcionais

238 K Goldstein ldquoDie Beziehungen der Psychoanalyse zur Biologierdquo In Sitzungshet II allg Aumlrzl Konge Psychother Leipig Hierzel 1927 15-52

335

Por uacuteltimo eu gostaria de mencionar a influecircncia das ideias

filosoacuteficas especialmente aquelas de Kant Ernst Cassirer e Edmund

Husserl Minha introduccedilatildeo do conceito de ldquoexistecircnciardquo na interpretaccedilatildeo do

comportamento humano ndash tal como ela se desenvolveu a partir das

observaccedilotildees ndash em uacuteltima anaacutelise remonta agrave teoria transcendental do

conhecimento de Kant

Como meu conceito parece ter semelhanccedila com aquele com base

na ldquopsiquiatria existencialrdquo eu gostaria de sublinhar que natildeo se desenvolveu

com relaccedilatildeo a este uacuteltimo e que haacute diferenccedilas essenciais entre os dois Eu

concordo com o conceito existencialista na medida em que tambeacutem eu nego

que os fenocircmenos bioloacutegicos particularmente a existecircncia humana possam

ser compreendidos pela aplicaccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais Mas eu

difiro no significado do termo existecircncia Significa para mim um conceito

epistemoloacutegico baseado em observaccedilotildees fenomenoloacutegicas que nos permitem

descrever o comportamento normal e patoloacutegico e dar uma orientaccedilatildeo clara

para a terapia Eacute uma espeacutecie de antropologia filosoacutefica A anaacutelise existencial

e a psiquiatria por sua vez pretendem principalmente uma interpretaccedilatildeo

ontoloacutegica do ldquohomem como um serrdquo em situaccedilotildees normais e patoloacutegicas

Desta diferenccedila resulta uma atitude diferente para com a

psicanaacutelise Tomando a inaplicabilidade do meacutetodo das ciecircncias naturais

com seriedade eu natildeo vejo nenhuma possibilidade de chegar a um acordo

com a psicanaacutelise que eacute baseada neste meacutetodo Sem negar que alguns

resultados da psicanaacutelise possam vir a ser uacuteteis para o novo conceito ndash eacute

claro apenas se lhes for dada uma nova interpretaccedilatildeo do ponto de vista239

existencial ndash eu natildeo posso aceitar a opiniatildeo de que ambas as disciplinas

possam ser coordenadas e harmonizadas Eu penso que tal tentativa natildeo faz

senatildeo complicar as questotildees e tornaacute-las confusas

239 Supra No 42

336

Textos de candidatura ao Collegravege de France240

Maurice Merleau-Ponty Traduccedilatildeo de Rodrigo V Marques

Tiacutetulos e trabalhos ndash Projeto de Ensino241

Curriculum vitaelig - Nascido em 14 de marccedilo de 1908 em Rochefort-sur-mer (Charente maritime) - Aluno da Eacutecole Normale Supeacuterieure (1926-30) - Agreacutegeacute242 de filosofia (1930) - Serviccedilo militar legal (1930-31) - Professor no liceu de Beauvais (1931-33) - Bolsista do Centro Nacional da Pesquisa Cientiacutefica (1933-34) - Professor no liceu de Chartres (1934-35) - Agreacutegeacute reacutepeacutetiteur243 de filosofia na Eacutecole Normale Supeacuterieure (1935-39) - Mobilizado para o 5ordm Regimento de Infantaria depois no Eacutetat-Major da 59a Division

leacutegegravere de infantaria (outubro de 1939 ndash setembro de 1940) - Professor no liceu Carnot (1940-44) - Professor do Primeiro Superior no liceu Condorcet (1944-45) - Docteur egraves lettres244 (julho de 1945) - Mestre de Conferecircncias depois professor na Faculdade de Letras de Lyon (1945-48) - Licenccedila (Congeacute drsquoinactiviteacute) (missatildeo na Universidade do Meacutexico) (1948-1949) - Mestre de Conferecircncias depois professor sem cadeira na Faculdade de Letras de

Paris (1949-51) - Encarregado de conferecircncias na Eacutecole Normale Supeacuterieure (1946-49) - Membro do juacuteri do concurso de entrada na Eacutecole Normale Supeacuterieure (1947-50)

Publicaccedilotildees

- A Estrutura do Comportamento (1941) - Fenomenologia da Percepccedilatildeo (1945) - Humanismo e Terror (1947) - Sentido e natildeo-sentido (coletacircnea de estudos e ensaios 1948)245

240 Os dois textos de Merleau-Ponty cujas traduccedilotildees apresentamos aqui sob o tiacutetulo de ldquoTextos de canditatura ao Colleacutege de Francerdquo encontram-se tambeacutem em Merleau-Ponty Parcours deux Paris Verdier 1951 poreacutem editados separadamente (Nota do Tradutor doravante NT) 241 Tiacutetulos e trabalhos Projeto de Ensino Centro de Documentaccedilatildeo Universitaacuteria1951 18 paacuteginas datilografadas1951 XX Texto de 1951 Titres et Travaux Projet drsquoenseignement In Parcours Deux 1951-1961 Paris Verdier 2000 Conforme nota do editor francecircs [Noacutes publicamos o conjunto do dossiecirc concernente agrave candidatura de Maurice Merleau-Ponty ao Collegravege de France (a eleiccedilatildeo ocorreu em fevereiro de 1952) ldquoTiacutetulos e trabalhos ndash Projeto de ensinordquo texto impresso pelo Centro de documentaccedilatildeo universitaacuteria em 1951 (ensino torna-se ensino no tiacutetulo)] (Nota do Editor francecircs doravante N E) 242 Agreacutegeacute Professor auxiliar (N T) 243 Agreacutegeacute reacutepeacutetiteur Professor auxiliar concursado (N T) 244 Doutor em Letras (N T) 245 [La Structure du Comportement PUF novembro de 1942 2ordfed 1949 e seguintes precedido de ldquoUne philosophie de lrsquoambiguumliteacuterdquo por Alphonse de Waelhens col ldquo Quadrigerdquo 123 1990 Pheacutenomeacutenologie de la perception Gallimard 1945 col ldquoTelrdquo 4 1976

337

- Artigos natildeo reunidos em volume

- ldquoO primado da percepccedilatildeo e suas consequumlecircncias filosoacuteficasrdquo (comunicaccedilatildeo agrave Sociedade Francesa de Filosofia em marccedilo de 1947)

- ldquoLeitura de Montaignerdquo (1947) - ldquoNota sobre Maquiavelrdquo (1949) - ldquoSobre a fenomenologia da linguagemrdquo (comunicaccedilatildeo no Primeiro Coloacutequio

internacional de fenomenologia Bruxelas 1951) - ldquoO filoacutesofo e a sociologiardquo (1951) - ldquoO homem e a adversidaderdquo (conferecircncia nos Encontros Internacionais de

Genegraveve 1951)246

Trabalhos e projeto de ensino

I Primeiros trabalhos

Nossos primeiros trabalhos publicados se dedicam a um

problema que eacute constante na tradiccedilatildeo filosoacutefica mas que eacute posto de uma

maneira mais aguda desde o desenvolvimento das ciecircncias do homem a

ponto de conduzir a uma crise de nosso saber simultacircnea agrave de nossa

filosofia Trata-se da discordacircncia entre a visatildeo que o homem pode ter de si

mesmo pela reflexatildeo ou pela consciecircncia e a que obteacutem religando suas

condutas a condiccedilotildees exteriores das quais dependem manifestamente

O homem se apresenta sob o primeiro aspecto como

absolutamente livre Ele natildeo pode reconhecer por verdade senatildeo aquilo de

que tenha consciecircncia Eacute ele quem daacute por conseguinte um sentido a todos

os fatos que se lhe apresentam Ele constitui em uma autonomia absoluta

todo ser e todo valor e nada pode vir de fora no sujeito pensante Esta

perspectiva do homem sobre si mesmo ou este contato consigo aparece em

grande parte dos filoacutesofos como absolutamente irrecusaacuteveis e vaacutelidas contra

Humanisme et Terreur Gallimard 1947 col ldquoIdeacuteesrdquo 432 1980 Sens et Non-sens Nagel 1948 nova ediccedilatildeo Gallimard 1995 col ldquoBibliothegraveque de Philosophierdquo] (N E) 246 [Todos os artigos foram publicados desde entatildeo em volume Le Primat de la perception et ses consequences philosophiques (comunicaccedilatildeo agrave Sociedade Francesa de Filosofia sessatildeo de 23 de novembro de 1946 publicado no Boletim da Sociedade Francesa de Filosofia tomo XLI 4 outubro-dezembro de 1947 p 119-135 e 135-153) precedido de ldquoProjeto de trabalho sobre a natureza da Percepccedilatildeordquo 1933 e de ldquoA Natureza da Percepccedilatildeordquo 1934 ediccedilotildees Cynara-Verdier 1989 2ordf ed 1996 Os outros em Signes Gallimard 1960 retomado no Eacuteloge de la philosophie et autres essais col ldquoFolio essaisrdquo 118 1994 com exceccedilatildeo de ldquoO homem e a adversidaderdquo] (N E)

338

todo argumento que se possa lhe opor Sunt quaeligdam quaelig quilibet debeat

potius quam rationibus persuaderi (Descartes)247

E todavia desenvolveu-se todo um saber histoacuterico e psicoloacutegico

do homem que o considera do ponto de vista do espectador estrangeiro e

esclarece sua dependecircncia em relaccedilatildeo ao meio fiacutesico orgacircnico social e

histoacuterico a ponto de fazecirc-lo aparecer como um objeto condicionado

Parece impossiacutevel renunciar a alguma das duas perspectivas Se

recusaacutessemos o testemunho da consciecircncia arrancariacuteamos o sujeito de toda

certeza ateacute mesmo daquelas que se poderia buscar no conhecimento

exterior do homem Mesmo para construir um saber positivo eacute preciso que

eu me assegure de ter acesso aos meus proacuteprios pensamentos e de poder

apreciar a validade intriacutenseca deles Se eu sou apenas um produto do meio e

da histoacuteria eu assisto ao desenrolar de meus acontecimentos sem ser capaz

de discernir o seu sentido nem de distinguir em mim o verdadeiro do falso

Todo saber supotildee a primeira verdade do cogito E todavia eacute manifesto que

pelas vias curtas da reflexatildeo obtemos de noacutes mesmos na maioria das vezes

soacute um conhecimento truncado Nosso conhecimento de noacutes mesmos deve

muito mais ao conhecimento exterior do passado histoacuterico agrave etnografia agrave

patologia mental por exemplo do que agrave elucidaccedilatildeo direta de nossa proacutepria

vida

Eacute preciso portanto compreender como o homem eacute

simultaneamente sujeito e objeto primeira pessoa e terceira pessoa

absoluto de iniciativa e dependente ou antes eacute preciso revisar categorias

que se as mantiveacutessemos fariacuteamos renascer o conflito perpeacutetuo do saber

positivo e da filosofia e deixariacuteamos face a face um saber empiacuterico rico mas

cego e uma consciecircncia filosoacutefica que vecirc bem o proacuteprio do homem mas que

natildeo sabe que eacute nascida e diante da qual os acontecimentos exteriores que a

concernem mais diretamente permanecem desprovidos de sentido

Esta revisatildeo supotildee uma dupla abordagem de nossa condiccedilatildeo Eacute

preciso por um lado seguir o desenvolvimento espontacircneo do saber

247 ldquoExistem certas coisas das quais cada um deveria experimentar por si mesmo mais do que ser persuadido por razotildeesrdquo (N T)

339

positivo perguntando-nos se ele reduz verdadeiramente o homem agrave condiccedilatildeo

de objeto e por outro lado reexaminar a atitude reflexiva e filosoacutefica

procurando se ela nos autoriza verdadeiramente a nos definir como sujeito

incondicionado e intemporal Talvez estas pesquisas convergentes acabem

por colocar em evidecircncia um meio comum da filosofia e do saber positivo e

por nos revelar aqueacutem do sujeito e do objeto puro como que uma terceira

dimensatildeo onde nossa atividade e nossa passividade nossa autonomia e

nossa dependecircncia deixariam de ser contraditoacuterias

Noacutes tentamos a princiacutepio um esforccedilo deste gecircnero no que

concerne agraves relaccedilotildees entre o sujeito e as condiccedilotildees orgacircnicas de sua vida

tocando em outros termos o problema tradicional das relaccedilotildees entre alma e

corpo A percepccedilatildeo uma vez que estaacute na junccedilatildeo das duas ordens devia

tornar-se nosso tema e eacute sobre ela que versam nossos dois primeiros

trabalhos publicados um A Estrutura do Comportamento considerando do

exterior o homem que percebe e buscando liberar o sentido vaacutelido das

pesquisas experimentais que o abordam do ponto de vista do espectador

estrangeiro outro Fenomenologia da Percepccedilatildeo situando-se no interior do

sujeito para mostrar primeiramente como o saber adquirido nos convida a

conceber suas relaccedilotildees com seu corpo e seu mundo e enfim por esboccedilar

uma teoria da consciecircncia e da reflexatildeo que torne possiacuteveis estas relaccedilotildees

1 A Estrutura do Comportamento

A insuficiecircncia das alternativas claacutessicas do objeto e do sujeito

do mecanicismo e do vitalismo pareceu-nos evidente ao considerar a

histoacuteria das noccedilotildees de reflexo e de comportamento

Concordou-se durante muito tempo em reconhecer no homem

um primeiro niacutevel de atividade maquinal automaacutetica ou reflexa definida

pela correspondecircncia de um estiacutemulo de um trajeto nervoso preestabelecido

e de uma resposta constante caracteriacutestica deste estiacutemulo e deste arco

reflexo Esta concepccedilatildeo mecanicista da atividade nervosa elementar era

algumas vezes estendida aos comportamentos superiores tratados entatildeo

como simples complicaccedilotildees da conduta reflexa por exemplo no

340

behaviorismo americano Em outros autores agraves condutas elementares eram

sobrepostas instacircncias superiores e muitos psicoacutelogos admitiam que na

percepccedilatildeo por exemplo a atividade do juiacutezo vinha cobrir os dados sensiacuteveis

que dependem da organizaccedilatildeo nervosa Mas se foi ou natildeo colocado acima de

uma outra instacircncia o mecanicismo era admitido sem dificuldade em sua

base

Ora o desenvolvimento das pesquisas mostra que esta convicccedilatildeo

eacute fundada muito mais sobre prejulgamentos filosoacuteficos do que sobre as

indicaccedilotildees dos fatos A resposta reflexa definida como o fizemos mais acima

aparece como um fato excepcional Ela corresponde antes a dissociaccedilotildees

patoloacutegicas ou outras vezes a condutas altamente diferenciadas do que agrave

lei do funcionamento nervoso elementar O que eacute primordial no organismo

satildeo respostas que se dirigem a uma situaccedilatildeo ao menos rudimentar a uma

constelaccedilatildeo de estiacutemulos e que variam com as formas desta constelaccedilatildeo

tanto quanto a sua natureza ou ao seu sentido quanto aos instrumentos

anatocircmicos que utilizam Tudo se passa como se entre os estiacutemulos e as

reaccedilotildees se interpusesse um fenocircmeno transversal de estruturaccedilatildeo que pode

ser mais ou menos rico e confere agraves respostas um sentido mais ou menos

complexo mas que natildeo estaacute jamais inteiramente ausente e que atesta que

mesmo neste niacutevel o organismo natildeo funciona como uma maacutequina

Quanto ao comportamento aprendido ele natildeo se explica de uma

maneira suficiente pela simples associaccedilatildeo ao reflexo propriamente dito de

estiacutemulos novos e cada vez menos naturais como queria a ceacutelebre concepccedilatildeo

de Pavlov Para que uma conduta se instale no organismo eacute preciso

primeiramente que seja ou torne-se sensiacutevel a uma certa configuraccedilatildeo do

objeto visado que guie a resposta motriz e em regra o desenvolvimento

meloacutedico Os autores mesmos que se obrigam a mais estrita objetividade satildeo

levados para darem conta da aquisiccedilatildeo dos haacutebitos a introduzir

consideraccedilotildees de niacutevel de estruturaccedilatildeo de insight que fazem a diferenccedila

entre um espasmo e uma accedilatildeo adaptada um sucesso fortuito e uma boa

soluccedilatildeo e que anunciam uma relaccedilatildeo interna entre o sentido da situaccedilatildeo e o

da resposta

341

A evoluccedilatildeo da fisiologia do sistema nervoso central a da teoria

das localizaccedilotildees cerebrais em particular oferece indicaccedilotildees convergentes As

localizaccedilotildees hoje reconhecidas natildeo significam mais que em uma parte do

ceacuterebro localizam-se as funccedilotildees consideradas Admite-se de um modo

geral que o menor fenocircmeno visual supotildee processos nervosos em todo o

coacutertex Elas significam apenas que a funccedilatildeo encontra no territoacuterio

considerado um instrumento ou como que um ponto de apoio

indispensaacutevel O centro natildeo eacute mais um depoacutesito onde se encontrariam

conservados os aparelhos preestabelecidos de tal percepccedilatildeo cromaacutetica ou de

tal movimento de articulaccedilatildeo Eacute uma regiatildeo especializada na preparaccedilatildeo

destas respostas mas que natildeo as provoca senatildeo com a ajuda da atividade

total do sistema nervoso e improvisando-as ativamente nos modos de

funcionamento que de um caso a outro satildeo qualitativamente diferentes

Resulta disto que o espaccedilo nervoso natildeo eacute feito de partes exteriores nem

definiacutevel por determinaccedilotildees simplesmente numeacutericas que o ceacuterebro

funcional natildeo eacute uma massa de mateacuteria que existe em si ao modo das coisas

e que natildeo se deixa descrever sem se servir do universo da qualidade do

valor e da significaccedilatildeo

Mas se nos limitarmos a esta conclusatildeo arriscariacuteamos nos

enganar sobre o sentido das pesquisas contemporacircneas Poder-se-ia

acreditar que descobrindo no coraccedilatildeo do reflexo como que uma visatildeo da

situaccedilatildeo agrave qual responde no coraccedilatildeo do sistema nervoso central uma

regulaccedilatildeo das partes pelo todo e um processo de distribuiccedilatildeo ordenada a

fisiologia moderna restaura as concepccedilotildees vitalistas ou idealistas que satildeo a

antiacutetese tradicional do mecanicismo e faz-nos voltar da mateacuteria agrave vida ou ao

espiacuterito Ora ao contraacuterio o que parece notaacutevel nas pesquisas destes

cinquenta uacuteltimos anos eacute que natildeo se opotildeem menos agrave antiacutetese vitalista ou

idealista do que agrave tese mecanicista que nos conduz precisamente a

reexaminar a antinomia que fazem de si mesmas um apelo agrave iniciativa

filosoacutefica para fazer pensaacutevel um fenocircmeno que natildeo eacute mais mateacuteria mas que

natildeo eacute consciecircncia ou espiacuterito O corpo funcional tem uma significaccedilatildeo

ambiacutegua ele natildeo eacute partes extra partes temos visto mas natildeo eacute mais ideia Se

o sentido das localizaccedilotildees cerebrais mudou a sua existecircncia natildeo eacute posta em

342

duacutevida por nenhum autor seacuterio Isto significa que se o funcionamento do

organismo natildeo eacute compreensiacutevel senatildeo por consideraccedilotildees de qualidade ou de

valor ele se estende entretanto no espaccedilo sujeita-se a condiccedilotildees locais

instala-se no corpo e permanece sensiacutevel a toda perturbaccedilatildeo somaacutetica Caso

se possa dizer que nossa atividade reflexa instintiva ou habitual tem um

interior visto que leva em conta a relaccedilatildeo entre os estiacutemulos e a significaccedilatildeo

deles em uma situaccedilatildeo de conjunto ainda eacute porque se adapta apenas a

fracas variaccedilotildees desta situaccedilatildeo porque natildeo possui entatildeo o seu sentido

como a inteligecircncia pode fazecirc-lo e porque enfim o sujeito do reflexo do

instinto ou do haacutebito natildeo eacute um espiacuterito Ele oferece o paradoxo de uma

apreensatildeo que permanece simples afinidade e natildeo vai ateacute o conhecimento O

organismo natildeo eacute cego mas a atividade prospectiva pela qual eacute atravessado

se apoacuteia sobre todo o edifiacutecio das organizaccedilotildees locais e parciais Ela as

transfigura mas precisa delas A intencionalidade que se encontra no

organismo natildeo eacute a agilidade pura do espiacuterito Trata-se menos de uma

atividade de significaccedilatildeo ideal que destes fenocircmenos de estrutura

configuraccedilatildeo ou forma (Gestalt) dos quais os psicoacutelogos falaram e nos quais

a referecircncia das partes ao todo permanece impliacutecita e vivida mais do que

pensada

Eacute sabido por conseguinte que a anaacutelise do corpo humano natildeo

pode se fechar sobre si mesma como se o corpo fosse uma coisa Ela nos

potildee em presenccedila de uma relaccedilatildeo com o meio cujo quadro geral eacute como um a

priori do organismo considerado mas esta relaccedilatildeo com o meio natildeo eacute

imputaacutevel a um espiacuterito evoca antes uma consciecircncia do tipo perceptivo

que tem sua loacutegica mas ainda engajada nas configuraccedilotildees concretas das

quais o sujeito natildeo conquistou a significaccedilatildeo ideal O comportamento revela

bem uma diversidade de estruturas qualitativamente distintas onde se

pronuncia sempre mais agrave medida que se eleva nas seacuteries animais a

preponderacircncia das condiccedilotildees endoacutegenas e por assim dizer a iniciativa do

organismo poreacutem para nos limitarmos ao ponto de vista do espectador

estrangeiro ainda natildeo vimos algueacutem aparecer Isto soacute seraacute possiacutevel no

momento em que a conduta da linguagem obrigar o espectador estrangeiro a

estabelecer com o espetaacuteculo (o ouvinte com o que fala) relaccedilotildees de

343

verdadeira reciprocidade e a se identificar verdadeiramente com o que

percebe

Se natildeo pode fazer mais esta primeira anaacutelise nos reconduz ao

menos de uma concepccedilatildeo objetivista do corpo a uma estrutura do

comportamento que o destaca jaacute da ordem das coisas o reintegra como

totalidade a compreender-se na percepccedilatildeo do espectador Ela nos autorizava

destarte a empreender uma anaacutelise da percepccedilatildeo em noacutes uacutenica capaz de

esclarecer inteiramente a natureza do sujeito que percebe e de operar a

junccedilatildeo procurada entre o ponto de vista objetivo e o ponto de vista reflexivo

Eacute o que tentamos fazer em nossa obra principal

2 Fenomenologia da percepccedilatildeo

No comeccedilo o filoacutesofo que reflete sobre a percepccedilatildeo se retira do

corpo que habita e ateacute mesmo das coisas agraves quais o corpo se direciona no

exerciacutecio da vida ele se faz sujeito contemplativo Correlativamente as

coisas percebidas se afastam de noacutes tornam-se indiferentes para noacutes e

doravante satildeo apenas definiacuteveis por um certo nuacutemero de caracteriacutesticas e

pelas leis da sucessatildeo e da coexistecircncia que podemos descobrir entre elas O

corpo proacuteprio por sua vez natildeo eacute mais que um destes objetos elevado mais

tardiamente agrave dignidade do saber cientiacutefico mas como eles destinado a

uma explicaccedilatildeo por relaccedilotildees de funccedilatildeo agrave variaacutevel Em face de uma

consciecircncia filosoacutefica em primeira pessoa do sujeito cognoscente ou

transcendental que eacute apenas sujeito desdobra-se um universo de objetos

em terceira pessoa que satildeo apenas objetos

Esta atitude e esta filosofia necessaacuterias primeiramente para dar

ao conhecimento do mundo e agrave reflexatildeo do espiacuterito a postura e a audaacutecia

deles natildeo satildeo finalmente compatiacuteveis com um conhecimento mais maduro e

uma reflexatildeo mais radical Agrave medida que nosso conhecimento do homem se

desenvolve parece-nos entrever uma relaccedilatildeo completamente diferente entre

o homem que percebe e seu corpo e assistir a uma redescoberta do mundo

percebido que finalmente exigiria um novo exame da nossa noccedilatildeo de sujeito

e de espiacuterito

344

Torna-se por exemplo muito mais difiacutecil nas pesquisas

psiquiaacutetricas delimitar uma contribuiccedilatildeo psiacutequica e uma contribuiccedilatildeo

somaacutetica na doenccedila A alucinaccedilatildeo e em particular a famosa ilusatildeo dos

amputados que uma fisiologia cartesiana relacionaria a qualquer excitaccedilatildeo

das regiotildees nervosas de onde depende nossa percepccedilatildeo eacute hoje ligada a uma

imagem total ou a um esquema global do corpo no seu ambiente que teria

por funccedilatildeo ajustar o corpo aos objetos aqueacutem de toda percepccedilatildeo expressa

do corpo ou dos objetos Eacute somente por intermeacutedio desta funccedilatildeo precognitiva

que as lesotildees do corpo repercutem na consciecircncia que temos dele ou em

nossa percepccedilatildeo das coisas exteriores

De um modo geral meu corpo como esquema corporal torna-se

meu ponto de vista sobre o mundo Este natildeo eacute mais um mecanismo nem

muito menos um grupo de ldquosensaccedilotildees cinesteacutesicasrdquo eacute um centro de

perspectiva Mais eacute como minha tomada sobre o mundo sustenta a este

tiacutetulo toda minha vida pessoal como inversamente eacute sensiacutevel agraves suas

variaccedilotildees ele pode portanto apresentar sintomas cujas motivaccedilotildees satildeo

psicoloacutegicas como reciprocamente seus insucessos repercutem em todo o

equiliacutebrio pessoal

Uma funccedilatildeo como a motricidade durante muito tempo

decomposta em ldquorepresentaccedilotildees de movimentosrdquo por um lado e por outro

lado em fenocircmenos nervosos aparece hoje como indissoluvelmente

perceptiva e nervosa Todo movimento do corpo proacuteprio situa-se no fundo de

um certo ldquoprojeto motorrdquo e quando este projeto varia quando por exemplo

passamos do movimento de tomada (Greifen) ao movimento de designaccedilatildeo

(Zeigen) as leis do desenvolvimento motor satildeo diferentes mesmo se os

muacutesculos interessados satildeo os mesmos Projeto motor e movimento natildeo satildeo

dois fenocircmenos ligados mas como um uacutenico fenocircmeno com duas faces e

meus movimentos satildeo para mim bem menos deslocamentos objetivos aos

quais assistiria do que modalidades diversas de relaccedilatildeo global com o mundo

do qual meu corpo eacute o veiacuteculo

Uma funccedilatildeo como a sexualidade que parece estar e estaacute

estreitamente ligada a um certo aparelho orgacircnico desprende-se todavia

pouco a pouco na crianccedila de uma relaccedilatildeo mais vaga com o outro e com o

345

mundo que todas as circunstacircncias psicoloacutegicas da infacircncia contribuem

para definir e inversamente daacute agrave nossa histoacuteria pessoal como um tema que

deveraacute decifrar um certo modo de relaccedilatildeo carnal com as coisas e com os

outros Como por uma espeacutecie de osmose o corpo e o sujeito se difundem

um no outro Meu corpo torna-se meu na medida em que eu me encarne

nele

Ora esta redescoberta do corpo implica uma redescoberta do

mundo percebido O mundo ao qual estou ligado por relaccedilotildees preacute-loacutegicas do

esquema postural da motricidade e mesmo da sexualidade natildeo pode ser uma

soma de objetos dispostos diante de um sujeito contemplativo Uma teoria

cartesiana da percepccedilatildeo que faz dela uma ldquoinspeccedilatildeo do espiacuteritordquo para a

qual dados sensiacuteveis esparsos satildeo constituiacutedos em objetos representa-nos

antes certas deacutemarches cientiacuteficas ulteriores reunindo os elementos de um

mundo dissociado pela anaacutelise do que o ato originaacuterio que primeiramente

nos potildee em presenccedila de um mundo Na realidade a unidade dos diferentes

domiacutenios sensoriais a unidade das diversas propriedades de uma mesma

coisa natildeo satildeo o resultado de uma siacutentese preacutevia Ela eacute de direito Nossos

sentidos que funcionam no contexto de uma atividade uacutenica a do corpo

explorador retiram do exterior qualidades das quais sabemos de imediato

que satildeo tantas perspectivas sobre uma coisa uacutenica Mesmo se nosso

conhecimento da coisa permanece no comeccedilo global e confuso cada

sensaccedilatildeo aparece a si mesma como manifestaccedilatildeo de uma maneira de ser

uacutenica que define a coisa Noacutes lemos a substacircncia do vidro em sua

transparecircncia em sua rigidez no som que produz A unidade da coisa a do

mundo eacute portanto menos uma unidade de ordem loacutegica do que uma

unidade de ordem fisionocircmica fundada sobre nossa familiaridade com os

horizontes de um mundo que natildeo tivemos de construir peccedila por peccedila A

percepccedilatildeo mesma do espaccedilo terreno privilegiado das teorias claacutessicas da

percepccedilatildeo porque parece implicar bem como dizia Malebranche um juiacutezo

natural e como que uma geometria espontacircnea natildeo poderia estabelecer

entre as partes do percebido uma rede de relaccedilotildees que nos fazem ver este

objeto proacuteximo e pequeno aquele outro grande e afastado se primeiramente

natildeo tivesse realizado o que Wertheimer chama nossa ldquoancoragemrdquo em um

346

mundo visiacutevel se natildeo tivesse estabelecido ldquoniacuteveisrdquo em relaccedilatildeo aos quais em

seguida o proacuteximo e o longiacutenquo o grande e o pequeno o vertical e o

obliacutequo possam ter um sentido A concepccedilatildeo claacutessica da percepccedilatildeo como a

de uma operaccedilatildeo de juiacutezo nos aparece natildeo exatamente como falsa mas

antes como uma descriccedilatildeo sobre a superfiacutecie do mundo percebido sobre a

qual eacute preciso reencontrar funccedilotildees precognitivas de organizaccedilatildeo e de

estruturaccedilatildeo A distinccedilatildeo famosa da forma e da mateacuteria no mundo percebido

parece segunda e ulterior No percebido a mateacuteria jaacute eacute pregnante de uma

forma A forma natildeo eacute senatildeo a maneira pela qual o sensiacutevel se dispotildee sob

nossos olhos e se oferece agraves nossas visadas

Caso se admita esta dupla anaacutelise do corpo que percebe e do

mundo percebido ela natildeo poderia deixar intacta nossa concepccedilatildeo do sujeito

ou do espiacuterito Precisamos nos perguntar qual deve ser a natureza do sujeito

para que os fenocircmenos assim descritos sejam possiacuteveis Uma vez que cada

percepccedilatildeo parcial se daacute como retirada da unidade primordial da coisa e do

mundo eacute preciso que o sujeito esteja presente agrave totalidade do mundo mas

apreendida de um certo ponto de vista atraveacutes de uma certa perspectiva e

sobre um de seus ldquoperfisrdquo Eacute preciso em outros termos que nossa situaccedilatildeo

corporal seja ao mesmo tempo o que daacute agrave nossa visatildeo sua finitude e o que

nos inicia agrave verdade e ao mundo Descartes dizia que quando eu sinto o

vermelho estou bem seguro de senti-lo mas que eu posso anular mediante

a duacutevida a existecircncia do proacuteprio vermelho Todavia esta dissociaccedilatildeo natildeo eacute

possiacutevel Se eu entendo por vermelho aquilo mesmo que se oferece agrave minha

percepccedilatildeo a evidecircncia do sentir eacute tambeacutem a evidecircncia do que eacute sentido Eu

natildeo posso sentir o vermelho sem sentir que ele estaacute ali O proacuteprio do sujeito

(e o que o enraiacuteza na certeza e na verdade) eacute justamente de natildeo se assegurar

jamais de sua existecircncia proacutepria sem nela implicar a de seu objeto

intencional exatamente tal como lhe aparece neste instante O proacuteprio do

sujeito natildeo eacute a princiacutepio de ser uma ldquocoisa que pensardquo simplesmente mas

de se descobrir jaacute pensando alguma coisa engajado por seu corpo no mundo

com o qual estaacute em simpatia em razatildeo de um viacutenculo mais velho que sua

histoacuteria pessoal enfim de estar no mundo como por sua tarefa e por sua

vocaccedilatildeo A reflexatildeo filosoacutefica que potildee em suspenso nossas certezas

347

espontacircneas justamente se quer ser radical natildeo poderia ela mesma tomar-

se nem esquecer-se desta primeira iniciaccedilatildeo ao ser que a precede e que ela

tem de explicitar Ela consiste em desnudar em constatar como fato

primordial o que Husserl chamava Urdoxa para a qual antes de toda

reflexatildeo haacute para noacutes um mundo do ser e uma verdade O sujeito natildeo eacute

deste modo uma cera na qual as coisas viriam imprimir a marca delas mas

tampouco eacute uma consciecircncia fechada sobre seus proacuteprios acontecimentos

nem um pensamento fechado sobre suas proacuteprias ideias Eacute o que atraveacutes de

uma certa perspectiva sobre o mundo apercebe os caminhos que conduzem

a outras perspectivas mas ocupa sempre e unicamente uma

II Trabalhos em curso

Este retorno ao mundo percebido como ao nosso primeiro

contato com o ser por mais indispensaacutevel que seja ndash caso natildeo se queira

perder de vista a percepccedilatildeo ao assimilaacute-la a modalidades de conhecimento

ulterior ndash coloca por sua vez problemas aos quais o nosso trabalho estaacute

todavia consagrado haacute seis anos

Se o que dizemos eacute verdade a luz natural natildeo eacute a presenccedila

absoluta a si mesmo de um espiacuterito que por definiccedilatildeo seria saber de si O

sujeito que percebe natildeo tem jamais a experiecircncia de suas proacuteprias

percepccedilotildees senatildeo manuseando seu corpo o qual natildeo eacute para ele

transparente e cuja operaccedilatildeo lhe deixa escapar em uma larga medida o

resultado uacutenico a coisa o mundo ao lhe aparecer em plena claridade O

cogito eacute pois ao mesmo tempo indubitaacutevel e opaco Eacute do mundo da coisa

que nos vem primeiramente a luz que reflete em nossa percepccedilatildeo do

mundo Eacute na experiecircncia que faccedilo de um corpo explorador consagrado agraves

coisas e ao mundo de um sensiacutevel que me investe ateacute no mais individual de

mim mesmo e me atrai imediatamente da qualidade ao espaccedilo do espaccedilo agrave

coisa e da coisa ao horizonte das coisas quer dizer a um mundo jaacute aiacute que

estabelece minha relaccedilatildeo com o ser Eu estou antes situado nele do que

detenho o seu princiacutepio gerador ou a sua lei de desenvolvimento Deste ser

que transpareceria atraveacutes de uma percepccedilatildeo sempre parcial eacute preciso que

348

eu compreenda melhor como me eacute indicado e porque eu natildeo me contento

como os animais a julgar pelo seu comportamento com a frequentaccedilatildeo de

um meio porque tenho a ideia do mundo ou do ser precisamos ter exatidatildeo

do que em noacutes realiza este movimento espontacircneo da consciecircncia O homem

que percebe natildeo se limita a exercer os modos naturais que seu corpo lhe daacute

para ter acesso agraves coisas ele eacute tambeacutem e toda a sua percepccedilatildeo eacute

modificada o que busca apropriar-se da natureza das coisas recuperar as

verdades que a percepccedilatildeo em virtude de sua ambiguidade caracteriacutestica

oculta-lhe enquanto as desvela para ele

Eacute por uma abstraccedilatildeo metoacutedica que fingimos ao comeccedilar

encontrarmo-nos em um mundo mudo da percepccedilatildeo De fato o sujeito que

percebe verdadeiramente natildeo se imobiliza no espetaacuteculo Ele retoma as

relaccedilotildees agraves quais a percepccedilatildeo o iniciou esforccedila-se em fixaacute-las em totalizaacute-

las em tornaacute-las para ele disponiacuteveis ele pensa fala acrescenta aos gestos

naturais por supor que algum deles seja verdadeiramente pura natureza

uma gesticulaccedilatildeo e instituiccedilotildees linguiacutesticas agrave natureza uma cultura Eacute

entatildeo que lhe parece de uma maneira mais decisiva que pelo funcionamento

do aparelho perceptivo sair de sua inerecircncia individual Quando pensa

claramente e distintamente ele acredita tocar significaccedilotildees que natildeo lhe

valem somente que se imporiam com a mesma evidecircncia natildeo somente a

todo ser feito como ele mas ainda a todo ser seja ele qual for Ele tem a

experiecircncia da verdade Como isto eacute possiacutevel Noacutes que como dizia

Montaigne escapamos de noacutes mesmos na experiecircncia do sentir como

podemos nos reconquistar nesta dispersatildeo De resto uma vez que seremos

retirados do percebido e teremos apreendido nossa singularidade como

poderemos descobrir outros pensamentos ordenados assim como o nosso

em uma uacutenica verdade Noacutes que estamos inseridos por nosso nascimento

em um fluxo de pensamento ao qual ningueacutem mais nunca teraacute o mesmo

acesso imediato como podemos todavia estabelecer com o outro relaccedilotildees

de reciprocidade que o supotildeem nosso igual Todas estas dificuldades satildeo de

fato sobrepostas visto que percebemos o outro mas que esta percepccedilatildeo

aqui natildeo eacute mais simplesmente natural e precisamos examinar as suas

349

infraestruturas desfazer e refazer o tecido de operaccedilotildees criadoras do qual

nossa percepccedilatildeo do outro eacute o resultado

Para dizer a verdade estas questotildees apareciam jaacute em nosso

trabalho de 1945248 e se pudeacutessemos falar dele apenas brevemente

deveriacuteamos indicar desde entatildeo como o estudo da percepccedilatildeo natural nos

colocava em posse de um meacutetodo aplicaacutevel a estes problemas pois ela nos

habituava a um procedimento de reflexatildeo que nos eacute recomendado pela

situaccedilatildeo mesma daquele que reflete Toda reflexatildeo sendo um retorno sobre

os dados preacutevios tentativa de reconstituiccedilatildeo esforccedilo para retomar e

despertar o que jaacute estaacute instituiacutedo o mais alto ponto da reflexatildeo natildeo pode nos

dar a ilusatildeo de engendrar o que reencontramos ele consiste antes em

compreender em explicitar em retomar em seu sentido exato e originaacuterio

as teses da consciecircncia irrefletida do que em discuti-las em nome de outros

princiacutepios (Natildeo se vecirc onde poderiacuteamos buscaacute-las) Do mesmo modo que a

reflexatildeo sobre a experiecircncia perceptiva fez com que apercebecircssemos a tese

fundamental de nossa vida preacute-reflexiva que eacute a de que temos um mundo e

levados a descrever esta apariccedilatildeo do mundo sem nada lhe acrescentar

daquilo que pertence ao pensamento discursivo ou loacutegico sem nada

suprimir daquilo que nela anuncia jaacute um sujeito consagrado agrave verdade do

mesmo modo precisamos abordar em seguida o estudo do pensamento e

da cultura sem ceder agrave tentaccedilatildeo de alguma reduccedilatildeo sem buscar explicaacute-los

pela parte superior ou inferior

Eacute-nos proibido ndash ao estudar o pensamento a linguagem e a

comunicaccedilatildeo com o outro ndash sobrevoar os fatos que o saber positivo reuniu e

buscar neles apenas um ponto de apoio para passar a construccedilotildees

especulativas Natildeo se trata para noacutes de sobrepor ao fluxo da experiecircncia

perceptiva um Pensamento Universal suposto dado em cada um de noacutes

Isto seria nomear as dificuldades ao inveacutes de resolvecirc-las Precisamos

pesquisar como este fluxo se deposita no sujeito falante em direccedilatildeo a

significaccedilotildees interindividuais examinando os materiais concretos desta

248 Primeira parte cap 6 e Terceira parte cap 1 [Nota do autor]

350

operaccedilatildeo os instrumentos linguiacutesticos que ela se constroacutei Noacutes precisamos

ver como nossa encarnaccedilatildeo mesma pelo uso linguiacutestico que fazemos de nosso

corpo eacute o que nos permite de uma certa maneira natildeo permanecer confinados

nos limites de nosso ponto de vista assim como eacute definido pelo corpo ldquonaturalrdquo

Mas a nossa pesquisa ao mesmo tempo permanece filosoacutefica

Nosso tratamento dos fatos permanece distinto do tratamento indutivo e

cientiacutefico Natildeo se trata para noacutes de considerar a palavra ou o pensamento

como a simples soma de fatos da liacutengua ou de fatos do pensamento tais

como satildeo produzidos aqui ou ali nesta ou naquela data Em cada um deles

tentamos apreender o que retoma e sublima o precedente antecipa o

seguinte a emergecircncia de uma estrutura de um campo de experiecircncia que

fazem deles mais do que um acontecimento uma instituiccedilatildeo Aqui o fato ndash

tal estruturaccedilatildeo do tempo no verbo tal reorganizaccedilatildeo do sistema da

declinaccedilatildeo ndash natildeo eacute a expressatildeo de uma lei anterior a ele mesmo e para

conhececirc-lo em todo o seu sentido natildeo basta como queriam as concepccedilotildees

claacutessicas da induccedilatildeo buscar ali a encarnaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo invariaacutevel de

sucessatildeo ou de coexistecircncia Ele vira do avesso os dados mesmos do

problema linguiacutestico realiza um estado de equiliacutebrio do qual ele mesmo

colocou certas condiccedilotildees e eacute apenas por uma ilusatildeo retrospectiva que

poderiacuteamos encontraacute-lo jaacute preacute-formado no passado que o reinterpreta Satildeo

estes fatos que trazem uma nova estrutura que chamamos fenocircmenos A

partir deles natildeo se pode tratar de um simples inventaacuterio Eles apenas

aparecem a um pensamento que se arrisca a decifraacute-los a compreendecirc-los

e na sequecircncia elevaacute-los acima da condiccedilatildeo de acontecimentos efecircmeros ou

de acidentes Este deciframento das estruturas que permite unicamente

encontrar alguma racionalidade na histoacuteria de uma liacutengua e na histoacuteria em

geral sem fazer da histoacuteria um novo deus e reconhecer um interior nos

fatos humanos sem abandonaacute-los ao arbiacutetrio de construccedilotildees a priori eacute para

noacutes caracteriacutestica de uma filosofia concreta Acrescentemos que o seu uso

estaacute bem longe de estar reservado unicamente aos filoacutesofos sobretudo na

ciecircncia de hoje mais afastada do que nunca de se limitar agrave induccedilatildeo

empiacuterica mais inclinada do que nunca a fazer com que suas revisotildees versem

natildeo somente sobre alguns detalhes do saber mas ateacute mesmo sobre suas

351

categorias mais gerais Eacute frequentemente nos trabalhos dos cientistas que

encontramos mais filosofia latente do que gostariacuteamos de explicitar

Essa concepccedilatildeo do meacutetodo filosoacutefico natildeo estaacute sem analogia com

o que Bergson indicou algumas vezes quando por exemplo falou249 de uma

filosofia moldada sobre a figura mesma de nosso mundo e que deveria ser

outra em um mundo feito de outro modo ou quando pedia aos filoacutesofos

para seguir as ldquolinhas dos fatosrdquo e para buscar a intuiccedilatildeo no

entrecruzamento destas linhas ou enfim quando falava de uma filosofia

quase experimental a se realizar em colaboraccedilatildeo e natildeo pelo esforccedilo de uma

uacutenica pessoa Noacutes duvidamos somente que o proacuteprio Bergson tenha aplicado

sempre o meacutetodo que tinha definido e que por exemplo sua intuiccedilatildeo da

vida seja tatildeo precisa tatildeo articulada tatildeo diferenciada que seria necessaacuteria

para fazer justiccedila aos fenocircmenos muito diferentes a partir dos quais a

obteve A uacutenica intuiccedilatildeo de uma vida ora dilatada ora contraiacuteda apaga

talvez os cortes as transformaccedilotildees que o meacutetodo fizera para marcar iguala

talvez todas as diferenccedilas qualitativas na monotonia da mudanccedila pura Eacute

antes em Husserl que encontrariacuteamos verdadeiramente reconciliadas a

inspiraccedilatildeo concreta e a filosofia em sua noccedilatildeo de ldquofenocircmenordquo que

encontrariacuteamos a junccedilatildeo de um saber efetivo e da reflexatildeo em seu meacutetodo

de leitura das significaccedilotildees o de uma filosofia aberta que natildeo eacute a serva do

saber indutivo mas que natildeo se desinteressa dos fatos

III Projeto de ensino

Nos nossos trabalhos em preparaccedilatildeo e no ensino que dariacuteamos

consequentemente proporiacuteamo-nos a fazer com que aparecessem atraveacutes

dos fatos da cultura as transformaccedilotildees de estrutura as iniciativas de

princiacutepio que recobrem e que dependem do exame filosoacutefico e isto sem nos

dar de antematildeo uma racionalidade absoluta pois se noacutes o fizeacutessemos o

problema estaria resolvido antes de ser posto e a comunicaccedilatildeo seria muito

faacutecil sem isolar e justapor as consciecircncias em nome de qualquer definiccedilatildeo

249 La Penseacutee et le Mouvant [Nota do autor] [PUF 1938 Col ldquoQuadrigerdquo 78 1993]

352

do sujeito como contato cego consigo visto que a comunicaccedilatildeo sendo

ilusoacuteria o problema entatildeo ainda estaria ignorado Precisaria tomar o ponto

de partida em nossa situaccedilatildeo efetiva de homens que falam uns com os

outros aspiram a verdades e as vecircem transparecer e que todavia

elaboram-nas em contato do que haacute de mais individual neles e natildeo as

encontrando jamais em uma evidecircncia absoluta Como o gesto nos leva em

direccedilatildeo ao objeto percebido sem que tenhamos de calcular a distacircncia eacute na

obscuridade da linguagem que de repente oferece-se a noacutes um pensamento

verdadeiro Precisamos portanto ver aparecer o pensamento na linguagem

e talvez ateacute mesmo a linguagem nos modos de expressatildeo preacute-linguiacutesticas que

ela transforma mas que ela continua

1 A expressatildeo e a verdade

Jaacute as condutas e os gestos do outro satildeo compreendidos segundo

uma loacutegica taacutecita que eacute preciso aprender a conhecer o que seria apenas para

ver no que tem de original a loacutegica expressa da linguagem Haacute muita

confusatildeo em certas tentativas da grafologia e da fisionomia moderna A

escrita e a estrutura do corpo natildeo bastam para assegurar uma percepccedilatildeo

precisa do outro pela simples razatildeo de que o ato de escrever responde a

uma atitude muito especial na qual o homem inteiro estaacute bem longe de se

exprimir de que as proporccedilotildees inatas do corpo natildeo podem nos dizer nada

sobre a histoacuteria individual de um sujeito Se persistirmos em buscar em

testemunhos tatildeo incompletos e abstratos a essecircncia de uma personalidade

isto soacute pode ser por uma espeacutecie de preguiccedila que nos faz negligenciar as

manifestaccedilotildees complexas do discurso e da conduta em benefiacutecio de algumas

notaccedilotildees numeacutericas simples e faz com que prefiramos o segredo de um

ldquodestinordquo agrave foacutermula de uma ldquocondutardquo Pode-se mostrar que mesmo as

expressotildees emocionais da dor e da alegria satildeo evidentemente ambiacuteguas

desde o momento em que se apresenta uma parte do rosto somente ou o

353

rosto sem o corpo ou o corpo sem a situaccedilatildeo250 Natildeo eacute preciso entatildeo supor

uma percepccedilatildeo do outro que nos daria dele inteiramente uma imagem total e

exata mas natildeo eacute menos verdade que haacute uma leitura das expressotildees em

funccedilatildeo da situaccedilatildeo que mesmo a voz a silhueta o modo de andar tecircm um

valor expressivo a confirmar pelo exame das condutas do sujeito diante das

situaccedilotildees caracteriacutesticas e que este deciframento da expressatildeo pode ser de

uma seguranccedila espantosa Como natildeo repousa sobre um conhecimento

rigoroso sobre um sistema de correspondecircncia precisa entre signos e

significaccedilotildees eacute preciso admitir realmente que as expressotildees do outro nos

falam que elas datildeo lugar de nossa parte a uma retomada tatildeo pouco

calculada quanto os gestos de nosso corpo em face dos objetos Eacute o que faz

com que sejamos capazes de adivinhar em outrem emoccedilotildees das quais noacutes

mesmos natildeo temos a experiecircncia que sob certos aspectos o conhecimento

do outro estaacute de antematildeo no conhecimento de si e que os tipos de emoccedilotildees

inscritos em nossa cultura orientam nossa experiecircncia efetiva como o

mostra por exemplo o que haacute de prematuro nos conflitos da vida infantil

Nosso corpo em nossa experiecircncia do outro funciona como um aparelho de

compreender e por esta espeacutecie de afinidade que tem com algumas

condutas que ainda natildeo praticou eacute algumas vezes capaz de inferecircncias de

identificaccedilotildees de conclusotildees cegas mas seguras

O estudo desta loacutegica perceptiva (da qual definimos o princiacutepio a

propoacutesito da percepccedilatildeo das coisas naturais) receberia um aumento de

precisatildeo de uma anaacutelise da expressatildeo pictural O proacuteprio pintor para olhar

o objeto e para pintaacute-lo toma conselho de suas matildeos de seus olhos de seu

corpo muito mais do que de seu juiacutezo O espectador do quadro por sua vez

percebe surdamente entre as cores e as formas o espaccedilo pictural os

objetos ou os personagens tais como se apresentam no quadro um sistema

exato de equivalecircncias que faz o sentido de cada pintura251 Um grande

250 Jaacute esboccedilamos um estudo das relaccedilotildees entre a parte e o todo no interior de um conjunto expressivo (ldquoLe Cineacutema et la nouvelle psychologierdquo in Sens et Non-sens) [Nagel 1948 p 85-106 Gallimard 1995 p 61-75] 251 Procuramos colocar em evidecircncia em Ceacutezanne essa significaccedilatildeo aderente aos signos (ldquoLe doute de Ceacutezannerdquo (op cit p 15-44 nova ediccedilatildeo p 13-33)

354

pintor traz na expressatildeo do mundo uma variante que natildeo aparece

primeiramente a ele mesmo e ao espectador senatildeo por oposiccedilatildeo agraves outras

pinturas mas que se manifesta entretanto em cada elemento e no

conjunto de modo que se trata como foi dito de uma ldquodeformaccedilatildeo

coerenterdquo de uma distorccedilatildeo sistemaacutetica governada pela nova relaccedilatildeo com o

mundo Ele proacuteprio precisa pouco a pouco aprender o sentido desta

modulaccedilatildeo justamente ao fazer sua obra Mas mesmo taacutecito e inexprimiacutevel

a princiacutepio por outros meios que os da pintura o novo modo de organizaccedilatildeo

tem realmente valor de princiacutepio Pode-se ver nisto como que uma categoria

nova da pintura uma vez que tem algumas vezes por efeito provocar uma

reclassificaccedilatildeo de obras do passado ou em todo caso de desenhar entre

elas novas relaccedilotildees de parentesco e uma nova histoacuteria Aqui ainda

apreendemos na obra um loacutegos anterior agrave linguagem que nos ajudaraacute talvez

a melhor compreender o loacutegos proferido

Esta passagem da expressatildeo preacute-linguiacutestica agrave linguagem natildeo a

entendemos como uma reduccedilatildeo da segunda agrave primeira A comparaccedilatildeo

frequentemente feita hoje entre a expressatildeo pictural e a linguagem

(incontestaacutevel aliaacutes quando se trata do uso literaacuterio e poeacutetico da linguagem)

deixa inteira a questatildeo da originalidade da linguagem em suas formas

exatas ela pode justamente nos permitir pocircr em evidecircncia o que as distingue

absolutamente e natildeo supotildee portanto nem um pouco o problema resolvido

O pintor executa uma operaccedilatildeo expressiva que estaacute sempre por recomeccedilar

visto que nenhum pintor resume os outros e natildeo acaba por assim dizer a

pintura Quando falo e quando penso parece-me ao contraacuterio que possuo

verdadeiramente o que digo que o tenho na matildeo A significaccedilatildeo natildeo eacute mais

fugidia dispersada nos signos inseparaacutevel deles Parece-me que a vejo face

a face Por ela retomo e totalizo todo um desenvolvimento de conhecimento

Daiacute vem que cada pintor deve recriar por assim dizer uma liacutengua pictural

ao passo que o proacuteprio do pensador eacute de usar de uma liacutengua jaacute instituiacuteda

para lhe fazer dizer o que ela natildeo disse jamais Daiacute tanto o nosso espanto

diante da liacutengua que nos oferece esta maravilha de um instrumento a

qualquer fim capaz por destinaccedilatildeo de dizer tudo o que haacute por dizer Disto

enfim os mitos proacuteprios agrave linguagem e por exemplo o sonho de uma liacutengua

355

verdadeiramente fundada ldquona natureza das coisasrdquo e cujos termos e relaccedilotildees

elementares permitiram por simples combinaccedilatildeo compor toda a verdade

Estas caracteriacutesticas proacuteprias agrave linguagem natildeo a impedem

todavia de conhecer os mesmos acasos e a mesma cegueira que a pintura

Quando Ferdinand Saussure mostra que natildeo haacute em uma liacutengua

significaccedilotildees que haacute apenas ldquodiferenccedilas de significaccedilatildeordquo lembra-nos de que

as palavras e as formas de uma liacutengua natildeo satildeo tanto signos uniacutevocos aos

quais se poderia fazer corresponder ideias claras e distintas satildeo

instrumentos linguiacutesticos que mais discriminam do que designam

positivamente que satildeo claros apenas no interior absoluto da liacutengua e no

contexto de um certo discurso e que portanto mais deslizam sobre a

significaccedilatildeo do que a aprisionam comparaacuteveis nisto agrave expressatildeo pictural da

qual diziacuteamos que antes de mais nada mais discrimina uma pintura de

uma outra do que nos daacute positivamente o seu sentido Uma vez instituiacuteda

eacute bem verdade que a linguagem nos daacute o sentimento de uma posse absoluta

de seu sentido mas no momento em que se institui na crianccedila que aprende

a falar no escritor que faz sua obra vecirc-se bem que eacute apenas uma maneira

mais flexiacutevel e mais aacutegil de circunscrever a significaccedilatildeo que ele natildeo a deteacutem

que lhe pede que a escute como ao que emprega uma verdadeira superaccedilatildeo

de suas ideias adquiridas e que tanto em um como no outro natildeo se limita a

designar pensamentos jaacute pensados Haveraacute logo motivos para escrutar as

particularidades do instrumento linguiacutestico que o tornam capaz finalmente

de exprimir verdades e tornam possiacutevel o que denominamos sua

transparecircncia Mas a verdade eacute feita de significaccedilotildees abertas e devemos

recusar a alternativa dos loacutegicos modernos que encontram apenas fora do

domiacutenio das significaccedilotildees exatas fechadas umas receitas para operaccedilotildees

cegas

De outro modo que o da pintura com signos mais capazes que

os seus de vir a se tornar instituiccedilatildeo de constituir um depoacutesito de verdade

progressivo e de recuperar a existecircncia bruta do mundo (e mesmo sua

proacutepria existecircncia histoacuterica) a linguagem realiza de uma maneira mais

peremptoacuteria um trabalho anaacutelogo de retomada que natildeo nos daacute em nenhum

lugar as coisas mesmas tais como seriam antes da expressatildeo ou fora dela

356

2 A histoacuteria e a intersubjetividade

Seria necessaacuterio comeccedilar o estudo das relaccedilotildees inter-humanas

na cultura pelo da linguagem porque a linguagem sendo ao mesmo tempo

o que haacute de mais interior e permanecendo em contato estreito com as

condiccedilotildees exteriores e histoacutericas daacute-nos melhor do que nenhum outro

fenocircmeno uma chance de compreender a articulaccedilatildeo do individual sobre o

social e as relaccedilotildees de permuta entre a natureza e a cultura

As questotildees debatidas entre os que fazem o indiviacuteduo sujeito da

histoacuteria e os que o fazem objeto da histoacuteria ou entre os que vecircem na

histoacuteria uma razatildeo que se manifesta e os que vecircem nela apenas uma

sequecircncia de acasos seriam suscetiacuteveis de uma soluccedilatildeo positiva se ao inveacutes

de colocaacute-las a propoacutesito da histoacuteria econocircmica ou da histoacuteria poliacutetica noacutes

as colocaacutessemos a propoacutesito da histoacuteria da linguagem na qual o sujeito

falante e a comunidade linguiacutestica os acasos e a ordem sistemaacutetica do

idioma estatildeo inseparavelmente em obra A instituiccedilatildeo linguiacutestica poderia

servir de modelo para compreender as outras instituiccedilotildees as condiccedilotildees de

equiliacutebrio e de transformaccedilatildeo delas e o estudo da linguagem como se

propocircs de diversos modos vir a ser o fio condutor para o exame de outros

modos de permuta e de reciprocidade a linguiacutestica o fio condutor da

sociedade

Mas isto se deve ao fato de que a proacutepria linguagem articulada

natildeo eacute senatildeo o mais alto ponto de concentraccedilatildeo de uma linguagem mais

secreta que os homens falam uns com os outros pelo siacutembolo que cria a sua

coexistecircncia econocircmica poliacutetica religiosa e moral Desta linguagem

generalizada a linguagem dos escritos e a das conversas estaacute bem longe de

fornecer um relato suficiente e estamos apenas no fim de um inventaacuterio

psicoloacutegico e socioloacutegico de nossa vida coletiva que fixa e faz com que passe

agrave existecircncia oficial e reconhecida o que todavia constitui a substacircncia de

nossa histoacuteria Ora enquanto as relaccedilotildees praacuteticas e efetivas dos homens natildeo

forem submetidas a este inqueacuterito que comeccedila e enquanto nos

permanecerem opacas fica difiacutecil apreciar o sentido uacuteltimo o conteuacutedo de

verdade do que dizem lecircem ou escrevem e que eacute sempre ao mesmo tempo

357

uma antecipaccedilatildeo do que pensariam se estivessem livres de parcialidades de

prejulgamentos ou de neuroses de seu tempo mas tambeacutem a simples

contrapartida imaginaacuteria de seus problemas e de suas dificuldades

Uma teoria da verdade seria entatildeo superficial se natildeo levasse em

consideraccedilatildeo aleacutem do sujeito falante e da comunidade linguiacutestica o sujeito

que vive deseja avalia cria e trabalha em uma comunidade histoacuterica e as

relaccedilotildees de verdade que pode e poderaacute estabelecer com ela Eacute preciso por

conseguinte pesquisar ateacute na histoacuteria global da qual as histoacuterias

econocircmica poliacutetica linguiacutestica e social satildeo apenas aspectos abstratos o

motor de desenvolvimento o fenocircmeno central que faz a diferenccedila da preacute-

histoacuteria animal e da histoacuteria humana e onde se preparam se natildeo as

condiccedilotildees proacuteximas que satildeo da ordem linguiacutestica e teacutecnica pelo menos as

condiccedilotildees longiacutenquas de uma verdade

Eacute surpreendente constatar que a ideia de uma histoacuteria integral

ao mesmo tempo histoacuteria de relaccedilotildees do homem com a natureza e das

relaccedilotildees do homem com o homem desde que foi formulada por Hegel e por

Marx particularmente em seus escritos de juventude foi muito largamente

aceita por outros historiadores sem que se buscasse nem por isso precisar

o seu sentido filosoacutefico reexaminar por exemplo o famoso dilema do

idealismo hegeliano e do materialismo marxista Constata-se em muitos

autores que haacute uma permuta entre as categorias da histoacuteria das teacutecnicas e

as da histoacuteria das ideias que por exemplo permitiu falar de utensiacutelios e de

equipamento intelectual de um tempo como reciprocamente da filosofia

implicada no uso de tal instrumento Mas seria necessaacuterio explicitar a

concepccedilatildeo das relaccedilotildees do espiacuterito e do corpo na histoacuteria que eacute suposta por

esta linguagem Haacute pois espaccedilo para retomar esta intuiccedilatildeo concreta da

histoacuteria integral e defendecirc-la contra as deformaccedilotildees que tendem sempre a

atraiacute-la em direccedilatildeo a uma filosofia do objeto e uma concepccedilatildeo da histoacuteria em

si ou ao contraacuterio a reconduzi-la em direccedilatildeo a uma filosofia do sujeito que

faz da histoacuteria um natildeo-senso ao passo que com toda evidecircncia todas estas

pesquisas tendem a nos revelar tatildeo longe do puro objeto quanto do puro

sujeito um interior da histoacuteria humana e uma encarnaccedilatildeo das

consciecircncias As concepccedilotildees do culturalismo americano que colocam em

358

evidecircncia as correlaccedilotildees das significaccedilotildees econocircmicas poliacuteticas morais

juriacutedicas e ideoloacutegicas no interior de uma cultura considerada como um

todo poderiam ajudar a recolocar o problema da histoacuteria integral

O esforccedilo deveria em particular versar sobre as relaccedilotildees dos

modos de vida e dos modos de pensamento Uma relaccedilatildeo simples de

paralelismo (ao qual Marx mesmo jamais pensou visto que recusou

acrescentar ponto por ponto a curva das ideologias agrave da histoacuteria social) estaacute

certamente fora de questatildeo A sucessatildeo das doutrinas ou dos pensamentos

natildeo eacute o reflexo simples da sucessatildeo das sociedades As doutrinas

estabelecem entre elas atraveacutes do tempo relaccedilotildees longitudinais relaccedilotildees

intriacutensecas que fazem com que Platatildeo permaneccedila sob certos aspectos nosso

contemporacircneo e ainda dono da verdade ao passo que a sociedade onde

vivia natildeo se continua na nossa e eacute precisamente esta relaccedilatildeo interior de um

tempo ao outro na ordem dos pensamentos que nos permite encontrar um

sentido no devir e de falar de verdade Na histoacuteria como na percepccedilatildeo haacute

uma semente de verdade Ela natildeo estaacute fechada em nenhuma proposiccedilatildeo

invariaacutevel ela faz todavia com que mesmo as proposiccedilotildees do passado

guardem ainda um sentido no interior de um saber mais maduro e com que

nossa experiecircncia seja um devir em direccedilatildeo agrave verdade

Mas ao mesmo tempo eacute verdade dizer que o pensamento

mesmo quando se eleva acima do momento encontra o universal apenas

quando natildeo o procura Eacute aprofundando sua proacutepria situaccedilatildeo que o escritor

encontra acentos que faratildeo com que leia cem anos mais tarde e as obras

que datam mais satildeo frequentemente as que o autor quis demasiadamente

tornar eternas A comunicaccedilatildeo entre os sujeitos sucessivos como entre os

sujeitos contemporacircneos natildeo eacute o encontro de pensamentos desencarnados

em um ceacuteu de ideias invariaacuteveis eacute ao contraacuterio a profunda afinidade de

situaccedilotildees que se compreendem umas agraves outras em suas diferenccedilas Se haacute

uma uacutenica tentativa onde se encadeiam todos os tempos todos os modos de

pensamento e todos os modos de vida natildeo eacute que a histoacuteria seja como um

deus que regeria tudo por cima de nossas cabeccedilas eacute porque haacute apenas uma

humanidade

359

3 Os problemas uacuteltimos da racionalidade

Estas pesquisas atraveacutes das diferentes ordens do fenocircmeno da

verdade reencontram os problemas claacutessicos da metafiacutesica mas de certo

modo generalizados reconduzidos agrave sua essecircncia que eacute a meditaccedilatildeo de

fato da racionalidade Os sistemas satildeo diferentes tentativas da imaginaccedilatildeo

filosoacutefica para se dar iacutedolos representaccedilotildees manejaacuteveis do fenocircmeno da

verdade Sendo dado um mundo estranho onde o sujeito e o objeto a

despeito das definiccedilotildees passam um no outro como o mostra a uniatildeo da

alma e do corpo e onde em particular o sujeito indeclinaacutevel ndash eu sou ndash

acaba por reconhecer atraacutes de certos objetos de seu ambiente outros

espiacuteritos em relaccedilatildeo aos quais ele proacuteprio eacute um paradoxo assim como eles o

satildeo a seus olhos os sistemas propotildeem cedo ou tarde reabsorver o que haacute

de espantoso nesta metamorfose e o procedimento comum deles pode ser

apenas apagar um dos poacutelos do conjunto para fazer com que cesse a tensatildeo

que o atravessa Harmonia preestabelecida passagem agrave totalidade absoluta

materialismo idealismo lanccedilam igualmente sobre os paradoxos da

encarnaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo o veacuteu de uma explicitaccedilatildeo mas ao mesmo

tempo em que aplanam as suas dificuldades ocultam-nos a sua atualidade

a eficaacutecia sempre nova funcionamento continuado em noacutes mesmos Se a

filosofia eacute vida e consciecircncia eacute preciso que o espanto seja natildeo somente uma

introduccedilatildeo ao conhecimento mas o signo de seu mais alto ponto A

percepccedilatildeo nos mostra uma coisa irrecusaacutevel embora em princiacutepio o seu

inventaacuterio seja infinito Uma filosofia faz valer a racionalidade em todo o seu

valor apenas se a faz aparecer no meio do irracional por uma espeacutecie de

milagre no sentido em que se fala de ldquomilagre gregordquo

360

Carta agrave Martial Gueacuteroult252

O texto publicado abaixo eacute aquele de uma exposiccedilatildeo que me entregou o seu autor no momento em que eu estabelecia para sua candidatura ao Collegravege de France o relatoacuterio destinado a apresentar seus tiacutetulos diante da Assembleia dos professores Merleau-Ponty reuacutene aqui com um soacute traccedilo contiacutenuo seu passado e seu dever de filoacutesofo e esboccedila as perspectivas de suas pesquisas futuras desde A Origem da Verdade ateacute o Homem transcendental Lendo estas linhas de um tatildeo alto interesse o pesar se aviva de uma morte que brutalmente interrompeu o impulso de um pensamento profundo em plena posse de si mesmo e a ponto de se realizar em uma seacuterie de obras originais que teriam marcado eacutepoca na filosofia francesa contemporacircnea

Martial Gueacuteroult

Natildeo deixamos de viver no mundo da percepccedilatildeo mas o

superamos pelo pensamento criacutetico a ponto de esquecer a contribuiccedilatildeo que

traz agrave nossa ideia de verdade Haacute pois diante do pensamento criacutetico apenas

enunciados que ele discute aceita ou rejeita ele rompeu com a evidecircncia

ingecircnua das coisas e quando afirma eacute porque natildeo encontra mais o modo de

negar Por mais necessaacuteria que seja essa atividade de controle que daacute

precisatildeo aos criteacuterios e exige da nossa experiecircncia seus tiacutetulos de validade

ela natildeo daacute conta do nosso contato com o mundo percebido que estaacute

simplesmente diante de noacutes aqueacutem do verdadeiro verificado e do falso ela

natildeo define nem mesmo as deacutemarches positivas do pensamento nem suas

aquisiccedilotildees mais vaacutelidas Nossos dois primeiros trabalhos buscavam restituir

o mundo da percepccedilatildeo Estes que noacutes preparamos gostariam de mostrar

como a comunicaccedilatildeo com outro e o pensamento retomam e ultrapassam a

percepccedilatildeo que nos iniciou agrave verdade

252 [Um ineacutedito de Maurice Merleau-Ponty] Nota introdutoacuteria de Martial Gueacuteroult Revista de Metafiacutesica e de Moral nordm 4 outubro de 1962 p 401-409 Capiacutetulo XXI do Parcours Deux ndash Um ineacutedit de Maurice Merleau-Ponty Conforme nota do editor francecircs [Texto ineacutedito em 1962 que Maurice Merleau-Ponty entregou a Martial Gueacuteroult encarregado do relatoacuterio de apresentaccedilatildeo do candidato e publicado por seus cuidados na Revista de Metafiacutesica e Moral]

361

O espiacuterito que percebe eacute um espiacuterito encarnado eacute o

enraizamento do espiacuterito em seu corpo e em seu mundo que buscamos

restabelecer primeiramente tanto contra as doutrinas que tratam a

percepccedilatildeo como o simples resultado da accedilatildeo das coisas exteriores sobre

nosso corpo quanto contra as que insistem sobre a autonomia da tomada de

consciecircncia Estas filosofias tecircm em comum o fato de que se esquecem em

benefiacutecio da pura exterioridade ou da pura interioridade da inserccedilatildeo

corporal do espiacuterito a relaccedilatildeo ambiacutegua que mantemos com o nosso corpo e

correlativamente com as coisas percebidas Quando se tenta como noacutes

fizemos em A Estrutura do Comportamento253 desenhar as relaccedilotildees do

organismo que percebe e de seu meio inspirando-se na psicologia e na

fisiologia modernas fica claro de uma soacute vez que natildeo satildeo as de um

aparelho automaacutetico com o agente exterior que vem desencadear neste

organismo mecanismos preestabelecidos e que natildeo se daacute conta melhor dos

fatos sobrepondo ao corpo concebido como uma coisa uma consciecircncia

pura e contemplativa Nas condiccedilotildees de vida exceto no laboratoacuterio o

organismo estaacute menos sensiacutevel a certos agentes fiacutesicos e quiacutemicos isolados

do que agrave ldquoconstelaccedilatildeordquo que eles formam agrave situaccedilatildeo de conjunto que eles

definem Os comportamentos revelam uma espeacutecie de atividade prospectiva

do organismo como se ele se orientasse sobre o sentido de certas situaccedilotildees

elementares como se mantivesse com elas relaccedilotildees de familiaridade como

se houvesse um ldquoa priori do organismordquo condutas privilegiadas leis de

equiliacutebrio interno que o predispotildeem a certas relaccedilotildees com o meio No niacutevel

onde nos situamos natildeo poderia entretanto tratar-se de uma verdadeira

tomada de consciecircncia nem de uma atividade intencional e aliaacutes o poder

prospectivo do organismo se exerce entre limites definidos e depende de

condiccedilotildees locais precisas O funcionamento do sistema nervoso central nos

coloca diante de paradoxos do mesmo gecircnero A teoria das localizaccedilotildees

cerebrais sob suas formas modernas modificou profundamente a relaccedilatildeo da

253 [Maurice Merleau-Ponty La Structure du Comportement PUF 1942 2ordf ed 1949 e seguintes precedido de ldquoUne philosophie de lrsquoambiguumliteacuterdquo por Alphonse de Waelhens col ldquoQuadrigerdquo 123 190] (NE)

362

funccedilatildeo com o substrato Ela natildeo atribui mais por exemplo a cada conduta

perceptiva um mecanismo preestabelecido Os ldquocentros coordenadoresrdquo dos

quais ela fala natildeo satildeo mais armazeacutens de ldquotraccedilos cerebraisrdquo e o

funcionamento deles eacute qualitativamente diferente de um caso a outro

segundo a nuance cromaacutetica a evocar a estrutura perceptiva a realizar se

bem que ele reflete enfim toda a sutileza e toda a variedade das relaccedilotildees

percebidas Tudo se passa pois no organismo que percebe como se noacutes

tiveacutessemos de fazer segundo a palavra de Descartes uma mistura da alma

com corpo As condutas superiores atribuem um sentido novo agrave vida do

organismo mas o espiacuterito entretanto natildeo dispunha aqui senatildeo de uma

liberdade controlada antes ele precisa de atividades mais simples para

estabilizar por meio delas instituiccedilotildees duraacuteveis e nelas realizar-se

verdadeiramente A conduta perceptiva emerge destas relaccedilotildees para uma

situaccedilatildeo e para um meio que natildeo satildeo o feito de um puro sujeito cognoscente

Em nosso trabalho sobre a Fenomenologia da percepccedilatildeo254 natildeo

assistimos mais ao advento de condutas perceptivas instalamo-nos nelas

para ali perseguir a anaacutelise desta singular relaccedilatildeo entre o sujeito o seu

corpo e o seu mundo Para a psicologia e a psicopatologia de hoje o corpo

proacuteprio natildeo eacute mais somente um dos objetos do mundo sob o olhar de um

espiacuterito separado desloca-se para o lado do sujeito eacute nosso ponto de vista

sobre o mundo o lugar onde o espiacuterito se investe em uma certa situaccedilatildeo

fiacutesica e histoacuterica Como Descartes ainda disse profundamente alma natildeo estaacute

soacute em seu corpo como o piloto em seu navio ela estaacute unida inteiramente ao

corpo ndash ele eacute inteiramente animado e as funccedilotildees corporais contribuem

todas por sua parte agrave percepccedilatildeo dos objetos dos quais a filosofia durante

muito tempo fez um puro saber Eacute atraveacutes da situaccedilatildeo de nosso corpo que

apreendemos o espaccedilo exterior Um ldquoesquema corporalrdquo ou ldquoposturalrdquo nos

daacute a cada instante uma noccedilatildeo global praacutetica e impliacutecita das relaccedilotildees de

nosso corpo e das coisas e como seu aumento sobre elas Um feixe de

movimentos possiacuteveis ou de ldquoprojetos motoresrdquo irradia de noacutes sobre o

254 [Maurice Merleau-Ponty Pheacutenomeacutenologie de la Perception Gallimard 1945 col ldquoTelrdquo 4 1976] (NE)

363

ambiente Nosso corpo natildeo estaacute no espaccedilo como as coisas ele o habita ou o

assedia adapta-se a ele como a matildeo a um instrumento e eacute por este motivo

que quando queremos nos locomover natildeo precisamos movecirc-lo como se

move um objeto Noacutes o transportamos sem instrumentos como por uma

espeacutecie de magia porque ele eacute nosso e porque por ele temos diretamente

acesso ao espaccedilo Ele eacute para noacutes muito mais do que um instrumento ou um

meio eacute nossa expressatildeo no mundo a figura visiacutevel de nossas intenccedilotildees

Mesmo nossos movimentos afetivos mais secretos mais profundamente

ligados agrave infra-estrutura contribuem para formar nossa percepccedilatildeo das

coisas

Ora se a percepccedilatildeo eacute assim o ato comum de todas as nossas

funccedilotildees motrizes e afetivas natildeo menos que das sensoriais precisamos

redescobrir a figura do mundo percebido por um trabalho comparaacutevel ao do

arqueoacutelogo pois ela estaacute enterrada sob os sedimentos de conhecimentos

ulteriores Veriacuteamos entatildeo que a qualidade sensiacutevel natildeo eacute este dado opaco e

indivisiacutevel oferecido como espetaacuteculo a uma consciecircncia distante da qual

falavam as concepccedilotildees claacutessicas e que as cores por exemplo das quais

cada uma se cerca de uma atmosfera afetiva que os psicoacutelogos puderam

estudar e definir satildeo na verdade diversas modalidades de nossa

coexistecircncia com um mundo Veremos que as figuras espaciais ou as

distacircncias natildeo satildeo tanto relaccedilotildees entre diversos pontos do espaccedilo objetivo

quanto relaccedilotildees entre eles e um centro de perspectiva que eacute nosso corpo ndash

em suma que elas satildeo diversas maneiras para os estiacutemulos exteriores de

pocircr agrave prova de solicitar e de fazer variar nossa apreensatildeo do mundo nossa

ancoragem no horizontal e no vertical do lugar em um aqui e um agora

Veriacuteamos ainda que as coisas percebidas natildeo satildeo como os objetos

geomeacutetricos seres acabados dos quais nossa inteligecircncia possui a priori a lei

de construccedilatildeo mas conjuntos abertos e inesgotaacuteveis que reconheceriacuteamos

com um certo estilo de desenvolvimento embora natildeo pudeacutessemos por

princiacutepio exploraacute-los inteiramente e que eles natildeo nos datildeo nunca deles

mesmos senatildeo perfis ou vistas perspectivadas Veriacuteamos enfim que o

mundo percebido por sua vez natildeo eacute um puro objeto de pensamento sem

fissura e sem lacuna mas como que o estilo universal ao qual participam

364

todos os seres perceptivos e que ele os coordena sem duacutevida mas sem que

pudeacutessemos presumi-lo acabado Nosso mundo dizia profundamente

Malebranche eacute ldquouma obra inacabadardquo

Se agora quiseacutessemos definir um sujeito que seja capaz desta

experiecircncia perceptiva eacute claro que natildeo seraacute um pensamento transparente

para si mesmo absolutamente presente a si mesmo sem corpo e sem

histoacuteria interpostas O sujeito da percepccedilatildeo natildeo eacute este pensador absoluto

ele funciona em conformidade com um pacto realizado em nosso

nascimento entre o nosso corpo e o mundo entre noacutes mesmos e o nosso

corpo ele eacute como que um nascimento continuado aquele a quem uma

situaccedilatildeo fiacutesica e histoacuterica foi dada para gerir e eacute dada a cada instante mais

uma vez Cada sujeito encarnado eacute como um registro aberto no qual natildeo se

sabe o que nele se escreveraacute ndash ou como uma nova linguagem da qual natildeo se

sabe que obras produziraacute mas que uma vez manifesta natildeo poderia deixar

de dizer pouco ou muito de ter uma histoacuteria ou um sentido A produtividade

mesma ou a liberdade da vida humana longe de negar nossa situaccedilatildeo

utilizam-na e transformam-na em modo de expressatildeo

Esta observaccedilatildeo nos conduz a novas pesquisas comeccediladas

desde 1945 que viratildeo fixar definitivamente o sentido filosoacutefico das primeiras

agraves quais em compensaccedilatildeo lhes prescrevem um itineraacuterio e um meacutetodo

Acreditamos encontrar na experiecircncia do mundo percebido uma relaccedilatildeo de

um tipo novo entre o espiacuterito e a verdade A evidecircncia da coisa percebida

estaacute unida a seu aspecto concreto agrave textura mesma de suas qualidades a

esta equivalecircncia entre todas as suas propriedades sensiacuteveis que fazia com

que Ceacutezanne dissesse que se devia poder pintar ateacute os odores Eacute diante de

nossa existecircncia indivisa que o mundo eacute verdadeiro ou existe sua unidade e

suas articulaccedilotildees se confundem e isto quer dizer que temos do mundo uma

noccedilatildeo global cujo inventaacuterio natildeo se esgota jamais e que fazemos nele a

experiecircncia de uma verdade que antes transparece ou nos engloba do que o

nosso espiacuterito a deteacutem e a circunscreve Ora se entatildeo considerarmos acima

do percebido o campo do conhecimento propriamente dito no qual o

espiacuterito quer possuir o verdadeiro definir ele mesmo os objetos e ter acesso

365

assim a um saber universal e livre das particularidades de nossa situaccedilatildeo a

ordem do percebido natildeo se apresentaraacute como simples aparecircncia e o

entendimento puro natildeo seraacute uma nova fonte de conhecimento em relaccedilatildeo agrave

qual nossa familiaridade perceptiva com o mundo eacute apenas um esboccedilo

informe ndash Noacutes somos obrigados a responder a estas questotildees primeiramente

por meio de uma teoria da verdade e em seguida por meio de uma teoria da

intersubjetividade agraves quais tocamos em diferentes ensaios tais como A

duacutevida de Ceacutezanne255 O Romance e a Metafiacutesica256 ou no que concerne agrave

filosofia da histoacuteria Humanismo e Terror257 mas cujos fundamentos

filosoacuteficos devemos elaborar com todo rigor A teoria da verdade eacute o objeto de

dois livros nos quais trabalhamos agora

Parece-nos que o conhecimento e a comunicaccedilatildeo com o outro

que ele pressupotildee satildeo em relaccedilatildeo agrave vida perceptiva formaccedilotildees originais

mas que a continuam e a conservam transformando-a que sublimam antes

nossa encarnaccedilatildeo do que a suprimem e que a operaccedilatildeo caracteriacutestica do

espiacuterito estaacute no movimento pelo qual retomamos nossa existecircncia corporal e

a empregamos para simbolizar ao inveacutes de coexistir somente Esta

metamorfose resulta numa dupla funccedilatildeo de nosso corpo Por seus ldquocampos

sensoriaisrdquo por toda sua organizaccedilatildeo ele eacute como que predestinado a se

modelar sobre os aspectos naturais do mundo Mas como corpo ativo

enquanto eacute capaz de gestos de expressatildeo e enfim de linguagem volta-se

sobre o mundo para significaacute-lo Como o mostra a observaccedilatildeo dos apraacutexicos

no espaccedilo atual onde cada ponto eacute o que eacute sobrepotildee-se no homem um

ldquoespaccedilo virtualrdquo onde satildeo inscritos tambeacutem os valores espaciais que este

ponto recebia para tal outra posiccedilatildeo de nossas coordenadas corporais Um

sistema de correspondecircncia se estabelece entre nossa situaccedilatildeo espacial e a

dos outros e cada uma acaba por simbolizar todas as outras Esta

retomada que insere nossa situaccedilatildeo de fato como um caso particular no

sistema de outras situaccedilotildees possiacuteveis comeccedila desde o momento em que

255 [in Sens et Non-sens Nagel 1948 p 15-44 Gallimard 1995 p 13-33] (NE) 256 [in Sens et Non-sens Nagel 1948 p 45-71 Gallimar 1995 p 34-52] (NE) 257 [Maurice Merleau-Ponty Humanisme et Terreur Gallimard 1947 col ldquoIdeacuteesrdquo 432 1980] (N E)

366

mostramos com o dedo um ponto do espaccedilo pois o gesto de designaccedilatildeo que

justamente os animais natildeo compreendem supotildee-nos jaacute instalados no

virtual o fim da linha que prolonga nosso dedo em um espaccedilo centriacutefugo ou

de cultura Este uso miacutemico de nosso corpo natildeo eacute ainda uma concepccedilatildeo

uma vez que natildeo nos desliga de uma situaccedilatildeo corporal pela qual pelo

contraacuterio ele assume todo sentido ele nos introduz a uma teoria concreta

do espiacuterito que nos mostraraacute em uma relaccedilatildeo de permuta com os

instrumentos que ele se daacute mas que lhe restituem e isto mais adiante o

que receberam dele

De um modo geral os gestos expressivos onde a fisionomia

buscava em vatildeo os signos suficientes de um estado emocional tecircm apenas

um sentido uniacutevoco localizados em relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo que acentuam ou que

pontuam Mas como os fonemas sem ter ainda sentido por si mesmos jaacute

tecircm valor diacriacutetico anunciam a constituiccedilatildeo de um sistema simboacutelico capaz

de redesenhar um nuacutemero infinito de situaccedilotildees Eles satildeo uma primeira

linguagem E reciprocamente a linguagem pode ser tratada como uma

gesticulaccedilatildeo de tal modo variada precisa sistemaacutetica e capaz de

intersecccedilotildees tatildeo numerosas que a estrutura interna do enunciado pode

apenas finalmente convir agrave situaccedilatildeo mental a qual responde e tornando-se o

signo sem equiacutevoco O sentido da linguagem como o dos gestos natildeo reside

entatildeo nos elementos dos quais eacute feito eacute sua intenccedilatildeo comum e a frase dita eacute

apenas compreendida se o ouvinte seguindo a ldquocadeia verbalrdquo ultrapassa

cada uma das correntes rumo agrave direccedilatildeo que desenham em conjunto Disto

presume-se ao mesmo tempo que o nosso pensamento mesmo solitaacuterio

natildeo deixa de fazer uso da linguagem que ela o sustenta arranca-o do

transitoacuterio coloca-o em marcha ndash que ela eacute dizia Cassirer o seu ldquovolanterdquo ndash

e que todavia a linguagem considerada parte por parte natildeo conteacutem seu

sentido que toda comunicaccedilatildeo supotildee naquele que escuta uma retomada

criadora do que eacute ouvido Disto presume-se tambeacutem que a linguagem nos

arrasta em direccedilatildeo a um pensamento que natildeo eacute mais simplesmente nosso

que eacute presuntivamente universal sem que esta universalidade seja jamais a

de um conceito puro idecircntico em todos os espiacuteritos eacute antes o apelo que um

pensamento situado direciona a outros pensamentos igualmente situados e

367

ao qual cada um responde com seus recursos proacuteprios O exame das

instacircncias do algoritmo mostraria nele noacutes acreditamos a mesma estranha

funccedilatildeo que estaacute em obra nas formas ditas inexatas da linguagem sobretudo

no momento em que se trata de conquistar no pensamento exato um novo

domiacutenio o pensamento mais formal refere-se sempre a alguma situaccedilatildeo

mental qualitativamente definida da qual extrai apenas o sentido apoiando-

se sobre a configuraccedilatildeo do problema A transformaccedilatildeo natildeo eacute jamais simples

anaacutelise e o pensamento natildeo eacute jamais formal senatildeo relativamente

Esperando tratar completamente este problema na obra que

preparamos sobre A Origem da Verdade258 noacutes o abordamos por seu lado

menos abrupto em um livro do qual a metade estaacute escrita e que trata da

linguagem literaacuteria Nesse domiacutenio eacute mais cocircmodo mostrar que a linguagem

jamais eacute o vestuaacuterio de um pensamento que se possuiria a si mesmo com

toda clareza O sentido de um livro eacute primeiramente dado natildeo tanto pelas

ideias quanto por uma variaccedilatildeo sistemaacutetica e insoacutelita dos modos da

linguagem e da narrativa ou das formas literaacuterias existentes Este acento

esta modulaccedilatildeo particular da palavra se a expressatildeo eacute bem sucedida eacute

assimilada pouco a pouco pelo leitor e torna-lhe acessiacutevel um pensamento ao

qual ele era algumas vezes de iniacutecio indiferente ou mesmo rebelde A

comunicaccedilatildeo em literatura natildeo eacute simples apelo do escritor a significaccedilotildees

que fariam parte de um a priori do espiacuterito humano de preferecircncia elas lhe

satildeo suscitadas por impulso ou por uma espeacutecie de accedilatildeo obliacutequa No escritor

o pensamento natildeo dirige a linguagem do exterior o escritor eacute ele mesmo

como que um novo idioma que se constroacutei que inventa modos de expressatildeo

e diversifica-se segundo seu proacuteprio sentido O que se chama poesia eacute talvez

apenas a parte da literatura onde essa autonomia se afirma com ostentaccedilatildeo

Toda grande prosa eacute tambeacutem recriaccedilatildeo do instrumento significante

258 [E que se tornaraacute Le Visible et lrsquoInvisible Noacutes remetemos agrave ediccedilatildeo dessa obra organizada por Claude Lefort Maurice Merleau-Ponty Le Visible et lrsquoInvisible seguida de notas de trabalho por Maurice Merleau-Ponty texto organizado por Claude Lefort acompanhado de um prefaacutecio e de um poacutesfaacutecio Gallimard 1964 col ldquoTelrdquo 36 1979 Textos complementares Maurice Merleau-Ponty Signes Gallimard 1960 especialmente o ldquoPrefaacuteciordquo (fevereiro e setembro de 1960) e LrsquoŒil et lrsquoEsprit Gallimard 1964 com um prefaacutecio de Claude Lefort col ldquoFolio essaisrdquo 13 1985] (NE)

368

doravante manejado segundo uma sintaxe nova O prosaico se limita a tocar

por signos convencionais significaccedilotildees jaacute instaladas na cultura A grande

prosa eacute a arte de captar um sentido que natildeo tinha jamais sido objetivado ateacute

entatildeo e de tornaacute-lo acessiacutevel a todos os que falam a mesma liacutengua Um

escritor morre em vida quando natildeo eacute mais capaz de fundar assim uma

universalidade nova e de se comunicar em meio ao risco Parece-nos que se

poderia dizer tambeacutem das outras instituiccedilotildees que deixam de viver quando

se mostram incapazes de carregar uma poesia das relaccedilotildees humanas isto eacute

o apelo de cada liberdade a todas as outras Hegel dizia que o Estado

romano era a prosa do mundo Noacutes intitularemos Introduccedilatildeo agrave prosa do

mundo259 este trabalho que deveria elaborando a categoria da prosa

conferir-lhe aleacutem da literatura uma significaccedilatildeo socioloacutegica

Essas pesquisas sobre a expressatildeo e a verdade abordam pois

por sua vertente epistemoloacutegica o problema geral das relaccedilotildees do homem

com o homem que seraacute o objeto de nossas pesquisas ulteriores A relaccedilatildeo

linguiacutestica dos homens deve nos ajudar a compreender uma ordem mais

geral das relaccedilotildees simboacutelicas e de instituiccedilotildees que asseguram natildeo mais

somente a permuta dos pensamentos mas a dos valores de toda espeacutecie a

coexistecircncia dos homens em uma cultura e aleacutem de seus limites em uma

uacutenica histoacuteria Interpretada em termos de simbolismo o conceito de histoacuteria

nos parece aqueacutem das contestaccedilotildees das quais eacute objeto porque entendemos

geralmente sob esta palavra seja isto para reconhececirc-la ou negaacute-la uma

Potecircncia exterior em nome da qual as consciecircncias seriam despojadas Natildeo

mais que a linguagem a histoacuteria natildeo nos eacute exterior Haacute uma histoacuteria do

pensamento quer dizer a sucessatildeo de obras do espiacuterito com todos os

desvios que se queira eacute como uma uacutenica experiecircncia que se persegue e no

curso da qual a verdade por assim dizer capitaliza-se Eacute em um sentido

anaacutelogo que se poderia dizer que haacute uma histoacuteria da humanidade ou mais

259 [Noacutes remetemos agrave excelente apresentaccedilatildeo (sob forma de ldquoPrefaacuteciordquo p I-XIV) de Claude Lefort ao texto organizado aos seus cuidados Maurice Merleau-Ponty La Prose du monde Gallimard 1969 col ldquoTelrdquo 218 1995 Texto complementar ldquoA linguagem e as vozes do silecircnciordquo Les Temps Modernes 890 junho de 1952 p 70-94 Retomado em Signes p 49-104] (NE)

369

simplesmente uma humanidade em outros termos que feitas todas as

restriccedilotildees sobre estas estagnaccedilotildees ou os recuos as relaccedilotildees humanas satildeo

capazes de amadurecer de mudar seus avatares em ensinamentos de

recolher em seu presente a verdade de seu passado de eliminar certos

segredos que as tornam opacas e de se fazerem mais transparentes A ideia

de uma histoacuteria uacutenica ou de uma loacutegica da histoacuteria estaacute de certo modo

implicada na menor permuta humana na menor percepccedilatildeo social a

antropologia supotildee sempre que uma civilizaccedilatildeo mesmo muito diferente da

nossa estaacute no limite compreensiacutevel por noacutes que ela pode estar situada em

relaccedilatildeo a nossa e a nossa em relaccedilatildeo a ela que elas pertencem ao mesmo

universo de pensamento ndash como o menor uso da linguagem implica uma

ideia de verdade Na accedilatildeo tambeacutem natildeo podemos fingir rejeitar como

estrangeiras as aventuras da histoacuteria uma vez que mesmo a pesquisa mais

independente da verdade mais abstrata foi e eacute um fator da histoacuteria (o uacutenico

talvez do qual se esteja seguro que natildeo eacute em nenhum caso decepcionante)

e todas as accedilotildees e as produccedilotildees dos homens se compotildeem entatildeo em um

uacutenico drama e que neste sentido salvamo-nos ou perdemo-nos juntos

nossa vida eacute por si soacute universal Mas este racionalismo metoacutedico natildeo se

confunde com um racionalismo dogmaacutetico que elimina antecipadamente a

contingecircncia histoacuterica supondo como que um ldquoEspiacuterito do mundordquo (Hegel)

atraacutes do curso das coisas Eacute preciso dizer que haacute uma histoacuteria total ndash um

uacutenico tecido que reuacutene todos os empreendimentos de civilizaccedilotildees

simultacircneas e sucessivas todos os fatos do pensamento e todos os fatos

econocircmicos ndash isto natildeo eacute em nome de um idealismo histoacuterico ou de um

materialismo histoacuterico que remetem um ao pensamento outro agrave mateacuteria o

governo da histoacuteria eacute porque as culturas satildeo tanto sistemas coerentes de

siacutembolos que podem ser comparadas e colocadas sobre um denominador

comum e eacute porque em cada um os modos de trabalho os das relaccedilotildees

humanas os da linguagem e os do pensamento mesmo se natildeo satildeo em cada

momento paralelos natildeo permanecem jamais separados com o tempo E o

que faz esta relaccedilatildeo de sentido entre cada aspecto de uma cultura e todos os

outros como entre todos os episoacutedios da histoacuteria eacute o pensamento

permanente e concordante desta pluralidade de seres que se reconhecem

370

como ldquosemelhantesrdquo mesmo que uns busquem dominar os outros e que

sejam a tal ponto levados em situaccedilotildees comuns que muitas vezes os

adversaacuterios estatildeo em uma espeacutecie de cumplicidade

Nossas pesquisas devem por conseguinte conduzir-nos

finalmente a refletir sobre este homem transcendental ou esta ldquoluz naturalrdquo

comum a todos que transparece atraveacutes do movimento da histoacuteria ndash sobre

este Loacutegos que nos atribui por tarefa conduzir agrave palavra um mundo mudo

ateacute aqui ndash como enfim sobre este Loacutegos do mundo percebido que nossas

primeiras pesquisas encontravam na evidecircncia da coisa Aqui encontramos

as questotildees claacutessicas da metafiacutesica mas por um caminho que lhe tira o

caraacuteter de problemas quer dizer de dificuldades que poderiam ser resolvidas

sem muito trabalho mediante algumas entidades metafiacutesicas construiacutedas

para este fim As noccedilotildees de Natureza e de Razatildeo por exemplo longe de

explicaacute-las tornam incompreensiacuteveis as metamorfoses agraves quais assistimos

desde a percepccedilatildeo ateacute os modos complexos da permuta humana pois

relacionando-os a princiacutepios separados elas nos mascaram o momento do

qual temos a constante experiecircncia onde uma existecircncia volta-se sobre si

mesma retoma-se e exprime seu proacuteprio sentido O estudo da percepccedilatildeo

apenas poderia nos ensinar uma ldquomaacute ambiguumlidaderdquo a mistura da finitude e

da universalidade da interioridade e da exterioridade Mas haacute no fenocircmeno

da expressatildeo uma ldquoboa ambiguidaderdquo quer dizer uma espontaneidade que

realiza o que parecia impossiacutevel a considerar os elementos separados que

reuacutene em um uacutenico tecido a pluralidade das mocircnadas o passado e o

presente a natureza e a cultura A constataccedilatildeo desta maravilha seria a

metafiacutesica mesma e ofereceria ao mesmo tempo o princiacutepio de uma moral

371

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ALQUIEacute F La deacutecouverte meacutetaphysique de lrsquohomme chez Descartes Paris Presses Universitaires 1966

BACHELARD Gaston Eacutetudes Paris Vrin 1970

BACHELARD G Lrsquoactiviteacute rationaliste de la physique contemporaine Paris PUF 1951

BACHELARD G Le nouvel esprit scientifique Paris PUF 1973

BARBARAS R De lrsquoecirctre du pheacutenomegravene Sur lrsquoontologie de Merleau-Ponty Paris Jeacuterocircme Millon 1991

BARBARAS R Le deacutesir et la distance Introduction agrave une philosophie de la perception Paris J Vrin 1999

BARBARAS R CARBONE M LAWLOR L(Ed) Merleau-Ponty et la nature Milatildeo Vrin 2000 (Chiasmi International n 2)

BARBARAS R Notes de cours sur lrsquoorigine de la geacuteometrie de Husserl suivi de recherches sur la philosophie de M Merleau-Ponty Paris PUF 1998

BARBARAS R Vie et Intentionaliteacute recherches pheacutenomeacutenologiques Paris J Vrin 2003

BEAUFRET J Introduccedilatildeo agraves filosofias da existecircncia Satildeo Paulo Duas Cidades 1976

BEAUVOIR S de Meacutemoires drsquoune jeune fille rangeacutee Paris Gallimard 1972

BECH J La filosofia y su historia dificultades teoacutericas y perspectivas criacuteticas en los muacuteltiples caminos actuales de la historia del pensamiento Barcelona Edicions Universitat 2001

BELLO E De Sartre a Merleau-Ponty dialectica de la libertad y el sentido Salamanca Publicaciones Universidad de Murcia 1979

BERGSON H Oeuvres Complegravetes Paris PUF 1959

BERNARDINUS SENENSIS Sermones in hoc Quadragesimali de Christiana Religione De gloria substantiali corporum beatorum Sermo LVII Feria VI post Ressurectionem Domini (Articulus III Caput I) In______ Sancti Bernardini Senensis opera omnia ordinis seraphici minorum synopsibus ornata postillis illustrata necnon variis tractatibus et eximiis praecipue in Apocalypsim commentariis locupletata opera et labore R P Joannis de la Haye Parisini in quinque tomos distributa Venetiis In aedibus Andreae Poletti 1745a Tomus Primus

BERNARDINUS SENENSIS Sermones in hoc Quadragesimali de Christiana Religione De gloria substantiali corporum beatorum Sermo LVIII Feria VI post Ressurectionem Domini (Articulus I Caput I) In______ Sancti Bernardini Senensis opera omnia ordinis seraphici minorum synopsibus ornata postillis illustrata necnon variis tractatibus et eximiis praecipu e in Apocalypsim commentariis locupletata opera et labore R P Joannis de la

372

Haye Parisini in quinque tomos distributa Venetiis In aedibus Andreae Poletti 1745b Tomus Primus

BERNARDINUS SENENSIS Sermones pro Festivitatibus Sanctissimae et Immaculatae Virginis Mariae Sermo X De Purificatione B Mariae Virginis In______ Sancti Bernardini Senensis opera omnia ordinis seraphici minorum synopsibus ornata postillis illustrata necnon variis tractatibus et eximiis praecipue in Apocalypsim commentariis locupletata opera et labore R P Joannis de la Haye Parisini in quinque tomos distributa Venetiis In aedibus Andreae Poletti 1745c Tomus Quartus

BERNET R Le sujet dans la nature In RICHIR M TASSIN E Merleau-Ponty pheacutenomeacutenologie et expeacuteriences Grenoble Millon 1992

BIMBENET Eacute ldquoLrsquoordre humainrdquo In MERLEAU-PONTY La structure du comportement Paris Ellipses 2000 Chap III Philo ndash textes texte et commentaire

BIMBENET Eacute Nature et humaniteacute le problegraveme anthropologique dans lrsquooeuvre de Merleau-Ponty Paris Vrin 2004

BLONDEL M Lrsquoecirctre et les ecirctres Paris Feacutelix Alcan 1935

BOUCKAERT B L ideacutee de lautre la question de lideacutealiteacute et de lalteacuteriteacute chez Husserl des Logische Untersuchungen aux Ideen I Dordrecht [ua] Kluwer 2003 (Phaenomenologica 168)

BRIDGMAN P W The Logic of Modern Physics New York The Macmillan 1927

BRUNSCHVICG L Lideacutee critique et le systegraveme kantien Revue de Meacutetaphysique et de Morale v 31 p 133-204 1924

BRUNSCHVICG L Lrsquoexpeacuterience humaine et la causaliteacute physique Paris Alcan 1922

BURTT E A As Bases Metafiacutesicas da Ciecircncia Moderna Brasiacutelia Ed da UNB 1991

CASSIRER E A Filosofia do Iluminismo Campinas Editora da Unicamp 1994

CASSIRER E La philosophie des Lumiegraveres Paris Fayard 1970

CAVALLIER F Premiegraveres leccedilons sur lrsquoœil et lrsquoesprit de M Merleau-Ponty Paris PUF 1998

CHARDIN P T de Le pheacutenomegravene humain Paris Eacuteditions du Seuil 1956

CHAUIacute M de S Notas de Traduccedilatildeo In MERLEAU-PONTY M Textos selecionados Seleccedilatildeo e traduccedilatildeo de Marilena Chauiacute Satildeo Paulo Abril Cultural 1975 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

CHAUIacute M de S Da Realidade sem misteacuterio ao misteacuterio do Mundo Espinosa Voltaire Merleau-Ponty Satildeo Paulo Brasiliense 1983

373

CHAUIacute M de S Experiecircncia do Pensamento ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty Satildeo Paulo Martins Fontes 2002

CHAUIacute M de S Maurice Merleau-Ponty e a criacutetica ao humanismo Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1967

DASTUR F Merleau-Ponty et la penseacutee du dedans In RICHIR M TASSIN E Merleau-Ponty pheacutenomeacutenologie et expeacuteriences Grenoble Millon 1992

DELEUZE G A ilha deserta e outros textos Organizaccedilatildeo e revisatildeo teacutecnica David Lapoujade Satildeo Paulo Iluminuras 2006

DERRIDA J Le problegraveme de la genegravese dans la philosophie de Husserl Paris PUF 1990

DERRIDA Jacques Meacutemoires dAveugle Lautoportrait et autres ruines Paris Reacuteunion des Museacutees Nationaux 1992

DESCARTES R Discours de la meacutethode suivis drsquoessais de cette meacutethode la

dioptrique les meacuteteacuteores la geacuteomeacutetrie In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996a v 6

DESCARTES R La Dioptrique In ______ Œuvres de Descartes Paris Victor Cousin 1824a

DESCARTES R Le Monde Traiteacute de la Lumiegravere In ______ Œuvres de Descartes Paris Victor Cousin 1824b v 4

DESCARTES R Lettre In ADAM C amp TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996b v 3 [Agosto de 1641]

DESCARTES R Lettre agrave Clerselier In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996c v 5 [23 de abril de 1649]

DESCARTES R Lettre agrave Voeumlt In ADAM C amp TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996d v 8

DESCARTES R Meditationes de prima philosophia In ADAM C amp

TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996e v 7

DESCARTES R Meacuteditations In ADAM C amp TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996f v 8 [Praeligfatio]

DESCARTES R Objectiones et Responsiones agraves Meditationes De Prima

Philosophia In ADAM C amp TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996g v 7

DESCARTES R Opuscula In ______ Œuvres de Descartes Paris Victor Cousin 1824c

DESCARTES R Principes de la philosophie In ADAM C amp TANNERY P

(Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996h v 9

374

DESCARTES R Principia philosophiaelig In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996i v 8

DESCARTES R Recherche de la veacuteriteacute In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996j v 10

DESCARTES R Regravegles In ______ Œuvres de Descartes Paris Victor Cousin 1824d v 9

DESCARTES R Regulaelig ad directionem ingenii In ADAM C amp TANNERY

P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996k v 10

DESCARTES R Reacuteponses aux Objections In ADAM C amp TANNERY P

(Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996 l v 9

DESCARTES R Specimina philosophiae Introduction and Critical Edition In VERMEULEN C L Doctoral Thesis Utrecht University 2007

DESCARTES R Textos Selecionados Trad Guinsburg J e Prado Jr B Satildeo Paulo Abril 1973

DESCARTES R Traiteacute de lrsquoHomme In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996m

DUPOND P Le vocabulaire de Merleau-Ponty Paris Ellipses 2001

FINK E Zur Krisenlage des modernen Menschen Erziehungswissenschaftliche Vortrage Herausgegeben von Franz-Anton Schwarz Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann 1989

FINK E De la Pheacutenomeacutenologie Traduccedilatildeo Didier Franck Paris Minuit 1974

FOUCAULT M As Palavras e as Coisas Satildeo Paulo Martins Fontes 1999

GADAMER H-G Verdade e Meacutetodo II Petroacutepolis Vozes 2004

GALILEI G Il Saggiatore In GALILEU G Opere Complete di Galileo Galilei Firenze Societagrave Editrice Fiorentina 1842 Tomo IV

GANDT F de Husserl et Galileacutee sur la crise des sciences europeacuteennes Paris Vrin 2004 (Bibliothegraveque drsquohistoire de la Philosophie)

GATTINARA E C Les Inquieacutetudes de la raison eacutepisteacutemologie et histoire en France dans lentre-deux-guerres Paris Vrin 1998

GILSON E Index scolastico-carteacutesien Paris 1913

GILSON E LEsprit de la philosophie meacutedieacutevale Paris Vrin 1932

GOLDSTEIN K Uumlber Aphasie Zurich Orel Fuumlssli 1927

GOLDSTEIN K La naturaleza humana a la luz de la psicopatologia Buenos Aires Paidos 1961

GOLDSTEIN K La Structure de lrsquoorganisme introduction agrave la biologie agrave partir de la pathologie humaine Paris Gallimard 1951

375

GOLDSTEIN K Language and language disturbances New York Grune amp Stratton 1948

GOLDSTEIN K GELB A Psychologische Analysen hirnpathologischer Faumllle Leipzig Barth 1920

GOLDSTEIN K The Organism New York Zone Books 2000

GOLDSTEIN K Transtornos del lenguaje las afasias su importancia para la medicina y la teoria del lenguaje Barcelona Ed Cientifico Medica 1950

GUEacuteROULT M Descartes selon lrsquoordre de raison Paris Aubier 1968 2v

GUILLAUME P Manuel de Psychologie Paris Presses Universitaires de France 1966

GUILLAUME P La psychologie de la forme Paris Flammarion 1979

GUILLAUME P Psicologia da Forma Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1966

HEIDEGGER M Der Satz vom Grund Pfullingen Guumlnther Neske1957

HEIDEGGER M Holzwege Frankfurt Vittorio Klostermann 1952

HEIDEGGER M Identitaumlt und Differenz Pfullingen Guumlnther Neske 1978

HEIDEGGER M Le Principe de Raison Traduccedilatildeo Andreacute Preacuteau Paris Gallimard 1962

HEIDEGGER M Caminhos de Floresta Lisboa Calouste Gulbenkian 1998

HEIDEGGER M Questions II Paris Gallimard 1968

HEIDEGGER M Seleccedilatildeo de Textos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores)

HEIDEGGER M Sein und Zeit Frankfurt Vittorio Klostermann 1953

HORKHEIMER M Eclipse of reason Columbia University Press 1947

HUSSERL E Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendentale Phaumlnomenologie La Haye M Nijhoff 1954

HUSSERL E Gesammelte Schriften (Husserliana) The Hague Nijhoff 1950

HUSSERL E Gesammelte Schriften Cartesianische Meditationen Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendale Phaumlnomenologie Hamburg Felix Meiner Verlag 1992 Band 8

HUSSERL E Ideen II The Hague Martinus Nijhoff 1952

HUSSERL E Ideas pertaining to a pure phenomenology and a phenomenological philosophy Third book Traduccedilatildeo Ted E Klein e William E Pohl Boston The Hague London Martinus Nijhoff Publishers 1980

HUSSERL E Ideacutees directrices pour una pheacutenomeacutenologie et une philosophie pheacutenomeacutenologique pures Traduccedilatildeo Paul Ricœur Paris Gallimard 1950 Tome Premier

HUSSERL E Investigaciones loacutegicas Traduccedilatildeo Manuel G Morente y Joseacute Gaos Madrid Alinza Editorial 1982a 2v

376

HUSSERL E La crise des sciences europeacuteennes et la Pheacutenomeacutenologie transcendantale Paris Gallimard 1976

HUSSERL E La philosophie comme science rigoureuse Paris PUF 1993

HUSSERL E Lecciones de fenomenologia de la consciencia interna del tiempo Traduccedilatildeo introduccedilatildeo y notas Agustiacuten Serrano de Haro Madrid Editorial Trotta 2002

HUSSERL E Loacutegica Formal y loacutegica transcendental Traduccedilatildeo Luis Villoro Cidade do Meacutexico Centro de Estudios Filosoacuteficos 1962a

HUSSERL E Logische Untersuchungen In HOLENSTEIN E (Ed) Husserliana Haag Martinus Nijhoff 1975 v 18

HUSSERL E Lrsquoorigine de la geacuteometrie Traduction et introduction par Jacques Derrida Paris PUF 1962b

HUSSERL E Recherches pheacutenomeacutenologiques pour la constitution Traduccedilatildeo Eliane Escoubas Paris PUF 2004

HUSSERL E Renversement de la doctrine copernicienne la Terre comme archeacute-originaire ne se meut pas Traduccedilatildeo D Franck D Pradelle e JF Lavigne Paris Minuit 1989

HUSSERL E Studien uumlber Mathematik und Geometrie In STROHMEYER I (Ed) Husserliana Haag Martinus Nijhoff 1982b v 21

HUSSERL E Umstursz der kopernikanischen Lehre In ______ Philosophical Essays in Memory of Edmund Husserl Editado por M Farber Cambridge Harvard University Press 1940

JACOB F A Loacutegica da vida uma histoacuteria da hereditariedade Rio de Janeiro Graal 1983

JORLAND Geacuterard La science dans la philosophie Les recherches eacutepisteacutemologiques drsquoAlexandre Koyreacute Paris Gallimard 1981

JOSGRILBERG R de S O pensamento de Husserl e o conceito de Lebenswelt Goiacircnia Universidade Federal de Goiaacutes Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Mestrado 2001 Notas feitas no curso do professor Rui de Souza Josgrilberg

KANT I Notes and Fragments Cambridge Cambridge University Press 2005 [Reflexatildeo 5073 de 1776-78 Ak 1879]

KANT I Criacutetica da Razatildeo Pura Traduccedilatildeo Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1994

KANT I Kritik der reinen Vernunft Hamburg Felix Meiner Verlang 1990

KELKEL A L Le legs de la Pheacutenomeacutenologie reception appropriation meacutetamorphose Paris Kimeacute 2002

KOFKA K Princiacutepios de psicologia da Gestalt Belo Horizonte Itatiaia 1980

KOumlHLER W Psicologia da Gestalt Belo Horizonte Itatiaia 1968

KOYREacute A Du monde clos agrave lunivers infini Paris Gallimard 1988

377

KOYREacute Alexandre Estudos de Histoacuteria do Pensamento Cientiacutefico Traduccedilatildeo Maacutercio Ramalho 2 ed Rio de Janeiro Forense 1991

KOYREacute A Eacutetudes drsquohistoire de la penseacutee philosophique Paris Gallimard 1971

KOYREacute A Eacutetudes newtoniennes Paris Gallimard 1968

LaCAPRA D Repensar la historia intellectual y leer textos In PALTI E J ldquoGiro Linguiacutesticordquo e Historia Intelectual Buenos Aires Universidad Nacional de Quilmes 1998 p 237-293

LACHIEZE-REY P LIdeacutealisme Kantien Paris Vrin 1950

LAVELLE L De lrsquoecirctre Paris Aubier 1947

LAVELLE L La philosophie franccedilaise entre les deux guerres Paris Aubier 1942

LAVELLE L La presence totale Paris Aubier 1962

LEBRUN G A noccedilatildeo de ldquosemelhanccedilardquo de Descartes a Leibniz In ______ A filosofia e sua histoacuteria Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2006a

LEBRUN G O cego e o filoacutesofo ou o nascimento da antropologia In ______ A filosofia e sua histoacuteria Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2006b

LEVINAS E Descobrindo a existecircncia com Husserl e Heidegger Lisboa Instituto Piaget 1997

LLAVONA R Itineraacuterio de Merleau-Ponty Madrid Syntagma 1973

LE SENNE Reneacute La Filosofia dello Spirito Turim SEI 1951

MERLEAU-PONTY M A Estrutura do Comportamento Traduccedilatildeo Joseacute de Anchieta Correcirca Belo Horizonte Interlivros 1975a

MERLEAU-PONTY M A Estrutura do Comportamento Traduccedilatildeo Maacutercia Valeacuteria Martinez de Aguiar Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

MERLEAU-PONTY M A Natureza Traduccedilatildeo Aacutelvaro Cabral Satildeo Paulo Martins Fontes 2000a

MERLEAU-PONTY M A prosa do mundo Traduccedilatildeo Paulo Neves Satildeo Paulo

Cosac amp Naify 2002a

MERLEAU-PONTY M Causeries 1948 Paris Seuil 2002b

MERLEAU-PONTY M Eacuteloge de la Philosophie et autres essais Gallimard 1960

MERLEAU-PONTY M Elogio da Filosofia Traduccedilatildeo Antoacutenio Braz Teixeira Lisboa Guimaratildees Editores 1986

MERLEAU-PONTY M Fenomenologia da Percepccedilatildeo Traduccedilatildeo Carlos Alberto de Moura Satildeo Paulo Martins Fontes 1999

MERLEAU-PONTY M Filosofiacutea y lenguaje Buenos Aires Proteo 1969

378

MERLEAU-PONTY M La Nature Paris Seuil 1994

MERLEAU-PONTY M La structure du comportement Paris PUF 1942

MERLEAU-PONTY M Le Visible et lrsquoInvisible Paris Gallimard 1964a

MERLEAU-PONTY M LrsquoInstitution La passiviteacute Paris Belin 2003 Notes de cours au Collegravege de France (1954-1955)

MERLEAU-PONTY M LrsquoŒil et lrsquoEsprit Paris Gallimard 1964b

MERLEAU-PONTY M Lrsquounion de lrsquoacircme et du corps chez Malebranche Biran et Bergson Paris Vrin 2002c

MERLEAU-PONTY M Merleau-Ponty agrave la Sorbonne reacutesumeacute de cours 1949-1952 Paris Cynara 1988

MERLEAU-PONTY M Notes des cours au Collegravege de France 1958-1959 et 1960-1961 Paris Gallimard 1996

MERLEAU-PONTY M Notes ineacutedites de la Biliotegraveque Nationale ndash NBNF Documento organizado por Pascal Dupond mas natildeo publicado

MERLEAU-PONTY M O Olho e o Espiacuterito Traduccedilatildeo Luiz Manoel Bernardo Lisboa Vega1997a (Col Passagens)

MERLEAU-PONTY M O olho e o espiacuterito Traduccedilatildeo Paulo Neves e Maria Ermantina G G Pereira Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

MERLEAU-PONTY M O Primado da Percepccedilatildeo e suas consequumlecircncias filosoacuteficas Traduccedilatildeo Constanccedila Marcondes Ceacutesar Campinas Papirus 1990

MERLEAU-PONTY M O Visiacutevel e o Invisiacutevel Traduccedilatildeo Joseacute Artur Gianotti e

Armando Mora dOliveira Satildeo Paulo Perspectiva 1992

MERLEAU-PONTY M Palestras Traduccedilatildeo Artur Moratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 2002d

MERLEAU-PONTY M Parcours 1935-1951 Paris Verdier 1997b

MERLEAU-PONTY M Parcours deux 1951-1961 Paris Verdier 2000b

MERLEAU-PONTY M Pheacutenomeacutenologie de la perception Paris Gallimard 1945

MERLEAU-PONTY M Reacutesumeacutes de cours Collegravege de France 1952-1960 Paris Gallimard 1968

MERLEAU-PONTY M Sens et non-sens Paris Nagel 1966

MERLEAU-PONTY M Signes Paris Gallimard 1960

MERLEAU-PONTY M Signos Traduccedilatildeo Maria Ermentina Galvatildeo G Pereira Satildeo Paulo Martins Fontes 1991

MERLEAU-PONTY M Textos selecionados Seleccedilatildeo e traduccedilatildeo de Marilena Chauiacute Satildeo Paulo Abril Cultural 1975b (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

379

MINKOWSKI E Au-delagrave du rationalisme morbide Paris LHarmattan 1997

MINKOWSKI E La Schizophreacutenie Paris Petite Bilbiothegraveque Payot 1997

MINKOWSKI E Le Temps Veacutecu Paris Presses Universitaires de France 1995

MINKOWSKI E Traiteacute de Psychopathologie Paris Les Empecirccheurs de Penser en Rond 1999

MONDOLFO R Problemas y meacutetodos de investigacioacuten en la historia de la filosofiacutea Buenos Aires Eudeba 1963

MOURA CAR Racionalidade e Crise Satildeo Paulo Discurso Editorial Editora da UFPR 2001

MOUTINHO L D S A ontologia do mundo vivido a gecircnese do sentido em Merleau-Ponty 1998 232 f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Deptamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998

OLESEN Soslashren Gosvig LHeritage Husserlien chez Koyreacute et Bachelard In JENSEN U J NORDENBO S-E Danish Yearbook of Philosophy Copenhagen Museum Tusculanum Press 1994 vol 29

OLIVEIRA W C Merleau-Ponty a dimensatildeo ontoloacutegica do sensiacutevel 1994 138 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Faculdade de filosofia e ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade Federal de Minas Gerais 1994

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001

POTALIS J B Apregraves Freud Paris Gallimard 1993

POLITZER G A filosofia e os mitos Traduccedilatildeo Eduardo Francisco Alves Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1978

POLITZER G Criacutetica dos fundamentos da psicologia Traduccedilatildeo Conceiccedilatildeo Jardim e Eduardo Luacutecio Nogueira Lisboa Presenccedila 1980

POTALIS J B Apregraves Freud Paris Gallimard 1993

PRADO JR B Alguns ensaios filosofia literatura psicanaacutelise Satildeo Paulo Paz e Terra 2000

PRADO JR B (Org) Filosofia da Psicanaacutelise Satildeo Paulo Brasiliense 1991

QUINET A Um olhar a mais ver e ser visto na psicanaacutelise Rio de Janeiro Zahar 2002

REVEL J-F La Connaissance Inutile Paris Eacuteditions Bernard Grasset 1988

REVEL J-F Pourquoi des philosophes Paris Julliard 1957

RICŒUR P Interpretation Theory discourse and the surplus of meaning Fort Worth Texas The Texas Christian University Press 1976

380

RICŒUR P Percurso do reconhecimento Traduccedilatildeo Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Satildeo Paulo Loyola 2006

ROBINET A Discussion Merleau-Ponty et lrsquohistoire de la philosophie In HEIDSIECK F Merleau-Ponty le philosophe et son langage Paris Vrin 1993 Recherches sur la philosophie et langage 15

RYLE G La pheacutenomeacutenologie contre The concept of Mind In CAHIERS DE ROYAUMONT La philosophie analytique Paris Minuit 1962

SAINT-AUBERT E de Du lien des ecirctres aux eacuteleacutements de lrsquoecirctre Merleau-Ponty au tournant des aneacutees 1945-1951 Paris Vrin 2004

SAINT-AUBERT E de Le sceacutenario carteacutesien Recherches sur la formation et la coheacuterence de lintention philosophique de Merleau-Ponty Paris Vrin 2005

SARTRE J-P Situaccedilotildees I Lisboa Europa-Ameacuterica 1968

SARTRE J-P Merleau-Ponty vivo In ______ Situaccedilotildees IV Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica 1972

SLATMAN J LrsquoExpression au-delagrave de la Repreacutesentation sur lrsquoaisthecircsis et lrsquoEstheacutetique chez Merleau-Ponty 2001 256f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Faculteit der Geesteswetenschappen Gramsbergen 2001

TILLIETTE X Preacutesentation et Notes au Cours Husserl et la Notion de Nature In MERLEAU-PONTY M Parcours deux 1951-1961 Paris Verdier 2000

UEXKUumlLL J V Dos animais e dos homens digressotildees pelos seus proacuteprios mundos Doutrina do Significado Lisboa Livros do Brasil 1959

VALEacuteRY P La crise de lrsquoesprit In ______ Varieacuteteacute Œuvres complegravetes Paris Gallimard 1943 v 1

VILLELA-PETIT Maria Lrsquoaffectiviteacute de la couleur In BRISART R CEacuteLIS R La voix des pheacutenomegravenes contribuitions agrave une pheacutenomeacutenologie du sens et des affects Bruxelles Publications des Faculteacutes Universitaires Saint-Louis 1995

WAELHENS A de Une philosophie de lrsquoambiguiumlteacute rsquoexistentialisme de Maurice Merleau-Ponty Lovaina Nauwelaerts 1951

WERTHEIMER M Gestalt theory New York The Humanities Press 1938

Page 2: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques

2

MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZAtildeO

3

Universidade Federal de Satildeo Carlos Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciecircncias

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia

MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZAtildeO

Rodrigo Vieira Marques

Tese de Doutorado apresentado ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da Universidade Federal de Satildeo Carlos como parte dos requisitos para obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Doutor em Filosofia Orientador Dr Richard Theisen Simanke

SAtildeO CARLOS 2011

Ficha catalograacutefica elaborada pelo DePT da Biblioteca ComunitaacuteriaUFSCar

M357mp

Marques Rodrigo Vieira Merleau-Ponty e a crise da razatildeo Rodrigo Vieira Marques -- Satildeo Carlos UFSCar 2012 380 f Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de Satildeo Carlos 2011 1 Filosofia francesa 2 Merleau-Ponty Maurice 1908-1961 3 Fenomenologia I Tiacutetulo CDD 194 (20a)

6

Dedico este trabalho agrave minha famiacutelia solo fecundo e afaacutevel no qual se encontram minhas raiacutezes

7

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar ao Dr Richard Theisen Simanke por sua orientaccedilatildeo

segura valiosas sugestotildees e principalmente por sua consideraccedilatildeo de que

antes de tudo o pensamento eacute uma experiecircncia Tambeacutem ao Dr Pascal

Dupond especialmente por ter possibilitado meu acesso aos ineacuteditos de

Merleau-Ponty aleacutem de suas sugestotildees e cordial atenccedilatildeo Por fim a todos os

que direta ou indiretamente propiciaram a percepccedilatildeo que fez nascer o

presente trabalho

8

Una est quae reparet seque ipsa reseminet ales Assyrii phoenica uocant non fruge neque herbis sed turis lacrimis et suco uiuit amomi [] haec ubi quinque suae conpleuit saecula uitae ilicet in ramis tremulaeque cacumine palmae unguibus et puro nidum sibi construit ore quo simul ac casias et nardi lenis aristas quassaque cum fulua substrauit cinnama murra [] se super inponit finitque in odoribus aeuum inde ferunt totidem qui uiuere debeat annos corpore de patrio paruum phoenica renasci cum dedit huic aetas uires onerique ferendo est ponderibus nidi ramos leuat arboris altae [] fertque pius cunasque suas patriumque sepulcrum perque leues auras Hyperionis urbe potitus ante fores sacras Hyperionis aede reponit (Oviacutedio) Nichts ist drinnen nichts ist drauszligen denn was innen ist ist auszligen(Goethe)

9

RESUMO

Este trabalho parte de uma leitura da filosofia de Merleau-Ponty centrada na

noccedilatildeo de ldquoCrise da Razatildeordquo fundamentando-se no pressuposto de que se

trata de um conceito fundamental da fenomenologia contemporacircnea No

pensamento cartesiano jaacute era possiacutevel encontrar a ideia de crise poreacutem

tratava-se da constataccedilatildeo de uma ldquocrise das ciecircnciasrdquo Algo semelhante

havia tambeacutem em Valeacutery especialmente ao se falar de uma ldquocrise do

espiacuteritordquo A novidade de Husserl estava justamente em mostrar que a crise

tal como ele a vivia era mais profunda abalava a proacutepria Razatildeo Este

trabalho assume a tarefa de mostrar que natildeo se limitando a uma crise das

ciecircncias do espiacuterito ou da proacutepria Razatildeo Merleau-Ponty discute uma crise

presente no proacuteprio homem ou antes nos diversos pontos de vista que se

tem a seu respeito Eacute neste sentido que o seu projeto filosoacutefico se

fundamenta em primeiro lugar na tentativa de estabelecer um diaacutelogo entre

os pontos de vista da filosofia e da ciecircncia Por conseguinte justifica-se uma

investigaccedilatildeo da divergecircncia destes pontos procurando elucidar natildeo soacute o

cenaacuterio no qual o conflito se encontra mas tambeacutem a sua gecircnese Do mesmo

modo partindo de uma compreensatildeo merleau-pontiana da crise por fim

este trabalho assume tambeacutem a tarefa de se indagar acerca da repercussatildeo

desta mesma crise na relaccedilatildeo do saber filosoacutefico consigo mesmo logo no

modo da proacutepria filosofia entender a sua histoacuteria estando pois a

importacircncia desta incursatildeo no ensejo de explicitar o que para Merleau-

Ponty seria uma possiacutevel via de superaccedilatildeo

Palavras-chave Filosofia Francesa Maurice Merleau-Ponty Fenomenologia

10

ABSTRACT

This work takes its point of departure in Merleau-Pontyrsquos Philosophy

centered in the notion of ldquoCrisis of Reasonrdquo basing itself on the

presupposition that this is a fundamental concept of contemporary

phenomenology In the Cartesian thought already it was possible to find the

idea of the crisis however it was the finding of a ldquocrisis of sciencesrdquo

Something similar was also in Valeacutery especially when he speaks of a ldquocrisis

of spiritrdquo The novelty of Husserl was exactly in showing that the crisis as he

lived it was deeper shook the Reason itself This work assumes the task of

showing that not limiting to a crisis of sciences of the spirit or of Reason

itself Merleau-Ponty discusses a present crisis in the man himself or rather

in the diverse points of view that has about him In this sense his

philosophical project is based primarily on the attempt to establish a

dialogue with the points of view of the philosophy and of the science

Therefore an inquiry of the divergence of these points is warranted

elucidating not only the scenario in which the conflict is but also its genesis

Likewise starting from a Merleau-Pontian understanding of the crisis

finally this study also assumes the task of asking about the repercussions

of this crisis in the relation of philosophical knowledge to itself then in the

way of his own philosophy to understand its history being therefore the

importance of this incursion in the desire to explain what according to

Merleau-Ponty would be a possible way of overcoming

Keywords French Philosophy Maurice Merleau-Ponty Phenomenology

11

REacuteSUMEacute

Ce travail a son point de deacutepart dans la philosophie de Merleau-Ponty

centreacute dans la notion de laquo Crise de la Raison raquo en srsquoappuyant donc sur la

preacutesupposition qursquoelle srsquoagit drsquoun concept fondamental de la pheacutenomeacutenologie

contemporaine Dans la penseacutee cartesienne crsquoeacutetait deacutejagrave possible de trouver

lrsquoideacutee de crise cependant elle srsquoagissait de la constatation drsquoune laquo crise des

sciences raquo Quelque chose de semblable se passait avec Valery notamment

quand il dit drsquoune laquo crise de lrsquoesprit raquo La noveauteacute de Husserl eacutetait juste

montrer que la crise telle qursquoil la vivait eacutetait plus profonde eacutebrahlait la

Raison elle-mecircme Ce travail assume la tacircche de montrer que en ne srsquoen

tenant pas agrave une crise des science de lrsquoesprit ou de la Raison elle-mecircme

Merleau-Ponty met en question une crise preacutesente chez lrsquohomme lui-mecircme

dans les divers points de vue qursquoon a sur lui Crsquoest pouquoi que son projet

philosophique tout drsquoabord se fonde sur la tentative drsquoeacutetablir un dialogue

entre les points de vue de la philosophie et de la science Une recherche de la

divergence des ces points de vue donc elle se justifie en cherchant agrave

eacutelucider non seulement le sceacutenario dont le conflit se trouve mais aussi la

geacutenegravese de celui-ci De mecircme en partant drsquoune compreacutehension merleau-

pontienne de la crise en fin de comptes ce travail assume la tacircche de se

demander sur la reacutepercussion de cette mecircme crise dans le rapport du savoir

philosophique agrave soi mecircme donc dans la maniegravere dont la philosophie elle-

mecircme comprendre son histoire en eacutetant alors lrsquoimportance de cette

incursion dans le deacutesir drsquoexpliciter ce qui serait drsquoapregraves Merleau-Ponty une

possible voie de deacutepassement

Mots-cleacute Philosophie Franccedilaise Maurice Merleau-Ponty Pheacutenomeacutenologie

12

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO PRIMEIRA PARTE ndash O ldquoMAL-ESTARrdquo DA RAZAtildeO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS Capiacutetulo I ndash Da Crise do Espiacuterito agrave Crise da Razatildeo o Mundo-da-Vida 11 O ldquomal-estarrdquo da Razatildeo A Crise do Espiacuterito 12 A Fenomenologia e a Crise da Razatildeo os limites do

cientificismo e o retorno ao Mundo-da-Vida 13 A Ruumlckfrage e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica a Lebenswelt como

proposta de superaccedilatildeo do naturalismo como Ursprungsklaumlrung como retorno ao mundo preacute-copernicano

Capiacutetulo II ndash Os limites do Mundo Claacutessico e o Teatro Cartesiano o problema da representaccedilatildeo 21 Um ponto de partida O mundo claacutessico e o mundo moderno 22 Descartes e o problema da ldquorepresentaccedilatildeordquo o

operacionalismo de Descartes e a intuitus mentis 221 O operacionalismo cartesiano e a identificaccedilatildeo de lux e lumen 222 A intuitus mentis e o positivismo da visatildeo 223 A similitude e o arbiacutetrio cartesiano do signo 224 Caminhos de desconstruccedilatildeo a reabilitaccedilatildeo do sensiacutevel e o

enigma do olhar 2241 A descorberta da afetividade das cores 2242 Os limites da noccedilatildeo claacutessica de perspectiva 2243 O enigma do olhar e os impasses da representaccedilatildeo 225 A transformaccedilatildeo da luz natural e a releitura do Cogito 23 A gecircnese da Crise nas relaccedilotildees com a Natureza Capiacutetulo III ndash O pseudocartesianismo e o Realismo Cientificista o paradoxo do Menon 31 Apresentaccedilatildeo do problema Descartes e o cientificismo 32 A psicologia claacutessica o objetivismo cientificista 33 A tradiccedilatildeo intelectualista e seus cenaacuterios 34 As ldquoruiacutenas do pensamentordquo e o ldquoconflito dos pontos de vistardquo a

crise na compreensatildeo do homem 341 O conflito dos pontos-de-vista na compreensatildeo do homem a

compreensatildeo do intervalo do saber cientiacutefico e do saber filosoacutefico

342 A encarnaccedilatildeo do sujeito e as faces da subjetividade encarnada ldquoesquema corporalrdquo e ldquocorpo proacutepriordquo

14

24

25

25

34

50

72 72

86 87 100 104

113 113 119 122 138 141

159 159 172 179

186

186

203

13

SEGUNDA PARTE ndash CRISE E FILOSOFIA O SENTIDO DA FEcircNIX Capiacutetulo IV ndash A Crise do Entendimento e o Sentido da Histoacuteria a Historiografia Filosoacutefica 41 A experiecircncia filosoacutefica da Verdade 42 A crise do entendimento e os entraves da historiografia

claacutessica o problema da histoacuteria 43 O horizonte intelectualista de fundo cartesiano presente na

histoacuteria da filosofia ldquoa ordem das razotildeesrdquo ndash Da leitura de Descartes agrave historiografia filosoacutefica

44 Merleau-Ponty e a Histoacuteria do Pensamento a filosofia interrogativa o ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] o sentido da Fecircnix

441 Um ponto de partida Da ldquoordem das razotildeesrdquo agraves ldquorazotildees da ordemrdquo ndash a busca pelo sentido da ldquoordem cartesianardquo

442 O entrecruzamento de objetividade e subjetividade o impensado [das Ungedachte]

45 A ldquoexperiecircncia do pensamentordquo nas trilhas de uma ldquoexperiecircncia da linguagemrdquo a filosofia interrogativa o sentido da Fecircnix

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS ANEXOS A arqueoriginaacuteria Terra natildeo se move ndash E Husserl (Traduccedilatildeo) Notas sobre o desenvolvimento de meus conceitos ndash K Goldstein (Traduccedilatildeo) Textos de Candidatura ao Collegravege de France ndash M Merleau-Ponty (Traduccedilatildeo) Referecircncias

218

219 219

222

241

251

251

264

281

292

303

322

336

371

14

INTRODUCcedilAtildeO A noccedilatildeo de ldquocriserdquo certamente natildeo eacute um privileacutegio do

pensamento contemporacircneo Ao contraacuterio ela oculta talvez uma pretensatildeo

que sempre tenha assombrado o saber filosoacutefico pretensatildeo esta que os

antigos poderiam chamar de ὕβρις [hybris] ou seja uma excessiva

confianccedila um desmedido orgulho semelhante agrave iniciativa dos homens em

querer superar o poderio dos deuses Em que consistiria este

desmensuramento Onde estaria a ausecircncia de seu oposto a saber a

virtuosa prudecircncia aquilo que os romanos tatildeo bem nomearam bona mens a

capacidade do homem em reconhecer a sua proacutepria humanidade Se

pensarmos na inserccedilatildeo deste termo no discurso positivista podemos talvez

compreender o sentido deste ldquoexcessordquo Trata-se justamente da crenccedila ou do

mito de que uma eacutepoca esteja isenta de conflitos que seja possiacutevel falar de

uma passagem do caos agrave ordem ou melhor que entre dois sistemas

ordenados podemos encontrar uma ldquozona de transiccedilatildeo caoacuteticardquo cujo

ordenamento se dissipa no exato instante em que mediante uma nova

configuraccedilatildeo um outro ordenamento ocupe o seu lugar Daiacute o ensejo de

romper na histoacuteria com toda e qualquer ldquofaixa de turbulecircnciardquo ateacute que

magicamente os conflitos sejam dissipados

Pensando assim de certa forma jaacute no pensamento antigo natildeo

encontrariacuteamos dificuldades em situar ldquomomentos de criserdquo O problema se

agrava contudo quando natildeo mais partimos do pressuposto de que a

histoacuteria siga um movimento linear deste modo fundada em uma

circularidade as faixas de conflitos se converteriam antes em nervuras

viriam a impregnar cada linha que constitui a vivecircncia que se tem de cada

momento ou melhor de cada acontecimento histoacuterico Qual seria entatildeo o

sentido de se falar em crise Seguramente natildeo mais como a passagem da

desordem agrave ordem Antes como o aceno de que como no teatro na

emergecircncia de um novo drama torna-se preeminente a mudanccedila do cenaacuterio

Pensando nestas consideraccedilotildees ao falar de uma ldquocrise das ciecircnciasrdquo natildeo era

esta ideia o que Descartes tinha em vista e cometeriacuteamos aqui ateacute mesmo

um equiacutevoco a legitimaccedilatildeo de uma ldquoilusatildeo retrospectivardquo se lhe exigiacutessemos

15

um compromisso com a circularidade da histoacuteria ou mesmo com a proacutepria

histoacuteria paisagem que lhe era desconhecida terra estrangeira a que seu

pensamento natildeo chegara a avistar Ao falar de crise o que alimenta o

pensamento cartesiano eacute a constataccedilatildeo de que algo faltava agraves ciecircncias de

seu tempo Partindo de uma unidade da sapientia humana como confiar em

uma construccedilatildeo projetada por vaacuterios arquitetos O que faltaria agraves ciecircncias

era o mesmo que nortearia os meandros do projeto filosoacutefico de Descartes

ou seja a descoberta de um fundamentum inconcussum capaz de lhe

garantir a seguranccedila tatildeo almejada Neste ldquoalicerce inabalaacutevelrdquo repousaria o

Cogito e suas certezas apodiacuteticas frutos de um meacutetodo bem elaborado e

dirigido pelos princiacutepios da Razatildeo A crise tinha pois uma soluccedilatildeo seguir

os preceitos da Prima Philosophia demonstrar agraves ciecircncias galhos de uma

uacutenica aacutervore a necessidade de se nutrirem de uma mesma raiz ou seja da

Metafiacutesica conduzida pela ldquoluz naturalrdquo

No caso de Valeacutery jaacute tendo sido fundada a razatildeo claacutessica a crise

parecia avanccedilar um pouco mais adiante ela quase invadia o terreno do

Espiacuterito Curiosamente neste caso ainda natildeo totalmente tematizada mas

ferozmente vivida seraacute a proacutepria histoacuteria que incitaraacute este sentimento a

Guerra o assombro da contradiccedilatildeo a ameaccedila de uma eminente derrocada

natildeo soacute dos ordenamentos de uma eacutepoca mas de seu saber Poreacutem ao

contraacuterio de um terremoto a repecursatildeo de um possiacutevel abalo natildeo poderia

significar outra coisa que o esquecimento ou enfraquecimento desta proacutepria

razatildeo ainda tida como legiacutetima Ao falar em crise Valeacutery apenas ressentia

um tempo no qual as luzes do espiacuterito comeccedilavam a se esconder por traacutes

das nuvens da ignoracircncia do natildeo-saber O que caberia agrave filosofia

Resguardar o seu tesouro proteger-se e denunciar o que ldquopoderiardquo vir a ser

um crime de lesa-majestade Eacute assim que a geraccedilatildeo de Merleau-Ponty antes

de ter sentido na carne as consequecircncias de uma Guerra tambeacutem iria viver

este descompasso da Razatildeo Mas por que a Guerra Natildeo seria confundir o

ldquoconceitordquo de crise por sua vez ldquoabstratordquo com os infortuacutenios dos

acontecimentos Natildeo seria alimentar o historicismo ou antes misturar o

transcendental e o empiacuterico Nesta ressalva jaacute encontramos a resposta Se a

vivecircncia da Guerra comeccedilava a afetar o terreno do Espiacuterito eacute porque de

16

fato a crenccedila que se tinha nele de certa forma ao menos nas paisagens de

pensamento que procuramos descrever ndash afinal natildeo nos esqueccedilamos dos

ldquolibertinos barrocosrdquo ndash natildeo tinha um papel coadjuvante mas principal

basilar Eacute assim que pouco a pouco encontramos na compreensatildeo do que

antes era uma crise de valores agravada pela desumanizaccedilatildeo das relaccedilotildees

sociais e poliacuteticas a clivagem para uma crise dos fundamentos que lhes

serviam de alicerce Quais seriam as consequecircncias disto

Em primeiro lugar o sentimento de que mais do que uma crise

das ciecircncias o que emergia era uma crise da proacutepria Razatildeo ou melhor de

um determinado projeto de Razatildeo Eacute assim que no pensamento husserliano

iraacute se configurar o sentimento de uma crise engendrada e agravada

especialmente pelo desenvolvimento das ciecircncias do homem e das ciecircncias

em geral Seria o reconhecimento de uma ldquozona de turbulecircnciardquo o

engendramento do mito positivista No caso da fenomenologia a mudanccedila

de um cenaacuterio que por sua vez natildeo se concentrava em uma fase a partir da

qual se anunciava uma evolutiva mudanccedila mas encontrava antes sua

gecircnese na eacutepoca que lhe antecedera daiacute o sentido de uma ldquoarqueologia

fenomenoloacutegica da razatildeordquo um ldquoeclipse dos absolutosrdquo Qual seria o papel da

Filosofia No caso de Husserl fazer com que a Razatildeo comparada a uma

Fecircnix renascesse poreacutem nas trilhas de um τέλοϛ [teacutelos] que encontrava

suas origens e projeto no pensamento grego Seria esta a percepccedilatildeo que

Merleau-Ponty tivera de sua eacutepoca Seraacute assim que entenderaacute os abalos dos

fundamentos da Razatildeo atestados na ciecircncia em geral pelos trabalhos de Le

Roy e Duhem nas ciecircncias do homem pelas pesquisas psicoloacutegicas

socioloacutegicas e histoacutericas na filosofia pelo ceticismo inserido pelo asseacutedio do

psicologismo do historicismo e do naturalismo No final das contas como se

daria a sua recepccedilatildeo da crise husserliana

Em um curso dado no Collegravege de France ao pensar na ideia de

crise Merleau-Ponty procurava justamente elencar os seus rastros Onde

podemos encontraacute-la Para o filoacutesofo haveria uma crise da racionalidade

que se estabelecia ldquonas relaccedilotildees entre os homensrdquo ldquonas relaccedilotildees com a

Naturezardquo na experiecircncia da verdade presente nas relaccedilotildees entre a ciecircncia e

o mundo vivido e por fim na proacutepria filosofia e sua possibilidade

17

(MERLEAU-PONTY 1996 p 40) Constantemente nas Notes du Travail e

nos Reacutesumeacutes des cours Merleau-Ponty voltava-se para sua eacutepoca procurava

entender o seu tempo e isto porque ao perceber os limites da Metafiacutesica

tinha por pretensatildeo elaborar uma ldquonova ontologiardquo Isso se torna eacuteclatant

principalmente nas notas ainda ineacuteditas por ocasiatildeo de seus Projets des

livres1 Em uma destas notas encontramos uma indagaccedilatildeo do filoacutesofo que

nos chama a atenccedilatildeo trata-se de uma nota datada de 25 de setembro de

1958 que a nosso ver constitui o coraccedilatildeo de seus derradeiros projetos

filosoacuteficos assim como um caminho de leitura para os seus primeiros

trabalhos Encontramos ali uma pergunta acerca do sentido das ldquoruiacutenasrdquo de

uma ldquoRuinenlandschaft unsere Tagerdquo ou confusatildeo na qual se encontra o

pensamento moderno assim como expressa nomeadamente Eugen Fink ao

afirmar que ldquovivemos em lsquoruiacutenas de pensamentosrsquordquo (MERLEAU-PONTY

2000b p 299)

Ora sabemos que de certo modo a existecircncia de ruiacutenas indica

sobretudo os sedimentos e os despojos do que antes poderiam ter sido os

monumentos de uma civilizaccedilatildeo antiga Esta imagem natildeo eacute gratuita em

Merleau-Ponty (2000b p 40) ela faz parte daquele movimento arqueoloacutegico

que ele assumira como componente de seu meacutetodo filosoacutefico2

Vislumbramos todavia nesta imagem duas possibilidades de compreensatildeo

ruiacutena pode significar tanto despojos ou destroccedilos quanto confusatildeo

desordem caos O interessante eacute que neste caso a confusatildeo tem nos

destroccedilos o signo do que poderia ter sido a sua origem Podemos falar

assim que o filoacutesofo denunciava antes de tudo uma proto-ruiacutena uma

arqui-ruiacutena uma ruiacutena originante e originaacuteria das discordacircncias e confusotildees

1 Algumas destas notas arquivadas na Biblioteca Nacional da Franccedila jaacute foram transcritas por alguns pesquisadores da obra merleau-pontiana dentre eles Lefort Barbaras e Dupond Quando se tratar das notas ainda ineacuteditas vale salientar que aqui seguiremos a transcriccedilatildeo de Dupond Iremos identificaacute-las como NBNF Os siacutembolos [ ] fazem referecircncia agrave paginaccedilatildeo da Biblioteca e os siacutembolos ( ) indicam a paginaccedilatildeo segundo os manuscritos de Merleau-Ponty 2 Cf Merleau-Ponty (2000b p 40) ldquoOr si la perception est ainsi lrsquoacte commun de toutes nos fonctions motrices et affectives non moins que des sensorielles il nous faut redeacutecouvrir la figure du monde perccedilu par un travail comparable agrave celui de lrsquoarcheacuteologue car elle est ensevelie sous les seacutediments des connaissances ulteacuterieuresrdquo

18

da filosofia consigo mesma e com as ciecircncias Como o interesse do filoacutesofo

natildeo era indutivo (MERLEAU-PONTY 2000b p 25)3 o seu empreendimento

soacute poderia beirar as tecircnues fronteiras entre epistemologia e ontologia mais

do que o pressuposto ldquoconflitordquo ndash jaacute resolvido em alguns comentadores do

filoacutesofo sem nunca ter existido radicalmente na obra merleau-pontiana ela

mesma ndash entre fenomenologia e ontologia4 O que constitui portanto esta

proto-ruiacutena que tanto inquieta o filoacutesofo O que estaacute de fato em jogo na

constataccedilatildeo de que ldquovivemos em ruiacutenas de pensamentosrdquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [2] (1)) Qual seria a razatildeo destas ruiacutenas Natildeo seria o

sentimento de que a filosofia tem muito mais a investigar e a compreender

do que a pergunta constante entre alguns de seus contemporacircneos se a

verdade estaria com Tomaacutes de Aquino ou com Engels5

Para o filoacutesofo a nosso ver natildeo eacute nada de outro que a iniciativa

reflexiva em definir a filosofia ldquoem relaccedilatildeo a certos seresrdquo atitude esta

presente no naturalismo no humanismo e no teiacutesmo os quais para

Merleau-Ponty nos escombros de uma crise da Razatildeo teriam perdido todo o

seu sentido (MERLEAU-PONTY NBNF [4] (2)) Esta iniciativa desdobra-se

no que se tornara um dos grandes alvos do deacutesaveu do filoacutesofo o ldquoneo-

criticismordquo ou ldquointelectualismordquo especialmente na compreensatildeo da

subjetividade em sua relaccedilatildeo com o mundo e o ldquooperacionalismo

3 ldquoMais en mecircme temps notre recherche demeure philosophique Notre traitement des faits reste distinct du traitement inductif et scientifique Il nrsquoest pas question pour nous de consideacuterer la parole ou la penseacutee comme la simple somme des faits de la langue ou des faits de penseacutee tels qursquoils se sont produits ici ou lagrave agrave telle date En chacun drsquoeux nou essayons de saisir ce qui reprend et sublime le preacuteceacutedent anticipe le suivant lrsquoeacutemergence drsquoune structure drsquoune champ drsquoexpeacuterience qui en font plus qursquoun eacuteveacutenement une institutionrdquo 4 A nosso ver Merleau-Ponty natildeo estaacute preocupado em se situar seja no campo da fenomenologia seja no da epistemologia seja no da ontologia Sua intenccedilatildeo eacute fazer filosofia e filosofar eacute atravessar todas essas proviacutencias haja vista que o que move a reflexatildeo eacute antes uma ldquoquestatildeordquo do que a legitimidade de um selo que confirme a participaccedilatildeo em uma ldquoseita filosoacuteficardquo 5 ldquoLrsquoideacutee qursquoen France aujourdrsquohui des ecirctres humains se divisent sur la question de savoir si saint Thomas et Engels ont raison ou tor dans ce qursquoils disent de la Nature ndash cette ideacutee me paraicirct consternante quand on pense agrave tout ce qursquoil y a agrave connaicirctre ou agrave comprendre On ne peut en quelques mots esquisser une philosophie Disons seulement qursquoil faudrait une philosophie de lrsquoecirctre brut et non cette philosophie de lrsquoecirctre sage qui voudrait faire croire qursquoil y a une maniegravere de rendre le monde explicable ndash et une eacutetude attentive du sens un autre sens que le sens des ideacutees un sens fuyant et allusif auquel manque toute puissance directe sur les choses quoi qursquoil y paraisse et srsquoy deacuteveloppe pour peu que certains obstacles aient eacuteteacute leveacutesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 299)

19

naturalistardquo presente no tratamento das ciecircncias6 Natildeo estaria na

divergecircncia radical destas clivagens em seus equiacutevocos e paradoxos mesmo

indiretamente um dos pressupostos e indiacutecios do sentimento de crise que

passaria a assediar epistemologicamente e filosoficamente o seacuteculo XX Do

mesmo modo conforme indicamos se o ldquonaturalismo o humanismo e o

teiacutesmo perderam toda a significaccedilatildeo em nossa culturardquo (MERLEAU-PONTY

2000a p 219) se ldquotodas essas concepccedilotildees natildeo deixam de imiscuir-se umas

nas outrasrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 219) fazendo pois do problema

ontoloacutegico um problema dominante o que resta a um pensamento

conduzido pelas categorias do mundo claacutessico Como sair deste labirinto

Onde estaria o fio de Ariadne

Para Merleau-Ponty natildeo estaria na tentativa de tatildeo-somente

denunciar os limites da ciecircncia nem muito menos no ensejo de recuperar o

que seria um autecircntico projeto de Razatildeo e seu τέλοϛ [teacutelos] Daiacute que a proacutepria

noccedilatildeo de crise ao ter sido direcionada para o conflito dos pontos de vista

que se tem acerca do homem deveria ela mesma sofrer um eclipse

convertendo-se na oportunidade de reencontro daquilo que

verdadeiramente encontra-se nas fibras da proacutepria Razatildeo portanto da

possibilidade que se abre agrave filosofia de repensar a si mesma e de rever em

sua ontologia suas relaccedilotildees com as outras ciecircncias e saberes voltando-se

pois para o fundo de silecircncio do qual ela mesma emergira ou seja para

uma experiecircncia preacutevia do mundo Seria ali que para Merleau-Ponty

poderiacuteamos encontrar o fio de Ariadne a nos guiar nos labirintos construiacutedos

pela metafiacutesica claacutessica Ora eacute pensando neste modo de encarar a crise de

purificar suas pretensotildees positivistas empreendimento de κάθαρσις

6 Nisto estaria inclusive aquilo que mutatis mutandis segundo Horkheimer deve ser entendido como uma espeacutecie de ldquodoenccedila da Razatildeordquo ldquoSe focircssemos falar de uma doenccedila afetando a razatildeo essa doenccedila natildeo deveria ser entendida como tendo acometido a razatildeo em algum momento histoacuterico mas como inseparaacutevel da natureza da razatildeo na civilizaccedilatildeo tal como a conhecemos ateacute entatildeo A doenccedila da razatildeo consiste no fato dela ter nascido da necessidade humana de dominar a naturezardquo (HORKHEIMER 1947 p 176) Neste sentido Horkheimer acrescentaria ateacute mesmo que ldquose poderia dizer que a loucura coletiva que hoje se estende dos campos de concentraccedilatildeo ateacute as aparentemente mais inofensivas reaccedilotildees da cultura de massas jaacute estava presente em germe na objetivaccedilatildeo primitiva na primeira contemplaccedilatildeo calculadora do mundo pelo homemrdquo (HORKHEIMER 1947 p 176)

20

[Kaacutetharsis] que teve seu iniacutecio no pensamento husserliano que

procuraremos estruturar o nosso trabalho

O nosso texto se encontra subdivido em duas partes Na

primeira parte que dispomos em trecircs capiacutetulos tratamos do que seria um

ldquomal-estarrdquo da Razatildeo presente em uma espeacutecie de eclipse dos ldquoabsolutosrdquo e

a proposta de um retorno ao Mundo-da-vida finalizando com a tematizaccedilatildeo

da crise que no entender de Merleau-Ponty estaria presente conforme jaacute

indicamos no conflito dos pontos de vista da ciecircncia e da filosofia tal como

se manifesta na compreensatildeo do homem Na segunda formada por um

capiacutetulo versamos sobre a relaccedilatildeo existente entre Crise e Filosofia Qual

seraacute o percurso que iremos percorrer em cada parte Primeiramente vale

lembrar que natildeo nos pautaremos aqui na disposiccedilatildeo das questotildees que

procuraremos elucidar na riacutegida obediecircncia do que seriam as mutaccedilotildees

sofridas pelo pensamento de Merleau-Ponty desde La Structure du

comportement ateacute Le Visible et lrsquoInvisible desobrigando-nos da necessidade

presente em alguns leitores do filoacutesofo de estabelecer um quadro evolutivo

cujas restriccedilotildees impossibilitariam um diaacutelogo presente dentre os diversos

momentos da obra De modo diverso partiremos antes do que ao longo de

sua filosofia parece unir cada momento de seu projeto natildeo nos parecendo a

ideia de ldquoevoluccedilatildeordquo apropriada ao seu modo de filosofar Evidentemente eacute

certo que por exemplo a noccedilatildeo de ldquoconsciecircncia perceptivardquo nos uacuteltimos

trabalhos perde o seu espaccedilo para o que nos revela a ldquofeacute perceptivardquo que nos

une ao mundo No entanto tendo por centralidade os problemas filosoacuteficos

e natildeo a cisatildeo fenomenologia e ontologia o que procuraremos mostrar eacute

justamente o modo pelo qual elas se integram no pensamento de Merleau-

Ponty

Eacute partindo deste pressuposto que na primeira parte

notadamente no terceiro capiacutetulo ao tratar da criacutetica feita pelo filoacutesofo ao

pensamento cartesiano tentaremos integrar La Structure du comportement e

Lrsquoœil et lrsquoesprit ou antes mostrar como neste uacuteltimo texto ao contraacuterio de

se tratar tatildeo-somente de uma filosofia da arte o que encontramos eacute o ensejo

de desconstruccedilatildeo do complexo ontoloacutegico no qual fomos relegados pelo

pensamento cartesiano Assim sendo apresentando o diaacutelogo de Merleau-

21

Ponty com Husserl desejamos explicitar o modo como se daraacute no filoacutesofo a

recepccedilatildeo da Krisis contrapondo por conseguinte o itineraacuterio que cada um

deles percorreraacute na elucidaccedilatildeo etioloacutegica dos descompassos nos quais se

encontra a Razatildeo Eacute assim que enquanto Husserl privilegia o projeto de

matematizaccedilatildeo de Galileu Merleau-Ponty opta por um diaacutelogo com

Descartes e com a tradiccedilatildeo cartesiana No entanto nem por isso havendo

um ldquodescompasso radicalrdquo ndash apesar de algumas divergecircncias no que se

refere a certos aspectos da ldquogenealogia da loacutegicardquo antes vinculadas a nosso

ver ao que constitui o projeto de cada filoacutesofo ndash e isto quando o que estaacute em

jogo eacute o convite a uma experiecircncia preacutevia do mundo daiacute o diaacutelogo que se

estabelece no primeiro capiacutetulo entre a Ruumlckfrage husserliana e a versatildeo

merleau-pontiana da Ursprungsklaumlrung em outros termos o ldquomundo preacute-

copernicanordquo e a ldquoNaturezardquo tambeacutem chamada por Merleau-Ponty

especialmente nos ineacuteditos como ldquomundo do silecircnciordquo No segundo capiacutetulo

trataremos tambeacutem do que seria em Descartes o ldquopositivismo da visatildeordquo a

passagem da ldquovisatildeo dos olhosrdquo para a ldquointuitus mentisrdquo para o ldquoolhar do

Espiacuteritordquo natildeo deixando de contrapor pois o modo como Merleau-Ponty iraacute

encarar estas questotildees A partir disto procuraremos mostrar o viacutenculo que

se estabelece entre Descartes e a ciecircncia claacutessica o Grande e o Pequeno

Racionalismo descrevendo portanto o que para Merleau-Ponty seria a

gecircnese da crise no diaacutelogo com as ciecircncias

Tendo por referecircncia estas consideraccedilotildees centraremo-nos no

que de acordo com Merleau-Ponty viria a constituir uma crise na

compreensatildeo do homem Seraacute a este desfeixo que conduziraacute os capiacutetulos

anteriores Comeccedilaremos pois mostrando a proposta merleau-pontiana de

um diaacutelogo entre filosofia e ciecircncia e isto mediante um solo que lhes eacute

comum uma espeacutecie de terceira dimensatildeo entre um discurso em primeira

pessoa e um discurso em terceira pessoa Por fim a partir da compreensatildeo

de uma subjetividade encarnada especialmente na Pheacutenomeacutenologie de

perception o nosso objetivo seraacute o de mostrar entre filosofia e ciecircncia a

compreensatildeo merleau-pontiana acerca do homem privilegiando as noccedilotildees

de ldquoesquema corporalrdquo e ldquocorpo proacutepriordquo como as duas faces de uma mesma

experiecircncia corporal logo inserindo a compreensatildeo do homem na condiccedilatildeo

22

de ser encarnado dotado de corpo que eacute seu proacuteprio corpo no entre-deux de

um diaacutelogo com o que a ciecircncia moderna nos apresenta sobre o ldquoesquema

corporalrdquo e a filosofia nos diz sobre a vivecircncia do ldquocorpo proacutepriordquo Na

compreensatildeo do humano segundo Merleau-Ponty natildeo lhe haveria um saber

que servisse de via uacutenica mas um conjunto de pontos de vistas a nos revelar

as vaacuterias faces do fenocircmeno humano o modo originaacuterio de uma

subjetividade encarnada que estaacute no mundo que o habita tem a sua carne

entrelaccedilada com a proacutepria carne do mundo o que a nosso ver expressa

justamente na ruptura com a concepccedilatildeo cartesiana de homem presente na

gecircnese da crise o que poderia vir a ser uma via de superaccedilatildeo

Na segunda parte o foco seraacute a descriccedilatildeo do que para alguns

dos contemporacircneos de Merleau-Ponty seria a presenccedila da crise no proacuteprio

exerciacutecio filosoacutefico na relaccedilatildeo da filosofia consigo mesma e

consequentemente com sua proacutepria historiografia Como partimos do

pressuposto de que a ldquocrise na filosofiardquo seja antes a ldquocrise de um certo modo

de filosofarrdquo consideraremos o que para o filoacutesofo viria a constituir um dos

embaraccedilos da historiografia filosoacutefica presentes no que seria o modo de

compreender a ldquohistoacuteria do pensamentordquo Daiacute o direcionamento no quarto

capiacutetulo ao horizonte aberto pela indagaccedilatildeo de que compreensatildeo de histoacuteria

se efetivaria na historiografia filosoacutefica e seus meandros e isto no intuito de

em seguida tomando como referecircncia a criacutetica de Merleau-Ponty ao meacutetodo

estrutural-geneacutetico de Gueacuteroult tentar encontrar os rastros destas questotildees

na histoacuteria do pensamento ao menos os de um determinado modelo

historiograacutefico aquele que nos poderia remeter agraves questotildees que se

encontram na ldquogecircnese de uma Crise da Razatildeordquo Eacute assim que notamos em

Merleau-Ponty na leitura de Descartes natildeo a legitimaccedilatildeo inquestionaacutevel de

uma ldquoordem das razotildeesrdquo mas a busca do que seria na obra cartesiana ldquoas

razotildees da ordemrdquo o que nos possibilitaria explicitar na compreensatildeo

merleau-pontiana da historiografia filosoacutefica em conformidade com uma

ldquohistoacuteria vivardquo e suas astuacutecias uma ldquohistoacuteria verticalrdquo por conseguinte a

compreensatildeo da experiecircncia filosoacutefica como a busca de um ldquoimpensadordquo e

natildeo sendo isto o que justamente se nega uma dissecaccedilatildeo de estruturas

expliacutecitas no encadeamento das ideias de um texto Este modelo de leitura se

23

enquadra nos horizontes de uma crise da filosofia natildeo para tatildeo-somente

confirmaacute-la mas precisamente para explicitar que o que realmente poderia

condenar a filosofia ao nons-sens seria justamente o esquecimento de que

ela eacute sobretudo interrogaccedilatildeo o que natildeo conduz ao relativismo da leitura

mas pelo contraacuterio agrave abertura do texto a uma experiecircncia viva entre o leitor

e o escritor a subjetividade do filoacutesofo que estudamos e a nossa

subjetividade o que natildeo significa desrespeitar as suas ideias mas convidaacute-

las a um diaacutelogo buscando reencontraacute-las como momentos de uma ldquovida

pensanterdquo uma vez que o contraacuterio seria relegaacute-las agrave respeitosa majestosa

e cruel indiferenccedila da biblioteca Em suma para Merleau-Ponty quando nos

contentamos a dizer de um filoacutesofo apenas aquilo que este mesmo filoacutesofo

gostaria que disseacutessemos perdemos efetivamente o que seria uma histoacuteria

autecircntica do pensamento esquecemo-nos de que suas ideias tambeacutem se

encontram na tradiccedilatildeo que com ela tentara dialogar

24

PRIMEIRA PARTE O ldquoMAL-ESTARrdquo DA RAZAtildeO E O RETORNO AO MUNDO-DA-VIDA

O ECLIPSE DOS ABSOLUTOS

25

CAPIacuteTULO I DA CRISE DO ESPIacuteRITO Agrave CRISE DA RAZAtildeO

O MUNDO-DA-VIDA Maintenant sur une immense terrasse drsquoElsinore qui va de Bacircle agrave Cologne qui touche aux sables de Nieuport aux marais de la Somme aux craies de Champagne aux granits drsquoAlsace ndash lrsquoHamlet europeacuteen regarde des millions de spectres (VALEacuteRY 1943 p 993) Tendo noacutes proacuteprios vivido duas ou trecircs crises profundas de nosso modo de pensar ndash a ldquocrise dos fundamentosrdquo e o ldquoeclipse dos absolutosrdquo matemaacuteticos a revoluccedilatildeo relativista a revoluccedilatildeo quacircntica ndash tendo sofrido a destruiccedilatildeo de nossas antigas ideias e feito o necessaacuterio esforccedilo de adaptaccedilatildeo agraves ideias novas estamos mais aptos que nossos predecessores a compreender as crises e as polecircmicas de outrora

(KOYREacute 1991 p 13)

11 O ldquomal-estarrdquo da Razatildeo a Crise do Espiacuterito

O historiador do pensamento francecircs Castelli Gattinara ao

tratar do periacuteodo do entre-guerra inicia seu texto com a bela frase de Valeacutery

ldquonoacutes as civilizaccedilotildees sabemos agora que somos mortaisrdquo7 Trata-se da frase

de um texto de 1919 La crise de lrsquoesprit No entanto eacute acompanhando vis-agrave-

vis as reflexotildees de Valeacutery que podemos melhor compreender os sentimentos

de espanto e de indagaccedilatildeo que ele procura expressar Neste sentido ainda

ao pensar em outros filoacutesofos especialmente nos que iriam viver os

paradoxos e desdobramentos desta eacutepoca a ideia de crise parece-nos mais

do que uma ldquoinvenccedilatildeordquo ou uma ldquoespeculaccedilatildeo intelectualrdquo a vivecircncia do

crepuacutesculo de certezas ateacute entatildeo inquestionaacuteveis a demoliccedilatildeo de paisagens

de pensamentos cujas ruiacutenas deixaram marcas indeleacuteveis no imaginaacuterio

europeu Ora pensando na filosofia de Merleau-Ponty natildeo seria entre essas

trincheiras e abalos siacutesmicos de uma ldquocrise dos fundamentosrdquo ou conforme

veremos de uma determinada concepccedilatildeo de razatildeo que a encontrariacuteamos

Natildeo estaria o filoacutesofo tambeacutem mutatis mutandis em um diaacutelogo

epistemoloacutegico com as questotildees inerentes conforme expressatildeo de Koyreacute a

7 ldquoNous autres civilisations nous savons maintenant que nous sommes mortellesrdquo (VALEacuteRY 1943 p 988)

26

uma espeacutecie de ldquoeclipse dos absolutosrdquo Aqui se encontra pois uma das

pretensotildees de nossa tese pretensatildeo que talvez nenhuma novidade encerre

em si a saber a ideia de que natildeo compreende bem o projeto filosoacutefico de

Merleau-Ponty quem desconsidera sua pertenccedila agrave experiecircncia e ao

imaginaacuterio de uma crise da Razatildeo ou como diria Gattinara das ldquodiversas

crisesrdquo que passaram a assolar o pensamento claacutessico e seus sonhos

cabendo-nos contudo a tarefa de tentar explicitar por sua vez o sentido e o

peso que essa ideia tivera em seu pensamento (GATTINARA 1998)

A intrigante frase de Valeacutery ao falar de uma crise do Espiacuterito

apesar de seu peso semacircntico insere-nos ainda nas perspectivas de um

modo bastante francecircs de se encarar o problema que eclodia e se

manifestava com a emergecircncia cada vez mais crescente de um estado de

ldquodesrazatildeordquo daiacute haver ldquocrisesrdquo ndash e natildeo a Crise ndash daiacute a ldquocrise francesardquo natildeo ser

a ldquoKrisis alematilderdquo dado que cada um a viveria da sua maneira8 Valeacutery parece

nos dizer que ateacute entatildeo nunca se tinha tido o sentimento e de um modo

tatildeo traacutegico de que a Europa poderia ter o mesmo destino das antigas

civilizaccedilotildees que seus autores mais ceacutelebres poderiam ter seus escritos

transformados em miragens em enigmaacuteticos fragmentos tais como as

comeacutedias de Menandro Apesar da multiplicidade de crises que afloram em

vaacuterios setores segundo o poeta o que afligiria a alma europeia seria aquela

que se sucederia no proacuteprio acircmbito do espiacuterito ali ela seria muito mais

intensa Logo natildeo eacute sem sentido que ele nos diraacute que a ldquo[] a crise

intelectual mais sutil e que por sua proacutepria natureza toma as aparecircncias

mais enganadoras (porquanto se passa no reino mesmo da dissimulaccedilatildeo)

esta crise deixa dificilmente apreender o seu verdadeiro ponto a sua faserdquo

(VALEacuteRY 1943 p 990) Mantendo ainda uma simpatia por uma concepccedilatildeo

claacutessica de razatildeo a percepccedilatildeo da crise ainda era a percepccedilatildeo de tatildeo-somente

uma ldquofase criacuteticardquo na qual ldquoningueacutem pode dizer aquilo que amanhatilde estaraacute

8 ldquoCrsquoest le paradoxe de la crise on est certain de lrsquoincertitude Mais crsquoest aussi ce qui lui permet de se manifester de diverses faccedilons de srsquoarticuler selon des conjonctures historiques et geacuteographiques particuliegraveres Parce que lsquola crisersquo franccedilaise nrsquoest pas la lsquoKrisisrsquo allemande Ce que lrsquoon deacutefinit drsquohabitude comme lsquola penseacutee de la Krisisrsquo dans ce chaos geacutenial que fut la Mitteleuropa ne recouvre pas en effet totalement ce qursquoa eacuteteacute lsquola probleacutematique de la crisersquo en France durant la mecircme peacuterioderdquo(GATTINARA 1998 p 23)

27

morto ou vivo em literatura em filosofia em esteacutetica Ningueacutem sabe tambeacutem

quais ideias ou quais modas de expressatildeo estaratildeo escritas na lista de

perdas quais novidades seratildeo proclamadasrdquo (VALEacuteRY 1943 p 990) Sendo

assim em um trecho que consideramos fundamental apesar de longo

Valeacutery nos daacute independente de seu modo de interpretar essa ldquocrise do

espiacuteritordquo um diagnoacutestico muito claro do que se passava

A esperanccedila certamente permanece e canta a meia voz Et cum vorandi vicerit libidinem Late triumphet imperator spiritus [Vencedor do apetite voraz que o espiacuterito soberano estenda longe o seu triunfo] No entanto a esperanccedila eacute apenas a desconfianccedila do ser em relaccedilatildeo agraves previsotildees precisas de seu espiacuterito Sugere que toda conclusatildeo desfavoraacutevel ao ser deve ser um erro de seu espiacuterito Os fatos todavia satildeo claros e impiedosos Haacute milhares de jovens escritores e de jovens artistas que estatildeo mortos Haacute a ilusatildeo perdida de uma cultura europeia e a demonstraccedilatildeo de impotecircncia do conhecimento em saber o que quer que seja haacute a ciecircncia atingida mortalmente em suas ambiccedilotildees morais e como desonrada pela crueldade de suas aplicaccedilotildees haacute o idealismo dificilmente vencedor profundamente ferido coberto de crimes e de erros a cobiccedila e a renuacutencia igualmente ridicularizadas as crenccedilas confundidas nos campos cruz contra cruz [lua] crescente contra [lua] crescente haacute os proacuteprios ceacuteticos desconcertados por acontecimentos tatildeo repentinos tatildeo violentos tatildeo comoventes e que brincam com os nossos pensamentos como o gato brinca com o rato ndash os ceacuteticos perdem suas duacutevidas as encontram as perdem e natildeo sabem mais se servir do movimento de seu espiacuterito A oscilaccedilatildeo do navio foi tatildeo forte que os candeeiros mais suspensos chegaram a derramar (VALEacuteRY 1943 p 990-1)

Contudo poderiacuteamos nos indagar como a filosofia francesa

respondera a essas questotildees No que diz respeito agrave ciecircncia vale salientar o

contrapeso e a importacircncia que teve nesta eacutepoca a insurreiccedilatildeo de uma

ldquofilosofia do espiacuteritordquo Eacute contra essa ldquociecircncia ferida moralmenterdquo eacute contra a

aplicaccedilatildeo natildeo questionada de suas formulaccedilotildees eacute contra a estreita visatildeo de

ciecircncias como a fisiologia e psicologia nascentes9 que se levantaram as

diversas versotildees do espiritualismo francecircs As divergecircncias nasciam a partir

da convicccedilatildeo de que tais pressupostos natildeo condiziam com o que eacute proacuteprio da

9 Eacute contra um discurso da exterioridade que deixa escapar a pergunta pelo homem e seu sentido eacute contra um tempo que esquecendo-se de se comprometer com a verdade caracterizava-se conforme Le Senne por ldquouma monstruosa alianccedila entre ciecircncia e Estado aquela fornece o conhecimento teacutecnico e este o torna o instrumento de seu capricho despoacuteticordquo (LE SENNE 1951 p XVIII)

28

filosofia francesa10 No entanto mesmo colocando-se de imediato como a

resposta da filosofia francesa aos ataques do cientificismo e aos horrores da

Guerra o espiritualismo tinha tambeacutem em seu calcanhar de Aquiles a

defesa de uma ldquocerta tradiccedilatildeo cartesianardquo natildeo chegando por conseguinte a

alcanccedilar todos os sentidos e consequecircncias de um retorno agrave experiecircncia

humana Deste modo natildeo procurando desconstruir os princiacutepios que

alimentavam as ideias de seus antiacutepodas por fim acabaram por

compartilhar dos mesmos preacutejugeacutes que pensavam ter superado Talvez neste

ponto na falta de explicitaccedilatildeo das proacuteprias fibras de um posicionamento

contra o esquecimento da condiccedilatildeo humana encontrava-se a razatildeo pela

qual para Valeacutery o peso da crise se articulava no modo como essa mesma

crise encontrava o espiacuterito o estado intelectual de um tempo que mesmo

natildeo ousando historiaacute-lo o poeta esboccedilara em poucas linhas a sua

fisionomia trata-se de um tempo complexo carregado de informaccedilotildees e de

conhecimento de todas as ordens que se entrecruzam cuja desordem

encontra-se justamente na ldquolivre coexistecircncia em todos os espiacuteritos

cultivados das ideias mais dessemelhantes dos princiacutepios de vida e de

conhecimento mais opostosrdquo (VALEacuteRY 1943 p 992) Em outros termos na

raiz dos problemas encontramos como originante o ldquomodernismordquo ao qual a

Europa se entregou11 Eacute frente a essa confusatildeo ndash aquela que permitia em

10 No dizer de Lavelle ldquo[] eacute por excelecircncia uma filosofia da consciecircnciardquo (LAVELLE 1942 p 7) e como tal possui em si ldquo[] um aspecto metafiacutesico e um aspecto psicoloacutegico que ela natildeo pode separar um do outrordquo (LAVELLE 1942 p 8) Com efeito eacute preciso negar a ideia de um espiacuterito entendido a partir de sua capacidade de ldquoautoproduccedilatildeordquo Como acentua Lavelle Eacute preciso comeccedilar chegando a um consenso em torno de trecircs pontos essenciais que permitem perceber o que se deve entender pela palavra espiacuterito O primeiro eacute que o espiacuterito eacute uma atividade aliaacutes a uacutenica atividade que merece propriamente este nome sendo toda atividade material antes causada e sofrida do que causadora e agente () O segundo ponto eacute que o espiacuterito natildeo eacute absolutamente como se crecirc uma obscura espontaneidade da qual nos limitamos a conhecer os efeitos sem nada saber do poder que possui e que se exerceria fora de noacutes e sem noacutes () O terceiro ponto finalmente permite reavaliar e estender o sentido da palavra experiecircncia que todavia foi reservada por muito tempo agrave experiecircncia do objeto (LAVELLE 1942 p 268-9) 11 ldquoJe ne deacuteteste pas de geacuteneacuteraliser la notion de moderne et de donner ce nom agrave certain mode drsquoexistence au lieu drsquoen faire un pur synonyme de contemporain Il y a dans lrsquohistoire des moments et des lieux ougrave nous pourrions nous introduire nous modernes sans troubler excessivement lrsquoharmonie de ces temps -lagrave et sans y paraicirctre des objets infiniment curieux infiniment visibles des ecirctres choquants dissonants inassimilables Ougrave notre entreacutee ferait le moins de sensation lagrave nous sommes presque chez nous Il est clair que la Rome de Trajan et que lrsquoAlexandrie des Ptoleacutemeacutees nous absorberaient plus facilement que bien des localiteacutes

29

um uacutenico livro encontrarmos os ecos dos ldquobaleacutes russosrdquo de Pascal de

Nietzsche de Rimbaud da pintura da ciecircncia etc ndash que surge apesar de

alguns contra-sensos uma das mais belas imagens de Valeacutery o Hamlet

europeu que observa milhares de espectros o Hamlet intelectual que medita

sobre a vida e a morte das verdades que medita tendo em suas matildeos

cracircnios ilustres como os de Leonardo da Vinci de Leibniz de Kant de Hegel

de Marx e de tantos outros Cracircnios que por sua vez ainda refletem seus

sonhos ou melhor os sonhos da razatildeo os mesmos que paradoxalmente

pensando na pintura de Goya poderiacuteamos dizer podiam ocultar e suscitar

ldquomonstrosrdquo Caminhando entre os abismos da ordem e da desordem o

Hamlet valeriano certamente natildeo poderia abandonar seus cracircnios sob pena

de deixar de ser o que se eacute O que fazer As uacuteltimas palavras de Valeacutery

nesta carta parece-nos indicar o que para ele poderia ser um possiacutevel

caminho

Adeus fantasmas O mundo natildeo precisa mais de vocecircs Nem de mim O mundo que batiza com o nome de progresso sua tendecircncia a uma nitidez fatal busca unir aos benefiacutecios da vida as vantagens da morte Uma certa confusatildeo reina tambeacutem mais ainda um pouco tempo e tudo se esclareceraacute noacutes veremos enfim aparecer o milagre de uma sociedade animal um perfeito e definitivo formigueiro (VALEacuteRY 1943 p 994)

O paradoxo da crise ndash aquele que conforme Gattinara trata-se

da certeza de que natildeo se tem certezas ndash evidenciava que ldquoa certeza com a

qual se pensava a Verdade como algo que seria preciso desvelar eacute

substituiacuteda cada vez mais pela inquietude frente a uma verdade por

construir e portanto impossiacutevel de alcanccedilar posto que eacute apenas um

horizonte idealrdquo (GATTINARA 1998 p 25) Daiacute a afirmaccedilatildeo de Bachelard

ldquono final do uacuteltimo seacuteculo acreditava-se ainda no caraacuteter empiricamente

unificado de nosso conhecimento do realrdquo (BACHELARD 1970 p 11) Em

concomitacircncia com a crise da concepccedilatildeo claacutessica de razatildeo podemos notar

moins reculeacutees dans le temps mais plus speacutecialiseacutees dans un seul type de moeurs et entiegraverement consacreacutees agrave une seule race agrave une seule culture et agrave un seul systegraveme de vierdquo (VALEacuteRY 1943 p 992)

30

que natildeo soacute os saberes mas o proacuteprio ldquoeurdquo perde sua unidade a razatildeo

categorial torna-se uma ldquopretensatildeo ingecircnuardquo ou ldquouma ilusatildeo histoacutericardquo os

fundamentos se abalam e faz da estabilidade tambeacutem uma ilusatildeo o

abandono da materialidade das coisas perde-se em proveito do ldquovazio

mascarado pela linguagemrdquo e pelo ldquodevir fantasmagoacuterico das palavrasrdquo

resumindo o fio de Ariadne se perde Logo justifica-se o fato de

encontrarmos uma mesma experiecircncia embora vivida em cada um de um

modo diverso e por conseguinte ldquoos grandes signos do decliacutenio a Grande

Guerra o proacuteprio termo lsquocrisersquo os problemas da linguagem e do signo o

sentimento de um lsquomal de mar em terra firmersquo que Kafka descreveu mas

que se encontra um pouco por toda parterdquo (GATTINARA 1998 p 27) Ora

seraacute essa tambeacutem a percepccedilatildeo da geraccedilatildeo de Merleau-Ponty teria ela ido

aleacutem das constataccedilotildees do Hamlet valeriano Quanto a isso nos diraacute

Gattinara

[] Enquanto as geraccedilotildees de Brunschvicg e de Valeacutery tentavam salvar o que pode ser manifestando uma simpatia indiscutiacutevel pela certeza da razatildeo claacutessica a geraccedilatildeo de Bachelard De Broglie e Aragon encara a crise como uma ldquorevoluccedilatildeordquo na qual eacute preciso dar uma coerecircncia ao ldquodiscursordquo das ciecircncias As ciecircncias e a razatildeo cientiacutefica podem ser salvas se as fundarmos na crise no movimento de multiplicaccedilatildeo que a determina no problema (problemas) que suscita e portanto em uacuteltimo caso no incerto A crise pode ser definida como uma luta que faz triunfar a precariedade e a mudanccedila sobre a estabilidade [] (GATTINARA 1998 p 28)

Eacute a partir desta mudanccedila que segundo o historiador a

eternidade cede seu lugar a um tempo precaacuterio (vergaumlnglich) entrelaccedilado

uma ldquomistura de experiecircncia e espaccedilordquo que a evidecircncia cartesiana se

converte em uma ilusatildeo que se torna possiacutevel ldquoseguir o movimento por mais

desordenado e labiriacutentico que sejardquo (GATTINARA 1998 p 29) Mas natildeo

estaria tambeacutem a filosofia de Merleau-Ponty em meio a essas constataccedilotildees

indagaccedilotildees hesitaccedilotildees e perspectivas que marcariam a ldquogeraccedilatildeo de

Bachelard De Broglie e Aragonrdquo O que nos diz Merleau-Ponty sobre os

percalccedilos filosoacuteficos originados pela derrocada de um ldquoespiacuterito absolutordquo

Certamente os seus primeiros trabalhos versam justamente sobre esta

questatildeo Contudo gostariacuteamos de nos centrar em um nota da

31

Pheacutenomeacutenologie de la perception Ali a partir de uma criacutetica endereccedilada

especialmente a Alain e Lagneau filoacutesofos tidos geralmente como integrantes

do ldquoespiritualismo francecircsrdquo de modo particular no que diz respeito ao

posicionamento da ldquoanaacutelise reflexivardquo frente agrave percepccedilatildeo parece que se

delineiam algumas pistas para a resposta que procuramos Encontramos ali

um breve esboccedilo dos impasses criados por uma concepccedilatildeo equivocada do

ldquoespiacuteritordquo o que talvez tambeacutem esteja na gecircnese do que viria a ser a sua

ldquocriserdquo no caso a ldquocrise do espiacuteritordquo O interessante da criacutetica de Merleau-

Ponty natildeo estaacute simplesmente na explicitaccedilatildeo dos equiacutevocos presentes nas

concepccedilotildees destes filoacutesofos mas no sentimento presente neles de que aquilo

que eles postulavam a saber a ideia de uma ldquoconsciecircncia absolutardquo poderia

natildeo conter toda a verdade Jaacute natildeo seria este sentimento o pressentimento de

algum decliacutenio

Ao se tratar o sujeito como um ldquonaturante universalrdquo um

espiacuterito absoluto o que restaria ao espiacuterito seria tatildeo-somente ldquo[] o

sistema da experiecircncia compreendido aiacute meu corpo e meu eu empiacuterico

ligados ao mundo pelas leis da fiacutesica e da psicofisiologiardquo (MERLEAU-PONTY

1999 p 618-9) Eacute assim que o pensamento reflexivo acaba por ocultar ldquo[]

o noacute da consciecircncia perceptiva porque investiga as condiccedilotildees de

possibilidade do ser absolutamente determinado e deixa-se tentar por essa

pseudo-evidecircncia da teologia de que o nada natildeo eacute coisa algumardquo (MERLEAU-

PONTY 1999 p 618) Qual a consequecircncia disto A experiecircncia da

sensaccedilatildeo se torna apenas o desdobramento ldquopsiacutequicordquo oriundo das

excitaccedilotildees sensoriais e como tal natildeo pertence ao sujeito encontra-se

divorciada dele o que ndash como consequecircncia tendo em vista que o sujeito eacute

visto como um ldquonaturante universalrdquo ndash impossibilita ldquoqualquer ideia de uma

gecircnese do espiacuteritordquo uma vez que existindo o tempo mediante este espiacuterito

natildeo se poderia conceber a possibilidade de recolocaacute-lo ldquono tempordquo O espiacuterito

passa a ser visto pois sem historicidade vivendo em uma unidade indeleacutevel

com o verdadeiro Todavia se o ldquoeu empiacutericordquo natildeo fosse outro que o

desdobramento deste espiacuterito absoluto como entender o erro onde inserir a

ldquoopacidaderdquo Esta eacute a questatildeo que Lagneau se fazia em suas Ceacutelegravebres

Leccedilons Em razatildeo disso eacute que em seu pensamento a sensaccedilatildeo deixa de ser

32

um ldquoobjeto constituiacutedordquo em uma ldquorede de relaccedilotildees psicofiacutesicasrdquo Logo

concluiraacute Merleau-Ponty se ldquoo sentir natildeo pertence agrave ordem do constituiacutedordquo

se ldquoo Eu natildeo o encontra desdobrado diante de sirdquo eacute porque justamente

[] ele escapa ao seu olhar estaacute como que recolhido atraacutes dele estaacute ali como uma espessura ou uma opacidade que torna o erro possiacutevel delimita uma zona de subjetividade ou de solidatildeo representa-nos aquilo que estaacute ldquoantesrdquo do espiacuterito ele evoca seu nascimento e reclama uma anaacutelise mais profunda que esclareceria a ldquogenealogia da loacutegicardquo O espiacuterito tem consciecircncia de si como ldquofundadordquo nessa Natureza Haacute portanto uma dialeacutetica do naturado e do naturante da percepccedilatildeo e do juiacutezo no decorrer da qual sua relaccedilatildeo se inverte (MERLEAU-PONTY 1999 p 619)

Para Merleau-Ponty em Quatre-vingt-un chapitres sur lrsquoesprit et

les passions Alain faria um movimento semelhante ao de Lagneau De

acordo com o filoacutesofo ao pensar sobre a ldquograndeza aparenterdquo dos objetos

retirando do juiacutezo o papel de ldquoinstacircncia ratificadorardquo o que se vislumbrava

era o encaminhamento a uma subjetividade na qual a relaccedilatildeo com o mundo

natildeo se daacute mais mediante uma ldquoinspeccedilatildeo do espiacuteritordquo Logo se ldquo[] uma

aacutervore me parece sempre maior do que um homem mesmo se ela estaacute bem

distante de mim e o homem bem proacuteximordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 619)

isto se daacute natildeo graccedilas a uma alteraccedilatildeo promovida pelo juiacutezo pois

A percepccedilatildeo natildeo conclui a grandeza da aacutervore daquela do homem ou a grandeza do homem daquela da aacutervore nem uma e outra do sentido desses dois objetos mas ela faz tudo ao mesmo tempo a grandeza da aacutervore a grandeza do homem e sua significaccedilatildeo de aacutervore e de homem de forma que cada elemento se harmoniza com todos os outros e compotildee com eles uma paisagem em que todos coexistem Entra-se assim na anaacutelise daquilo que torna possiacutevel a grandeza e mais geralmente as relaccedilotildees ou as propriedades de ordem predicativa e nessa subjetividade ldquoanterior a toda geometriardquo que todavia Alain declarava incognosciacutevel (MERLEAU-PONTY 1999 p 620)

Merleau-Ponty nota em Alain o preluacutedio de uma anaacutelise

especialmente no que diz respeito agrave ldquograndezardquo dos objetos na qual o juiacutezo

encontra uma funccedilatildeo que lhe eacute mais profunda que lhe estaacute aqueacutem anaacutelise

semelhante agravequela que versando justamente sobre esta questatildeo

encontrariacuteamos nos psicoacutelogos ao se falar em uma Gestaltung da

33

paisagem12 O que isto quer nos dizer Se partirmos da filosofia de Merleau-

Ponty natildeo poderemos falar unicamente no asseacutedio que devido agraves distorccedilotildees

de um ldquomodernismordquo o Espiacuterito enfrentava Pelo contraacuterio ldquoo modernismordquo

natildeo eacute uma ldquocausardquo da crise mas o delineamento de uma mudanccedila Logo no

que se refere ao ldquomodernismordquo o que temos eacute a elucidaccedilatildeo de que o sentido

dos princiacutepios que moviam o Mundo Claacutessico se esvaziara mudara de

direccedilatildeo e as razotildees disto se encontram nestes mesmos princiacutepios encontra-

se propriamente em seus fundamentos

Por conseguinte parece-nos que para o filoacutesofo falar em ldquocriserdquo

natildeo significa tambeacutem acentuar uma passagem que vai do caos agrave ordem natildeo

significa corroborar a ilusatildeo positivista de que seria legiacutetima a tarefa de se

explicitar um progresso pelo qual mediante uma eacutepoca criacutetica uma idade

orgacircnica teria que ceder o seu lugar a uma outra idade igualmente orgacircnica

Em outros termos natildeo se trata da fantasia positivista em crer que eacute

possiacutevel a uma eacutepoca viver sem incertezas e sem lutas Deste modo acaba

sendo por uma ldquoilusatildeo retrospectivardquo que acreditamos ter sido o mundo

claacutessico o reino das certezas absolutas e das verdades apodiacuteticas Como natildeo

pensar nas obras inacabadas de Da Vinci Natildeo guardava tambeacutem a ciecircncia

claacutessica ldquoo sentimento de uma opacidade do mundordquo Natildeo era justamente ao

mundo segundo o filoacutesofo ldquo() que ela pretendia juntar-se por suas

construccedilotildees e por isso eacute que se acreditava obrigado a procurar para suas

operaccedilotildees um fundamento transcendente ou transcendentalrdquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 85) Igualmente natildeo acabamos de encontrar em filoacutesofos

tidos espiritualistas um encaminhamento a ideias que lhes deveriam ser

opostas

Conforme procuraremos mostrar para Merleau-Ponty ldquocriserdquo

significa pois a oportunidade que se tem quando se trata do pensamento

em rever e reformular seus princiacutepios e suas certezas Se eacute certo o que nos

diz Valeacutery acerca de uma ldquoCrise do Espiacuteritordquo eacute porque seguindo os

12 No proacuteximo capiacutetulo de certo modo retomaremos o tema da ldquograndezardquo e o seu significado filosoacutefico quando tratarmos da criacutetica de Merleau-Ponty agrave noccedilatildeo claacutessica de perspectiva

34

movimentos da histoacuteria a nossa concepccedilatildeo do ldquoespiacuteritordquo natildeo eacute mais a

mesma Mais do que uma ldquomudanccedila suacutebitardquo se nos atentarmos agrave

etimologia a Krisiv [Kriacutesis] eacute tambeacutem um momento decisivo como jaacute nos

ensina o verbo Krinw [Kriacuteno] do qual este termo se origina o poder de se

fazer escolhas de fazer distinccedilotildees Contudo se a Crise de Valeacutery aquela que

poderiacuteamos entender como a expressatildeo de uma ldquocrise francesardquo natildeo nos eacute

suficiente para compreendermos a filosofia de Merleau-Ponty certamente o

trabalho etimoloacutegico natildeo o seria assim como tambeacutem natildeo o seria a denuacutencia

dos impasses nas relaccedilotildees da filosofia com a ciecircncia Acaso natildeo encontramos

em seu pensamento mais do que a explicitaccedilatildeo dos ecos de uma crise que se

vecirc consolidada nos trabalhos da ciecircncia No entanto qual seria a razatildeo

disto O fato eacute que no caso de Merleau-Ponty no compasso de uma ldquocrise

do espiacuteritordquo encontrariacuteamos ainda e talvez com mais veemecircncia os ecos de

uma outra Krisis a Crise da Razatildeo Se a Crise francesa natildeo eacute a Krisis alematilde

no pensamento merleau-pontiano encontramos a tentativa de dialogar com

ambas a fim de melhor compreender o seu tempo Por conseguinte quando

procuramos compreender a filosofia de Merleau-Ponty nos horizontes de um

sentimento de crise a fenomenologia de Husserl natildeo deixa de ter um topos

privilegiado O que isso significa Quais as razotildees Vejamos

12 A Fenomenologia e a Crise da Razatildeo os limites do cientificismo e o retorno ao mundo-da-vida

Segundo Merleau-Ponty ldquodesde a sua origem a fenomenologia

aparece como uma tentativa de resolver um problema colocado no iniacutecio do

seacuteculo pela Crise da filosofia das ciecircncias do homem e das ciecircncias em

geralrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 151) A fenomenologia em outras

palavras seria justamente o intento de superar de uma soacute vez todas essas

crises No que diz respeito agrave ciecircncia claacutessica a nosso ver o intento

husserliano natildeo eacute outro eacute o reconhecimento de que em sua deacutemarche o

que se pretende efetuar eacute uma ideia equivocada de razatildeo um conceito

embargado por contradiccedilotildees desde o seu nascimento Logo a Crise das

ciecircncias natildeo eacute o simples empreendimento de anaacutelise dos limites daquilo que

35

se verifica a validade jaacute presente em Descartes e no qual a razatildeo se voltaria

criticamente contra os fundamentos das ciecircncias Em contrapartida

tampouco se limitaria agraves reflexotildees do Hamlet valeriano Quanto ao sentido

dessa Krisis satildeo esclarecedoras as seguintes palavras de Moura

[] esse tema [a crise da Razatildeo] parece ter a sua dataccedilatildeo circunscrita agrave primeira metade do nosso seacuteculo Pois se eacute verdade

que de maneira expliacutecita ou impliacutecita a noccedilatildeo de ldquocriserdquo sempre

frequumlentou a histoacuteria da filosofia eacute verdade tambeacutem que Descartes

por exemplo natildeo apontava para nenhuma ldquocrise da razatildeordquo mas para uma crise das ciecircncias ciecircncias cujos ldquoprinciacutepios incertosrdquo careciam

de uma legitimaccedilatildeo que a prima philosophia logo logo lhes viria

assegurar E se Kant apresentava a razatildeo pura como origem de

ilusotildees o que estava em questatildeo ali era apenas o ldquouso especulativordquo da razatildeo e natildeo a razatildeo ela mesma que se comportava muito bem no

domiacutenio da fiacutesica e da matemaacutetica ciecircncias que por si soacutes nunca

teriam suscitado o projeto criacutetico Ora seraacute muito diferente quando

Merleau-Ponty preocupado em restaurar a universalidade da razatildeo for censurar a proacutepria ciecircncia Por isso mesmo esse diagnoacutestico

longe de reeditar na atualidade a antiga e enfadonha suspeita da

ldquoseita ceacuteticardquo contra as pretensotildees da ldquorazatildeo dogmaacuteticardquo eacute formulado

hoje em dia por membros do proacuteprio partido racionalista Diagnoacutestico paradoxal sem duacutevida jaacute que enunciado no momento

histoacuterico em que as ciecircncias mais se expandem e se consolidam Era

exatamente desse paradoxo aparente que Husserl partia em A crise das ciecircncias europeacuteias e a fenomenologia transcendental de 1936 existe sim uma crise da razatildeo apesar do sucesso incontestaacutevel das

ciecircncias positivas (MOURA 2001 p 185-6)

Ora eacute neste sentido que a nosso ver o pensamento husserliano

eacute marcado pela busca constante por uma idealidade objetiva que se

evidencia antes no retorno ao mundo-da-vida do que no embaraccediloso

reducionismo psicologista em sua tarefa de tornar reais os ldquoestados de

consciecircnciardquo fazendo deles nada mais e nada menos do que ldquopedaccedilos da

naturezardquo O diagnoacutestico husserliano natildeo eacute o mesmo daquele elaborado quer

seja pelos existencialismos quer seja pelos pessimismos uma vez que natildeo

podemos negar ainda em Husserl a presenccedila latente de uma feacute na Razatildeo Eacute

esta mesma certeza que o leva a diagnoacutesticos nada simples para os seus

leitores que o conduz agrave certeza de que frente ao objetivismo cientificista

fundamentalmente histoacuterico e natildeo meramente ocasional a fenomenologia

pode se apresentar como uma soluccedilatildeo possiacutevel por seu rigoroso

reconhecimento e resgate daquilo que fora condenado pela cultura europeia

36

ao esquecimento a saber o mundo-da-vida a Lebenswelt Natildeo seraacute tarefa

da fenomenologia por sua vez frente agrave Crise elucidar aquilo que deve ser

ou se entender por ciecircncia o que lhe pode legitimar de iure a sua proacutepria

cientificidade demonstrando que o meacutetodo utilizado por elas ao colocar-se

frente a sua aplicabilidade carece de licitude O caminho eacute bem outro

Trata-se da busca daquilo que se constitui como o fundamento e a gecircnese

desta Crise colocando-se de modo historial em seus desdobramentos no

percurso que fizera com que o pensamento moderno se tornasse o seu

resultado cabal Nesta perspectiva uma criacutetica do psicologismo ultrapassa a

si mesma levando-nos antes agravequilo que o filoacutesofo nos indica como uma

ldquoespeacutecie de enigma do mundordquo o mesmo que as outras eacutepocas natildeo se deram

conta e que por conseguinte natildeo deixa de nos lanccedilar frente ao enigma da

proacutepria subjetividade

A proposta frente agrave Crise eacute que seja modificado o modo pelo

qual o pensamento se coloca em relaccedilatildeo agrave ciecircncia dizendo de modo

husserliano eacute preciso mudar o modo de ldquoestimarrdquo a ciecircncia deixando de ser

a pergunta por sua cientificidade conforme assinalado para se tornar uma

indagaccedilatildeo acerca de seu sentido para a existecircncia humana Natildeo basta

encantar-se com a ciecircncia e a prosperity que traz consigo eacute ateacute mesmo

problemaacutetica a ingecircnua passagem de uma ldquociecircncia de fatordquo para uma

ldquohumanidade de fatordquo O que eacute preciso mostrar eacute que existem questotildees

cruciais a serem feitas e que foram simplesmente excluiacutedas Quais seriam

elas Diraacute Husserl ldquosatildeo as questotildees que versam sobre o sentido ou sobre a

ausecircncia de sentido de toda esta existecircncia humanardquo (HUSSERL 1992 vol

8 p 4 1976 p 10)13 E por que elas satildeo tatildeo importantes assim O que

torna estas questotildees fundamentais no entender do filoacutesofo eacute a capacidade

de atingir o homem moderno em suas relaccedilotildees quaisquer que elas sejam e

no modo pelo qual senhor de si mesmo eacute capaz de dar uma ldquoforma de

razatildeordquo a si mesmo e ao seu mundo-ambiente [sich und seine Umwelt

vernuumlnftig zu gestalten] (HUSSERL 1992 vol 8 p 4 1976 p 10) sem

13 ldquo[] die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseinsrdquo (HUSSERL 1992 vol 8 p 4 1976 p 10)

37

todavia dar-se conta de suas consequecircncias14 Daiacute a preocupaccedilatildeo em

mostrar a partir de sua gecircnese os limites do naturalismo das ciecircncias

Pensando em suas construccedilotildees acaso ldquopodemos viver neste mundo cujo

acontecimento histoacuterico natildeo eacute nada de outro que um encadeamento

incessante de iacutempetos ilusoacuterios e de amargas decepccedilotildeesrdquo (HUSSERL 1992

vol 8 p 4-5 1976 p 11)15

Em outras palavras seguindo as pegadas de Husserl queremos

salientar que se a Crise natildeo eacute a denuacutencia da cientificidade que rege as

ciecircncias eacute porque a crise das ciecircncias eacute sobretudo uma ldquocrise de sentidordquo

Natildeo interessa saber se um determinado modelo ou proposta cientiacutefica

funciona ou natildeo Isso natildeo eacute para Husserl tarefa do filoacutesofo A questatildeo eacute

saber no entanto o que isso significa para a existecircncia humana e como

pode afetaacute-la dado que natildeo teria sentido falar em uma crise na condiccedilatildeo de

derrocada da proacutepria cientificidade cientiacutefica principalmente dados os

brilhantes desdobramentos da fiacutesica Mas como se inserem esses

desdobramentos em um determinado ldquoprojeto de vidardquo Pensando nesta

questatildeo podemos entender porque ao se voltar para os emergentes

desenvolvimentos da ldquoteacutecnicardquo o que estaacute em jogo eacute o modo como ela

funciona na condiccedilatildeo de um mecanismo de aumento das consequecircncias

geradas para a existecircncia humana por um determinado projeto de

14 Eacute o que assinala a Krisis ldquoUnseren nehmen wir von einer an der Wende des letzten Jahrhunderts hinsichtlich der Wissenschaften eingetretenen Umwendung der allgemeinen Bewertung Sie betrifft nicht ihre Wissenschaftlichkeit sondern das was sie was Wissenschaft uumlberhaupt dem menschlichen Dasein bedeutet hatte und bedeuten kann Die Ausschlieszligliechkeit in welcher sich in der zweiten Haumllfte des 19 Jahrhunderts die ganze Weltanschauung des modernen Menschen von den positiven Wissenschaften bestimmen und von der ihr verdankten bdquoprosperityldquo blenden lieszlig bedeutete ein gleichguumlltiges Sichabkehren von den Fragen die fuumlr ein echtes Menschentum die entscheindenden sind Bloszlige Tatsachenwissenschaften machen bloszlige Tatsachenmenschen Die Umwendung der oumlffentlichen Bewertung war insbesondere nach dem Kriege unvermeidlich und sie ist wie wir wissen in der jungen Generation nachgerade zu einer feindlichen Stimmung geworden In unserer Lebensnot ndash so houmlren wir ndash hat diese Wissenschaft uns nichts zu sagen Gerade die Fragen schlieszligt sie prinzipiell aus die fuumlr den in unseren unseligen Zeiten den schicksalsvollsten Umwaumllzungen preisgegebenen Menschen die brennenden sind die Fragen nach Sinn oder Sinnlosigkeit dieses ganzen menschlichen Daseinsrdquo (HUSSERL 1992 vol 8 p 3-4 1976 p 10) 15 Cf o texto ldquoKoumlnnen wir uns damit beruhingen koumlnnen wir in dieser Welt leben deren geschichtliches Geschehen nichts anderes ist als eine unaufhoumlrliche Verkettung von illusionaumlren Aufschwuumlngen und bitteren Enttaumluschungenrdquo(HUSSERL 1992 vol 8 p 4-5 1976 p 11)

38

cientificidade Neste sentido o que preocupa na metodologia cientificista eacute

que natildeo possui por se dar como um mero instrumento fim em si mesma

pois ao perder o seu caraacuteter teleoloacutegico estaacute impossibilitada de trazer

consigo o sentido da vida e da histoacuteria ao passo que ldquoo investigador perfeito

que tende tambeacutem em direccedilatildeo agrave perfeiccedilatildeo como ser humano nunca perde de

vista as relaccedilotildees que entreteacutem a ciecircncia que ele pratica com os fins gerais e

mais elevados do conhecimento humanordquo (HUSSERL 1982 p 231) Se essa

constataccedilatildeo possui um caraacuteter eacutetico-poliacutetico eacute porque se esmera em

primeiro lugar em um desconforto filosoacutefico gerado fundamentalmente pela

proacutepria noccedilatildeo de razatildeo que estaacute em jogo nestas consideraccedilotildees16 Eacute neste

sentido que para Husserl torna-se necessaacuterio compreender as relaccedilotildees que

se estabelecem entre filosofia e ciecircncia Como se daria especialmente nos

uacuteltimos trabalhos de Husserl essa explicitaccedilatildeo Conforme Olesen pensando

na compreensatildeo husserliana de Galileu seria o de mostrar ldquo[] que a

ciecircncia recobre (filosoficamente) no mesmo movimento em que ela descobre

(cientificamente)rdquo (OLESEN 1994 vol 29 p 12) logo ldquo[] a anaacutelise

husserliana das relaccedilotildees da filosofia e das ciecircncias pode agora apresentar-

se como lsquocriacutetica histoacutericarsquo (Geschichtskritik) []rdquo (OLESEN 1994 vol 29 p

13) Por conseguinte eacute tendo por referecircncia essa ldquocriacutetica histoacutericardquo

[Geschichtskritik] (HUSSERL 1954 p 59) ou antes mediante uma

ldquourspruumlngliche Sinngebungrdquo (HUSSERL 1954 p 46) pelo qual se constitui a

ciecircncia que sua anaacutelise descobre em Galileu ldquoum gecircnio que ao mesmo

16 Eacute a partir desta perspectiva que melhor entendemos as seguintes palavras de Koyreacute em um dos textos de seus Estudos Newtonianos palavras dotadas inconfundivelmente com o sotaque husserliano da Krisis ldquoHaacute algo do qual Newton deve ser sido responsaacutevel ndash ou para dizer melhor natildeo unicamente Newton mas a ciecircncia moderna em geral eacute a divisatildeo de nosso mundo em dois Eu disse que a ciecircncia moderna tinha invertido as barreiras que separavam os Ceacuteus e a Terra que ela uniu e unificou o Universo Isso eacute verdade Mas eu disse tambeacutem que ela fez isso substituindo o nosso mundo de qualidades e de percepccedilotildees sensiacuteveis mundo no qual vivemos amamos e morremos por um outro mundo o mundo da quantidade da geometria reificada mundo no qual embora haja lugar para toda coisa natildeo haacute mais para o homem Assim o mundo da ciecircncia ndash o mundo real ndash afasta-se e se separa inteiramente do mundo-da-vida que a ciecircncia foi incapaz de explicar ndash inclusive por uma explicaccedilatildeo dissolvente que faria dele uma aparecircncia lsquosubjetivarsquo Na verdade estes dois mundos satildeo todos os dias ndash cada vez mais ndash unidos pela praacutexis Mas para a teoria satildeo separados por um abismo Dois mundos o que quer dizer duas verdades Ou nenhuma verdade em absoluto Eacute nisto que consiste a trageacutedia do espiacuterito moderno que lsquoresolveu o enigma do Universorsquo mas tatildeo-somente para substituiacute-lo por um outro lsquoo enigma de si mesmorsquordquo (KOYREacute 1968 p 42-3)

39

tempo (des)-cobre e (re)-cobrerdquo (HUSSERL 1954 p 49 OLESEN 1994 vol

29 p 12) pois

Originaacuterio este sentido natildeo deve todavia ser buscado em um lugar distante aleacutem da histoacuteria visto ser ele mesmo que devemos compreender como passagem saber como passagem do ldquomundo-da-vidardquo agrave ciecircncia De tal modo esta doaccedilatildeo de sentido originaacuterio por onde Galileu descobre a natureza como ldquoscritta in liacutengua matematicardquo recobrindo de uma soacute vez a natureza na medida em que ela eclode diferentemente de um suporte agrave matematizaccedilatildeo Todavia se a ldquodoaccedilatildeo originaacuteria de sentidordquo natildeo se faz alhures senatildeo na proacutepria ciecircncia natildeo cabe agrave ciecircncia enunciar em que esta doaccedilatildeo de sentido eacute doaccedilatildeo Digamos que cabe agrave ciecircncia fazer a passagem do mundo-da-vida agrave ciecircncia mas natildeo descrever essa passagem (OLESEN 1994 vol 29 p 13)

Por conseguinte o que significa entender Galileu a partir de uma

investigaccedilatildeo histoacuterica em um ldquosentido insoacutelitordquo [ungewohnten Sinn] como

acentua a traduccedilatildeo literal17 ou conforme Derrida a partir da investigaccedilatildeo

de uma ldquoproto-histoacuteriardquo [proto-histoire] Por que a atenccedilatildeo husserliana se

voltara para as investigaccedilotildees cientiacuteficas de Galileu18 De acordo com

Husserl ldquocertamente os Antigos conduzidos pela doutrina platocircnica das

Ideias jaacute tinham idealizado os nuacutemeros e as medidas empiacutericas as figuras

espaciais empiacutericas os pontos as linhas as superfiacutecies os corposrdquo19

Inclusive como ainda lembra Husserl

Com a geometria de Euclides tinha aparecido a ideia bastante impressionante de uma teoria dedutiva sistematicamente unificada orientada para um fim ideal de uma grande amplitude e de uma grande elevaccedilatildeo repousando em conceitos e princiacutepios fundamentais

17 Verbo ldquowohnenrdquo gewoumlhnt (habitual acostumado) 18 A este respeito vale salientar que segundo Franccedilois de Gandt Husserl tomara conhecimento de Galileu mediante uma ldquovulgata galileanardquo corrente em sua eacutepoca logo natildeo teria frequentado diretamente os seus trabalhos Por conseguinte a imagem do Galileu husserliano fora traccedilado tendo em vista o empreendimento de neo-kantianos como Hermann Cohen Paul Natorp e Ernst Cassirer (GANDT 2004 p 97-8) Teria saiacutedo inclusive das letras de Cassirer a certeza de que deveria ser pago a Galileu o tributo pela possibilidade de se lanccedilar uma ldquoponte entre Platatildeo e Kantrdquo Mas seria entatildeo a Krisis tatildeo-somente o locus de sedimentaccedilatildeo da recepccedilatildeo de uma determinada imagem inteiramente pronta de Galileu e de uma imagem pautada sobre um ldquofundo kantianordquo Eacute certo que natildeo e o proacuteprio Franccedilois de Gandt eacute levado a reconhecer no modus operandi da Krisis uma deacutemarche que por sua inegaacutevel originalidade natildeo deixara de repercutir com fecundidade na proacutepria histoacuteria das ciecircncias 19 (HUSSERL 1992 p 18 1976 p 26) ldquoDiese hatten zwar schon von der Platonischen Ideenlehre geleitet die empirischen Zahlen Maszliggroumlszligen die emprischen Raumfiguren die Punkte Linien Flaumlchen Koumlrper idealisiertrdquo

40

ldquoaxiomaacuteticosrdquo e progredindo por uma sequecircncia de raciociacutenios apodiacuteticos em suma um conjunto proveniente da racionalidade pura um conjunto de verdades absolutamente incondicionadas apreensiacuteveis diretamente ou indiretamente conjunto que se oferece a si mesmo aos olhares em sua verdade incondicionada (HUSSERL 1992 p 18-9 1976 p 26)20

Todavia se jaacute encontramos tudo isto em Euclides como salienta

Husserl qual seria entatildeo a novidade do pensamento moderno [claacutessico] Jaacute

natildeo havia ali uma conceituaccedilatildeo matemaacutetica da Natureza Na Krisis o

filoacutesofo nos responderia que natildeo De acordo com a Krisis ldquo[] a geometria de

Euclides e geralmente falando a matemaacutetica dos Antigos conhecia apenas

tarefas finitas ela conhecia apenas um a priori que se fecha de modo finitordquo21

Participando deste modo encontrar-se-ia por exemplo o silogismo

aristoteacutelico Neste sentido especialmente a partir de Galileu muda-se o

modo de se aproximar da Natureza Trata-se de um mundo ldquoinfinitordquo aquele

das idealidades que apenas pode ser atingido por um ldquomeacutetodo racional

sistematicamente unificadordquo Natildeo haacute mais sentido em se referir a uma

ldquorealidaderdquo que se aperfeiccediloa agrave medida que se aproxima de ldquoideiasrdquo perfeitas

mas ldquo[] eacute a proacutepria natureza que sob a direccedilatildeo da nova matemaacutetica

encontra-se idealizada ela proacutepria torna-se [] uma multiplicidade

matemaacuteticardquo (HUSSERL 1954 p 20 1976 p 26)22 A matemaacutetica como

instrumento de anaacutelise ao contraacuterio da loacutegica escolaacutestica torna-se

especialmente para Galileu o instrumento da ldquodescobertardquo23 No entanto

20ldquoNoch mehr mit der Euklidischen Geometrie war di houmlchst eindrucksvolle Idee einer auf ein weit-und hochgestecktes ideales Ziel ausgrichteten systematisch einheitlichen deduktiven Theorie erwachsen beruhend auf bdquoaxiomatischenldquo Grundbegriffen und Grund dsaumltzen in apodiktischen Schluszligfolgerungen fortschreitend ndash ein Ganzes aus reiner Rationalitaumlt ein in seiner unbedingten Wahrheit einsehbares Ganzes von lauter unbedingten unmittelbar und mittelbar einsichtigen Wahrheitenrdquo 21 (HUSSERL 1954 p 19 1976 p 26) ldquoAber die Euklidische Geometrie und die alte Mathematik uumlberhaupt kennt nur endliche Aufgaben ein endlich geschlossenes Apriorirdquo (HUSSERL 1992 p 19) 22ldquoIn der Galileischen Mathematisierung der Natur wird nun diese selbst unter der Leitung der neuen Mathematik idealisiert sie wird ndash modern ausgedruumlckt ndash selbst zu einer mathematischen Mannigfaltigkeitrdquo (HUSSERL 1954 p 20) 23 Assim embora reconheccedila o platonismo de Galileu do mesmo modo que Koyreacute Husserl sabe que mais do que uma admiraccedilatildeo o platonismo ao menos como fora recebido torna-se a base e o alicerce de um conhecimento marcado pela objetividade e a segura instabilidade das formas Nessa perspectiva a matemaacutetica natildeo eacute a expressatildeo de um amor pela Antiguidade que se revela no conhecimento de sua imagiacutestica mas vem a ser entendida

41

como se daria em Galileu a gecircnese de uma compreensatildeo matemaacutetica da

Natureza

Segundo Galileu a partir da nossa experiecircncia sensiacutevel eacute

possiacutevel identificar elementos tanto simples quanto absolutos que em

seguida podem ser traduzidos para uma linguagem matemaacutetica24 O

interessante eacute que apoacutes ter feito isto logo natildeo precisamos mais da proacutepria

experiecircncia Seraacute a matemaacutetica pura que ditaraacute as etapas posteriores Por

conseguinte natildeo haveria problema algum se nesta etapa algumas

hipoacuteteses natildeo se confirmassem empiricamente A demonstraccedilatildeo ou

verificaccedilatildeo cientiacutefica realizada a partir da experiecircncia seria simplesmente

um recurso facultativo para se usar com aqueles que natildeo confiam na

universalidade da matemaacutetica Contudo seraacute a distinccedilatildeo galileana herdada

de Kepler ldquoentre o que no mundo eacute absoluto objetivo imutaacutevel e

matemaacutetico e o que eacute relativo subjetivo flutuante e sensorialrdquo (BURTT

1991 p 67) que marcaraacute sua metafiacutesica Em outros termos eacute a separaccedilatildeo

do que haacute de manifesto em um fenocircmeno fiacutesico em ldquoqualidades primaacuteriasrdquo e

ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo que nos faraacute encontrar tambeacutem em Galileu um

dos alicerces do mundo moderno [claacutessico] aleacutem da fiacutesica newtoniana que

como salientaria Koyreacute teria dividido o mundo em dois

De um lado encontramos ldquoqualidades primaacuteriasrdquo que se referem

a tudo o que haacute de matematicamente traduziacutevel em um fenocircmeno Por outro

lado encontramos tambeacutem ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo que se referem a

experiecircncias como a sensaccedilatildeo Enquanto a primeira seria real concreta a

segunda natildeo sendo tatildeo real quanto a primeira encontrar-se-ia apenas

limitada agrave nossa subjetividade Aleacutem disso encontramos em Galileu ndash

semelhante em certos aspectos a Platatildeo ndash aqueacutem do mundo da exatidatildeo

matemaacutetica a distinccedilatildeo de um mundo de ldquoopiniotildees cambiantesrdquo e de um

como a proacutepria estrutura do Universo Essa eacute a razatildeo mediante a qual se entende tanto a substituiccedilatildeo da experiecircncia sensiacutevel por um mundo preacutevio ndash como diria Nietzsche por um Hinterwelt ndash como o atomismo galileano que tornava Platatildeo e Demoacutecrito estranhamente os fundamentos de uma mesma realidade 24 Eacute assim que conforme Burtt ldquovisto em sua totalidade o meacutetodo de Galileu pode ser decomposto em trecircs etapas intuiccedilatildeo ou resoluccedilatildeo demonstraccedilatildeo e experiecircncia empregando-se em cada caso seus termos prediletosrdquo (BURTT 1991 p 65)

42

mundo da ldquoexperiecircncia sensorialrdquo Assim ldquoos elementos confusos e

inconfiaacuteveis na figuraccedilatildeo sensorial da Natureza satildeo de algum modo efeitos

dos proacuteprios sentidosrdquo (BURTT 1991 p 67) pois ldquoeacute porque o quadro mental

resultante passou pelos sentidos que ele possui todas essas caracteriacutesticas

confusas e enganosasrdquo (BURTT 1991 p 67) Como podemos notar enquanto

as qualidades secundaacuterias natildeo passam de meros efeitos dos nossos sentidos

as primaacuterias seriam as que na Natureza satildeo de fato reais Como ressalta o

proacuteprio Galileu

() natildeo acredito que os corpos externos para provocar em noacutes esses gostos esses cheiros e esses sons requeiram mais que o

tamanho a figura o nuacutemero e o movimento vagaroso ou raacutepido e

julgo que se os ouvidos a liacutengua e as narinas fossem suprimidas a

figura os nuacutemeros e os movimentos certamente permaneceriam mas natildeo os odores nem os gostos nem os sons os quais sem o

animal vivo natildeo creio que constituam mais que nomes assim como

as coacutecegas natildeo satildeo nada mais que um nome se a axila ou a

membrana nasal fossem suprimidas (GALILEU 1942 vol IV p 333)25

A partir destas consideraccedilotildees portanto podemos entender as

razotildees que levaram Husserl a notar em Galileu aquele ldquosentido originaacuteriordquo

[urspruumlngliche Sinngebung] pelo qual se institui a ciecircncia claacutessica Tomando

Galileu como referecircncia a pretensatildeo husserliana eacute a de explicitar a cisatildeo

presente em seu tempo entre as ldquociecircncias do Espiacuteritordquo e as ldquociecircncias da

Naturezardquo que ao conduzir a um labirinto no qual a verdade se encontrava

fundada em teorias antagocircnicas acabava por nos situar frente a uma

espeacutecie de esquizofrenia da cultura26 Em especial nas Ideen II ao tratar da

25 ldquoPer lo che vo io pensando che questi sapori odori colori etc per la parte del suggetto nel quale ci par che riseggano non sieno altro che puri nomi ma tengano solamente lor residenza nel corpo sensitivo sigrave che rimosso lanimale sieno levate ed annichilate tutte queste qualitagrave tuttavolta perograve che noi sigrave come gli abbiamo imposti nomi particolari e differenti da quelli de gli altri primi e reali accidenti volessimo credere chesse ancora fussero veramente e realmente da quelli diverserdquo (GALILEU 1942 vol IV p 333) 26 Husserl reconhece sua diacutevida para com Dilthey ldquoo primeiro que observou as diferenccedilas essenciais que estatildeo em jogo aqui e o primeiro tambeacutem que tomou uma consciecircncia viva do fato de que a psicologia moderna ciecircncia natural do psiacutequico era incapaz de assegurar agraves ciecircncias concretas do espiacuterito a fundaccedilatildeo cientiacutefica que elas exigiamrdquo (HUSSERL 1952 p 175 1950 p 175) Contudo a seu ver ldquounicamente uma investigaccedilatildeo radical orientada rumo agraves fontes fenomenoloacutegicas da constituiccedilatildeo das ideias da natureza do corpo proacuteprio da alma e das diferentes ideias de ego e de pessoa pode aqui fornecer as explicitaccedilotildees

43

ldquoConstituiccedilatildeo do Mundo do Espiacuteritordquo o filoacutesofo nos acentua que a cultura

de um modo geral ou como ele mesmo diraacute ldquonossa visatildeo de mundo por

inteirordquo encontra-se determinada em sua ldquoessecircnciardquo e em seu ldquofundamentordquo

pela separaccedilatildeo entre o ldquomundo da naturezardquo e o ldquomundo do espiacuteritordquo ldquo()

entre uma teoria da alma proacutepria da ciecircncia de um lado e de outro uma

teoria da pessoa (teoria do ego egologia) assim como uma teoria da

sociedade (teoria da comunidade)rdquo (HUSSERL 1952 p 175 1950 p 246)

Encontramos pois seguindo em seus pressupostos uma variante leibniziana

da separaccedilatildeo entre quaestiones de facto e quaeligstiones de iure uma ciecircncia

que por si mesma natildeo conseguindo explicitar os fundamentos nos quais se

encontra alicerccedilada deixou no esquecimento o solo preacutevio de onde emergira

a saber o mundo-da-vida a Lebenswelt Daiacute por exemplo a necessidade de

uma nova psicologia de uma psicologia que natildeo sendo psicoloacutegica natildeo

compartilhe tambeacutem da incapacidade das ciecircncias de assegurar ldquoagraves ciecircncias

concretas do espiacuterito a fundaccedilatildeo cientiacutefica que elas exigemrdquo (HUSSERL 1952

p 175 1950 p 246) Como jaacute salientava o filoacutesofo em La philosophie comme

science rigoureuse

As ciecircncias da natureza natildeo nos desvelaram em nenhum ponto o misteacuterio da realidade atual da realidade em que vivemos agimos e

estamos A crenccedila geral de que tal eacute sua funccedilatildeo e que elas ainda natildeo estatildeo bastante avanccediladas para preenchecirc-la a opiniatildeo segundo a

qual elas poderiam por princiacutepio realizaacute-la revelou-se aos olhares

profundos como supersticcedilatildeo (HUSSERL 1993 p 170)

Por conseguinte mantendo o foco em Galileu conforme vimos

natildeo se daacute por acaso o empreendimento husserliano em natildeo centrar-se

unicamente naquela geometria ldquointeiramente prontardquo que lhe fora entregue

Nem mesmo eacute desconhecida do filoacutesofo a ameaccedila anacrocircnica que assombra

as suas reflexotildees Afinal natildeo estaria o pensador no direito de interrogar

antes de tudo ldquoo sentido originaacuterio da geometria que nos eacute entregue e nunca

deixa de advir com este mesmo sentido ndash geometria que natildeo deixa de advir e

ao mesmo tempo de se edificar ao permanecer atraveacutes de todas as suas

decisivas e ao mesmo tempo dar sua fecundidade e seu direito aos motivos plenamente vaacutelidos de todas as investigaccedilotildees desse gecircnerordquo (HUSSERL 1950 p 247)

44

novas formas na condiccedilatildeo de lsquoarsquo geometriardquo (HUSSERL 1992 p 365 1976

p 173 ndash traduccedilatildeo modificada por noacutes) 27 De acordo com Husserl a razatildeo e o

pensamento natildeo satildeo transluacutecidos pelo contraacuterio estatildeo sempre em processo

Neste sentido ao situarmos ldquoa geometriardquo em um horizonte histoacuterico eacute

preciso assinalar que natildeo se trata de um processo de determinaccedilatildeo mas de

um longo processo de indeterminaccedilatildeo haja vista que a ldquoconcreccedilatildeo histoacutericardquo

do mundo-da-vida natildeo se daacute por um mecanismo de mundificaccedilatildeo no qual o

todo seria simplesmente a soma das partes ela se encontra ao mesmo

tempo conforme veremos adiante ao falar da Terra como archeacute originaacuteria

em toda parte e em parte alguma Mas o que seria essa concreccedilatildeo A partir

dos anos 30 essa palavra passa a se encontrar nas letras de Husserl com

uma maior frequecircncia28 indicando as vaacuterias camadas que constituem a

nossa histoacuteria A histoacuteria eacute um todo constituiacutedo por camadas um modo de

reunir vaacuterios horizontes e assim por meio de junccedilotildees nascidas de uma

relaccedilatildeo entre o todo e a parte formarem uma realidade uma realidade que eacute

composta por uma concreccedilatildeo de vaacuterios horizontes Eacute assim que Husserl

vislumbra no mundo-da-vida o horizonte maior do qual se tornam possiacuteveis

todos os outros horizontes todas as outras concreccedilotildees Na concreccedilatildeo

temporal do mundo-da-vida encontramos o a priori de todas as outras

concreccedilotildees trazendo consigo em seu fundo tanto o horizonte da

subjetividade transcendental como da subjetividade relativa tanto da

transcendentalidade como da historicidade sendo por conseguinte o solo

concreto dos vaacuterios horizontes das vaacuterias relaccedilotildees de junccedilatildeo que constituem

a nossa histoacuteria Um objeto portanto natildeo eacute simplesmente um em-si posto

27 ldquoEs gilt vielmehr auch ja vor allem zuruumlckzufragen nach dem urspruumlnglichen Sinn der uumlberlieferten und weilterhin mit eben diesem Sinn fortgeltenden Geometrie ndash fortgeltend und zugleich fortgebildet und in allen neuen Gestalten bdquodieldquo Geometrierdquo (E Husserl 1992 p 365 1976 p 173) 28 No latim concreccedilatildeo eacute oriunda do verbo cōncrēscŏ [cōncrēscĕrĕ] significando crescer fazer-se espesso aumentar formar-se mediante uma agregaccedilatildeo de partes Por sua vez cōncrētŭs seria aquilo que foi formado por uma agregaccedilatildeo de partes composto por muitos elementos diferindo-se de ābstrăctŭs quer dizer o que foi tirado de o que foi separado Cōncrētio Cōncrētĭōnĭs eacute pois uma agregaccedilatildeo uma condensaccedilatildeo uma composiccedilatildeo eacute aquilo que foi formado por uma agregaccedilatildeo de partes

45

diante do sujeito mas antes uma rede de horizontes o mesmo valendo para

objetos da cultura como eacute o caso da geometria Daiacute a confissatildeo do filoacutesofo

Inevitavelmente nossas consideraccedilotildees conduziratildeo rumo aos

problemas mais profundos de sentido problemas da ciecircncia e da

histoacuteria da ciecircncia em geral e inclusive em uacuteltima instacircncia de uma

histoacuteria universal em geral embora nossos problemas e nossas explicitaccedilotildees que dizem respeito agrave geometria galileana detecircm uma

significaccedilatildeo exemplar (HUSSERL 1992 p 365 1976 p 174)29 [E o

que mostraraacute este exemplo Acrescenta Husserl] Aqui um exemplo

mostraraacute com evidecircncia em primeiro lugar que nossas investigaccedilotildees satildeo precisamente histoacutericas em um sentido insoacutelito isto eacute segundo

uma direccedilatildeo temaacutetica que daacute acesso a problemas de fundo

totalmente alheios agrave histoacuteria (Historie) habitual problemas que em

sua ordem satildeo tambeacutem indubitavelmente histoacutericos (historische) (HUSSERL 1992 p 365 1976 p 174)

Husserl remete agrave Lebenswelt na condiccedilatildeo de horizonte histoacuterico

tanto o transcendental como o histoacuterico conduzindo o problema da

horizontalidade para um solo preacutevio Falar em concreccedilatildeo histoacuterica e buscar

sua gecircnese natildeo se trataraacute portanto da busca pela materialidade pela qual

as coisas satildeo constituiacutedas mas do modo como suas partes se congregam

dado que como nos ensina a etimologia toda concreccedilatildeo seraacute sempre a

reuniatildeo de coisas distintas diversas Logo a Lebenswelt eacute tatildeo concreta como

qualquer ente do universo fiacutesico como uma cadeira uma aacutervore uma

montanha A sutileza estaacute em mostrar que o mundo-da-vida natildeo eacute um todo

constituiacutedo pela soma das partes tal como seria o mundo do fiacutesico mas o

horizonte maior que possibilita inclusive o universo fiacutesico que faz com que

as outras concreccedilotildees que se datildeo em seu interior sejam sempre relativas A

pergunta pela geometria pelo universo da fiacutesica e das ciecircncias eacute sobretudo

a pergunta pelo horizonte pelo solo pelo fundo que fez deles uma concreccedilatildeo

em nosso mundo sabendo ser histoacuterico este horizonte que nos permite

perceber um ente como componente do mundo o que significa dizer que haacute

uma concreccedilatildeo originaacuteria na qual todas as outras satildeo possiacuteveis o que faz da

29ldquoNotwendig werden unsere Betrachtungen an tiefste Sinnesprobleme heranfuumlhren Probleme der Wissenschaft und Wissenschftsgeschichte uumlberhaupt ja schlieszliglich einer Universalgeschichte uumlberhaupt so daszlig unsere die Galilesche Geometrie betreffenden Probleme und Auslegungen eine exemplarische Bedeutung erhaltenrdquo (HUSSERL 1992 p 365 1976 p 174)

46

Lebenswelt frente agraves geometrias de Euclides e de Galileu diante do

naturalismo das ciecircncias antes de tudo um a priori um solo originaacuterio

O direcionamento a Galileu por conseguinte implica a pergunta

por uma geometria que se torna concreta mediante a histoacuteria dado que eacute

proacuteprio das diversas concreccedilotildees que compotildeem o nosso mundo se tornarem

concretas na forma de histoacuteria o que faz dela uma categoria ontoloacutegica do

mundo-da-vida Consequentemente natildeo estaacute em jogo apenas uma histoacuteria

relativa ldquoa histoacuteria da geometriardquo mas o proacuteprio sentido que faz da

historicidade uma categoria capaz de transcender inclusive uma ciecircncia da

histoacuteria Encontramo-nos pois diante de um outro modo aqueacutem da criacutetica

de se fazer histoacuteria encontramo-nos pois frente a um caminho arqueoloacutegico

no qual se busca em primeiro lugar a gecircnese de sentido que tornam as

concreccedilotildees de um ente ou de um conceito possiacuteveis O movimento

arqueoloacutegico que nos leva ao mundo-da-vida eacute um movimento que nos

mostra o modo como percebemos o sentido de tudo aquilo que eacute fazendo

com que o nosso mundo contra o naturalismo das ciecircncias e seus

movimentos de geometrizaccedilatildeo da Natureza natildeo se resuma no universo

fiacutesico mas seja antes a luz na qual toda manifestaccedilatildeo se torna possiacutevel

Ora eacute neste sentido que para Husserl torna-se justificada a

necessidade de compreender e elucidar as relaccedilotildees existentes entre este

mundo entendido como um horizonte histoacuterico originaacuterio e o mundo

cientiacutefico entre ciecircncia e vida A pergunta pelo sentido da ciecircncia claacutessica

implica na fenomenologia husserliana uma pergunta pelas condiccedilotildees a

priori que tornaram essa ciecircncia possiacutevel assim como toda e qualquer

ciecircncia possiacutevel tendo em vista um mundo no qual a ciecircncia ainda natildeo

tenha estendido seu reino e no qual em contrapartida ela se encontra

situada Eacute mediante a tal questionamento que a Lebenswelt se insere como

solo preacutevio e como horizonte de toda evidecircncia solo cujo conhecimento as

ciecircncias deixaram escapar e que paradoxalmente ldquo() poderia fornecer

sentido e validade agraves formaccedilotildees teoreacuteticas do saber objetivo em geral e ao

mesmo tempo lhe fornecer a dignidade de um saber a partir do fundamento

uacuteltimordquo (HUSSERL 1976 p 135) De acordo com o filoacutesofo em outros

termos eacute preciso encarar a ciecircncia dentre os vaacuterios projetos culturais

47

presentes na histoacuteria sendo um dos modos pelos quais o mundo-da-vida se

encontra revestido Logo a Lebenswelt eacute o campo no qual se torna possiacutevel

toda e qualquer evidecircncia O que se pretende eacute pois lembrar agraves ciecircncias

que anterior ao campo da ἐπιστήmicroη [episteacuteme] haacute primeiramente um mundo

doacutexico o mundo de nossas primeiras evidecircncias natildeo lhe cabendo postular

ser portadora de toda evidecircncia possiacutevel Haacute no retorno ao mundo-da-vida

um caminho de integraccedilatildeo dos vaacuterios horizontes e evidecircncias que se

manifestam na Lebenswelt inclusive o mundo preacute-cientiacutefico haja vista que

se haacute um comeccedilo da verdade eacute ali que ele se encontra natildeo nas matemaacuteticas

e na ciecircncia em geral mas em nossa relaccedilatildeo originaacuteria com o mundo Daiacute o

direcionamento agrave percepccedilatildeo e a um ego encarnado e preacute-reflexivo no qual

tal relaccedilatildeo se daacute anterior agrave reflexatildeo em um horizonte corporal pelo qual

mediante siacutenteses passivas constituiacutemos como nosso campo de existecircncia

Eacute neste sentido que para Husserl a Lebenswelt oferece sobretudo uma

unidade ao saber uma vez que todas as ciecircncias particulares fazem parte de

um sistema global de sentido perdendo assim a sua pretensa e absoluta

autonomia e rompendo de vez com as ilusotildees do objetivismo cientificista

Natildeo haacute pois conhecimento sem referecircncia a uma subjetividade originaacuteria

dado que toda relaccedilatildeo com um objeto leva consigo as marcas de uma gecircnese

subjetiva que encontra em um mundo previamente dado o seu horizonte um

mundo que eacute ao mesmo tempo solo fundante [Bodenfunktion] e caminho

metodoloacutegico um pensar retroativo [Leitfadenfunktion] que nos leva agrave sua

gecircnese em noacutes mesmos

Por conseguinte natildeo podemos nos esquecer de que o

direcionamento agrave tematizaccedilatildeo da Lebenswelt como um mundo anterior agrave

ciecircncia situa-se no horizonte de uma criacutetica ao objetivismo das ciecircncias

negando-lhes por conseguinte a pretensatildeo de se compreenderem como uma

ontologia geral A ciecircncia natildeo estaacute acima deste mundo mas nele se encontra

incluiacuteda sendo que ateacute mesmo os seus juiacutezos remetem no final das contas

a uma experiecircncia originaacuteria Como jaacute nos assinalava o sect105 da Formale und

transzendentale Logik a verdade do cientista natildeo eacute mais autecircntica do que a

verdade do comerciante cada uma em seu campo e em sua relatividade por

48

natildeo originar-se de uma mesma intenccedilatildeo natildeo podem ser consideradas

absolutas uma em detrimento da outra natildeo havendo uma verdade em si O

problema da ciecircncia estaacute em crer que ldquoseja necessaacuteriordquo existir ldquouma

evidecircncia que apreenda a verdade de modo absoluto () pois do contraacuterio

natildeo poderiacuteamos ter nenhuma verdade nem ciecircncia alguma nem poderiacuteamos

ter a pretensatildeo de tecirc-lasrdquo (HUSSERL 1962b p 287) Por conseguinte

O comerciante tem sua verdade mercantil natildeo eacute em relaccedilatildeo agrave sua situaccedilatildeo uma boa verdade a melhor que pode servi-lo Acaso natildeo eacute

uma verdade aparente porque o cientista julgando com outra

relatividade distinta com outros objetivos e ideias busca outras

verdades com as que podemos fazer muito mais coisas embora natildeo possamos fazer precisamente o que se necessita no mercado

Devemos deixar de nos cegarmos com as ideias e meacutetodos

regulativos das ciecircncias ldquoexatasrdquo particularmente na filosofia e na

loacutegica como se seu caraacuteter ldquoem sirdquo fosse uma norma efetivamente absoluta tanto no que diz respeito ao ser objetivo como agrave verdade

Essa atitude significa na realidade por causa das aacutervores natildeo ver o

bosque significa passar por alto os aspectos infinitos da vida e de

seu conhecimento os aspectos infinitos do ser relativo que soacute eacute racional nos limites dessa relatividade passar por alto com tal

realizar um resultado cognoscitivo grandioso mas de significaccedilatildeo

teleoloacutegica muito limitada (HUSSERL 1962b p 287-8)

Haacute portanto um caminho retroativo que conduz os juiacutezos da

loacutegica e da matemaacutetica ao juiacutezo da experiecircncia a um mundo no qual se

situam os juiacutezos evidentes da intuiccedilatildeo imediata Mais do que uma negaccedilatildeo

da ciecircncia eacute a explicitaccedilatildeo de um a priori subjetivo de um a priori da

Lebenswelt que se faz presente nos trabalhos do cientista Logo a

metodologia cientiacutefica assim como fora compreendida desde Galileu natildeo

pode ser absoluta nem ser tida como o verdadeiro ser mas antes haacute que se

levar em conta ldquo() o mundo da experiecircncia sensiacutevel que sempre vem dado

de antematildeo como evidecircncia inquestionada ()rdquo (HUSSERL 1954 p 77

1976 p 80) aquela a partir da qual se alimenta toda vida mental quer seja

cientiacutefica ou natildeo cientiacutefica Nisto encontra-se o paradoxo de Husserl o

ensejo de fundamentar a proacutepria relativizaccedilatildeo que ocorrendo

historicamente natildeo acontece sem fundamento Logo a verdade encontra-se

em sua gecircnese o conhecimento eacute algo que natildeo se faz sem o a priori da

correlaccedilatildeo universal sem o modo de visar da consciecircncia daiacute natildeo haver

49

uma verdade absoluta mas antes uma ldquoverdade viva que proveacutem das origens

viventes da vida absolutardquo (HUSSERL 1976 p 289) Natildeo se trata de um

modo falso de absolutizar a verdade mas de modo diverso compreendecirc-la

em seus horizontes uma vez que ldquotemos a verdade em uma intencionalidade

viva (que se chama ldquoevidecircnciardquo) cujo conteuacutedo permite distinguir entre

lsquoefetivamente dadorsquo e lsquoantecipadorsquo ou lsquoretidorsquo ou lsquoapresentado como algo

alheio ao eursquo etcrdquo (HUSSERL 1976 p 289)

Para Husserl por fim neste processo de criacutetica da ciecircncia

encontra-se a ideia de que cabe agrave filosofia reencontrar o seu teacutelos aquele

que tem sua gecircnese no universo grego o reencontro do pathos da admiraccedilatildeo

pelo qual se realiza a atitude teoreacutetica Em outros termos para Husserl o

iniacutecio da filosofia se daacute pelo que constitui o seu proacuteprio teacutelos a saber o

desejo pela atitude teoreacutetica fundada no ldquoideal da teoria purardquo [reine Theoria]

(HUSSERL 1976 p 331) que nasce justamente de uma paixatildeo teoacuterica cuja

perda por sua vez eacute a explicitaccedilatildeo deste estado de crise Neste sentido

como salienta Slatman ldquoo meacutetodo histoacuterico de Husserl eacute pois teleoloacutegico

ele explica o decliacutenio da cultura europeia como a perversatildeo da razatildeo na

histoacuteriardquo (SLATMAN 2001 p 53) Neste sentido de modo inverso ldquo[] o

renascimento de uma cultura que estabelecesse relaccedilotildees com a teoria pura

seria possiacutevel por uma orientaccedilatildeo na direccedilatildeo do teacutelosrdquo (SLATMAN 2001 p

53)30 Contudo a seu modo o ensinamento da Krisis assume a tarefa de

mostrar natildeo meramente a partir de uma explicaccedilatildeo cronoloacutegica e causal ndash a

qual se encontra por sua vez em uma espeacutecie de projeto de matematizaccedilatildeo

30 Em contrapartida vale dizer que para Merleau-Ponty tal concepccedilatildeo natildeo deixaria de apresentar problemas Quais as razotildees ldquoPrimeiramente Husserl situa no centro da histoacuteria o animal rationale Eacute a racionalidade que determina a histoacuteria e de certo modo natildeo se pode mais ver como a histoacuteria mesma eacute constitutiva para a gecircnese da idealidade objetiva ou para a gecircnese da tradiccedilatildeo em geral A histoacuteria eacute considerada como o desenvolvimento da racionalidade segundo uma perspectiva teleoloacutegica Em segundo lugar a filosofia teleoloacutegica concebe toda histoacuteria da filosofia de um soacute ponto de vista desde entatildeo ela nos impede uma investigaccedilatildeo sobre sua proacutepria relaccedilatildeo com a histoacuteria Com efeito Husserl natildeo explica sua relaccedilatildeo vis-agrave-vis com a histoacuteria Longe disso explica a partir de sua proacutepria ideia da filosofiardquo (SLATMAN 2001 p 53) O modo como a histoacuteria se apresenta a Merleau-Ponty marcaria talvez neste aspecto a discordacircncia com Husserl Natildeo haveria para usar uma expressatildeo de Slatman ldquouma maneira lsquonatildeo-histoacutericarsquo de abordar a histoacuteriardquo mas a busca de uma ldquohistoacuteria vivardquo Logo o que fundamenta a criacutetica natildeo eacute um direcionamento negativo ao passado mas um redimensionamento mesmo havendo um retorno ao passado a partir do presente

50

da natureza ndash o geacutermen e a gecircnese de uma visatildeo moderna [claacutessica] de

mundo por sua vez entendidos como uma genealogia histoacuterica do

objetivismo cientificista Daiacute que a preocupaccedilatildeo husserliana seja antes a de

se dirigir a uma ldquoquestatildeo em retornordquo [Ruumlckfrage] sobre o ldquo[] o sentido mais

originaacuterio segundo o qual a geometria nasceu um dia ltegt desde entatildeo

permaneceu presente como uma tradiccedilatildeo milenar ainda permanece para

noacutes e se manteacutem no que haacute de vivo em uma tradiccedilatildeo incessanterdquo (HUSSERL

1992 p 175 1976 p 365)31 O que seria este ldquocaminho retroativordquo esta

ldquoquestatildeo-em-retornordquo Vejamos a seguir

13 A Ruumlckfrage e a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica a Lebenswelt como proposta de superaccedilatildeo do naturalismo como Ursprungsklaumlrung como retorno ao mundo preacute-copernicano

De acordo com Husserl conforme jaacute indicamos a Lebenswelt eacute o

solo no qual todas as formas de concreccedilatildeo assim como todos os modos de

evidecircncia satildeo possiacuteveis O mundo de nossas primeiras evidecircncias o ponto

de partida de todo e qualquer outro mundo seraacute o ldquomundo doacutexicordquo O iniacutecio

mesmo da reflexatildeo encontra-se nesse mundo diria Husserl Ur-mundus Mas

uma questatildeo permanece se em meio agrave Lebenswelt que se constitui em

camadas vivemos em vaacuterias evidecircncias ingecircnuas como podemos trazecirc-las agrave

reflexatildeo O que Husserl propotildee Aqui estaacute a tarefa da fenomenologia da

Krisis como podemos pois explicitar este mundo originaacuterio que fora

soterrado pelo naturalismo das ciecircncias Para Husserl a resposta estaria em

um ldquoquestionamento retroativordquo [Ruumlckfrage] uma reformulaccedilatildeo da epocheacute A

partir de agora o iniacutecio dessa nova versatildeo da epocheacute fenomenoloacutegica

encontra-se no cotidiano e principalmente apoacutes ter estabelecido um diaacutelogo

com ele Haacute aqui um trabalho ldquoarqueoloacutegicordquo no qual as camadas satildeo

recuperadas apenas a partir de um diaacutelogo de um trabalho criacutetico Husserl

aponta para uma possibilidade de compreensatildeo dos diversos mundos que

31ldquo([] Unser Interesse sei stattdessen die Ruumlckfrage nach dem urspruumlnglichsten Sinn in welchem die Geometrie dereinst geworden ist ltundgt seitdem als Tradition der Jahrtausende da war noch fuumlr uns da und in lebendiger Fortarbeit ist)rdquo (HUSSERL 1992 p 175 1976 p 365)

51

compotildeem o mundo-da-vida a Lebenswelt sendo descartado qualquer

ldquorelativismo absolutordquo (JOSGRILBERG 2001)

Ora lembremo-nos de que jaacute no prefaacutecio da Pheacutenomeacutenologie de

la perception indagando-se sobre o sentido do movimento fenomenoloacutegico

Merleau-Ponty se aproximava dos temas basilares de Husserl a ldquoreduccedilatildeordquo e

a ldquointencionalidade da consciecircnciardquo com uma atitude interrogativa Nesse

texto ao propor um retorno agrave experiecircncia perceptiva Merleau-Ponty

encarava a reduccedilatildeo como um meio de fugir de uma filosofia da consciecircncia

indicando os estaacutegios da reflexatildeo desde a sua camada preacute-reflexiva Assim

sendo ele rejeitava a reduccedilatildeo entendida a partir do que considerava ser uma

atitude idealista pois ldquoum idealismo transcendental consequente despoja o

mundo de sua opacidade e de sua transparecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1945

p VI) embora a intenccedilatildeo husserliana direcionada para o Cogito fosse

encontrar um pensamento radical que a partir da noccedilatildeo de Sinngebung

(operaccedilatildeo ativa de significaccedilatildeo) fosse orientada a um cogitatum Sentindo a

enigmaticidade da reduccedilatildeo Merleau-Ponty dizia que

Sem duacutevida natildeo existe questatildeo em relaccedilatildeo agrave qual Husserl tenha despendido mais tempo em compreender-se a si mesmo ndash tambeacutem natildeo existe questatildeo agrave qual ele tenha mais frequentemente retornado jaacute que a ldquoproblemaacutetica da reduccedilatildeordquo ocupa nos ineacuteditos um lugar importante Durante muito tempo e ateacute em textos recentes a reduccedilatildeo era apresentada como o retorno a uma consciecircncia transcendental diante da qual o mundo se desdobra em uma transparecircncia absoluta animado do comeccedilo ao fim por uma seacuterie de apercepccedilotildees que caberia ao filoacutesofo reconstituir a partir de seu resultado (MERLEAU-PONTY 1945 p V)

A primeira versatildeo da epocheacute husserliana caracterizava-se por ser

uma suspensatildeo do ldquomundo naturalrdquo Todavia vale salientar que nesta

primeira versatildeo jaacute encontraacutevamos duas reduccedilotildees a ldquoreduccedilatildeo eideacuteticardquo

presente em seus primeiros trabalhos e a ldquoreduccedilatildeo transcendentalrdquo

especialmente a partir de suas Ideen zu einer reinen Phaumlnomenologie und

phaumlnomenologischen Philosophie [Ideias relativas a uma Fenomenologia pura

e uma Filosofia fenomenoloacutegica] aleacutem dos estudos reunidos em Erste

Philosophie [Filosofia Primeira] Em linhas gerais a ldquoreduccedilatildeo eideacuteticardquo eacute

marcada pelo ensejo de encontrar a essecircncia do fenocircmeno Ela tem iniacutecio

52

com a ldquocolocaccedilatildeo entre parecircntesisrdquo de todas as concepccedilotildees que se tem acerca

do mundo diferenciando-se da suspensatildeo cartesiana por se tratar tatildeo-

somente de uma suspensatildeo do juiacutezo A seguir por meio da ldquovariaccedilatildeo

eideacuteticardquo busca-se todas as perspectivas possiacuteveis de serem referendadas ao

fenocircmeno ateacute encontrar aquela que lhe seria constante a saber a proacutepria

essecircncia do fenocircmeno O problema que se procurava resolver eacute de que modo

sendo agora relativa agrave consciecircncia poderia o ser do fenocircmeno manter a sua

unidade Em outras palavras como superar Platatildeo sem retroceder a Leibniz

e por fim cumprir a tarefa de superar o psicologismo Ao retomar esta

questatildeo nas Ideen Husserl procurava descrever as essecircncias como

pertencentes diferentemente de Platatildeo agrave proacutepria consciecircncia logo estando

elas estruturadas em uma vivecircncia intencional intersubjetivamente possiacutevel

de ser experienciada Eacute a busca unicamente das essecircncias e natildeo dos fatos

em sua individualidade concreta Nesta perspectiva abre-se pois a via de

acesso a um mundo de essecircncias no qual a anaacutelise do eidos marcaria a

diferenccedila entre aspectos tanto particulares como contingentes da experiecircncia

e suas estruturas permanentes o que viria a se constituir como objeto da

intuiccedilatildeo intencional

Em contrapartida procurando ser radical Husserl contudo

inseria tambeacutem a ldquoreduccedilatildeo transcendentalrdquo na qual se visaria natildeo soacute deixar

em suspenso o mundo natural mas aleacutem disso ldquodirigir-serdquo agrave subjetividade

transcendental Por conseguinte ldquo[] o mundo das essecircncias que a primeira

reduccedilatildeo abria se fecha e a ontologia permanece uma simples virtualidade da

fenomenologiardquo (JORLAND 1981 p 30) Esta reduccedilatildeo esperava por fim

revelar a origem das formas de experiecircncia na atividade egoica de uma

subjetividade pura Apesar de seu valor onde estaria o problema desta

reduccedilatildeo Na tese metafiacutesica que lhe acompanhava naquilo que o sect49 das

Ideen (HUSSERL 1950 p 160) resumia bem ldquoo ser imanente eacute um ser

absoluto e o mundo das coisas transcendentes se refere inteiramente a uma

consciecircncia atualrdquo (HUSSERL 1950 p 160) Logo se eacute certo que natildeo haacute

mundo sem consciecircncia eacute certo tambeacutem que natildeo haacute consciecircncia sem

mundo Por conseguinte na segunda reduccedilatildeo proposta por Husserl a

Fenomenologia seria sobretudo uma ldquofenomenologia de essecircnciasrdquo

53

(HUSSERL 1950 p 160) E qual a razatildeo A este respeito Jorland parece

nos dar a resposta

Ao nos transportar para o interior dos fenocircmenos para intuicionar sua essecircncia ao ordenar o pensamento que visa (conceito) e o pensamento que vecirc (intuiccedilatildeo) este meacutetodo autoriza o estudo das conexotildees essenciais entre os fenocircmenos (Wesenzusammenhaumlnge) e suas leis (Wesensgesetze) Os estados de coisas (Sachverhalt) sobre os quais todo juiacutezo se funda (por exemplo o ser vermelho da rosa que torna possiacutevel o juiacutezo ldquoa rosa eacute vermelha) satildeo tais conexotildees essenciais e satildeo por conseguinte conhecidos a priori se bem que o a priori fenomenoloacutegico natildeo eacute unicamente epistemoloacutegico mas antes de tudo ontoloacutegico Satildeo conexotildees essenciais conhecidas a priori que fazem pensar no realismo platocircnico O fato de que elas natildeo se realizam nunca perfeitamente no mundo sensiacutevel natildeo impede que existam e que continuem a existir mesmo quando nenhum sujeito pensa nelas (JORLAND 1981 p 30)

Este processo poreacutem para o proacuteprio Husserl natildeo seria uma

negaccedilatildeo deste mundo mas o retorno a uma experiecircncia vivida Em

contrapartida negando a princiacutepio a existecircncia como um predicado do

sujeito e inclusive acreditando na possibilidade de se duvidar dela segundo

Merleau-Ponty Husserl ainda permanecia sob bases racionalistas Seria

apenas a partir de uma reduccedilatildeo aquela na qual natildeo haacute mais

transcendecircncia que se obteacutem um dado absoluto (Gegebenheit) Existindo ou

natildeo o mundo por meio de uma epocheacute livre o sujeito e sua vida

permanecem intocados De modo adverso poreacutem Merleau-Ponty acredita

que ldquoa melhor foacutermula da reduccedilatildeo eacute sem duacutevida aquela que lhe dava Eugen

Fink o assistente de Husserl quando falava de uma lsquoadmiraccedilatildeorsquo diante do

mundordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p VIII) Com isso ldquoa reflexatildeo natildeo se retira

do mundo em direccedilatildeo agrave unidade da consciecircncia enquanto fundamento do

mundordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p VIII) pois ldquoela toma distacircncia para ver

brotar as transcendecircncias ela distende os fios intencionais que nos ligam ao

mundo para fazecirc-los aparecer ela soacute eacute consciecircncia do mundo porque o

revela como estranho e paradoxalrdquo Neste sentido conclui que ldquotodo o mal-

entendido de Husserl com seus inteacuterpretes com os lsquodissidentesrsquo

existencialistas e finalmente consigo mesmo proveacutem do fato de que

justamente para ver o mundo e apreendecirc-lo como paradoxo eacute preciso

romper nossa familiaridade com ele e porque essa ruptura soacute pode ensinar-

54

nos o brotamento imotivado do mundordquo (MERLEAU-PONTY 1999 p VIII)

Assim ldquoo maior ensinamento da reduccedilatildeo eacute a impossibilidade de uma

reduccedilatildeo completa () Longe de ser como se acreditou a foacutermula de uma

filosofia idealista a reduccedilatildeo fenomenoloacutegica eacute a foacutermula de uma filosofia

existencial () (MERLEAU-PONTY 1999 p IX) Esta concepccedilatildeo merleau-

pontiana natildeo se encontra tatildeo distante da ideia de reduccedilatildeo tal como eacute

esboccedilada nas paacuteginas da Krisis Nesta obra ela passa a ser vista conforme

jaacute indicamos como um ldquoquestionamento retroativordquo no qual a subjetividade

humana eacute encarada como capaz de dar ldquogecircneserdquo ao mundo Tendo iniacutecio no

delineamento histoacuterico de tudo o que faz parte de nossas experiecircncias

ldquodoacutexicasrdquo este ldquoquestionamento retroativordquo deve nos conduzir a uma

recuperaccedilatildeo das condiccedilotildees histoacutericas deste mesmo mundo por meio de um

diaacutelogo criacutetico com ele Assim apoacutes haver dialogado com ele eacute possiacutevel

efetivar a epocheacute ou seja a anaacutelise das camadas que estatildeo latentes no que

foi criticamente mostrado no que haacute de evidecircncia no mundo-da-vida

(JOSGRILBERG 2001)

Em outros termos por conseguinte podemos dizer que no

tocante ao direcionamento husserliano a uma Ruumlckfrage o que se visa eacute ao

mesmo tempo tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo intermitente O que significa entatildeo buscar

uma origem ou entender a presenccedila de certa instacircncia ou de certo momento

na gecircnese de uma concepccedilatildeo de mundo Parece-nos que se trata em

Husserl da busca pelo sentido ou melhor do pocircr em questatildeo o sentido pelo

qual algo se institui ldquoentra na histoacuteria pela primeira vezrdquo e isso quando

ldquonada se sabe de seus primeiros criadores ou nada se indaga a respeito

delesrdquo (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)32 Logo pensando por

exemplo em uma ldquoorigem da geometriardquo como Husserl mesmo nos salienta

A partir do que sabemos a partir de nossa geometria isto eacute de suas formas antigas e transmitidas (tal qual a geometria euclidiana) uma

questatildeo em retorno [Ruumlckfrage] eacute possiacutevel sobre os comeccedilos originaacuterios e englobados pela geometria tais como devem

32ldquowir fragen nach jenem Sinn in dem sie erstmalig in der Geschicht aufgetreten ist ndash aufgetreten sein muszligte obschon wir von den ersten Schoumlpfern nichts wissen und auch gar nicht danach fragenrdquo (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)

55

necessariamente ter sido enquanto ldquoproto-fundadoresrdquo Esta questatildeo em retorno [Ruumlckfrage] vincula-se inevitavelmente a generalidades

mas isto se manifestaraacute antes satildeo generalidades suscetiacuteveis de uma explicitaccedilatildeo fecunda e com as quais satildeo prescritas as possibilidades

de advir a questotildees singulares e a tiacutetulo de respostas a determinaccedilotildees evidentes A geometria inteiramente pronta por assim

dizer a partir da qual procede a questatildeo em retorno [Ruumlckfrage] eacute uma tradiccedilatildeo Eacute no meio de um nuacutemero infinito de tradiccedilotildees que se

move nossa existecircncia humana Eacute enquanto oriundo da tradiccedilatildeo que o mundo da cultura estaacute aiacute em sua totalidade e em todas as suas

formas Enquanto tais estas formas natildeo foram engendradas de modo puramente causal e sabemos sempre que a tradiccedilatildeo eacute

precisamente tradiccedilatildeo engendrada em nosso espaccedilo de humanidade a partir de uma atividade humana portanto em uma gecircnese

espiritual ndash mesmo se em geral nada ou pouco se saiba da proveniecircncia determinada e da espiritualidade que de fato opera-se

aqui (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)33

Ora se pensamos no naturalismo das ciecircncias quais seriam as

consequecircncias deste ldquoquestionamento retroativordquo Para Husserl

especialmente em seus uacuteltimos trabalhos compreendemos melhor estas

consequecircncias quando procuramos elucidar os limites do que seria a

Natureza segundo os cientistas quando assumimos a tarefa de demonstrar

as contradiccedilotildees de uma esfera de ldquopuras coisasrdquo (blosse Sachen) tal como

tivera sua gecircnese no pensamento cartesiano Contudo para Merleau-Ponty

eacute possiacutevel encontrar em Husserl duas posiccedilotildees em relaccedilatildeo agrave Natureza A

primeira esboccedilada nas Ideen I ainda presa em uma filosofia reflexiva

considera-a contingente em relaccedilatildeo agrave consciecircncia compreendida como

necessaacuteria A Natureza em meio a um processo de reduccedilatildeo fenomenoloacutegica

33 ldquoVon dem was wir wissen von userer Geometrie bzw von den tradierten aumllteren Gestalten aus (wie der Euklidischen Geometrie) gibt es eine Ruumlckfrage nach den versunkenen urspuumlnglichen Anfaumlngen der Geometrie wie sie als bdquourstiftendeldquo notwendig gewesen sein muszligten Diese Ruumlckfrage haumllt sich unvermeidlich in Allgemeinheiten aber wie es sich bald zeigt sind es reichlich auslegbare Allgemeinheiten mit vorgezeichneten Moumlglichkeiten Sonderfragen und evidente Feststellungen als Antworten gewinnen zu koumlnnen Die sozusagen fertige Geometrie von der die Ruumlckfrage ausgeht ist eine Tradition In einer Unzahl von Traditionen bewegt sich unser menschliches Dasein Die gesamte Kulturwelt ist nach allen ihren Gestalten aus Tradition da Als da sind sie nicht nur kausal wir wissen auch immer schon daszlig Tradition eben Tradition ist in unseren Menschheitsraume aus menshlichter Aktivitaumlt also geistig geworden ndash wenn wir auch im allgemeinen von der bestimmten Herkunt und der faktisch hierbei zustandebringenden Geistigkeit nichts oder so gut wie nichts wissen rdquo (HUSSERL 1992 p 175 p 175 1976 p 366)

56

seria vista como um dos componentes da correlaccedilatildeo noese-noema Qual

seria a razatildeo da contingecircncia da Natureza Dado o simples fato de que ela

natildeo poderia ser pensada por si mesma haveria neste caso a necessidade

do espiacuterito do ldquoeu fenomenoloacutegicordquo Contudo nas Ideen II Husserl romperia

com esta perspectiva levando-nos a uma outra concepccedilatildeo de Natureza

aquela que nos apontaria para uma experiecircncia preacute-reflexiva ou seja

anterior agrave consciecircncia teacutetica e ateacute mesmo agrave atitude natural A princiacutepio o

retorno agrave atitude natural se dava no intuito de tecer uma criacutetica ao

esquecimento das razotildees que nos leva a crer no mundo cabendo agrave reduccedilatildeo

romper com esse viacutenculo equivocado Nesta postura a fenomenologia natildeo

estaria distante do idealismo transcendental compartilhando com ele o

ensejo de reabilitar a Natureza ldquono acircmbito de uma filosofia reflexivardquo o que

justificaria o fato de que em seu curso Merleau-Ponty tenha colocado

Husserl na sequecircncia de suas discussotildees sobre o romantismo alematildeo em

especial a filosofia de Schelling No entanto apesar da manifesta criacutetica do

filoacutesofo ao que considerava uma espeacutecie de incursatildeo idealista presente em

Husserl principalmente quando se tratava das ideias de constituiccedilatildeo e dos

ldquoatos intencionaisrdquo Merleau-Ponty toma nota de que se nos aproximamos

com rigor da filosofia husserliana sabemos que as coisas natildeo satildeo tatildeo

simples assim o que nos exige reconsiderar o que Husserl entendia por

constituiccedilatildeo e qual o sentido de seu aparente idealismo

Segundo o filoacutesofo o que justificaria a presenccedila de uma espeacutecie

de ldquoestrabismordquo em Husserl seria sobretudo o modo como iraacute lidar com a

atitude natural afinal ldquose a filosofia comeccedila pela atitude natural nunca

sairaacute dela e se por ventura sai por que razatildeo sairdquo (MERLEAU-PONTY

2000a p 130) A princiacutepio a postura husserliana seraacute a de tentar se

desvencilhar dela em negaacute-la por compartilhar daquilo que viria

fundamentar o naturalismo das ciecircncias Nesta perspectiva a Natureza se

apresenta como um correlato das ldquopuras coisasrdquo [blosse Sachen] furtando-se

a todo e qualquer predicado de valor arrogando-se uma objetividade tal qual

eacute possiacutevel quando se trata do reino do em-si enfim seguindo nisso um

preceito cartesiano Esta compreensatildeo se estende a todo o Universo agrave

Weltall ela natildeo tem limites A compreensatildeo das ldquopuras coisasrdquo se

57

confundiria com a explicitaccedilatildeo de uma ldquores extensardquo desvencilhada dos

equiacutevocos gerados pelas ldquoqualidades secundaacuteriasrdquo seria a compreensatildeo do

mundo visto em um horizonte matematizado conduzindo-nos a uma

postura reflexiva na qual o mundo seria em todo caso purificado pelo olhar

atento de um sujeito imparcial Eacute evidente que a intenccedilatildeo de Husserl eacute negar

essa postura eacute desconstruiacute-la e eacute justamente esse movimento que Merleau-

Ponty esperava explicitar a tentativa husserliana em negar a atitude

cartesiana poreacutem a partir da reduccedilatildeo da correlaccedilatildeo noese-noema a partir

de um ponto de vista superior A aproximaccedilatildeo da atitude natural se daria no

intuito de fazer dela como diraacute Merleau-Ponty um ldquotrampolimrdquo para a

consciecircncia Em contrapartida e nisto estaria a razatildeo do ldquoestrabismordquo a

partir de seus uacuteltimos trabalhos Husserl mais do que apenas criticar a

ldquoatitude naturalrdquo tomaria a iniciativa de tentar reabilitaacute-la fazendo com que

o superior se apresentasse agora como ldquouma tese sobre um fundordquo

(MERLEAU-PONTY 2000a p 118) Consciente desses dois movimentos

Husserl ao contraacuterio segundo Merleau-Ponty considerava-a uma ldquoexigecircncia

plenardquo O que isso significa

Sabemos que se trata em primeiro lugar de uma negaccedilatildeo do

naturalismo das ciecircncias O primeiro movimento seria consciente de que haacute

justamente uma verdade do naturalismo que eacute preciso recuperar descobrir

a vida intencional que se encontra presente nele O ser objetivo natildeo seria

neste caso um privileacutegio das ciecircncias mas tudo estaria presente nele natildeo

escapando ateacute mesmo a vida da consciecircncia Se haacute algo que uniria tanto o

cientista como o filoacutesofo seria o fato de serem homens e como tal

pertencerem agrave Natureza possuiacuterem um corpo estarem inseridos em um

universum realitatis Dizer com Husserl que ldquoquando um filoacutesofo viaja leva

suas ideias consigordquo ou melhor que ldquoos homens e natildeo somente os corpos

humanos viajam em um automoacutevelrdquo (HUSSERL 1952 p 32) significa

lembrar que natildeo haacute uma dissociaccedilatildeo entre o sujeito pensante e o sujeito

empiacuterico haacute ldquouma natureza coextensiva agrave totalidade dos seresrdquo que

acompanha o habitante do mundo (TILLIETTE 2000 p 219) Todavia isto

natildeo significa negar e nisto estaacute a criacutetica de Husserl as referecircncias

intencionais presentes neste modo como o naturalismo nos abarca natildeo

58

significa admitir o aprisionamento da consciecircncia no universo das blosse

Sachen Pelo contraacuterio haveria uma vida da consciecircncia que precederia o

universo da ciecircncia fazendo com que inclusive este universo fosse a

construccedilatildeo de um sujeito puro do sujeito fenomenoloacutegico Aqui ainda natildeo se

pensa a abstraccedilatildeo cientiacutefica como fruto de um processo histoacuterico mas

oriunda de uma estrutura da percepccedilatildeo humana A partir de uma

purificaccedilatildeo de nossa experiecircncia em uma atitude reduzida fazendo-nos de

noacutes mesmos um sujeito teoacuterico deparamo-nos com ldquocoisas purasrdquo olhamos

a cadeira e vemos sua materialidade olhamos os animais e vemos sua

animalidade A nosso ver nisto encontramos algo comum agrave leitura que

Merleau-Ponty faz de Husserl Ora o vislumbra no quadro de uma filosofia

reflexiva permeada por um ldquoestrabismordquo ora percebe em seu pensamento

uma via de superaccedilatildeo dessa mesma filosofia reflexiva Ao comentar as Ideen

II Merleau-Ponty situa Husserl no difiacutecil paradoxo presente nos

posicionamentos contraditoacuterios que toma a respeito de uma ldquoconstituiccedilatildeo da

Naturezardquo em escolher por um lado entre a passagem da doxa [doca] agrave

ἐπιστήmicroη [episteacuteme] e por outro lado entre a passagem da doxa a uma Ur-

doxa a uma doxa originaacuteria Para Merleau-Ponty nas Ideen II ainda

encontramos de forma esquemaacutetica a tentativa husserliana de descrever a

gecircnese do Kosmotheacuteoros do sujeito imparcial do Ego puro das ciecircncias

aleacutem disso isto era contrariado ldquo[] a cada instante pela tese da

irrelatividade da consciecircnciardquo o que iria adquirir outro colorido nos

trabalhos do uacuteltimo periacuteodo como o que se contrapunha ao mundo

copernicano (MERLEAU-PONTY 1969 p 90)34 Todavia deixando de lado as

anotaccedilotildees de seus cursos sobre Husserl levando em conta um texto como Le

philosophe et son ombre ainda publicado em vida e com as letras do proacuteprio

filoacutesofo esta ambiguidade em relaccedilatildeo agraves Ideen II natildeo se torna tatildeo expliacutecita o

movimento seraacute o de identificar ali uma ruptura com as Ideen I O que

assinala Merleau-Ponty eacute o movimento pelo qual Husserl se aproxima da

34 Deste modo conforme mostraremos a seguir apesar de ter encontrado nas Ideen II uma possiacutevel via de superaccedilatildeo do enamoramento husserliano com o idealismo Merleau-Ponty iraacute considerar que tal ruptura toma uma maior proporccedilatildeo no texto husserliano A Terra como arque-originaacuteria natildeo se move (HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em anexo)

59

ldquoatitude naturalrdquo para demonstrar contra o naturalismo das ciecircncias o seu

caraacuteter histoacuterico e sua pertenccedila a um solo fundamental agrave Lebenswelt a um

ldquoloacutegos do mundo esteacuteticordquo Como diraacute Merleau-Ponty

De um lado entatildeo a reduccedilatildeo ultrapassa a atitude natural Natildeo eacute ldquode naturezardquo (natural) ou seja o pensamento reduzido jaacute natildeo diz respeito agrave Natureza tratada pelas ciecircncias da Natureza mas de um certo modo ldquoao contraacuterio da Naturezardquo isto eacute agrave Natureza como ldquosentido dos atos que compotildeem a atitude naturalrdquo ndash agrave Natureza que voltou a ser o nome que sempre fora reintegrada na consciecircncia que sempre a constituiu de ponta a ponta Em ldquoregime de reduccedilatildeordquo haacute apenas a consciecircncia seus atos e o objeto intencional destes uacuteltimos permitindo a Husserl escrever que haacute uma relatividade da Natureza ao espiacuterito o absoluto [] [Por outro lado] ao dizer que a reduccedilatildeo ultrapassa a atitude natural Husserl logo acrescenta que este ultrapassamento conserva ldquointeiro o mundo da atitude naturalrdquo A proacutepria transcendecircncia desse mundo deve conservar um sentido aos olhos da consciecircncia ldquoreduzidardquo e a imanecircncia transcendental natildeo pode ser sua simples antiacutetese (MERLEAU-PONTY 1975b p 213)

Quando lemos as Ideen II a nosso ver acreditamos que eacute

preciso sobretudo desvencilhar aquilo que constitui a criacutetica de Husserl e o

que se apresenta como uma proposta fenomenoloacutegica frente a essa situaccedilatildeo

e em diversos momentos Merleau-Ponty parece dar-se conta e nos dizer

justamente isso Daiacute o filoacutesofo ter encontrado neste livro a definiccedilatildeo de uma

Natureza que eacute ldquo[] aquilo com que tenho uma relaccedilatildeo de caraacuteter original e

primordial []rdquo(MERLEAU-PONTY 2000a p 129) que eacute ldquo[] a esfera de

todos os lsquoobjetos que podem ser apresentaacuteveis originariamente e que pelo

fato de que satildeo apresentaacuteveis originariamente a um determinado sujeito o

satildeo tambeacutem a todos os outros []rdquo(MERLEAU-PONTY 2000a p 129) o que

significa dizer que ldquoa Natureza eacute a totalidade dos objetos possiacuteveis

apresentaacuteveis originariamente os quais para todos os sujeitos

originariamente comunicantes constituem um domiacutenio de presenccedila

originaacuteria comumrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 129) Logo ldquoeacute a natureza

material espaccedilo-temporal o uacutenico mundo para todo o mundordquo (MERLEAU-

PONTY 2000a p 129) Por conseguinte se lermos atentamente as paacuteginas

deste texto eacute possiacutevel concluir que o grande ensejo husserliano eacute contrapor-

se a uma ldquoatitude naturalistardquo ao apresentaacute-la como natural e tatildeo natural

como a atitude do sujeito fenomenoloacutegico o que ele nomeia ldquoatitude

60

personalistardquo Logo natildeo eacute possiacutevel haver uma atitude de identidade entre a

atitude naturalista das ciecircncias da natureza e a ldquonova atitude naturalrdquo do

sujeito fenomenoloacutegico Eacute certo que ambos conduzem a um sujeito puro

poreacutem nisto Husserl eacute bastante enfaacutetico quando se trata da reduccedilatildeo

fenomenoloacutegica trata-se de uma espeacutecie de suspensatildeo na qual o proacuteprio

sujeito empiacuterico natildeo deixa de se colocar no interior dos parecircnteses haja

vista que ldquoo sujeito uacuteltimo o sujeito fenomenoloacutegico que natildeo eacute suscetiacutevel de

ser posto fora de cena [mise hors-circuit] e que eacute ele mesmo o sujeito de toda

investigaccedilatildeo fenomenoloacutegica eideacutetica eacute o sujeito purordquo (HUSSERL 1952 p

175 2004 p 248) O que Husserl espera eacute mostrar que suas conclusotildees

partem sobretudo de uma experiecircncia fenomenoloacutegica e nisto natildeo segue a

metodologia das ciecircncias da natureza mais do que isso ele procura

demonstrar como equivocada a ideia de que a experiecircncia fiacutesica sirva de

fundamento especialmente na psicologia ao que seria posteriormente a

experiecircncia do corpo proacuteprio a experiecircncia de uma constituiccedilatildeo de

animalidade e humanidade que faria do ego sujeito uma instacircncia englobada

pelo ser psiacutequico Quanto a isto parece-nos que Merleau-Ponty

compreendeu bem inclusive La Structure du comportement seria um bom

exemplo de um trabalho inspirado na criacutetica husserliana ao naturalismo das

ciecircncias ao ensejo em romper com uma compreensatildeo de um homem

dividido em comportamentos superiores e em comportamentos elementares

ou reflexos embora natildeo tenha sido do interesse husserliano35

diferentemente de Merleau-Ponty mergulhar diretamente nos discursos

cientiacuteficos visto que como salientaria a Krisis ldquoas uacuteltimas pressuposiccedilotildees

da possibilidade do conhecimento objetivo natildeo podem ser conhecidos

objetivamenterdquo (HUSSERL 1954 p 254) Nas Ideen II Husserl deixa claro o

modo como espera se aproximar destas questotildees o que significa um retorno

agrave experiecircncia fenomenoloacutegica que se faz presente em uma ldquoatitude

personalistardquo Logo o direcionamento agrave ideia de uma Natureza que seja um

35 Jaacute nas Logische Untersuchungen encontraacutevamos uma indicaccedilatildeo disto ldquoE se de fato a ciecircncia constroacutei teorias para a soluccedilatildeo sistemaacutetica de problemas o filoacutesofo por sua vez pergunta o que eacute a essecircncia da teoria o que torna possiacutevel uma teoria em geral (HUSSERL 1975 p 254)

61

universo que seja uma Weltall faz com que nos demos conta de que na

verdade esse universo nos remete a um outro mais originaacuterio e bem mais

antigo a um mundo que ao inveacutes de ser construiacutedo se nos apresenta

Leibhaft ou seja em carne e osso Neste momento sobretudo

compreendemos as razotildees por que mais do que uma filosofia construtiva a

fenomenologia se apresenta como uma ldquoarqueologiardquo uma ldquogenealogiardquo no

caso do naturalismo das ciecircncias da natureza uma ldquoarqueologiardquo das blosse

Sachen O que isto significa

O que Husserl nos mostra em seus uacuteltimos trabalhos eacute que uma

anaacutelise intencional ao inveacutes de nos conduzir a uma reabilitaccedilatildeo do

idealismo ou mesmo subjetivisar ou psicologisar o mundo percebido revela-

nos uma arqueologia na qual antes encontramos um conjunto de quase-

objetos do que o sistema riacutegido das blosse Sachen Diraacute Merleau-Ponty ldquoas

blosse Sachen aparecem como idealizaccedilotildees satildeo conjuntos ulteriores

construiacutedos sobre a solidez do percebidordquo (MERLEAU-PONTY 1994 p 105-

6) A arqueologia husserliana ou se preferir a transfiguraccedilatildeo da anaacutelise

intencional em uma ldquointencionalidade retrospectivardquo em uma Ruumlckdeutung

leva-nos a um niacutevel preacutevio que cumpre o papel de relativizar aquilo que em

um horizonte cartesiano era tido como absoluto Abaixo das ldquocoisas purasrdquo

do universo da extensatildeo o filoacutesofo nos mostra o solo originaacuterio das ldquocoisas

preacute-teoreacuteticasrdquo o mundo vor aller Thesis traz agrave luz a ldquovida da consciecircnciardquo

que antecede o mundo construiacutedo pelo sujeito puro do naturalismo Neste

sentido a tarefa do objetivismo filosoacutefico natildeo seraacute o de demonstrar as

propriedades ou estruturas de um primado do em-si mas tornar manifestas

as motivaccedilotildees que fazem com que seja esse reino apenas uma camada

dentre tantas outras que constituem a Lebenswelt que compotildeem o mundo-

da-vida Por conseguinte naquilo que o cartesianismo considerava ser uma

descriccedilatildeo objetiva da realidade o que existe eacute um processo sedimentado

uma histoacuteria da consciecircncia que se cristalizou Quais as consequecircncias

disso Que conclusotildees podem ser tiradas quando a partir de um movimento

arqueoloacutegico assumimos a tarefa de cavar seus conceitos mais

fundamentais A uma visatildeo cientificista modelada na cisatildeo cartesiana entre

o reino da extensatildeo e o reino da consciecircncia o desmoronamento de seus

62

alicerces eacute inevitaacutevel ldquoo universo da ciecircncia natildeo repousa sobre si mesmordquo

(MERLEAU-PONTY 2000b p 220) Pelo contraacuterio ele nos remete a uma

esfera de experiecircncia na qual a proacutepria ciecircncia mesmo natildeo se dando conta

disso encontra-se assente ele nos remete em primeiro lugar ao ldquosujeito

encarnadordquo como diria Husserl ao Subjektleib ao corpo-sujeito em sua

condiccedilatildeo de ldquooacutergatildeo do Ich kann do Eu possordquo36

A experiecircncia do mundo se daacute em uma primeira instacircncia a

partir de um sujeito encarnado Mais do que um ato do espiacuterito toda

percepccedilatildeo supotildee ldquoa consciecircncia de meu corpo como oacutergatildeo de um poder

motor de um lsquoeu possorsquo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1968 MERLEAU-PONTY

1969 p 80) o que significa dizer que a percepccedilatildeo de um objeto implica a

consciecircncia das possibilidades motoras que nela se encontram implicadas

Isto explica o fato de que a experiecircncia do corpo proacuteprio natildeo siga as leis da

fiacutesica natildeo faz com que seus movimentos sejam situados no quadro de um

saber objetivo pois ele se manifesta antes como ldquo[] uma potecircncia indivisa e

sistemaacutetica de organizar certos desenvolvimentos de aparecircncia perceptiva O

meu corpo eacute aquele que eacute capaz de passar de tal aparecircncia para tal

aparecircncia como organizador de uma lsquosiacutentese de transiccedilatildeorsquordquo (MERLEAU-

PONTY 2000a p 122) Aqui Husserl se afasta da ideia de um Eu puro que

faria do corpo um objeto capaz de se relacionar com outros objetos Pelo

contraacuterio o corpo eacute capaz de compreender o mundo de habitaacute-lo logo a

ldquocoisa me aparece assim como um momento da unidade carnal de meu

corpo como encravada em seu funcionamento O corpo aparece natildeo soacute como

o acompanhante exterior das coisas mas como o campo onde se localizam

minhas sensaccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 122) O corpo se torna

nesta perspectiva um ldquocampo de localizaccedilatildeordquo no qual as sensaccedilotildees se

efetuam torna-se um corpo sentiente cumprindo ao mesmo tempo o papel

de sujeito e de objeto Encontramos aqui uma ruptura com a fisiologia

36 Deste modo podemos entender o que nos diz Merleau-Ponty ao tomar essas consideraccedilotildees como referecircncia a uma ontologia selvagem ldquoEsboccedilo de uma ontologia projetada como ontologia do ser bruto ndash e do loacutegos Configurar o Ser Selvagem prolongando meu artigo sobre Husserl Mas o desvelamento desse mundo desse Ser permanece mudo enquanto natildeo desenraizarmos a filosofia objetiva (Husserl)rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 164)

63

claacutessica segundo a qual a afirmaccedilatildeo de um corpo excitaacutevel significa

compreendecirc-lo como uma espeacutecie de projetor e lugar de eventos objetivos

mensuraacuteveis e acompanhados pela consciecircncia por um sujeito situado em

uma instacircncia superior Nas Ideen III tentando elucidar esta ruptura

Husserl faz uso da metaacutefora da locomotiva (HUSSERL 1980 p 104-105)37

37 ldquoSe considerarmos o organismo animado e a psique em suas reais relaccedilotildees reciacuteprocas e se nos colocarmos no solo da natureza encaixando as coisas materiais bem como os organismos animados e com eles as psiques na natureza o organismo animado e a psique se mostram em seguida estar conectados Mas a conexatildeo eacute acidental somente por um lado A realidade psiacutequica estaacute fundada na mateacuteria do organismo mas esta natildeo estaacute inversamente fundada na psique De modo mais geral podemos dizer o mundo material eacute no mundo Objetivo que chamamos natureza um mundo fechado em si mesmo natildeo precisando de ajuda de outras realidades Por outro lado a existecircncia de realidades mentais de um mundo real mental estaacute vinculado agrave existecircncia de uma natureza no primeiro sentido ou seja de uma natureza material e isso natildeo por razotildees acidentais mas por razotildees fundamentais Enquanto a res extensa se inquirimos a sua essecircncia natildeo conteacutem nada de um universo mental [mentalness] e nada que exigiria aleacutem de si mesma uma conexatildeo com um universo mental real [real mentalness] encontramos que inversalmente este universo mental real [real mentalness] essencialmente apenas pode ser em conexatildeo com a materialidade como mente real de um organismo animado Em tudo isso o termo lsquoorganismo animadorsquo significa natildeo apenas uma coisa material em geral que ndash de qualquer maneira ndash permanece em um complexo de dependecircncia funcional com uma segunda realidade chamada psique ou mesmo apenas com fenocircmenos de consciecircncia de um fluxo de consciecircncia Imaginemos uma consciecircncia (quer algo psiquicamente real lhe pertenccedila ou natildeo) a minha consciecircncia digamos que se posiciona em relaccedilatildeo a uma locomotiva de modo que se a locomotiva for abastecida com aacutegua essa consciecircncia teria a agradaacutevel sensaccedilatildeo que chamamos de saciedade se a locomotiva for aquecida teria a sensaccedilatildeo de calor etc Obviamente a locomotiva natildeo se tornaria em razatildeo da composiccedilatildeo de tais relaccedilotildees um lsquoorganismo animadorsquo para essa consciecircncia Se ao inveacutes daquilo que no momento eu chamo meu organismo animado a locomotiva estivesse em minha consciecircncia como campo de meu Ego puro entatildeo eu natildeo poderia tambeacutem chamaacute-lo de organismo animado pois simplesmente ele natildeo seria um organismo animado [] O organismo animado eacute digamos muitas vezes o portador de sensaccedilotildees e eacute sempre lsquoestimulaacutevelrsquo de novo Ele carrega sensaccedilotildees muacuteltiplas sensaccedilotildees como sensaccedilotildees de toque sensaccedilotildees cinesteacutesicas temperatura ndash cheiro ndash gosto ndash as sensaccedilotildees estatildeo lsquolocalizadasrsquo sobre ele e nele elas formam um estrato existencial situado sobre ele e nele Todas as outras sensaccedilotildees que natildeo estatildeo localizadas dessa maneira obtecircm apreensotildees de modo mediato e natildeo acidental em virtude de quais apreensotildees elas adquirem uma relaccedilatildeo com o organismo animado e seus vaacuterios lsquooacutergatildeos dos sentidosrsquo que ainda pressupotildeem sensaccedilotildees localizadas e portanto geralmente ldquopertencemrdquo igualmente ao organismo animado de modo essencialmente diferente do que aquelas sensaccedilotildees dependentes do exemplo acima da locomotivardquo Texto em inglecircs ldquoIf we consider animate organism and psyche in their real relationship to one another and if we put ourselves on the ground of nature fitting material things as well as animate organisms and with them the psyches into nature then animate organism and psyche show themselves to be connected But the connection is an accidental one only from one side The psychic reality is founded in organismal matter but this is not conversely founded in the psyche More generally we can say the material world is within the total Objective world that we call nature a closed world of its own needing no help from other realities On the other hand the existence of mental realities of a real mental world is bound to the existence of a nature in the first sense namely that of material nature and

64

O filoacutesofo pedindo para que imaginemos uma consciecircncia que em relaccedilatildeo

com uma locomotiva abastecida de carvatildeo pudesse nos dar uma sensaccedilatildeo

de calor ou estando com o reservatoacuterio cheio pudesse nos dar uma

sensaccedilatildeo de saciedade conclui que nem por isso esta mesma locomotiva

poderia ser o corpo desta consciecircncia dado ser um corpo puramente fiacutesico

sendo pois esta percepccedilatildeo impossiacutevel O sentir se daacute no corpo eacute o corpo

que sente eacute ele o campo de nossas sensaccedilotildees A famosa metaacutefora das matildeos

que se tocam citada por Merleau-Ponty tambeacutem servem de fundamento a

este argumento

Quando toco minha esquerda com minha matildeo direita minha matildeo tocante apreende minha matildeo tocada como uma coisa Mas de

suacutebito dou-me conta de que minha matildeo esquerda comeccedila a sentir As relaccedilotildees se invertem Fazemos a experiecircncia de um recobrimento

entre a contribuiccedilatildeo da matildeo esquerda e a da matildeo direita e de uma inversatildeo de suas respectivas funccedilotildees Essa variaccedilatildeo mostra que se

trata sempre da mesma matildeo Como coisa fiacutesica ela continua sendo sempre o que eacute e no entanto eacute diferente segundo for tocada ou

tocante (MERLEAU-PONTY 2000a p 123 1980 p 117)

Desta experiecircncia Merleau-Ponty conclui a existecircncia no corpo

de uma espeacutecie de reflexatildeo [eine Art von Reflexion] que ateacute entatildeo era

this not for accidental but for fundamental reasons While the res extensa if we inquire of its essence contains nothing of mentalness and nothing that would demand beyond itself a connection with real mentalness we find conversely that real mentalness essentially can be only in connection to materiality as real mind of an animate organism In all this the term ldquoanimate organismrdquo means not merely a material thing in general which ndash in whatever way ndash stands in a complex of functional dependence with a second reality called psyche or even only with phenomena of consciousness of a stream of consciousness Let us imagine a consciousness (whether something psychically real belongs to it or not) my consciousness say which would stand in relation to a locomotive so that if the locomotive were fed water this consciousness would have the pleasant feeling that we call satiety if the locomotive were heated if would have the feeling of warmth etc Obviously the locomotive would not because of the make-up of such relationships become ldquoanimate organismrdquo for this consciousness If instead of the thing that I at the time call my animate organism the locomotive stood in my consciousness as the field of my pure Ego then I could not call it animate organism also for it simply would not be an animate organism [] The animate organism is we say often the carrier of sensations and is always lsquostimulablersquo anew It carries sensations manifold sensations like touch sensations kinaesthetic sensations temperature- smell ndash taste ndash sensations are lsquolocalizedrsquo on it and in it they form an existential stratum lying on it and in it All other sensations that are not localized in this manner obtain apprehensions mediately and not accidentally by virtue of which apprehensions they acquire a relationship to the animate organism and to its various lsquosense organsrsquo which further presuppose localized sensations and therefore all in all likewise lsquobelongrsquo to the animate organism in essentially different manner than do those dependent sensations of the above example of the locomotiverdquo (HUSSERL 1980 p 104-105)

65

reportada apenas ao Cogito Por um lado ao tocar o corpo torna-se sujeito

ele sente a si mesmo por outro ao ser tocado ele se faz objeto leva-nos a

crer no universo das blosse Sachen Haacute pois uma reversibilidade presente

no corpo que natildeo nos permite nos esquecer de que haacute pois nas proacuteprias

coisas uma densidade presente na ldquopreacute-constituiccedilatildeordquo corporal que faz existir

entre o corpo e o mundo uma relaccedilatildeo de co-presenccedila Entre a matildeo que toca

e a matildeo tocada entre o corpo que sente e o corpo que eacute sentido haacute aquilo

que Husserl iraacute chamar de Deckung uma espeacutecie de recobrimento de

relaccedilotildees e na liacutengua de Merleau-Ponty receberaacute o nome de ldquoempiegravetementrdquo

tal como iraacute definir ldquo[a Deckung eacute] uma coincidecircncia sempre ultrapassada

ou sempre futura [que] natildeo eacute por conseguinte coincidecircncia fusatildeo real

como dois termos positivos ou dois elementos de uma mistura mas

recobrimento como de um oco [creux] e de um relevo que permanecem

distintosrdquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 163-4) Quanto a isto quanto a esta

espeacutecie de simetria e ao mesmo tempo de reversibilidade corporal no que

diz respeito agraves relaccedilotildees entre sujeito e objeto a dificuldade torna-se entatildeo

de tentar descobrir o modo como tais perspectivas se reconciliam ou

melhor o modo como o subjetivo e o objetivo o cientiacutefico e o primordial

possam dialogar Qual o caminho de reconciliaccedilatildeo

Lembra-nos Merleau-Ponty e nisto encontramos em Husserl

uma via de superaccedilatildeo ldquoo meu corpo eacute uma coisa-origem uma medida-

padratildeo [eacutetalon] o grau zero de orientaccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p

223) Haacute um modo que lhe eacute particular de se relacionar com as coisas

fazendo dele um modelo o grau zero de todos os outros lugares Mesmo

quando pensamos nas formas ldquootimaisrdquo por exemplo na experiecircncia de ver

um objeto com uma luneta ou com um microscoacutepio eacute a ldquoestranha teleologia

do olhordquo que possibilita esta relaccedilatildeo que define a sua forma que instaura

uma norma que possibilita um ldquofundamento de direitordquo [Rechtgrund] a partir

do qual todo conhecimento seraacute possiacutevel (MERLEAU-PONTY 2000a p 124)

Por conseguinte por meio do corpo funda-se um absoluto que se daacute no

relativo funda-se a possibilidade da ciecircncia Contudo natildeo seria isto uma

absolutizaccedilatildeo do corpo em sua individuaccedilatildeo O funcionamento de meu

corpo isolado eacute suficiente para superar o em-si cartesiano Sou conduzido

66

ao mundo e agraves coisas por meu corpo eacute verdade poreacutem para que eu possa

tomar consciecircncia dele para que possa encontrar um novo modo de

ldquoobjetivaacute-lordquo de compreendecirc-lo eacute preciso que o solipsismo corporal seja

superado eacute preciso que eu me compreenda como um corpo entre todos os

outros corpos humanos eacute preciso que mais do que um olho diria Husserl

eu tambeacutem tenha um espelho uma vez que como salienta Merleau-Ponty

A coisa percebida solipsista soacute pode tornar-se coisa pura se meu corpo entra em relaccedilotildees sistemaacuteticas com outros corpos animados A

experiecircncia que tenho do meu corpo como campo de localizaccedilatildeo de

uma experiecircncia e a que tenho dos outros corpos enquanto se

comportam diante de mim vatildeo ao encontro uma da outra e passam de uma agrave outra A percepccedilatildeo que tenho de meu corpo como

residecircncia de uma ldquovisatildeordquo de um ldquotatordquo e (posto que os sentidos

entranhem em meu corpo ateacute a consciecircncia impalpaacutevel a que

competem) de um Eu penso assim como a percepccedilatildeo que neste mundo tenho de outro corpo ldquoexcitaacutevelrdquo ldquosensiacutevelrdquo e (posto que tudo

isto natildeo possa prescindir de um Eu penso) portador de outro Eu penso estas duas percepccedilotildees digo se iluminam mutuamente e se

consomem juntas Daiacute que natildeo termine eu de ser o monstro incomparaacutevel do solipsismo Eu me vejo Subtraio de minha

experiecircncia aquilo que estaacute ligado a minhas singularidades

corporais Estou diante de uma coisa que verdadeiramente eacute coisa

para todos As blosse Sachen satildeo possiacuteveis como correlato de uma comunidade ideal de sujeitos encarnados de uma Intercorporeidade

(MERLEAU-PONTY 1969 p 90)

Conforme Husserl se as blosse Sachen satildeo possiacuteveis isso se daacute

apenas na condiccedilatildeo de correlato de ldquouma comunidade ideal de sujeitos

encarnadosrdquo38 No entender de Merleau-Ponty esta revisatildeo das ldquocoisas

purasrdquo se torna manifesta no texto sobre o mundo preacute-copernicano Para o

filoacutesofo como jaacute indicamos ali Husserl recomeccedila o trabalho de gecircnese do

Kosmotheacuteoros trabalho que seguia esquemaacutetico nas Ideen II mas rompe

com esta perspectiva ao descrever ldquoabaixo da Natureza cartesiana que a

atividade teoacuterica terminaraacute por construirrdquo a emergecircncia de ldquouma camada

anterior que nunca eacute suprimida e que exigiraacute justificaccedilatildeo quando o

desenvolvimento do saber revelar as lacunas da ciecircncia cartesianardquo

38 Encontramos aqui a experiecircncia da Einfuumlhlung poreacutem com a textura do que traz consigo a experiecircncia de um sujeito encarnado

67

(MERLEAU-PONTY 1969 p 90-1) No retorno husserliano ao mundo preacute-

copernicano encontramos a nosso ver o sentido de sua arqueologia o

sentido do que a Krisis nomeia de Ruumlckfrage o movimento de uma pensar

retroativo de uma ldquoquestatildeo em retornordquo que nos conduz a um mundo

originaacuterio O que significa esta incursatildeo husserliana Em contraposiccedilatildeo agrave

ideia de ldquopura coisardquo especialmente nas Ideen II e nas Ideen III a

arqueologia husserliana nos levaria de encontro especialmente a um ldquosujeito

encarnadordquo [Subjektleib] aliaacutes a uma comunidade de ldquosujeitos encarnadosrdquo

Contudo no texto em que nos remete a um mundo preacute-copernicano

pressupondo uma Umwelt preacutevia apoacutes tratar do corpo proacuteprio e da

intercorporeidade da Einfuumlhlung Husserl nos potildee em presenccedila natildeo soacute de

um sujeito-objeto mas tambeacutem de ldquoquase-objetosrdquo ele nos revela um

mundo originaacuterio primordial e inclusive fundador das blosse Sachen

Sendo um ldquoquase-objetordquo constituindo-se a raiz de nossa histoacuteria e uma

nova camada do ser este movimento de retorno a Ruumlckdeutung a retro-

referecircncia husserliana rompe radicalmente com o psicologismo pois o que se

visa satildeo ldquotermos noemaacuteticosrdquo eacute uma ldquocamada mais profunda que as blosse

Sachenrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 229) Dizer que a Terra eacute um ldquoquase-

objetordquo implica dizer que ldquoela possui um modo de ser anterior agrave idealizaccedilatildeo

ela eacute o solo o niacutevel primeiro que em seguida converteu-se em objetordquo

(MERLEAU-PONTY 2000b p 230) Em outros termos a anaacutelise se

concentra agora na explicitaccedilatildeo da correlaccedilatildeo existente entre ldquosujeitos-

objetosrdquo e ldquoquase-objetosrdquo aqueles que natildeo seriam inteiramente coisas eacute a

esta correlaccedilatildeo que agora a arqueologia husserliana nos conduz O que

Husserl nos diz neste texto O que seria este mundo preacute-copernicano Qual

a sua relaccedilatildeo com o mundo da ciecircncia

Neste texto o objetivo husserliano apesar do sentimento de que

possivelmente alguns complementos sejam necessaacuterios seraacute o de esboccedilar

uma ldquodoutrina fenomenoloacutegica da origem da espacialidade da corporeidade

da natureza no sentido das ciecircncias da natureza e por conseguinte para

uma teoria transcendental do conhecimento das ciecircncias da naturezardquo

(HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em anexo) O que se busca eacute uma

compreensatildeo de como a Terra nos eacute constituiacuteda de como se daacute a gecircnese de

68

sua representaccedilatildeo a fim de contrapor o modo como a fenomenologia iraacute

compreendecirc-la Mais uma vez como jaacute indicamos trata-se da denuacutencia de

que o mundo cientiacutefico natildeo eacute uacutenico mas haacute um outro que lhe eacute originaacuterio

No que diz respeito agrave Terra onde se encontra o problema Em considerar a

concepccedilatildeo copernicana como uma verdade absoluta Diraacute Husserl ldquonoacutes

copernicanos noacutes homens dos tempos modernos noacutes dizemos A Terra natildeo

eacute a lsquonatureza inteirarsquo ela eacute uma das estrelas do espaccedilo infinito do mundordquo

(HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em anexo) Para Merleau-Ponty esta

seraacute tambeacutem a definiccedilatildeo cartesiana A Terra eacute vista apenas como objeto de

uma pesquisa cientiacutefica como um corpo [Koumlrper] dentre outros logo regido

por leis preso a uma cadeia de causalidade Deste modo Contudo assinala

Husserl se procuramos compreendecirc-la no campo de nossa percepccedilatildeo

sabemos que natildeo podemos vecirc-la de uma soacute vez a experiecircncia que fazemos

dela nasce de uma ldquosiacutentese primordialrdquo de uma unidade de ldquoexperiecircncias

individuais unidas umas agraves outrasrdquo (HUSSERL 1989 1940 ndash Traduccedilatildeo em

anexo) O que significa esta incursatildeo husserliana Como Merleau-Ponty iraacute

encaraacute-la Vejamos

Como nos adverte Merleau-Ponty Husserl nos direciona a uma

experiecircncia preacute-cientiacutefica do mundo a um mundo preacute-copernicano O que

isto significa Ele nos conduz a uma vivecircncia da Terra natildeo mais

compreendida como Koumlrper como um corpo material dentre outros um

planeta a mais entre outros planetas mas uma terra como nosso horizonte

de experiecircncia nosso Boden nosso solo Em uma experiecircncia originaacuteria a

Terra natildeo se encontra nem em movimento nem em repouso natildeo eacute regida

por princiacutepios matemaacuteticos e fiacutesicos natildeo eacute o objeto de estudo da astronomia

dentre tantas outras ciecircncias mas encontra-se ldquoaqueacutemrdquo ldquoeacute algo inicial uma

possibilidade de realidade [Moumlglichkeit an Wirklichkeit] a terra como fato

puro o berccedilo a base e o solo de toda experiecircnciardquo (MERLEAU-PONTY

2000b p 227) Em substituiccedilatildeo agrave Terra como nosso horizonte de

experiecircncia a ciecircncia nos ofereceu uma realidade infinita transformando-a

em um ldquomundo objetivo e homogecircneordquo Esta criacutetica e o eco deste ineacutedito de

Husserl jaacute encontraacutevamos tambeacutem na Pheacutenomeacutenologie de la perception

quando apoacutes tratar da temporalidade Merleau-Ponty fazia uma espeacutecie de

69

revisatildeo e retomada do caminho que havia trilhado ateacute ali vinculando nesse

momento o projeto deste livro com aqueles jaacute desenvolvidos em La Structure

du comportement A questatildeo era compreender como se datildeo as relaccedilotildees entre

consciecircncia e Natureza entre o interior e o exterior entre as visadas do

idealismo e os resultados do realismo entre o sens e o non-sens entre as

diferentes visadas presentes na compreensatildeo do homem O que possibilita

no mundo a criaccedilatildeo de sentido Enquanto o realismo procurava inserir as

consciecircncias em um uacutenico ldquotecido do mundo objetivordquo ldquoo proacuteprio do

idealismo eacute admitir que toda significaccedilatildeo eacute centriacutefuga eacute um ato de

significaccedilatildeo ou de Sinn-gebung [expressatildeo ainda presente nas Ideen I] e que

natildeo existe signo naturalrdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 574) A percepccedilatildeo

compreendida a partir da fenomenologia havia justamente mostrado que a

coisa mais do que sua ldquosignificaccedilatildeordquo era a presenccedila em noacutes do proacuteprio

mundo Diante de uma compreensatildeo ek-staacutetica do sujeito mais do que uma

ldquointencionalidade de atordquo do que um ato de significaccedilatildeo o que se

manifestava era um ldquoLoacutegos do mundo esteacuteticordquo uma ldquoarte escondida nas

profundezas da alma humanardquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 575) Se haacute

pois uma diferenccedila entre estrutura e significaccedilatildeo eacute que ldquoa segunda eacute

reconhecida por um entendimento que a engendrardquo ao passo que a primeira

ldquopor um sujeito familiar ao seu mundo e capaz de compreendecirc-la como uma

modulaccedilatildeo deste mundo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 575) Se algo tem

sentido para mim eacute porque sou capaz de olhaacute-lo de experienciaacute-lo e isto a

partir de um determinado ponto de vista Por conseguinte

No mundo em si todas as direccedilotildees assim como todos os movimentos satildeo relativos o que significa dizer que ali eles natildeo existem Natildeo haveria movimento efetivo e eu natildeo teria a noccedilatildeo do movimento se na percepccedilatildeo eu natildeo deixasse a terra enquanto ldquosolordquo de todos os repousos e de todos os movimentos aqueacutem do movimento e do repouso porque eu a habito e da mesma maneira natildeo haveria direccedilatildeo sem um ser que habite o mundo e que por seu olhar trace ali a primeira direccedilatildeo-referecircncia [] Com o mundo enquanto berccedilo das significaccedilotildees e solo de todos os pensamentos noacutes descobriacuteamos o meio de ultrapassar a alternativa entre realismo e idealismo acaso e razatildeo absoluta non-sens e sens O mundo tal como tentamos mostraacute-lo enquanto unidade primordial de todas as nossas experiecircncias no horizonte de nossa vida e termo uacutenico de todos os nossos projetos natildeo eacute mais o desenvolvimento visiacutevel de um Pensamento constituinte nem uma reuniatildeo fortuita de partes nem bem entendido a operaccedilatildeo de um pensamento diretriz sobre uma

70

mateacuteria indiferente mas a paacutetria de toda racionalidade (MERLEAU-PONTY 1999 p 575-576)

Ora eacute interessante como de certo modo este trecho nos lembra

a ceacutelebre abertura de LrsquoOEil et lrsquoEsprit ldquoa ciecircncia manipula as coisas e

renuncia a habitaacute-las Fabrica para si modelos internos delas e operando

sobre esses iacutendices ou variaacuteveis as transformaccedilotildees por sua definiccedilatildeo soacute de

longe em longe (se) defronta com o mundo atualrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b

p 85 o grifo eacute nosso) Para Merleau-Ponty o que a fenomenologia nos

ensina sobretudo eacute o retorno a uma experiecircncia originaacuteria do mundo a ldquo[]

este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala e

em relaccedilatildeo ao qual toda determinaccedilatildeo cientiacutefica eacute abstrata significativa e

dependente []rdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 4) agrave Terra como ldquopaacutetria de

toda racionalidaderdquo ou como diraacute Husserl o retorno a um solo e a uma

camada originaacuteria ao berccedilo de toda significaccedilatildeo Trata-se por conseguinte

de uma criacutetica a uma ciecircncia que recusando-se a ldquohabitarrdquo o mundo

esqueceu-se de seu nascimento fazendo para si um mundo artificial e

crendo ser ele o mundo verdadeiro pois ldquoo mundo eacute natildeo aquilo que eu

penso mas aquilo que eu vivo eu estou aberto ao mundo comunico-me

indubitavelmente com ele mas natildeo o possuo ele eacute inesgotaacutevelrdquo (MERLEAU-

PONTY 1999 p 14) Por conseguinte com a compreensatildeo da Terra como

ldquoarqui-originaacuteriardquo ao contraacuterio de um universo de ldquopuras coisasrdquo Husserl

introduz um sistema de experiecircncia fundado na vivecircncia dos ldquoquase-

objetosrdquo Ao falar em uma Terra como morada de uma ldquoespacialidaderdquo e

ldquotemporalidaderdquo preacute-objetivas preacute-teoreacuteticas Husserl a tornou o solo e a

historicidade de um sujeito encarnado transtornando inclusive a nossa

concepccedilatildeo da verdade uma vez que ldquo[] antes de ser lsquoobjetivarsquo ela habita a

ordem secreta dos sujeitos encarnadosrdquo (MERLEAU-PONTY 1969 p 91) Se

a Natureza cartesiana nos insere em universo de ldquopuras coisasrdquo a arqui-

originaacuteria Terra nos mergulha em um campo de presenccedila no domiacutenio de

uma Urpraumlsenz de uma presenccedila originaacuteria A relaccedilatildeo existente entre o

sujeito e a ldquocoisa material objetivardquo natildeo eacute mais dada pelas normas do meacutetodo

e da representaccedilatildeo mas se torna uma espeacutecie de nervura dado que ldquoentre

71

os movimentos do meu corpo e as lsquopropriedadesrsquo da coisa revelada por eles

emerge uma relaccedilatildeo do lsquoeu possorsquo com as maravilhas que tem o poder de

suscitarrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 247)

Por fim procuramos mostrar o modo como Husserl esboccedila uma

ldquocrise da Razatildeordquo e como a relaciona a um projeto claacutessico de matematizaccedilatildeo

da Natureza Como personagem principal encontramos Galileu Contudo de

que modo Merleau-Ponty assumiria estas reflexotildees A este respeito parece-

nos que a presenccedila de Descartes torna-se fundamental pois seraacute nele que o

filoacutesofo iraacute encontrar as trilhas que o conduziratildeo a uma compreensatildeo

etioloacutegica das peripeacutecias do cientificismo ou antes do naturalismo das

ciecircncias e portanto de uma situaccedilatildeo de ldquocriserdquo Eacute pensando nisso que no

proacuteximo capiacutetulo tentaremos apresentar primeiro o que Merleau-Ponty

entende por ldquomundo claacutessicordquo elucidando os embaraccedilos da concepccedilatildeo

cartesiana de ldquorepresentaccedilatildeordquo Por uacuteltimo apoacutes estes delineamentos iremos

nos centrar no modo como isso se articula segundo o filoacutesofo em uma ldquocrise

nas nossas relaccedilotildees com a Naturezardquo

72

CAPIacuteTULO II OS LIMITES DO MUNDO CLAacuteSSICO E O TEATRO CARTESIANO

O PROBLEMA DA REPRESENTACcedilAtildeO

21 Um ponto de partida o mundo claacutessico e o mundo moderno

Para Merleau-Ponty se fosse o caso de datar o pensamento

moderno ele se manifesta no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX eacute

assim que em suas Causeries de 1948 diz entender por arte e pensamento

modernos os que se apresentavam no cenaacuterio filosoacutefico de seu tempo haacute uns

50 ou 70 anos (MERLEAU-PONTY 2002d p 21) Anterior a isto o que

encontramos tendo sua gecircnese no seacuteculo XVII eacute o pensamento claacutessico o

mesmo que iria fincar raiacutezes e servir de modelo apesar de algumas

transformaccedilotildees para o ideaacuterio cientificista do iniacutecio do seacuteculo XIX Contudo

como podemos entender o pensamento moderno ou como diraacute o filoacutesofo o

ldquomundo modernordquo Tendo em vista o modo como fora recebido certamente

natildeo passaria de um ldquopensamento bizantinordquo aquele mesmo que ldquonatildeo tendo

nada para dizerrdquo acabava substituindo a ldquoarte pela sutilezardquo (MERLEAU-

PONTY 2002d p 27) Para o filoacutesofo contudo tal juiacutezo se dava pela

dificuldade em compreender que na verdade o que norteava tal pensamento

era sobretudo um retorno agrave experiecircncia pois se encontramos dificuldades

nele se o consideramos radicalmente oposto ao senso comum eacute justamente

ldquo() porque tem a preocupaccedilatildeo da verdade e porque a experiecircncia jaacute natildeo lhe

permite honestamente ater-se a ideias claras ou simples agraves quais o senso

comum estaacute ligado porque lhe datildeo a tranquilidaderdquo (MERLEAU-PONTY

2002d p 27) Natildeo tendo mais a ilusatildeo de esgotar a verdade do mundo resta

aos modernos tatildeo-somente se enveredar pelos misteacuterios que este mesmo

mundo lhes revela Neste sentido o que gera a impressatildeo de decliacutenio ou de

decadecircncia na verdade eacute o que lhe impulsiona eacute o reconhecimento de um

pensamento marcado ao mesmo tempo pelo inacabamento e pela

ambiguidade Se outrora Descartes julgava ldquo() poder deduzir de uma vez

por todas dos atributos de Deus as leis da queda dos corposrdquo (MERLEAU-

73

PONTY 2002d p 64) a ciecircncia moderna natildeo cultiva a mesma pretensatildeo

suas constataccedilotildees se apresentam sempre ora como ldquoprovisoacuteriasrdquo ora como

ldquoaproximadasrdquo ocorrendo o mesmo na arte que ao contraacuterio de obras

completas parece nos oferecer antes simples ldquoesboccedilosrdquo Daiacute a conclusatildeo de

Merleau-Ponty

O coraccedilatildeo dos modernos eacute pois um coraccedilatildeo intermitente e que natildeo chega a conhecer-se Nos modernos natildeo soacute as obras satildeo inacabadas mas o proacuteprio mundo tal como elas o expressam eacute como que uma obra sem conclusatildeo e acerca da qual natildeo se sabe se alguma vez teraacute uma Desde que natildeo se trate unicamente da natureza mas do homem o inacabamento redobra-se com um inacabamento de princiacutepio [] (MERLEAU-PONTY 2002d p 65)

O ldquocoraccedilatildeo intermitente dos modernosrdquo como diraacute o filoacutesofo

esboccedila pois a proacutepria ambiguidade do pensamento ambiguidade que os

claacutessicos especialmente no Pequeno Racionalismo munidos pela eficaacutecia do

meacutetodo pensavam ter expurgado de vez do universo da filosofia e das

ciecircncias Ora o que seria este Pequeno Racionalismo Para acompanhar a

percepccedilatildeo de Merleau-Ponty sobre a histoacuteria do pensamento ao inveacutes de um

conceito uniacutevoco precisamos compreender o mundo claacutessico desdobrado em

dois racionalismos o Grande Racionalismo do seacuteculo XVII e o Pequeno

Racionalismo ldquo[] aquele professado ou discursado por volta de 1900 e que

consistia na explicaccedilatildeo do Ser pela ciecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1960 p

179) O que ocorre na passagem de um para outro No Pequeno

Racionalismo perde-se a ldquoambiguidaderdquo que movia o seacuteculo XVII perde-se o

sentimento presente na ciecircncia daquele tempo de uma ldquoopacidade do

mundordquo Seria pois o caso de se buscar o ldquocomeccedilo perdidordquo O que

percebemos ocorrer no mundo claacutessico Para Merleau-Ponty neste

momento deparamo-nos com o que viria a ser um dos limites do Pequeno

Racionalismo a saber o engendramento das bifurcaccedilotildees conceituais que satildeo

por ele engendradas e cristalizadas por um lado e por outro a valorizaccedilatildeo

de uma espeacutecie de lekton [leacutekton]39 de uma entidade incorpoacuterea de cunho

39 A critica a um universo em si do leacutekton surge especialmente nas Notas de Trabalho ldquoReacuteflexion = ideacutee drsquoune coiumlncidence avec constituant drsquoun retour ideacutee drsquoun Sinnesquelle Le faitest que nous avons cette ideacutee ndash Mais solidaire de lrsquoideacutee de Wesen ou Wesheit cad de

74

loacutegico-racional que serviria de orientaccedilatildeo para todo o arcabouccedilo teoacuterico que

institui O que isto quer dizer

Se haacute algo que nos ensina o mundo moderno para Merleau-

Ponty eacute que filosofar natildeo significa comeccedilar seja pela Natureza seja por

Deus seja pelo homem nem muito menos substituir a experiecircncia vivida do

mundo por um arcabouccedilo de significados pela ordem loacutegica das

significaccedilotildees40 Ao privilegiar um determinado ente as ciecircncias a filosofia e

a arte claacutessicas acabaram por se situar no interior de um labirinto uma vez

que cada objeto tornado uma espeacutecie de modelo arquetiacutepico no mesmo

instante em que de uma tendecircncia filosoacutefica (assim como o Naturalismo o

Teiacutesmo o Humanismo) tornaram-se originantes tambeacutem

consequentemente de seacuterios estrabismos ou jogos epistemoloacutegicos nos

quais por exemplo um humanismo naturalista pode ao mesmo tempo

compartilhar de um naturalismo humanista e assim por diante41 Em outros

termos para Merleau-Ponty a definiccedilatildeo de um pensamento em relaccedilatildeo a

lrsquounivers du lekton ndash la reacuteflexion derniegravere ne peut ecirctre celle-lagrave il faut que ce soit preacuteciseacutement non la Wortbedeutung mais sa confrontation avec expeacuterience muette ie ne preacutesupposant pas la Wesheit fondant le langagerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VII [125]) Para Merleau-Ponty trata-se sobretudo de uma criacutetica a um absolutismo do ldquouniverso da significaccedilatildeordquo A seu ver para que haja uma ldquoontologia radicalrdquo eacute preciso saber apreciar o valor de noccedilotildees tais como ldquoessecircncia existecircncia sujeito objeto espiacuterito mateacuteria possiacutevel atualrdquo como ldquomaneiras de serrdquo ao inveacutes de tomar uma dessas noccedilotildees como fundamento de todas as outras Eacute preciso compreender de que modo ldquotodas essas maneiras de ser tecircm em comum sua pertenccedila a um mesmo mundordquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VII [147]) Neste sentido o problema da loacutegica estaria em entender o mundo como ldquoum caso particular de algo em geralrdquo fazendo deste ldquoalgo em geralrdquo objeto de seu estudo Logo a loacutegica torna-se um estudo de um modo de ser apenas ou seja o leacutekton natildeo podendo a ontologia lhe ser submissa Pelo contraacuterio a questatildeo natildeo estaacute em pensar em ldquosubmissatildeordquo mas em ldquointeraccedilatildeordquo quer dizer em compreender ldquocomo se articulam as maneiras de ser no interior do serrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VII [147]) Para o filoacutesofo a existecircncia de um universo em si do leacutekton o positivismo da Wortbedeutung significa a negaccedilatildeo do ldquomundo brutordquo Em 212 retomaremos estas questotildees 40 ldquoMon plan 1 le visible 2la Nature 3le logos doit ecirctre preacutesenteacute sans aucun compromis avec lrsquohumanisme ni drsquoailleurs avec le naturalisme ni enfin avec la theacuteologie ndash Il srsquoagit preacuteciseacutement de montrer que la philosophie ne peut plus penser suivant ce clivage Dieu lrsquohomme les creacuteatures - qui eacutetait le clivage de Spinozardquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 322) 41 Referimo-nos aqui especialmente agrave leitura merleau-pontiana de Marx para o qual ldquolrsquohumanisme est antihumanisme degraves lors que le neacutegatif est dans lrsquoecirctre mecircmerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VI [2]) ldquoLrsquohumanisme Un humanisme [anthropologiste] est deacutenonceacute avec raison comme une forme de naturalisme Mais alors qursquoest-ce que le vrai humanisme Le vrai humanisme renferme un anti-humanisme ndash Heidegger Sartre Deacutebut du question avec Marx le vrai naturalisme est humanisme et le vrai humanisme est naturalisme rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF vol VI [7] B)

75

certos seres seraacute uma das razotildees das ruiacutenas ou confusatildeo que viriam a ser

desdobradas pelo mundo claacutessico pois ldquoacreditava-se que a filosofia

consistia em investigar se estes seres satildeo ou natildeo e se um pode lsquoexplicarrsquo e

lsquofundarrsquo o resto a partir de sirdquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2)) No

entanto pensando na tarefa da filosofia em uma de suas notas a postura

de Merleau-Ponty eacute contundente ldquoPartir de um ser definir a filosofia como

partindo de eacute jaacute abandonar a filosofiardquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4]

(2)) Nisto se explicam as anotaccedilotildees feitas nas margens desta mesma nota

Pois a filosofia busca o que faz com que um ser seja e esteja em conexatildeo com os outros Seu ponto de partida eacute provisoacuterio ele seraacute transformado pela sequecircncia Ele eacute a notaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo de partida que ela mesma deve ser [recolocada] em uma [unidade] totalidade Desenvolvimento circular ndash Eacute a diferenccedila com os pontos de vista ou as sagesses ndash Ela natildeo pode se contentar com o ponto de vista do homem ou de Deus ou da Natureza nem ver todas as coisas do ponto de vista de um dos seres (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))

Contra um pensamento articulado por categorias42 o filoacutesofo

nota antes especialmente partindo do mundo moderno a existecircncia de uma

ldquomisturardquo entre elas entre estas instacircncias uma ldquomisturardquo entre o ldquoser

naturalrdquo e o ldquoser humanordquo a existecircncia de uma ldquocoesatildeo do ser que faz com

que natildeo seja possiacutevel verdadeiramente lsquocomeccedilarrsquo pelas criaturasrdquo

(MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2)) O mesmo se daria com a afirmaccedilatildeo de

um Deus todo ldquopositivordquo do qual o homem seria consequecircncia e que

acabaria por se tornar todo ldquonegativordquo no instante em que a reflexatildeo se vecirc

obrigada a postular um irrefletido posto que o homem que eacute consequecircncia

de Deus eacute precisamente o mesmo que assumiria a tarefa de pensaacute-lo logo

ldquopartir de Deus natildeo eacute partir de Deus (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))

Da mesma forma o comeccedilo pelo homem conduzira a embaraccedilos como o

problema da autoposiccedilatildeo da consciecircncia frente a uma Natureza ndash que

perdera todo o seu sentido ao ser entendida unicamente como a negaccedilatildeo do

espiacuterito ndash e frente ao outro ndash que perdera a sua autonomia em meio agraves

42 Pensamos aqui por exemplo nas relaccedilotildees essecircncia existecircncia possiacutevel atual causalidadefinalidade mateacuteria forma

76

visadas de uma subjetividade absoluta O que este quadro nos revela Diraacute o

filoacutesofo ldquo[] o acabamento da Filosofia concebida como Erklaumlrung ou

Begruumlndung instalaccedilatildeo em um ser e construccedilatildeo de todo o resto a partir

deste ser []rdquo(MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2)) Para Merleau-Ponty

nesta aparente decadecircncia e decliacutenio encontramos justamente a

necessidade de um ldquorecomeccedilordquo O que podemos aprender disto

Eacute preciso que seja entendido que o comeccedilo eacute apenas comeccedilo de fato que natildeo determina a sequecircncia de maneira linear onde encontrariacuteamos um comeccedilo que conteacutem tudo (mesmo se fosse Deus ndash eu ao menos como distinto dele ele natildeo me conteacutem) Eacute preciso que seja entendido que a filosofia eacute circularidade Natildeo a falsa circularidade hegeliana ciacuterculo no qual eu natildeo sou tomado [] (contra a filosofia da certeza ou criacutetica e Filosofia da [razatildeo] que parte da [circularidade] de um pensamento que lhe atinge e que todavia natildeo dispotildee de nenhuma verdade concreta [separada] de minha certeza de pensar em geral) Isto quer dizer tambeacutem eacute preciso que seja [entendido] que noacutes natildeo sabemos o que eacute a Natureza o cogito ou o pensamento nem Deus e que temos inteiramente que redefinir estes seres a partir de um problema do ser que ignora essas bifurcaccedilotildees essecircnciaexistecircncia fimcausa espiacuteritocorpo sujeitoobjeto finitoinfinito e que natildeo compartilha mais dos [pressupostos] das ciecircncias os quais satildeo da Filosofia Quando se retorna mais aqueacutem procura-se o sentido do Ser que natildeo seja ser da Natureza ser do homem ser de Deus mas que seja o estofo no qual tudo isto estaacute talhado no qual tudo isso foi talhado o visiacutevel o invisiacutevel e o invisiacutevel em segundo potecircncia isto eacute Deus (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))43

Como podemos notar se para Merleau-Ponty haacute uma

circularidade ou seja a ideia de que ldquohaacute um mundo antes de mim (natildeo

43 ldquoLeccedilon agrave tirer de tout cela il faut qursquoil soit entendu que le commencement nrsquoest que commencement de fait qursquoil ne deacutetermine pas la suite de maniegravere lineacuteaire ougrave trouverait-on un commencement qui contienne tout (mecircme si crsquoest Dieu ndash moi du moins comme distinct de lui il ne me contient pas) Il faut qursquoil soit entendu que la PH est circulariteacute Non pas la fausse circulariteacute heacutegeacutelienne cercle ougrave je ne suis pas pris ndash Mais la circulariteacute qui tient agrave ce que je suis deacutejagrave apporteacute quand je pense et je ne mrsquoapporte pas moi-mecircme] (contre PH de la certitude ou critique et PH de la[raison] qui part de la [circulariteacute] drsquoune penseacutee qui y atteint et qui cependant ne dispose drsquoaucune veacuteriteacute concregravete [seacutepareacutee] de ma certitude de penser en geacuteneacuteral) Ceci veut dire aussi il faut qursquoil soit [entendu] que nous ne savons pas ce que crsquoest que la Nature le cogito ou la penseacutee ni Dieu et que nous avons entiegraverement agrave redeacutefinir ces ecirctres agrave partir drsquoune probleacutematique de lrsquoEtre qui ignore toutes les bifurcations essence existence fin cause esprit corps sujet objet fini infini et qui ne partage pas non plus les [preacutesupposeacutes] de la science lesquels sont de la PH Quand on revient en deccedilagrave on cherche sens de lrsquoEtre qui ne soit pas ecirctre de la Nature ecirctre de lrsquohomme ecirctre de Dieu mais qui soit lrsquoeacutetoffe dans laquelle tout cela a eacuteteacute tailleacute le visible lrsquoinvisible et lrsquoinvisible agrave la seconde puissance ie Dieurdquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))

77

somente fiacutesico mas de cultura histoacuteria) a linguagem e a cultura estatildeo

[nele]rdquo44 natildeo haacute sentido em falar apenas de ldquocomeccedilordquo que seja tido por sua

vez como absoluto tal como encontramos no mundo claacutessico o mesmo

ensejo que encontrariacuteamos dentre as ruiacutenas de um pensamento estraacutebico

aquele fruto de uma diplopia instaurada conforme veremos adiante pelo

pensamento cartesiano Eacute assim que o Pequeno Racionalismo perdendo o

horizonte que movia o seacuteculo XVII fez de seus anseios um projeto

cristalizado preso aos equiacutevocos que sua ausecircncia mesma de movimento

que suas idealizaccedilotildees ou esquecimento da ldquopluralidade de relaccedilotildeesrdquo vieram

instituir Eacute assim que a ambiguidade e o inacabamento do mundo moderno

mesmo tendo-se em vista ser fruto de uma ldquoilusatildeo retrospectivardquo que se

tornara instituiccedilatildeo ndash aquela que levara o Pequeno Racionalismo a cristalizar

as tensotildees filosoacuteficas do Grande Racionalismo ndash em contrapartida agraves

acusaccedilotildees de natildeo passar de um pensamento difiacutecil ou bizantino cumpre a

tarefa de nos mostrar os equiacutevocos do mundo claacutessico Nisto encontramos

talvez as razotildees pelas quais Merleau-Ponty vislumbrara entre a ciecircncia

claacutessica e a ciecircncia moderna uma diferenccedila de natureza as razotildees pelas

quais tomando a identificaccedilatildeo dos prejulgamentos do mundo claacutessico como

tarefa ele desejara romper com uma visatildeo que ainda se fazia presente natildeo

soacute na filosofia mas tambeacutem na arte na literatura na psicologia na ciecircncia e

na cultura Por conseguinte para o filoacutesofo

natildeo eacute uma decadecircncia que nos separa do seacuteculo XVII mas um progresso de consciecircncia e de experiecircncia Os seacuteculos seguintes aprenderam que o acordo de nossos pensamentos evidentes com o mundo existente natildeo eacute tatildeo imediato que nunca estaacute sem apelo que nossas evidecircncias nunca podem vangloriar-se de regular na sequecircncia todo o desenvolvimento do saber que as consequecircncias refluem sobre os ldquoprinciacutepiosrdquo que precisamos nos preparar ateacute para refundir as noccedilotildees que acreditaacutevamos ldquoprimeirasrdquo que a verdade natildeo eacute obtida por composiccedilatildeo indo do simples ao complexo e da essecircncia agraves propriedades que natildeo podemos nem podemos instalar-nos no centro dos seres fiacutesicos e mesmo matemaacuteticos que eacute preciso inspecionaacute-los tateando de fora abordaacute-los com procedimentos

44 Na margem ldquocirculariteacute qui veut dire il y a un monde avant moi (non seulement physique mais de culture histoire) le langage et lrsquohistoire [en] [y] sontrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF VI [4] (2))

78

obliacutequos interrogaacute-los como pessoas (MERLEAU-PONTY 1975b p 229-230)45

Contudo para Merleau-Ponty algo mais ocorre na passagem do

Grande para o Pequeno Racionalismo fazendo com que ocorra nas relaccedilotildees

entre filosofia e ciecircncia uma mudanccedila radical Quais as razotildees De acordo

com o filoacutesofo a noccedilatildeo de ldquoinfinito positivordquo ou ldquoinfinitamente Positivordquo46 que

servia de fundamento comum agraves filosofias do seacuteculo XVII conforme veremos

mais adiante fazia desta eacutepoca um ldquomomento privilegiadordquo capaz de

estabelecer uma certa harmonia entre ldquoo conhecimento da naturezardquo e a

ldquometafiacutesicardquo uma espeacutecie de acordo entre o ldquointeriorrdquo e o ldquoexteriorrdquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 227) Filosofia e ciecircncia participariam de um

mesmo interior que natildeo seria de modo algum asfixiado por uma pura

exterioridade Sendo assim eacute que podemos notar de que modo o mundo

claacutessico pocircde reconhecer uma espeacutecie de ser que apesar de encontrar-se em

uma cadeia de relaccedilotildees causais natildeo romperia com ela47 Este ser reenviava

justamente agrave ideia que possibilitou de modo paradoxal segundo Merleau-

Ponty o sucesso do Grande Racionalismo e que se manteria soacute enquanto ela

permanecesse48 Todavia tendo perdido esta unidade filosofia e ciecircncia

passariam a se encontrar em lados opostos Mesmo havendo jaacute no Grande

45 Assim como continua o filoacutesofo ldquoEra preciso entatildeo voltar aos princiacutepios recolocaacute-los no plano das lsquoidealizaccedilotildeesrsquo justificadas enquanto anima a investigaccedilatildeo desqualificadas quando a paralisam aprender a medir nosso pensamento com a existecircncia que como iria dizer Kant natildeo eacute um predicado regressar agrave origens do cartesianismo para ultrapassaacute-lo reencontrar a liccedilatildeo desse ato criador que instituiacutera um longo periacuteodo de pensamento fecundo mas cuja virtude se esgotara no pseudocartesianismo dos epiacutegonos e exigia doravante ser recomeccedilado Foi preciso aprender a historicidade do saber estranho movimento onde o pensamento abandona e salva suas foacutermulas antigas integrando-as como casos particulares e privilegiados em um pensamento mais compreensivo e geral que natildeo pode decretar-se exaustivo Esse ar de improviso e provisoacuterio esse jeito meio desvairado das investigaccedilotildees modernas tanto em ciecircncia como em filosofia na literatura ou nas artes eacute o preccedilo que se paga para adquirir uma consciecircncia mais madura de nossas relaccedilotildees com o serrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 229-230) 46 A este respeito provavelmente seguindo nisto a tese de Koyreacute (KOYREacute 1988) 47 Especialmente pensadores como Descartes Espinosa Leibniz e Malebranche 48 Haacute nisso inclusive um elogio de Merleau-Ponty ao ldquoGrande Racionalismordquo fazendo com que veja ali de certa forma algo comum com o seu projeto filosoacutefico Eacute assim que confessaraacute ao se referir a este periacuteodo que ldquocomo ele procuramos natildeo restringir ou desacreditar as iniciativas da ciecircncia mas situaacute-la como sistema intencional no campo total de nossas relaccedilotildees com o Ser e se a passagem ao infinitamente infinito natildeo nos parece ser a soluccedilatildeo eacute somente porque retomamos mais radicalmente a tarefa que aquele seacuteculo intreacutepido acreditara ter cumprido para semprerdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 231)

79

Racionalismo uma cisatildeo entre racionalismo e empirismo faltava poreacutem

uma radicalidade o que jaacute natildeo iria ocorrer no Pequeno Racionalismo

principalmente quando essa cisatildeo passara a apresentar novas antinomias ndash

tais como vemos nas disputas entre ldquomecanicismordquo e ldquovitalismordquo ndash cujos

antagonismos diferentemente do seacuteculo XVII natildeo iriam mais se tratar de

uma simples ldquoopccedilatildeo filosoacuteficardquo49 o que nos leva a verificar portanto uma

ruptura no interior disto que o proacuteprio Merleau-Ponty apelidara unicamente

de ldquomundo claacutessicordquo Por que entatildeo dada a diferenccedila entre estes dois

racionalismos natildeo buscar uma outra denominaccedilatildeo Eacute que para o filoacutesofo

em meio a essa ruptura o Pequeno Racionalismo natildeo deixara de ser na

verdade uma espeacutecie de ldquofoacutessilrdquo do Grande Racionalismo um ldquofoacutessilrdquo que

por conseguinte iraacute se desdobrar em uma ldquometafiacutesica cientificistardquo cuja

pretensatildeo paradoxalmente era romper o seu parentesco com a filosofia e

suas abstraccedilotildees Encontramo-nos pois em um cenaacuterio no qual ldquo() em

toda parte onde um condicionamento era revelado pensava-se ter silenciado

toda questatildeo resolvido o problema da essecircncia com o da origem

restabelecido o fato sob a obediecircncia de sua causardquo (MERLEAU-PONTY

1975b p 227) Logo

a questatildeo entre ciecircncia e metafiacutesica reduzia-se somente a saber se o mundo era um soacute e grande processo submetido ao mesmo ldquoaxioma geradorrdquo cuja foacutermula miacutestica seria a uacutenica coisa que restaria para ser repetida no fim dos tempos ou se havia por exemplo no ponto em que a vida surge lacunas descontinuidades onde se pudesse alojar a potecircncia antagocircnica do espiacuterito Cada conquista do determinismo era uma derrota do sentido metafiacutesico cuja vitoacuteria exigia a ldquofalecircncia da ciecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 227)

Apesar disso poreacutem o que a ciecircncia do Pequeno Racionalismo

natildeo podia negar era a presenccedila em seus fundamentos de um ldquonaturalismordquo

que tivera sua gecircnese no seacuteculo XVII Basta notar nos discursos cientiacuteficos

49 Deste modo Merleau-Ponty refere-se ao seacuteculo XVII como ldquo[] um tempo em que o universo mental natildeo estava dilacerado e onde um mesmo homem podia sem concessatildeo ou artifiacutecio dedicar-se agrave filosofia agrave ciecircncia (e se o desejasse agrave teologia) Natildeo obstante essa paz essa indivisatildeo soacute poderiam durar enquanto se permanecesse na entrada dos trecircs caminhosrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 229) Qual a razatildeo dessa possibilidade Continua o filoacutesofo estaacute no fato de que ldquoo seacuteculo XVII acreditou no acordo imediato da ciecircncia com a metafiacutesica e ademais com a religiatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 230)

80

a constante presenccedila de ideias marcadamente cartesianas como ldquogeraccedilatildeo

continuadardquo ldquoaccedilatildeo produtorardquo ldquorepresentaccedilatildeordquo ldquocausalidaderdquo dentre

outras valendo o mesmo para o ldquohumanismordquo o ldquoteiacutesmordquo ou mesmo o

ldquoneopositivismo loacutegicordquo Eacute assim que em meio a estes parentescos e desvios

percebemos emergir ao mesmo tempo um primado da exterioridade e o

compromisso com as consequecircncias de uma ideia cujos princiacutepios se

perderam atitude esta que podemos nomear de ldquomitordquo segundo Merleau-

Ponty seja ele o das ldquoleis naturaisrdquo ou da ldquoexplicaccedilatildeo cientiacuteficardquo seja ele por

exemplo o da ldquoexplicitaccedilatildeordquo do ldquonadardquo que encontrariacuteamos apoacutes a vida tal

como se estivesse se tratando de um ldquodestino supra-sensiacutevelrdquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 277) Em outros termos mantendo em seus fundamentos

as consequecircncias do seacuteculo XVII sem repensar os seus princiacutepios por

conseguinte nutrindo em suas bases uma clivagem configurada em anaacutelises

fiacutesico-matemaacuteticas a ciecircncia claacutessica de um modo geral via-se jaacute em seus

alicerces envolta em muitos embaraccedilos Nisto estaacute a razatildeo pela qual

mergulhado em uma metafiacutesica realista campo dos embates entre vitalismo

e mecanicismo o pensamento bioloacutegico ainda permanecia claacutessico era ainda

a expressatildeo de uma ldquoontologia do objetordquo sendo que ldquoa imagem do

organismo eacute em sua grande parte aquela de uma massa material partes

extra partesrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 29) Do mesmo modo no que diz

respeito agrave psicologia ldquono iniacutecio do seacuteculo o materialismo fazia do lsquopsiacutequicorsquo

um setor particular do mundo real dentre os acontecimentos em si alguns

no ceacuterebro tinham a propriedade de existir tambeacutem por sirdquo (MERLEAU-

PONTY 2006 p 29) jaacute que tendo-se em conta o pensamento criticista natildeo

lhe restava outro recurso senatildeo o de ser ldquo() por um lado uma lsquopsicologia

analiacuteticarsquo que paralelamente agrave geometria analiacutetica reencontraria o juiacutezo

sempre presente e por outro lado um estudo de certos mecanismos

corporaisrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 30) Todavia para Merleau-Ponty eacute

preciso que se abandone a concepccedilatildeo da Natureza como uma maacutequina

regida pelas leis de uma ldquofiacutesica matematizadardquo que tanto marcaria tambeacutem o

Grande Racionalismo e as ciecircncias que tentassem se modelar em suas

consequecircncias Daiacute o fato de que suas criacuteticas dirigidas por exemplo agrave

psicologia e agrave fisiologia claacutessicas datildeo-se justamente no intuito de levaacute-las a

81

natildeo mais reduzir o homem a uma maacutequina psiacutequica ou a um organismo

determinado por leis naturais necessaacuterias e universais

Todavia em contrapartida de acordo com Merleau-Ponty a

fiacutesica de sua eacutepoca parecia neutra ante o embate entre filosofia e ciecircncia

Aparentemente aquela abordagem fiacutesica mesmo que no campo cientiacutefico

natildeo apresentava grandes problemas ao pensamento criticista Para o fiacutesico

moderno neste sentido a metafiacutesica natildeo passaria de uma mera ldquoquestatildeo de

estilordquo Em Einstein et la crise de la raison eacute interessante assinalar o modo

como segundo Merleau-Ponty Einstein ilustraria bem esta crise na qual o

fiacutesico ainda utilizava a mesma linguagem da metafiacutesica claacutessica embora

suas descobertas ironicamente rompessem radicalmente com esta mesma

metafiacutesica Contudo embora o fiacutesico moderno se sinta um sujeito absoluto

ante seu objeto o fato eacute que suas descobertas transcendem a linguagem na

qual ainda se encontrava cativo Sendo assim mais do que neutra ante o

Pequeno Racionalismo tanto do cientista (Realismo Mecanicismo) quanto do

filoacutesofo (Espiritualismo Vitalismo) e mais do que promover por meio de sua

neutralidade a legitimaccedilatildeo do pensamento criacutetico o fato eacute que a fiacutesica

moderna romperia com estas clivagens do pensamento

No mundo moderno a ldquonova ciecircnciardquo natildeo se prende mais a

um discurso alicerccedilado em antagonismos50 Natildeo se trata mais de um

discurso fundamentado apenas no sujeito ou de um discurso fundamentado

apenas no objeto Neste contexto a anaacutelise cartesiana da cera por exemplo

o despojamento das qualidades ao qual o objeto se sujeitava na fiacutesica

claacutessica em sua ldquoobsessatildeo matemaacuteticardquo apresenta-se como um contra-

senso Contudo em linhas gerais como podemos diferenciar ldquofiacutesica

modernardquo e ldquofiacutesica claacutessicardquo A fiacutesica claacutessica aquela promulgada pelo

Grande Racionalismo e tatildeo bem expressa em Laplace afirmava-se no dizer

de Merleau-Ponty ou por um causalismo ou por uma concepccedilatildeo analiacutetica

do Ser ou ateacute mesmo por uma concepccedilatildeo espacial do ser natural na qual

os seres teriam uma existecircncia meramente extensiva Deste modo citando

50 A este respeito poderiam atestar os estudos de Le Roy Poincareacute e Duhem

82

Bachelard Merleau-Ponty ressaltava que ldquoos seres laplacianos natildeo satildeo

simples substancializaccedilotildees da funccedilatildeo ser situadordquo (BACHELARD 1951 p

294) ldquoo que exclui a ideia de um ser em devirrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p

143)

Desta afirmaccedilatildeo bachelardiana ele concluiraacute que ldquoa diferenccedila

entre esse classicismo e o pensamento cientiacutefico moderno eacute que um pensa

que se deve compreender o Ser antes de compreender o seu comportamento

ao passo que o outro soacute apreende seu ser apreendendo seu comportamentordquo

(MERLEAU-PONTY 2000a p 143) Neste sentido vale-nos a suspeita de

Bachelard segundo o qual a negaccedilatildeo laplaciana de Deus natildeo seria nada

menos do que uma troca de hipoacutetese51 No fundo o espiacuterito do cientista

assumiria o papel do espectador universal do Kosmotheacuteoros ateacute entatildeo

ocupado por Deus52 Deste modo na fiacutesica moderna por estar abalizada

mais em ldquorelaccedilotildeesrdquo as instacircncias do sujeito e do objeto se encontram

embaralhadas mesmo que no caso de Einstein ainda haja um ideal

claacutessico pois ldquonatildeo eacute reclamando para a ciecircncia um gecircnero de verdade

metafiacutesica ou absoluta que protegeremos os valores da razatildeo que a ciecircncia

claacutessica nos ensinourdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 219) O problema estaacute

que como salienta ironicamente Merleau-Ponty ldquoo mundo aleacutem dos

neuroacuteticos conta com um bom nuacutemero de lsquoracionalistasrsquo que satildeo um perigo

para a razatildeo vivardquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 29) Para Merleau-Ponty

ldquopelo contraacuterio o vigor da razatildeo estaacute ligado ao renascimento de um sentido

filosoacutefico que certamente justifica a expressatildeo cientiacutefica do mundo poreacutem

em sua ordem em seu lugar no todo do mundo humanordquo (MERLEAU-

51 Bachelard nos lembra do encontro que Laplace tivera com Napoleatildeo Nesta ocasiatildeo ao ser indagado por Napoleatildeo sobre a ausecircncia de Deus em seu discurso Laplace simplesmente responde que natildeo precisara desta ldquohipoacuteteserdquo para fundamentar suas ideias 52 Esta suspeita torna-se bastante evidente a Merleau-Ponty nas seguintes palavras de Laplace proferidas no Essai philosophique sur les probabiliteacutes ldquoDevemos portanto considerar o estado presente do universo como o efeito de seu estado anterior e como a causa daquele que se seguiraacute Uma inteligecircncia que num instante dado conhecesse todas as forccedilas de que a Natureza estaacute afirmada e a situaccedilatildeo respectiva dos seres que a compotildeem se por outro lado ela fosse suficientemente vasta para submeter todos esses dados agrave anaacutelise englobaria na mesma foacutermula os movimentos dos maiores corpos do universo e aqueles do mais leve aacutetomo nada seria incerto para tal inteligecircncia e o futuro tanto quanto o passado estaria presente a seus olhosrdquo (LAPLACE Apud MERLEAU-PONTY 2000a p 142)

83

PONTY 2006 p 219) Nisto encontra-se o elogio de Merleau-Ponty agrave

mecacircnica quacircntica que ainda mais do que o proacuteprio Einstein subvertera

categorias fundamentais e se rebelara contra a antiga ontologia (MERLEAU-

PONTY 2000a p 143)

Eacute neste sentido que podemos compreender em Lrsquoœil et

lrsquoesprit a criacutetica que Merleau-Ponty faria a uma espeacutecie de ldquooperacionalismordquo

que ainda se fazia presente em algumas abordagens cientiacuteficas de seu

tempo Como ele mesmo diraacute ldquoa ciecircncia manipula as coisas e renuncia a

habitaacute-las Para si estabelece modelos internos das coisas ()rdquo visto que

ldquo() operando sobre estes iacutendices e variaacuteveis as transformaccedilotildees permitidas

pela sua definiccedilatildeo soacute se confronta de quando em quando com o mundo

atualrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 13) Prosseguindo estas ideias o

filoacutesofo chega agrave constataccedilatildeo de que

Haacute hoje em dia ndash natildeo na ciecircncia mas numa filosofia das ciecircncias assaz divulgada ndash isto de completamente novo a saber que a praacutetica construtiva se considera e se estabelece como autocircnoma e que o pensamento se reduz deliberadamente ao conjunto das teacutecnicas de apreensatildeo ou de captaccedilatildeo por si inventadas Pensar eacute experimentar operar transformar com a uacutenica reserva de uma verificaccedilatildeo experimental na qual natildeo interveacutem senatildeo fenocircmenos altamente ldquotrabalhadosrdquo e que os nossos aparelhos mais que registram produzem (MERLEAU-PONTY 1975b p 14)

Nestas palavras contudo natildeo podemos simplesmente

reconhecer uma negaccedilatildeo radical da ciecircncia Se pensarmos em Cavallier natildeo

podemos deixar que a celebridade destas linhas a primeiras de Lrsquoœil et

lrsquoesprit atrapalhe a compreensatildeo que possamos ter do projeto filosoacutefico de

Merleau-Ponty Ao inveacutes de se negar a ciecircncia em geral o que encontramos eacute

a explicitaccedilatildeo e recusa de um determinado modelo de ciecircncia de um dito

saber cientiacutefico que nos afasta de nossa vivecircncia do mundo e

consequentemente rompe o viacutenculo ontoloacutegico pelo qual nos encontramos

unidos a este mesmo mundo Por conseguinte mais do que uma recusa da

ciecircncia o que se visa eacute sobretudo uma determinada ldquofilosofia das ciecircnciasrdquo

84

seja aquela fundada somente no criticismo53 seja aquela resultada dos

desdobramentos de uma ldquofilosofia analiacuteticardquo54 No que diz respeito a esta

uacuteltima para o filoacutesofo ldquodizer que o mundo eacute por definiccedilatildeo o objeto X das

nossas operaccedilotildees eacute tornar absoluta a situaccedilatildeo de conhecimento do saacutebio [do

cientista] como se tudo aquilo que foi ou eacute soacute o fosse para entrar no

laboratoacuteriordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 15) Por conseguinte ldquoo

pensamento lsquooperatoacuteriorsquo converte-se em uma espeacutecie de artificialismo

absoluto ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 15) Como equiacutevoco o filoacutesofo

encontra nestas ideias o desejo de analisar o ser da ciecircncia apenas por

procedimentos de verificaccedilatildeo e de experimentaccedilatildeo esquecendo-se tambeacutem

de que ele pode se apresentar a partir de princiacutepios preacutevios Neste sentido

Merleau-Ponty lembra-se da afirmaccedilatildeo bachelardiana segundo a qual em

Le nouvel esprit scientifique a ldquoexperiecircncia adere agrave definiccedilatildeo do Ser Toda

definiccedilatildeo eacute uma experiecircnciardquo pois ldquodiz-me como te investigar e te direi quem

eacutesrdquo (BACHELARD 1973 p 49)55 Disto Merleau-Ponty concluiraacute que

() se natildeo se introduz nenhum princiacutepio anterior agrave operaccedilatildeo ao trabalho da ciecircncia natildeo se pode presumir essa operaccedilatildeo concluiacuteda Eacute preciso aceitaacute-la em sua obscuridade em sua espessura com todas as motivaccedilotildees que nela estatildeo implicadas que nela ldquofuncionamrdquo (muitas vezes preacute-cientificamente) ndash Senatildeo o operacionalismo eacute apenas retorno ao idealismo e agrave imanecircncia () Esse operacionalismo sabe de antematildeo o que encontraraacute somente encontraraacute relaccedilotildees fiacutesico-matemaacuteticas restringe o Ser ao que eacute manipulaacutevel por ele a objetos de conhecimento cientiacutefico ndash seja o que for que a ciecircncia nos mostre seratildeo sempre os objetos de nosso conhecimento (MERLEAU-PONTY 2000a p 328)

53 Trata-se aqui especialmente da ldquofilosofia das ciecircnciasrdquo de Brunschvicg um dos alvos da criacutetica de Merleau-Ponty conforme veremos melhor no proacuteximo capiacutetulo 54 Neste caso ao se pensar em uma ciecircncia na qual o mundo se tornara longe do ldquosentimento de opacidaderdquo dos claacutessicos tatildeo-somente um ldquoobjetordquo de nossas reflexotildees tal como se torna expliacutecito em um curso dado no Collegravege de France contemporacircneo a Lrsquoœil et lrsquoesprit acreditamos que se trata de uma referecircncia ao ldquooperacionalismordquo de Bridgman Em The Logic of Modern Physics o operacionalismo eacute introduzido como o referencial de uma metodologia na qual natildeo haveria o risco da interferecircncia de nenhum juiacutezo de valor Mergulhado em uma filosofia analiacutetica o conceito de operacionalizaccedilatildeo se daacute justamente na procura de um elemento capaz de unir diferentes concepccedilotildees metodoloacutegicas na descriccedilatildeo analiacutetica da accedilatildeo do cientista em seu campo de observaccedilatildeo Disto resulta a identificaccedilatildeo de sentenccedilas elementares conforme os intuitos filosoacuteficos do ldquoAtomismo Loacutegicordquo Deste modo para Bridgman um certo conceito natildeo apresentaraacute sua verdadeira definiccedilatildeo referindo-se a suas propriedades mas a suas ldquooperaccedilotildees efetivasrdquo 55 Este trecho eacute citado por Merleau-Ponty (2000a p 328)

85

A criacutetica dirigida pelo filoacutesofo ao operacionalismo no fundo

indica tambeacutem uma criacutetica ao ldquoPositivismo loacutegicordquo como um dos uacuteltimos

rebentos do Pequeno Racionalismo e seu consequente esquecimento da

unidade viva que mantemos com o nosso mundo Mas natildeo haveria tambeacutem

em Descartes notadamente na Dioptrique uma espeacutecie de

ldquooperacionalismordquo Em que poderiacuteamos diferenciar o operacionalismo das

ciecircncias e o operacionalismo cartesiano Qual seria seu grau de parentesco

o mesmo que serviria para nos mostrar a diferenccedila de natureza que se

estabelece entre o Grande e o Pequeno Racionalismo Como diraacute Merleau-

Ponty

Nossa ciecircncia rejeitou tanto as justificaccedilotildees como as restriccedilotildees de campo que Descartes lhe impunha Os modelos que inventa ela natildeo pretende mais deduzi-los dos atributos de Deus A profundidade do mundo existente e a do Deus insondaacutevel jaacute natildeo vecircm forrar a vulgaridade do pensamento ldquotecnicizadordquo O desvio pela metafiacutesica que apesar de tudo Descartes fizera uma vez em sua vida a ciecircncia dispensa-se dele ela parte daquilo que foi o seu ponto de chegada O pensamento operacional reivindica sob o nome de psicologia o domiacutenio de contato consigo mesmo e com o mundo existente que Descartes reservava a uma experiecircncia cega mas irredutiacutevel Ele eacute fundamentalmente hostil agrave filosofia como pensamento de contato e se lhe reencontrar o sentido seraacute pelo proacuteprio excesso da sua desenvoltura quando tendo introduzido toda sorte de noccedilotildees que para Descartes dependeriam do pensamento confuso ndash qualidade estrutura escalar solidariedade entre o observador e o observado ndash ele [de] suacutebito atinar com que natildeo se pode sumariamente falar de todos esses seres como de constructa (MERLEAU-PONTY 1975b p 100)

A partir destas consideraccedilotildees como concluiraacute Merleau-Ponty

podemos dizer que ldquonossa ciecircncia e nossa filosofia satildeo duas consequecircncias

fieis e infieacuteis do cartesianismo dois monstros nascidos do desmembramento

delerdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 100) Pensando assim como poderiacuteamos

compreender o modo pelo qual especialmente a partir de Descartes a

ciecircncia claacutessica funda seus alicerces Como se daria essa relaccedilatildeo de

ldquofidelidaderdquo e de ldquoinfidelidaderdquo ao cartesianismo ou antes agrave ldquo[] dimensatildeo

do composto de alma e de corpo do mundo existente do Ser abismal a qual

Descartes abriu e logo fechourdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 100) A seguir

tentaremos responder a estas questotildees refletindo primeiramente o problema

da representaccedilatildeo em Descartes

86

22 Descartes e o problema da ldquorepresentaccedilatildeordquo o operacionalismo de Descartes e a intuitus mentis

De modo especial Merleau-Ponty reflete sobre a concepccedilatildeo

cartesiana de representaccedilatildeo ao tratar da Dioptrique Eacute difiacutecil natildeo reconhecer

a importacircncia que este livro tivera para o filoacutesofo uma vez que ele estaacute

presente seja nos primeiros trabalhos como em La Structure du

comportement seja nos uacuteltimos como em Lrsquoœil et lrsquoesprit nas Notes du cours

ou nas Notes du travail Partindo deste livro Merleau-Ponty procura esboccedilar

uma leitura de Descartes que natildeo se esmere como veremos no quarto

capiacutetulo segundo uma ldquoordem das razotildeesrdquo do mesmo modo que natildeo se trata

de uma simples criacutetica mas da procura do que seria tanto o ldquoimpensadordquo de

Descartes como tambeacutem o modo como o projeto cartesiano estaacute presente

nas ldquoruiacutenas de pensamentordquo em que sentia encontrar as relaccedilotildees

estabelecidas entre filosofia e ciecircncia entendidas como suas consequecircncias

ldquofieisrdquo e ldquoinfieacuteisrdquo Ora o que Merleau-Ponty vira na Dioptrique Se pensamos

em Lrsquoœil et lrsquoesprit encontrariacuteamos ali em primeiro lugar ldquo[] o breviaacuterio de

um pensamento que natildeo mais quer assediar o visiacutevel e decide reconstruiacute-lo

segundo o modelo que dele se proporcionardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p

94) O que isto significa Para Merleau-Ponty o objetivo principal da

Dioptrique eacute o de fabricar ldquooacutergatildeos artificiaisrdquo de desenvolver uma teacutecnica

mediante o pensamento pela qual seja possiacutevel manipular a luz logo o que

se espera eacute conhecer o funcionamento da visatildeo a fim de aperfeiccediloaacute-la Assim

sendo eacute interessante notar o modo como se daacute o tratamento da luz

deixando de ser o meio que podemos habitar para se tornar unicamente uma

accedilatildeo que se efetiva mediante o contato Descartes natildeo interroga a luz natildeo se

preocupa em saber ldquode que modo a luz esclarece iluminardquo natildeo se preocupa

com este fenocircmeno natildeo se preocupa com uma experiecircncia entendida como

Erfahrung (MERLEAU-PONTY 1996 p 176) lembrando-nos

irresistivelmente os hozontes abertos pela obra Erfahrung und Urteil um dos

livros de Husserl fundamentais para Merleau-Ponty

87

221 O operacionalismo cartesiano e a identificaccedilatildeo de lux e lumen

A nosso ver Merleau-Ponty nota no pensamento cartesiano a

presenccedila de uma espeacutecie de operacionalismo que contudo estaria limitado

pelas ldquocondiccedilotildees da intuitus mentisrdquo Aqui o filoacutesofo se refere ao

procedimento cartesiano de pensar por ldquomodelosrdquo em se limitar ao explicar

a luz em se servir de algumas comparaccedilotildees tal como seraacute o exemplo do

cego do recipiente cheio de uvas ou da bola cuja reflexatildeo de seus

movimentos iraacute depender da superfiacutecie onde for lanccedilada Eacute assim que a

intuitus mentis cartesiana reduz o fenocircmeno da luz ao operar uma

identificaccedilatildeo entre lux e lumen Contudo para entendermos a mudanccedila feita

por Descartes precisamos compreender qual seria a diferenccedila apontada por

Merleau-Ponty existente entre estes dois termos Primeiramente no que diz

respeito ao aspecto etimoloacutegico vale lembrar que em latim talvez originado

do grego antigo leukov lux indica a luz na condiccedilatildeo de ser uma forccedila em

atividade daiacute a luz do dia o amanhecer daiacute significar tambeacutem brilho

resplendor Se pensarmos que lux seja proveniente do verbo lūcĕŏ neste

caso indica tambeacutem o que se torna visiacutevel ldquoatraveacutes derdquo o que se deixa ver o

que rompe a escuridatildeo ou seja a proacutepria luz Em contrapartida lumen

indica um meio pelo qual algo se torna luminoso natildeo eacute propriamente a luz

mas uma fonte de luz daiacute durante a noite indicar a candeia ou a lacircmpada

que ilumina na pintura expressar a luz a claridade no discurso o

ornamento presente em um estilo que esclarece a fala em um edifiacutecio a

perspectiva que possibilita uma vista mais liacutempida em nosso corpo o olhar

a luz dos olhos Diacronicamente torna-se notoacuterio o fato de que lux seja a

forma mais arcaica mais antiga do que lumen aleacutem do fato de que na

vulgata o que encontramos eacute ldquoFiat luxrdquo ldquofaccedila-se a luzrdquo e natildeo ldquoFiat lumenrdquo

Em resumo etimologicamente lux seria especiacutefica e originariamente a luz

do dia ao passo que lumen poderia ser qualquer outra luz Todavia seria

esta a concepccedilatildeo presente na Idade Meacutedia a mesma que seria modificada

por Descartes

88

No que diz respeito ao imaginaacuterio medieval mesmo que natildeo haja

uma referecircncia a isto em Merleau-Ponty a nosso ver seraacute nos trabalhos de

Bernardino de Sena que encontraremos melhor explicitada a compreensatildeo

que se tinha destes termos latinos confirmando de certa forma o que nos

diz a etimologia Em alguns de seus sermotildees em sua Opera Omnia

encontramos algumas referecircncias a isto Bernardino de Sena apresenta

Cristo como uma ldquofonte de luzrdquo sendo seu corpo comparado ao ldquobrilho do

Solrdquo Assim de modo miacutestico encontramos em Cristo a nossa salvaccedilatildeo

[salutatio] iluminaccedilatildeo [illuminatio] prazer ou beatitude [jucundatio] os quais

podem ser reduzidos a ldquotrecircs atos hieraacuterquicosrdquo a saber expiaccedilatildeo [purgatio]

iluminaccedilatildeo [illuminatio] e perfeiccedilatildeo [perfectio] Por sua vez tais atos segundo

Bernardino podem ser equiparados aos seguintes atributos divinos

potecircncia [potentia] sapiecircncia [sapientia] e bondade [bonitas] Contudo eacute

mediante a lumen de Cristo que tais atos alcanccedilam a sua plenitude Ele eacute

uma lumen para a revelaccedilatildeo para a iluminaccedilatildeo dos povos56 Em que

sentido poreacutem podemos dizer que Cristo eacute luz para os povos que andavam

nas trevas Eacute neste momento que Bernardino sente a necessitade de

estabelecer a diferenccedila que procuramos explicitar

Disse-se poreacutem lumen no intuito de indicar a pessoa de Cristo Posto que haja uma diferenccedila entre lumen e lux lux estaacute propriamente na fonte do corpo glorioso ao passo que lumen estaacute na transparecircncia diaacutefana da claridade da lumen que assim como o ar eacute receptiva Por conseguinte a divindade eacute lux em sua substacircncia Ele revela as profundezas e os segredos ele conhece o que estaacute nas trevas e junto dele habita a luz [Ipse revelat profunda O abscondita novit in tenebra constituta O lux cum eo est] (Dn 2 22) Lumen pois estaacute na natureza humana acerca da qual diz o Profeta Em tua luz

56 ldquoIn quo myſtitice demonſtratur quod ab ipſo amp in ipſo amp per ipſum eſt noſtra ſalutatio illuminatio jucundatio ſeu beatitudo amp poſſunt haeligc reduci ad trs actus Jerarchicos qui ſunt purgatio illuminatio amp perfectio vel ad tria Deo attributa ſcilicet potentiam ſapientiam amp bonitatem Comparat etiam eum ſecundum tria praeligfata nomina ad totam univerſitatem humani generis ſic tamen quod ut oſtendat ibi eſſe unitatem cum diſtinctionem primo ponit unite totam univerſitatem hominum cui quantum eſt ex parte Chriſti eſt generalis ſua ſalus ſeu ſalutifera gratia amp Judaeligos amp hoc cum quadam diſtincta correſpondentia ſecundi amp tertii nominis Christi ſcilicet luminis amp gloriaelig appropians gentibus lumen amp gloriam Iſraeli Ut autem haeligc diſtinctio ab unitate Chriſti non recedat duos effectus ſeu duas derivationes amp partipationes adſcribit lumini ſcilicet illuminationem amp gloriam ſeu glorificationem Unde dicit Christum eſſe lumen ad revelationem id est ad illuminationem gentium O gloriam id eſt glorificationem plebis ſuaelig Iſraelrdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116)

89

veremos a luz [In lumine tuo videbimus lumen] (Sl 3610) e em outro lugar Lacircmpada para os meus peacutes eacute a tua palavra [Lucerna pedibus meis verbum tuum] (Sl 119 105) isto eacute teu filho (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116)57

Pelo que notamos na figura de Cristo a luz adquire uma dupla

face Na condiccedilatildeo de divindade a luz apresenta-se como lux ou seja a

divindade tal como eacute em sua substantia Jaacute em sua encarnaccedilatildeo o que vemos

eacute sua condiccedilatildeo de lumen posto que se trata neste caso da divindade que se

revestira da natureza humana Haacute o jogo pelo qual como Deus Cristo eacute lux

eacute uma fonte de luz e como homem eacute lumen eacute um meio pelo qual a luz

manifesta o seu brilho A partir disto eacute interessante notar o que se pensa

acerca do humano Como vimos anteriormente a identificaccedilatildeo dos ldquoatos

hieraacuterquicosrdquo presentes no gecircnero humano com os atributos de Deus nos

revelava na verdade os seguintes pares intrinsicamente equivalentes

potentia-purgatio sapientia-illuminatio bonitas-perfectio Haacute pois uma

equiparaccedilatildeo de sabedoria e iluminaccedilatildeo o que nos manifesta tambeacutem sobre

a natureza humana aquilo que se torna uma das teses de Bernardino talis

enim illustratio proprie revelatio nominatur ou seja ldquotal ilustraccedilatildeo poreacutem

nomeia-se propriamente revelaccedilatildeordquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116)

Eacute mediante a lumen de Cristo em sua revelaccedilatildeo que podemos alcanccedilar a

nossa lumen a luz da sapiecircncia e portanto a iluminaccedilatildeo Sem esta lumen

que eacute reflexo da lux divina temos uma visatildeo in aelignigmate uma visatildeo

confusa58 A revelaccedilatildeo cumpre a tarefa de uma vez convertida a nossa

57 ldquoDicitur autem lumen ut incarnata perſona denotetur Differentia quippe eſt inter lucem amp lumen lux proprie eſt in fonte corporis gloriſi lumen vero eſt claritatis in perſpicuo diaphano luminis receptivo ut aeligre Divinitas ergo eſt lux in ſubſtantia ſua Dan 2 cap Ipſe revelat profunda O abſcondita novit in tenebris conſtituta O lux cum eo eſt Lumen vero eſt in humana natura de quo Propheta inquit Pſ 118 In lumine tuo videbimus lumen amp alibi Lucerna pedibus meis verbum tuum id eſt filius tuusrdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116) 58 ldquoProinde 2 Cor 13 cap loquens gentibus jam cretendibus Apoſt ait Nos vero omnes revelata facie gloriam Domini ſpeculantes in eandem imaginem transformamur a claritate in claritatem tanquam a Dei ſpiritu quaſi dicat Judaeligi adhuc velamen ſuper oculos habent nos vero credentes revelata facie id eſt expedita mente remoto velamine Dei gloriam ſpeculantes intraſitive id eſt Deum glorioſum ſpeculantes quia videmus nunc per ſpeculum in aelignigmate ut dicitur I Cor 13 in eadem imaginem ſcilicet divinam quam ſpeculamur id eſt Dei conformitatem transformamur ſcilicet a forma ignorante in formam lucidam veritatis Nos dico euntes in claritatem juſtificationis a claritate Moyſi in claritatem

90

imagem da divindade sermos capazes de uma transformaccedilatildeo que parta da

claridade (lumen) em direccedilatildeo agrave claridade (lux) uma transformaccedilatildeo que parta

de uma forma ignorante para uma forma luacutecida da verdade a forma

ignorante in formam lucidam veritatis

Todavia trata-se de um movimento que natildeo depende apenas de

nossa natureza como diraacute Bernardino pois tal eacute proferido ldquopara que se

mostre que [esta iluminaccedilatildeo] natildeo parte da natureza [ex natura] nem da

diacutevida [ex debito] nem das coisas naturais [de naturalibus] mas do

sobrenatural [ex supernaturali] e das coisas sobrenaturais [ex

supernaturalibus]rdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116-117)59 E

o que acontece neste processo Justamente a explicitaccedilatildeo de que sem a

revelaccedilatildeo ldquoos povos natildeo soacute eram natildeo videntes desta lumen mas tambeacutem

eram natildeo vistos ou desconhecidosrdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745

p 116-117) Por conseguinte este processo de iluminaccedilatildeo faz com que

sejamos iluminados e logo capazes de ver como tambeacutem capazes de nos

ver de sermos vistos (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 117)60 o

que nos reforccedila ainda mais aquilo que seria a sua teoria da luz fundada na

distinccedilatildeo entre lux e lumen

Daiacute que segundo Avicena no livro seis acerca das coisas naturais lux color e lumen sejam coisas distintas A cor com efeito delimita a coisa vista e natildeo se encontra encerrada em nenhum corpo Jaacute a lux estaacute no Sol e a lumen no meio como algo transparente e esta claridade parece ser suficiente porque mais se deleita os sentidos do homem na bela cor do corpo humano do que no corpo luminoso daiacute mais naturalmente se deleita vendo a face humana muito bem colorida do que o Sol (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 298)61

Chriſti tanquam a Dei ſpiritu ſcilicet ductirdquo (SANCTI BERNARDINI SENENSIS 1745 p 116) 59 ldquoAdvertendum eſt etiam quod iluminationem gentium vocat revelationem eorum Et hoc ex triplici cauſſa Primo ſcilicet ut innuat quod non ex naturali eſt neque ex debito neque de naturalibus ſed ex ſupernaturali amp ſupernaturalibusrdquo 60 ldquo[] gentes non ſolum erant non videntes hoc lumen ſed etiam erant invisaelig ſeu incognitaelig Dei notitiaelig amativaeligReputabantur enim ut nihil nec a Deo amp ſuis cognoſci poterant ut populus Dei aut exiſtens in numero fidelium ejus Et ideo revelandi erant id eſt de tenebroſo amp carnali ſtatu in lucem adducendi Et ſic illuminarentur non ſolum ad videre ſed etiam ad viderirdquo 61 ldquoUnde ſecundum Avicennam 6 naturalium iſta tria diſtincta ſunt lux color amp lumen Color enim terminat viſum amp nunquam niſi in corpore terminato lux eſt in ſole amp nunquam in medio ut in perſpicuo amp iſta claritas ſufficere videtur quia magis delectant ſenſus viſus

91

Em razatildeo disto Bernardino vecirc uma relaccedilatildeo entre a claridade da

beatitude da alma e o que seria a claridade do ldquocorpo gloriosordquo dos bem-

aventurados A alma poderia ser comparada pois agraves estrelas ou agrave lua que

natildeo tendo lux em si mesmas refletiriam a luz do Sol Do mesmo modo a

alma refletiria a lux de Cristo e a refletiria mediante a sua lumen (SANCTI

BERNARDINI SENENSIS 1745 p 303)62 Nisto encontramos pois uma

concepccedilatildeo da natureza humana mediante a metaacutefora da luz mediante os

jogos de lux e lumen Haacute portanto nesta natureza uma transparecircncia que

possibilita nela a repercussatildeo da lux Por sua vez sendo a cor densa e

consequentemente possiacutevel apenas em um corpo finito o ldquocorpo gloriosordquo

dos bem-aventurados diferemente da divindade eacute visto como ldquoluacutecidordquo e

ldquocoloridordquo ao inveacutes de ldquoluacutecidordquo e ldquoluminosordquo portanto detentores de lumen e

color e natildeo de lumen e lux Mas o que nos interessa nestas ideias o que nos

levou a esta digressatildeo A nosso ver a explicitaccedilatildeo de um certo modo de

pensar que a partir do mundo claacutessico tem sua configuraccedilatildeo transformada

E eacute justamente esta mudanccedila que nos parece ser o que nos diz Merleau-

Ponty ao notar em Descartes a partir de uma intuitus mentis ndash que acaba

sendo tambeacutem uma espeacutecie de visatildeo ndash o que seria uma reduccedilatildeo do

fenocircmeno da luz o esquecimento de uma luz que tambeacutem habitamos que

espera de noacutes uma abertura e pela qual a coisa se faz ver logo a reduccedilatildeo agrave

sua simultaneidade instantaneidade e capacidade de ser assimilada pelo

soacutelido Em outras palavras a conversatildeo da lumen em lux contiacutenua sem

transcendecircncia e despojada de sua distacircncia Vejamos o que nos diz a

Dioptrique a este respeito

hominis in colore pulchro humani corporis quam in corpore luminoſo unde amplius naturaliter delectatur in videndo faciem humanam optime coloratam quando ſolemrdquo 62 ldquoErit claritas corporum differens ſecundum differentiam gloriaelig animarum Quod quidem rationabile eſt nam ex claritate beatitudines animaelig in corpus claritas redundabit ſicut jam dictum eſt Propterea ſecundum proportionem qua beatitudo Animaelig Christi excedit cujuslibet Animaelig alterius beatitudinem ſic amp lux Corporis Chriſti claritati futuram in quocunque Sancto ſuperat amp excedit Unde in praeligdicto Apoſtoli verbo claritas Corporis Chriſti claritati ſolari aſſimilatur juxta illum Malach 4 Vobis timentibus nomen meum orietur Sol juſstitiaelig id est Christus Claritas vero Virginis glorioſaelig ſecundum quoſdam comparatur lunaelig Compari etiam poteſt ipſi lunaelig claritas puerorum qui poſt baptiſmum moriuntur antequam perviniant ad annos diſcretionis Nam ſicut luna a ſeipſa non habet lumen ſed ab ipſo ſole ſic amp iſti gloriam minime habent ex propriis meritis ſed ex meacuterito Christi Baptiſmus enim in quo ipſi abluti ſunt ex Christi paſſione efficiam habetrdquo

92

Ora natildeo tendo aqui outra ocasiatildeo de falar da luz [luce vel lumine] senatildeo para explicar como seus raios entram no olho e como eles podem ser desviados pelos diversos corpos que eles encontram natildeo eacute preciso que eu tente dizer qual eacute verdadeiramente a sua natureza e eu acredito que seraacute suficiente que eu me sirva de duas ou trecircs comparaccedilotildees que ajudam a conceber no modo que me parece mais cocircmodo para explicar todas as de suas propriedades que a experiecircncia nos fez conhecer e para deduzir em seguida todas as outras que natildeo podem tatildeo facilmente ser notadas Imitando nisto os astrocircnomos que embora suas suposiccedilotildees sejam quase todas falsas ou incertas entretanto porque elas se referem a diversas observaccedilotildees que satildeo feitas natildeo deixam de tirar delas vaacuterias consequecircncias muito verdadeiras e muito asseguradas (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 83)63

Para Descartes falar da lux eacute o mesmo que falar da lumen natildeo

haacute distinccedilatildeo afinal eacute suficiente conceber a natureza da luz tendo por

referecircncia as suas propriedades inteligiacuteveis assimiladas pelo intelecto64

Como diraacute Merleau-Ponty (1996 p 40) ldquoa Dioptrique [eacute] pensada por

modelos construiacutedos e natildeo por docilidade aos fenocircmenos por exemplo a luz

[eacute] definida por contato ndash Eacute o verdadeiro e o falso para noacutes que importamrdquo

logo o que unicamente importa eacute a transmissatildeo do movimento pois nada haacute

de mais sensiacutevel (nihil magis sensibile) (MERLEAU-PONTY 1996 p 40) Eacute a

partir disso que se desenharaacute o itineraacuterio que o filoacutesofo se propotildee neste

texto ldquoexplicar a luz e seus raiosrdquo ldquodizer como funciona a visatildeo a partir de

uma breve descriccedilatildeo das partes do olhordquo ldquodescrever as invenccedilotildees que satildeo

capazes de aperfeiccediloar a visatildeordquo e por fim ldquoensinar como eacute possiacutevel ampliar a

visatildeo por meio do uso destas mesmas invenccedilotildeesrdquo65 Abandonando tanto a

experiecircncia vivida da luz como se manifesta e se expressa de modo notoacuterio

63 ldquoHicircc autem de luce vel lumine loquendi cugravem aliam causam non habeam quagravem ut explicem quo pacto ejus radii oculos intrent et occursu variorum corporum flecti possint non necesse erit inquirere quaelignam genuina sit ejus natura sed duas aut tres comparationes hicircc afferam quas sufficere arbitror ut juvent ad illam concipiendam eo modo qui omnium commodissimus est ad ejus pro- | prietates quas jam experientia docuit explicandas et ex consequenti etiam ad alias omnes quaelig non ita facilegrave usu notantur detegendas Non aliter quam in Astronomia ex hypothesibus etiam falsis et incertis modograve iis omnibus quaelig in coelo observantur accurategrave congruant multaelig conclusiones circa ea quaelig non observata sunt verissimaelig et certissimaelig deduci solentrdquo 64 ldquoSufficere naturam luminis concipere ad omnes ejus proprietates intelligendumrdquo (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 83) 65 ldquoQuapropter exordiar agrave lucis ejusque radiorum explicatione postea partibus oculi breviter descriptis qua ratione visio fiat accurategrave exponam tandemque notatis iis omnibus quaelig ad illam perficiendam licet optare quibus artificiis ea ipsa possint praestari docebordquo (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 83)

93

na explicaccedilatildeo religiosa de Bernardino Descartes se fundamenta em

primeiro lugar no que que haacute de evidente segundo a razatildeo na observaccedilatildeo

do experimentum Daiacute encontrarmos no pensamento cartesiano como

modelo da visatildeo o tato uma vez que a luz encontraria o olhar assim como a

bengala do cego toca as coisas que encontra pelo caminho sendo a essecircncia

da visatildeo equiparada e reduzida ao que ele poderia apreender com sua

bengala Por conseguinte encontramos a desaprovaccedilatildeo de Merleau-Ponty

pois compreender a visatildeo por essa via equivaleria a eliminaacute-la Assim em

Descartes constata o filoacutesofo ldquodas coisas aos olhos e dos olhos agrave visatildeo nada

ocorre para aleacutem do que vai das coisas agraves matildeos do cego e das suas matildeos ao

seu pensamentordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Ora ldquoa visatildeo natildeo eacute a

metamorfose das coisas mesmas na sua visatildeo [vista] a dupla pertenccedila das

coisas ao grande mundo [koinov kosmov] e a um pequeno mundo privado [i1diov

kosmov]rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Ouccedilamos a Dioptrique

Provavelmente jaacute lhe aconteceu alguma vez andando durante a noite sem uma tocha por lugares um pouco difiacuteceis ser necessaacuterio usar um bastatildeo para conduzi-lo e deu-se conta entatildeo de que sentia por meio deste bastatildeo os diversos objetos que se encontravam ao seu redor e inclusive vocecirc pocircde distinguir se havia aacutervores ou pedras ou areia ou aacutegua ou erva ou madeira ou qualquer outra coisa semelhante Eacute verdade que este tipo de sentimento eacute um pouco confuso e obscuro naqueles que natildeo fizeram um longo uso dele mas considere-o naqueles que sendo cegos de nascenccedila serviram-se dele a vida toda e vocecirc o encontraraacute tatildeo perfeito e tatildeo exato nele que se poderia dizer que eles vecircem por meio das matildeos ou que o seu bastatildeo eacute o oacutergatildeo de algum sexto sentido que lhes foi dado na falta da visatildeo E para tirar uma comparaccedilatildeo disso eu gostaria que vocecirc pensasse que a luz natildeo eacute outra coisa nos corpos que se chamam luminosos senatildeo um certo movimento ou uma accedilatildeo muita raacutepida e muita viva que passa para os nossos olhos por intermeacutedio do ar e de outros corpos transparentes do mesmo modo que o movimento ou a resistecircncia dos corpos que aquele cego encontra passa para a sua matildeo por intermeacutedio de seu bastatildeo (DESCARTES 2007 p 154-155 1996ap 83-84)66

66 ldquoNemo nostrum est cui non evenerit aliquando ambulanti noctu sine funali per loca spera et impedita ut baculo usus sit ad regenda vestigia et tunc notare potuimus | per baculum intermedium nos diversa corpora sentire quaelig circumcirca occurrebant Itidem nos dignoscere num adesset arbor vel lapis vel arena vel aqua vel herba vel lutum vel simile quiddam Fatendum quidem hoc sentiendi genus obscurum et satis confusum esse in iis qui non longo usu edocti sunt sed consideremus illud in iis qui cugravem caeligci nati sint toto vitaelig tempore debuerunt eo uti et adeograve perfectum consummatumque inveniemus ut dicere possimus illos quodammodo manibus cernere aut scipionem tanquam sexti cujuspiam sensus organum iis datum ad defectum visus supplendumrdquo

94

Descartes potildee a visatildeo fora de si mesma ateacute parecer anulaacute-la

Ante a questatildeo de saber de que maneira as imagens formadas em nosso

ceacuterebro podem dar meio agrave alma para sentir as diversas qualidades dos

objetos com os quais se relacionam e natildeo o ponto que tecircm em si de

semelhanccedila a experiecircncia do cego fornece a resposta Qual a razatildeo O que

leva o cego a se tornar o modelo cartesiano da visatildeo Segundo Quinet

compreendemos melhor o modelo cartesiano de visatildeo com a compreensatildeo

que se estabelece especialmente a partir de Kepler do olho como um

dispositivo oacutetico e portanto ldquo[] conforme o princiacutepio dos aparelhos

fotograacuteficos uma cacircmera escura com uma abertura a pupila um diafragma

a iacuteris uma objetiva convergente o cristalino e a tela onde se forma a

imagem a retinardquo (QUINET 2002 p 27) Natildeo haacute mais um olho que vecirc mas

o que se torna o foco do interesse eacute a garantia dada pelas condiccedilotildees

geomeacutetricas que possitibilitam na retina a formaccedilatildeo de uma imagem uma

vez que ldquocom o surgimento da ciecircncia da luz e o impeacuterio da evidecircncia

inaugurado por Descartes o misteacuterio do olho desaparece para dar lugar agrave

fiacutesica da visatildeo que cria um espaccedilo matemaacutetico feito para quem natildeo vecircrdquo

(Ibidem) Para Quinet a Dioptrique seria justamente conduzida por estas

questotildees Nela o que encontramos eacute sobretudo um ldquoolharrdquo construiacutedo que

assim como o telescoacutepio precisa romper com os equiacutevocos da experiecircncia e

nos mostrar o mundo em sua transparecircncia Deste modo natildeo podemos nos

enganar com o modo elogioso com que Descartes inicia o seu primeiro

discurso ao falar que ldquotoda a conduta de nossa vida depende de nossos

sentidosrdquo (Totius vitaelig nostraelig regimen agrave sensibus pendet) ldquosendo o sentido

da visatildeo o mais nobre e mais universal (quorum cugravem visus sit nobilissimus et

latissimegrave patens) (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 81) Logo a seguir o

seu desmerecimento eacute manifesto no entanto ldquonatildeo haacute duacutevida de que as

invenccedilotildees que servem para aumentar o seu poder sejam as mais uacuteteis que

possam existirrdquo (non dubium est quin utilissima sint inventa quaelig vim illius

augere queunt) Eacute assim que a luneta o perspicillium torna-se para o

filoacutesofo o modelo da visatildeo

95

E eacute difiacutecil encontrar alguma que a aumente mais do que a destas maravilhosas lunetas que estando em uso apenas haacute pouco tempo jaacute nos descobriu novos astros no ceacuteu e outros novos objetos sobre a terra em maior nuacutemero do que satildeo os que antes tiacutenhamos visto ali de modo que levam nossa visatildeo muito mais longe do que tinha o costume de ir a imaginaccedilatildeo de nossos pais elas parecem nos ter aberto o caminho para chegar a um conhecimento da Natureza

muito maior e mais perfeito do que eles tiveram (DESCARTES 2007 p 153 1996a p 81)67

O direcionamento cartesiano agrave invenccedilatildeo da luneta se justifica

de modo especial na relaccedilatildeo que estabelece Quinet entre existecircncia e visatildeo

ao nos dizer que ldquopor intermeacutedio das descobertas cientiacuteficas novos objetos

se tornam existentes porque passam a ser visiacuteveis A capacidade da visatildeo se

amplia sua extensatildeo quase jaacute natildeo conhece mais limites O olho nu eacute mais

nada em comparaccedilatildeo com essas maravilhosas lentesrdquo (QUINET 2002 p 29)

Deste modo ldquo[] o olho natildeo possui mais a accedilatildeo do ato de ver porque lsquoesses

objetos devem ser luminosos ou iluminados para serem vistos e natildeo

precisam de nossos olhos para vecirc-losrsquo A accedilatildeo natildeo eacute mais do olho e sim da

luzrdquo (QUINET 2002 p 29) Eacute neste sentido que a nosso ver Merleau-Ponty

entende o exemplo do cego principalmente tendo em vista a intenccedilatildeo

cartesiana em legitimar a tese da propagaccedilatildeo instantacircnea da luz Em outros

termos para Merleau-Ponty invocar a experiecircncia do cego permite

simultaneamente a Descartes despachar a visatildeo efetiva e fazer a economia

de uma demonstraccedilatildeo pois eacute no interior que nos convida a fazer a prova

Deste modo a cor natildeo eacute outra coisa ldquo[] nos corpos que chamamos

coloridos senatildeo os diversos modos com os quais estes corpos a recebem e a

remetem contra nossos olhosrdquo (DESCARTES 2007 p 154-155 1996a p

83-84) Eacute assim que a cor ao contraacuterio do que encontramos em Avicena e

Bernardino uma vez ocorrida a identificaccedilatildeo entre lumen e lux perde o seu

status torna-se meramente um reflexo semelhante a que o cego nota por

meio de seu bastatildeo sendo as diferenccedilas entre as cores semelhante aos

67 ldquoEt quidem difficile est ullum excogitare quod magis juvet quagravem miranda illa specilla quaelig brevi tempore quo cognita sunt jam in coelo nova sidera et in terra nova alia corpora numerosiora iis quaelig antea visa fuerant detexere Adeograve ut promota luminis nostri acie ultra terminos quibus imaginatio majorum sistebatur viam simul nobis videantur peruisse ad majorem et magis absolutam naturaelig cognitionemrdquo

96

diversos modos como este mesmo bastatildeo pode se mover A cor se torna

como em Galileu uma qualidade secundaacuteria e no caso do pensamento

cartesiano enganosa visto que ldquo[] no que diz respeito agrave imaginar a

distacircncia pelo tamanho ou pela forma ou pela cor ou pela luz aiacute estatildeo os

quadros em perspectiva para mostrar como eacute faacutecil se enganarrdquo (DESCARTES

1996a p 229) atitude que conforme veremos mais adiante seraacute criticada

por Merleau-Ponty Quanto agrave luz por sua vez vale lembrar o modo como

Descartes inicia o seu Traiteacute de la Lumiegravere

Propondo-me aqui a tratar da luz quero adverti-los em primeiro lugar que pode existir alguma diferenccedila entre o sentimento que temos dela ndash quer dizer a ideia que se forma em nossa imaginaccedilatildeo pela mediaccedilatildeo de nossos olhos ndash e o que existe nos objetos que produz em noacutes este sentimento ndash quer dizer o que haacute na chama ou no sol que se diz com o nome da luz [lumen] ndash Com efeito ainda que cada um normalmente se persuada de que as ideias que temos em nosso pensamento sejam inteiramente semelhantes aos objetos de que procedem natildeo vejo nenhuma razatildeo que nos assegure que seja assim mas pelo contraacuterio observo muitas experiecircncias que devem nos fazer duvidar disto (DESCARTES 1824b p 265 1824c p 14)68

No entanto teriam tais consideraccedilotildees sido resultado da

descoberta das lunetas Se pensarmos em Merleau-Ponty especialmente

como leitor de Koyreacute parece-nos que natildeo Ao menos eacute o que nos insinua o

filoacutesofo ao tratar da Natureza ldquonatildeo foram as descobertas cientiacuteficas que

provocaram a mudanccedila da ideia de Natureza Foi a mudanccedila da ideia de

Natureza que permitiu essas descobertasrdquo (M Merleau-Ponty 2000a p 10)

Ora se pensamos no olhar e no modelo do cego o que justificaria o

procedimento cartesiano Quanto a isto parece-nos que Lebrun nos daacute

algumas pistas No que diz respeito agrave figura do cego ou conforme Lebrun o

ldquomito do cegordquo podemos compreendecirc-la melhor quando a contrapomos com

68 ldquoCum in animum induxerim hic de Lumine agere in anteceſſum monitum velim differentiam obſervari poſſe inter perceptionem ſenſus quaelig in nobis datur hoc eſt inter ideam quaelig intervenientibus oculis in noſtracirc imaginatione formatur amp inter id quod eſt in objecto hanc ſenſus perceptionem in nobis efficiente ſive quod in flamma aut Sole Lumen dici ſolet Quamvis enim unusquisque ſibi vulgo perſuadeat quas in mente noſtra habemus ideas per omnia eſſe ſimles objectis agrave quibus proveniunt nullam tamen omnino rationem viacutedeo quaelig veritatem ejus evincat ſed multa e contrario experimenta occurrunt quaelig nos hac de re duacutebios redduntrdquo

97

o modo pelo qual o seacuteculo XVIII iraacute entendecirc-la Para Lebrun este mito

assim como visto por este seacuteculo poderia se inserir dentre os diversos

direcionamentos para o que constitui a figura do ldquooutrordquo ou melhor ldquoa visatildeo

pelos olhos do outrordquo (LEBRUN 2006b p 53)69 Deste modo ldquo[] a

confrontaccedilatildeo com o Outro tem o efeito de me fazer duvidar do ponto de vista

universal em que me instalarardquo (LEBRUN 2006b p 54) No que se refere ao

cego

Por conseguinte natildeo se trata mais da desconfianccedila em relaccedilatildeo aos sentidos tema favorito dos autores do seacuteculo XVII Trata-se ao contraacuterio de saber em que medida podemos criticar em nome da Razatildeo as ilusotildees da visatildeo Sabemos somente ateacute onde elas se estendem mas seraacute que natildeo nos tornamos seus prisioneiros inconscientes justamente no momento em que as denunciamos Temos consciecircncia disso mas seraacute que podemos medir em sua amplitude a importacircncia de tal fato Haveria apenas um meio de responder com certeza a essa pergunta ndash interromper totalmente nosso comeacutercio com o visiacutevel tornando-nos cegos de nascenccedila Como essa experiecircncia eacute impossiacutevel pediremos ao cego de nascenccedila que nos descreva essa noite que para ele natildeo eacute uma noite que acima de tudo nos diga como imagina o visiacutevel que nos responda agrave pergunta ldquoO que eacute ver Como se pode verrdquo (LEBRUN 2006b p 55-56)

Eacute assim que para Lebrun natildeo haveria na Lettres sur les

aveugles de Diderot o ldquoanuacutencio da psicologia cientiacuteficardquo mas ldquoa

fenomenologia da percepccedilatildeordquo ldquoaquele meacutetodo que consiste em recuar o

maacuteximo em relaccedilatildeo ao ato perceptivo em atribuir ao mundo cotidiano o

maacuteximo de estranheza para por meio dessa desrealizaccedilatildeo fictiacutecia tornar a

apreender a essecircncia da coisa percebida enquanto percebidardquo (LEBRUN

2006b p 57)70 Na Dioptrique encontramos pois um anuacutencio da psicologia

69 ldquoHaacute na literatura francesa e inglesa do seacuteculo XVIII um tema constante que se poderia chamar lsquoa visatildeo pelos olhos do outrorsquo Nas Cartas persas Montesquieu nos mostra a sociedade da Regecircncia pelos olhos de um persa e agrave pergunta friacutevola dos parisienses lsquoComo se pode ser persarsquo opotildee a pergunta lsquoComo se pode ser parisiensersquo Mais tarde eacute Voltaire quem leva um iroquecircs fictiacutecio para passear na corte de Versalhes fazendo-o descrever ingenuamente cerimocircnias que para ele natildeo tecircm sentido algum como por exemplo uma missa que se reduz a gestos mecacircnicos Eacute que sob os olhos do lsquobom selvagemrsquo nossas instituiccedilotildees se transformam em ritos burlescosrdquo 70 Deste modo para Lebrun ldquoantes de ser para Hegel o mundo destituiacutedo a filosofia foi para a Aufklaumlrung uma maneira de se tornar cego olhando o mundo visiacutevelrdquo (2006b p 61) Deste modo ldquoo mito do cego permitiu ao filoacutesofo reduzir nosso mundo a uma tecircnue aparecircncia mas dessa aparecircncia ele natildeo conseguiu se afastar tatildeo radicalmente como lhe recomendava o

98

cientiacutefica e seus princiacutepios os mesmos que no seacuteculo XVIII no caso de

Diderot seraacute posto em questatildeo haja vista que caso fosse operado ao se

iniciar em um novo campo sensorial o cego jaacute traria consigo a experiecircncia

do tato bastando-lhe ldquo[] uma inspeccedilatildeo refletida para fazer com que os

testemunhos dos dois sentidos correspondessem um ao outrordquo (LEBRUN

2006b p 58) pois

A questatildeo por conseguinte natildeo eacute de modo algum a de saber como o cego vai traduzir o mundo visiacutevel tanto para o receacutem-nascido como para o cego operado o espaccedilo jamais eacute o resultado de uma traduccedilatildeo ndash mesmo na infacircncia da visatildeo ver eacute uma coisa muito diferente de consultar um leacutexico Natildeo se tem o direito de fazer do cego operado o modelo do aprendiz da visatildeo de procurar no niacutevel do patoloacutegico a verdade da percepccedilatildeo visual o cego soacute veraacute realmente quando deixar de relacionar o espaccedilo a suas coordenadas musculares e taacuteteis quando esquecendo que foi cego puder mover-se com desembaraccedilo e sem espanto no vazio movediccedilo que se cava a sua volta (LEBRUN 2006b p 59-60)

Pensando nestas questotildees encontramos em Lebrun a indicaccedilatildeo

da inversatildeo que procuraacutevamos na mudanccedila que iraacute se estabelecer na

compreensatildeo que o seacuteculo XVII teraacute da visatildeo seja em relaccedilatildeo ao mundo

medieval seja em relaccedilatildeo ao seacuteculo XVIII No que diz respeito ao ldquocego da

Aufklaumlrungrdquo ldquochegar a ver eacute portanto passar da noite do saber conceptual

ao pleno dia da ilusatildeo refazer em sentido inverso o caminho platocircnico da

caverna ao Sol inteligiacutevelrdquo (LEBRUN 2006b p 62) Se for antes uma

mudanccedila de concepccedilatildeo que possibilita o experimento cientiacutefico e natildeo o

contraacuterio que mudanccedila ocorrera no seacuteculo XVII que levaria a fazer da luneta

uma referecircncia para a visatildeo De acordo com Lebrun no que se refere agrave

visatildeo encontramos o engendramento de duas questotildees distintas pois

Natildeo eacute por acaso que o seacuteculo XVIII indaga ldquoComo aprendemos a ver Como deixamos de ser cegosrdquo quando o leitmotiv das Meditaccedilotildees de Descartes era ldquoComo desaprender a ver Como deixar de sentir-se ofuscadordquo [] Entre a denuacutencia pura e simples da ilusatildeo da vista efetuada pelo racionalismo nesse breve momento em que diante dos olhos entreabertos de um jovem cego se esboccedila um novo mundo a

racionalismo do seacuteculo anterior O ponto de vista do cego eacute o despojado olhar do entendimento ndash ou mesmo o equivalente dessa ascese artificial que os gestatilstas denominaratildeo visatildeo reduzida e que consiste por exemplo em olhar um objeto sombreado fora de seu contexto lumino de sorte que ele nos pareccedila objetivamente escurordquo (LEBRUN 2006b p 65)

99

psicologia nasce e o estudo da visatildeo humana desliga-se da oacutetica a que a havia relegado a Dioacuteptrica de Descartes Daiacute em diante a filosofia natildeo mais se contentaraacute em diluir a aparecircncia na subjetividade e na desrazatildeo (LEBRUN 2006b p 62)

Ora o que gera pois o direcionamento ao que o cego e as

lunetas podem nos ensinar sobre a visatildeo no seacuteculo XVII eacute o ensejo de

romper com o que se consideraria o ofuscamento do olhar gerado pelos

sentidos Eacute por esta razatildeo que ldquocom o surgimento do cogito cartesiano o

olho da razatildeo adquire a certeza As ideias constituiacutedas como matemas satildeo

acessiacuteveis ao homem bem-pensante a partir de sua razatildeordquo (QUINET 2002 p

27) Assim sendo pelo que podemos notar natildeo se tem mais como vimos em

Bernardino de Sena a ideia de um Deus-Sol de uma lux divina que

cumpriria a tarefa de iluminar a razatildeo humana semelhante ao que era em

Platatildeo o Bem-Sol Pelo contraacuterio seraacute a proacutepria razatildeo que cumpriraacute a tarefa

de iluminar as ideias Eacute assim que ganha sentido a articulaccedilatildeo de uma

ciecircncia da visatildeo principalmente quando se tem em vista o caraacuteter enganador

dos sentidos A compreensatildeo do olhar natildeo se daacute mais mediante uma

vivecircncia do mundo mas nos limites do saber cientiacutefico nos horizontes de

uma ldquofisiologia da visatildeordquo e de uma ldquoteoria fiacutesico-matemaacuteticardquo Sem deixar

contudo de estar associado ao saber ldquoo olho seraacute entatildeo ligado a res cogitans

onde o eu do cogito cartesiano eacute doravante instrumentalizado porque possui

uma visatildeo instrumentalizadardquo (QUINET 2002 p 28) Poreacutem o mais curioso

eacute notar que apesar disso em razatildeo do Cogito paradoxalmente o olhar deixa

de pertencer ao campo visual

Por um lado a percepccedilatildeo visual seraacute dividida em trecircs ordens fiacutesica (a partir do oacutetico) neuroloacutegica (a transmissatildeo nervosa da retina para o ceacuterebro) e mental (a representaccedilatildeo do objeto que provoca o fenocircmeno da visatildeo) O espaccedilo apesar de descrito em funccedilatildeo da vista natildeo eacute visual propriamente dito Trata-se do espaccedilo geomeacutetrico que um cego pode ldquoverrdquo Por outro lado em suas meditaccedilotildees o homem que seguir as regras da direccedilatildeo do espiacuterito alcanccedilaraacute a certeza das coisas como Descartes com as suas E assim teraacute necessidade de ver pelo contraacuterio pois a visatildeo engana A ordem do visiacutevel eacute excluiacuteda e ao mesmo tempo tudo se torna ldquovisiacutevelrdquo pela razatildeo O pensamento eacute cego e no entanto ldquovecircrdquo Na nova divisatildeo entre subjetivo e objetivo do sujeito e do objeto da res cogitans e da res extensa natildeo haacute lugar para o olhar (QUINET 2002 p 28)

100

Logo ldquoesclarecerrdquo [lux] conforme o seacuteculo XVII natildeo eacute o mesmo

que ldquoser iluminadordquo [lumen] ao menos como se entendia na Idade Meacutedia Por

conseguinte ao identificar lux e lumen Descartes parte de uma concepccedilatildeo

diferenciada da luz que o permite ao mesmo tempo trataacute-la mediante a

fiacutesica [Traiteacute de la Lumiegravere] ndash e uma fiacutesica pautada pelos ditames da

geometria ndash como tambeacutem situaacute-la no centro de sua metafiacutesica [La

Recherche de la veacuteriteacute par la lumiegravere naturelle]

222 A intuitus mentis e o positivismo da visatildeo

Tendo por referecircncia uma cuidadosa leitura das Regulaelig

Merleau-Ponty iraacute notar o que seria o modo pelo qual Descartes a partir de

um ldquopositivismo da visatildeordquo iraacute modificar a concepccedilatildeo que ateacute entatildeo se tinha

de ldquointuiccedilatildeordquo deixando de ser como no mundo medieval uma ldquovisatildeo

beatiacuteficardquo para se tornar o instrumento da razatildeo a intuitus mentis A

novidade de Descartes da qual ele era consciente estaria justamente em

fazer essa passagem daiacute a sua advertecircncia para que o novo uso da palavra

intuiccedilatildeo natildeo deixasse ningueacutem chocado [Caeligterum ne qui moveantur vocis

intuitus novo uso] (DESCARTES 1996k p 39)71 Todavia segundo

Merleau-Ponty tendo por referecircncia a Regula IX eacute preciso se ter em conta

portanto que esta intuitus mentis ou melhor esta ldquovisatildeo do espiacuteritordquo

articula-se no pensamento cartesiano nos movimentos de uma

metamorfose do olhar da visatildeo dos olhos pois de acordo com Descartes

A maneira pela qual nos servimos de nossos olhos eacute suficiente para nos ensinar o uso da intuiccedilatildeo O que quer abraccedilar muitas coisas de uma soacute vez e com um olhar natildeo vecirc nada distintamente do mesmo modo o que por um soacute ato do pensamento quer atingir vaacuterios objetos ao mesmo tempo tem o espiacuterito confuso Ao contraacuterio os artesatildeos que se ocupam de obras delicadas e que tem o costume de dirigir atentamente o seu olhar sobre cada ponto em particular

71 ldquoCaeligterum ne qui fortegrave moveantur vocis intuitus novo uſu aliarumque quas eodem modo in ſequentibus cogar a vulgari ſignificatione removere hicircc generaliter admoneo me no plane cogitare quomodo quaeligque vocabula his vltimis temporibus fuerint in ſcholis uſurpada quia difficillium foret ijſdem nominibus vti amp penitus diverſsa ſentire ſed me tantugravem advertere quid ſingula verba Latinegrave ſignificent vt quoties propria defunt illa transferam ad meum ſenſum quaelig mihi videntur aptiſſimardquo

101

adquirem pelo uso a facilidade de ver as coisas mais iacutenfimas e mais sutis Do mesmo modo os que nunca dissipam o seu pensamento entre mil objetos diversos mas que o ocupam por completo na consideraccedilatildeo das coisas mais simples e mais faacuteceis adquirem uma grande perspicaacutecia (DESCARTES 1824d p 249)

Como nos assinala Merleau-Ponty (1996 p 228) sobre esta

incursatildeo de Descartes ldquodeliberadamente expressamente ele controacutei a

intuitus mentis sobre a visatildeo dos olhos [] eacute preciso como os artesatildeos

dirigir o olhar sobre singula puncta [cada ponto]rdquo Eacute assim que seraacute ldquo[]

clara aquela [percepccedilatildeo] que estaacute presente e manifesta a um espiacuterito atento

de modo que digamos ver claramente os objetos quando estando presentes

agem muito forte que nossos olhos estatildeo dispostos a olhaacute-losrdquo

(DESCARTES 1996i p 22)72 Mediante a intuiccedilatildeo articula-se pois a

conversatildeo do mundo visiacutevel em um mundo em si podendo assim lanccedilar

sobre ele a luz do olhar mas uma luz capaz de recortaacute-lo de fragmentaacute-lo O

que isto significa Natildeo haacute em Descartes no dizer de Merleau-Ponty uma

preocupccedilatildeo pelo fundo que envolve a figura o invoacutelucro que se encontra ao

redor do ponto recortado o que faz com que seja eliminada uma relaccedilatildeo de

envolvimento de figura e fundo capaz de trazer consigo em nossa abertura

ao mundo um ldquovisiacutevel vor aller Thesisrdquo O que isto significa

Partindo da distinccedilatildeo Descartes se volta para um ser que eacute ldquode

tal modo preciso e diferente de todos os outrosrdquo que faz com que a percepccedilatildeo

ldquoapenas compreenda em si o que aparece manifestamente agravequele que a

considera como eacute precisordquo (DESCARTES 1996i p 22)73 Por conseguinte

natildeo eacute suficiente que o ser se apresente tal como os singula puncto de modo

particularizado recortado mas eacute preciso tambeacutem que ele seja claro estando

a clareza justamente na distinccedilatildeo que nos leve a natildeo confundi-lo que nos

possibilite distingui-lo de outro ser Ao ser compreendida na condiccedilatildeo de

intuitus mentis a luz natural deve seguir o mesmo procedimento da visatildeo

dos olhos pois ldquodo mesmo modo que na visatildeo haacute mais perfeiccedilatildeo em

72 ldquoClaram voco illam quaelig menti attendenti praeligsens et aperta est sicut e aclare a nobis videri dicimus oacuteculo intuenti praeligsentia satis fortiter et aperte illum moventrdquo 73 ldquoDistinctam autem illam quaelig cum clara sit ab omnibus aliis ita sejuncta est et praeligcisa ut nihil plane aliud quam quod clarum est in se contineatrdquo

102

distinguir com cuidado uma por uma as partes de um objeto do que vecirc-los

todos juntos como uma uacutenica parterdquo (1996b p 434-435)74 A positividade

da visatildeo estaria justamente nesta capacidade de ver cada coisa por vez

sendo a ldquofaculdade positiva verdadeiramente produtorardquo como assinala

Merleau-Ponty a de ldquoconceber duas coisas completamentamente a parte

uma da outrardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 230) A intuitus mentis funda-se

pois em uma exclusatildeo tornando absoluto aquilo que a visatildeo dos olhos

comporta de modo relativo Qual a razatildeo De acordo com Merleau-Ponty

Haacute uma acies mentis [mente aguda] que se volta para as coisas [] um olhar do espiacuterito que como o olhar vai ser luz recortante isolante e vai chegar sem duacutevida natildeo a elementos que seriam adequadamente conhecidos mas a ldquocoisasrdquo [elementos] das quais estamos seguros que mesmo sendo pouco conhecidas elas o satildeo por completo portanto natildeo satildeo complexas ndash dir-se-aacute que satildeo ldquoconhecidas de sirdquo natildeo aprendemos a vecirc-las noacutes as vemos ou natildeo as vemos o trabalho eacute apenas de ldquoseparaacute-lasrdquo e ao fixar a atenccedilatildeo ter sua intuiccedilatildeo em cada uma isoladamente [singulis seorsim defixa mentis acie intuendisrdquo] (MERLEAU-PONTY 1996 p 230-231)

Deste modo opera-se no pensamento cartesiano uma reduccedilatildeo

do ldquoser visiacutevelrdquo a um ldquoconhecimento do visiacutevelrdquo estando nesta reduccedilatildeo ldquoa

definiccedilatildeo da visatildeo do espiacuteritordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 229) haja vista

que sempre haveraacute no ver uma mesma operaccedilatildeo e isto porque ldquoa luz que

opera aqui eacute a mesma para todas as naturezas como a do sol eacute a mesma

para todos os objetosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 231) Daiacute que o lugar o

espaccedilo e o movimento para Descartes natildeo chegam a constituir problema

pois o olhar retirando da relaccedilatildeo visatildeo-coisa apenas o primado da coisa em

si converte-se tatildeo-somente em uma operaccedilatildeo do espiacuterito Em outros termos

a visatildeo ldquo[] natildeo pode ser senatildeo desencarnada pura referecircncia a algo

posiccedilatildeo de um ser em tudo ou nada que eacute ou natildeo eacute para mim sem meio

um gratildeo do ser a Natureza simplesrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 233) uma

vez que se retira dela o fundo que a envolve o seu invoacutelucro fazendo com

que ela se manifeste ldquonuardquo ou antes ldquopurardquo Em suma pensando nestas

consideraccedilotildees retomando o que dissemos ateacute aqui sobre a compreensatildeo

74 ldquoUt etiam in visu major perfectio est cum singulas objecti particulas accurate distinguit quam cum omnes simul instar unius tantum advertitrdquo

103

cartesiana da visatildeo parece-nos haver nas seguintes palavras de Quinet

uma siacutentese

Trata-se da synopsis um uacutenico olhar ndash aquele que domina apenas com um golpe de vista o conjunto das ideias Para Descartes com a intuiccedilatildeo natildeo se vecirc o conjunto mas cada elemento isolado em sua simplicidade utilizando as duas principais faculdades de nosso espiacuterito a perspicaacutecia (distinccedilatildeo entre uma coisa e outra) e a sagacidade (deduccedilatildeo de uma coisa a partir da outra) O modelo de apreensatildeo da coisa que se torna ldquovisiacutevelrdquo ao espiacuterito com a operaccedilatildeo da intuiccedilatildeo eacute justamente a vista natural O olho cartesiano perspicax eacute o dos especialistas como os dos artesatildeos acostumados a dirigir atentamente seu olhar para cada ponto Com Descartes inaugura-se uma nova relaccedilatildeo sujeito-objeto ver-visto determinando uma outra concepccedilatildeo do visiacutevel e a partir daiacute como nos diz Merleau-Ponty ldquonada mais resta do mundo da analogiardquo (QUINET 2002 p 32)

E o que teria levado Descartes a este positivismo da visatildeo agrave

transfiguraccedilatildeo da visatildeo dos olhos na intuitus mentis Teraacute sido justamente o

ensejo de romper com o ldquoofuscamento da visatildeordquo tal como se justifica

tambeacutem no seacuteculo XVII o direcionamento agrave experiecircncia do cego Voltemo-

nos agrave Dioptrique Como se efetivaria na experiecircncia esta ldquoinspeccedilatildeo do

espiacuteritordquo da qual falamos Como se articularia a nossa experiecircncia do mundo

quando para poder vecirc-lo natildeo mais bastam os nossos olhos de ldquocarnerdquo A

nosso ver eacute tendo em vista estas questotildees que como salienta Quinet ldquoa

lsquocavernarsquo de Descartes eacute o proacuteprio olho Ele o compara a uma cacircmara escura

com uma uacutenica abertura diante da qual foi colocada uma lente e a uma

certa distacircncia foi estendido um lenccedilol branco sobre o qual satildeo formadas

as imagens dos objetos que estatildeo do lado de forardquo (QUINET 2002 p 30)

Por conseguinte lembrando as palavras da Dioptrique no Quinto Discurso

ldquoessa cacircmara representa o olho a abertura a pupila esta lente o cristalino

ou melhor todas as partes do olho que provocam qualquer refraccedilatildeo e esse

lenccedilol a pele interna composta pelas extremidades do nervo oacuteticordquo (QUINET

2002 p 30)

223 A similitude e o arbiacutetrio cartesiano do signo

Ora pensando talvez nestas clivagens do pensamento

cartesiano em Lrsquoœil et lrsquoesprit Merleau-Ponty nota que em Descartes natildeo

haveria uma diferenccedila radical entre conceber o conhecimento a partir da

104

imagem ou antes a partir do signo75 Fazendo assim Descartes pocircde

identificar no quadro pintado a representaccedilatildeo comparando-o ao signo

linguiacutestico Deste modo poderia caber ao Espiacuterito e somente a ele a

responsabilidade de estabelecer a semelhanccedila76 necessaacuteria uma vez

tambeacutem que por exemplo pensando na pintura ldquoeacute para Descartes uma

evidecircncia que natildeo se possam pintar senatildeo coisas existentes que a sua

existecircncia consista em serem extensas e que o desenho torne possiacutevel a

pintura tornando viaacutevel a representaccedilatildeo da extensatildeordquo (MERLEAU-PONTY

1975b p 38) Nas Meditaccedilotildees tambeacutem encontramos algumas referecircncias ao

modelo pictoacuterico Jaacute na Primeira Meditaccedilatildeo Descartes declarava

primeiramente que ldquoas coisas que nos satildeo representadas durante o sonho

satildeo quadros e pinturas que natildeo podem ser formados agrave semelhanccedila de algo

real e verdadeirordquo (DESCARTES 1973 p 168) Para ele ldquoos pintores mesmo

quando se empenham com o maior artifiacutecio em representar sereias e saacutetiros

por formas estranhas e extraordinaacuterias natildeo lhes podem todavia atribuir

formas e naturezas inteiramente novas []rdquo (DESCARTES 1973 p 168) Na

Terceira Meditaccedilatildeo encontramos uma referecircncia ao axioma da luz natural

pois ela ldquome faz conhecer evidentemente que as ideias satildeo em mim como

quadros ou imagens que podem na verdade facilmente natildeo conservar a

perfeiccedilatildeo das coisas de onde foram tiradas mas que jamais podem conter

algo de maior ou mais perfeitordquo (DESCARTES 1973 p 187)

Deste modo eacute assim que na Dioptrique seguindo o Meacutetodo

Descartes natildeo concorda com aqueles que recorrem agraves ldquoespeacutecies

intencionaisrdquo Para ele estas ideias ldquoque trabalham tanto a imaginaccedilatildeo dos

75 Conforme Descartes nas palavras de Merleau-Ponty ldquovendo que nosso pensamento pode ser facilmente excitado por um quadro ao conceber o objeto que ali estaacute pintado parece que deveria secirc-lo da mesma maneira ao conceber aqueles que tocam nossos sentidos por alguns pequenos quadros que formassem em nossa cabeccedila lugar que devemos considerar que haacute muitas outras aleacutem das imagens que podem excitar nosso pensamento como por exemplo os signos e as palavras que natildeo se assemelham em nada agraves coisas que significamrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 168) 76 Considerando que Descartes tenha abandonado a ideia de semelhanccedila poderiacuteamos nos perguntar a partir da quarta Meditaccedilatildeo acerca da consideraccedilatildeo de que fomos feitos agrave imagem e semelhanccedila de Deus Parece haver uma certa mudanccedila no pensamento cartesiano posto que a semelhanccedila apresenta-se portanto como a marca do artiacutefice impressa sobre sua obra sendo a obra o proacuteprio sinal do artiacutefice

105

Filoacutesofosrdquo (DESCARTES 1996a p 85) impediriam a existecircncia de um ponto

de distinccedilatildeo entre o objeto e sua imagem dado que o pensamento entendido

como esse intentionale seria apenas uma imagem da coisa por sua vez

entendida como esse naturale Conforme Lebrun nisto encontrariacuteamos ldquo[]

um argumento polecircmico contra a teoria escolaacutestica que explicava a visatildeo

pela impressatildeo no corpo de imagens emanadas das coisas sensiacuteveisrdquo

(LEBRUN 2006a p 63) Em particular pensamos se tratar aqui da

definiccedilatildeo de Eustache de Saint-Paul que compreendia por ldquoespeacutecie

intencionalrdquo ldquoum signo formal da coisa oposta (objectaelig) ao sentido ou uma

qualidade que remetida pelo objeto e recebida no sentido tem a potecircncia de

representar o proacuteprio objeto mesmo se ela proacutepria fosse muito pouco

perceptiacutevel pelo sentidordquo (GILSON 1913 p 98 ndash Texto 169) recebendo o

nome de ldquointencionalrdquo dado que ldquo[] o sentido tende atraveacutes dela em direccedilatildeo

ao objetordquo (GILSON 1913 p 98 ndash Texto 169) O problema desta ideia estaria

em seus desdobramentos quer dizer na certeza de que os sentidos seriam

capazes de abstrair e receber das coisas reais ldquopequenos quadrosrdquo os

mesmos que assumiriam a tarefa de excitar a alma e assim tornar possiacutevel

a percepccedilatildeo Daiacute a ideia das ldquoespeacutecies intencionaisrdquo ou mesmo os

ldquosimulacrosrdquo de Epicuro ou como diraacute Descartes ldquotodas essas pequenas

imagens que volteiam com o arrdquo (DESCARTES 1824a p 39-40) Essas

imagens que como nos explica Merleau-Ponty trariam ldquo[] para o corpo o

aspecto sensiacutevel das coisas [pois] nada mais fazem do que transferir em

termos de explicaccedilatildeo causal e de operaccedilotildees reais a presenccedila ideal da coisa

para o sujeito perceptivo que []rdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 295) por sua

vez ldquo[] eacute uma evidecircncia para a consciecircncia ingecircnuardquo (MERLEAU-PONTY

2006 p 295) Dado natildeo haver uma identidade numeacuterica entre o percebido e

o real encontrariacuteamos pois uma espeacutecie de ldquomitologia explicativardquo segundo

a qual aqueacutem de uma identidade especiacutefica haveria um movimento pelo

qual o percebido retiraria das proacuteprias coisas ldquocaracteres distintivosrdquo pelo

qual a percepccedilatildeo seria vista tatildeo-somente como um ato de ldquo[] imitaccedilatildeo ou

um desdobramento das coisas sensiacuteveis em noacutes ou como a atualizaccedilatildeo na

alma de alguma coisa que estava em potecircncia num sensiacutevel exteriorrdquo

(MERLEAU-PONTY 2006 p 295) Deste modo podemos entender o

106

direcionamento cartesiano ao que nos ensina o cego e sua bengala diante

dos objetos vendo nisto o modo como a luz eacute capaz de transmitir suas

propriedades pois como nos assinala Lebrun

O cego natildeo acredita que haja uma semelhanccedila entre as sensaccedilotildees que experimenta e os estiacutemulos fiacutesicos que as provocam Sabe que sua percepccedilatildeo limita-se a traduzir movimentos em sentimentos desfazendo dessa maneira sem dificuldade a armadilha da imaginaccedilatildeo na qual o ldquoclarividenterdquo se deixa apanhar A Dioacuteptrica de Descartes inaugura a psicofisiologia mecanicista anunciando que a clarividecircncia do entendimento estaacute na razatildeo inversa da clarividecircncia sensiacutevel (LEBRUN 2006b p 63)

A nosso ver tendo em vista estas questotildees Merleau-Ponty nota

em Descartes um abandono agrave semelhanccedila e agrave analogia77 uma vez que

ldquoestamos dispensados de compreender como eacute que a pintura das coisas no

corpo as poderia fazer sentir a alma tarefa impossiacutevel pois tendo por sua

vez a semelhanccedila desta pintura com as coisas necessidade de ser vistardquo

consequentemente ldquoser-nos-iam necessaacuterios lsquooutros olhos no ceacuterebro com

os quais pudeacutessemos aperceberrsquo e o problema da visatildeo manteacutem-se intacto

quando se estabelecem estes simulacros errantes entre as coisas e noacutesrdquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Retomando a temaacutetica da representaccedilatildeo

pictoacuterica Descartes interpreta o deslizamento da semelhanccedila da imagem

pelo arbiacutetrio do signo pois natildeo poderia aceitar a ideia de que a alma receba

passivamente as imagens mas pelo contraacuterio a partir das impressotildees ela

assumiria a tarefa de formaacute-las e interpretaacute-las Natildeo agindo por semelhanccedila

77 Para os claacutessicos a ideia de semelhanccedila conteria em si uma fonte de erros e seria incapaz de alcanccedilar as essecircncias das coisas O conhecimento se daacute por meio da compreensatildeo das causas o que significa afirmar que a razatildeo torna-se capaz de discernir a identidade e a diferenccedila no que concerne agrave essecircncia invisiacutevel das coisas por meio da ordem e da medida Conhecer eacute relacionar estabelecer um nexo causal por meio de um meacutetodo que aspira a uma universalidade A medida e a ordem satildeo os alicerces desse meacutetodo Enquanto a medida seria suficiente para determinar as identidades e as diferenccedilas a ordem estabelece-se como a responsaacutevel em apresentar o encadeamento interno e necessaacuterio entre os termos que foram medidos apoacutes uma devida divisatildeo em partes Reconhecendo este procedimento em Descartes Merleau-Ponty afirma que ldquoa semelhanccedila da coisa e da sua imagem especular natildeo eacute para ambas mais que uma denominaccedilatildeo exterior pertencente ao pensamento A relaccedilatildeo ambiacutegua de semelhanccedila eacute nas coisas uma clara relaccedilatildeo de projeccedilatildeo Um cartesiano natildeo se vecirc ao espelho ele vecirc um manequim um lsquoexteriorrsquo sobre o qual tem todas as razotildees para pensar que eacute visto pelos outros da mesma maneira mas que nem para si nem para os outros eacute uma carne A sua lsquoimagemrsquo no espelho eacute um efeito da mecacircnica das coisas se aiacute se reconhece se a acha lsquoparecidarsquo eacute o seu pensamento que tece esta ligaccedilatildeo a imagem especular nada tem delerdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 34)

107

as gravuras por exemplo ldquoexcitam o nosso pensamento a conceber como o

fazem os signos e as palavras que natildeo se parecem de maneira nenhuma

com as coisas que significamrdquo (DESCARTES 1996a p 112) A dificuldade

estaria no entanto em compreender como a coisa sensiacutevel eacute capaz de

suscitar no corpo e depois no pensamento um ldquoduplordquo ou uma ldquoimitaccedilatildeo do

realrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 294) Deste modo haacute na Dioacuteptrica como

nota Merleau-Ponty um abandono deste ldquorealismo do sensiacutevelrdquo Natildeo haacute uma

relaccedilatildeo transitiva mediante a qual as coisas sensiacuteveis seriam capazes de

imprimir sua imagem no corpo sendo a alma apenas responsaacutevel por

encontrar no final deste processo duplos sensiacuteveis semelhantes agraves coisas

reais Natildeo eacute suficiente inclusive pensa Descartes que haja uma semelhanccedila

entre os objetos percebidos e os fenocircmenos corporais uma vez que

conforme citaccedilatildeo da Dioptrique ilustrada tambeacutem por Merleau-Ponty em

Lrsquoœil et lrsquoesprit

[] Ainda que esta pintura passando assim bem no interior de nossa cabeccedila retenha sempre alguma coisa da semelhanccedila com os objetos dos quais procede natildeo devemos contudo nos persuadir [] que seja por meio dessa semelhanccedila que ela faz que os sintamos como se houvesse outros olhos em nosso ceacuterebro com os quais pudeacutessemos percebecirc-la mas que satildeo antes os movimentos pelos quais ela eacute composta que agindo imediatamente em nossa alma agrave medida que esta eacute unida ao nosso corpo satildeo escolhidos pela natureza para lhe fazer ter esses sentimentos (DESCARTES 1824a p 54 ndash Sexto Discurso)

Ora para Merleau-Ponty Descartes teria razatildeo em sua criacutetica

contra os ei1dwla contra as ldquopequenas imagensrdquo pelas quais a visatildeo seria a

entrada do koinov kosmov no i1diov kosmov e a razatildeo estaria em considerar

como ldquo[] secundaacuteria a semelhanccedila da imagem retiniana com a coisardquo

(MERLEAU-PONTY 1996 p 179) Contudo onde estaria o problema Diraacute o

filoacutesofo o problema estaria em conceber as imagens ldquo[] como Em Si em

relaccedilatildeo de causalidade conoscordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 179) uma vez

que

a) ainda seriam necessaacuterios outros olhos no ceacuterebro para vecirc-las ndash Natildeo se avanccedila um passo no problema da visatildeo dando-se duplos objetivos que natildeo satildeo [uma] abertura agrave coisa b) a semelhanccedila aliaacutes natildeo eacute realizada no quadro [A] figuraccedilatildeo eacute um caso muito particular d[a] Darstellung do ser Aqui onde ela existe natildeo eacute ela que faz a

108

abertura do quadro ao Ser Mas se natildeo haacute semelhanccedila exterior quadro-coisa natildeo haacute muito menos diferenccedila como redondo e oval quadrado e losango quer dizer [o] quadro natildeo eacute outra coisa coisa substituiacuteda signalmente da coisa A diferenccedila eacute muito mais profunda (MERLEAU-PONTY 1996 p 179)

No entanto a ldquofraquezardquo de Descartes estaria em considerar o

signo como uma ocasiatildeo adequada para se pensar o significado (MERLEAU-

PONTY 1996 p 179) Daiacute a identidade que se estabelece ao se entender

ldquopercepccedilatildeordquo e ldquovisatildeordquo do quadro como ldquopensamentordquo sendo o signo o que

suficientemente eacute capaz de ldquodiscriminarrdquo logo ldquo[] permitindo-nos

lsquorepresentarrsquo [as] coisasrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 179) Eacute o mesmo que

parece observar Merleau-Ponty ao dizer que ldquoa magia das espeacutecies

intencionais a velha ideia da semelhanccedila eficaz imposta pelos espelhos e

pelos quadros perde o seu uacuteltimo argumento se todo o poder do quadro eacute o

de um texto proposto agrave nossa leitura sem nenhuma promiscuidade entre o

vidente e o visiacutevelrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 36) Ora o que isto

significa A este respeito vejamos o que nos diz Lebrun

ldquoEntre meus pensamentosrdquo escreve Descartes ldquoalguns satildeo como a imagem das coisas (tanquam rerum imagines) e apenas a esses conveacutem propriamente o nome de ideiardquo E o proacuteprio Descartes natildeo se poupou de lembrar que essa comparaccedilatildeo natildeo deve ser tomada muito ao peacute da letra Contudo a palavra ldquoimagemrdquo designa uma semelhanccedila que deve sempre imiscuir-se entre a ideia e a coisa Ora o que entender por similitude O sentido pode ser bastante lato como indica Descartes a Burman Por que perguntava este uacuteltimo eu deveria assemelhar-me a Deus enquanto meu criador Resposta o que eacute criado por Deus deve ser ad minimum ens et substantiam et sic saltem Deo simile esse et ejus imaginem referre Uma pedra entatildeo seraacute dita imagem de Deus Resposta ldquoNatildeo tomo aqui a palavra imagem no sentido vulgar isto eacute como retrato ou pintura de uma coisa (id quod effigiam est et depictum) mas num sentido mais amplo o que possui semelhanccedila com outra coisa (id quod similitudinem cum alio habet) (LEBRUN 2006a p 434-5)

De acordo com Lebrun o que Descartes pretende eacute justamente

estabelecer uma diferenccedila ao conceber o pensamento na condiccedilatildeo de

imagem entre ideia e ldquoimagem sensiacutevelrdquo Deste modo assim como no

exemplo do cego o que se espera eacute esclarecer como se daacute a passagem de

uma semelhanccedila a um receptor questatildeo esta que a bengala do cego cumpre

bem a tarefa de responder uma vez que haveria uma proporccedilatildeo entre as

109

qualidades presentes na superfiacutecie que o cego toca com sua bengala e os

movimentos desta mesma bengala ou melhor as ldquovariedadesrdquo presentes

neste movimento Natildeo haveria pois na correspondecircncia destas etapas a

transmissatildeo de um ser real E o que ocorre De modo diverso ldquohaacute somente

codificaccedilatildeo dessa diversidade enquanto distinta de todas as outras Em

suma o movimento natildeo transmite nada daquilo que estaacute na causa ndash e eacute por

isso que ele natildeo garante nenhuma semelhanccedila ele apenas permite a uma

diversidade ser assinaladardquo (LEBRUN 2006a p 435) Logo constituindo-se

como uma ldquofiltragem diferencial das qualidades do objeto a sinalizaccedilatildeo natildeo

imprime nenhuma espeacutecie de imagem Portanto ela natildeo fornece para falar

claramente nenhum conhecimentordquo (LEBRUN 2006a p 435)

Sendo assim no intuito de combater a tendecircncia do senso

comum em converter esta codificaccedilatildeo em representaccedilatildeo para Descartes

ldquo[] pode ser uacutetil comparar o conhecimento a um quadro apenas para

distingui-lo de forma mais clara da informaccedilatildeo fornecida pelo signordquo

(LEBRUN 2006a p 435) Em consequecircncia disto ldquoa ideia como imago

mesmo que carente em relaccedilatildeo ao modelo natildeo deixa de ser lsquoa proacutepria coisa

enquanto estaacute no espiacuteritorsquo natildeo deixa de ser o contraacuterio de um signordquo

(LEBRUN 2006a p 436) Daiacute a importacircncia de natildeo nos equivocarmos com

aquilo que pretende Descartes ao fazer uso da ldquometaacutefora pictoacutericardquo uma vez

que ldquoenquanto o signo me indica simplesmente a presenccedila de uma diferenccedila

e me informa que estou lidando com um conteuacutedo = X a ideia por seu lado

mostra-me positivamente uma natureza mostra-me que ela eacute relativa a este

conteuacutedo e natildeo agravequele outrordquo (LEBRUN 2006a p 436) Daiacute que ela seja

ldquo[] ldquoquadrordquo pois nela posso ver por que ela eacute ideia desse conteuacutedo []

(LEBRUN 2006a p 436)

Ora onde estariam os limites desse modo cartesiano de

compreender a similitude Primeiramente como nos indicaraacute Leibniz o seu

erro estaria na oposiccedilatildeo que estabelece entre a ldquoinformaccedilatildeo psicofisioloacutegicardquo

e a ldquoinformaccedilatildeo teoacutericardquo entre o ldquosignordquo e o ldquoquadrordquo haja vista que ldquo[] o

senso comum ao contraacuterio tem razatildeo quando atribui uma funccedilatildeo teoacuterica agrave

sensaccedilatildeo e natildeo reduz as lsquoqualidades secundaacuteriasrsquo a sinais que nada nos

informariam sobre a natureza do emissorrdquo (LEBRUN 2006a p 437) Logo

110

no cartesianismo o problema estaria em ter subtraiacutedo a regra pela qual ldquo[]

soacute aparentemente as ideias sensiacuteveis lsquodiferemrsquo do movimento que elas

exprimem []rdquo(LEBRUN 2006a p 442) reduzindo-se agrave antinomia entre a

ldquoideia-quadrordquo e a sinalizaccedilatildeo fazendo com que se abandone a ldquosimilituderdquo

tatildeo-somente por natildeo ter visto a relaccedilatildeo presente nesta aparente disjunccedilatildeo

Por conseguinte o equiacutevoco cartesiano estaria tambeacutem em ter tomado como

referecircncia especialmente na Dioptrique a ldquodeformaccedilatildeo perceptivardquo que nos

impossibilitaria de mantermos uma fidelidade agrave coisa representada

concluindo disto a impossibilidade de que permaneccedila algo na passagem do

inteligiacutevel ao sensiacutevel Daiacute a censura de Merleau-Ponty (MERLEAU-PONTY

1996 p 179-180)

Haacute o verdadeiro em si (ciacuterculo) e o signo para noacutes (oval) e o pensamento reconstitui o em si a partir do signo para noacutes Mas ndash como ele explica aliaacutes ndash os signos natildeo nos satildeo dados Desloca-se a atenccedilatildeo d[a] dimensatildeo do corpo agrave [das] coisas em seu prolongamento d[a] percepccedilatildeo da matildeo agrave percepccedilatildeo da coisa encerrada nela ndash A percepccedilatildeo do corpo eacute percepccedilatildeo do mundo ndash O espaccedilo do corpo eacute matriz de todo espaccedilo ndash Ora este espaccedilo do corpo natildeo eacute pensamento a alma natildeo eacute um piloto pensando seu navio mas habitante do corpo portanto do mundo A anaacutelise em termos de pensamento [eacute] anaacutelise em parte dupla eacute como se nosso corpo tivesse sido instituiacutedo por um tal Pensamento ndash O que haacute eacute [a] causalidade ndash que produz [uma] aparecircncia maacutegica de adaptaccedilatildeo por fora porque o corpo foi disposto assim pel[o] Pensamento do Todo ndash Visatildeo disjunta em Pensamento e Causalidade (MERLEAU-PONTY 1996 p 179-180)

Para Merleau-Ponty o problema estaacute em dispor o ldquoquadrordquo

diante do pensamento de Deus ou antes a transposiccedilatildeo para Deus de uma

dualidade que existe em noacutes a saber entendimento e vontade78 Daiacute a

78 Deste modo mutatis mutandis a criacutetica de Merleau-Ponty se aproxima daquela feita por Leibniz ldquoNatildeo eacute necessaacuterio que aquilo que concebemos das coisas fora de noacutes seja semelhante a elas mas que as exprima como uma elipse exprime o ciacuterculo visto de traacutes O criteacuterio da lsquosimilitudersquo eacute pois deslocado natildeo mais reside na fidelidade a um original mas no retorno de um invariante Trata-se entatildeo efetivamente do mesmo conceito A questatildeo se coloca Comparemos por exemplo o ciacuterculo a suas projeccedilotildees elipse paraacutebola hipeacuterbole Nada parece tatildeo diferente nem tatildeo dessemelhante quanto essas figuras e no entanto haacute uma relaccedilatildeo exata de cada ponto a cada ponto Mas essa relaccedilatildeo natildeo tem mais nada que ver com aquela da coacutepia ao original enquanto o original eacute conteuacutedo que precede e domina a coacutepia o invariante por sua vez soacute aparece no encadeamento das variaccedilotildees e somente atraveacutes delas As variaccedilotildees natildeo o repetem propriamente falando ele natildeo eacute uma espeacutecie de modelo primitivo cujo vestiacutegio pode ser sempre encontrado Falando dessa forma nos

111

negaccedilatildeo em suma de natildeo se entender o olhar como uma ldquoabertura ao

visiacutevelrdquo ao ldquoser do visiacutevelrdquo como se expressa na citaccedilatildeo que o filoacutesofo faz do

Traiteacute de lrsquoHomme

Os objetos exteriores que soacute por sua presenccedila agem contra os oacutergatildeos dos seus sentidos e que assim determinam a maacutequina a se mover de diversas maneiras conforme a disposiccedilatildeo das partes de seu ceacuterebro satildeo como estranhos que entrando em algumas dessas fontes causam inconscientemente os movimentos que nela se fazem em sua presenccedila pois natildeo podem caminhar aiacute a natildeo ser sobre alguns canteiros de tal maneira dispostos que por exemplo se eles se aproximam de uma Diana que se banha eles a faratildeo esconder-se em algum caniccedilo se passarem mais adiante para persegui-la faratildeo vir contra si um Netuno que os ameaccedilaraacute com seu tridente ou se forem para algum outro lado faratildeo sair um monstro marinho que lhes vomitaraacute aacutegua contra o rosto ou coisas semelhantes conforme o capricho dos engenheiros que a fabricaram (DESCARTES 1996m p 131 ndash IIa Obj)

Figura-se aqui a imagem do autocircmato cujas respostas de seus

sentidos se datildeo em consonacircncia com uma determinada situaccedilatildeo natildeo sendo

esta relaccedilatildeo pensada por eles tarefa que seraacute cumprida por um

ldquoengenheirordquo Nisto Merleau-Ponty encontra uma comparaccedilatildeo com a

compreensatildeo cartesiana da visatildeo pois ldquodo mesmo modo [as] coisas que

agem sobre meus sentidos suscitam [uma] visatildeo na relaccedilatildeo dos sentidos com

elasrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 182) Natildeo haveria no entanto uma

relaccedilatildeo operante sendo nosso corpo uma consequecircncia do pensamento de

Deus sendo possiacutevel pois agrave ldquoinclinaccedilatildeo naturalrdquo perder-se no labirinto das

ilusotildees Igualmente ao se considerar uma homogeneidade entre uma

ldquopercepccedilatildeo verdadeirardquo e a ldquoilusatildeordquo natildeo haveria uma visatildeo do mundo sendo

a ldquomagia naturalrdquo da Perpectiva na verdade o Grande Enganador

confinando-nos consequentemente agrave solidatildeo ldquoeu estou confinado em

minha natureza e unicamente por Deus em acordo com o mundo A magia

perceptiva [eacute] reduzida agrave identidade em Deus de identidade e vontade

corpo alma lsquofinalizadarsquordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 182)

livramos das metaacuteforas intuitivas Ora o invariante designa justamente uma correspondecircncia tatildeo ampla ndash entre dois conteuacutedos entre duas seacuteries ndash que uma simples inspeccedilatildeo das imagens natildeo poderia deixaacute-la suporrdquo (LEBRUN 2006b p 440)

112

Da sua parte mais proacuteximo da filosofia de Merleau-Ponty o

intento de Leibniz ao natildeo identificar ldquoimitaccedilatildeordquo e ldquosemelhanccedilardquo

diferentemente de Descartes seria o de ldquo[] reabilitar a lsquofilosofia ordinaacuteria

que ensina a semelhanccedila de nossas sensaccedilotildees com os traccedilos dos objetosrsquordquo

(LEBRUN 2006b p 437) demonstrando ter sido um dos ldquograndes delitosrdquo

do pensamento ldquoclaro e distintordquo a ldquo[] propensatildeo que ele nos incute a

resignarmo-nos prematuramente com a ideia de uma codificaccedilatildeo sem que

se averiguacutee se o representante natildeo seria muito mais do que um signo de

reconhecimento cocircmodordquo (LEBRUN 2006b p 442) Como diraacute Lebrun a

partir da criacutetica de Leibniz a Descartes

Se o sensiacutevel eacute da mesma natureza que o inteligiacutevel eacute porque nenhum signo no limite eacute signo de instituiccedilatildeo ou melhor eacute porque desaparece a fronteira entre signos naturais e signos de instituiccedilatildeo substitutos que mostram e substitutos que dissimulam a razatildeo de sua relaccedilatildeo com a coisa Onde quer que seja toda representaccedilatildeo eacute fundada em razatildeo E vai-se contra essa universalidade do princiacutepio de razatildeo sempre que se considera como um substituto da coisa aquilo que eacute a proacutepria coisa sob um outro aspecto ndash sempre que se imagina tratar-se de um iacutendice aquilo que eacute ainda e sempre somente um dos perfis da coisa Ora eacute esse erro que a percepccedilatildeo irresistivelmente nos induz a cometer escondendo de noacutes os recursos da fina ldquosemelhanccedilardquo da verdadeira ldquosemelhanccedilardquo (LEBRUN 2006b p 444)79

Assim sendo natildeo haveria sentido a generalizaccedilatildeo equivocada

segundo a qual ldquoestar representadordquo seria o mesmo que ldquoestar expostordquo quer

seja diante da vista quer seja diante do entendimento o que excluiria a

compreensatildeo de uma representaccedilatildeo que signifique antes um outro modo de

estar presente A nosso ver estas consideraccedilotildees de Leibniz mutatis

mutandis como jaacute indicamos se harmonizam com o pensamento de

Merleau-Ponty Deste modo natildeo eacute gratuita em suas Notes de cours a criacutetica

79 Notamos tambeacutem em La Prose du Monde ao tratar da linguagem uma certa aproximaccedilatildeo de Merleau-Ponty desta criacutetica leibniziana mediante no entanto ao que ele iraacute denominar na ldquorelaccedilatildeo viva dos sujeitos falantesrdquo os limites e equiacutevocos de uma uma supremacia do ldquoenunciadordquo e do ldquoindicativordquo ldquoo que mascara a relaccedilatildeo viva dos sujeitos falantes eacute que se toma sempre por modelo da fala o enunciado ou o indicativo e faz-se isso porque se acredita que fora dos enunciados natildeo haacute senatildeo balbucios desrazatildeo Eacute esquecer tudo o que haacute de taacutecito de natildeo formulado de natildeo tematizado nos enunciados da ciecircncia que contribui para determinar seu sentido e que justamente oferece agrave ciecircncia de amanhatilde seu campo de investigaccedilatildeo (MERLEAU-PONTY 2002a)

113

a uma compreensatildeo da figuraccedilatildeo que se decirc como um caso particular da

Darstellung pois ao se legitimar o que seria uma espeacutecie de ocasionalismo

presente em Descartes o que temos eacute uma representaccedilatildeo entendida como

uma ldquoclasse restritivardquo da exhibitio ou seja da Darstellung o que nos leva

forccedilosamente ldquo[] a distinguir duas regiotildees o que eacute apresentaccedilatildeo da proacutepria

coisa e o que eacute indicaccedilatildeo por substituiccedilatildeo Essa reparticcedilatildeo entatildeo parece

impor-se ao naturalismordquo (LEBRUN 2006b p 445) pouco nos importando no

caso de Descartes que esta exhibitio ldquoseja confiada agrave ideia clara e distintardquo

(LEBRUN 2006b p 445) pois a imago acabaria sendo justamente a medida

do saber Em contraposiccedilatildeo como nos diz Lebrun quando natildeo mais

reduzimos a ldquosimilituderdquo ao ldquomodelo da semelhanccedila imaginativardquo

[] a palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo adquire toda a sua forccedila se por ldquoquadrordquo se decide entender aquilo que Merleau-Ponty entende na qualidade de neoleibniziano ldquoUm conjunto organizado que eacute fechado mas que estranhamente eacute representativo de todo o resto possui seus siacutembolos seus equivalentes para tudo o que ele natildeo eacute A pintura para o espaccedilo por exemplordquo Nesse ponto o que ainda pode significar verdadeiramente representaccedilatildeo [] Natildeo tanto um a priori do conhecimento como a certeza de que estaremos sempre em terras conhecidas Entendamos por isso ao mesmo tempo um lugar de onde esteja excluiacuteda a expatriaccedilatildeo ndash um lugar onde todo signo exprima por assim dizer a natureza daquilo que eacute sinalizado (LEBRUN 2006b p 447 448-9)

224 Caminhos de desconstruccedilatildeo a reabilitaccedilatildeo do sensiacutevel e o enigma do olhar 2241 A descorberta da afetividade das cores

Ao procurar romper com o modo cartesiano de encarar o

ldquosensiacutevelrdquo o que nos diria Merleau-Ponty da relativizaccedilatildeo da cor como

qualidade secundaacuteria em vista do desenho e da forma dos objetos contida

nas gravuras tal como se faz na Dioptrique O que o filoacutesofo nos diria do

gosto cartesiano pelos talhos-doces Ora em Lrsquoœil et lrsquoesprit encontramos

algumas respostas

Mas o que agrada Descartes nos talhos-doces eacute conservarem estes a forma dos objetos ou pelo menos nos oferecerem dela sinais suficientes Eles nos datildeo uma apresentaccedilatildeo do objeto pelo seu exterior ou envoltoacuterio Se houvesse examinado esta outra e mais profunda abertura agraves coisas que as qualidades segundas nos

114

proporcionam notadamente a cor como natildeo haacute relaccedilatildeo regulada ou projetiva entre elas e as propriedades verdadeiras das coisas e como no entanto a mensagem delas eacute compreendida por noacutes Descartes ter-se-ia achado diante do problema de uma universalidade e de uma abertura-agraves-coisas sem conceito ter-se-ia visto obrigado a indagar como o murmuacuterio indeciso das cores pode apresentar-nos coisas florestas tempestades enfim o mundo e talvez a integrar a perspectiva como caso particular num poder ontoloacutegico mais amplo Mas para ele eacute fora de duacutevida que a cor eacute ornamento coloraccedilatildeo que todo o poder da pintura assenta no poder do desenho e o poder do desenho na relaccedilatildeo regulada que existe entre ele e o espaccedilo em si tal como o ensina a projeccedilatildeo em perspectiva (MERLEAU-PONTY 1975b p 96)

Destas consideraccedilotildees notamos que o desmerecimento

cartesiano da cor se daacute justamente pela recusa em compreender a visatildeo

como uma abertura ao mundo Lembremo-nos de que jaacute na Pheacutenomeacutenologie

de la perception ao falar do sentir Merleau-Ponty inclusive nos salientava

dos ldquovalores motrizesrdquo presentes na experiecircncia da cor levando-nos deste

modo a pensar juntamente com este trecho de Lrsquoœil et lrsquoesprit naquilo que

segundo Villela-Petit seria a explicitaccedilatildeo presente no filoacutesofo de uma

ldquoafetividade das coresrdquo e isto ldquono momento originaacuterio da experiecircncia em que

o que se daacute nela eacute em primeiro lugar aquilo que em meio ao afluxo

incessante do mundo vem assenta em mim e me afeta tenta responder e

lhe corresponder a atividade picturalrdquo (VILLELA-PETIT 1995 p 197) No

texto de 1945 especialmente a partir dos trabalhos de Goldstein e

Rosenthal o filoacutesofo jaacute demonstrava a busca pelo que em seu uacuteltimo texto

publicado mediante sua criacutetica agrave ontologia cartesiana teria sido a

contribuiccedilatildeo da ciecircncia moderna ao lado dos trabalhos de Kandinsky a um

ldquoalcance ontoloacutegico da corrdquo ao menos podendo ser ela ldquo[] tomada como

remetendo agrave solidariedade essencial do sentir e do se mover []rdquo (VILLELA-

PETIT 1995 p 201) Como nos dizia o filoacutesofo

Soacute se compreende a significaccedilatildeo motora das cores se elas deixam de ser estados fechados sobre si mesmos ou qualidades indescritiacuteveis oferecidas agrave constataccedilatildeo de um sujeito pensante se elas atingem em mim uma certa montagem geral pela qual sou adaptado ao mundo se elas me convidam a uma nova maneira do avaliar e se por outro lado a motricidade deixa de ser a simples consciecircncia de minhas mudanccedilas de lugar presentes ou futuras para tornar-se a funccedilatildeo que a cada momento estabelece meus padrotildees de grandeza a amplitude variaacutevel de meu ser no mundo O azul eacute aquilo que solicita de mim certa maneira de olhar aquilo que se deixa apalpar por um

115

movimento definido de meu olhar Ele eacute um certo campo ou uma certa atmosfera oferecida agrave potecircncia de meus olhos e de todo meu corpo (MERLEAU-PONTY 1999 p 284)

Dirigindo-se agrave ciecircncia Merleau-Ponty jaacute tinha concluiacutedo que ao

contraacuterio de ser um espetaacuteculo objetivo ldquo[] a qualidade deixa-se

reconhecer por um tipo de comportamento que a visa em sua essecircncia e eacute

por isso que a partir do momento em que meu corpo adota a atitude do

azul eu obtenho uma quase presenccedilardquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 285)

Por conseguinte ldquoo sujeito da sensaccedilatildeo natildeo eacute nem um pensador que nota

uma qualidade nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela

eacute uma potecircncia que co-nasce em um certo meio de existecircncia ou se

sincroniza com elerdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 285) Ao falar da cor na

Pheacutenomeacutenologie de la perception o filoacutesofo tem em vista de modo especial

defender a ideia de que ldquotoda sensaccedilatildeo pertence a um certo campordquo

(MERLEAU-PONTY 1999 p 292) sendo pois a visatildeo ldquo[] um pensamento

sujeito a um certo campo e eacute isso que chamamos de um sentidordquo (MERLEAU-

PONTY 1999 p 292) haja vista que

Quando digo que tenho sentidos e que eles me fazem ter acesso ao mundo natildeo sou viacutetima de uma confusatildeo natildeo misturo o pensamento causal e a reflexatildeo apenas exprimo esta verdade que se impotildee a uma reflexatildeo integral que sou capaz por conaturalidade de encontrar um sentido para certos aspectos do ser sem que eu mesmo o tenha dado a eles por uma operaccedilatildeo constituinte (MERLEAU-PONTY 1999 p 292)

A compreensatildeo merleau-pontiana da cor por sua vez desde os

primeiros trabalhos encontra-se simetricamente oposta ao modo como

Descartes iraacute encaraacute-la Eacute assim que especialmente em Le Visible et

lrsquoInvisible torna-se possiacutevel entrever no tratamento da cor o que seria uma

espeacutecie de ldquotopologia do sensiacutevelrdquo que a nosso ver explicita tambeacutem uma

espeacutecie de ldquotopologia do imaginaacuteriordquo (VILLELA-PETIT 1995 p 209) uma vez

que ldquoa cor eacute aliaacutes variante em uma outra dimensatildeo de variaccedilatildeo a de suas

relaccedilotildees com a vizinhanccedila []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 129) Daiacute a

compreensatildeo do vermelho que eacute comparado por Claudel ao azul do mar ao

dizer que ldquocerto azul do mar eacute tatildeo azul que somente o sangue eacute mais

116

vermelhordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 129) Para o filoacutesofo ldquoeste vermelho eacute

o que se liga do seu lugar com outros vermelhos em volta dele com os

quais forma uma constelaccedilatildeo ou com outras cores que domina ou que o

dominam que atrai ou que o atraem que afasta ou que o afastamrdquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 129) sendo em suma ldquo[] uma espeacutecie de noacute

na trama do simultacircneo e do sucessivordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 129)

ou antes ldquouma concreccedilatildeo de visibilidade natildeo um aacutetomordquo (MERLEAU-

PONTY 1992 p 129) Por conseguinte segundo Merleau-Ponty

Com mais razatildeo a roupa vermelha liga-se com todas as suas fibras ao tecido do visiacutevel e por ele a um tecido de ser invisiacutevel Pontuaccedilatildeo no campo das coisas vermelhas que compreende as telhas dos tetos a bandeirola dos guardas das estradas de ferro a bandeira da Revoluccedilatildeo alguns terrenos perto de Aix ou de Madagascar ela tambeacutem o eacute no campo das roupas vermelhas que compreende aleacutem dos vestidos das mulheres as becas dos professores e dos advogados-gerais os mantos dos bispos como tambeacutem no dos adornos e dos uniformes E seu vermelho natildeo eacute precisamente o mesmo conforme apareccedila numa constelaccedilatildeo ou noutra conforme nela participa a pura essecircncia da Revoluccedilatildeo de 1917 ou a do eterno feminino ou do promotor puacuteblico ou das ciganas vestidas agrave hussarda que haacute vinte e cinco anos reinavam num restaurante dos Campos Eliacutesios Certo vermelho tambeacutem eacute um foacutessil retirado do fundo de mundos imaginaacuterios (MERLEAU-PONTY 1992 p 129)

Para o filoacutesofo natildeo eacute possiacutevel perceber uma ldquocor nuardquo tal como

se pretende a visatildeo cartesiana entendida como transmissatildeo de movimento

(MERLEAU-PONTY 1996 p 237) vista como ldquoqualidade secundaacuteriardquo

mesmo se a procuraacutessemos tal como se mostra em cada uma de suas

exibiccedilotildees dado ela natildeo ser assim como todo visiacutevel em geral ldquo[] um

pedaccedilo duro indivisiacutevel oferecido inteiramente nu a uma visatildeo que soacute

poderia ser total ou nula []rdquo Pelo contraacuterio o que se daacute eacute uma espeacutecie de

estreitamento de horizontes sempre abertos tanto exteriores como

interiores ou antes

[] algo que vem tocar docemente fazendo ressoar agrave distacircncia diversas regiotildees do mundo colorido ou visiacutevel certa diferenciaccedilatildeo uma modulaccedilatildeo efecircmera desse mundo sendo portanto menos cor ou coisa do que diferenccedila entre as coisas e as cores cristalizaccedilatildeo momentacircnea do ser colorido ou da visibilidade Entre as cores e os pretensos visiacuteveis encontra-se o tecido que os duplica sustenta alimenta e que natildeo eacute coisa mas possibilidade latecircncia e carne das coisas (MERLEAU-PONTY 1992 p 129-130)

117

Pensando nestas questotildees Merleau-Ponty procura nos advertir

de que ldquoo que haacute de indefiniacutevel no quale na cor nada mais eacute que uma

maneira breve peremptoacuteria de produzir num uacutenico tom de ser visotildees

passadas visotildees vindouras e aos cachosrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 132)

Deste modo a cor eacute natildeo soacute sentida mas habitada pelo olhar fazendo com

que aquele que a sente e a habita seja capaz de sentir ldquo[] tudo o que de

fora se assemelha de sorte que preso no tecido das coisas o atrai

inteiramente o incorpora e pelo mesmo movimento comunica agraves coisas

sobre as quais se fecha []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 132) portanto

ldquo[] essa identidade sem superposiccedilatildeo essa diferenccedila sem contradiccedilatildeo essa

distacircncia do interior e do exterior que constituem seu segredo natalrdquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 132) Natildeo haacute pois uma cor absoluta tal como

jaacute ensinava a Pheacutenomeacutenologie de la perception ao falar de um vermelho que

ldquo[] natildeo seria literalmente o mesmo se natildeo fosse o lsquovermelho lanosorsquo de um

tapeterdquo posto que a ldquoanaacutelise descobre portanto em cada ponto

significaccedilotildees que a habitamrdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 25 o grifo eacute

nosso) O que isto significa Como iraacute acentuar Le visible et lrsquoinvisible

proacuteximo ao texto de 1945 a impossibilidade de se crer que as cores sejam os

ldquorelevos taacuteteisrdquo de um outro ser Talvez tal compreensatildeo se efetue quando

partimos do ensejo de obter uma ldquoideiardquo uma ldquoimagemrdquo ou uma

ldquorepresentaccedilatildeordquo mas quando o que se tenciona eacute uma ldquoexperiecircncia

eminenterdquo diraacute o filoacutesofo ldquo[] basta que eu contemple uma paisagem que

fale dela com algueacutem entatildeo graccedilas agrave operaccedilatildeo concordante de seu corpo

com o meu o que vejo passa para ele este verde individual da pradaria sob

meus olhos invade-lhe a visatildeo sem abandonar a minhardquo (MERLEAU-PONTY

1992 p 138) Deste modo ldquoreconheccedilo em meu verde o seu verde como de

repente o guarda alfandegaacuterio reconhece no passageiro o homem cujos

sinais lhe foram fornecidosrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 138) Merleau-

Ponty nos apresenta a cor especialmente em seus uacuteltimos trabalhos a

partir do que seria uma ldquodimensionalidaderdquo do Ser Daiacute sua criacutetica a

Descartes pois cada cor diraacute uma de suas Notes seria semelhante a uma

nota musical que embora sendo a mesma possa ser tocada no ldquocampo de

outro tomrdquo ou seja a ldquomesmardquo ldquo[] tornada aquela no tom da qual estaacute

118

escrita uma melodiardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 202) Natildeo compreender

isso eacute o mesmo que se esquecer de que como diria Claudel (MERLEAU-

PONTY 1992 p 202) nas palavras de Merleau-Ponty ldquoo universal natildeo existe

acima mas abaixordquo logo

Cada ldquosentidordquo eacute um ldquomundordquo i e absolutamente incomunicaacutevel para os outros sentidos e no entanto constroacutei um algo que pela sua estrutura de imediato se abre para o mundo dos outros sentidos e com eles constitui um uacutenico Ser A sensorialidade por ex uma cor o amarelo ultrapassa-se a si mesma desde que se torna uma cor tem por conseguinte de per si uma funccedilatildeo ontoloacutegica torna-se apta a representar todas as coisas (como as gravuras de talhe-doce IV Discurso da Dioptrique) Num uacutenico movimento impotildee-se como particular e cessa de ser visiacutevel como particular O ldquoMundordquo eacute este conjunto onde cada ldquoparterdquo quando a tomamos por si mesma abre de repente dimensotildees ilimitadas ndash torna-se parte total (MERLEAU-PONTY 1992 p 202)

Ao contrapor-se ao modo pelo qual Descartes se aproxima da cor

como tambeacutem ao nos insinuar uma ldquoafetividade das coresrdquo e uma ldquotopologia

do sensiacutevelrdquo entrelaccedilada a uma espeacutecie de ldquotopologia do imaginaacuteriordquo o que

Merleau-Ponty tem em vista eacute a desconstruccedilatildeo da pretensatildeo cartesiana em

tentar diluir e resolver de uma vez por todas o enigma da visatildeo Para

Merleau-Ponty ldquoo enigma da visatildeo natildeo foi eliminado ele foi remetido do

lsquopensamento de verrsquo para a visatildeo em atordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 45)

Ao seguir o modelo do tato Descartes esquece-se da luz80 que natildeo agindo

sobre os nossos olhos segundo leis da fiacutesica vemos diante de noacutes Eacute o que

encontramos na Dioptrique quando reduzindo a luz aos seus movimentos

Descartes toma como modelo os movimentos de uma bola que passando

pelo ar ldquoencontra corpos moles duros ou liacutequidosrdquo capazes

consequentemente de paraacute-la amortececirc-la ou remetecirc-la para um outro lado

(DESCARTES 1996a p 90) Para Descartes os movimentos da luz

80 Para Descartes o cego ignorando o fenocircmeno puramente subjetivo da cor encontrar-se-ia liberado para receber a verdade da luz Assim procurando defender a ideia da identidade da luz que vemos e do bastatildeo do cego Descartes nos diz que ldquoo que pode levar-nos no iniacutecio a considerar estranho que esta luz pudesse estender seus raios em um instante desde o Sol ateacute noacutes eacute o fato de que vocecirc sabe que a accedilatildeo da qual percebe-se uma finalidade no bastatildeo passa assim em um instante de um a outro e que deveria passar do mesmo jeito mesmo que haja uma distacircncia maior que haacute de fato desde a terra ateacute os ceacuteusrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 45)

119

seguiriam estas mesmas leis pois ldquoconsidere enfim que os raios se

desviam tambeacutem do mesmo modo do que foi dito de uma bola quando

encontram obliquamente a superfiacutecie de um corpo transparente pelo qual

eles penetram mais ou menos facilmente do que aquele de onde vieram e

este modo de se desviar se chama neles refraccedilatildeordquo (DESCARTES 1996a p

92)

Ora se a luz se reduz agrave refraccedilatildeo de seus raios eacute o que parece

perguntar Merleau-Ponty ldquopor que continuar a sonhar a propoacutesito dos

reflexos a propoacutesito dos espelhos Estes duplos irreais satildeo uma variedade

das coisas satildeo efeitos reais como o ricochete de uma balardquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 43) Assim ldquose o reflexo se parece com a coisa mesma tal

acontece porque ele age sobre os olhos aproximadamente como o faria uma

coisa O reflexo engana o olho engendra uma percepccedilatildeo sem objeto mas

que natildeo afeta a nossa ideia do mundordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 43)

pois ldquono mundo haacute a coisa mesma e fora dela haacute essa outra coisa que eacute

um raio refletido dando-se o caso de ter com a primeira uma

correspondecircncia regrada dois indiviacuteduos portanto ligados pela

causalidaderdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 43)

2242 Os limites da noccedilatildeo claacutessica de perspectiva

Do mesmo modo poderiacuteamos encontrar a criacutetica de Merleau-

Ponty ao elogio cartesiano da noccedilatildeo claacutessica de perspectiva81 como salienta

a Dioptrique tal como era entendida pelo mundo renascentista Na

Renascenccedila as leis da perspectiva eram compreendidas como a vitoacuteria da

racionalidade humana e da objetividade cientiacutefica sobre a visatildeo natural que

era vista como primitiva Sendo originaacuteria do latim (perspicere olhar atraveacutes

de ver bem ver perfeitamente) a perspectiva daacute uma ilusatildeo tridimensional

a imagem de um mundo perfeitamente bem medido e formado por espaccedilos

81 Na pintura contemporacircnea em contrapartida especialmente com Ceacutezanne a perspectiva ganha outro perfil sendo encarada como estranha e paradoxal Por fim com uma arte abstrata a ldquoteacutecnica sagradardquo da Renascenccedila cedeu lugar agraves invenccedilotildees e agraves criaccedilotildees proacuteprias de cada artista

120

equidistantes Daiacute o elogio de Descartes uma vez que na pespectiva haveria

uma visatildeo mais apurada que romperia com as confusotildees da percepccedilatildeo

natural constituindo-se pois como uma correta interpretaccedilatildeo tal como

faria uma visatildeo do espiacuterito uma intuitus mentis

[] De acordo com as regras da perspectiva frequentemente elas representam melhor ciacuterculos por ovais que por outros ciacuterculos e quadrados por losangos que por outros quadrados e assim todas as outras figuras de modo que frequentemente para serem mais perfeitas em qualidade de imagens e melhor representar um objeto natildeo devem se lhe assemelhar (DESCARTES 2007 p 172 1996a p 114)82

Ora segundo a teoria claacutessica a profundidade apresentava-se

como uma largura considerada de perfil desprovida de qualquer

originalidade pois se aceitava a ideia de que ela se manifestava pela nossa

capacidade de decifrar a grandeza aparente dos objetos e por nossos olhos

seguir uma lei de convergecircncia que se efetivava quando lhes dirigiacuteamos a

nossa atenccedilatildeo Todavia para que seja possiacutevel pensar a profundidade como

largura teriacuteamos que aceitar a ideia de uma certa ubiquidade da visatildeo o

que se tornaria problemaacutetico tanto para o pensamento reflexivo como para o

empirismo Neste sentido segundo Merleau-Ponty a temaacutetica da

profundidade nos convida a abandonar os nossos preacutejugeacutes acerca do mundo

e a retornar agrave nossa experiecircncia Eacute assim que podemos encontrar na

profundidade uma dimensatildeo existencial O que isto significa Para o

filoacutesofo a profundidade apresenta um laccedilo indissoluacutevel entre o vidente e o

visiacutevel Buscando uma profundidade ainda natildeo objetivada portanto natildeo

fundada na concepccedilatildeo renascentista de perspectiva Merleau-Ponty desejava

ultrapassar as relaccedilotildees estabelecidas entre sujeito e objeto Para ele a ideia

de que o mundo seja um espelho diante do qual o nosso corpo se encontra

fazendo com que a imagem que se forma no corpo-tela seja como no

82 ldquoAtque etiam hanc similitudinem valde esse imperfectam cugravem in superficie plana corpora diversimodegrave surgentia aut subsidentia exhibeant et secundugravem regulas scenographiaelig meliugraves saepe circulos repraeligsentent per alios ellipses quagravem per alios circulos et quadrata per rhombos quagravem per alia quadrata et ita de caeteris adeograve ut saeligpius ad absolutam imaginis perfectionem et adumbrationem objecti accuratam dissimilitudo in imagine requiraturrdquo

121

espelho proporcional ao espaccedilo vazio entre o corpo e o objeto apresentava-

se confusa Pensando no modo como isto se articula na pintura por

exemplo o filoacutesofo nos diz o seguinte

O quadro todo estaacute no passado no modo do remoto e da eternidade tudo ganha um ar de dececircncia e de discriccedilatildeo as coisas natildeo me interpelam e natildeo estou comprometido por elas E se acrescento a esse artifiacutecio da perspectiva geomeacutetrica a perspectiva aeacuterea como o fazem particularmente tantos quadros venezianos sente-se a que ponto aquele que pinta a paisagem e aquele que olha o quadro satildeo superiores ao mundo como o dominam como o abarcam pelo olhar A perspectiva eacute muito mais do que um segredo teacutecnico para representar uma realidade que se daria dessa maneira a todos os homens ela eacute a proacutepria realizaccedilatildeo e a invenccedilatildeo de um mundo dominado possuiacutedo de ponta a ponta num sistema instantacircneo do qual o olhar espontacircneo nos oferece apenas um esboccedilo quando tenta em vatildeo conservar juntas todas as coisas cada qual existindo por inteiro A perspectiva geomeacutetrica natildeo eacute mais a uacutenica maneira de ver o mundo sensiacutevel tanto quanto o retrato claacutessico natildeo eacute a uacutenica maneira de ver o homem (MERLEAU-PONTY 1975b p 75)

Pelo que notamos a perspectiva mais do que uma teacutecnica

oculta a celebraccedilatildeo de um sonho um desejo de dominaccedilatildeo teoacuterica da

Natureza a busca de uma geometrizaccedilatildeo do mundo a ldquorealizaccedilatildeordquo e a

ldquoinvenccedilatildeordquo de um mundo dominado Ora ao se pensar em uma ldquocrise da

Razatildeordquo natildeo seria este mundo que se vecirc em ruiacutena Eacute pensando nisto que o

filoacutesofo iraacute vislumbrar como contra-senso a intenccedilatildeo de inserir o nosso

corpo e o exterior em um mesmo espaccedilo objetivo Assim compreendendo a

nossa percepccedilatildeo do mundo como anterior a qualquer visada de consciecircncia e

objetivaccedilatildeo da Natureza de que modo buscar sua fundamentaccedilatildeo em

relaccedilotildees objetivas distantes da proacutepria experiecircncia O estabelecimento da

proporcionalidade inversa entre a distacircncia aparente e o tamanho aparente

pela Renascenccedila apresenta-se como uma perspectiva artificial que exagera

as diferenccedilas de tamanho entre os objetos proacuteximos e distantes Por outro

lado tambeacutem reduz os aspectos expressivos e emocionais que a perspectiva

natural vivida pode nos permitir Na perspectiva vivida concluiacutemos que

tanto o vertical quanto o horizontal o proacuteximo como o longiacutenquo satildeo

dimensotildees abstratas que se referem a um uacutenico ser que se encontra em

situaccedilatildeo visto que ldquoa profundidade assim compreendida eacute antes a

experiecircncia da reversibilidade das dimensotildees de uma lsquolocalidadersquo global

122

onde tudo eacute ao mesmo tempo da qual a altura largura e distacircncia satildeo

abstraiacutedas ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 54) Por conseguinte natildeo se

trata de uma visatildeo absoluta de uma Wesenschau83 promovida por um

sujeito transcendental nem muito menos por um Kosmotheacuteoros por um

observador universal A relaccedilatildeo natildeo se daacute mais por cima a partir de um ver

nobre e puro mas de um olhar encarnado que se aproxima das coisas com

uma postura interrogativa Deste modo em contrapartida ao sujeito

universal e constituinte encontramos uma subjetividade encarnada

mergulhada no mundo e detentora de um certo estilo Merleau-Ponty sente

pois a necessidade de uma mudanccedila de enfoque tal como sua filosofia

tentaraacute promover a passagem de um Uninteressirter Zuschauer de um

espectador desinterassado para o vidente para um sujeito encarnado

Assim ocorre o abandono de uma luminosidade ofuscante aprisionada pelo

sujeito e pelas essecircncias para o direcionamento ao lusco-fusco no qual as

palavras e os corpos podem vir agrave luz

2243 O enigma do olhar e os impasses da representaccedilatildeo

Para Merleau-Ponty a vida representativa da consciecircncia natildeo eacute

primeira nem uacutenica natildeo pode fundar nem definir o que seja a consciecircncia e

o mundo O subjetivismo inerente agrave reflexatildeo filosoacutefica faz com que as coisas

exteriores se convertam em realidades cada vez menos reais na medida em

que natildeo passariam de representaccedilotildees e ideias de uma consciecircncia

constituinte O ldquopensamento de sobrevocircordquo na filosofia converte o ldquomundordquo em

representaccedilatildeo do mundo presente na mente do sujeito cognoscente e o ldquoverrdquo

num pensamento de ver Eacute assim que desviando a visatildeo fora de si mesma e

ignorando a proacutepria experiecircncia Descartes recusa o aprofundamento

83 ldquoSeria tempo de rejeitar os mitos da indutividade e da Wensenshau transmitidos como pontos de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo No entanto estaacute claro que nem mesmo Husserl obteve uma uacutenica Wesenschau que natildeo tenha em seguida retomado e retrabalhado natildeo para desmenti-la mas para obrigaacute-la a dizer o que ela de iniacutecio natildeo dissera inteiramente de sorte que seria ingecircnuo procurar a solidez num ceacuteu de ideias ou num fundo de sentido ela natildeo estaacute nem acima nem abaixo das aparecircncias mas na sua juntura sendo o elo que liga secretamente uma experiecircncia agraves suas variantes Estaacute claro tambeacutem que a indutividade pura eacute um mitordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 114)

123

daquilo que constitui o enigma o misteacuterio Obrigado a ldquoclarificar a visatildeordquo a

dispersa para tentar com uma estrateacutegia artificial explicar ldquocomo ela se

realizardquo Em uma palavra renuncia a aprofundar o que constitui o enigma

Natildeo estou seguro de que ali exista um cinzeiro ou um cachimbo mas estou seguro de que penso ver um cinzeiro ou um cachimbo Seria tatildeo faacutecil quanto se acredita dissociar essas duas afirmaccedilotildees e manter fora de qualquer juiacutezo concernente agrave coisa vista a evidecircncia de meu ldquopensamento de verrdquo Ao contraacuterio isso eacute impossiacutevel A percepccedilatildeo eacute justamente este gecircnero em que natildeo se poderia tratar de colocar agrave parte o proacuteprio ato e o termo sobre o qual ele versa A percepccedilatildeo e o percebido tecircm necessariamente a mesma modalidade existencial jaacute que natildeo se poderia separar da percepccedilatildeo a consciecircncia que ela tem ou antes que ela eacute de atingir a coisa mesma (MERLEAU-PONTY 1999 p 500)

Ao contraacuterio de uma operaccedilatildeo do pensamento de uma decisatildeo

do espiacuterito guiado por representaccedilotildees o olhar seria para Merleau-Ponty um

aproximar-se do mundo e o movimento ldquoa sequecircncia natural e a maturaccedilatildeo

de uma visatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 20) Natildeo teria sentido como

pretendia o empirismo a ideia de um duplo enfraquecido nem muito menos

como o intelectualismo aspirava uma ideia perfeita O que nos ensina a

corporeidade o poder vidente do corpo caracteriza-se por ser uma

subjetividade que vecirc tanto a si quanto os outros seres por ldquoconfusatildeo

narcisismo inerecircncia daquele que vecirc em relaccedilatildeo aquilo que vecirc daquele que

toca em relaccedilatildeo agravequilo que toca do que sente ao que eacute sentidordquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 21) Como acontece quando olho um quadro o que vejo natildeo

se encontra simplesmente em uma parede ou em meu imaginaacuterio pois ldquoo

meu olhar passeia nele como nos nimbos do Ser e eu vejo segundo ele ou

com ele mais do que vejordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 23) Eacute neste

sentido que para Merleau-Ponty

O imaginaacuterio estaacute muito mais proacuteximo e muito mais distante do atual mais proacuteximo pois ele eacute o diagrama da sua vida no meu corpo a sua polpa ou o seu reverso carnal expostos aos olhares pela primeira vez e que neste sentido como o diz energicamente Giacometti ldquoo que me interessa em todas as pinturas eacute a semelhanccedila o que me faz descobrir um pouco o mundo exteriorrdquo Muito mais distante pois o quadro soacute eacute um anaacutelogo segundo o corpo ele natildeo oferece ao espiacuterito a ocasiatildeo de repensar as relaccedilotildees constitutivas das coisas mas ao olhar para que ele os despose os traccedilos da visatildeo do interior agrave visatildeo o que a reveste interiormente a textura imaginaacuteria do real (MERLEAU-PONTY 1975b p 24)

124

A partir destas conclusotildees Merleau-Ponty nos fala de uma

interioridade que natildeo se reduz agrave imanecircncia do sujeito pensante e que eacute

refrataacuteria a uma explicaccedilatildeo baseada em fenocircmenos fiacutesico-fisioloacutegicos Deste

modo seraacute o que considera ser o ldquoimpensado de Husserlrdquo ldquo[] marginalia de

algumas paacuteginas antigasrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 242) que o filoacutesofo

iraacute invocar Eacute assim que a partir de Le Philosophe et son Ombre Merleau-

Ponty nos apresenta a ldquocarnerdquo como uma ldquodimensatildeordquo na qual nem o espiacuterito

nem a Natureza seriam fundantes mas estando abaixo deles seria capaz de

constituiacute-los Aleacutem disto a nosso ver a noccedilatildeo de ldquocarnerdquo seraacute um dos

uacuteltimos recursos de Merleau-Ponty contra os desdobramentos da ciecircncia

claacutessica e do mundo cartesiano Ora o que Merleau-Ponty entende por

carne

A carne natildeo eacute mateacuteria natildeo eacute espiacuterito natildeo eacute substacircncia Seria

preciso para designaacute-la o velho termo ldquoelementordquo no sentido em que era empregado para se falar da aacutegua do ar da terra e do fogo

isto eacute no sentido de uma coisa geral meio caminho entre o

indiviacuteduo espaacutecio-temporal e a ideia a espeacutecie de princiacutepio

encarnado que importa um estilo de ser em todos os lugares onde se encontra uma parcela sua Neste sentido a carne eacute um elemento do

ser () Pois se haacute carne isto eacute se a face escondida do cubo irradia

em algum lugar tatildeo bem como a que tenho sob os olhos e coexiste com ela e se eu que vejo o cubo tambeacutem participo do visiacutevel sou

visiacutevel de alhures se ele e eu juntos estamos presos num mesmo ldquoelementordquo ndash deve-se dizer do vidente ou do visiacutevel ndash essa coesatildeo

essa visibilidade de princiacutepio prevalece sobre toda discordacircncia momentacircnea (MERLEAU-PONTY 1992 p 136)

Por conseguinte encontrando-se na base de um campo

fenomenoloacutegico a noccedilatildeo de carne eacute o ponto de partida para um ldquocampo

transcendentalrdquo mediante o qual poderiacuteamos chegar ao mundo vivido um

criteacuterio pelo qual o ser mesmo se manifesta Em outras palavras ela

possibilita-nos dar uma fisionomia concreta agrave ldquocoisa mesmardquo uma inerecircncia

histoacuterica agrave subjetividade e um estado nascente agrave unidade vivente entre noacutes

mesmos e o mundo Deste modo natildeo sendo simplesmente um pensamento

a ldquocarnerdquo tambeacutem natildeo eacute mateacuteria nem tampouco substacircncia mas o

desdobrar-se do visiacutevel em um corpo vidente Assim sendo uma textura

uma presenccedila entrelaccedilada de corpo e coisa em um mesmo tecido

125

intencional ela possui por principal estrutura a sua reversibilidade Esta

estrutura ao contraacuterio de uma ldquodialeacutetica embalsamadardquo natildeo estaacute sujeita agrave

siacutentese pois seu logoj [loacutegos]84 eacute o proacuteprio mundo da experiecircncia comum eacute

a adesatildeo total ao Ser e o ponto de partida de toda possiacutevel reflexatildeo Como

diraacute Le Visible et LrsquoInvisible

Basta-nos apenas constatar que quem vecirc natildeo pode possuir o visiacutevel a natildeo ser que seja por ele possuiacutedo que seja dele que por princiacutepio conforme o que prescreve a articulaccedilatildeo do olhar e das coisas seja um dos visiacuteveis capaz graccedilas a uma reviravolta singular de vecirc-los ele que eacute uno Compreende-se entatildeo por que ao mesmo tempo vemos as proacuteprias coisas no lugar em que estatildeo segundo o ser delas que eacute bem mais do que o ser-percebido e estamos afastados delas por toda a espessura do olhar e do corpo eacute que essa distacircncia natildeo eacute o contraacuterio dessa proximidade mas estaacute profundamente de acordo com ela eacute sinocircnima dela Eacute que a espessura da carne entre o vidente e a coisa eacute constitutiva de sua visibilidade para ela como de sua corporeidade para ele natildeo eacute um obstaacuteculo entre ambos mas o meio de se comunicarem (MERLEAU-PONTY 1992 p 131-2)

Como notamos haacute segundo Merleau-Ponty a carne do corpo e a

carne do mundo Observando a reflexibilidade do nosso corpo o filoacutesofo

descobre que ele sempre apresentou aquilo que caracteriza a consciecircncia

Poreacutem observando tambeacutem a sua visibilidade percebe que ele conteacutem em si

o que sempre foi particularidade do objeto Portanto o corpo eacute o vidente que

se vecirc o tocado que se toca um sentido que se sente Corpo e mundo

transformam-se em campos de presenccedila onde emergem todas as relaccedilotildees da

vida perceptiva e do mundo sensiacutevel Contudo mais que o estabelecimento

de uma relatividade absoluta de uma indefiniccedilatildeo permanente no interior do

corpo proacuteprio haacute definitivamente uma unidade e uma reversibilidade entre

ldquosujeitordquo e ldquoobjetordquo conforme ilustra-nos como jaacute ilustramos no primeiro

capiacutetulo o exemplo jaacute claacutessico das matildeos que se tocam

84 Segundo Merleau-Ponty em nossa relaccedilatildeo com o mundo encontramos a presenccedila de um Loacutegos do mundo esteacutetico ou seja do mundo percebido que expressa uma unidade indivisa do corpo e das coisas uma unidade que natildeo permite as rupturas proacuteprias da reflexatildeo entre sujeitoobjeto Esse loacutegos do mundo esteacutetico torna possiacutevel a intersubjetividade como intercoporeidade fazendo com que atraveacutes da manifestaccedilatildeo corporal na linguagem surja o Logos cultural ndash o mundo humano da cultura e da histoacuteria

126

Quando minha matildeo direita toca a esquerda sinto-a como uma ldquocoisa fiacutesicardquo mas no mesmo instante se eu quiser um

acontecimento extraordinaacuterio se produz eis que minha matildeo esquerda tambeacutem se potildee a sentir a matildeo direita es wird Leib es empfindet A coisa fiacutesica se anima ou mais exatamente permanece como era o acontecimento natildeo a enriquece e entretanto uma

potecircncia exploradora vem pousar sobre ela ou habitaacute-la Assim porque eu me toco tocando meu corpo realiza ldquouma espeacutecie de

reflexatildeordquo Nele e por ele natildeo haacute somente um relacionamento em sentido uacutenico daquele que sente com aquilo que ele sente haacute uma

reviravolta na relaccedilatildeo a matildeo tocada torna-se tocante obrigando-me a dizer que o tato estaacute espalhado pelo corpo que o corpo eacute ldquocoisa

sentienterdquo ldquosujeito-objetordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 247)

Neste contexto a ldquocarnerdquo significa entrelaccedilamento e

reversibilidade coincidindo com a ideia de abertura e pertenccedila a um mesmo

mundo A sua existecircncia implica uma superaccedilatildeo das distacircncias entre o eu e

o outro entre o interno e o externo Nesta perspectiva consolida-se uma

relaccedilatildeo sem fronteiras entre meu corpo e as coisas semelhante a uma

espeacutecie de desdobramento de ambas as instacircncias e ao inverso e reverso de

uma folha Para Merleau-Ponty natildeo haacute limites fixos entre o orgacircnico e o

inorgacircnico entre o psiacutequico e o fiacutesico mas uma imbricaccedilatildeo tal como a

existente entre significante e significado aderecircncia e reversibilidade de um a

outro Assim sendo as coisas visiacuteveis satildeo dobras secretas do nosso corpo e

haacute uma mescla de pensamento e mateacuteria pois

Ao falarmos de carne do visiacutevel natildeo pretendemos fazer antropologia descrever um mundo recoberto por todas as nossas projeccedilotildees salvo que possa estar sob a maacutescara humana Queremos dizer ao contraacuterio que o ser carnal como ser das profundezas em vaacuterias camadas ou de vaacuterias faces ser de latecircncia e apresentaccedilatildeo de certa ausecircncia eacute um protoacutetipo do Ser de que nosso corpo o sensiacutevel sentiente eacute uma variante extraordinaacuteria cujo paradoxo constitutivo poreacutem jaacute estaacute em todo visiacutevel [] (MERLEAU-PONTY 1992 p 133)

A concepccedilatildeo merleau-pontiana de carne apresenta-nos uma

realidade submetida a uma espeacutecie de entrelaccedilamento entre o visiacutevel e o

invisiacutevel natildeo sendo contraditoacuteria a afirmaccedilatildeo de que o visiacutevel eacute invisiacutevel de

que o visiacutevel sempre se daacute sobre um fundo invisiacutevel Deste modo invisiacutevel eacute o

que sendo relativo ao visiacutevel natildeo poderia ser visto como coisa mas talvez

como condiccedilatildeo de possibilidade de toda presenccedila O sentido eacute invisiacutevel mas

o invisiacutevel natildeo eacute o oposto natildeo estaacute numa relaccedilatildeo de contradiccedilatildeo com o

127

visiacutevel pois constitui com o visiacutevel uma textura O que eacute visiacutevel para mim

pode agraves vezes ser invisiacutevel para outro Contudo natildeo devemos admitir que o

invisiacutevel seja outro visiacutevel possiacutevel ou algo que seja simplesmente visiacutevel para

outro pois o invisiacutevel estaacute aleacutem sem ser objeto

Trata-se pois de superar as dicotomias mediante o

estabelecimento de uma ldquofeacute perceptivardquo que nos situe aleacutem das condiccedilotildees

fiacutesicas e filosoacuteficas Com isto impede-se a reduccedilatildeo da realidade concreta a

uma relaccedilatildeo orgacircnica do mundo com as ideias claras e distintas do

pensamento Esta ldquofeacute perceptivardquo eacute uma experiecircncia original sem

pressupostos Ela eacute adesatildeo agrave experiecircncia vivida ao que eacute num sentido

primordial Natildeo se trata meramente de uma relaccedilatildeo entre ego e mundus

mas de uma inserccedilatildeo no mundo Ao enunciarmos que o mundo eacute o conjunto

das coisas que vemos estamos proclamando esta ldquofeacute perceptivardquo que nos

mostra a existecircncia incontestaacutevel de algo que nos escapa que se daacute

portanto como uma figura sobre um fundo inesgotaacutevel

Neste sentido quando Merleau-Ponty nos diz que a percepccedilatildeo eacute

inacabada que todo visiacutevel traz consigo um invisiacutevel que a consciecircncia tem

seu ponto cego que ver eacute sempre mais do que um ver isto implica que eacute

inerente agrave visibilidade uma certa natildeo visibilidade O visiacutevel enquanto visiacutevel eacute

presenccedila e como tal se oferece com caraacuteter primordial O invisiacutevel natildeo eacute

simplesmente o que se encontra oculto ausente em estado de silecircncio mas

sobretudo uma possibilidade verdadeira na medida em que se vincula a

uma visibilidade Se todo visiacutevel remete-nos a um invisiacutevel isto indica que a

percepccedilatildeo natildeo pode ser concebida em termos pontuais senatildeo que possui o

caraacuteter de uma funccedilatildeo privilegiada a partir da qual eacute possiacutevel tentar

compreender os fenocircmenos ou seja a presenccedila originaacuteria do mundo Em

uma de suas Notes du Travail datada de 1960 afirma que

eacute atraveacutes da carne do mundo que se pode enfim compreender o proacuteprio corpo ndash A carne do mundo eacute Ser-visto ie Ser que eacute eminentemente percipi e eacute atraveacutes dela que se pode compreender o percipere o percebido que se chama meu corpo aplicando-se ao resto do percebido ie encarando-se a si proacutepria como um percebido para si e portanto como percebedor tudo isso soacute eacute afinal possiacutevel e soacute quer dizer alguma coisa porque haacute o Ser natildeo o Ser em si idecircntico a si na noite mas o Ser que conteacutem tambeacutem sua negaccedilatildeo o seu percipi () (MERLEAU-PONTY 1992 p 227)

128

Por fim conforme nos diz Merleau-Ponty ldquoa carne (a do mundo

ou a minha) natildeo eacute contingecircncia caos mas textura que regressa a si e

conveacutem a si mesmardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 142) Assim o que ele

denomina carne ldquoessa massa interiormente trabalhada natildeo tem portanto

nome em filosofia alguma Meio formador do objeto e do sujeito natildeo eacute o

aacutetomo de ser o em si duro que reside num lugar e num momento uacutenicordquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 142) Eacute preciso pensaacute-la ldquonatildeo a partir das

substacircncias corpo e espiacuterito pois seria entatildeo a uniatildeo dos contraditoacuterios

mas diziacuteamos como elemento emblema concreto de uma reversibilidade do

vidente e do visiacutevel do tacto de uma reversibilidade sempre iminente e

nunca realizada de fatordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 143) Diante disto

podemos compreender o direcionamento de Merleau-Ponty a uma ontologia

indireta a um Ser Bruto e Selvagem a um Loacutegos do mundo esteacutetico Natildeo

significa um retorno agrave metafiacutesica mas a descoberta de um ldquoser de abismordquo

que natildeo se permite aprisionar em meros conceitos Enfim eacute a indicaccedilatildeo de

que ldquoeste mundo barroco natildeo eacute uma concessatildeo do espiacuterito agrave Natureza pois

se em toda parte o sentido estaacute figurado eacute sempre de sentido que se tratardquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 260) Logo

essa renascenccedila do mundo eacute tambeacutem renascenccedila do espiacuterito redescoberta do espiacuterito bruto que natildeo estaacute aprisionado por nenhuma das culturas e ao qual se pede que crie novamente a cultura O irrelativo doravante natildeo eacute a natureza em si nem o sistema das apreensotildees da consciecircncia absoluta nem muito menos o homem mas essa ldquoteleologiardquo de que fala Husserl ndash que se escreve e se pensa entre aspas ndash juntura e membrana do Ser que se cumpre atraveacutes do homem (MERLEAU-PONTY 1975b p 260)

Neste momento encontramos a uacuteltima tentativa de

desconstruccedilatildeo do que seria uma consciecircncia constituinte e seus domiacutenios

Poreacutem em contrapartida este estatuto natildeo cabe ao mundo ou agraves coisas A

experiecircncia sensiacutevel eacute entendida como anterior agrave clivagem sujeito-objeto ou

consciecircncia-mundo Ela natildeo eacute o atributo nem de um sujeito nem de um

objeto sem ser contudo siacutentese entre ambos ou ateacute mesmo oriunda de uma

entidade fundadora que as precederia O corpo natildeo eacute sujeito mas nem por

isso eacute um objeto diluiacutedo no mundo O mundo natildeo eacute objeto mas nem por

129

isso transforma-se no constituinte de nossa experiecircncia sensiacutevel Muito pelo

contraacuterio mundo e corpo satildeo simultaneamente sujeito e objeto sem deixa

de ser entretanto mundo e corpo Deste modo como entender o projeto

cartesiano de expatriar o mundo sensiacutevel O que levaria Descartes a romper

nossa pertenccedila ao mundo e transformaacute-la em um ldquopensamento de

sobrevocircordquo Para Merleau-Ponty a ldquoespiritualizaccedilatildeo cartesianardquo que se faz

presente por exemplo na identificaccedilatildeo de espaccedilo e espiacuterito parte na

verdade de um ldquopostulado ingecircnuordquo Eacute o que leva a crer que a distacircncia natildeo

pertenceria aos proacuteprios objetos mas seria antes a ldquopresenccedila imediata do

espiacuteritordquo Esta ideia para Merleau-Ponty teria sido sugerida pelo proacuteprio

mundo pois a sua ldquoaparente evidecircnciardquo funda-se no proacuteprio deslocamento

do olhar em sua capacidade de se ldquoreportarrdquo de si mesmo ao que o

condiciona Em outros termos nasceria da ldquoconvicccedilatildeo maciccedila tirada da

experiecircncia exterior onde tenho com efeito a seguranccedila de que as coisas

sob meus olhos permanecem as mesmas enquanto delas me aproximo para

inspecionaacute-las melhor []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 45) No entanto o

que permanece esquecido eacute que isso se daacute ldquo[] porque o funcionamento de

meu corpo como possibilidade de mudar de acircngulo de visatildeo ldquoaparelho de

verrdquo ou ciecircncia sedimentada do ldquoacircngulo de visatildeordquo me assegura que me

aproximo da proacutepria coisa que haacute pouco eu via de longerdquo (MERLEAU-PONTY

1992 p 46) Por conseguinte

[] Tendo pois aprendido pela experiecircncia perceptiva o que eacute ldquover bemrdquo a coisa e o que eacute preciso e possiacutevel para o conseguirmos dela nos aproximarmos sendo os novos dados assim adquiridos determinaccedilotildees da proacutepria coisa transportamos para o interior essa certeza recorremos agrave ficccedilatildeo de um ldquohomenzinho dentro do homemrdquo e assim chegamos a pensar que refletir sobre a percepccedilatildeo eacute permanecendo a coisa percebida e a percepccedilatildeo o que eram desvendar o verdadeiro sujeito que as habita e que sempre as habitou Na realidade eu deveria dizer que havia uma coisa percebida e uma abertura para essa coisa que a reflexatildeo neutralizou transformou em percepccedilatildeo-reflexiva e em coisa-percebida-numa-percepccedilatildeo-reflexiva e que o funcionamento refletido como o do corpo explorador usa de poderes obscuros para mim transpassa o ciclo de duraccedilatildeo que separa a percepccedilatildeo bruta do exame reflexionante e soacute manteacutem durante esse tempo a permanecircncia do percebido e da percepccedilatildeo sob o olhar do espiacuterito porque minha inspeccedilatildeo mental e minhas atitudes de espiacuterito prolongam o ldquoeu possordquo de minha exploraccedilatildeo sensorial e corporal (MERLEAU-PONTY 1992 p 46)

130

Em contrapartida constituindo-se como uma quase-presenccedila a

imagem do que foi visto deve ter o seu valor recuperado pois natildeo eacute uma

mera coacutepia em nosso bazar privado nem se reduziria ao modo como

Descartes tentara lidar com o problema da similitude no ensejo de romper

com a escolaacutestica85 Todavia para Merleau-Ponty ldquoeacute necessaacuterio tomar agrave letra

o que nos ensina a visatildeo que atraveacutes dela atingimos o Sol as estrelas

estamos ao mesmo tempo em todo lado tatildeo proacuteximos das distantes como

das proacuteximas ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 66) Fazendo uso de uma

linguagem poeacutetica o filoacutesofo nos afirma que o mundo semelhante aos carris

de uma estrada de ferro ldquoeacute segundo a minha perspectiva para ser

independente de mim que eacute para mim a fim de ser sem mim de ser mundordquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 67) Assim ldquoqualquer coisa visual por muito

indiviacuteduo que seja funciona tambeacutem como dimensatildeo porque se oferece

como resultado de uma deiscecircncia do Serrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 67)

Essa realidade indica ao filoacutesofo que ldquoeacute proacuteprio do visiacutevel ter uma dobragem

invisiacutevel em sentido estrito que ele torna presente como uma certa

ausecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 67) uma vez que a imposiccedilatildeo de

que o ldquorealrdquo e o ldquoimaginaacuteriordquo sejam como diraacute Merleau-Ponty duas ldquoordensrdquo

dois ldquopalcosrdquo ou ldquoteatrosrdquo a saber ldquoo do espaccedilo e o dos fantasmasrdquo

ldquomontados em noacutes antes dos atos de discriminaccedilatildeo que apenas intervecircm

nos casos equiacutevocos e onde o que vivemos vem instalar-se por si fora de

todo controle critereoloacutegicordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 47) proveacutem tanto

do ldquo[]simples fato amiuacutede observado que a imaginaccedilatildeo mais verossiacutemil

mais conforme ao contexto da expressatildeo natildeo nos faz avanccedilar um passo na

direccedilatildeo da ldquorealidaderdquo sendo imediatamente posta por noacutes do lado do

85 Vale lembrar que se tratava tambeacutem de se negar a noccedilatildeo de semelhanccedila tal como era entendida pelos renascentistas negando-se a ideia de que o fundamento do conhecimento encontrava-se sobretudo em uma operaccedilatildeo descritiva e interpretativa Como observa Foucault por meio da noccedilatildeo de Semelhanccedila encontramos conceitos como por exemplo empatia e antipatia serem empregados por ciecircncias tais como a medicina a astronomia a teologia nas doenccedilas e nos movimentos dos astros a utilizaccedilatildeo de noccedilotildees tais como a imitaccedilatildeo e a emulaccedilatildeo sendo empregadas para indicar relaccedilotildees entre os seres humanos entre as coisas vivas entre os homens e as coisas Por fim na semelhanccedila encontrava uma espeacutecie de saber e de poder (FOUCAULT 1999)

131

imaginaacuterio []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 47) como tambeacutem de modo

inverso do simples fato de que ldquo[] tal barulho absolutamente inesperado e

imprevisiacutevel eacute de imediato percebido como real por fracas que sejam suas

ligaccedilotildees com o contextordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 48) No entanto

Que algumas vezes os controles se tornem necessaacuterios e terminem em juiacutezos de realidade que retificam a experiecircncia ingecircnua isso natildeo prova que juiacutezos dessa espeacutecie estejam na ordem dessa distinccedilatildeo ou a constituam natildeo nos dispensando por conseguinte de compreendecirc-la por si proacutepria Se o fizermos natildeo seraacute preciso definir o real por sua coerecircncia e o imaginaacuterio por sua incoerecircncia ou suas lacunas o real eacute coerente e provaacutevel por ser real e natildeo o real por ser coerente o imaginaacuterio eacute incoerente ou improvaacutevel porque eacute imaginaacuterio e natildeo imaginaacuterio porque eacute incoerente A menor parcela do percebido o incorpora de imediato ao ldquopercebidordquo o fantasma mais verossiacutemil escorrega na superfiacutecie do mundo eacute esta presenccedila do mundo inteiro num reflexo sua ausecircncia irremediaacutevel nos deliacuterios mais ricos e mais sistemaacuteticos que devemos compreender e essa diferenccedila natildeo eacute do mais ao menos (MERLEAU-PONTY 1992 p 48)

Eacute que nos parece mostrar por exemplo a experiecircncia da pintura

pois mesmo que um cartesiano possa ldquoacreditar que o mundo existente natildeo

eacute visiacutevel que soacute existe a luz do espiacuterito que toda visatildeo se faz em Deusrdquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 65) o pintor de modo contraacuterio ldquonatildeo pode

consentir que a nossa abertura ao mundo seja ilusoacuteria ou indireta que

aquilo que noacutes vemos natildeo seja o mundo mesmo que o espiacuterito soacute tenha algo

a ver com os seus pensamentos ou outro espiacuteritordquo (MERLEAU-PONTY 1992

p 65) Aceitando o mito das janelas da alma ele sabe ldquoque aquilo que eacute sem

lugar esteja adstrito a um corpordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 66) embora

reconheccedila tambeacutem que ldquoseja iniciado por ele em todos os outros e na

naturezardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 66)86 Por isso

86 Eacute neste sentido que a falar da representaccedilatildeo artiacutestica por exemplo Merleau-Ponty nos diz que a filosofia precisa reconhecer que o que eacute celebrado pela pintura natildeo eacute outra coisa senatildeo o fato de ldquo[] que a mesma coisa estaacute ali no coraccedilatildeo do mundo e aqui no coraccedilatildeo da visatildeo a mesma ou se fizer questatildeo uma coisa semelhante mas segundo uma similitude eficaz que eacute analogia gecircnese metamorfose do ser na sua visatildeo (MERLEAU-PONTY 1992 p 65) Em outras palavras ldquoeacute a proacutepria montanha que dali se daacute a ver ao pintor eacute a ela que ele interroga com o olharrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 65) Para Merleau-Ponty pensando no olhar ldquoa visatildeo eacute o encontro como numa encruzilhada de todos os aspectos do Serrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 109) pois eacute ldquoo proacuteprio Ser mundo que vem a manifestar seu proacuteprio sentidordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 109)

132

Eacute preciso compreender o olho como a ldquojanela da almardquo ldquoO olho pelo qual a beleza do universo eacute revelada agrave nossa contemplaccedilatildeo eacute de uma tal excelecircncia que quem se resignasse agrave sua perda privar-se-ia de conhecer todas as obras da natureza com as quais a vida faz permanecer a alma contente na prisatildeo do corpo graccedilas aos olhos que lhe emprestam a infinita variedade da Criaccedilatildeo quem os perde abandona esta alma numa obscura prisatildeo onde cessa toda esperanccedila de rever o sol luz do universordquo O olho realiza o prodiacutegio de abrir agrave alma o que natildeo eacute alma o bem aventurado domiacutenio das coisas e o seu Deus o Sol (MERLEAU-PONTY 1992 p 65)

Por conseguinte pensando nestas consideraccedilotildees no abandono

de uma possiacutevel ldquoexpatriaccedilatildeordquo que ldquorelaccedilatildeordquo encontramos entre o visiacutevel e o

in-visiacutevel Em uma nota de trabalho datada de novembro de 1959 Merleau-

Ponty nos diz que ldquoo sentido eacute invisiacutevel mas o invisiacutevel natildeo eacute contraditoacuterio do

visiacutevel o visiacutevel possui ele proacuteprio uma membrura de invisiacutevel e o in-visiacutevel

eacute a contraparte secreta do visiacutevel natildeo aparece senatildeo nele ()rdquo (MERLEAU-

PONTY 1992 p 200) Deste modo se todo visiacutevel tem uma armaccedilatildeo de

invisiacutevel eacute preciso supor que a visibilidade mesma aponta uma natildeo

visibilidade Segundo o filoacutesofo natildeo haacute mais essecircncias acima de noacutes

direcionadas a um olho espiritual mas uma essecircncia sob noacutes nervura

comum do significante e do significado Por sua vez o sujeito cognoscente

estaacute no meio da Lebenswelt e eacute incapaz de uma visatildeo direta das essecircncias

visto que fatos e essecircncias satildeo puras abstraccedilotildees pois

no que respeita agrave essecircncia como ao fato basta que nos coloquemos no ser de que se trata em vez de olhaacute-lo de fora ou ainda o que vem a ser a mesma coisa cabe recolocaacute-lo no tecido de nossa vida assistir por dentro agrave deiscecircncia anaacuteloga agrave de meu corpo que o abre para si mesmo e nos abre para ele e que tratando-se da essecircncia eacute a do falar e a do pensar Como meu corpo que eacute um dos visiacuteveis vecirc-se tambeacutem a si mesmo e por isso torna-se luz natural abrindo para o visiacutevel seu interior a fim de que venha a ser paisagem minha realizando como se diz a miraculosa promoccedilatildeo do Ser agrave ldquoconsciecircnciardquo ou como dizemos de preferecircncia a segregaccedilatildeo do ldquointeriorrdquo e do ldquoexteriorrdquo ndash do mesmo modo a fala sustentada pelas mil relaccedilotildees ideais da liacutengua e que para a ciecircncia como linguagem constituiacuteda eacute pois certa regiatildeo no universo das significaccedilotildees eacute tambeacutem oacutergatildeo amplificador de todas as demais e por conseguinte co-extensiva ao pensaacutevel (MERLEAU-PONTY 1992 p 115)

Nisto notamos nos uacuteltimos trabalhos de Merleau-Ponty tanto

em sua oposiccedilatildeo aos desdobramentos da ontologia cartesiana como em sua

aproximaccedilatildeo da filosofia leibniziana o seu direcionamento ao que segundo

133

Chauiacute seria uma ldquoharmonia na diferenciaccedilatildeordquo haja vista que por meio dela

o filoacutesofo ldquotrabalha simultaneamente com a individuaccedilatildeo como segregaccedilatildeo

de campos na massa compacta e diaacutefana do sensiacutevel e com a comunicaccedilatildeo

ou o parentesco ontoloacutegicos desses campos isto eacute carne como lsquoconveniecircncia

a si mesmarsquordquo (CHAUIacute 1983 p 248) Esta harmonia da qual fala Merleau-

Ponty diferentemente da proposta cartesiana eacute o que o levaraacute a entender e

isto jaacute em seus primeiros trabalhos ldquo[] a percepccedilatildeo como exploraccedilatildeo

concordante essa feacute perceptiva que nos faz crer com forccedila inabalaacutevel que a

sexta face de um cubo aquela que nunca vimos e jamais veremos natildeo eacute um

olho maleacutefico nem um riso perverso mas serenamente a sexta face de um

cubordquo (CHAUIacute 1983 p 248) Do mesmo modo seria ela que o levaria a

compreender ldquo[] por que a ilusatildeo permite a desilusatildeo menos como

passagem do ldquofalsordquo ao ldquoverdadeirordquo e mais como correccedilatildeo da evidecircnciardquo

(CHAUIacute 1983 p 248) Ora esta ldquoharmoniardquo muito proacutexima da ldquoharmonia

preestabecidardquo de Leibniz seria o que em sua linguagem Merleau-Ponty

denomina quiasma termo que tambeacutem cumpriria a tarefa de indicar a

reflexibilidade e a reversibilidade da carne Eacute o que nos parece dizer o

filoacutesofo em uma nota de trabalho datada de 1 de novembro de 1959

A clivagem natildeo consiste essencialmente em para Si para Outro (sujeito-objeto) eacute mais exatamente a de algueacutem que se dirige ao mundo e que do exterior pareccedila permanecer no seu lsquosonhorsquo Quiasma atraveacutes do qual o que se anuncia a mim como o ser parece aos olhos dos olhos natildeo ser mais do que lsquoestados de consciecircnciarsquo ndash Mas como o quiasma dos olhos esse eacute tambeacutem o que faz com que pertenccedilamos ao mesmo mundo ndash um mundo que natildeo eacute projetivo mas que realiza a sua unidade atraveacutes das incompossibilidades tais como a de meu mundo e do mundo do outro ndash Essa mediaccedilatildeo pela ruiacutena este quiasma fazem com que natildeo haja simplesmente antiacutetese para-Si para-Outro que haja o Ser como contendo tudo isso de iniacutecio como Ser sensiacutevel e em seguida como Ser sem restriccedilatildeo ndash O quiasma em lugar do Para Outro isso quer dizer que natildeo haacute apenas rivalidade eu-outrem mas co-funcionamento Funcionamos como um uacutenico corpo (MERLEAU-PONTY 1992 p 199)

Melhor que a expressatildeo leibniziana de ldquoharmonia

preestabelecidardquo o quiasma parece sugerir ao filoacutesofo uma medida que

melhor expressa esta ligaccedilatildeo existente entre um avesso e um direito como

conjuntos antecipadamente unificados e em vias de diferenciaccedilatildeo Portanto

para Merleau-Ponty este conceito como indica Chauiacute ldquo[] natildeo soacute eacute o

134

equivalante para o caacutelculo dos possiacuteveis do melhor dos mundos87 mas ainda

eacute lsquopregnacircncia dos possiacuteveisrsquo infinito que natildeo eacute positivo nem negativo mas

simultaneidade da conveniecircncia a si mesma e da transcendecircnciardquo (CHAUIacute Da

Realidade sem Misteacuterio ao Misteacuterio do Mundo Espinosa Voltaire Merleau-Ponty p

249) Deste modo ldquosobretudo o quiasma isto eacute a reversibilidade do direito e

do avesso cruzamento do interior e do exterior por dentro natildeo exige um

lsquoespectador que esteja dos dois ladosrsquordquo (CHAUIacute Da Realidade sem Misteacuterio ao

Misteacuterio do Mundo Espinosa Voltaire Merleau-Ponty p 249) Pensando nestas

consideraccedilotildees podemos entender porque apoacutes ter observado a

reversibilidade presente no corpo e a reversibilidade existente no mundo o

filoacutesofo chega agrave conclusatildeo de que a principal questatildeo estaacute na pergunta pelo

ldquoonderdquo do limite existente entre o nosso corpo e o mundo pois ldquocabe-nos

rejeitar os preconceitos seculares que colocam o corpo no mundo e o vidente

no corpo ou inversamente o mundo e o corpo do vidente como numa caixardquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 134) Afinal como perguntaraacute Merleau-Ponty

Onde colocar o limite do corpo e do mundo jaacute que o mundo eacute carne Onde colocar no corpo o vidente jaacute que evidentemente no corpo haacute apenas ldquotrevas repletas de oacutergatildeosrdquo isto eacute ainda o visiacutevel O mundo visto natildeo estaacute ldquoemrdquo meu corpo e meu corpo natildeo estaacute ldquonordquo mundo visiacutevel em uacuteltima instacircncia carne aplicada a outra carne o mundo natildeo a envolve nem eacute por ela envolvido Participaccedilatildeo aparentamento no visiacutevel a visatildeo natildeo o envolve nem eacute nele envolvida definitivamente A peliacutecula superficial do visiacutevel eacute apenas para minha visatildeo e para meu corpo Mas a profundidade sob essa superfiacutecie

87 Neste sentido ldquoem que a percepccedilatildeo altera o alcance da ideia de expressatildeo posta por Leibniz Em primeiro lugar porque a percepccedilatildeo (e aqui a Pheacutenomeacutenologie de la Perception tambeacutem eacute atingida) natildeo eacute relaccedilatildeo expressiva entre esquemas corporais e esquemas espaccedilo-temporais graccedilas a siacutenteses (corporais linguumliacutesticas conscientes) natildeo eacute preparaccedilatildeo ou primeiro momento confuso da apercepccedilatildeo mas trabalho de uma diferenciaccedilatildeo inesgotaacutevel que efetua a experiecircncia do mesmo sem jamais chegar ao idecircntico Em segundo lugar porque natildeo eacute relaccedilatildeo de expressatildeo reciacuteproca entre perspectivas tomadas sobre o mundo das quais o absoluto seria autor Natildeo tanto porque haveria um sujeito infinito no centro do mundo mas sobretudo porque as perspectivas em Leibniz emanam dele como pensamentos de modo que natildeo haacute ontologicamente percepccedilatildeo Por isso a mocircnada natildeo precisa de portas nem janelas Nossa alma diz Merleau-Ponty natildeo tem janelas porque jaacute estaacute inteiramente aberta Eis porque o quiasma eacute a lsquoverdade da harmonia preestabelecida bem mais exata do que elarsquo O corpo natildeo eacute mens momentanea mas guardiatildeo do passado indestrutiacutevel e o espiacuterito como dizia Proust eacute voluacutevel Em terceiro lugar porque a comunicaccedilatildeo corpo-espiacuterito e espiacuterito-espiacuterito natildeo eacute transposiccedilatildeo da Weltilichkeit da natureza como em Leibniz onde as pequenas percepccedilotildees e Deus como geometral vecircm restabelecer do lado do espiacuterito uma continuidade simeacutetrica agrave da Natureza Essa continuidade escreve Merleau-Ponty natildeo existe na Natureza e a fortiori natildeo pode existir na dimensatildeo do espiacuteritordquo (CHAUIacute 1983 p 250-1)

135

conteacutem meu corpo e por conseguinte conteacutem minha visatildeo Meu corpo como coisa visiacutevel estaacute contido no grande espetaacuteculo Mas meu corpo vidente subtende esse corpo visiacutevel e todos os visiacuteveis com ele Haacute reciacuteproca inserccedilatildeo e entrelaccedilamento de um no outro Ou melhor se renunciarmos como eacute preciso ainda uma vez ao pensamento por planos de perspectivas haacute dois ciacuterculos dois turbilhotildees ou duas esferas concecircntricas quando vivo ingenuamente e desde que me interrogue levemente descentrados um em relaccedilatildeo ao outro (MERLEAU-PONTY 1992 p 134)

Assim diferentemente da concepccedilatildeo cartesiana de visatildeo em

Merleau-Ponty o olhar indaga a partir do visto e aleacutem dele elaborando uma

configuraccedilatildeo do mundo em que dimensotildees como tangibilidade e visibilidade

se unem constituem um quiasma um entrelaccedilamento entre o tangiacutevel e o

visiacutevel pois ldquoeacute preciso que nos habituemos a pensar que todo visiacutevel eacute

moldado no sensiacutevel todo ser taacutectil estaacute votado de alguma maneira agrave

visibilidade havendo assim imbricaccedilatildeo e cruzamento natildeo apenas entre o

que eacute tocado e quem toca mas tambeacutem entre o tangiacutevel e o visiacutevel ()rdquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p131) Deste modo ldquohaacute visatildeo tato quando certo

visiacutevel certo tangiacutevel se volta sobre todo o visiacutevel todo o tangiacutevel de que faz

parte ou quando de repente se encontra por ele envolvido ou quando entre

ele e eles e por seu intercacircmbio se forma uma Visibilidade uma

Tangibilidade em sirdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 135) pois natildeo

pertenceriam propriamente ldquonem ao corpo como fato nem ao mundo como

fatordquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 135)88

Merleau-Ponty observa portanto uma reversibilidade existente

no corpo a apalpaccedilatildeo das coisas promovida pelo olhar e a visatildeo delas

promovidas pelo tato Da mesma forma no mundo encontramos tambeacutem

uma reversibilidade como a de um vermelho nos reenviando a um mundo

colorido que tambeacutem eacute taacutetil pois ldquose nos voltarmos para o vidente

88 ldquoEacute a essa Visibilidade a essa generalidade do Sensiacutevel em si a esse anonimato inato do Eu-mesmo que haacute pouco chamaacutevamos carne e sabemos que natildeo haacute nome na filosofia tradicional para designaacute-lo A carne natildeo eacute mateacuteria no sentido de corpuacutesculos de ser que se adicionariam ou se continuariam para formar os seres O visiacutevel (as coisas e meu corpo) tambeacutem natildeo eacute natildeo sei que material lsquopsiacutequicorsquo que seria soacute Deus sabe como levado ao ser por coisas que existem como fato e agem sobre meu corpo de fato De modo geral ele natildeo eacute fato nem soma de fatos lsquomateriaisrsquo ou lsquoespirituaisrsquo Natildeo eacute tampouco representaccedilatildeo para um espiacuterito um espiacuterito natildeo poderia ser captado por suas representaccedilotildees recusaria essa inserccedilatildeo no visiacutevel que eacute essencial para o videnterdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 135)

136

constataremos que este natildeo eacute analogia ou vaga comparaccedilatildeo devendo ser

aceito ao peacute da letra O olhar diziacuteamos envolve apalpa esposa as coisas

visiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 130) Assim ldquocomo se estivesse com

elas numa relaccedilatildeo de harmonia preestabelecida como se as soubesse antes

de sabecirc-las move-se agrave sua maneira em seu estilo sincopado e imperiosordquo

(MERLEAU-PONTY 1992 p 130) Contudo ldquoas vistas tomadas natildeo satildeo

quaisquer natildeo olho um caos mas coisas de sorte que natildeo se pode dizer

enfim se eacute ele ou se satildeo elas quem comandardquo (MERLEAU-PONTY 1992 p

130) Notamos deste modo que entre o vidente-visiacutevel e o visiacutevel-invisiacutevel

natildeo existem delimitaccedilotildees natildeo existem mais fronteiras Pensando assim

como se daria a visatildeo do outro Conforme Merleau-Ponty

uma vez que vemos outros videntes natildeo temos apenas diante de noacutes o olhar sem pupila espelho sem estanho das coisas este paacutelido reflexo fantasma de noacutes mesmos que elas evocam ao designar um lugar entre elas de onde as vemos doravante somos plenamente visiacuteveis para noacutes mesmos graccedilas a outros olhos Essa lacuna onde se encontram nossos olhos nosso dorso eacute de fato preenchida mas preenchida por um visiacutevel de que natildeo somos titulares por certo para acreditarmos numa visatildeo que natildeo eacute a nossa para a levarmos em conta eacute sempre inevitaacutevel e unicamente ao tesouro da nossa visatildeo que recorremos e portanto tudo quanto a experiecircncia nos pode ensinar jaacute estaacute nela previamente esboccedilado Mas eacute proacuteprio do visiacutevel diziacuteamos ser a superfiacutecie de uma profundidade inesgotaacutevel eacute o que torna possiacutevel sua abertura a outras visotildees aleacutem da minha (MERLEAU-PONTY 1992 p 139)

Para Merleau-Ponty no momento em que outras visotildees aleacutem da

nossa realizam-se ldquoacusam os limites de nossa visatildeo de fato salientam a

ilusatildeo solipsista que acredita que toda superaccedilatildeo eacute auto-superaccedilatildeo Pela

primeira vez o vidente que sou me eacute verdadeiramente visiacutevelrdquo (MERLEAU-

PONTY 1992 p 139) pois ldquooutrem natildeo eacute tanto uma liberdade vista de fora

como destino e fatalidade um sujeito rival de outro sujeito mas um

prisioneiro no circuito que o liga ao mundo como noacutes proacuteprios e assim

tambeacutem no circuito que o liga a noacutesrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 241)

sendo este mundo comum um verdadeiro intermundo Portanto natildeo

podemos separar um i1diov kosmov nosso mundo privado de um koinov

kosmov o mundo comum pois eles se encontram interligados Contudo o

ldquoque aconteceria se eu contasse natildeo somente com minhas visotildees de mim

137

mesmo mas tambeacutem com as que outrem teria de si e de mim Meu corpo

como encenador da minha percepccedilatildeo jaacute destruiu a ilusatildeo de uma

coincidecircncia de minha percepccedilatildeo com as proacuteprias coisasrdquo (MERLEAU-

PONTY 1992 p 20) Assim ldquoentre mim e elas haacute doravante poderes

ocultos toda essa vegetaccedilatildeo de fantasmas possiacuteveis que ele soacute consegue

dominar no ato fraacutegil de olharrdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 20)

Antes de ser submetido agraves suas condiccedilotildees de possibilidade e

reconstruiacutedo agrave sua imagem o outro deve apresentar-se como participante de

uma uacutenica Visatildeo da qual ele tambeacutem participa Mesmo natildeo vivendo a vida

dela sob uma certa ausecircncia e longa distacircncia o sujeito que percebe torna-

se tatildeo proacuteximo ldquoassim que se reencontra o ser do sensiacutevel pois o sensiacutevel eacute

precisamente aquilo que sem sair de seu lugar pode assediar mais de um

corpordquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 15) O olhar toca manifesta este enigma

do nosso corpo vidente-visiacutevel que se encontra mergulhado em uma textura

de invisibilidade Quando um dos meus visiacuteveis se faz vidente assisto ao

milagre de uma metamorfose que faz com que ldquodoravante ele deixa de ser

uma das coisas estaacute em circuito com elas ou interpotildee-se entre elas Quando

o olho meu olhar jaacute natildeo se deteacutem jaacute natildeo termina nele como se deteacutem e

termina nas coisasrdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 15) O olhar temporaliza

pre-sentifica tem o poder de da mesma forma que a fala autecircntica em

relaccedilatildeo agrave fala secundaacuteria dar um sentido novo de mudar de sentido com

todas as possibilidades que esta palavra ndash sentido ndash possa expressar

225 A transformaccedilatildeo da luz natural e a releitura do Cogito

Nestas consideraccedilotildees encontramos pois a criacutetica de Merleau-

Ponty especialmente nos uacuteltimos trabalhos ao pensamento cartesiano em

seu modo de lidar com a representaccedilatildeo com a similitude fazendo do mundo

uma mero ldquoespetaacuteculordquo para o sujeito No entanto apesar de tudo isto

mediante seu modo de encarar a histoacuteria da filosofia conforme veremos no

proacuteximo capiacutetulo Merleau-Ponty tambeacutem encontra em Descartes algumas

vias de superaccedilatildeo ou ao menos o reconhecimento dos embaraccedilos para os

quais a intuitus mentis o havia conduzido Eacute neste sentido que para

138

Merleau-Ponty haveria tambeacutem no pensamento cartesiano uma retomada

da ldquoluz naturalrdquo e a transformaccedilatildeo da compreensatildeo que se tinha dela

estando o problema justamente no fato de que talvez volens nolens a

intuitus mentis natildeo deixaria de ser tributaacuteria de uma ldquovisatildeo dos olhosrdquo Por

conseguinte para Merleau-Ponty entre as Meacuteditations e a Regulaelig o que

encontrariacuteamos seria antes um descompasso Conforme diraacute em um de seus

cursos ldquoa foacutermula das Meacuteditations natildeo eacute cogito ergo sum ndash mas eu sou eu

existo ndash o que sou eurdquo pois

A primeira verdade natildeo eacute senatildeo o reverso da duacutevida (texto da Recherche de la veacuteriteacute) ela eacute um estofo fino tecido de negaccedilatildeo eu sou presenccedila a si da negaccedilatildeo mesma e indeclinaacutevel negaccedilatildeo da negaccedilatildeo natildeo como puro e simples restabelecimento de um positivo o positivo eacute envolvido pela duacutevida e para sempre Mas o natildeo que a excluiacutea aparece como uma nova maneira de ser que subentende todos os juiacutezos negativos e atraveacutes deles todas as verdades da simples visatildeo Qual eacute esta maneira de ser eu sou mas qual eacute meu ser Eacute o ser de apariccedilatildeo um ser 1) do aparecer-se 2) do aparecer (MERLEAU-PONTY 1996 p 257-8)

No cartesianismo apesar de toda evidecircncia da intuitus mentis a

verdade passa a ter ldquofios de natildeo-serrdquo a ldquoluz naturalrdquo se purifica e a uacutenica

certeza que se tem eacute de natildeo ter certezas (MERLEAU-PONTY 1996 257-8)

tal como nas Regulaelig acenava Descartes ao falar da duacutevida socraacutetica Logo

na compreensatildeo cartesiana do Cogito como res extensa para Merleau-Ponty

natildeo haveria necessariamente um puro substancialismo uma vez que ldquoa

lsquonatureza pensantersquo que eu apercebo e desenrolo reflexivamente natildeo eacute

ativamente pensante senatildeo porque ela eacute minha porque ela eacute tomada em

estado nascente porque eu sou ou ela eacute em mimrdquo (MERLEAU-PONTY 1996

p 259) Haveria pois um Cogito antes do Cogito uma Cogitatio entendida

como centro de uma abertura a ser preenchida pelo pensamento de algo

dado que se eu duvido eu duvido de alguma coisa Por conseguinte como

iraacute acentuar Merleau-Ponty apresentando sua tese a partir de uma ruptura

com a ldquoordem das razotildeesrdquo ldquohaacute o cogito operante ou eu sou e o cogito reflexivo

ou enunciado cogito vertical que funda o horizontal e que natildeo eacute simplicidade

de uma natureza pura (todo o resto natildeo eacute menos lsquoinseparaacutevelrsquo de mim)rdquo

(MERLEAU-PONTY 1996 p 244) Como diraacute Descartes

139

Vocecirc mal me mostrou a fraca certeza que temos da existecircncia de coisas das quais o conhecimento natildeo nos adveacutem senatildeo pelos sentidos que eu jaacute comecei a duvidar delas e isto foi suficiente para me fazer aparecer ao mesmo tempo minha duacutevida e a certeza desta duacutevida de tal modo que eu posso afirmar que comecei a me conhecer com certeza no momento mesmo em que comecei a duvidar Mas minha duacutevida e minha certeza natildeo se relacionariam com os mesmos objetos Com efeito minha duacutevida se aplicava unicamente agraves coisas que estatildeo fora de mim ao passo que minha certeza diria respeito agrave minha duacutevida e a mim mesmo O que diz Eudoxo eacute portanto verdadeiro que haacute coisas que natildeo podemos aprender senatildeo as vendo (DESCARTES 1996j p 525)89

Logo a conclusatildeo de Merleau-Ponty de que ldquoo ego existo ego

sum eacute um estreitamento de duacutevida e de certeza natildeo eacute pura constataccedilatildeo

positiva reestabelecimento de um ser-objetordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p

245) Daiacute que o sentido da visatildeo tenha mudado passando a ser a visatildeo de

minha duacutevida logo a visatildeo de um invisiacutevel A existecircncia do sujeito natildeo

permanece mais um ldquopedaccedilo de existecircncia comumrdquo ou mesmo um mero

ldquoser-objetordquo sendo em contrapartida ldquo[] a presenccedila a lsquosirsquo de toda visatildeo

enquanto unicamente minha de toda negaccedilatildeo enquanto modo de ser ou de

aparecer tambeacutem enquanto nada negaccedilatildeo da negaccedilatildeo mas que natildeo eacute

como em aacutelgebra resultado positivordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 247)

Ora o que nos indica Merleau-Ponty ao falar neste Cogito operante O

filoacutesofo nos diz em primeiro lugar que na articulaccedilatildeo cartesiana de um

ldquoCogito verticalrdquo o que encontramos eacute o esboccedilo de uma fenomenologia

Sendo assim no que Merleau-Ponty denomina uma ldquomudanccedila de sentido da

luz naturalrdquo o que perde o seu sentido eacute justamente o seu caraacuteter

recortante fragmentador aprisionado pela tatildeo-somente apreensatildeo das

figuras Ora o que podemos ganhar com este outro Cogito Para Merleau-

Ponty o fato de se diferenciar das verdades matemaacuteticas deixando de ser a

89 ldquoVixdum mihi exiguam illam quam habemus de rerum quarum cognitio non nisi sensuum auxilio ad nos pervenit exsistentia certitudinem ostenderas cum de iis dubitare incepit idque simul ad mihi meam dubitationem ejusdemque certitudinem commonstrandum suffecit ita ut possim adfirmare simulac dubitare sum adgressus etiam cum certitudine me cognoscere occepisse Sed non ad eadem objecta mea dubitatio meaque certitudo referebantur Quippe mea dubitatio circa eas tantum versabatur res quaelig extra me exsistebant certitudo vero meam dubitationem meque ipsum spectabat Verum itaque est quos Eudoxus dicit dari quaeligdam quaelig nisi ea videmus discere non possumusrdquo (DESCARTES 1996j p 525)

140

ldquocerteza do que eacute visto como distintordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 266)

ldquoseparaacutevelrdquo ldquoeideacuteticordquo ldquoresiacuteduo invariante do fatordquo passasando a ser antes

[] a certeza da apresentaccedilatildeo da apariccedilatildeo a do testemunho interior do ldquoconhecimento interiorrdquo natildeo teacutetico da natildeo-dissimulaccedilatildeo de mim a mim e de todas as coisas a mim e esta accedilatildeo de mostrar porque ela renuncia a ser imediatamente verdade (distinccedilatildeo) por que ela acolhe tudo (sono sonho sentir imaginar) sem nada recalcar em nome da distinccedilatildeo natildeo eacute mais somente minha natureza como fato contigente mas minha natureza como testemunho uacuteltimo [] apoacutes

o qual natildeo haacute nada (MERLEAU-PONTY 1996 p 267)

Aleacutem disso para Merleau-Ponty ganhamos tambeacutem pelo fato de

que a luz natural fora purificada ldquonatildeo eacute mais somente minha constituiccedilatildeo

psiacutequica tal qual evidecircncia psicoloacutegicardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p267)

Mas o que possibilitou isto Para o filoacutesofo tatildeo-somente graccedilas agrave mediaccedilatildeo

de ldquouma e0poxh [epocheacute] que renuncia agrave distinccedilatildeo imediata do verdadeiro e do

falso e que a tiacutetulo de cogitationes aceita tudordquo (MERLEAU-PONTY 1996 p

267) Por conseguinte nesta transformaccedilatildeo o que temos eacute uma certa

purificaccedilatildeo da luz natural que ao contraacuterio de fundar um abismo entre o

verdadeiro e o falso torna-se capaz de ldquoesclarecer ao mesmo tempo a

mistura dela mesma e da obscuridaderdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 267)

Certamente podemos notar esta conversatildeo na concepccedilatildeo cartesiana de

Natureza estando na variaccedilatildeo de duas atitudes simetricamente opostas a

razatildeo tambeacutem do que Merleau-Ponty iraacute considerar a sua ldquodiplopiardquo Eacute o que

a seguir tentaremos tratar

23 A gecircnese da Crise nas relaccedilotildees com a Natureza Em suas Notes de Cours Merleau-Ponty fala de uma ldquocrise da

racionalidade nas relaccedilotildees com a Naturezardquo Neste contexto o filoacutesofo faz

referecircncia aos perigos de um ldquoultranaturalismordquo que na verdade oculta um

ldquoultra-artificialismordquo Eacute uma criacutetica ao que seria o ldquocaraacuteter teacutecnico da fiacutesica

modernardquo ldquoa teacutecnica natildeo eacute mais unicamente a aplicaccedilatildeo da ciecircncia mas

condiccedilatildeo da ciecircncia O espiacuterito (artificialista) da teacutecnica jaacute estava presente

intencionalmente desde o iniacutecio da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica ndash universo de

objetos em princiacutepio transparentes para o sujeitordquo (MERLEAU-PONTY 1996

141

p 42) Pelo que notamos Merleau-Ponty se aproxima aqui da Krisis eacute assim

que iraacute compreender a ciecircncia moderna no quadro da etiologia husserliana

nos horizontes de um projeto de matematizaccedilatildeo que nos remete ao mundo

claacutessico Contudo se o ldquoespiacuterito artificialistardquo da ciecircncia jaacute estava presente

em seu comeccedilo como o encontramos agora Teria ele permanecido Para o

filoacutesofo ldquo[] agora [o que encontramos eacute o] envolvimento visiacutevel da ciecircncia

na teacutecnica de onde um novo prometeiacutesmo O universo eacute universo de

constructa O universo todo humano e todo inumanordquo (MERLEAU-PONTY

1996 p 42) Deste modo seraacute no ensejo de uma dominaccedilatildeo da Natureza

mediante uma ldquoreconciliaccedilatildeo do homem com o homemrdquo que justamente

encontraremos este ldquonovo prometeiacutesmordquo

Constituindo-se como um ldquoverdadeiro complexo do pensamento

contemporacircneordquo Merleau-Ponty considera este pensamento duplamente

falso ldquotanto em sua afirmaccedilatildeo da Natureza como em sua negaccedilatildeo da

Naturezardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 43) Daiacute os problemas que o filoacutesofo

vislumbra no paradoxo presente jaacute na gecircnese do saber cientiacutefico moderno

[claacutessico] que se desenrola a partir da ideia de uma ldquoNatureza em sirdquo e de

uma ldquoNatureza construiacuteda na histoacuteria humanardquo Por conseguinte ldquoa

estupidez de querer compreender o acontecimento mesmo da ciecircncia fato

atual como fato da Natureza (em si) no sentido que a ciecircncia daacute a esta

palavrardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 43) Se no mundo claacutessico os

paradoxos desta oposiccedilatildeo natildeo se tornaram problemaacuteticos conforme nos diz

o filoacutesofo eacute justamente por terem sido durante muito tempo mascarados

pela mediaccedilatildeo de uma Razatildeo divina Mas poderia a ciecircncia de hoje fazer uso

deste mesmo subterfuacutegio ou de um subterfuacutegio similar Para Merleau-Ponty

Ao contraacuterio a ciecircncia de hoje natildeo pode pretender a um tal fundamento ela eacute manifestamente humana e entatildeo o ciacuterculo homem-natureza eacute evidente Mas isto que eacute a situaccedilatildeo de crise para nosso pensamento poderia ser ponto de partida de um aprofundamento as energias que saem do quadro do mundo constituiacutedo desvelam a contingecircncia Mas esta tomada de consciecircncia de um Boden de uma sedimentaccedilatildeo poderia ser redescoberta da Natureza (com a condiccedilatildeo de que natildeo se conceba esta Natureza como a descreve a ciecircncia objetivista e como causa universal em si) redescoberta de uma Natureza-para-noacutes como solo de toda a nossa cultura e onde se enraiacuteza em particular nossa atividade criadora que natildeo eacute portanto incondicionada que tem de

142

manter [a] cultura em contato com o ser bruto no confronto com ele Eacute a loacutegica do mundo da teacutecnica que reduz o ser agrave alternativa e agrave antinomia do em si puro objeto e do artefato (MERLEAU-PONTY 1996 p 43-44 O grifo eacute nosso)

Trata-se pois da recusa do que seria na verdade o conceito

cartesiano de Natureza vendo nele a genecircse dos conflitos presentes na

ciecircncia moderna em seu direcionamento a um artificilismo incapaz de um

diaacutelogo com uma concepccedilatildeo da Natureza que natildeo esteja previamente

condenada a um objetivismo absoluto Eacute assim que o filoacutesofo procura

elaborar seus cursos sobre o conceito de Natureza indagando-se sobre os

elementos histoacutericos presentes no pensamento moderno buscando neles

uma relaccedilatildeo com os ldquosintomas de uma nova tomada de consciecircncia da

Naturezardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 43-44) Todavia adverte Merleau-

Ponty sua finalidade natildeo consiste em elaborar a ldquohistoacuteria de um conceitordquo

daiacute a sua opccedilatildeo em ldquo[] tomar como referecircncia uma concepccedilatildeo lsquocartesianarsquo

que com razatildeo ou sem ela ainda hoje domina a nossas ideias sobre a

Natureza mas com a condiccedilatildeo de trazer agrave superfiacutecie ao discuti-la os temas

preacute-cartesianos que natildeo deixam de ressurgir depois de Descartesrdquo

(MERLEAU-PONTY 1968 p 97) Daiacute a justificativa do filoacutesofo

Ao dar por tema uacutenico aos cursos deste ano ndash e ateacute aos do proacuteximo ano ndash o conceito de Natureza pareceria que insistimos em um tema inatual Mas o abandono em que caiu a filosofia da Natureza abarca certa concepccedilatildeo do espiacuterito da histoacuteria e do homem Tal eacute a permissatildeo que nos concedemos de fazecirc-los aparecer como pura negatividade De modo inverso ao retornar agrave filosofia da Natureza natildeo nos desviamos senatildeo em aparecircncia destes problemas preponderantes pois tratamos de preparar uma soluccedilatildeo que natildeo seja imaterialista Deixando agrave parte todo naturalismo uma ontologia que omite a Natureza se encerra no incorporal e daacute justamente por esta razatildeo uma imagem fantaacutestica do homem do espiacuterito e da histoacuteria Se insistimos no problema da Natureza eacute com a dupla convicccedilatildeo de que ela natildeo eacute por si soacute uma soluccedilatildeo do problema ontoloacutegico e de que muito menos eacute um elemento subalterno ou secundaacuterio de tal soluccedilatildeo (MERLEAU-PONTY 1968 p 91-92)

Esta justificativa a nosso ver se harmoniza com o que o filoacutesofo

procura refletir em suas Notes du Travail quando tenta responder agrave

pergunta que ele mesmo se formulara ldquoPor que a Naturezardquo Merleau-Ponty

reconhece que a tentativa de tratar todos os ldquogecircneros do serrdquo como variantes

143

do ldquoser naturalrdquo estaacute fadada ao descreacutedito e com a devida razatildeo

principalmente se levarmos em conta existir tatildeo-somente uma experiecircncia

humana e isto de tal modo a fazer com que se torne absurdo o ensejo de

empreender uma transcriccedilatildeo dessa experiecircncia que se expressa por

siacutembolos em realidades ldquonaturaisrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)

Contudo o problema ainda persistiria se nos esquececircssemos de que ldquoestes

siacutembolos natildeo existem sem relaccedilotildees com os que fazem o tecido de nossa

histoacuteria A lsquonaturezarsquo natildeo eacute pois somente o artefato de uma consciecircncia

cientiacutefica [] ela eacute um mito no qual as subjetividades histoacutericas projetam e

ocultam a cada momento os seus conflitosrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25]

vol VI) Por conseguinte ldquofalar dela como de um objeto de reflexatildeo separaacutevel

do homem ou da histoacuteria seria de fato subordinar de antematildeo o ser do

homem a um princiacutepio exterior e desconhecido seria se tornar cego agrave

negaccedilatildeo da natureza que o faz homem e capaz de conceber ou de sonhar

uma naturezardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)

Diante destas consideraccedilotildees encontramos os motivos pelos

quais se torna necessaacuterio fazer uma oposiccedilatildeo a uma compreensatildeo da

Natureza que se decirc como omnitudo realitatis No entanto acentua Merleau-

Ponty natildeo pode haver nisto uma justificativa e um ultimato para se ldquoremeter

o conceito de natureza a um capiacutetulo de antropologiardquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [25] vol VI) capaz de natildeo soacute deixar escapar o problema em questatildeo

mas a proacutepria filosofia visto que tal humanismo preso em uma visatildeo moral

ao impedir o proacuteprio exerciacutecio da interrogaccedilatildeo acabaria por dissolver ldquocom

os falsos problemas os verdadeirosrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)

Esta eacute a razatildeo pela qual o humanismo natildeo se permite perguntar sobre a

Natureza a recomendaccedilatildeo para que natildeo a ldquotomemos ao peacute da letrardquo dado

que ldquo[] cada propriedade que ela avanccedila deve ser tida por uma operaccedilatildeo do

sujeito traduzida diante do tribunal da filosofia ou da filosofia da histoacuteria e

finalmente apreciada sob este vieacutesrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI)

Encontrariacuteamos aqui pois a negaccedilatildeo da relaccedilatildeo que se estabelece entre

Natureza e Histoacuteria Pelo contraacuterio natildeo se trata da negaccedilatildeo de que haja

entre elas e o conceito de homem uma espeacutecie de ldquonovelordquo o que se recusa eacute

a ideia de que a Natureza seja tratada apenas como um ldquodetalhe da histoacuteria

144

humanardquo Diante disto o esforccedilo de Merleau-Ponty passa a ser o de tentar

restitui-la encontrar em meio agraves ideologias nas quais ela se vecirc inserida o

que seriam os ldquotraccedilos verdadeiros do lsquoidolo veladorsquordquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [25] vol VI) tendo-se em conta que ldquotoda posiccedilatildeo de uma natureza

implica uma subjetividade e mesmo uma intersubjetividade histoacutericardquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [25] vol VI) Natildeo estaria nisto a recusa do

filoacutesofo mas o que se pretende mostrar eacute que tal afirmaccedilatildeo natildeo faz com que

ldquoo sentido do ser natural seja esgotado pelas transcriccedilotildees simboacutelicas com

que natildeo haja nada a pensar antes delasrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [25]

vol VI) mas em contrapartida ldquo[] mostra somente que o ser da natureza

estaacute por ser buscado aqueacutem de seu ser postordquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[25] vol VI) Por conseguinte

Se eacute permitido a uma filosofia reflexiva tratar toda filosofia da natureza como uma filosofia do espiacuterito ou do homem disfarccedilada e de julgaacute-la em nome das condiccedilotildees de todo objeto possiacutevel para um espiacuterito ou para um homem esta suspeita generalizada que eacute a reflexatildeo natildeo poderia se exceptuar da busca eacute preciso que se volte contra ela mesma e que depois de ter mensurado o que se arrisca perder ao comeccedilar pela natureza se faccedila a conta do que se perdeu seguramente ao comeccedilar pela subjetividade o ser primordial contra o qual toda reflexatildeo se institui e sem o qual natildeo haacute mais filosofia na ausecircncia de um fora ao qual ela deve ser medida (MERLEAU-PONTY NBNF [25-26] (3) )

Para Merleau-Ponty ao se perguntar sobre o porquecirc de um

direcionamento ao conceito de Natureza o problema natildeo estaacute em tentar

compreendecirc-la mediante a subjetividade ou mesmo a partir do problema da

liberdade mas em mostrar que tomando estas questotildees especialmente

como ponto de partida a consequecircncia seraacute a estagnaccedilatildeo e o recalque do

que realmente se espera elucidar visto que alimentariam ainda o equiacutevoco

em se entender todo ser na condiccedilatildeo de ser-objeto Daiacute a legitimidade em se

crer que um comeccedilo pela Natureza natildeo seja uma restriccedilatildeo Ao fazer isso o

que espera Merleau-Ponty eacute que

[] se leve em consideraccedilatildeo natildeo somente o ser que eacute objeto de nosso olhar e de nossa escolha mas o que nos precede circunda-nos sustenta-nos que nos traz misturados com os outros homens e eacute acessiacutevel atraveacutes de mais de uma perspectiva que jaacute estaacute ali diante delas precede-as funda-as faz a junccedilatildeo de uma a outra e no interior de cada uma que ldquomanteacutemrdquo por si mesma manteacutem todas as coisas juntas e natildeo se reduz ao que cada um de nos deve ser Isto

145

natildeo quer dizer que se faccedila do ser natural a causa do ser visiacutevel nem da filosofia da natureza a filosofia primeira Na verdade natildeo haacute filosofia primeira em si nem secunda tudo eacute primeiro tudo eacute segundo em filosofia cada tema filosoacutefico eacute um disfarce de todos os outros Justamente se levarmos a seacuterio esta ideia natildeo podemos mais reduzir a filosofia da natureza agrave filosofia da histoacuteria do que a filosofia da histoacuteria agrave filosofia da natureza Eacute preciso somente seguir uma ordem que eacute indicada pelo sentido mesmo de nossa experiecircncia Se a natureza eacute positividade e o homem negaccedilatildeo se eacute preciso dizer ao menos em primeira aproximaccedilatildeo que o ser eacute e que o nada natildeo eacute ou que o nada precisa do ser para vir ao mundo entatildeo haacute mais razotildees de ir do ser ao nada do que de ir do nada ao ser a perspectiva da filosofia natildeo pode ser somente centriacutefuga nem a definiccedilatildeo do ser reduzida a do ser objeto (MERLEAU-PONTY NBNF [27] (6))

O que o filoacutesofo pretende dizer com estas palavras eacute justamente

que natildeo podemos nos esquecer de compreender o homem como um

ldquoacontecimentordquo que natildeo podemos nos olvidar de seu nascimento do que

constitui a vivecircncia de sua passividade e de sua existecircncia Logo o que se

espera de uma ldquoontologia da naturezardquo eacute que nos ensine os ldquomodos de

conexatildeordquo um ldquosentido dos sentidosrdquo que estaacute presente na origem de ldquotoda

histoacuteria humanardquo daiacute que o direcionamento agraves premissas do subjetivismo

ou de uma filosofia da liberdade natildeo seja suficiente Por conseguinte

A natureza natildeo nos interessa pois nem por si mesma nem como princiacutepio universal de objetividade mas como iacutendex do que nas coisas resiste agrave operaccedilatildeo da subjetividade livre e como acesso concreto ao problema ontoloacutegico Se recusaacutessemos todo sentido filosoacutefico agrave ideia de natureza e se refletiacutessemos diretamente sobre o ser correriacuteamos o risco de nos situar de imediato no niacutevel da correlaccedilatildeo sujeito-objeto que eacute elaborada e segunda e de deixar escapar um componente essencial do ser o ser bruto ou selvagem que natildeo foi convertido ainda em objeto de visatildeo ou de escolha (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7))

Tendo em vista estas consideraccedilotildees compreendemos o que

levaraacute Merleau-Ponty a se concentrar no conceito cartesiano de Natureza

principalmente por haver ali a pretensatildeo de reduzir o ser da Natureza tanto

agrave extensatildeo como tambeacutem agrave exterioridade Mas o que justificaria a

centralidade do pensamento cartesiano Em que sentido estaria ele na

gecircnese do naturalismo cientificista Primeiramente vale lembrar a mudanccedila

que sofre em relaccedilatildeo aos antigos a concepccedilatildeo de Natureza no mundo

claacutessico Em Aristoacuteteles por exemplo o Cosmos eacute em primeiro lugar

146

qualitativo Eacute neste sentido que o De Cœlo natildeo ousa ultrapassar no

movimento dos corpos o viacutenculo que se estabelecia entre o ldquoleverdquo e o

ldquopesadordquo E qual a razatildeo A Natureza ainda permanecia estreita ela ainda

seguia a ldquomedida do homemrdquo Pensando nisso pois entendemos o interesse

de Merleau-Ponty por Descartes eacute que a partir dele notamos a formulaccedilatildeo

de uma nova ideia de Natureza Eacute assim que Descartes encontra um

conceito que nasce tanto da recepccedilatildeo da compreensatildeo galileana dos

fenocircmenos fiacutesicos como da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde mediante sua

sublimaccedilatildeo em Deus da finalidade aristoteacutelica estando nisto justamente

na ideia de ldquoinfinitordquo o elemento novo da nova concepccedilatildeo de natureza que

viria a ser delineada Por conseguinte a Natureza natildeo seraacute mais vista

mediante sua divisatildeo em ldquoregiotildees qualitativamente distintasrdquo mas a partir

de sua simultacircnea cisatildeo em uma natureza naturante (natura naturans) e

uma natureza naturada (natura naturata) ou seja entre uma natureza

capaz de subsistir por si mesma e uma natureza criada e produzida sendo

portanto a natureza naturada um produto da natureza naturante Todavia

mais do que assimilar a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde Descartes opera uma

mudanccedila Enquanto Tomaacutes de Aquino mantinha o termo Natureza no intuito

de estabelecer um viacutenculo com a noccedilatildeo grega em Descartes o que temos eacute

uma radical cisatildeo Do mesmo modo enquanto na tradiccedilatildeo judaico-crista se

falava que a razatildeo de haver duas naturezas estava sempre na distinccedilatildeo entre

um ldquoestado de naturezardquo anterior ao pecado e outro posterior no

pensamento cartesiano o que encontramos eacute a oscilaccedilatildeo entre uma

natureza que nos conduz a uma ldquoontologia do objetordquo e outra natureza que

nos leva a uma ldquoontologia do existenterdquo Ora quais as razotildees desta oscilaccedilatildeo

A primeira oscilaccedilatildeo centrada em uma ldquoontologia do objetordquo

funda-se principalmente no modo como Descartes iraacute entender o conceito

de ldquofinalidaderdquo ao vinculaacute-lo a um Deus pensado como ldquoinfinitordquo Uma vez

que na infinitude divina os efeitos e as causas satildeo dados de modo

simultacircneo natildeo havendo uma dissociaccedilatildeo entre os fins e os meios

(MERLEAU-PONTY 2000a p 11) mas manifestamente um acordo o mundo

criado por Deus natildeo poderia lhe ser imprevisiacutevel Natildeo haveria pois uma

anterioridade do todo em relaccedilatildeo agraves partes Por conseguinte o que temos eacute

147

uma Natureza despojada de sua interioridade Se ela eacute feita agrave imagem de

Deus logo seraacute ldquose natildeo infinita ao menos indefinidardquo visto ser ldquo[] a

realizaccedilatildeo exterior de uma racionalidade que estaacute em Deus Finalidade e

causalidade jaacute natildeo se distinguem e essa indistinccedilatildeo exprime-se na imagem

da lsquomaacutequinarsquo a qual mistura um mecanismo e um artificialismo Eacute preciso

um artesatildeo nesse sentido tal ideia eacute antropomoacuterficardquo (MERLEAU-PONTY

2000a p 12) Natildeo possuindo interioridade a Natureza passa a ser um em

si existindo como uma maacutequina regida por leis seguindo um

ldquofuncionamento automaacuteticordquo Sendo criada por um Deus infinito natildeo

haveria razatildeo em compreender a finalidade do ser natural como a luta de

uma forccedila que pondo-se contrariamente agrave ldquocontingecircncia das coisasrdquo

tentaria reconduzi-las agrave ordem (MERLEAU-PONTY 2000a p 12) o que

justifica a ideia de que havendo as mesmas leituras mesmo Deus tendo

criado um outro mundo o resultado natildeo seria diferente Como entatildeo

compreender nessa primeira concepccedilatildeo de Natureza a ldquofinalidaderdquo Ao

compreender a ordem como uma noccedilatildeo de iure a finalidade natildeo eacute outra

coisa senatildeo o proacuteprio ldquoexerciacutecio do pensamento infinito de Deusrdquo daiacute que

A Natureza eacute como Deus um ser que eacute tudo aquilo que pode ser possibilidade absoluta ela eacute mesmo essecircncia senatildeo natildeo teria podido ser A experiecircncia soacute tem um papel auxiliar em fiacutesica ela nos ajuda a natildeo nos perdermos pelo caminho mas jamais serve de prova Quando se opotildeem a Descartes argumentos experimentais ele responde que eacute como se quiseacutessemos mostrar com um esquadro defeituoso que os acircngulos de um triacircngulo natildeo satildeo iguais a dois retos sua fiacutesica eacute deduzida tal como sua geometria A natureza exterior seria por conseguinte sinocircnimo da natureza simples de que falam as Regulaelig e da qual elas parecem apresentar todas as caracteriacutesticas [] A realidade possui um certo quid a partir do qual tudo o que lhe pertence pode ser extraiacutedo (MERLEAU-PONTY 2000a p 17)

Por conseguinte para Descartes segundo Merleau-Ponty ldquoseja

qual for a ruptura entre a existecircncia de Deus e a do mundo eacute preciso dizer

que este mundo tal como eacute eacute uma consequecircncia desse aparecimento

ilimitado que eacute Deusrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 206) Esta ontologia se

apresenta pois como ldquoretrospectivardquo haja vista que como salientaraacute

Merleau-Ponty ldquoo nervo desse pensamento eacute a ideia segundo a qual de uma

certa maneira tudo estaacute dado que atraacutes de noacutes haacute a plenitude que conteacutem

148

tudo aquilo que pode aparecerrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 206) O que

isto significa Que relaccedilatildeo haveria com a concepccedilatildeo de um Deus ldquoinfinitordquo

Como dissera Descartes em uma carta endereccedilada a Clerselier

Digo que a noccedilatildeo que tenho do infinito estaacute em mim antes que a do finito porque disto unicamente que concebo o ser ou o que eacute sem pensar se eacute finito ou infinito eacute o ser infinito que eu concebo mas a fim de que eu possa conceber um ser finito eacute preciso que eu subtraia algo desta noccedilatildeo geral do ser a qual por conseguinte deve preceder (DESCARTES 1996c p 356)

Para Merleau-Ponty ao conceber assim o infinito o que se

atesta eacute que ldquo[] a intuiccedilatildeo do ser eacute de imediato a do ser diante de uma

liberdade ou para uma liberdaderdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7) ) Em

outros termos ldquo[] noacutes tiramos de nossa ideia de liberdade a ideia do

infinito e a lsquotransferimosrsquo daiacute agrave naturezardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7))

Tal procedimento eacute o mesmo que encontramos tambeacutem na tradiccedilatildeo judaico-

cristatilde O que o ldquoinfinitordquo nos diz pois desta ldquoprimeira concepccedilatildeo de

naturezardquo Em sua nota diraacute Merleau-Ponty

A absoluta plenitude e densidade do ser que Descartes exprime de modo ingecircnuo ao dizer que eacute de si infinito e que quando falamos sem outra precisatildeo do ser visamos espontaneamente um ser sem restriccedilotildees eacute o impacto sobre os fenocircmenos de uma liberdade indiferente em relaccedilatildeo a eles que ela os contempla ou os assume eacute o correlato de uma pura visatildeo distante ou de um fazer em uacuteltima anaacutelise imotivado Que o ser deva ser assim definido no halo de uma liberdade que o encontra como ser absoluto porque ela mesma natildeo eacute nada isto natildeo eacute evidente mas esquecemos que esta maneira de interrogaacute-lo tem sua data histoacuterica e natildeo se impotildee a toda filosofia possiacutevel [] A concepccedilatildeo cartesiana de natureza eacute solidaacuteria de todo um complexo ontoloacutegico no qual as noccedilotildees de infinito de possiacutevel e de atual de corpo em particular estatildeo implicadas e que noacutes precisamos desfazer se queremos recolocar o problema do ser (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7))

Frente a isto eacute que o filoacutesofo nota a necessidade de encontrar

uma ldquofilosofia mais satisfatoacuteriardquo de nos desfazer portanto desta ontologia

Mas de que modo se para isto seria preciso natildeo participar dela Eacute aqui que

Merleau-Ponty situa a concepccedilatildeo cartesiana de Natureza e de infinito no seio

de uma mesma histoacuteria da qual fazemos parte logo a dificuldade em nos

desfazer dessa ontologia segundo o filoacutesofo estaacute no fato de que em noacutes ela

jaacute se tornou uma instituiccedilatildeo Daiacute que para ele a histoacuteria da filosofia

149

conforme veremos no quarto capiacutetulo natildeo deve se construir sem um diaacutelogo

que situe um pensamento em confronto com a tradiccedilatildeo nascida de seus

proacuteprios desdobramentos logo a constataccedilatildeo do viacutenculo que une o

complexo ontoloacutegico no qual nos encontramos ao pensamento cartesiano

natildeo sendo pois um non-sens lecirc-lo fora das ldquoordens da razatildeordquo mas a partir

de uma histoacuteria viva e vertical Qual o caminho

Noacutes seremos verdadeiramente conscientes disso apenas se fingirmos nada saber das noccedilotildees das quais falamos tatildeo frequentemente que perdemos de vista a instituiccedilatildeo ontoloacutegica que elas pressupotildeem e se noacutes considerarmos os pensamentos de Descartes como o etnoacutelogo encontra os costumes sobre a terra Nossa primeira tarefa eacute aqui sendo bem entendido que a histoacuteria da filosofia apenas interveacutem aqui para explicitar e elucidar uma [histoacuteria] do pensamento conexotildees habituais e prontas que estatildeo em obra em noacutes como o meio de uma criacutetica de noacutes mesmos Pode-se tanto menos se dispensar deste exame que a ontologia de Descartes foi apenas em filosofia decadecircncia e regressatildeo Pode ser que a identificaccedilatildeo do ser com o infinito e a concepccedilatildeo que resulta disso tenha feito esquecer certos elementos da filosofia antiga que precisamos reencontrar mas isto natildeo eacute um impasse eacute um caminho pelo qual seria preciso passar para reencontraacute-los em movimento em seu sentido futuro (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7) [29] (9) )

Merleau-Ponty se aproxima do pensamento cartesiano

diferentemente do modo como a tradiccedilatildeo procurou fazer assumindo a tarefa

de um etnoacutelogo O que isto significa Como entender a partir disto a noccedilatildeo

de infinito Certamente o direcionamento aos antigos como encontramos

em Heidegger eacute uma tarefa importante poreacutem para Merleau-Ponty natildeo

compreenderemos melhor o infinito cartesiano apenas retrocedendo ao que

se pensava antes dele e isto mesmo se partiacutessemos do pressuposto de que a

Natureza pensada em si mesma tal como fora compreendida em sua

gecircnese natildeo se deixasse deduzir da noccedilatildeo de infinito Do mesmo modo

mesmo que a ldquoa finitude a qual se pode voltar hoje natildeo eacute aquela de onde a

filosofia partiurdquo caso queiramos compreender bem ldquoo gecircnero de ser que

pertence agrave naturezardquo ldquoseria preciso o desenvolvimento intreacutepido da ideia de

infinitordquo pois ldquouma concepccedilatildeo moderna e diferente da natureza natildeo se

encontra senatildeo no fim desta experiecircnciardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [28] (7)

[29] (9)) Eacute por isso que como nos acentua o filoacutesofo

150

[] o movimento cartesiano em direccedilatildeo ao infinito tem um duplo sentido por um lado noacutes vamos vecirc-lo ele encerra o conceito da natureza ele a faz aparecer em sua existecircncia e no ser tal como o que eacute evidente sem alternativa a consequecircncia inevitaacutevel de um ser infinito que ele mesmo natildeo poderia ser Neste sentido aqui ele [forja] e mascara a natureza Mas aleacutem disso e sempre porque ela eacute pensada no fundo do infinito ela eacute uma concreccedilatildeo muito particular do ser sem restriccedilatildeo da qual ela natildeo esgota as possibilidades ele a sustenta com toda sua potecircncia mas a potecircncia pela qual ele a faz existir natildeo eacute solicitada por ela como por um destino ele a cria entatildeo e natildeo precisa dela para ser ele mesmo Neste horizonte ela eacute ela mesma ao menos indefinida (MERLEAU-PONTY NBNF [29] (9) (10) )

Mediante isto em consequecircncia da noccedilatildeo de infinito o que

significa dizer que a natureza seria ldquoao menos indefinidardquo Ao se tornar um

mero produto a natureza deixa de ser consequentemente o nosso meio

natal deixa de ser a ldquoganga da vida humanardquo Merleau-Ponty utiliza aqui o

termo ganga comparando a natureza ao invoacutelucro que envolve um mineacuterio

ou mesmo o meio no qual um elemento anatocircmico ou um oacutergatildeo se encontra

mergulhado Eacute justamente por se oferecer a um interminaacutevel esforccedilo de

objetivaccedilatildeo o mesmo que congrega o infinito e o finito que a natureza deixa

de ser nossa paacutetria ou como diria Husserl a Terra se torna tatildeo-somente um

objeto de investigaccedilatildeo Aqui a nosso ver o filoacutesofo se aproxima da

concepccedilatildeo husserliana de Natureza em sua criacutetica ao mundo claacutessico ao

menos tal como se esboccedila no texto que versa sobre o mundo preacute-

copernicano Eacute o que notamos nas seguintes consideraccedilotildees de Merleau-

Ponty

Dado que na raiz da natureza existente haacute um surgimento de ser ilimitado todas as suas partes envolvidas nele satildeo homogecircneas e comparaacuteveis os astros natildeo satildeo mais divinos o sol tem tarefas um campo infinito de objetos se abre agrave investigaccedilatildeo [natildeo contemplamos mais uma hierarquia dada gostariacuteamos de seguir as accedilotildees e as reaccedilotildees que as suas divisoacuterias e a gecircnese que tirou da produtividade infinita a variedade concreta dos seres e a figura deste mundo (MERLEAU-PONTY NBNF (10) )

Conforme jaacute dissemos antes do mundo claacutessico o que

encontramos eacute apenas o estabelecimento de relaccedilotildees qualitativas imperando

ainda o Cosmos aristoteacutelico logo um Cosmos qualitativo Eacute por isso que

como nota Merleau-Ponty recordando-se certamente de Koyreacute haacute em Kepler

a impossibilidade de articular a lei da gravitaccedilatildeo universal Qual a razatildeo

151

Diraacute o filoacutesofo em uma nota muito similar a um de seus cursos sobre La

Nature ldquo[] a fim de que e antes que esta lei tenha podido ser formulada foi

preciso que uma concepccedilatildeo fosse substituiacuteda por uma outra segundo a qual

o ser material eacute por toda parte perfeitamente e absolutamente homogecircneordquo

(MERLEAU-PONTY NBNF (10)) posto que ldquoencontramos vemos os fatos

porque uma nova ontologia preparou o mundo para ser conhecidordquo

(MERLEAU-PONTY NBNF (10)) Mas seria vaacutelido este argumento Natildeo deveria

a filosofia antes se preocupar com uma compreensatildeo do ser do que partir do

ldquodesenvolvimento de consequecircncias empiacutericasrdquo Segundo Merleau-Ponty ldquoas

operaccedilotildees realizadas pela ciecircncia do seacuteculo XVII tecircm sua verdade ao menos

relativa e parcial e cabe agrave ontologia mostrar de que modo elas foram

possiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [30] (11) ) haja vista que para instituir

uma ontologia natildeo seriam suficientes o que eacute descoberto pela ciecircncia mas

tendo em vista que tais descobertas foram motivadas pela ontologia a tarefa

que se assume eacute encontrar entre a ontologia e as descobertas cientiacuteficas

uma unidade Daiacute a conclusatildeo do filoacutesofo

A teoria [ciecircncia] faz parte do homem natildeo eacute depois de tudo senatildeo uma seacuterie de operaccedilotildees humanas e natildeo vemos de que modo a filosofia poderia compreender entre outras coisas como uma das possibilidades do homem mesmo se isto natildeo eacute a uacutenica nem a mais profunda A ontologia do infinito que de um lado encerrava a Natureza abria aleacutem disso os seus horizontes ela era dispensaacutevel para que pudesse ser reconhecida a facticidade da Natureza e os horizontes que ela desvelava Ela tinha somente o erro de povoar de objetos em si e de um infinito objetivo Haacute neste empreendimento uma verdade a guardar A noacutes de dissipar o equiacutevoco e desfazer o complexo Natildeo se trata para a filosofia de ignoraacute-lo faz parte de sua proacutepria histoacuteria e ainda estaacute no coraccedilatildeo da nossa (MERLEAU-PONTY NBNF [30] (11))

Ora segundo Merleau-Ponty este modo de conceber a natureza

seria aquele conduzido pela ldquoluz naturalrdquo em sua configuraccedilatildeo de intuitus

mentis de entendimento puro logo a partir de uma ldquoontologia do objetordquo No

entanto lembremo-nos de que segundo Merleau-Ponty tambeacutem

encontramos no pensamento cartesiano uma outra concepccedilatildeo de natureza

aquela nascida no horizonte de uma ldquoontologia do existenterdquo tal como

procuramos esboccedilar a partir do que o filoacutesofo considera ser especialmente

nas Meacuteditations uma transformaccedilatildeo da ldquoluz naturalrdquo O que mudaria com

152

isso A passagem de uma natura lato sensu entendida em seu sentido

amplo e uma natura stricto sensu entendida em seu sentido estrito Assim

como vimos ao falar em um Cogito vertical haacute nesta concepccedilatildeo de natureza

uma certa resistecircncia a um mundo totalmente idealizado algo que resista ao

ldquoentendimento purordquo Deste meodo como era de se esperar

consequentemente haacute um modo diferenciado de encontrar a separaccedilatildeo que

se estabeleceu entre res cogitans e res extensa uma vez que o sensiacutevel como

privaccedilatildeo considerado negativo para a inteligecircncia converte-se em uma

negaccedilatildeo da negaccedilatildeo ou seja torna-se ldquopositivordquo quando confrontado com a

vida Eacute neste contexto e de acordo com esta clivagem que se daacute no

pensamento cartesiano a compreensatildeo da natureza humana postulando-se

por um lado no entendimento puro e seus objetos uma natura lato sensu e

por outro lado no composto corpo-alma uma natura stricto sensu

Para Merleau-Ponty podemos ver melhor esta clivagem nas

Meacuteditations uma vez que ldquonas Meditaccedilotildees I a III Descartes toma a luz

natural como termo de referecircncia nas Meditaccedilotildees III a VI eacute a inclinaccedilatildeo

natural que nos impele a crer na existecircncia do mundo exterior de meu

corpordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 22) Ora seria o caso de reconhecer no

pensamento cartesiano uma cisatildeo capaz de dividir sua filosofia em partes

antagocircnicas pois ldquocomo em nome da evidecircncia conferir um valor ao que eacute

obscuro sem cair numa contradiccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 23)

Para Gueacuteroult natildeo haveria nisto nenhuma dificuldade pois vendo uma

ldquoordem das razotildeesrdquo que atravessa todo o sistema cartesiano bastava que

consideraacutessemos o que fugisse ao entendimento puro como seu simples

excedente tomando como base para isto a carta de Descartes a Chanut

Para dizer que uma coisa eacute infinita deve-se ter alguma razatildeo que a faccedila conhecer como tal o que podemos ter somente de Deus mas para dizer que ela eacute indefinida basta natildeo ter razatildeo nenhuma pela qual se possa provar que ela tem limites Natildeo tendo portanto nenhuma razatildeo para provar e mesmo natildeo podendo conceber que o mundo tenha limites eu o denomino indefinido Mas isso natildeo me permite negar que talvez existam alguns limites que satildeo conhecidos de Deus embora me sejam incompreensiacuteveis eacute por isso que natildeo digo absolutamente que ele eacute infinito (DESCARTES apud MERLEAU-PONTY 2000a p 23)

153

Ao inveacutes de notar em Descartes uma ambiguidade latente pela

qual surgiriam os frutos de um Cogito vertical operante o que se passa

antes nas Meacuteditations para Gueacuteroult eacute uma mudanccedila de ordem haja vista

que haveria no mundo a mesma evidecircncia presente em Deus mesmo que o

conhecimento da substacircncia extensa soacute se desse mediante a substacircncia

divina O mundo por sua vez natildeo poderia ser visto fora da mesma cadeia de

razotildees na qual o infinito se encontrava fazendo com que a verdade se

dispusesse em razatildeo disto tanto na zona do ldquoverdadeiro absolutordquo como na

zona do que por natildeo ser falso poderia ser afirmado como verdadeiro pois

de acordo com Gueacuteroult ldquoao positivismo sucede uma negaccedilatildeo da negaccedilatildeo

Mas graccedilas agrave garantia divina Descartes obedece agrave ordem das razotildeesrdquo

(MERLEAU-PONTY 2000a p 24) Eacute neste horizonte que deveriacuteamos

entender a ideia cartesiana de infinito haja vista que

O resultado desta posiccedilatildeo do infinito e do perfeito como princiacutepio uacuteltimo tanto de meu conhecimento (Cogito) quanto de meu ser finito (eu pensante que tem a ideia de Deus) eacute de conferir ao Cogito na 3a Meditaccedilatildeo uma caracteriacutestica oposta agrave que apresentava na segunda o de uma posiccedilatildeo inacabada insuficiente por ela mesma pois natildeo se pode conceber nem subsistir caso o destaque do infinito uacutenico concreto completo ou subsistente capaz de se conceber ou de se explicar inteiramente por si O eu finito natildeo podendo ser destacado dele senatildeo por uma abstraccedilatildeo a qual torne confusa minha ideia o Cogito pode ser claramente e distintamente conhecido apenas pela intuiccedilatildeo da ideia de perfeito Por isto esboccedila-se a distinccedilatildeo entre duas ordens de substancialidade uma absoluta e positiva a outra relativa e negativa (GUEacuteROULT 1968 p 231-2 v1)

Em contrapartida rompendo com a ordem das razotildees Merleau-

Ponty natildeo vecirc sentido na justificativa gueroultiana de que o postulado

cartesiano de ldquoduas zonas da verdaderdquo se efetivasse tatildeo-somente em razatildeo de

sua busca pela clareza A partir de uma outra concepccedilatildeo da histoacuteria da

filosofia segundo Merleau-Ponty haveria na ldquoluz naturalrdquo ora mediada pela

intuitus mentis ora manifesta como ldquoatitude naturalrdquo em primeiro lugar

uma transformaccedilatildeo uma passagem o que nos impediria de considerar estes

dois momentos da obra cartesiano em um mesmo domiacutenio Por conseguinte

o direcionamento de Descartes a uma ldquoontologia do existenterdquo nos revela

sobretudo uma mudanccedila na noccedilatildeo de infinito mudanccedila esta que natildeo fora

explicitada por Gueacuteroult O que teria mudado Natildeo seraacute mais da ideia de

154

Deus que se origina o infinito mas antes da liberdade humana do proacuteprio

homem E o que faria a diferenccedila Para Merleau-Ponty o simples fato de

que partindo do homem o infinito natildeo se fundamenta mais em nossa

submissatildeo a um Ser que nos eacute antecedente logo natildeo nos remete mais a

uma liberdade que fosse tributaacuteria da divindade cujo ldquosimrdquo fosse tatildeo

somente o ldquosim absoluto de Deusrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 207) pois

ldquoessa ideia da liberdade eacute apreendida com a ajuda de um meacutetodo muito

diferente da elucidaccedilatildeo essencialista O lsquoque eu soursquo eacute enunciado antes de lsquoo

que eacute que eu soursquordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 207) O que isto nos diz

Ao contraacuterio de uma ldquoordem das razotildeesrdquo o que temos eacute uma

mudanccedila de meacutetodo daiacute que no lugar da finalidade a partir da ideia de que

a alma foi feita para o corpo o que encontramos eacute uma ideia que ateacute entatildeo

encontrava-se inoperante a saber a ideia de ldquocausardquo90 Eacute assim que

mediante uma ldquoontologia do existenterdquo torna-se possiacutevel falar em Descartes

de uma extensatildeo como ldquoindefinidardquo de um ldquojuiacutezo naturalrdquo que natildeo se

assemelha mais ao que sob o ditame da intuitus mentis era tido como

ldquojuiacutezordquo O mundo tal como se encontra no presente eacute produzido por Deus

tatildeo-somente mediante as leis da natureza uma vez que ldquoa nossa extensatildeo

natildeo eacute uma essecircncia ela tem uma certa existecircncia de direito deve estar

ancorada em cada instante daiacute a criaccedilatildeo continuadardquo (MERLEAU-PONTY

2000a p 209) Daiacute tambeacutem que pensando em um mundo ldquo() que se

caminha para a totalidade e corresponde a uma visatildeo de Deus sobre as

coisasrdquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 209) natildeo seja contraditoacuterio pensar em

sua ldquopreacute-ordenaccedilatildeordquo Pelo que notamos a partir desta ldquomudanccedila de

meacutetodordquo natildeo seraacute o essencialismo que nortearaacute a nossa compreensatildeo da

Natureza o que nos leva a encontrar em Descartes por um lado uma

concepccedilatildeo fundada em uma ldquoontologia do objetordquo retrospectiva e

essencialista e por outro lado mas ao mesmo tempo uma ldquoontologia do

90 Disto talvez se segue segundo Gueacuteroult que o racionalismo de Descarte embora rigoroso natildeo eacute absoluto ldquonatildeo enquanto absoluto ou seja enquanto reduziria os elementos irracionais ao racional os quais entatildeo natildeo seriam mais que sua aparecircncia mas na medida em que ele determina inteiramente pela razatildeo os elementos irracionais que se crecirc poder descobrir na obra de Deus (erro sentimento) e no proacuteprio Deus (incompreensibilidade)rdquo (GUEacuteROULT 1968 v 2 p 299)

155

existenterdquo projetiva e presa na obscuridade do mundo Ora natildeo haveria

nisto uma contradiccedilatildeo Como pensar uma natureza que se fundamenta na

exterioridade e ao mesmo tempo uma natureza que traz uma extensatildeo que

obscura e aberta esquiva-se ao olhar do espiacuterito

Afastando-se de Gueacuteroult Merleau-Ponty percebe nas

consideraccedilotildees de Laporte um modo de tentar compreender estas questotildees

Por conseguinte a presenccedila de duas naturezas em Descartes que nos

levaria ao mesmo tempo tanto a um mundo mecacircnico como a um mundo

preordenado por Deus pois ldquo() mais aleacutem de uma filosofia finalista e de

uma filosofia do entendimentordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 209) na qual

se engendraria uma contradiccedilatildeo revela-nos antes a apresentaccedilatildeo de um

pensamento que se encontra em funccedilatildeo de categorias humanas uma vez

que o equiacutevoco na verdade manifesta-se segundo a ordem do homem No

niacutevel de Deus tanto uma ldquoontologia retrospectivardquo como uma ldquoontologia

projetivardquo seriam superadas por Descartes O problema justamente surge

segundo Laporte no momento em que o pensamento cartesiano busca a

soluccedilatildeo de seus impasses a partir da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde Estaria

inclusive em Tomaacutes de Aquino a ideia de que em Deus finalidade e

causalidade perdem a sua operabilidade Neste retorno de Descartes ao

pensamento monoteiacutesta a dificuldade se potencializa principalmente

porque natildeo se tem mais a ideia aristoteacutelica de que a divindade seja apenas

atributo de uma classe de seres O que isto quer dizer De acordo com a

tradiccedilatildeo judaico-cristatilde Deus eacute verdadeiramente o Ser que natildeo pertencendo

mais a uma classe de seres exclui todo predicado tendo-se em vista a sua

infinitude Incompreensiacutevel por estar aleacutem de todo predicado este conceito

de Deus possui um excesso de positividade que paradoxalmente conduz-

nos a um perigo de negaccedilatildeo do proacuteprio mundo uma vez que como salienta

Gilson ldquoa partir do momento em que se diz que Deus eacute o Ser eacute claro que

num certo sentido soacute Deus existerdquo (GILSON 1932 p 48) Eacute por isso que

impossibilitado de negar quer seja o ontologismo quer seja o essencialismo

por exemplo Tomaacutes de Aquino encontra-se em um ldquovaiveacutemrdquo entre essecircncias

e existecircncias com o qual Descartes compartilha Eacute o que nos confirma

Merleau-Ponty

156

Para Descartes Deus eacute causa sui daiacute sua infinidade e daiacute o fato de que em essecircncia ele eacute tudo aquilo que o mundo poderaacute ser Mas haacute natildeo obstante uma distinccedilatildeo entre dois planos de realizaccedilatildeo Em face do mundo existente eacute necessaacuterio um ato absolutamente novo que natildeo deva nada agrave substacircncia de Deus em face do mundo existente tudo estaacute por recomeccedilar Aleacutem disso em Descartes Deus soacute eacute apresentado como causa sui com reservas sem o que se corre o risco de panteiacutesmo Descartes utiliza um subterfuacutegio A esse propoacutesito soacute podemos exprimir-nos negativamente Deus natildeo pode ter causa exterior a si mesmo donde se segue que eacute preciso admitir algo entre a causa sui e a causa exterior mas natildeo sabemos exatamente o quecirc (MERLEAU-PONTY 2000a p 217)

Ora eacute justamente nesta alternacircncia existente entre um

ldquoessencialismo condicionalrdquo e um ldquoexistencialismo subordinadordquo originada

pela tradiccedilatildeo judaico-cristatilde e herdada por Descartes que se estabelece no

dizer de Blondel tal como nos assinala Merleau-Ponty uma espeacutecie de

ldquodiplopia ontoloacutegicardquo presente na contradiccedilatildeo de um mundo criado por

Deus o uacutenico Ser no qual ldquonatildeo haacute mais ser no plural mas tampouco haacute ser

no singularrdquo (BLONDEL Apud MERLEAU-PONTY 2000a p 218) O impasse

do cartesianismo estaria deste modo no fato de comungar desta ideia daiacute a

sua constante oscilaccedilatildeo entre uma ldquoontologia do objetordquo e uma ldquoontologia do

existenterdquo fazendo da ideia de um Ser infinito e naturante o centro de sua

filosofia Mais do que isto segundo Merleau-Ponty seria esta uma ideia

fundamental para o seacuteculo XVII pois ldquosejam quais forem as diferenccedilas os

cartesianos seratildeo unacircnimes neste pontordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p

229) Quais as consequecircncias disto Por um lado a Natureza decorreria das

propriedades da res infinita do Deus infinito e por outro viria a ser

inoperante a rejeiccedilatildeo da teleologia haja vista que no final o proacuteprio homem

seria uma finalidade Por conseguinte o objeto cientiacutefico seria apenas um

dos graus do ser e natildeo o seu cacircnone pois na relaccedilatildeo entre filosofia e

ciecircncia seria esta compreensatildeo do infinito e da natureza apesar da tensatildeo

constante que se estabelecia entre interioridade e exterioridade que

garantiria a possibilidade de um acordo Deste modo

o Ser natildeo estaacute inteiramente vergado ou achatado sobre o plano do Ser exterior Haacute tambeacutem o ser do sujeito ou da alma e o ser de suas ideias e o das relaccedilotildees reciacuteprocas entre elas a relaccedilatildeo interna de verdade e este universo eacute tatildeo vasto quanto o outro ou melhor engloba-o visto que por mais estreito que seja o viacutenculo dos fatos

157

exteriores nenhum deles daacute a razatildeo uacuteltima do outro ndash juntos participam de um ldquointeriorrdquo manifestado por suas ligaccedilotildees (MERLEAU-PONTY 1975b p 228)

Por fim pelo que pudemos notar a partir da ideia de ldquoinfinitordquo

ou ldquoinfinitamente infinitordquo o Grande Racionalismo procurou estabelecer

especialmente em Descartes ao menos em um certo Descartes a sua ideia

de verdade Por meio dela os sentidos teriam a sua confusatildeo dissipada Daiacute

que esta noccedilatildeo tenha marcado uma eacutepoca na qual como diraacute Merleau-

Ponty o ldquouniverso mentalrdquo natildeo se achava dilacerado pois encontrava uma

unidade que permeava as suas investigaccedilotildees Todavia a ruptura com essa

unidade natildeo indica uma mera ldquodecadecircnciardquo mas marca antes uma mudanccedila

do proacuteprio olhar Eacute assim que o Pequeno Racionalismo na passagem do

simples ao complexo natildeo encontraraacute mais o suporte e a garantia que o

Grande Racionalismo dava agrave ideia de infinito Daiacute que mediante o medo de

um retorno agrave escolaacutestica o que encontramos eacute a negaccedilatildeo de um saber que

tem sua origem no interior da experiecircncia cuja medida teria por referecircncia o

ser do sujeito A inspeccedilatildeo do mundo se daraacute radicalmente do exterior o

pensamento de sobrevocirco se potencializa passa a fazer uso de

ldquoprocedimentos obliacutequosrdquo se desloca de uma vez por todas para o

experimento No Pequeno Racionalismo a tensatildeo e a ambiguidade do seacuteculo

XVII se perde pois nada mais haacute a nutrir e tentar superar os descompassos

da interioridade e da exterioridade Eacute por isso que de modo paradoxal

apesar de seus limites o Grande Racionalismo acaba se tornando uma

espeacutecie de ldquointermediaacuterio obrigatoacuteriordquo para todo pensamento que deseja

recusaacute-lo

Negada a possibilidade de uma representaccedilatildeo formal do

infinito o que nos resta eacute o cientificismo ou seja o mundo da extensatildeo e a

capacidade formal da consciecircncia Eacute por isso que de acordo com Merleau-

Ponty em meio aos restos arqueoloacutegicos do seacuteculo XVII no Pequeno

Racionalismo o que temos eacute radicalizaccedilatildeo do impeacuterio da exterioridade a

experiecircncia de um ser constituiacutedo partes extra partes logo achatado e

vergado pela razatildeo cientificista Daiacute que o que iraacute mover a ciecircncia claacutessica

natildeo seraacute o Cogito vertical mas a intuitus mentis que operacionalizada acaba

158

legitimando o que de mais equiacutevoco poderiacuteamos herdar do cartesianismo

Daiacute a ideia de que no Pequeno Racionalismo e em seus desdobramentos o

que encontramos seja antes um pseudocartesianismo aquele que faria da

causalidade ainda considerada um problema natildeo resolvido para o proacuteprio

Descartes uma consequecircncia suficiente e necessaacuteria para todo saber

cientificamente legitimado O que isto significa Como daria a repecursatildeo do

cartesianismo no pensamento cientiacutefico emergente dos escombros do Grande

Racionalismo A seguir no proacuteximo capiacutetulo pensemos nestas questotildees

159

CAPIacuteTULO III O PSEUDOCARTESIANISMO E O REALISMO CIENTIFICISTA

O PARADOXO DO MENON

Celui qui voudra limiter la lumiegravere spirituelle agrave lrsquoactualiteacute repreacutesenteacutee se heurtera toujours au problegraveme socratique laquo De quelle maniegravere trsquoy prendras-tu pour chercher ce dont tu ignores que tu ne connais pas celle que tu te proposeras de chercher Et si tu la rencontres justement par hasard comment sauras-tu que crsquoest bien elle alors que tu ne la connais pas raquo (Meacutenon 80 D) (LACHIEgraveZE-REY 1950 p 17-18)

31 Apresentaccedilatildeo do problema Descartes e o cientificismo

Na Pheacutenomeacutenologie de la perception jaacute encontraacutevamos em uma

criacutetica natildeo soacute dirigida a Descartes mas tambeacutem ao intelectualismo de um

modo geral especialmente o de Brunschvicg ndash conforme veremos mais

adiante ndash a tentativa de elucidar a experiecircncia que fazemos do mundo A

questatildeo eacute muito simples o filoacutesofo encontra-se diante de sua escrivaninha e

se pergunta pelo Cogito Juntamente com suas indagaccedilotildees encontra-se

assediado pelo mundo Ao mesmo tempo vecirc-se enveredado por um mundo

de coisas e um mundo de ideias e de repente o problema estaacute posto

Acompanhemos o que ele nos diz

Penso no Cogito cartesiano quero terminar este trabalho sinto em

minha matildeo o frescor do papel atraveacutes da janela percebo as aacutervores

da avenida A cada momento minha vida precipita-se em coisas transcendentes ela se passa inteira no exterior Ou o Cogito eacute esse

pensamento que se formou a trecircs seacuteculos no espiacuterito de Descartes

ou eacute o sentido dos textos que ele nos deixou de qualquer maneira ele

eacute um ser cultural para o qual meu pensamento antes se dirige do que o abarca assim como meu corpo em um ambiente familiar se

orienta e caminha entre os objetos sem que eu precise representaacute-los

expressamente Este livro inicial natildeo eacute uma certa reuniatildeo de ideias

para mim ele constitui uma situaccedilatildeo aberta da qual eu natildeo saberia dar a foacutermula complexa e em que eu me debato cegamente ateacute que

como que por milagre os pensamentos e as palavras se organizem

por si mesmos Com mais razatildeo ainda os seres sensiacuteveis que me

circundam o papel sob minha matildeo as aacutervores sob meus olhos natildeo me entregam seu segredo minha consciecircncia se esvai e se ignora

neles (MERLEAU-PONTY 1945 p 423)

160

Ora haveria nestas linhas uma definiccedilatildeo dedutiva do Cogito

Natildeo haveria ali antes uma metamorfose do intelectualismo ndash quer seja o

cartesiano quer sejam as suas variantes ndash do que uma ruptura Jaacute teria

Merleau-Ponty indicado de antematildeo a sua posiccedilatildeo filosoacutefica antes mesmo

de apresentar o problema Caso a resposta seja afirmativa natildeo correriacuteamos

o risco de sermos injustos com quem sempre procurou antes configurar as

paisagens nas quais teriam espaccedilo os embates de seus argumentos Em

contraposiccedilatildeo natildeo bastaria entatildeo pensar que em particular as paacuteginas

precedentes deste livro jaacute natildeo seriam todas elas uma preparaccedilatildeo para este

momento especial da obra daiacute a mudanccedila de ritmo e a inserccedilatildeo imediata de

suas ideias Ora olhando mais de perto natildeo haacute duacutevida da densidade

enigmaacutetica destas palavras desta simples descriccedilatildeo como tantas outras ao

longo da Pheacutenomeacutenologie de la perception

Embora jaacute diversas vezes estudado e discutido por vaacuterios

inteacuterpretes a pergunta pelo Cogito na obra de Merleau-Ponty ndash

especialmente neste texto de 1945 ndash natildeo deixa de ser nem por isso menos

fecunda Poderiacuteamos entatildeo considerar as disjunccedilotildees impostas pelo filoacutesofo

como a apresentaccedilatildeo de posturas que ele trataraacute de desconstruir tais como o

sensualismo ou realismo empiacuterico o positivismo loacutegico da Escola de Viena e

o idealismo transcendental ndash seja qual for a sua confissatildeo e isto ao tratar

do Cogito cartesiano Frente aos impasses gerados por estas abordagens

filosoacuteficas ndash apenas insinuadas pelo filoacutesofo ndash a proposta seria pois o

exerciacutecio da reduccedilatildeo e mediante isto o resgate da experiecircncia Todavia aqui

percebemos a sutiliza de Merleau-Ponty trata-se apenas de uma descriccedilatildeo e

jaacute em meio a este processo encontramos indicaccedilotildees do caminho que seraacute

percorrido por sua criacutetica inclusive sua criacutetica ao realismo cientificista o

que nos faz encontrar um eco destas linhas tambeacutem em La Structure du

comportement

A escrivaninha que vejo diante de mim e na qual escrevo o cocircmodo

em que estou e cujas paredes para aleacutem do campo sensiacutevel se

fecham agrave minha volta o jardim a rua a cidade enfim todo meu horizonte espacial natildeo me aparecem se me atenho ao que diz a

consciecircncia imediata como causa da percepccedilatildeo que tenho deles os

quais imprimiriam em mim sua marca ou produziriam uma imagem

161

deles mesmos por uma accedilatildeo transitiva Parece-me antes que minha percepccedilatildeo eacute como um feixe de luz que revela os objetos no lugar em

que estatildeo e que manifesta a presenccedila deles ateacute entatildeo latente Que eu mesmo perceba ou que considere outro sujeito perceptivo parece-

me que o olhar ldquopousardquo nos objetos e os atinge agrave distacircncia como bem exprime o uso latino de lumina para designar o olhar

(MERLEAU-PONTY 2006 p 281-2)

Eacute certo que neste texto o filoacutesofo tem o ensejo de criticar o

realismo a partir do perspectivismo da percepccedilatildeo Mas no texto sobre o

Cogito aleacutem de Descartes o alvo natildeo era tambeacutem realismo Vejamos Nos

dois textos ao menos o que encontramos eacute o filoacutesofo e seu meio o filoacutesofo

diante do mundo e eacute neste horizonte que a pergunta que atravessa estes

dois momentos parece se configurar o que seriam estes entes que se

encontram agrave sua volta e como se daacute a sua relaccedilatildeo com eles Eacute neste

momento que a nosso ver vem agrave tona especialmente na Pheacutenomeacutenologie de

la perception o mesmo problema que encontraacutevamos presente dentre as

indagaccedilotildees dos antigos ldquocomo buscar o que natildeo se conhece e caso

encontremos como saber se encontramos o que justamente natildeo

conheciacuteamos antesrdquo91 A nosso ver o ldquoparadoxo de Menonrdquo92 estaacute no

coraccedilatildeo das indagaccedilotildees de Merleau-Ponty e eacute justamente esta aporia que o

filoacutesofo ndash tal como acreditamos ter sido tambeacutem mesmo que por outras vias

e com outras conclusotildees o intento do Bergson do Ensaio ndash tentaraacute elucidar

91 καὶ τίνα τρόπον ζητήσεις ὦ Σώκρατες τοῦτο ὃ microὴ οἶσθα τὸ παράπαν ὅτι ἐστίν ποῖον γὰρ ὧν

οὐκ οἶσθα προθέmicroενος ζητήσεις ἢ εἰ καὶ ὅτι microάλιστα ἐντύχοις αὐτῷ πῶς εἴσῃ ὅτι τοῦτό ἐστιν ὃ σὺ οὐκ ᾔδησθα 92 (80d) (Μένων) καὶ τίνα τρόπον ζητήσεις ὦ Σώκρατες τοῦτο ὃ μὴ οἶσθα τὸ παράπαν ὅτι ἐστίν

ποῖον γὰρ ὧν οὐκ οἶσθα προθέμενος ζητήσεις ἢ εἰ καὶ ὅτι μάλιστα ἐντύχοις αὐτῷ πῶς εἴσῃ ὅτι

τοῦτό ἐστιν ὃ σὺ οὐκ ᾔδησθα (80e) (Σωκράτης) μανθάνω οἷον βούλει λέγειν ὦ Μένων ὁρᾷς

τοῦτον ὡς ἐριστικὸν λόγον κατάγεις ὡς οὐκ ἄρα ἔστιν ζητεῖν ἀνθρώπῳ οὔτε ὃ οἶδε οὔτε ὃ μὴ

οἶδε οὔτε γὰρ ἂν ὅ γε οἶδεν ζητοῖ - οἶδεν γάρ καὶ οὐδὲν δεῖ τῷ γε τοιούτῳ ζητήσεως - οὔτε ὃ μὴ

οἶδεν - οὐδὲ γὰρ οἶδεν ὅτι ζητήσει (Soacutecrates Menon 80d-e) ndash Trad MEN ndash E de que maneira investigaraacutes Soacutecrates aquilo que ignoras totalmente o que eacute Qual das coisas que natildeo sabes vais propor como objeto de tua investigaccedilatildeo Ou ainda no caso favoraacutevel de que o descubras como vais saber que eacute precisamente o que tu natildeo sabias SOacuteC ndash Compreendo Menon o que queres dizer Daacutes-te conta do argumento polecircmico que nos traz a saber que natildeo eacute possiacutevel para o homem investigar nem o que sabe nem o que natildeo sabe Natildeo seria pois capaz de investigar o que sabe visto que o sabe ndash e nenhuma necessidade tem um homem assim de investigaccedilatildeo ndash nem o que natildeo sabe visto que nem sequer sabe o que eacute que vai investigar (PLATAtildeO 2001)

162

uma vez que como diraacute Lachiegraveze-Rey citado por Merleau-Ponty ldquoaquele que

deseja limitar a luz espiritual agrave atualidade representada sempre se

encontraraacute com o problema socraacuteticordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 429) Se

isto eacute verdade contudo o que explicaria no texto de 1945 um retorno ao

que na tradiccedilatildeo serve de fundamento aos intelectualismos em outros

termos por que o retorno ao Cogito cartesiano93

No que diz respeito a esta questatildeo pelo que vimos

anteriormente uma das grandes dificuldades do cartesianismo estava

justamente no fato de que no final das contas o ldquouniverso de consciecircnciardquo

que o Cogito revela limita-se apenas a um ldquouniverso de pensamentordquo Daiacute

tambeacutem uma espeacutecie de intelectualismo ou mesmo de criticismo presente

em Descartes Por conseguinte eacute certo que se procuraacutessemos no proacuteprio

criticismo ao menos tal como ele se esboccedilava em Brunschvicg uma

tentativa de soluccedilatildeo ao ldquoparadoxo do Menonrdquo isto se daria a partir da

distinccedilatildeo entre ldquouma forma geral da consciecircncia que natildeo pode ser derivada

de nenhum acontecimento corporal e psiacutequicordquo e ldquoconteuacutedos empiacutericos cuja

existecircncia atual poderia se ligar a certos acontecimentos exteriores ou a

certas particularidades de nossa constituiccedilatildeo psicofiacutesicardquo (MERLEAU-

PONTY 2006 p 309-10) Os limites de tal tentativa para Merleau-Ponty

estariam na desconsideraccedilatildeo do que viria a ser para o sujeito tanto a

experiecircncia de sua passividade como a sua ldquoconsciecircncia sensiacutevelrdquo presente

no hiato entre a Esteacutetica e a Analiacutetica como a mateacuteria em sua condiccedilatildeo de

componente cognoscitivo assim como tambeacutem a perda da fenomenalidade

do proacuteprio fenocircmeno o que converteria a percepccedilatildeo tatildeo-somente em uma

ldquovariedade de intelecccedilatildeordquo na qual lhe ficaria de positivo apenas o juiacutezo

Frente aos problemas levantados pelas relaccedilotildees entre a forma e a mateacuteria o

93 Para o leitor apressado de imediato haacute uma contradiccedilatildeo grave em Merleau-Ponty ao tomar a noccedilatildeo cartesiana de razatildeo como ponto de partida de seu projeto filosoacutefico assim como em suas primeiras obras parecera partidaacuterio da noccedilatildeo claacutessica de Natureza Parece haver quase que uma relaccedilatildeo mal resolvida entre o filoacutesofo e o cartesianismo para natildeo dizer apesar de suas criacuteticas com o proacuteprio Descartes Se os conceitos dos quais se serve encontram-se corrompidos natildeo estaria a sua filosofia ameaccedilada a qualquer momento por algum abalo siacutesmico Onde estaria a razatildeo desse impasse Encontramos algumas possibilidades quando discutirmos o que o filoacutesofo entendera como ldquoimpensadordquo de Descartes a sensibilidade o corpo-sujeito o corpo proacuteprio

163

dado e o sensiacutevel a soluccedilatildeo proposta pelo criticismo seria pois ldquouma teoria

intelectualistardquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 310-11) Por conseguinte

O problema das relaccedilotildees entre a alma e o corpo se colocaria apenas

no niacutevel de um pensamento confuso que se ateacutem aos produtos da

consciecircncia em vez de ver neles a atividade intelectual que os faz ser

Recolocada no contexto intelectual que lhe confere um sentido a ldquoconsciecircncia sensiacutevelrdquo se suprime como problema O corpo

reencontraria a extensatildeo da qual sofre a accedilatildeo e da qual eacute apenas

uma parte a percepccedilatildeo reencontra o juiacutezo que a baseia Toda forma

de consciecircncia pressupotildee sua forma acabada ndash a dialeacutetica do sujeito

epistemoloacutegico e do objeto cientiacutefico (MERLEAU-PONTY 2006 p 311)

Eacute neste sentido que ao contraacuterio da tradiccedilatildeo cartesiana ao

contraacuterio de uma ldquoconsciecircncia intelectualrdquo que faz com que o fato da visatildeo e

o seu ldquoconjunto de conhecimentos existenciaisrdquo lhe sejam exterior o que

Merleau-Ponty propotildee eacute uma percepccedilatildeo que seja uma experiecircncia incipiente

ou seja a consideraccedilatildeo de uma ldquoconsciecircncia sensiacutevelrdquo e a explicitaccedilatildeo de

uma ldquoconsciecircncia naturadardquo que vive mergulhada em um comeacutercio com o

mundo nascendo juntamente com ele Daiacute a conclusatildeo do filoacutesofo

A intelecccedilatildeo que o Cogito havia encontrado no coraccedilatildeo da percepccedilatildeo

natildeo esgota seu conteuacutedo na medida em que a percepccedilatildeo se abre para um ldquooutrordquo na medida em que eacute a experiecircncia de uma

existecircncia ela proveacutem de uma noccedilatildeo primitiva que ldquosoacute pode se entendida por ela mesmardquo de uma ordem da ldquovidardquo na qual as

distinccedilotildees do entendimento satildeo pura e simplesmente anuladas Assim Descartes natildeo procurou integrar o conhecimento da verdade e

a prova da realidade a intelecccedilatildeo e a sensaccedilatildeo Natildeo eacute na alma eacute em Deus que elas unem-se uma agrave outra Mas depois dele essa

integraccedilatildeo devia aparecer como a soluccedilatildeo dos problemas postos pelo realismo filosoacutefico Ela permitiria com efeito renunciar agrave accedilatildeo do

corpo ou das coisas sobre o espiacuterito defini-los como os objetos de uma consciecircncia e superar a alternativa do realismo e do ceticismo

associando segundo os termos de Kant um idealismo transcendental e um realismo empiacuterico (MERLEAU-PONTY 2006 p

305-6)

No entanto se o cartesianismo apresenta problemas o que

justificaria a centralidade que o filoacutesofo daacute ao Cogito Conforme vimos

Descartes identificara em seu enfrentamento do problema da similitude o

que constituiacutea a questatildeo das ldquoespeacutecies intencionaisrdquo ao aproximar-se da

164

problematicidade da explicaccedilatildeo causal em sua aplicaccedilatildeo ao processo

perceptivo Apesar disto como iraacute acentuar La Structure du comportement

ele ainda permaneceria preso a esta mitologia explicativa ao tentar superar

esta questatildeo por meio de uma espeacutecie de ocasionalismo ou seja a ideia de

que ldquoas impressotildees cerebrais satildeo apenas as causas ocasionais da percepccedilatildeordquo

(MERLEAU-PONTY 2006 p 296 o grifo eacute nosso) haja vista que ainda

permanece a necessidade de uma correspondecircncia existente entre ldquocertas

impressotildees cerebraisrdquo e ldquocertas percepccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p

296) Daiacute a permanecircncia da causalidade como fundamento da

representaccedilatildeo94 fazendo com que haja apenas no final das contas uma

ldquosubstituiccedilatildeo das causas exemplares pelas causas ocasionaisrdquo Neste ponto

poreacutem encontramos mais uma vez a deacutemarche merleau-pontiana em natildeo

se contentar com uma compreensatildeo historicista de Descartes mas procurar

tambeacutem no movimento que mantinha vivo o seu pensamento a experiecircncia

da ambiguidade Eacute por esta razatildeo que para Merleau-Ponty em Descartes

encontrariacuteamos pois uma negaccedilatildeo dessa atitude e ao mesmo tempo a

possibilidade de um fundamento capaz de propiciar o seu engendramento

ou seja tal como aconteceraacute nas ciecircncias do Pequeno Racionalismo a

necessidade de encontrar no corpo as condiccedilotildees determinantes e

adequadas da percepccedilatildeo No caso de Descartes em meio agrave ambiguidade de

94 De certo modo podemos encontrar aqui uma aproximaccedilatildeo com o Holzwege Conforme Heidegger a ideia de uma ldquoimagem do mundordquo traz em si o que eacute proacuteprio do mundo claacutessico natildeo por fazer do mundo um decalque uma simples pintura mas por tornaacute-lo um sistema logo uma ldquoimagem do mundo compreendida essencialmente natildeo quer por isso dizer uma imagem que se faz do mundo mas o mundo concebido como imagemrdquo (HEIDEGGER 1998 p 112)rdquo Soacute eacute possiacutevel ao ente ser ou seja existir na medida em que se dispotildee diante do sujeito cognoscente Eacute o proacuteprio ser de todo ente que eacute determinado procurado e encontrado no estar-representado [Vorgestelltheit] (HEIDEGGER 1998 p 113) A ruptura com os simulacros indica nesta perspectiva o engendramento de um primado da representaccedilatildeo Embora se nega a existecircncia de imagens ou duplos reais transportados materialmente ao ceacuterebro o que se sucede eacute a constituiccedilatildeo do proacuteprio mundo como imagem Haacute um mesmo processo pelo que simultaneamente o homem se faz sujeito [sub-jectum] e o mundo objeto [ob-jectum] Em outros termos embora a representaccedilatildeo natildeo seja um processo mimeacutetico em contrapartida ela se torna um mecanismo pelo qual se traz para diante de si ldquoo que-estaacute-perante enquanto algo contrapostordquo fazendo com que ele seja remetido ao que representa Logo percebemos neste processo a saber a conquista do mundo como imagem ldquoo processo fundamental da modernidaderdquo no qual ldquoo homem combate pela posiccedilatildeo na qual pode ser aquele ente que daacute a medida e estende a bitola a todo o enterdquo (HEIDEGGER 1998 p 117)

165

seu pensamento compreendemos a razatildeo de sua incursatildeo agrave glacircndula pineal

que na ciecircncia claacutessica seria substituiacuteda por uma ldquozona de associaccedilatildeordquo

Deste modo eacute possiacutevel encontrar no proacuteprio cartesianismo o

que seria uma possiacutevel superaccedilatildeo dos impasses nos quais ele mesmo se

colocara uma vez que mesmo que tenha possibilitado o realismo

cientificista segundo o qual a visatildeo soacute se faz possiacutevel por intermeacutedio do

ceacuterebro ainda na tentativa de romper com as ldquopequenas imagens que

volteiam pelo arrdquo Descartes chegara agrave conclusatildeo de que ao contraacuterio do que

se pensava natildeo eacute o olho que vecirc mas a alma (DESCARTES 1824a p 64) O

que isto significa Diraacute Merleau-Ponty ldquoeacute a alma que vecirc e natildeo o ceacuterebro eacute

pelo mundo percebido e suas estruturas proacuteprias que podemos explicar o

valor espacial atribuiacutedo em cada caso particular a um ponto do campo

visualrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 298) Eacute assim que conforme o filoacutesofo

ldquono que diz respeito agrave percepccedilatildeo a originalidade radical do cartesianismo

consiste em se colocar no proacuteprio interior dessa percepccedilatildeo em natildeo analisar

a visatildeo e o tato como funccedilotildees de nosso corpo mas lsquoapenas o pensamento de

ver e de tocarrsquordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 301) Conforme veremos a

seguir de certa forma esta ideia estaria presente na psicologia da Gestalt

fazendo com que Descartes houvesse de certo modo jaacute entrevisto a noccedilatildeo

moderna de consciecircncia servindo tambeacutem de inspiraccedilatildeo ao que iraacute

possibilitar a superaccedilatildeo kantiana do ceticismo e do realismo Nisto estaria

talvez aleacutem do que jaacute explicitamos ao tratar da imagem uma das

justificativas do retorno de Merleau-Ponty ao Cogito pensando ainda haver

nele apesar de suas dificuldades uma espeacutecie de ambiguidade que por sua

vez seria dissipada e silenciada no radicalismo do realismo cientificista e

isso no intuito de revisar a noccedilatildeo claacutessica de representaccedilatildeo mediante os

impasses que procuramos ilustrar com a questatildeo socraacutetica Mas como

ficaria em contrapartida o embate com o realismo Como o realismo se

posicionaria frente agraves questotildees levantadas por Merleau-Ponty em sua

descriccedilatildeo do Cogito Para o realismo grosso modo trata-se de seres

efetivamente transcendentes e dotados de uma existecircncia em si Teria o

realismo conseguido entatildeo resolver o problema Ora o retorno ao Cogito

nos deixa clara a insatisfaccedilatildeo de Merleau-Ponty com esta postura daiacute a

166

nossa pergunta se lhe eacute certo contudo como indicamos anteriormente

certos infortuacutenios do intelectualismo entatildeo por que natildeo uma incursatildeo ao

realismo

Antes de tudo o realismo natildeo se daacute conta do que constitui de

fato a questatildeo que tenta enfrentar nem se apercebe de que o que estaacute em

jogo em suas formulaccedilotildees e encontra-se nelas natildeo resolvido Deste modo

tambeacutem natildeo encontrariacuteamos nele a superaccedilatildeo da aporia socraacutetica Quais as

razotildees Ora se por um lado partimos do pressuposto de que o realismo

traga consigo a soluccedilatildeo do paradoxo levantado e por outro lado se o que

estaacute no fundamento deste uacuteltimo eacute a afirmaccedilatildeo de que as coisas satildeo

transcendentes isto implica tambeacutem que natildeo as possuiacutemos nem as

percorremos pois natildeo sabemos o que elas satildeo e afirmamos apenas a sua

ldquoexistecircncia nuardquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 423) Para Merleau-Ponty o

realismo seria na verdade compartilhando de seus mesmos prejuiacutezos a

outra face do intelectualismo ou melhor estariacuteamos diante por um lado de

intelectualismo racionalista e de outro de um intelectualismo realista ou

cientificista tratando-se sempre no final de um intelectualismo Sendo

assim ldquoque sentido haveria em afirmar a existecircncia de natildeo se sabe o querdquo

(Ibidem p 494) O embaraccedilo do realismo teria suas raiacutezes por conseguinte

no reducionismo da ldquoluz naturalrdquo agrave ldquoatualidade representadardquo atitude esta

que conforme Lachiegraveze-Rey natildeo poderia acarretar outra consequecircncia que

os impasses gerados pela aporia socraacutetica Natildeo seriam estes impasses que o

filoacutesofo tentou nos apontar cuidadosamente nas duras paacuteginas de La

Structure du comportement ao tratar dos problemas gerados pelo realismo

das ciecircncias Neste caso qual seria o parentesco deste realismo com o

pensamento cartesiano

Para Merleau-Ponty tanto na Dioptrique como no Traiteacute des

passions Descartes partiria de um ldquomundo jaacute prontordquo apenas em seguida

seriam inseridos o corpo e a alma havendo nisso um claro abandono da

existecircncia de ldquocoisas extramentaisrdquo tais como foram inseridas pelo realismo

logo a presenccedila de um direcionamento para uma descriccedilatildeo da experiecircncia

humana a partir de uma explicaccedilatildeo do que lhe eacute inerente e natildeo do que lhe eacute

exterior ou melhor nesta perspectiva natildeo haveria uma exterioridade a ditar

167

suas relaccedilotildees Por conseguinte a percepccedilatildeo natildeo seria um ldquoefeitordquo da

Natureza mas passaria a ser compreendida a partir de sua estrutura

interna a partir dos ldquo[] motivos que asseguram agrave consciecircncia ingecircnua que

ela tem acesso a lsquocoisasrsquo e que lhe permitem apreender num pedaccedilo de cera

um ser soacutelido para aleacutem das aparecircncias transitoacuteriasrdquo (MERLEAU-PONTY

2006 p 302) A partir disto Merleau-Ponty acentua as diferenccedilas entre a

ldquoduacutevida ceacuteticardquo e a ldquoduacutevida metoacutedicardquo Enquanto a primeira torna-se um

estado de incerteza insoluacutevel por centrar-se na existecircncia de coisas

extramentais a segunda por encontrar em si mesma aquilo que faz cessar

esta mesma duacutevida ldquo[] revela ao pensamento o domiacutenio indubitaacutevel das

significaccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 302) A questatildeo natildeo estaacute se a

aacutervore que vejo existe ou natildeo mas qual eacute o sentido desta operaccedilatildeo dado que

eacute certa minha existecircncia ou seja eacute a operaccedilatildeo de meu pensamento que faz

com que eu seja capaz de vecirc-la Logo

Desse ponto de vista a percepccedilatildeo natildeo podia mais aparecer como o

efeito em noacutes da accedilatildeo de uma coisa exterior nem o corpo como o intermediaacuterio dessa accedilatildeo causal a coisa exterior e o corpo definidos

pelo ldquopensamentordquo da coisa e pelo ldquopensamentordquo do corpo ndash pelo significado coisa e pelo significado corpo ndash tornavam-se indubitaacuteveis

tais como se apresentam para noacutes numa experiecircncia luacutecida ao mesmo tempo que perdiam os poderes ocultos que o realismo

filosoacutefico lhes confere (MERLEAU-PONTY 2006 p 303)

Em contrapartida eacute abandonando o recurso a construccedilotildees

meramente teoacutericas ou a simples epifenocircmenos que o proacuteprio fenocircmeno da

corporeidade eacute suscetiacutevel de ser compreendido quer dizer que a experiecircncia

de uma totalidade acima de tudo significante torna-se manifesta Mas natildeo eacute

este o procedimento da ciecircncia claacutessica Pelo contraacuterio tantos cientistas

quanto psicoacutelogos ldquo[] consideram a percepccedilatildeo e seus objetos proacuteprios como

lsquofenocircmenos psiacutequicosrsquo ou lsquointerioresrsquo funccedilotildees de certas variaacuteveis fisioloacutegicas

e psiacutequicasrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) Deste modo deparamo-nos

novamente com o realismo uma vez que ldquose entendemos por natureza um

conjunto de acontecimentos ligados por leis a percepccedilatildeo seria uma parte da

natureza o mundo percebido uma funccedilatildeo do mundo real das qualidades

168

primeirasrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) Seguindo este criteacuterio

entendemos a conclusatildeo de Merleau-Ponty ldquoa partir do momento em que

admitimos como quer o realismo que a alma lsquosoacute vecirc imediatamente por

intermeacutedio do ceacuterebrorsquo mesmo que esta mediaccedilatildeo natildeo seja uma accedilatildeo

transitiva ela obriga a procurar no corpo um equivalente fisioloacutegico do

percebidordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) O corpo entendido como mera

extensatildeo coisa entre as coisas natildeo estaria nas consequecircncias deste

princiacutepio algumas das referecircncias nas quais a psicologia claacutessica iria erguer

o arcabouccedilo teoacuterico de sua anaacutelise do corpo e do comportamento Mas a

questatildeo natildeo eacute tatildeo simples Como esta afirmaccedilatildeo poderia ser verdadeira se

pensamos estar Descartes justamente na antiacutepoda do realismo

A nosso ver aqui encontramos o elo que une La Structure du

Comportement e LrsquoŒil et lrsquoesprit a comeccedilar pelo tiacutetulo deste uacuteltimo Para

Merleau-Ponty sobretudo estaacute em jogo os desdobramentos que essa relaccedilatildeo

iraacute adquirir no intelectualismo da ciecircncia claacutessica e em nossa concepccedilatildeo de

homem Pensar as relaccedilotildees entre o olho e o espiacuterito significa pensar as

relaccedilotildees entre alma e ceacuterebro entre pensamento e ceacuterebro ndash certamente natildeo

eacute gratuita a semelhanccedila com o tiacutetulo e as questotildees discutidas em uma das

referecircncias de La Structure du Comportement Le Cerveau et la penseacutee de H

Pieacuteron ndash entre filosofia e ciecircncia Eacute assim que ele notaraacute a proximidade entre

esta concepccedilatildeo cartesiana de alma e os trabalhos dos gestaltistas assim

como por natildeo seguir as consequecircncias deste argumento a ciecircncia claacutessica

iraacute se afastar do que seria a intuiccedilatildeo originaacuteria do cartesianismo e se

perderaacute nas encruzilhadas especialmente na fisiologia claacutessica e suas zonas

de associaccedilatildeo de um pseudocartesianismo Aqui certamente somos levados

reconhecer que em LrsquoŒil et lrsquoEsprit aleacutem dos horizontes de uma discussatildeo

acerca da arte deparamo-nos com o projeto de uma ldquonova ontologiardquo aquela

mesma que ambicionava romper com o que se considerava ser os limites da

metafiacutesica claacutessica Logo natildeo eacute sem sentido que vaacuterios trechos de Lrsquoœil et

lrsquoesprit jaacute se encontravam nos cursos de Merleau-Ponty sobre a ontologia

cartesiana

Daiacute a importacircncia de reconhecer que a presenccedila da pintura neste

texto manifesta-se por haver ali a proposta de uma ontologia oposta agrave

169

metafiacutesica cartesiana Mais do que um simples elogio agrave arte ou o esboccedilo de

um tratado de esteacutetica o que encontramos eacute a recusa de uma metafiacutesca que

se fundamenta no divoacutercio entre o olho a visatildeo dos olhos nossa

corporeidade e o espiacuterito a intuitus mentis valendo o mesmo a nosso ver

para a visatildeo cientificista tanto em sua oposiccedilatildeo de ceacuterebro e pensamento

como tambeacutem na reduccedilatildeo da relaccedilatildeo existente entre eles agraves leis da

causalidade Eacute assim que encontramos nos uacuteltimos trabalhos de Merleau-

Ponty a retomada de algumas das questotildees que animaram La Sctructure du

comportement poreacutem neste horizonte vinculada a uma ldquofeacute perceptivardquo e na

nervura do imaginaacuterio a uma ldquofenomenologia da ausecircnciardquo

Pois eacute certo que vejo minha mesa que minha visatildeo termina nela que ela fixa e deteacutem meu olhar com sua densidade insuperaacutevel como tambeacutem eacute certo que eu sentado diante de minha mesa ao pensar na ponte da Concoacuterdia natildeo estou mais em meus pensamentos mas na ponte da Concoacuterdia e que finalmente no horizonte de todas estas visotildees estaacute o proacuteprio mundo que habito o mundo natural e o mundo histoacuterico com todos os vestiacutegios humanos de que eacute feito [] O que nos importa eacute precisamente saber o sentido do ser do mundo a esse propoacutesito nada devemos pressupor nem a ideia ingecircnua do ser em si nem a ideia correlata de um ser de representaccedilatildeo de um ser para a consciecircncia de um ser para o homem todas essas satildeo noccedilotildees que devemos repensar a respeito de nossa experiecircncia do mundo ao mesmo tempo que pensamos o ser do mundo (MERLEAU-PONTY 1992 p 17 18)

Pensando nestas palavras notamos portanto tambeacutem em Lrsquoœil

et lrsquoesprit a criacutetica merleau-pontiana agrave psicofisiologia que como nos

acentuava Lebrun nascia tambeacutem com a Dioptrique No entanto mesmo que

Lebrun tenha visto no cego do seacuteculo XVIII o nascimento da psicologia a

compreensatildeo do humano desligada da oacutetica pensamos que seguindo as

trilhas de Merleau-Ponty a ciecircncia do Pequeno Racionalismo ainda

permanecia tributaacuteria dos horizontes abertos pelo cego cartesiano Daiacute que

uma criacutetica inspirada em uma ldquoontologia da pinturardquo na encarnaccedilatildeo do

olhar a nosso ver tambeacutem implique uma criacutetica ao primado das relaccedilotildees

causais explicitadas pela ciecircncia claacutessica Cabe-nos todavia precisar o que

na leitura do filoacutesofo faz parte do pensamento cartesiano e aquilo que

pertence ao ldquopseudocartesianismordquo dos cientistas ou antes as dubiedades

que permeiam o proacuteprio cartesianismo propiciando agrave ciecircncia claacutessica retirar

170

dele o que melhor lhe convinha Tentemos entender primeiramente o que

seria este ldquopseudocartesianismordquo que serve de inspiraccedilatildeo para o realismo

das ciecircncias O ldquopseudocartesianismordquo dos cientistas para Merleau-Ponty

tem por fundamento o modo como eacute encarada uma espeacutecie de

ldquoocasionalismordquo presente em algumas paacuteginas da Dioptrique O problema

discutido por Descartes parece ser o mesmo que acompanha as Reacuteponses

aux Cinquiegravemes Objections ou o seu Traiteacute de lrsquohomme aleacutem do conhecido

recurso agrave ldquoglacircndula pinealrdquo tambeacutem presente no Traiteacute des passions de

lrsquoacircme Trata-se pois conforme jaacute indicamos da pergunta pelo modo

mediante o qual os objetos na consciecircncia podem ser considerados

realidades ou seja o que se procura satildeo os argumentos que nos

possibilitam falar da existecircncia de uma correspondecircncia entre as ideias que

se encontram no sujeito e as coisas que estatildeo fora dele Em outros termos

se a percepccedilatildeo eacute o resultado da accedilatildeo de uma coisa sobre o corpo e

consequentemente do corpo sobre a alma ndash dada a compreensatildeo do homem

como um composto de corpo e alma (DESCARTES 1996m p 139 ndash IIa Obj)

ndash resta saber como ldquo[] um duplo ou uma imitaccedilatildeo do real eacute suscitado no

corpo depois no pensamentordquo (MERLEAU-PONTY A Estrutura do

comportamento p 294) jaacute que ldquoeacute inicialmente o sensiacutevel o proacuteprio percebido

que instalamos nas funccedilotildees de coisa extramental []rdquo(MERLEAU-PONTY

2006 p 294)

A nosso ver eacute ali inclusive neste pseudocartesianismo dos

cientistas que se efetiva e se encarna a diplopia cartesiana que elucidamos

ao tratar da natureza Daiacute a ideia de uma separaccedilatildeo existente entre o ldquoqualerdquo

e o sensiacutevel a ideia de um ldquoqualerdquo capaz de trazer consigo ao mesmo tempo

uma pura impressatildeo e sua funccedilatildeo correspondente Logo ldquoconhecer eacute pois

sempre apreender um dado em certa funccedilatildeo sob certo aspecto lsquoenquantorsquo

ele me significa alguma estruturardquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 306) Deste

modo eacute justamente por natildeo ter radicalizado a criacutetica cartesiana agraves ldquoespeacutecies

intencionaisrdquo aos ei1dwla que encontramos na ciecircncia claacutessica os caminhos

pelos quais na verdade ele acabara se tornando mediante uma vivecircncia

empiacuterica um desdobramento do que haacute de equiacutevoco na compreensatildeo do

171

Cogito entendido agora tatildeo-somente como fundamento de uma ldquoconsciecircncia

intelectualrdquo logo novamente possibilitando o que viria a ser o

ldquooperacionalismo das ciecircnciasrdquo e seu esquecimento do mundo-da-vida

Consequentemente na encruzilhada que configura Descartes a ciecircncia

claacutessica se perde nos labirintos abertos pela noccedilatildeo cartesiana de causalidade

e suas ldquocausas ocasionaisrdquo encontrando o seu assento na necessidade de se

ldquo[] colocar no ceacuterebro alguma representaccedilatildeo fisioloacutegica do objeto percebidordquo

(MERLEAU-PONTY 2006 p 297) sendo tal necessidade ldquo[] inerente agrave

atitude realista em geralrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 297) Por

conseguinte nesta incursatildeo que sentido iraacute adquirir o realismo

Se haacute uma tese central que permeia as diversas modalidades de

realismo como jaacute salientamos seraacute provavelmente a crenccedila de que existam

objetos reais independentes de nossa consciecircncia O mundo existe em si e

por si mesmo sem o nosso consentimento quer pensemos nele ou natildeo quer

o percebamos ou natildeo Assim sendo mesmo quando em um realismo

ingecircnuo natildeo distingo os conteuacutedos de minha consciecircncia e o objeto

percebido ou estabeleccedila partindo da diferenccedila uma correspondecircncia entre

eles em um realismo naturalista mesmo quando separo em um realismo

criacutetico percepccedilatildeo e representaccedilatildeo tomando o cuidado para natildeo confundir as

determinaccedilotildees quantitativas do mundo verdadeiro com as subjetivas

qualidades que dele apreendemos mediante os nossos sentidos uma certeza

permanece haacute um mundo que me eacute absolutamente exterior No entanto se

pensamos nas contribuiccedilotildees das ciecircncias claacutessicas o realismo criacutetico cada

vez se distanciaraacute mesmo mantendo os mesmos fundamentos do realismo

ingecircnuo e quem nos adverte isto seraacute o proacuteprio psicoacutelogo ldquohaacute seacuteculos vaacuterias

ciecircncias em particular a Fiacutesica e a Biologia comeccedilaram a solapar a

confianccedila singela dos seres humanos no sentido de considerar este mundo

como a realidaderdquo (KOumlHLER 1968 p 10) O mundo deixa de ser aquilo que

vejo quando abro os meus olhos assim se estou em uma sala escura e um

foco luminoso atrai o meu olhar natildeo seraacute uma luz real que vejo mas uma

ldquoluz fenomecircnicardquo aquela que soacute existe em mim pois a ldquoluz realrdquo natildeo

passaria de um ldquomovimento vibratoacuteriordquo (MERLEAU-PONTY 2006 cap I) O

que nos fez a ciecircncia Continua o psicoacutelogo ldquo[] a ciecircncia teve de construir

172

um mundo objetivo e independente de coisas fiacutesicas espaccedilo fiacutesico tempo

fiacutesico e movimento fiacutesico e de afirmar que tal mundo natildeo aparece de modo

algum na experiecircncia diretardquo (KOumlHLER 1968 p 11) Quais as razotildees Eacute

que nem tudo o que percebemos pertence agrave coisa percebida logo haacute

elementos que devem ser postos na conta do sujeito Como se daria esta

distinccedilatildeo entre o que cabe ao sujeito e o que cabe ao objeto percebido

Vejamos

32 A psicologia claacutessica o objetivismo cientificista

Retomando uma tradiccedilatildeo galileana95 na experiecircncia do mundo

e seguindo a separaccedilatildeo intelectualista entre o ldquoqualerdquo e a ldquocoisa sensiacutevelrdquo eacute

possiacutevel fazer uma distinccedilatildeo entre aquilo que eacute absoluto e matematicamente

imutaacutevel e aquilo que eacute relativo por estar condicionado por uma flutuante

subjetividade presa agrave mediaccedilatildeo dos sentidos ou seja entre qualidades

primaacuterias e secundaacuterias Assim ldquoos elementos confusos e inconfiaacuteveis na

figuraccedilatildeo sensorial da natureza satildeo de algum modo efeitos dos proacuteprios

sentidosrdquo (BURTT 1991 p 67) pois ldquoeacute porque o quadro mental resultante

passou pelos sentidos que ele possui todas essas caracteriacutesticas confusas e

enganosasrdquo (BURTT 1991 p 67) Por conseguinte (KOumlHLER 1968 Cap I)

enquanto as qualidades secundaacuterias natildeo passam de meros efeitos dos

nossos sentidos as primaacuterias seriam as que na Natureza satildeo de fato reais e

quantificaacuteveis96 Esta dualidade da experiecircncia cujas raiacutezes ndash caso

95 Lembremo-nos do que nos diz o proacuteprio Galileu ldquo() natildeo acredito que os corpos externos para provocar em noacutes esses gostos esses cheiros e esses sons requeiram mais que o tamanho a figura o nuacutemero e o movimento vagaroso ou raacutepido e julgo que se os ouvidos a liacutengua e as narinas fossem suprimidas a figura os nuacutemeros e os movimentos certamente permaneceriam mas natildeo os odores nem os gostos nem os sons os quais sem o animal vivo natildeo creio que constituam mais que nomes assim como as coacutecegas natildeo satildeo nada mais que um nome se a axila ou a membrana nasal fossem suprimidasrdquo (GALILEU 1942 vol IV p 333) 96 Como nos adverte o Koyreacute ldquosoacute assim eacute que as limitaccedilotildees do empirismo aristoteacutelico puderam ser superadas e que o verdadeiro meacutetodo experimental pocircde ser elaborado Um meacutetodo no qual a teoria matemaacutetica determina a proacutepria estrutura da pesquisa experimental ou para retomar os proacuteprios termos de Galileu um meacutetodo que utiliza a linguagem matemaacutetica (geomeacutetrica) para formular suas indagaccedilotildees agrave natureza e para interpretar as respostas que ela daacute Um meacutetodo que substituindo o mundo do mais ou

173

tiveacutessemos um interesse etioloacutegico ndash encontrariacuteamos jaacute no pensamento grego

(Demoacutecrito e Platatildeo) constituiraacute o realismo das ciecircncias claacutessicas cujos

experimentos ao mesmo tempo serviratildeo de base para o proacuteprio realismo O

fundamento do que desde entatildeo seraacute considerado real especialmente para

as nascentes ciecircncias preocupadas em serem verdadeiramente ciecircncias ndash e

como tais dotadas de um saber rigoroso ndash natildeo seraacute outro que aqueles

tomados de empreacutestimo da fiacutesica claacutessica e de sua cientificidade ou melhor

do que constitui filosoficamente os princiacutepios de uma ldquofiacutesica matemaacuteticardquo

(HEIDEGGER 1998) Se acompanhamos atentamente as reflexotildees de La

Structure du comportement natildeo teriam sido a Fisiologia e Psicologia claacutessicas

quem melhor aprenderam esta liccedilatildeo Caso se duvide do filoacutesofo basta ouvir

mais uma vez a confissatildeo do proacuteprio psicoacutelogo

De fato se os cientistas verificaram ser o mundo simples

impermeaacutevel ao seu meacutetodo que melhor esperanccedila de ecircxito podemos acalentar como psicoacutelogos E uma vez que jaacute foi executada pelos

fiacutesicos a extraordinaacuteria faccedilanha de passar do mundo da experiecircncia

direta mas confusa para um mundo de clara e rude realidade

pareceria aconselhaacutevel para o psicoacutelogo tirar partido desse grande acontecimento na histoacuteria da ciecircncia e tratar de estudar a Psicologia

partindo da mesma base mais soacutelida (KOumlHLER 1968 p 10)

Do mesmo modo como nos acentua Kofka ldquoa moderna

psicologia cientiacutefica foi iniciada pela quantificaccedilatildeordquo (KOFKA 1980 p 25) e

as razotildees jaacute sabemos natildeo eacute apenas o meacutetodo mas tambeacutem o proacuteprio

conceito de realidade que eacute importado da fiacutesica claacutessica A psicologia

inspirava-se nos procedimentos da quiacutemica e da fiacutesica fazendo o seu ofiacutecio

pousar no isolamento de elementos e na descoberta tanto de suas leis

quanto de suas combinaccedilotildees A psicologia do seacuteculo XIX para dizermos com

Guillaume por conseguinte ldquo[] tinha tomado por tarefa a anaacutelise dos fatos

de consciecircncia ou das condutasrdquo (GUILLAUME 1979 p 1) Por sua vez a

fisiologia cumprindo bem o seu papel projetava no coacutertex cerebral as

mesmas relaccedilotildees causais que marcam o mundo fiacutesico fazendo do substrato

menos conhecido empiricamente pelo Universo racional da precisatildeo adota a mensuraccedilatildeo como princiacutepio experimental e fundamentalrdquo (KOYREacute 1991 p 74)

174

fisioloacutegico de nossa relaccedilatildeo com o mundo um ldquodepoacutesito de vestiacutegios

cerebraisrdquo um ldquocentro de imagensrdquo ou de ldquopercepccedilotildeesrdquo tal como expressa o

famoso exemplo da central telefocircnica Nesta perspectiva o organismo eacute

considerado a partir de um pretenso substrato mecacircnico que norteia as

relaccedilotildees orgacircnicas com o meio ele eacute o objeto que serve de cenaacuterio para uma

ldquoexperiecircncia sensorial particularrdquo que tem sua origem em ldquoacontecimentos

fiacutesicosrdquo Em meio a este processo o corpo eacute o uacutenico objeto que nos eacute

imediato Neste jogo ora o corpo eacute compreendido como uma coisa dentre

outras ora eacute compreendido como um encadeamento fenomecircnico regido por

princiacutepios de causalidade assim ldquosoacute temos conhecimento do organismo

como de todas as outras coisas fiacutesicas atraveacutes de um processo de inferecircncia

ou construccedilatildeordquo (KOumlHLER 1968 p 11) Como salienta Koumlhler ldquomeu

organismo reage ante a influecircncia de outros objetos fiacutesicos mediante

processos que mantecircm o mundo sensorial em torno de mim Outros

processos no organismo fazem surgir a coisa sensorial que chamo de meu

corpordquo (KOumlHLER 1968 p 11) O corpo eacute uma realidade em si uma mera

sub-stacircncia e ao mesmo tempo frente ao entendimento uma ob-stacircncia

Considerando o corpo como uma mera circunstacircncia do mundo a ciecircncia

claacutessica natildeo somente natildeo se deu conta de sua dignidade ontoloacutegica como

deixou escapar tambeacutem o proacuteprio fenocircmeno corporal e suas consequecircncias

metafiacutesicas Eacute por considerar o corpo uma simples extensatildeo que a psicologia

claacutessica se crecirc poder de iure classificar os comportamentos em superiores e

inferiores e poder constituir via a fisiologia claacutessica o comportamento

reflexo como a entidade atocircmica a partir da qual seria possiacutevel entender

inclusive os comportamentos ditos superiores Perde-se pois a

potencialidade de se entender a relaccedilatildeo autecircntica que se estabelece na

experiecircncia perceptiva entre o corpo e seu objeto haja vista que uma

conduta um movimento vital natildeo se explica mediante a superposiccedilatildeo de

reflexos elementares ou de uma forccedila vital

Deste modo a psicologia claacutessica iria cair nas armadilhas do

pensamento cartesiano assim como as ciecircncias do Pequeno Racionalismo

no justo momento em que tentando romper com a abstraccedilatildeo filosoacutefica

pensava tecirc-la superado Eacute contra isto que a ciecircncia moderna se levanta e o

175

faz tendo por referecircncia o que de certa forma jaacute nos assinalava Merleau-

Ponty apesar de entrevisto por Descartes natildeo fora radicalizado eacute a alma

que vecirc e natildeo o olho O que isto significa A compreensatildeo de que a visatildeo natildeo

eacute simplesmente uma operaccedilatildeo fisioloacutegica mas estruturada ao passo que

em Descartes a negaccedilatildeo da visatildeo dos olhos se dava no intuito de legitimar

uma visatildeo do espiacuterito O curioso eacute que deste modo esta ruptura da ciecircncia

moderna se torna possiacutevel justamente no momento em que o

pseudocartesianismo dos cientistas ndash logo uma questatildeo cartesiana ndash perde a

sua cidadania em prol da estrutura da experiecircncia de uma percepccedilatildeo que

natildeo desconsidera o seu fundo que eacute na verdade a percepccedilatildeo de uma figura

sobre um fundo Eacute assim que ldquoo interesse da Teoria da Formardquo diz Paul

Guillaume ldquoseraacute o de estabelecer uma uniatildeo inteligiacutevel entre os termos

estiacutemulo-resposta distantes entre si e mostrar como a constelaccedilatildeo objetiva

dos estiacutemulos condiciona a organizaccedilatildeo perceptiva e como esta se reflete na

organizaccedilatildeo da reaccedilatildeordquo (GUILLAUME 1979 p 2)

Nestas consideraccedilotildees vemos aparecer as duas caracteriacutesticas

fundamentais sob as quais se nos apresenta a noccedilatildeo de forma no horizonte

da psicologia contemporacircnea a totalidade e a organizaccedilatildeo A noccedilatildeo de

forma tal como aborda Koumlhler e Koffka apresenta as mesmas

caracteriacutesticas que jaacute Wertheimer anunciara na hora de defini-la como ldquoo

conjunto cuja conduta natildeo se determina pela conduta de seus elementos

individuais mas pela natureza interna do conjuntordquo (WERTHEIMER 1938

p 13)97 O caraacuteter de organizaccedilatildeo inerente agrave ldquoformardquo eacute fundamental na

tentativa de encontrar uma soluccedilatildeo ao problema do comportamento

explicado sob os auspiacutecios da fisiologia claacutessica98 A adoccedilatildeo da noccedilatildeo de

97 ldquoBut there is a third kind of aggregate which has been but cursorily investigated These are the aggregates in which a manifold is not compounded from adjacently situated pieces but rather such that a term at its place in that aggregate is determined by the whole-laws of the aggregate itselfrdquo 98 A compreensatildeo e a explicitaccedilatildeo do comportamento como totalidade e organizaccedilatildeo se tornara inclusive a tarefa que Kurt Goldstein autor muito caro a Merleau-Ponty assumira em suas pesquisas A metodologia goldsteiniana ao evidenciar o caraacuteter dogmaacutetico e infundado do programa behaviorista intenta a desconstruccedilatildeo de uma psicologia atomista que natildeo entenda a natureza humana senatildeo como um soma de fragmentos Como nos diz Goldstein ldquoSe um estudioso da natureza humana embasa seus estudos sobre resultados de uma ciecircncia determinada conta apenas com um ponto de partida nunca teraacute de alcanccedilar

176

forma para a teoria do comportamento adquire uma importacircncia radical ela

possibilita acentuar o dinamismo interno e a orientaccedilatildeo para a accedilatildeo que lhe

eacute inerente Em contrapartida a referecircncia agrave Gestalt no estudo do sistema

nervoso teraacute dado um passo aleacutem daquele da atitude geomeacutetrica atitude

proacutepria da psicologia claacutessica Superando no organismo um reducionismo a

relaccedilotildees causais torna-se possiacutevel o estabelecimento da noccedilatildeo de ldquoordemrdquo

como categoria descritiva e portanto capaz de uma compreensatildeo integral do

comportamento A razatildeo disso eacute que na forma cada momento se encontraraacute

determinado pelo conjunto dos outros e seu valor respectivo depende de um

estado de equiliacutebrio total cuja foacutermula eacute um caraacuteter que lhe eacute intriacutenseco

(MERLEAU-PONTY 1942 p 101 2006 p 97) Todavia embora aponte

caminhos para uma superaccedilatildeo dos entraves outorgados pela anaacutelise

atomista de Pavlov a Psicologia da Forma apresentava para Merleau-Ponty

alguns problemas que tambeacutem precisam ser revistos O fato de que a forma

possa ser definida como um processo de ldquofigura-fundordquo natildeo nos permite

caso sejamos consequentes agrave superaccedilatildeo filosoacutefica que nos traz integraacute-la ao

mundo fenomecircnico Para Merleau-Ponty eacute preciso levar ateacute as uacuteltimas

consequecircncias a noccedilatildeo de forma apontada pelos trabalhos da Gestalt O que

isto significa

A teoria da Gestalt tem por objetivo acima de tudo superar as

antinomias claacutessicas que foram produzidas pela psicologia ao fazer uso da

noccedilatildeo de causalidade Caso se queira de fato assim como eacute o interesse de

Merleau-Ponty estabelecer uma relaccedilatildeo entre consciecircncia e natureza

especialmente nos primeiros trabalhos eacute preciso superar tanto a distinccedilatildeo

feita pela psicologia claacutessica dos campos ldquoexteriorrdquo ldquointeriorrdquo e ldquomentalrdquo

quanto a reduccedilatildeo deles aos ditames da causalidade fiacutesica Como integraacute-los

uma resposta correta para seus problemas a partir do material de um soacute campo da ciecircncia se o organismo fosse uma soma de partes agraves quais fossem possiacuteveis de estudar em separado natildeo teria nenhuma dificuldade em combinar o conhecimento sobre as partes para constituir a ciecircncia sobre a totalidade Mas todas as tentativas feitas para compreender o organismo como um todo diretamente a partir desses fenocircmenos tiveram muito pouco ecircxito Eacute liacutecito concluir que essas tentativas natildeo foram frutuosas porque o organismo natildeo eacute uma soma de partesrdquo (GOLDSTEIN 1961 p 18) Essa atitude metodoloacutegica de Goldstein natildeo passara despercebida nas pesquisas de Merleau-Ponty Vaacuterias satildeo as referecircncias que o filoacutesofo lhe faz especialmente nos primeiros trabalhos

177

Nesse sentido a Psicologia da Forma apresenta a possibilidade de que a

noccedilatildeo de forma seja aplicaacutevel aos trecircs campos integrando-os como trecircs tipos

de estruturas e assim apontando uma superaccedilatildeo das antinomias do

materialismo versus espiritualismo materialismo versus vitalismo Por

conseguinte ldquomateacuteriardquo ldquovidardquo e ldquoespiacuteritordquo participariam de uma maneira

desigual na natureza da forma chegando a inserir diferentes graus de

integraccedilatildeo e ao mesmo tempo uma hierarquia na qual a individualidade se

realizava frente ao todo Como Merleau-Ponty se posicionara diante disto

Para ele encontra-se aiacute justamente o fracasso da Psicologia da Forma ou

seja ao dirigir-se a um caminho que natildeo aquele prometido por seus

primeiros passos O problema estaacute em que ela natildeo se pergunta pelo ser que

pode ter a forma e erra ao colocaacute-la no nuacutemero dos acontecimentos da

natureza Por fim seu fracasso estaacute por natildeo pensar segundo a forma

(MERLEAU-PONTY 2006 p 147) Seraacute preciso conforme Merleau-Ponty

encontrar uma filosofia da forma Logo natildeo se pode considerar o que

frequentemente se chama ldquomateacuteriardquo ldquovidardquo ldquoespiacuteritordquo como classes de ser

mas como ldquoordens de significaccedilatildeordquo da mesma estrutura (MERLEAU-PONTY

2006 p 147) Entendemos melhor esta postura do filoacutesofo se nos fizermos

as seguintes questotildees Haacute um objetivismo da estrutura ou seja ela eacute uma

realidade independente Caso seja uma coisa seria dada e verificaacutevel pela lei

da causalidade

Efetivamente a estrutura natildeo eacute nem uma ideia nem um objeto de

pensamento pois carece da determinaccedilatildeo precisa para secirc-lo Eacute mister

assinalar que o termo estrutura eacute um simples indicativo da organizaccedilatildeo

interna e da orientaccedilatildeo para o exterior do objeto concreto natildeo sendo

independente deste objeto assim como natildeo eacute por exemplo a sua cor A

estrutura estaacute pois longe de ser um elemento acidental do objeto assim

como tambeacutem uma substacircncia Logo eacute compreensiacutevel a afirmaccedilatildeo de que ldquoa

mateacuteria eacute pregnante de uma formardquo na qual estrutura e organizaccedilatildeo

expressam tatildeo soacute o que fora realizado tanto na forma quanto na mateacuteria

pela pregnacircncia A estrutura pois natildeo eacute um ei1dov [eidos] mas a expressatildeo

de uma ordem imanente aos objetos Soacute a tiacutetulo de ldquoordemrdquo a estrutura eacute

178

objeto de uma consciecircncia mas de uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo e natildeo

constituinte que o capta por intermeacutedio da unidade harmocircnica de seus

elementos assim como captamos uma melodia

Ora se por um lado a forma natildeo eacute uma instacircncia a priori mas

contemporacircnea ao objeto ela tambeacutem natildeo eacute algo a existir ldquoem sirdquo na

Natureza especialmente quando nos referimos agrave fiacutesica Ao falar de formas

em fiacutesica postula-se pelo contraacuterio a existecircncia de uma ordem e

organizaccedilatildeo natural na qual as noccedilotildees de estrutura e de lei se integram

como momentos dialeacuteticos Se eacute certo que o objeto da fiacutesica pois eacute a ordem

dos fenocircmenos ou a organizaccedilatildeo da natureza ao inveacutes da postulaccedilatildeo de uma

fusiv [physis]rdquo que fosse o ldquolugarrdquo das estruturas eacute certo tambeacutem que esta

ldquocerta transcendecircnciardquo da forma natildeo se constituindo como um elemento do

mundo eacute o ldquolimiterdquo para o qual tende o conhecimento fiacutesico (MERLEAU-

PONTY 2006 p 152) aquele mesmo que faz aparecer a forma como um

objeto da percepccedilatildeo (MERLEAU-PONTY 2006 p 155) Desde o momento em

que a forma deixa de ser compreendida como um ser da natureza e se

apresenta como unidade de significaccedilatildeo potildee em primeiro plano esta

originalidade que comportam as formas vitais frente os sistemas fiacutesicos

Efetivamente esta originalidade se molda no fato de que as estruturas

orgacircnicas satildeo aquelas nas quais ldquoo equiliacutebrio natildeo se obteacutem em relaccedilatildeo a

condiccedilotildees presentes e reais mas em relaccedilatildeo a condiccedilotildees soacute virtuais que o

sistema mesmo traz agrave existecircncia enquanto que o equiliacutebrio obtido na forma

fiacutesica eacute em relaccedilatildeo a condiccedilotildees exteriores dadasrdquo (MERLEAU-PONTY 2006

p 157)

Em seus uacuteltimos trabalhos no entanto mais do que a ldquoestruturardquo

ou a ideia de um ldquoconsciecircncia perceptivardquo tida em La Structure du

Comportement como fundante em relaccedilatildeo agrave consciecircncia representativa por se

originar no mundo percebido mais do que a ideia de que a consciecircncia

perceptiva seja solidaacuteria com o corpo-proacuteprio ou vivido na tentativa de

minimizar o papel constituinte da consciecircncia e outorgar agrave relaccedilatildeo ldquocorpo

sensiacutevelrdquo e ldquomundo sensiacutevelrdquo o poder de doar sentido que Husserl atribuiacutea agrave

179

consciecircncia transcendental tal como fora esboccedilado na Pheacutenomeacutenologie de la

perception seraacute a noccedilatildeo de ldquocarnerdquo e seu ldquoquiasmardquo como pudemos notar ao

tratar da representaccedilatildeo que receberaacute a atenccedilatildeo de Merleau-Ponty Assim

neste capiacutetulo pensando no pensamento cartesiano pudemos fazer um

itineraacuterio que nos colocou no intervalo de La structure du comportement e de

Le Visible et lrsquoInvisible No proacuteximo toacutepico faremos um percurso semelhante

e retomaremos este mesmo itineraacuterio ao tratar da pergunta pelo homem

Antes poreacutem cabe-nos nos indagar sobre o modo a partir do qual no

horizonte de uma ldquocriserdquo Merleau-Ponty iraacute compreender a tarefa da

filosofia assim como pudemos notar na elaboraccedilatildeo do conceito de ldquocarnerdquo e

na maneira como o filoacutesofo se aproximara de Descartes no fundo buscando

sempre elucidar a experiecircncia de um ldquoimpensadordquo Eacute assim que conforme

veremos o filoacutesofo iraacute utilizar este termo heideggeriano em sintonia com a

sua concepccedilatildeo de linguagem e expressatildeo segundo a ideia de que na

linguagem o que encontramos eacute sempre a experiecircncia de um desequiliacutebrio

uma superaccedilatildeo do significante pelo significado Deste modo segundo o

filoacutesofo o sentido surgiraacute sempre do excesso do significado em relaccedilatildeo ao

significante havendo sempre uma espeacutecie de devir na vivecircncia da

linguagem Daiacute este modo de traccedilar a partir de Descartes o que poderia vir

a ser uma certa etiologia da crise pois jamais conseguiremos esgotar o

sentido de uma obra filosoacutefica ela sempre seraacute indecifraacutevel cabendo-nos o

exerciacutecio de sempre retomaacute-la em busca de um novo sentido pelo simples

fato de que ldquo[] o irrefletido ao qual nos voltamos natildeo eacute o que antecede a

filosofia ou que antecede a reflexatildeo eacute o irrefletido compreendido e

conquistado pela reflexatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1990 p 53)

33 A tradiccedilatildeo intelectualista e seus cenaacuterios

A princiacutepio eacute inegaacutevel que a Crise possua um caraacuteter negativo

conforme vimos no primeiro capiacutetulo no horizonte de uma criacutetica

husserliana a um naturalismo das ciecircncias (HUSSERL 1993) O proacuteprio

Merleau-Ponty chega a falar de um ldquoestado de natildeo-filosofiardquo confessa

inclusive que ldquoa crise nunca foi tatildeo radicalrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p19)

180

chegando agrave afirmaccedilatildeo extrema de que ldquoem todo caso na Franccedila hoje

filosoficamente natildeo sabemos o que pensamosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996

p165) Mas o diagnoacutestico natildeo eacute novo lembra-nos a abertura de La Structure

du comportement quando se tentava traccedilar um retrato do cenaacuterio filosoacutefico e

cientiacutefico de sua eacutepoca e a constataccedilatildeo natildeo podia ser outra ldquoassim acham-

se justapostas entre os contemporacircneos na Franccedila uma filosofia que faz de

toda natureza uma unidade objetiva constituiacuteda face agrave consciecircncia e

ciecircncias que tratam o organismo e a consciecircncia como duas ordens de

realidade e em sua relaccedilatildeo reciacuteproca como lsquoefeitosrsquo e como lsquocausasrsquordquo

(MERLEAU-PONTY 1942 p 2) Eacute muito esclarecedora a indagaccedilatildeo que o

filoacutesofo faz logo a seguir ldquouma volta pura e simples ao criticismo seraacute a

soluccedilatildeo E uma vez feita a criacutetica da anaacutelise real e do pensamento causal

natildeo haacute aiacute nada de fundado no naturalismo da ciecircncia nada que

lsquocompreendidorsquo e transposto deva encontrar lugar em uma filosofia

transcendentalrdquo (MERLEAU-PONTY 1942 p 2) Se este estado de crise e de

ruiacutenas explicitam uma espeacutecie de ldquodoenccedila da razatildeordquo e se conforme Kant ldquoa

criacutetica da razatildeo pura eacute um profilaacutetico contra uma doenccedila da razatildeo que tem o

seu germe em nossa naturezardquo (KANT 2005 p 209 ndash Reflexatildeo 5073 de

1776-78 Ak 1879) e sendo assim ldquoeacute o oposto da inclinaccedilatildeo que nos

aprisiona a nossa terra natal (nostalgia) a aspiraccedilatildeo de deixar o nosso

ciacuterculo e nos relacionarmos com outros mundosrdquo (KANT 2005 p 209 ndash

Reflexatildeo 5073 de 1776-78 Ak 1879) qual seria a recusa de um ldquoretorno ao

criticismordquo

Uma reduccedilatildeo pura e simples ao ldquocriticismordquo para Merleau-

Ponty natildeo resolveria aquela reduccedilatildeo pura e simples operada pelo

cientificismo a um universo de entidades mensuraacuteveis e calculaacuteveis Do

mesmo modo a defesa de uma ldquofilosofia purardquo aquela que entenderia a

atividade do espiacuterito como a uacutenica capaz de nos dar as coisas tais como satildeo

em si mesmas natildeo seria menos problemaacutetica Pelo contraacuterio em Merleau-

Ponty como salienta Slatman ldquoa filosofia natildeo deveria se separar da

experiecircncia mas acompanhaacute-lardquo (SLATMAN 2001 p14) daiacute que na

ruptura com uma ldquotradiccedilatildeo intelectualistardquo o ldquoretorno agraves coisas mesmasrdquo

realizado pelo filoacutesofo se fundamenta ldquo[] em termos de uma transformaccedilatildeo

181

da transcendentalidade pura em uma transcendentalidade impura ou

lsquocontaminadarsquordquo (SLATMAN 2001 p 12)99 Se o intento de resoluccedilatildeo desses

impasses a partir de uma ldquotranscendentalidade impurardquo jaacute estaacute presente nos

primeiros trabalhos de Merleau-Ponty cada vez mais se faz manifesto nos

uacuteltimos o que nos pode levar a compreender a elucidaccedilatildeo da Crise

entendida na condiccedilatildeo de uma ldquotensatildeo criacuteticardquo dessas questotildees como

basilar na gecircnese de seus projetos Para isto basta ouvir o proacuteprio filoacutesofo ao

propor-se conforme podemos ver em seus projetos de curso um movimento

semelhante agravequele realizado pela Krisis (HUSSERL 1954) pensando

elaborar assim a primeira parte de Le Visible et lrsquoInvisible (MERLEAU-PONTY

1964a) ldquotoda primeira parte deve ser concebida de maneira muito direta

atual como a Krisis de Husserl mostrar nossa natildeo-filosofia depois buscar a

sua origem em uma Selbstbesinnung histoacuterica e em uma Selbstbesinnung

sobre nossa cultura que eacute ciecircncia buscaremos nelas os Winkesrdquo (MERLEAU-

PONTY 1964a p 237) Mas o que haacute na Krisis de Husserl que tanto encanta

Merleau-Ponty Haveria ali conforme procuramos indicar anteriormente a

confirmaccedilatildeo que o filoacutesofo buscava para a sua suspeita de que no que diz

respeito agraves ciecircncias o problema radica-se no fato de que ali encontramos

mais ldquometafiacutesica do que se desejaria explicitarrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b

p 25) natildeo seria a ruptura com o kantismo a partir da convicccedilatildeo de que

como nos ensina a Krisis ldquoo caminho que conduz agrave filosofia transcendental

parte de uma questatildeo-em-retorno (Ruumlckfrage)rdquo na qual se poderia pensar os

conceitos de Lebenswelt de Zusammenleben de Leiblichkeit assim como a

distinccedilatildeo conforme veremos no proacuteximo toacutepico entre Leib e Koumlrper

(HUSSERL 1954 p 123) Natildeo seria a abertura de uma ldquoquestatildeo retroativardquo

(Ruumlckfrage) na qual seria possiacutevel um retorno filosoacutefico ao mundo da

percepccedilatildeo nos movimentos de uma genealogia do objetivismo cientificista

Antes de tudo a nosso ver vale salientar que quando se trata

do criticismo antes de ser uma recusa direta de Kant o que se nega eacute a

99 ldquoNotre analyse ici est conduite par la conviction que toute la philosophie de Merleau-Ponty cherche agrave determiner une voie pour retourner aux choses mecircmes mais contrairement agrave la conception de Husserl cette philosophie nrsquoaboutit pas ni agrave une philosophie transcendentale pure ni agrave une philosophie eacuteideacutetiquerdquo (SLATMAN 2001 p 12)

182

versatildeo apresentada por Brunschvicg aquela mesma que de forma elogiosa

Politzer apresentava como ldquo[] talvez a mais bela tentativa de siacutentese e de

criacutetica integrais que a interpretaccedilatildeo de Kant veio a conhecerrdquo (POLITZER

1978 p 11) uma vez que

O kantismo surge como o evangelho da consciecircncia moderna como expressatildeo da chegada do reino da civilizaccedilatildeo verdadeiramente moderna como a afirmaccedilatildeo da autonomia da soberania teoacuterica e praacutetica da consciecircncia uacutenica fonte de normas como a primeira expressatildeo consciente e eneacutergica deste fato essencialmente moderno a reparticcedilatildeo dos valores da lei e dos valores da feacute (POLITZER 1978 p 11)

Talvez nesta recusa esteja a confirmaccedilatildeo daquele paradoxo que o

proacuteprio Politzer sente estar presente entre os leitores de Kant o paradoxo

segundo o qual natildeo compreenderaacute bem o pensamento kantiano quem

propriamente natildeo tenha se exercitado em um meacutetodo racional o meacutetodo

racional empregado pelo proacuteprio Kant Logo a incompreensatildeo estaria na

incapacidade de percorrer o caminho que o proacuteprio pensamento kantiano

teria trilhado daiacute o descreacutedito frente ao kantismo Para Politzer Brunschvicg

teria tido o sucesso em ldquoformular a teoria criacutetica em sua pureza e em sua

generalidaderdquo ao reconhecer a descoberta de um ldquopoder constituinterdquo ldquo[] de

uma capacidade de invenccedilatildeo intelectual de criaccedilatildeo cientiacutefica que brota da

consciecircncia segundo a ordem humana e natildeo da razatildeo segundo a ordem

divinardquo (POLITZER 1978 p 12) Eacute o que diraacute o proacuteprio Brunschvicg ao

entender o ldquopoder constituinterdquo da consciecircncia como

uma noccedilatildeo de alcance capital a de que o conhecimento cientiacutefico eacute algo original consistente por si soacute que natildeo se poderia compreender tomando como referecircncia um modelo exterior ou anterior um dado imediato da percepccedilatildeo ou a intuiccedilatildeo de uma realidade transcendente que por consequecircncia a inteligecircncia humana em relaccedilatildeo contiacutenua e indefinida com o que atraiacute e o que repugna na experiecircncia deve ser constitutiva de uma realidade positiva (BRUNSCHVICG Apud POLITZER 1978 p 56) [Neste sentido salientaraacute tambeacutem Politzer ao citar Brunschvicg como Fecircnix das cinzas do sistema caduco levanta-se] ldquoa verdade do meacutetodo transcendental que sobre a ideia criacutetica permite-nos fundar Prolegocircmenos natildeo mais em um sentido uacutenico exclusivo para a metafiacutesica kantiana da natureza mas seguindo uma interpretaccedilatildeo muito mais ampla e mais rica para a ciecircncia dos matemaacuteticos e fiacutesicos da atualidaderdquo (BRUNSCHVICG Apud POLITZER 1978 p 12)

183

Ora se o idealismo criacutetico pintado por Brunschvicg eacute tudo isto

que nos diz Politzer por que a Fecircnix do ldquomeacutetodo transcendentalrdquo natildeo

despertaraacute encanto algum em Merleau-Ponty A razatildeo talvez natildeo esteja no

meacuterito pelo qual se procurava ldquojulgar Kant segundo aquilo que fez pela

humanizaccedilatildeo ou pela autonomia espiritual da consciecircnciardquo (POLITZER

1978 p 13) mas justamente na ideia de ldquohumanizaccedilatildeordquo ou de possibilidade

de uma ldquoautonomia espiritualrdquo assim como a necessidade de uma escolha

radical que se deveria fazer entre o homo credulus preso aos valores da feacute e

o homo sapiens liberto pelos valores da lei Eacute neste sentido que natildeo

podemos desconsiderar uma raacutepida nota de La Structure du comportement na

qual o filoacutesofo parece querer se justificar ao usar o termo ldquocriticismordquo e negaacute-

lo ldquoPensamos aqui em uma filosofia como a de L Brunschvicg e natildeo na

filosofia kantiana que em particular na Criacutetica do juiacutezo [Kritik der

Urteilskraft] conteacutem indicaccedilotildees essenciais no tocante aos problemas que

estatildeo aqui em discussatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1942 p 223) O que estaacute em

questatildeo pois eacute uma filosofia de ldquoinspiraccedilatildeo criticistardquo a mesma que jaacute o

incomodava em seu Projet de travail sur la nature de la perception de 1933

Uma doutrina de inspiraccedilatildeo criticista trata a percepccedilatildeo como uma operaccedilatildeo intelectual pela qual os dados inextensos (as ldquosensaccedilotildeesrdquo) satildeo postos em relaccedilatildeo e explicados de tal sorte que acabam por constituir um universo objetivo A percepccedilatildeo assim considerada eacute uma ciecircncia incompleta eacute uma operaccedilatildeo mediata (MERLEAU-PONTY apud SAINT-AUBERT 2005)

Quanto a Brunschvicg natildeo vale lembrar que Kant entrara em

cena na Franccedila no momento em que decepcionados tanto com o

materialismo e o racionalismo quanto com o cientificismo muitos ali se

lamentavam por terem se esquecido do Absoluto Natildeo estaria nisto o

desconforto da ldquogeraccedilatildeo existencialistardquo em ter tido uma formaccedilatildeo que natildeo

ousava ultrapassar as leituras de Kant (DE BEAUVOIR 1972) Ora natildeo eacute

sem sentido que Merleau-Ponty afirme que juntamente com Bergson100

100

Vale salientar que para Merleau-Ponty a filosofia bergsoniana conduzia a outros caminhos embora o pensamento de Bergson natildeo fosse tatildeo conhecido por volta de 1930 Nos

184

Brunschvicg ocupa um papel central na formaccedilatildeo de sua geraccedilatildeo Qual a

razatildeo Conforme Merleau-Ponty era o fato de ser um ldquopensador

extraordinariamente cultivadordquo um intelectual natildeo preso apenas ao discurso

filosoacutefico mas capaz de dialogar com a ciecircncia ou com a literatura era isto

pois o que tanto seduzia em seu ensino Nisto poder-se-ia dizer

encontrava-se o seu ldquovalor pessoal extraordinaacuteriordquo No entanto Brunschvicg

era um idealista A filosofia que ensinava era sempre a de um retorno para

si a de uma reflexatildeo na qual o fundamento encontrava-se sobretudo na

atividade criadora do ldquoespiacuteritordquo uma vez que ldquoo universo da experiecircncia

imediata conteacutem natildeo mais do que eacute requerido pela ciecircncia mas menos pois

eacute um mundo superficial e mutilado eacute como diz Espinosa o mundo das

consequecircncias sem premissasrdquo (BRUNSCHVICG 1922 sect 35 p 70) Assim o

motivo pelo qual se aproximava da ciecircncia ou da literatura acabava por

comprometer o seu pensamento pois se centrava sempre na necessidade de

se descobrir como todos participam do ldquounordquo como as accedilotildees do homem se

apresentam como uma atividade criadora do espiacuterito uma vez que o ldquounordquo

indicava justamente o espiacuterito a razatildeo universal que estava presente em

todos Como acentua Merleau-Ponty neste pensamento ldquonatildeo haacute o seu

espiacuterito e o meu e o dos outros homens Natildeo haacute um valor de pensamento ao

qual participamos todos e a filosofia comeccedilava e terminava em suma com o

principais centros acadecircmicos franceses embebidos pelo racionalismo havia inclusive uma certa hostilidade ao bergsonismo Mas nem por isso sua filosofia deixaria de adquirir notoriedade Apresentando-se como uma opccedilatildeo em relaccedilatildeo ao cartesianismo ou ao kantismo natildeo representando absolutamente um idealismo Bergson optou em natildeo comeccedilar pelo cogito mas pelo que denominou de ldquodados imediatos da consciecircnciardquo ldquoquer dizer que eu me apreendo a mim mesmo para comeccedilar a tiacutetulo de primeira verdade em filosofia sim mas eu me apreendo natildeo como puro pensamento eu me apreendo como duraccedilatildeo como tempo Ora a anaacutelise a qual Bergson se dedicou em Matiegravere et Meacutemoire por exemplo mostra que se noacutes consideramos o tempo eacute preciso considerar no tempo em particular a dimensatildeo do presente E esta dimensatildeo do presente em Bergson desenvolve a consideraccedilatildeo do corpo e a consideraccedilatildeo do mundo exterior Ele definiu o presente como aquele sobre o qual noacutes agimos e agimos evidentemente por nosso corpo De modo que vocecirc vecirc de imediato que esta duraccedilatildeo sobre a qual Bergson chama a atenccedilatildeo a princiacutepio implicava uma relaccedilatildeo ao nosso corpo e uma relaccedilatildeo de algum modo inteiramente carnal com o mundo atraveacutes do corpordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 252-3) Para Merleau-Ponty Henri Bergson estabelece algumas das bases que viriam a constituir futuramente o existencialismo francecircs Poreacutem como natildeo chegara a ser lido suficientemente como deveria naquele periacuteodo o meio acadecircmico natildeo percebera que o que chegava de novo na Franccedila jaacute havia sido de certo modo entrevisto

185

retorno a esse princiacutepio uacutenico de todos os nossos pensamentosrdquo (MERLEAU-

PONTY 2000b p 251) Haacute nestas palavras um acordo inegaacutevel com as

seguintes palavras da Pheacutenomeacutenologie de perception

Enquanto eu sou consciecircncia ou seja enquanto alguma coisa tem sentido para mim eu natildeo estou nem aqui nem ali natildeo sou nem Pedro nem Paulo natildeo me distingo em nada de uma ldquooutrardquo consciecircncia visto que todos noacutes somos presenccedilas imediatas no mundo e dado que esse mundo eacute por definiccedilatildeo uacutenico sendo o sistema das verdades Um idealismo transcendental consequente despoja o mundo de sua opacidade e de sua transcendecircncia O mundo eacute isso mesmo que noacutes nos representamos natildeo como homens ou como sujeitos empiacutericos mas enquanto somos todos uma uacutenica luz e participamos do Uno sem dividi-lo A anaacutelise reflexiva ignora o problema do outro como o problema do mundo porque faz aparecer em mim com o primeiro lampejo da consciecircncia o poder de ir a uma verdade universal de direito e porque o outro sendo tambeacutem sem ecceidade sem lugar e sem corpo o Alter e o Ego satildeo um soacute no mundo verdadeiro elo de espiacuteritos (MERLEAU-PONTY 1945 p VI)

Para Merleau-Ponty a filosofia de Brunschvicg torna-se a

expressatildeo das diversas nuances do racionalismo e do idealismo que sua

ldquofenomenologia da percepccedilatildeordquo passaraacute a criticar e denominar como

ldquointelectualismosrdquo101 levando-se em conta a observaccedilatildeo de Saint-Aubert de

que na obra Les eacutetapes de la philosophie matheacutematique Brunschvicg teria

batizado a sua proacutepria doutrina como um ldquointelectualismordquo (SAINT-AUBERT

2005 p 61) A criacutetica ao intelectualismo e agraves doutrinas de ldquoinspiraccedilatildeo

criticistardquo que natildeo consideram a percepccedilatildeo senatildeo uma ldquooperaccedilatildeo intelectualrdquo

torna-se inclusive um modo indireto de afrontamento desta filosofia que se

fundamentava em uma definiccedilatildeo estreita de razatildeo em uma ldquofilosofia magrardquo

na qual se efetivava uma reduccedilatildeo de toda ldquometafiacutesicardquo a uma ldquoteoria do

conhecimentordquo (SAINT-AUBERT 2005 p 64) O que Merleau-Ponty natildeo

podia aceitar como nos lembra Saint-Aubert era justamente o que se

constituiria como aquilo que seu projeto filosoacutefico assumiria o compromisso

de desconstruir ldquoa concepccedilatildeo do espiacuterito como uma espeacutecie de lsquoprojetorrsquo cuja

atividade se resume por completo em lsquoconstruirrsquordquo (SAINT-AUBERT 2005 p

64) Em contrapartida o que procuraraacute Merleau-Ponty ao negar uma

101 Em outros termos a criacutetica a Brunschvicg indica sobretudo uma desaprovaccedilatildeo do criticismo um distanciamento de Kant Nos cursos sobre a Natureza esta questatildeo retorna

186

ldquorepresentaccedilatildeo estaacutetica do universo percebidordquo tal como eacute fornecido pela

ciecircncia pautada pelo intelectualismo seraacute a iniciativa de ldquo[] projetar sobre

o processo inconsciente da percepccedilatildeo a luz que fornece a anaacutelise clara e

distinta do desenvolvimento da ciecircnciardquo (MERLEAU-PONTY apud SAINT-

AUBERT 2005 p 66)

O intelectualismo ou como diraacute La Structure du Comportement

uma ldquofilosofia de inspiraccedilatildeo criticistardquo assumindo as consequecircncias do

cartesianismo seguiria em outra direccedilatildeo Natildeo haveria no conhecimento esse

ldquoco-noscererdquo [co-nascer] que eacute vivido pelo olhar uma vez que para tal seria

necessaacuterio que fosse transformado o modo como a proacutepria filosofia lida

consigo mesma e com o que constitui o foco de sua interrogaccedilatildeo ou melhor

o modo como iraacute encarar o que seria uma ldquoexperiecircncia da verdaderdquo

34 As ldquoruiacutenas do pensamentordquo e o ldquoconflito dos pontos de vistardquo a crise na compreensatildeo do humano

Wir leben in einer Ruinenlandschaft verfallener Ideale (FINK 1974 p 212)102

Ruiacutena eacute ruiacutena deve ficar Eacute que as ruiacutenas sempre foram mais eloquentes do que a obra remendada (SARAMAGO)103 Dans le monde lhomme est entreacute sans bruit (DE CHARDIN 1956)

341 O conflito dos pontos-de-vista na compreensatildeo do homem a compreensatildeo do intervalo do saber cientiacutefico e do saber filosoacutefico Ao falar em um de seus cursos sobre uma crise da racionalidade

que se estabelece nas ldquorelaccedilotildees entre os homensrdquo (MERLEAU-PONTY 1996

102 A nosso ver esta frase constantemente relembrada por Merleau-Ponty [Nous vivons dans des ruines de penseacutees] refere-se ao seguinte trecho ldquoWir leben in einer Ruinenlandschaft verfallener Ideale lange Abendschatten des Zweifels des Miszligtrauens des Skepsis und der Muumldigkeit dunkeln uumlber dem lsquoAbendlandrsquo Vielleicht war der Mensch noch nie sich so fragwuumlrdig obwohl noch kein Zeitalter den riesigen Wissensstoff besaszlig wie das unsrige in zahllosen speziellen Wissenschaften haben wir den Menschen ausgeforscht in Soziologie Ethnologie vergleichender Kulturkunde eine raffinierte Psychologie hat die Masken abgenommen mit denen das Menschenleben sich verlarnte hat die geheimen Hintergruumlnde und Abgruumlnde der Seele ausgeleuchtet Aber wissen denn damit wer wir sind was unser Ziel Bestimmung istrdquo (FINK 1989 p 212) 103 SARAMAGO J Viagem a Portugal Lisboa Editorial Caminho 1984

187

p 40) para Merleau-Ponty a questatildeo certamente se trata antes de se

perguntar pela ldquocompossibilidade dos homensrdquo pela ldquopossibilidade de uma

sociedade orgacircnicardquo Embora se trate de um conceito leibniziano a

compossibilidade eacute pensada neste curso a partir de Marx Neste capiacutetulo

contudo o nosso objetivo central natildeo seraacute o de tratar sobre o que levaraacute o

filoacutesofo a negar a filosofia ldquosocial claacutessicardquo a partir de uma reflexatildeo da

histoacuteria mas refletir pensando em uma frase de Teilhard de Chardin que

detivera a atenccedilatildeo de Merleau-Ponty nos cursos sobre La Nature o modo

como o homem se torna uma questatildeo filosoacutefica tendo-se em vista que no

mundo ldquoo homem entrou sem ruiacutedordquo (MERLEAU-PONTY 2000a p 334) Eacute

certo que no contexto em que surgira a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo era de

investigar as possibilidades do conceito de evoluccedilatildeo No entanto

encontramos nessa frase uma imagem que nos apresenta o modo mediante o

qual emergira no cenaacuterio contemporacircneo uma reflexatildeo acerca do homem

da noccedilatildeo de subjetividade e por conseguinte da noccedilatildeo fenomenoloacutegica de

corpo-sujeito Natildeo eacute sem sentido que em seu estudo acerca do problema

antropoloacutegico em Merleau-Ponty Bimbenet comeccedilara justamente com esta

frase (BIMBENET Nature et humanite Le probleme anthropologique dans lrsquooeuvre de

Merleau-Ponty p 9) Nesta perspectiva cabe-nos aqui nos perguntar tanto pelo

sentido que adquire em Merleau-Ponty a indagaccedilatildeo acerca daquele que

sem ruiacutedo adentrara o cenaacuterio do Mundo Moderno como tambeacutem pelo

caminho que eacute aberto por esta reflexatildeo pelas sendas de pensamento que nos

satildeo agora permitidas percorrer104

Em contrapartida a nossa intenccedilatildeo natildeo seraacute a de elucidar a

presenccedila em Merleau-Ponty da proposta e defesa de uma antropologia

Permanecendo no horizonte filosoacutefico o que esperamos explicitar eacute o modo

pelo qual a partir de uma criacutetica agrave metafiacutesica claacutessica e seus

desdobramentos em uma visatildeo cientificista de mundo ndash conforme vimos nos

104 Ora desde Foucault sabe-se que a pergunta acerca do homem tivera um de seus primeiros clarotildees em Kant Para alguns o problema antropoloacutegico poderiacuteamos dizer natildeo eacute novo na histoacuteria da filosofia Jaacute poderiacuteamos encontraacute-lo nos antigos A este respeito eacute suficiente fazer referecircncia agraves Comeacutedias de Terecircncio e a importacircncia que tiveram as suas peccedilas em especial o Heautontimoroumenos na gecircnese do humanismo renascentista Contudo a possibilidade de tal etiologia natildeo constitui no momento o nosso interesse

188

rebentos do que seria o Pequeno Racionalismo ndash Merleau-Ponty nos aponta

caminhos de compreensatildeo das relaccedilotildees do homem consigo mesmo e com o

mundo de tal modo que natildeo nos deixe escapar na aproximaccedilatildeo daquilo que

eacute o foco de nossa pesquisa este mesmo foco o proacuteprio fenocircmeno humano

Trata-se pois de uma descriccedilatildeo mas de uma descriccedilatildeo que nem por isso

limita-se a se dar unicamente nos contornos da tradiccedilatildeo filosoacutefica Neste

sentido compreendemos a razatildeo pela qual Merleau-Ponty natildeo hesita em

tornar parte de suas investigaccedilotildees agravequilo que de autecircntico a ciecircncia pode

nos ensinar agravequilo que independente de sua ἐπιστήmicroη [episteacuteme] daacute

mostras de ser mais condizente com a compreensatildeo de nossas experiecircncias

Qual a razatildeo No ponto de partida do filoacutesofo natildeo cabe a concisa separaccedilatildeo

entre fatos e ideias ou essecircncias O fato se daacute impregnado por sua essecircncia

esta natildeo se encontra oculta vedada pelo denso veacuteu do sensiacutevel no proacuteprio

sensiacutevel manifesta-se o inteligiacutevel logo a mateacuteria jaacute eacute graacutevida jaacute traz em si a

sua forma

Ora seguindo a proposta deste trabalho vale salientar que estas

perspectivas emergem na tentativa de lidar com as questotildees que

acompanham o sentimento de crise que procuramos elucidar nos capiacutetulos

anteriores em meio a uma experiecircncia de non-sens mediante o

enfrentamento dos domiacutenios da teacutecnica da perda do proacuteprio homem

assombrado pelas investidas do cientificismo Vaacuterios satildeo os contemporacircneos

de Merleau-Ponty que falam constantemente que apesar de suas

conquistas o homem perdera a si mesmo perdera o sentido de sua

existecircncia que apesar de seus avanccedilos nos desvendamentos dos enigmas do

universo perdera a chave que lhe possibilita decifrar o maior e mais

importante dos enigmas o de si mesmo105 E tal constataccedilatildeo torna-se quase

unacircnime nomeadamente o fato de ser tal situaccedilatildeo a consequecircncia de um

projeto frustrado de humanidade o qual encontra o seu solo o seu

105 Eacute o que parece nos dizer Koyreacute ldquoEacute nisto que consiste a trageacutedia do espirito moderno que lsquoresolveu o enigma do Universorsquo mas tatildeo-somente para substitui-lo por um outro lsquoo enigma de simesmorsquordquo (KOYREacute 1968 p 42-3)Contemporacircneo de Merleau-Ponty colega de Bachelard na Sorbonne lembremo-nos do sentido dessa frase de Koyreacute em sua leitura de Husserl

189

fundamento (Grund) nas desventuras da metafiacutesica este ldquodeusrdquo do ocidente

que ndash conforme a leitura heideggeriana de Nietzsche ndash revelava estar

perdendo as suas forccedilas ensaiava seus uacuteltimos suspiros Daiacute a sensaccedilatildeo de

natildeo se saber o que se pensa a vivecircncia de uma eacutepoca determinada por

ruiacutenas ruiacutenas de pensamentos Conforme procuraremos mostrar eacute neste

contexto que insurge a pergunta pelo homem ou melhor tal pergunta torna-

se filosoficamente suscetiacutevel de ser engendrada acompanhada de todas as

suas consequecircncias filosoacuteficas

Pensando nestas questotildees o nosso intuito neste capiacutetulo eacute

mostrar como elas repercutem seguindo as pegadas husserlianas que

nascem e se articulam nos horizontes de uma ldquocriserdquo em nosso modo de

compreender o que eacute proacuteprio do homem elucidando o modo pelo qual o

filoacutesofo iraacute enfrentar a ideia de uma ldquocrise da Razatildeordquo presente na

compreensatildeo do homem em outros termos procurando mostrar como esta

tarefa se harmoniza com o breve itineraacuterio etioloacutegico da noccedilatildeo de crise tal

como jaacute procuramos mostrar Caminharemos pois ndash tendo em vista o

itineraacuterio e background que justificam nossas escolhas ndash no intuito de

refletir como de uma ldquocrise do espiacuteritordquo passando por uma ldquocrise da Razatildeordquo

vislumbrando essa vivecircncia nas relaccedilotildees com a Natureza deparamo-nos

neste capiacutetulo em Merleau-Ponty com uma espeacutecie de ressignificaccedilatildeo da

ideia de crise a saber com uma crise ou mal-estar da Razatildeo que se origina

no conflito existente entre as visotildees ou os pontos de vista antinocircmicos que se

tem acerca do homem dito de outro modo com uma crise do olhar na

compreensatildeo do homem

Quando pensamos no mundo claacutessico seraacute a noccedilatildeo de sujeito

que melhor expressa os seus fundamentos Isto explica talvez por que esta

questatildeo acabara por ocupar tanto a atenccedilatildeo do pensamento moderno

mesmo que diferentemente de outras eacutepocas a sua intenccedilatildeo fosse

desconstruiacute-lo ou quiccedilaacute reduzi-lo a cinzas sob a eacutegide quer seja da

estrutura dos determinismos sociais ou bioloacutegicos quer seja inclusive do

Dasein ou do inconsciente Eacute assim que em outros termos o Cogito

cartesiano se tornou uma das paacuteginas mais visitadas pela filosofia do seacuteculo

190

XX e esta deacutemarche tal como tentamos explicitar no segundo capiacutetulo natildeo

fora diferente com Merleau-Ponty Conforme o filoacutesofo a maior dificuldade

seria pois encontrar uma concepccedilatildeo de homem que natildeo fosse cuacutemplice de

um simples humanismo naturalista ainda embaraccedilado com as categorias

claacutessicas e isto dado o ensejo de promover um retorno coerente a uma

experiecircncia concreta e autecircntica do mundo Neste sentido a fenomenologia

apontara para o filoacutesofo um meacutetodo eficaz que pudesse viabilizar seu projeto

de encontrar uma compreensatildeo do humano aqueacutem do cientificismo e do

racionalismo aqueacutem portanto da noccedilatildeo claacutessica de sujeito Eacute assim que

encontramos os diversos movimentos e nuances das primeiras obras do

filoacutesofo o seu enamoramento com o pensamento moderno especialmente a

ciecircncia e a arte a sua desaprovaccedilatildeo da ciecircncia claacutessica a sua rejeiccedilatildeo do

realismo e do intelectualismo que norteavam as reflexotildees da tradiccedilatildeo

filosoacutefica A subjetividade se torna uma questatildeo revisitada em um primeiro

momento na tentativa de reformulaccedilatildeo do Cogito cartesiano que nos levasse

agrave elucidaccedilatildeo de um Cogito taacutecito de um ldquosujeito encarnadordquo Diraacute Merleau-

Ponty em uma entrevista dada em maio de 1946 ldquoA Pheacutenomeacutenologie de la

perception tenta responder a uma questatildeo que eu me coloquei dez anos

antes e que eu acredito todos os filoacutesofos de minha geraccedilatildeo se colocaram

como sair do idealismo sem cair novamente na ingenuidade do realismordquo

(MERLEAU-PONTY 1997b p 66) Para Merleau-Ponty a filosofia precisava

se voltar para um mundo vivido e concreto que a cumplicidade natildeo

declarada de antinomias como a do realismo e do idealismo por exemplo

colocara agraves margens do pensamento Um retorno agrave existecircncia neste

contexto significava uma possibilidade de superaccedilatildeo uma vez que

transpostas para o homem ldquocontradiccedilotildees fundamentaisrdquo como as do ldquoserrdquo e

do ldquonadardquo do ldquosujeitordquo e do ldquoobjetordquo entre outras alcanccedilavam uma

possibilidade de siacutentese a partir de sua proacutepria antiacutetese

A pergunta pela ldquoexistecircnciardquo a reaccedilatildeo contra o idealismo a partir

de temas como o da ldquoencarnaccedilatildeordquo do ldquomundo sensiacutevelrdquo e da ldquohistoacuteriardquo natildeo

representavam para a geraccedilatildeo de Merleau-Ponty apenas um dos itens de

um manual filosoacutefico um conjunto de temas a mais para ser discutido em

aporias interminaacuteveis ou no engessamento de um meacutetodo preestabelecido

191

mas acima de tudo o arcabouccedilo de um novo modo de filosofar daiacute como

mostramos a sua resistecircncia a modelos de leitura filosoacutefica como os de

Gueacuteroult Este novo ldquoolharrdquo nascia da experiecircncia da ambiguidade e dos

equiacutevocos presentes em um aacuterduo e sofrido confronto da vida com o

pensamento sendo o contraacuterio tambeacutem verdadeiro O palco da histoacuteria natildeo

se permitia ser contemplado como um espelho das especulaccedilotildees filosoacuteficas

tal como se esperava As noccedilotildees idealistas de ldquonatureza humanardquo natildeo

conseguiam expressar os paradoxos vividos nas relaccedilotildees pessoais na

poliacutetica na histoacuteria A experiecircncia da guerra em contrapartida corroboraria

este desejo desnudaria e tornaria ilegiacutetima uma filosofia que se colocava

apenas em busca daquilo que seja capaz de revelar em tudo e em todos o

ldquounordquo o ldquoespiacuteritordquo Eacute o que expressa Merleau-Ponty em La guerre a eu lieu

Convidavam-nos a colocar em duacutevida a histoacuteria jaacute feita a reencontrar o momento em que a Guerra de Troacuteia poderia ainda natildeo acontecer e no qual a liberdade num soacute gesto esfacelaria as fatalidades externas Essa filosofia otimista que reduziu a sociedade humana a uma soma de consciecircncias sempre prontas para a paz e para a felicidade era a filosofia de uma naccedilatildeo dificilmente vitoriosa uma compensaccedilatildeo imaginaacuteria recordaccedilotildees de 1914 Sabiacuteamos dos campos de concentraccedilatildeo que os judeus eram perseguidos mas essas certezas pertenciam ao campo do pensamento Natildeo viviacuteamos em presenccedila da alternativa de sofrecirc-las ou enfrentaacute-las () Ao mesmo tempo em que o objeto de horror o anti-semitismo nos aparecia como misteacuterio e formados pela filosofia que nos formara todo dia durante quatro anos perguntaacutevamos como o anti-semitismo eacute possiacutevel Havia um uacutenico meio de evadir-se da questatildeo podia-se negar que o anti-semitismo fosse verdadeiramente vivido por algueacutem (MERLEAU-PONTY 1966 p 246 251)

Frente a esta confissatildeo uma conclusatildeo possiacutevel eacute a de que a

Weltanshaung de uma intelectualidade francesa confessadamente pautada

pelo idealismo natildeo conseguia dialogar com os fatos suscitados por uma

guerra natildeo conseguia compreender por exemplo a resistecircncia nem orientar

um posicionamento colaboracionista ou natildeo-colaboracionista Faltava um

retorno ao ldquoconcretordquo que servisse de auxiacutelio agraves tentativas de superaccedilatildeo do

idealismo pelos jovens franceses da deacutecada de 30 Eacute por isso que neste

cenaacuterio ao propor um retorno ao proacuteprio mundo agrave experiecircncia vivida a

fenomenologia parecia expressar que de repente para se sair da caverna

bastava apenas abrir os olhos Eacute assim que houvera uma certa simpatia por

autores como Husserl e Heidegger em suas tentativas de desconstruccedilatildeo de

192

uma consciecircncia substancializada ou como diria Sartre de um ldquoespiacuterito-

aranhardquo condenado a deglutir o mundo a tornaacute-lo um ser de sua proacutepria

substacircncia para somente assim poder conhececirc-lo (SARTRE Uma ideia

fundamental de Husserl a intencionalidade in SARTRE Situaccedilotildees I) Pelo

contraacuterio eacute preciso reconhecer que ldquoo homem existente natildeo pode ser

assimilado por um sistema de ideias por mais que se possa dizer e pensar

sobre o sofrimento ele escapa ao saber na medida em que eacute sofrido em si

mesmo onde o saber permanece incapaz de transformaacute-lordquo (SARTRE 1972

p 122) Eacute neste sentido que Merleau-Ponty como nos testemunha Sartre

() virava as costas para as pompas da filosofia e dizia que as verdades satildeo prostitutas que jamais ultrapassam ndash a natildeo ser na Greacutecia antiga ndash o umbral dos filoacutesofos Natildeo sei se ele ficou tatildeo entusiasmado quanto eu quando aprendi pela primeira vez aquilo que nossos mestres nos haviam escondido que se pudesse refletir sobre um lampiatildeo a gaacutes Mais humanista ele fez com que se abandonasse o lampiatildeo para deslocar a reflexatildeo para o homem que o acende Enquanto as luzes e as avenidas de Paris me fascinavam ele se fascinava com ldquoa verdadeira vidardquo com os sofrimentos e o cotidiano dos homens O que eles fazem desejam e vecircem (SARTRE 1972 p 152)

A compreensatildeo do homem a partir de seu fazer desejar e ver

assim como podemos vislumbrar nos trabalhos de Merleau-Ponty e de

autores considerados ldquoexistencialistasrdquo indica-nos paisagens de uma eacutepoca

sequiosa pelo ldquoconcretordquo pela ldquoexistecircnciardquo pela ldquovidardquo Voltar para o homem

que acende o lampiatildeo significa romper com toda uma tradiccedilatildeo filosoacutefica que

preferira os ldquoespectrosrdquo e os ldquofantasmasrdquo do mundo das ideias de um ldquoCeacuteu

imaginaacuteriordquo ao inveacutes dos homens concretos no cotidiano de suas vidas

Compreender como ensinava a fenomenologia husserliana a consciecircncia

como intencionalidade significava naquele momento regressar a uma

experiecircncia anterior ao pensamento a uma unidade primordial e

indissoluacutevel entre o homem e seu mundo o homem e seus companheiros de

ldquocarne e ossordquo ou como indicaria Levinas o anuacutencio do que seria a ldquoruiacutena

da representaccedilatildeordquo uma ldquosuperaccedilatildeo da intenccedilatildeo na proacutepria intenccedilatildeordquo a

recusa da ilusatildeo de que o objeto estaria condenado a ser ldquoa todo instante tal

como o sujeito pensa atualmenterdquo (LEVINAS 1997) Como acentua Sartre o

que se negava era um ldquoidealismo oficialrdquo em nome do ldquotraacutegico da vidardquo logo o

193

que deveria chamar a atenccedilatildeo filosoacutefica deveriam ser os ldquohomens reais com

seus trabalhos e suas penasrdquo

Todavia ao contraacuterio de um humanismo romacircntico a pergunta

pelo homem que acende o lampiatildeo revelava em consequecircncia uma pergunta

pela histoacuteria e suas ambiguidades suas sombras e suas luzes uma vez que

ldquoo movimento das ideias soacute consegue descobrir verdades respondendo a

alguma pulsaccedilatildeo da vida interindividual e toda mudanccedila no conhecimento

do homem tem relaccedilatildeo com uma nova maneira pessoal dele de exercer sua

existecircnciardquo (SARTRE 1972 p 152) Assim

Se o homem eacute o ser que natildeo se contenta em coincidir consigo como uma coisa mas que se representa a si mesmo se vecirc se imagina oferece a si mesmo siacutembolos rigorosos ou fantaacutesticos fica bem claro que em contrapartida qualquer mudanccedila na representaccedilatildeo do homem traduz uma mudanccedila do proacuteprio homem (MERLEAU-PONTY 1991 p 254)

Das cinzas de uma ldquocrise do espiacuteritordquo parece emergir uma

verdadeira ldquocrise do homemrdquo O que eacute o homem Se eacute verdade o que nos diz

Merleau-Ponty que para melhor compreendermos o homem enquanto

questatildeo filosoacutefica precisariacuteamos evocar ldquo[] toda a histoacuteria deste meio

seacuteculo com seus projetos suas decepccedilotildees suas guerras suas revoluccedilotildees

suas audaacutecias seus pacircnicos suas invenccedilotildees suas fraquezas []

(MERLEAU-PONTY 1991 p 254) eacute verdade tambeacutem que todas essas

questotildees por sua vez apenas adquirem sentido se remetidas a investigaccedilatildeo

de como ali o humano fora compreendido o modo como ldquosem ruiacutedordquo o

homem adentrara o pensamento moderno Poreacutem vale salientar natildeo se

trata da constataccedilatildeo ou rememoraccedilatildeo de um humanismo como impeacuterio do

humano Natildeo haacute aqui a legitimaccedilatildeo daquela ldquosubstituiccedilatildeo do teocentrismo

medieval pelo ponto de vista humanordquo do qual nos alerta Koyreacute (KOYREacute

1991 p 18) ao falar da presenccedila deste processo no discurso religioso em

meio agraves fronteiras do pensamento moderno jaacute nas margens de um

esgotamento do espiacuterito da Idade Meacutedia Natildeo se trata da emergecircncia de um

nova tese mas do reconhecimento de uma eacutepoca na qual tanto as teses

como as antiacuteteses acerca do homem acabam se mesclando em uma

associaccedilatildeo inteiramente nova por exemplo do materialismo e do

194

espiritualismo Seria pois o reconhecimento de uma ordem originaacuteria do

humano Ao menos por volta de 1900 o que poderiacuteamos encontrar no dizer

de Merleau-Ponty ainda seria apenas a sua reivindicaccedilatildeo ora presente na

compreensatildeo da humanidade como o momento ou o episoacutedio de um

processo evolutivo de uma vida decomposta em processos fiacutesicos ou

quiacutemicos ora presente na instauraccedilatildeo de uma condiccedilatildeo humana perpassada

ateacute mesmo por forccedilas ldquosobrenaturaisrdquo forccedilas que transcendiam a sua

proacutepria natureza

O retorno a existecircncia frente a essa histoacuteria que mais indicava

por fim uma das faces de uma autecircntica crise tratava-se justamente da

dissociaccedilatildeo radical entre uma real compreensatildeo do homem e a ideia de uma

ldquohumanidade de pleno direitordquo assim como as consequecircncias que uma tal

dissociaccedilatildeo traria consigo Neste sentido se o sentimento de uma crise pelo

que parece apontar as linhas acima indica para a geraccedilatildeo de Merleau-Ponty

um retorno ao ldquohomem concretordquo ao conflito existente na compreensatildeo da

relaccedilatildeo do homem consigo mesmo com o mundo e com a histoacuteria106 parece-

nos que dificilmente haveria uma adesatildeo a uma soluccedilatildeo de cunho

exclusivamente espiritualista ou agraves reflexotildees apontadas no primeiro

capiacutetulo do Hamlet valeriano e seus cracircnios ilustres dado que o proacuteprio

Hamlet ainda seria sobretudo um belo retrato do sujeito claacutessico Ora

nesta perspectiva a Pheacutenomeacutenologie de la perception natildeo pode ser

simplesmente localizada no quadro de uma ontologia regional aquela dos

reinos ontoloacutegicos na qual ldquo[] Husserl era senatildeo o Josueacute pelo menos o

Moiseacutesrdquo (BEAUFRET 1976 p 127) Eacute claro que na Franccedila apesar das sutis

diferenccedilas107 Sartre e Merleau-Ponty fazem eco agrave obra husserliana ainda

marcada pelo valor dado agrave ideia de Constituiccedilatildeo Neste sentido segundo

106 O artigo de Merleau-Ponty ldquoO homem e a adversidaderdquo eacute um exemplo disso 107 Quanto a isso apontando as diferenccedilas que tivera a recepccedilatildeo de Husserl em Merleau-Ponty daquele ecoada em Sartre Beaufret nos diz que ldquo[] o livro de Sartre tem por eixo o primeiro Husserl o das Ideen cuja publicaccedilatildeo em 1913 eacute diz Sartre lsquoo grande acontecimento da filosofia anterior agrave guerrarsquo ao passo que Merleau-Ponty leu a Krisis isto eacute apoacuteia-se no Husserl de 1935 que tem vinte e dois anos a mais que o de Sartrerdquo (BEAUFRET 1976 p 128) Disso a compreensatildeo da Pheacutenomeacutenologie de la perception ldquo[] como uma trajetoacuteria arqueoloacutegica no campo do percebido agrave procura do lsquogecircnio perceptivo aqueacutem do sujeito pensantersquordquo (BEAUFRET 1976 p 128)

195

alguns inteacuterpretes haveria na Pheacutenomeacutenologie de la perception ainda

resquiacutecios de uma ldquofilosofia da consciecircnciardquo que o proacuteprio Merleau-Ponty natildeo

deixaria de lamentar futuramente Mas a intenccedilatildeo natildeo era simplesmente

descrever nossas vivecircncias O que haacute nisso de uma ldquofilosofia da

consciecircnciardquo Conforme Beaufret nos adverte ldquo[] no sentido de Husserl

[] descrever significa finalmente lsquoconstituirrsquo Merleau-Ponty por sua vez

teria podido dizer meu livro tem por finalidade lsquoconstituirrsquo a grande funccedilatildeo

realizante da consciecircncia ou percepccedilatildeo e seu correlativo noemaacutetico o

lsquopercebidorsquordquo (BEAUFRET 1976 p 128) Disto se poderia deduzir que o

filoacutesofo a partir de uma tarefa de constituiccedilatildeo do vivido assim como a

fenomenologia seria de fato omnium phoenomenum fidissimus interpres

(BEAUFRET 1976 p 128)108 Mas as coisas natildeo satildeo tatildeo simples a

Pheacutenomeacutenologie de la perception estaacute aleacutem de um mero ldquoreino ontoloacutegico das

origens absolutasrdquo A filosofia de Merleau-Ponty eacute uma fenomenologia

existencial que busca descrever o ambiente concreto no qual o sujeito

pensante se encontra em situaccedilatildeo Ele pretende nos levar a perceber o

mundo antes do conhecimento a ldquoretornar a este mundo anterior ao

conhecimento do qual o conhecimento sempre fala e em relaccedilatildeo ao qual

toda determinaccedilatildeo cientiacutefica eacute abstrata significativa e dependente como a

geografia em relaccedilatildeo agrave paisagem ndash primeiramente noacutes aprendemos o que eacute

uma floresta um prado ou um riachordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p III) visto

jaacute ser o nosso mundo carregado de sentido Conforme Rudolf Bernet

Na Pheacutenomeacutenologie de la perception Merleau-Ponty tenta esclarecer o sentido da distinccedilatildeo entre filosofia da natureza e filosofia do espiacuterito partindo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica da existecircncia humana

(BERNET 1992 p 61) [Natildeo visualizando a ambiguidade apenas na histoacuteria o filoacutesofo a encontraraacute tambeacutem em nossa proacutepria estrutura ontoloacutegica o que demonstra sua negaccedilatildeo em compreendecirc-la a partir das dicotomias claacutessicas pois] [] eacute sem duacutevida atraveacutes do atestado de incapacidade do dualismo ontoloacutegico entre ldquoser em sirdquo e ldquoser para sirdquo ao descrever fenocircmenos mais correntes da existecircncia humana que Merleau-Ponty se converteu em pensador do entre-deux e ateacute mesmo da ambiguidade (BERNET 1992 p 59) [Desse modo] recusando uma forma da dialeacutetica que faz violecircncia aos fenocircmenos reduzindo-os todos a uma forma da oposiccedilatildeo dos contraacuterios e se engajando na via de um pensamento natildeo-hegeliano da diferenccedila

108 Traduccedilatildeo inteacuterprete fideliacutessimo de todos os fenocircmenos

196

tambeacutem foi levado a dar um novo sentido aos conceitos tradicionais da negatividade e da interrogaccedilatildeo Eacute este novo pensamento da diferenccedila e da negatividade que lhe permitiu propor uma anaacutelise ineacutedita dessa obra da liberdade que eacute a histoacuteria [] (BERNET 1992 p 59)

Neste sentido como jaacute tivemos a oportunidade de assinalar ao

nos voltar para o pensamento merleau-pontiano natildeo podemos nos esquecer

do peso que tivera em seu decurso saberes como a psicologia a fiacutesica a

biologia a fisiologia a psicanaacutelise entre outros Dentre estes no horizonte

da Pheacutenomeacutenologie de la perception a psicologia possui um papel especial

que pode ateacute nos levar a compreender os primeiros trabalhos do filoacutesofo na

perspectiva de um pensamento anfiacutebio Todavia poderiacuteamos nos indagar

haveria de ser vaacutelida a presenccedila da psicologia como um componente

importante na pesquisa filosoacutefica Que papel possui a psicologia na filosofia

de Merleau-Ponty Podemos pensar esta questatildeo a partir de duas

perspectivas Conforme a primeira haveria em Merleau-Ponty um

pensamento imaturo e seduzido pelo psicologismo que se oporia a um

pensamento mais ontoloacutegico fruto do encontro com a fenomenologia Na

outra perspectiva naquela em que ensaiamos compreender o filoacutesofo

haveria um desejo de estabelecer no fundo um diaacutelogo entre filosofia e

ciecircncia

Na primeira perspectiva seguindo especialmente as trilhas de

Sartre somos levados a concluir que Merleau-Ponty se aproximava da

psicologia apenas por ter ainda um pensamento juvenil e que esta

aproximaccedilatildeo inclusive seria futuramente lamentada109 Que conclusotildees

Sartre tiraraacute disto Conforme a oacutetica sartreana os trabalhos da psicologia

foram o primeiro machado usado por Merleau-Ponty para atravessar a densa

floresta dos problemas suscitados por uma filosofia voltada para a

existecircncia Contudo ldquo() com os gestaltistas e com os psiquiatras ele

109 Embora houvesse uma identificaccedilatildeo conforme indicamos anteriormente pelo fim que levaria os ex-colegas da Eacutecole Normale Supeacuterieure agrave filosofia a saber o desejo de partir do concreto de descobrir ldquoa verdade que habita as ruas e as faacutebricasrdquo109 Merleau-Ponty iria partir primeiramente dos trabalhos de autores como Weiszaumlcker Buytendijk Minkowski Gelb e Goldstein

197

avanccedilava sem teacutecnica e sem arte por instinto em direccedilatildeo lsquoagrave proacutepria coisarsquordquo

(SARTRE op cit p 152) Merleau-Ponty diante de certos impasses acabara

deparando-se com o medo do psicologismo o que o levaria agrave fenomenologia

Sartre natildeo tinha duacutevida de que ldquoo determinismo estatiacutestico dos psicoacutelogos

natildeo tinha nada a ver com esse esforccedilo cego ainda mas obstinado para

penetrar no fundo de si mesmo e assistir agrave gecircnese ndash ao menor piscar dos

olhos ndash do homem pelo homem e do mundo pelos homens []rdquo(SARTRE op

cit p 152) Foi assim que ele encontraria outro machado o da ldquointenccedilatildeordquo

Neste mesmo sentido poderiacuteamos dizer entatildeo que a filosofia de Merleau-

Ponty seria a tentativa fracassada de efetivaccedilatildeo conforme insinuaccedilatildeo de

alguns leitores como Kelkel (KELKEL 2002) do programa de uma

ldquofenomenologia psicoloacutegicardquo que Husserl aleacutem do anuacutencio natildeo fizera senatildeo

um esboccedilo

Ora o leitor atento sabe que de modo totalmente diverso a

Pheacutenomeacutenologie de la perception estaacute muito longe de ser o desenvolvimento

de uma ldquopsicologia fenomenoloacutegicardquo E para tal conclusatildeo natildeo precisariacuteamos

aguardar a descoberta em alguma gaveta do filoacutesofo em uma das Notes de

Travail na qual Merleau-Ponty corroboraria suas verdadeiras intenccedilotildees ao

dizer que antes de um tratado de psicologia o que se visava era sobretudo

uma ontologia (MERLEAU-PONTY 1992 p 228) Basta nos aproximar com

mais cuidado tanto das paisagens abertas pelo texto e das questotildees que

fazem parte de seu tecido quanto do modo como eacute feito cada um destes

movimentos A nosso ver a razatildeo deste descompasso eacute o mesmo que estaacute

presente nas leituras de Sartre Breacutehier e Alquieacute o mesmo que por sua vez

mostra-se ser um dos eixos centrais da filosofia de Merleau-Ponty a saber o

modo como satildeo encaradas as difiacuteceis relaccedilotildees entre o pensamento filosoacutefico e

o trabalho cientiacutefico Para tanto o seu pensamento fundamenta-se na

recusa de uma filosofia concebida seja como Erklaumlrung seja como

Begruumlndung o abandono de uma filosofia que assume por tarefa como jaacute

assinalado instalar-se em um ser a fim de construir os demais a partir dele

Eacute a ilusatildeo daquilo que o filoacutesofo chamaria de uma ldquofilosofia linearrdquo presa em

um ldquouacutenico centrordquo Um caminho de superaccedilatildeo se encontraria talvez em uma

ldquofilosofia circularrdquo que natildeo deixasse de se colocar a si mesma em causa e

198

acrescentemos que fosse suscetiacutevel de se estruturar em um ou vaacuterios

centros que fosse concecircntrica

Por conseguinte apesar da retoacuterica sartreana natildeo podemos

deixar de levantar algumas questotildees frente ao que dissera questotildees que

podem nos conduzir a uma outra perspectiva Assim em contrapartida

pensamos que apesar de toda ojeriza de Sartre agraves restriccedilotildees da psicologia

ele acabara de cometer um erro um tanto psicologista Tambeacutem seria difiacutecil

que fosse diferente Sartre encontrava-se proacuteximo demais de Merleau-Ponty

a sua leitura nos lembra a mesma que Zola fizera de Ceacutezanne A nosso ver eacute

preciso buscar um outro modo de ler a obra de Merleau-Ponty e neste

sentido somos seduzidos a inverter o olhar buscando pensar antes uma

ldquorepercussatildeordquo da obra sobre a vida do que uma ldquoinfluecircnciardquo da vida sobre a

obra (MERLEAU-PONTY 1966 p 15-16) A aproximaccedilatildeo merleau-pontiana

da psicologia se daacute no intuito de um projeto que posteriormente poderaacute

adquirir uma outra coloraccedilatildeo mas que a princiacutepio parte do desejo de

compreender as relaccedilotildees entre ldquoconsciecircnciardquo e ldquonaturezardquo ldquoprimeira pessoardquo

e ldquoterceira pessoardquo ldquofilosofiardquo e ldquociecircnciardquo para ver se entre ela e a filosofia

ainda eacute possiacutevel um diaacutelogo O filoacutesofo precisa saber dialogar com a ciecircncia e

a ciecircncia tambeacutem dialogar com o filoacutesofo Mas para isso eacute preciso

desconstruir toda uma tradiccedilatildeo que as apresenta ainda como rivais Eacute assim

que entendemos por exemplo a relaccedilatildeo que se estabelece entre La Structure

du comportement e Pheacutenomeacutenologie de la perception Nas palavras do proacuteprio

Merleau-Ponty

Nossos primeiros trabalhos publicados se dedicam a um problema que eacute constante na tradiccedilatildeo filosoacutefica mas que se colocou de uma maneira mais aguda a partir do desenvolvimento das ciecircncias do homem a ponto de conduzir a uma crise de nosso saber simultacircnea agrave de nossa filosofia Trata-se da discordacircncia entre a visatildeo que o homem pode ter de si mesmo pela reflexatildeo ou pela consciecircncia e a que obteacutem religando suas condutas a condiccedilotildees exteriores das quais elas dependem manifestamente Sob a primeira relaccedilatildeo o homem se apresenta como absolutamente livre Ele apenas pode reconhecer por verdade aquilo de que tenha consciecircncia Portanto eacute ele que daacute um sentido a todos os fatos que se lhe apresentam Ele constitui em uma autonomia absoluta todo ser e todo valor e nada pode vir de fora do sujeito pensante Esta perspectiva do homem sobre ele mesmo ou este contato consigo aparecem em grande parte dos filoacutesofos como absolutamente irrecusaacuteveis e vaacutelidas contra todo

199

argumento que se possa lhe opor Sunt quaeligdam quaelig quilibet debeat potius quam rationibus persuaderi (Descartes) E todavia desenvolveu-se todo um saber histoacuterico e psicoloacutegico do homem que o considera do ponto de vista do espectador estrangeiro e manifesta sua dependecircncia em relaccedilatildeo ao meio fiacutesico orgacircnico social e histoacuterico a ponto de fazecirc-lo aparecer como um objeto condicionado (MERLEAU-PONTY 2000b p 11)

Diante destas duas perspectivas acerca do homem Merleau-

Ponty percebe a impossibilidade de uma escolha radical Haacute uma dialeacutetica

constante entre o testemunho da consciecircncia110 e os olhares do espectador

estrangeiro Ao mesmo tempo o saber positivo se vecirc impossibilitado de negar

a validade do acesso que o pesquisador deve ter aos seus proacuteprios

pensamentos e o saber filosoacutefico incapaz de negar o fato de que ldquonosso

conhecimento de noacutes mesmos deve muito mais ao conhecimento exterior do

passado histoacuterico agrave etnografia agrave patologia mental por exemplo do que agrave

elucidaccedilatildeo direta de nossa proacutepria vidardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 12) A

tarefa do filoacutesofo se daacute no intuito de chegar agrave compreensatildeo de um homem

que se revela ao mesmo tempo sujeito e objeto Eacute claro que as criacuteticas

incisivas de Merleau-Ponty agrave ciecircncia claacutessica o convite a uma ldquopsicanaacuteliserdquo

110 Sobre este aspecto eacute interessante que a imagem utilizada pelo filoacutesofo seja retirada das Objectiones et Responsiones agraves Meditationes De Prima Philosophia especialmente nas Quintaelig Responsiones ldquoExistem certas coisas das quais cada um deveria experimentar por si mesmo mais do que ser persuadido por razotildeesrdquo [ldquoQuae postea de indifferentia voluntatis negas etsi per se manifesta sint nolo tamen coram te probanda suscipere Talia enim sunt ut ipsa quilibet apud se debeat experiri potius quam rationibus persuaderi tuque ocirc caro ad ea quae mens intra se agit non videris attendere Ne sis igitur libera si non lubetrdquo (DESCARTES 1996 l 19-20 ndash Ve Reacutep IV 3)] Por que essas palavras de Descartes servem de referecircncia para esse modo de compreender a razatildeo humana Vale lembrar que a resposta eacute dirigida especialmente agraves objeccedilotildees levantadas por Gassendi agrave Quarta Meditaccedilatildeo Dois argumentos centrais cruzam a nosso ver as objeccedilotildees de Gassendi a ideia de nada e o problema da liberdade (DESCARTES 1996g p 89-173 [182]) Frente a esses escolhos o que significa falar em um apud se experiri O que Descartes quer dizer ao falar de uma deacutemarche que natildeo se deixa levar por ldquorazotildeesrdquo Trata-se do que podemos entender aqui como a ldquoliberdade cartesianardquo tal como Sartre nos descreve ldquoDescartes que eacute acima de tudo um metafiacutesico toma as coisas pelo [] lado extremo a sua experiecircncia fundamental natildeo eacute a liberdade criadora ex nihilo mas principalmente a do pensamento autocircnomo que descobre pelas suas proacuteprias forccedilas relaccedilotildees inteligiacuteveis entre essecircncias jaacute existentes Eacute por isso que noacutes os Franceses que vivemos haacute trecircs seacuteculos agrave custa da liberdade cartesiana entendemos implicitamente por ldquolivre arbiacutetriordquo o exerciacutecio de um ldquopensamentordquo independente e natildeo tanto a produccedilatildeo de um ato criador e finalmente os nossos filoacutesofos assimilam como Allain a liberdade como ato de julgarrdquo (SARTRE 1968 p 282) Natildeo haveria nessa ldquoliberdade cartesianardquo a defesa de uma Razatildeo autocircnoma e absoluta a qual se encontra na gecircnese dessa Crise Natildeo estaria aqui desde jaacute a configuraccedilatildeo daquilo que se tornaria o fundamento dos intelectualismos tanto filosoacuteficos quanto cientiacuteficos Ao longo deste trabalho tentamos nos aproximar destas questotildees

200

rigorosa da ciecircncia natildeo perdeu o seu espaccedilo O diaacutelogo com a ciecircncia nasce

tendo em vista a ciecircncia moderna e a preocupaccedilatildeo filosoacutefica de natildeo promover

o renascimento de um ldquoconflito perpeacutetuordquo entre o saber empiacuterico e o

filosoacutefico tal como podemos visualizar nas desventuras do Pequeno

Racionalismo Com isso podemos entender os primeiros trabalhos de

Merleau-Ponty tambeacutem como uma revisatildeo da condiccedilatildeo humana longe dessas

dicotomias e consequentemente a descoberta de um ldquomeio comumrdquo da

filosofia e da ciecircncia que revelaria ldquo() aqueacutem do sujeito e do objeto puro

como que uma terceira dimensatildeo onde nossa atividade e nossa passividade

nossa autonomia e nossa dependecircncia deixariam de ser contraditoacuteriasrdquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 12) Eacute deste fundo que ecoa a confissatildeo do

filoacutesofo que nos ajuda a compreender as suas primeiras obras

Noacutes tentamos a princiacutepio um esforccedilo deste gecircnero no que concerne agraves relaccedilotildees entre o sujeito e as condiccedilotildees orgacircnicas de sua vida tocando em outros termos o problema tradicional das relaccedilotildees entre alma e corpo A percepccedilatildeo uma vez que eacute a junccedilatildeo de duas ordens devia tornar-se nosso tema e eacute sobre ela que versam nossos dois primeiros trabalhos publicados um La Structure du comportement considerando do exterior o homem que percebe e buscando liberar o sentido vaacutelido das pesquisas experimentais que o abordam do ponto de vista do espectador estrangeiro outro Pheacutenomeacutenologie de la perception situando-se no interior do sujeito para mostrar a princiacutepio como o saber adquirido nos convida a conceber suas relaccedilotildees com seu corpo e seu mundo e enfim por esboccedilar uma teoria da consciecircncia e da reflexatildeo que torne possiacuteveis estas relaccedilotildees (MERLEAU-PONTY 1975b p 13)

Os dois primeiros trabalhos de Merleau-Ponty natildeo satildeo obras

opostas Pelo contraacuterio elas satildeo complementares natildeo importando que o

autor tenha confessado isso por volta de nove anos apoacutes sua primeira obra

filosoacutefica Neste sentido natildeo se torna um contra-senso falar em um

horizonte ao mesmo tempo ontoloacutegico e fenomenoloacutegico comum a estas

duas obras filosoacuteficas como tambeacutem de um ldquomeacutetodordquo comum que as abraccedila

tal como revela o proacuteprio filoacutesofo nas linhas citadas acima Pensando nisto

neste ldquomeacutetodordquo de trabalho comum agraves duas obras Eacutetienne Bimbenet chega a

falar em Nature et Humaniteacute de um ldquomeacutetodo dos pontos de vistardquo (la

meacutethode des points de vues) que nortearia tanto La Structure du

comportement quanto a Pheacutenomeacutenologie de la perception No texto de 1942

Merleau-Ponty partiria do ldquoponto de vista do espectador estrangeirordquo ao

201

passo que no texto de 1945 ele privilegiaria o ldquoponto de vista da reflexatildeordquo

ou se preferirmos do ldquoobservador internordquo111 Mas natildeo seria isto uma

contradiccedilatildeo indaga Bimbenet Natildeo eacute de se achar estranho que no momento

em que o filoacutesofo se propotildee a compreender as relaccedilotildees existentes entre

ldquoconsciecircnciardquo e ldquonaturezardquo (MERLEAU-PONTY 1942 p 1) ele adote um

meacutetodo que acabe por cristalizar uma cisatildeo entre estes termos (BIMBENET

2004 p 36) Ao procurar compreender o uso destas expressotildees Bimbenet

descobre que ldquoespectador estrangeirordquo (spectateur eacutetranger) estaacute presente em

um texto (Le Moi le monde et dieu) de Pierre Lachiegraveze-Rey editado em 1928

no qual o autor falava de uma natureza que se revelava exterior a um sujeito

que por consequecircncia mostrava-se ldquoestrangeirordquo em relaccedilatildeo a ela As

coisas a natureza e todos os objetos existiriam apenas para este ldquoespectador

estrangeirordquo

Por outro lado a recusa de Marcel em seu Journal

meacutethaphysique em se colocar em uma ldquoatitude espetacularrdquo tatildeo atestada

pela filosofia antiga configurava tambeacutem o que se pode compreender por

aquela expressatildeo uma vez que poderiacuteamos entender que no fundo Marcel

se negava a ser um ldquoespectador estrangeirordquo diante do mundo o mundo era

a sua paacutetria Poreacutem seraacute em Bergson que compreenderemos melhor a

distinccedilatildeo destes pontos de vista ldquoquando a ciecircncia se coloca por fora da

coisa trabalhando sobre siacutembolos exteriores a ela a intuiccedilatildeo metafiacutesica se

define pelo contraacuterio como esta lsquosimpatia pela qual nos transportamos para

o interior de um objeto para coincidirmos com o que ele tem de uacutenico e

111 No entanto reconsiderando a leitura de Bimbenet de que haacute no filoacutesofo um jogo de pontos de vista articulado nas obras de 1942 e de 1945 no embate entre o ponto de vista do ldquoespectador estrangeirordquo e o ponto de vista da ldquoreflexatildeordquo e se pensamos agora esses pontos de vista a partir da dinacircmica dos movimentos proacuteximos aos de Husserl como indica Slatman entre uma ldquoarqueologiardquo e uma ldquogenealogiardquo como podemos entender a filosofia de Merleau-Ponty Seria a partir da identidade tanto do ponto de vista do ldquoespectador estrangeirordquo com o movimento arqueoloacutegico como do ponto de vista da reflexatildeo com o movimento considerado nas trilhas de Slatman como ldquogenealoacutegicordquo Parece-nos que natildeo haacute um simples paralelismo entre esses termos mas a indicaccedilatildeo de um modus philosophandi bastante sutil O movimento arqueoloacutegico eacute um movimento du dehors mas que em seu extremo possibilita uma desconstruccedilatildeo daquilo que um movimento du dedans o da reflexatildeo constitui equivocamente como fundamento Mas o que faz com que isso natildeo seja a simples defesa de um impeacuterio do Fora eacute o fato de que o inverso torna-se tambeacutem suscetiacutevel de ocorrer sem contudo esmerar um retorno a um sujeito abstrato

202

consequentemente de inexprimiacutevelrdquo (BERGSON) O ponto de vista do

ldquoespectador estrangeirordquo eacute o ponto de vista da ciecircncia do realismo

cientificista que ao buscar uma objetividade pura opotildee-se agrave intuiccedilatildeo

filosoacutefica Eacute nesta tensatildeo que Merleau-Ponty se localiza e aqui volta nossa

questatildeo anterior ao adotar estes posicionamentos Merleau-Ponty natildeo

legitima uma oposiccedilatildeo entre consciecircncia e natureza no momento em que se

propotildee a compreendecirc-la e superaacute-la O que o filoacutesofo quer dizer ao afirmar

que enquanto em La Structure du comportement partira do ponto de vista do

espectador estrangeiro ele se situava na Pheacutenomeacutenologie de perception no

interior do sujeito

Conforme Bimbenet o problema que se coloca para Merleau-

Ponty ao esboccedilar o seu projeto a partir de uma retomada de suas primeiras

obras eacute a compreensatildeo de que estes pontos de vista natildeo satildeo definitivos

Quando o filoacutesofo se posiciona em um horizonte estrangeiro agrave consciecircncia

em La Structure du comportement sua intenccedilatildeo eacute desconstruir

pacientemente os limites do realismo da ciecircncia Ele se propotildee a fazer isso

inclusive caminhando em direccedilatildeo ao ponto de vista da proacutepria consciecircncia

e uma vez situado ali ndash como se propunha a Pheacutenomeacutenologie de la perception

ndash fazer um mesmo movimento poreacutem em um sentido inverso Neste sentido

() as duas obras longe de legitimar a oposiccedilatildeo da consciecircncia e da natureza e de validar a oposiccedilatildeo das duas perspectivas sobre o homem natildeo fazem senatildeo partir de uma tal oposiccedilatildeo para melhor desqualificaacute-la uma parte do ponto de vista realista da natureza outro do ponto de vista reflexivo da consciecircncia mas eacute justamente para aproximar de uma maneira divergente o estranho meio onde a oposiccedilatildeo delas termina Eacute portanto uma mesma verdade um ldquomeio comumrdquo da consciecircncia e da natureza como do saber positivo e da filosofia que tentam colocar La Structure du comportement e a Pheacutenomeacutenologie de la perception Se elas natildeo tecircm o mesmo ponto de partida as duas obras tecircm em compensaccedilatildeo o mesmo ponto de chegada o meacutetodo eacute global e nos dois momentos complementares O ponto de vista do espectador estrangeiro caso sigamos todas as suas implicaccedilotildees acaba por retomar o ponto de vista da reflexatildeo a mesma exigecircncia descritiva mas tambeacutem a mesma inclinaccedilatildeo arqueoloacutegica prevalecem nos dois casos (BIMBENET 2004 p 36-7)

Neste sentido se assim entendermos as relaccedilotildees entre La

Structure du comportement e a Pheacutenomeacutenologie de la perception as relaccedilotildees

que se estabelecem entre elas e principalmente as paacuteginas desta uacuteltima

203

obra marcam e constituem um modo de filosofar a busca de uma regiatildeo

anterior agraves cisotildees agrave tematizaccedilatildeo de uma cisatildeo que nasce no interior do

proacuteprio Ser agrave gecircnese de uma filosofia da ldquoambiguidaderdquo do entre-deux

antes que de um simples ldquomeio termordquo ou de uma soma de partes Vaacuterias

vezes este procedimento se manifesta em Merleau-Ponty seja na busca de

uma ruptura com o idealismo que natildeo conduza ao realismo seja na

tentativa de ruptura com o subjetivismo filosoacutefico sem aceitar os dogmas de

um objetivismo da ciecircncia seja no enamoramento com a dialeacutetica que natildeo

implique uma paixatildeo por uma compreensatildeo atrapalhada da histoacuteria e seus

equiacutevocos seja na superaccedilatildeo do racionalismo que natildeo promova a simples

aprovaccedilatildeo de sua face intelectualista ou empirista etc

Ora pensando nestes pontos de vista acerca do homem a fim de

melhor compreendecirc-los vejamos como eles se efetivam em Merleau-Ponty

especialmente nos primeiros trabalhos Deste modo partiremos do

pressuposto de que os conceitos de ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoesquema corporalrdquo

estariam justamente nesta clivagem na tentativa de conciliar o ponto de

vista da ciecircncia e o ponto de vista da filosofia a explicitaccedilatildeo de duas

perspectivas complementares ou melhor de duas faces de uma mesma

experiecircncia O que Merleau-Ponty entende por ldquocorpo proacutepriordquo e por

ldquoesquema corporalrdquo Como iraacute apresentar em sua tentativa de

desconstruccedilatildeo do sujeito cartesiano a sua compreensatildeo da subjetividade

Vejamos

342 A encarnaccedilatildeo do sujeito e as faces da subjetividade encarnada ldquoesquema corporalrdquo e ldquocorpo proacutepriordquo

Se eacute possiacutevel pensar a subjetividade nos primeiros trabalhos de

Merleau-Ponty eacute justamente como subjetividade somaacutetica carnal

encarnada corporal Eacute neste sentido que ele nos falaraacute de um corpo que natildeo

eacute coisa mas tampouco eacute ideia libertando-se por esta via das antinomias

claacutessicas Eacute um corpo no mundo sempre em relaccedilatildeo Um corpo que escapa

assim dos limites do corpo imaginado pelo mundo claacutessico pela conversatildeo

cartesiana do mundo em ldquoespetaacuteculordquo Em contrapartida como ser

204

encarnado o sujeito passa a se encontrar constantemente mesclado com

as coisas com o mundo tornando possiacutevel uma intersubjetividade fundada

em uma experiecircncia corporal Corpo e psiquismo reuacutenem-se em uma mesma

experiecircncia original de acesso agraves coisas e ao proacuteprio ldquoeurdquo Com estas

ponderaccedilotildees Merleau-Ponty tanto nos mostra que o sujeito natildeo eacute um

espiacuterito puro uma substacircncia separada assim como tambeacutem que o corpo

como existecircncia encarnada natildeo eacute meramente uma ldquores extensardquo mas um

jogo vivido de significaccedilotildees O corpo eacute vivido e natildeo meramente um conjunto

de oacutergatildeos como um objeto funcional e apenas produtivo Sendo uma

subjetividade que se compreende no meio das coisas apesar disto o corpo

manteacutem as coisas agrave sua volta fazendo delas um prolongamento de si pois

tanto o corpo quanto o mundo satildeo feitos do mesmo estofo

Assim sendo este modo da subjetividade habitar o mundo

mediante o corpo equivale a assinalar que eacute a sua vida perceptiva que

assegura e garante a experiecircncia do conhecimento e conta como antecipaccedilatildeo

a toda noccedilatildeo de objeto desde o momento em que em virtude desta

experiecircncia realiza-se a abertura ao mundo A reflexatildeo transforma a

percepccedilatildeo em percepccedilatildeo refletida e eacute necessaacuterio admitir pois outra atitude

referida a uma espeacutecie sui generis de reflexatildeo que tomara nota de si e das

mudanccedilas produzidas sem anular as relaccedilotildees e laccedilos orgacircnicos existentes

entre a percepccedilatildeo e a coisa percebida Deste modo a partir de Merleau-

Ponty podemos dizer que se algueacutem adentrou sem barulho o cenaacuterio do

pensamento moderno pensando na epiacutegrafe deste capiacutetulo com certeza natildeo

fora um espiacuterito um sopro fantasmagoacuterico eteacutereo e universal nem muito

menos uma maacutequina de carne e ossos uma vez que ldquo[] fica cada vez mais

evidente que a encarnaccedilatildeo e o outro satildeo o labirinto da reflexatildeo e da

sensibilidade ndash de uma espeacutecie de reflexatildeo sensiacutevel ndash entre os

contemporacircneosrdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 294)

Ora estas consideraccedilotildees tornam evidente a existecircncia de uma

atividade simboacutelica (MERLEAU-PONTY 2006 p 163) que impossibilita a

consideraccedilatildeo da estrutura orgacircnica sob o ditado de uma lei ldquoas estruturas

orgacircnicas natildeo se compreendem por uma norma mas por um certo tipo de

accedilatildeo transitiva que caracteriza o indiviacuteduordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p

205

161) A presenccedila desta atividade orientada potildee em primeiro plano a tese que

Merleau-Ponty jaacute formulava no final de La Structure du comportement de que

todo o problema da percepccedilatildeo reside na compreensatildeo das noccedilotildees de

ldquoestruturardquo e ldquosignificaccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 240) O que isto nos

diz acerca do corpo nos primeiros trabalhos Abertamente dirigida contra as

posturas da fisiologia claacutessica e do behaviorismo Merleau-Ponty se esforccedilava

por elucidar que a forma e a mateacuteria da percepccedilatildeo satildeo aparentadas desde a

origem estando a mateacuteria como insinuamos anteriormente jaacute graacutevida de

sua forma Logo a siacutentese que compotildee os objetos percebidos natildeo eacute uma

siacutentese intelectual eacute uma siacutentese de transiccedilatildeo Ao contraacuterio de ser o fruto de

um ato intelectual que apreenderia o objeto ou como possiacutevel ou como

necessaacuterio na percepccedilatildeo ele eacute real ligado intencionalmente ao corpo A

percepccedilatildeo proporciona uma experiecircncia integral dos movimentos corporais

um ldquoesquema corporalrdquo muito mais aleacutem da simples soma de partes O que

seria este ldquoesquema corporalrdquo Efetivamente este conceito foi introduzido

pelos trabalhos de Henry Head (1926) e Paul Schilder (1951) Trata-se pois

de um termo nascido e utilizado especialmente pela neurologia no intuito

de informar o modo como a disposiccedilatildeo do corpo se apresenta no psiquismo

humano favorecendo a compreensatildeo de certos fenocircmenos patoloacutegicos que

no organismo podem apresentar distuacuterbios fisioloacutegicos neuroloacutegicos ou

mesmo psicoloacutegicos Ao se perguntar pelo ldquoesquema corporalrdquo o que visa

Merleau-Ponty eacute justamente contra certas posturas cientificistas explicitar

que natildeo haacute uma relaccedilatildeo causal entre nossa ldquoestrutura corporalrdquo e a

interioridade nascida do nosso contato com o mundo

O corpo se situa no mundo e nele constitui seu ponto de

referecircncia intencional Por esta natureza corporal os gestos as palavras os

silecircncios e os atos abrem sempre um campo inesgotaacutevel de significaccedilatildeo e de

intencionalidades O problema estaacute que a tradiccedilatildeo tanto filosoacutefica como

cientiacutefica acostumou-nos com uma consideraccedilatildeo parcial do corpo dada

uma compreensatildeo mecacircnica do organismo e de suas relaccedilotildees com o meio

Ora o corpo eacute examinado como coisa ora eacute examinado como fenocircmeno Mas

a natureza corporal eacute a de um conjunto composto por partes que se regem

por princiacutepios de causalidade Se partirmos da compreensatildeo cartesiana do

206

corpo como ldquoextensatildeordquo desembocaremos nos mesmos erros da psicologia

claacutessica ao colocar o corpo na condiccedilatildeo de base de sua investigaccedilatildeo

comportamental como fato como realidade em si Neste ponto

basilarmente concordam tanto o intelectualismo quanto o empirismo Diraacute o

filoacutesofo que ldquotanto o intelectualismo como o empirismo se datildeo por objeto de

anaacutelise o mundo objetivo que natildeo eacute primeiro nem segundo o tempo nem

segundo seu sentido um e outro satildeo incapazes de expressar a maneira

peculiar na qual a consciecircncia perceptiva constitui seu objeto Ambos

mantecircm sua distacircncia relativamente agrave percepccedilatildeo ao inveacutes de aderir-se a elardquo

(MERLEAU-PONTY 1945 p 34) Em outras palavras ambos consideram o

corpo como fato e esquecem seu sentido fenomenoloacutegico Do mesmo modo o

erro fundamental que Merleau-Ponty encontra nas posturas mecanicistas e

vitalistas estaacute precisamente no fato de esquecer a unidade significativa pela

qual o corpo se estrutura a fim de consideraacute-lo somente como um produto

real da natureza visto que a experiecircncia que temos do ldquocorpo proacutepriordquo faz

com este se nos apresente ao contraacuterio de um mosaico de sensaccedilotildees como

um fenocircmeno uma unidade de significaccedilatildeo Eacute neste sentido que notamos

na ldquopurificaccedilatildeordquo do conceito claacutessico de ldquoesquema corporalrdquo o

direcionamento de Merleau-Ponty aos trabalhos da ciecircncia moderna

especialmente os trabalhos de Goldstein Como Merleau-Ponty iraacute se

aproximar dos trabalhos de Goldstein O que eles lhe diratildeo sobre o

ldquoesquema corporalrdquo

Antes de tudo vale lembrar que a noccedilatildeo de ldquoesquema corporalrdquo

natildeo se daacute desvinculada do sentido atribuiacutedo aos fenocircmenos patoloacutegicos o

que nos ajuda a compreender a principal razatildeo pela qual encontramos na

Pheacutenomeacutenologie de la perception as indagaccedilotildees filosoacuteficas de Merleau-Ponty

acerca do patoloacutegico O peso que esta temaacutetica possui para Merleau-Ponty

manifesta-se principalmente nos vaacuterios momentos em que ele retoma por

exemplo os distuacuterbios patoloacutegicos do caso Schneider ou discute fenocircmenos

207

como a alucinaccedilatildeo112 Mas qual sua funccedilatildeo na compreesatildeo da corporeidade

A este respeito encontramos no proacuteprio Goldstein uma resposta

Noacutes tomamos como ponto de partida de nossas consideraccedilotildees os fenocircmenos que se manifestam em um homem atingido por lesotildees do coacutertex cerebral Noacutes escolhemos este material primeiramente porque pensamos ndash provavelmente com razatildeo ndash que eacute preciso atribuir uma significaccedilatildeo ldquocentralrdquo preeminente ao coacutertex cerebral Os fenocircmenos que se produzem quando ele foi lesado seratildeo portanto particularmente significativos para noacutes enquanto tentamos conhecer a essecircncia do homem Noacutes fizemos tambeacutem esta escolha porque ela nos permite demonstrar certas leis gerais da desintegraccedilatildeo funcional leis que importa conhecer para melhor conhecer o funcionamento do organismo (GOLDSTEIN 1951 p 15 2000 p 33)

A escolha de pessoas que sofreram uma lesatildeo no coacutertex cerebral

eacute significativa Eacute o modo de tentar compreender melhor a estrutura do nosso

organismo expresso na relaccedilatildeo entre suas partes A desintegraccedilatildeo funcional

para Goldstein possibilita a articulaccedilatildeo de um contra-argumento e de uma

resposta agrave compreensatildeo do organismo fragmentado em funccedilotildees

extremamente circunscritas e especializadas113 As suas famosas

experiecircncias em sobreviventes de guerra no entanto conduziratildeo a sua

pesquisa em outra direccedilatildeo Eacute assim que ele se posiciona contra ao que

chamou ldquomeacutetodo analiacutetico da ciecircnciardquo Eacute assim que propotildee uma leitura

holiacutestica do humano e de seus fenocircmenos uma vez que o ldquoordinaacuterio

aumentordquo de uma especializaccedilatildeo dos saberes cientiacuteficos a constituiccedilatildeo de

um meacutetodo ldquoatomiacutesticordquo embora tenha significado um certo enriquecimento

112 Poderiacuteamos pensar tambeacutem no modo como o filoacutesofo usa de seus estudos sobre os fenocircmenos patoloacutegicos para exemplificar discussotildees aparentemente distantes de uma compreensatildeo do corpo tais como o marxismo e a revoluccedilatildeo do proletariado (MERLEAU-PONTY 1945 p 201) 113 Lembremos que um ferimento cerebral em uma perspectiva claacutessica deveria liberar os diferentes automatismos do organismo o que traduziria no caso da sexualidade em um ldquo() comportamento sexual acentuado113rdquo Pelo contraacuterio frente agrave indiferenccedila de um paciente com ferimento cerebral agraves certos estiacutemulos sexuais como nos diz Merleau-Ponty ldquoa patologia potildee em evidecircncia entre o automatismo e a representaccedilatildeo uma zona vital em que se elaboram as possibilidades sexuais do doente assim como acima suas possibilidades motoras perceptivas e ateacute mesmo suas possibilidades intelectuais Eacute preciso que exista imanente agrave vida sexual uma funccedilatildeo que assegure seu desdobramento e que a extensatildeo normal da sexualidade repouse sobre as potecircncias internas do sujeito orgacircnico Eacute preciso que exista um Eros ou uma Libido que animem um mundo original decircem valor ou significaccedilatildeo sexuais aos estiacutemulos exteriores e esbocem para cada sujeito o uso que ele faraacute de seu corpo objetivordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 182)

208

teoacuterico acabara por trazer consigo diversos problemas para uma

compreensatildeo autecircntica da existecircncia humana (GOLDSTEIN 1961) Natildeo se

pode pensar o homem como uma simples soma de saberes fragmentados

pois ao contraacuterio do que pensa as metodologias atomiacutesticas ou analiacuteticas da

ciecircncia o organismo eacute um todo eacute uma unidade Sendo assim

Se o organismo eacute um todo e cada uma de suas partes funciona normalmente dentro deste todo entatildeo na experimentaccedilatildeo analiacutetica que isola as partes agrave medida que as estuda as propriedades e funccedilotildees de qualquer uma destas partes devem encontrar-se alteradas por seu isolamento do todo do organismo Portanto natildeo podem revelar o funcionamento destas partes na vida normal Satildeo inumeraacuteveis os fatos que provam como se altera o funcionamento de um setor de resultados de seu isolamento Se desejarmos utilizar os resultados de tais experiecircncias para compreender a atividade do organismo na vida normal (quer dizer como um todo) devemos conhecer em que forma essa condiccedilatildeo de isolamento modifica a funccedilatildeo e devemos levar em conta tais modificaccedilotildees (GOLDSTEIN 1961 p 19)

Goldstein compreende o organismo a partir da dinacircmica que se

estabelece entre figura e fundo Eacute a partir deste pressuposto que o ldquoesquema

corporalrdquo seraacute compreendido por Merleau-Ponty rompendo-se pois com a

fisiologia claacutessica No entanto como esta compreensatildeo se relacionaria com

aquilo que o filoacutesofo denomina ldquocorpo proacutepriordquo Gostariacuteamos de pensar esta

relaccedilatildeo seguindo as trilhas de Slatman (SLATMAN 2001 p 26-27) e de

Saint-Aubert (SAINT-AUBERT 2004 p 148 e seguintes) a partir da

repercussatildeo que tivera nos trabalhos do filoacutesofo as leituras dos ineacuteditos de

Husserl assim como a sua posiccedilatildeo frente a elas nomeadamente um aspecto

terminoloacutegico em particular114 Quando se trata dos textos husserlianos

lidos no original certamente duas palavras causam um certo desconforto agraves

liacutenguas que natildeo trazem consigo certas especificidades proacuteprias do alematildeo

como traduzir pois Leib e Koumlrper se para ambos apesar de suas nuances

significativas temos apenas o termo ldquocorpordquo como correspondente Neste

sentido talvez a liacutengua francesa consiga superar de certa forma esse

impasse pelo contraste dos termos chair e corps O que quer dizer as

114 A este respeito procuramos seguir as indicaccedilotildees de Slatmann Cf SLATMAN 2001

209

distinccedilotildees O termo Leib refere-se a um corpo entendido organicamente

vivido ou seja um corpo que eacute vivo que eacute ldquosomardquo115 Em contrapartida o

termo Koumlrper refere-se ao corpo entendido fisicamente como coisa material

O homem eacute neste sentido um ser leiblich [corpoacutereo] diferentemente da

pedra que eacute um ser koumlrperlich [corpoacutereo]

Na fenomenologia esta distinccedilatildeo se torna um pouco mais ampla

a ponto de acentuar o seu proacuteprio modo de abordagem do corpo humano em

sua radical diferenccedila do modo utilizado pela ciecircncia especialmente pelas

ciecircncias bioloacutegicas Assim qual seria o objeto da biologia O Koumlrper quer

dizer o corpo entendido como objeto de pesquisa aquele do qual podemos

dizer que temos a posse Na fenomenologia o corpo eacute antes compreendido

como Leib como uma intencionalidade encarnada aquele do qual dizemos

que noacutes mesmos somos A nosso ver nos primeiros trabalhos de Merleau-

Ponty a noccedilatildeo de ldquocorpo proacutepriordquo seraacute a sua compreensatildeo de Leib ao passo

que o conceito de ldquocorpo objetordquo ou ldquoesquema corporalrdquo estaraacute vinculado agrave

sua compreensatildeo de Koumlrper Por conseguinte ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoesquema

corporalrdquo adquirem no pensamento merleau-pontiano significados proacuteprios

que os distanciam do uso husserliano de Leib e Koumlrper116 Que significados

seriam estes Diferentemente de Husserl conforme vimos ao nos referir a

Goldstein Merleau-Ponty iraacute partir de um diaacutelogo com a ciecircncia moderna o

que o levaraacute a natildeo entender o ldquoesquema corporalrdquo como ldquoum resumo de

nossa experiecircncia corporalrdquo nem como um ldquocentro de imagensrdquo (MERLEAU-

PONTY 1945 p 114-5) nem tampouco como a consideraccedilatildeo que a Gestalt

possui de uma tomada de consciecircncia global tida no mundo intra-sensorial

Para o filoacutesofo esta expressatildeo eacute um pouco mais radical ela indica o nosso

115 Termo grego que no portuguecircs parece nos expressar melhor o termo alematildeo 116 Do mesmo modo quando nos uacuteltimos trabalhos a palavra Chair ganha cidadania no projeto merleau-pontiano seraacute bem outro o seu sentido expressando em primeiro lugar a relaccedilatildeo de incorporaccedilatildeo na qual Koumlrper Leib e Mundo encontram-se unidos em um mesmo tecido Em Le Visible et lrsquoInvisible Merleau-Ponty nos fala tambeacutem de ldquoum corpo sentienterdquo e de ldquoum corpo sensiacutevelrdquo como os dois lados de um mesmo corpo ldquo[] os dois lsquoladosrsquo de nosso corpo o corpo como sensiacutevel e o corpo como sentiente ndash o que outrora chamamos de corpo fenomenal e de corpo objetivo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1992 p 133) No entanto eacute versatildeo merleau-pontiana de Leib como ldquocorpo proacutepriordquo e Koumlrper como ldquoestrutura corporalrdquo que nos interessa neste momento

210

ser-no-mundo nossa abertura a ele nossa tensatildeo com ele (MERLEAU-

PONTY 1945 p 117) A introduccedilatildeo deste ldquoesquema corporalrdquo comporta

especiais ressonacircncias na teoria da percepccedilatildeo na medida em que permite

por um lado uma

oposiccedilatildeo ao movimento reflexivo que separa o objeto do sujeito e o sujeito do objeto dando-nos apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia e natildeo a experiecircncia do corpo ou o corpo na realidade Por outro lado tambeacutem eacute importante agrave teoria da percepccedilatildeo porquanto se articula como um lanccedilar do corpo proacuteprio em seu ser-no-mundo aquele de uma intencionalidade e da abertura do corpo que tem como base sua proacutepria espacialidade natildeo de posiccedilatildeo mas de ldquosituaccedilatildeordquo e que manifesta que o ldquouso que um homem faz de seu corpo [seja] transcendente [mesmo] ao olhar o corpo como ser bioloacutegico porque a simples presenccedila de um ser vivo transforma o mundo fiacutesico (MERLEAU-PONTY 1945 p 220-1)

Ora esta estrutura do ldquocorpo proacutepriordquo que percebemos atraveacutes

do ldquoesquema corporalrdquo e que se nos mostra como fonte de significaccedilatildeo eacute a

base para uma anaacutelise ontoloacutegica do corpo Os elementos fundamentais

deste esquema seratildeo indubitavelmente aqueles elementos estruturais da

proacutepria existecircncia ou seja a espacialidade e a motricidade O valor do

ldquoesquema corporalrdquo radica no importante papel que desempenha esta

espacialidade e esta motricidade que em outras palavras vecircm a significar

situaccedilatildeo e accedilatildeo Sem uma ancoragem corporal e sem uma inclinaccedilatildeo ou

tendecircncia do corpo para a coisa a percepccedilatildeo natildeo seria possiacutevel Todavia

natildeo nos equivoquemos entre ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoestrutura corporalrdquo natildeo haacute

uma dualidade talvez no maacuteximo o jogo dos ldquopontos de vistasrdquo em relaccedilatildeo a

um mesmo foco tal como Bimbenet nos assinala (BIMBENET 2004 p 36-

7) Pensar o ldquocorpo proacutepriordquo implica para o filoacutesofo pensar uma realidade

estrutural Procurando desconstruir o cientificismo do tipo behaviorista

claacutessico e o idealismo cartesiano como jaacute indicamos a noccedilatildeo de um

comportamento que se daacute tatildeo-somente de modo estruturado soacute pode nos

apontar uma experiecircncia corporal um ldquoesquema corporalrdquo mediante o qual

percebemos o mundo temos acesso a ele Daiacute a consideraccedilatildeo existencial do

ldquocorpo proacutepriordquo como uma intencionalidade encarnada e espacial que

revelando-se ser um verdadeiro pivocirc expressa uma unidade de significaccedilatildeo

em sua constante transcendecircncia rumo a um mundo inesgotaacutevel A nosso

211

ver na interpretaccedilatildeo que Merleau-Ponty faz do membro fantasma na

Pheacutenomeacutenologie de la perception ajuda-nos a melhor compreender o modo

como ldquocorpo proacutepriordquo e ldquoesquema corporalrdquo satildeo perspectivas entrelaccediladas a

nos revelar na experiecircncia do corpo uma unidade de fato e essecircncia O que

ela nos diz

Para Merleau-Ponty o importante deste fenocircmeno eacute o que pode

nos dizer acerca de como o nosso ldquoesquema corporalrdquo expressa o modo como

vivemos o nosso corpo Todavia uma leitura meramente fisioloacutegica natildeo eacute

suficiente pois nos limitariacuteamos agrave persistecircncia de ldquoestimulaccedilotildees

interoceptivasrdquo De imediato uma questatildeo crucial exige a atenccedilatildeo do filoacutesofo

como explicar o fato de que mesmo anestesiado o paciente continue a

sentir o membro que lhe fora amputado Como explicar tambeacutem aqueles

casos em que esta experiecircncia ocorre sem que tenha havido uma

amputaccedilatildeo Como salienta Merleau-Ponty uma explicaccedilatildeo perifeacuterica do

membro fantasma apresenta vaacuterios problemas Todavia natildeo se pode dizer

que uma explicaccedilatildeo central que postulasse a origem da sensaccedilatildeo na

conservaccedilatildeo de ldquotraccedilos cerebraisrdquo tambeacutem seja suficiente Frente agrave

impossibilidade de uma leitura fisiologista pensa Merleau-Ponty natildeo basta

recorrer a uma leitura psicologista aquela que pautando-se na anosognose

veria naquela experiecircncia uma simples negaccedilatildeo do paciente em se aceitar

com um membro mutilado O erro desta leitura no entanto encontra-se em

desconsiderar o substrato fisioloacutegico do paciente o fato de que uma secccedilatildeo

em seus nervos pode afetar sua percepccedilatildeo ilusoacuteria do membro Neste

sentido o problema natildeo estaria apenas na presenccedila indevida de uma

representaccedilatildeo Da mesma forma uma simples adiccedilatildeo das perspectivas

fisioloacutegicas e psicoloacutegicas tambeacutem natildeo seria suficiente uma vez que

Eacute preciso compreender entatildeo como os determinantes psiacutequicos e as condiccedilotildees fisioloacutegicas engrenam-se uns aos outros natildeo se concebe como o membro fantasma se depende de condiccedilotildees fisioloacutegicas e se a esse tiacutetulo eacute o efeito de uma causalidade em terceira pessoa pode por outro lado depender da histoacuteria pessoal do doente de suas recordaccedilotildees de suas emoccedilotildees ou de suas vontades Pois para que as duas seacuteries de condiccedilotildees possam em conjunto determinar o fenocircmeno assim como dois componentes determinam um resultante ser-lhes-ia necessaacuterio um mesmo ponto de aplicaccedilatildeo ou um terreno comum e natildeo se vecirc qual poderia ser o terreno comum a ldquofatos fisioloacutegicosrdquo que estatildeo no espaccedilo e a ldquofatos psiacutequicosrdquo que natildeo

212

estatildeo em parte alguma ou mesmo a processos objetivos como os influxos nervosos que pertencem agrave ordem do em si e a cogitationes tais como a aceitaccedilatildeo e a recusa a consciecircncia do passado e a emoccedilatildeo que satildeo da ordem do para si (MERLEAU-PONTY 1945 p 91)

Uma teoria mista do membro fantasma se apresenta ldquoobscurardquo a

Merleau-Ponty principalmente tendo-se em vista a perspectiva dicotomizada

na qual as explicaccedilotildees fisioloacutegicas e psicoloacutegicas se encontram Assim sendo

compartilham de um mesmo erro que as fazem perder o proacuteprio fenocircmeno

Em outros termos ainda natildeo conseguem se desvencilhar das categorias do

mundo objetivo natildeo se atentando que a experiecircncia se daacute em uma outra

ordem em uma camada ainda preacute-reflexiva ou seja na perspectiva do ser

no mundo Compreender esta vivecircncia patoloacutegica a partir deste acircngulo

significa compreender que ldquoa recusa da mutilaccedilatildeo no caso do membro

fantasma ou a recusa da deficiecircncia na anosognose natildeo satildeo decisotildees

deliberadas natildeo se passam no plano da consciecircncia teacutetica que toma posiccedilatildeo

explicitamente apoacutes ter considerado diferentes possiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY

1945 p 96) Neste caso a patologia revela a existecircncia de uma outra

dimensatildeo do humano aquela que natildeo sendo da ordem do ldquoeu pensordquo nasce

a partir de um ldquoeu possordquo de uma subjetividade corporal Mas o que

significa dizer que a recusa natildeo parte de um ldquosujeito esclarecidordquo de uma

ldquoconsciecircncia racionalrdquo Como nos elucida Merleau-Ponty

Aquilo que em noacutes recusa a mutilaccedilatildeo e a deficiecircncia eacute um Eu engajado em um certo mundo fiacutesico e inter-humano que continua a estender-se para seu mundo a despeito de deficiecircncias ou de amputaccedilotildees e que nessa medida natildeo as reconhece de jure A recusa da deficiecircncia eacute apenas o avesso de nossa inerecircncia a um mundo a negaccedilatildeo impliacutecita daquilo que se opotildee ao movimento natural que nos lanccedila a nossas tarefas a nossas preocupaccedilotildees a nossa situaccedilatildeo a nossos horizontes familiares Ter um braccedilo fantasma eacute permanecer aberto a todas as accedilotildees das quais apenas o braccedilo eacute capaz eacute conservar o campo praacutetico que se tinha antes da mutilaccedilatildeo [] Portanto o doente sabe de sua perda justamente enquanto a ignora e ele a ignora justamente enquanto a conhece Esse paradoxo eacute o de todo ser no mundo dirigindo-me a um mundo esmago minhas intenccedilotildees que finalmente me aparecem como anteriores a elas e que todavia soacute existem para mim enquanto suscitam pensamento e vontades em mim (MERLEAU-PONTY 1945 p 91)

213

Segundo Merleau-Ponty podemos vislumbrar na experiecircncia do

ldquocorpo proacutepriordquo camadas que distinguem por um lado um ldquocorpo habitualrdquo

e por outro lado um ldquocorpo atualrdquo Aqui natildeo se trata de uma dicotomia

proposta pelo filoacutesofo Pelo contraacuterio trata-se da constataccedilatildeo de um

problema que nasce na proacutepria experiecircncia do ldquocorpo proacutepriordquo expressa na

experiecircncia do membro fantasma A vivecircncia do corpo habitual eacute o que

garante a percepccedilatildeo do mundo como tangiacutevel dos objetos como manejaacuteveis

Cada membro traz consigo um verdadeiro campo que possibilita a

experiecircncia do mundo como o horizonte e o fundo possibilitam a percepccedilatildeo

de uma figura No entanto a ausecircncia de um membro representa ausecircncia

de um campo sem que os objetos que lhe pertencem deixem de existir

Como indaga Merleau-Ponty ldquocomo posso perceber objetos manejaacuteveis

embora natildeo possa manejaacute-los Eacute preciso que o manejaacutevel tenha deixado de

ser aquilo que manejo atualmente para se tornar aquilo que se pode

manejar tenha deixado de ser um manejaacutevel para mim e tenha se tornado

como que um manejaacutevel em sirdquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 98) Esta

experiecircncia conduz a uma vivecircncia do corpo natildeo mais como uma experiecircncia

espontacircnea mas generalizada quase que impessoal Como sair deste

impasse Para Merleau-Ponty eacute possiacutevel esclarecer este descompasso entre

o habitual e o atual a partir do fenocircmeno do recalque assim como eacute

entendido pela psicanaacutelise O que isto quer dizer

O recalque trata-se sobretudo de um presente que natildeo quer se

tornar passado de uma paralisaccedilatildeo do tempo pessoal Frente aos obstaacuteculos

gerados por um empreendimento opta-se em natildeo abandonaacute-lo mas

continuamente colocar-se a renovaacute-lo em espiacuterito sempre na abertura a um

futuro impossiacutevel Neste sentido o recalque natildeo pode ser encarado como

uma simples recordaccedilatildeo dado que permanece sempre um presente proacuteximo

natildeo se encontrando portanto distante de noacutes Assim sendo ldquo[] todo

recalque eacute a passagem da existecircncia em primeira pessoa a um tipo de

escolaacutestica dessa existecircncia que vive para uma experiecircncia antiga ou antes

para uma recordaccedilatildeo de tecirc-la tido depois para a recordaccedilatildeo de ter tido essa

recordaccedilatildeo e assim por diante a ponto de que finalmente ela soacute retenha sua

forma tiacutepicardquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 99) Haacute para Merleau-Ponty um

214

ldquoadvento do impessoalrdquo na vivecircncia do recalque que ldquo[] nos faz

compreender nossa condiccedilatildeo de seres encarnados ligando-a agrave estrutura

temporal do ser no mundordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 99) Sempre em

nossa existecircncia pessoal deparamo-nos com uma ldquoexistecircncia quase

impessoalrdquo na qual pertencemos primeiramente assim como um organismo

pertence antes a uma Ungebung para depois pertencer a uma Umwelt A

experiecircncia do recalque acaba portanto de nos clarear e confirmar a

existecircncia do nosso organismo como um solo originaacuterio e anterior a um

sujeito epistemoloacutegico um solo no qual a estrutura temporal de nossa

experiecircncia possibilita ldquoa fusatildeo entre a alma e o corpo no ato a sublimaccedilatildeo

da existecircncia bioloacutegica em existecircncia pessoal do mundo natural em mundo

cultural []rdquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 100) Nesta perspectiva salienta

Merleau-Ponty

Assim como se fala de um recalque no sentido estrito quando atraveacutes do tempo mantenho um dos mundos momentacircneos pelos quais passei e faccedilo dele a forma de toda minha vida ndash da mesma maneira pode-se dizer que meu organismo como adesatildeo preacute-pessoal agrave forma geral do mundo como existecircncia anocircnima e geral desempenha abaixo de minha vida pessoal o papel de um complexo inato Ele natildeo existe como uma coisa inerte mas esboccedila ele tambeacutem o movimento da existecircncia [] Com maior razatildeo o passado especiacutefico que eacute nosso corpo soacute pode ser reaprendido e assumido por uma vida individual porque ela nunca o transcendeu porque ela o alimenta secretamente e emprega nisso uma parte de suas forccedilas porque ele permanece seu presente como se vecirc na doenccedila em que os acontecimentos do corpo se tornam acontecimentos da jornada diaacuteria O que nos permite centrar nossa existecircncia eacute tambeacutem o que nos impede de centraacute-la absolutamente e o anonimato de nosso corpo eacute inseparavelmente liberdade e servidatildeo (MERLEAU-PONTY 1945 p 99-101)

Voltando ao fenocircmeno do membro fantasma a partir das

consideraccedilotildees acima devemos entendecirc-lo como ldquo[] a experiecircncia recalcada

um antigo presente que natildeo decide a tornar-se passado As recordaccedilotildees que

se evocam diante do amputado induzem um membro fantasma natildeo como no

associacionismo uma imagem chama uma outra imagem mas porque toda

recordaccedilatildeo reabre o tempo perdido e nos convida a retomar um olhar

diferenciado frente ao patoloacutegico aquele que deve partir do que Merleau-

Ponty denomina como a ldquoperspectiva do ser no mundordquo A experiecircncia do

215

membro fantasma se daacute portanto no entender do filoacutesofo porque as

excitaccedilotildees sensiacuteveis que ele traz consigo mantecircm ainda o membro amputado

no circuito da existecircncia Assim a posse de um ldquocorpo habitualrdquo eacute por

conseguinte uma necessidade proacutepria de uma existecircncia integrada Um

olhar filosoacutefico sobre o fenocircmeno do membro fantasma revela-nos por fim

uma compreensatildeo do homem natildeo mais como um psiquismo que

simplesmente se soma a um organismo mas pensando concretamente

como um ldquovai-vem da existecircnciardquo que vive entre o corporal e os atos

pessoais Nesta perspectiva a patologia expressaria justamente a

necessidade de reconhecer os acontecimentos aniacutemicos natildeo mais ora pela

fisiologia ora pela psicologia mas como um processo vital que estaacute

sobretudo ligado agrave existecircncia dado que o ldquodistuacuterbio dito somaacutetico delineia

comentaacuterios psiacutequicos sobre o tema do acidente orgacircnico e o distuacuterbio

ldquopsiacutequicordquo limita-se a desenvolver a significaccedilatildeo humana do acontecimento

corporalrdquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 104) Assim como assinala Merleau-

Ponty

Os motivos psicoloacutegicos e as ocasiotildees corporais podem se entrelaccedilar porque natildeo haacute um soacute movimento em um corpo vivo que seja acaso absoluto em relaccedilatildeo agraves intenccedilotildees psiacutequicas nem um soacute ato psiacutequico que natildeo tenha encontrado pelo menos seu germe ou seu esboccedilo geral nas disposiccedilotildees fisioloacutegicas Natildeo se trata nunca do encontro incompreensiacutevel entre duas causalidades nem de uma colisatildeo entre a ordem das causas e a ordem dos fins Mas por uma reviravolta insensiacutevel um processo orgacircnico desemboca em um comportamento humano um ato instintivo muda e torna-se sentimento ou inversamente um ato humano adormece e continua distraidamente como reflexo Entre o psiacutequico e o fisioloacutegico pode haver relaccedilotildees de troca que quase sempre impedem de definir um distuacuterbio mental como psiacutequico ou como somaacutetico (MERLEAU-PONTY 1945 p 104 grifo nosso)

Ora o que nos revela este modo de compreender o psiacutequico e o

fisioloacutegico a partir de ldquorelaccedilotildees de trocardquo nas quais se abre um campo de

existecircncia e de sentido Certamente em primeiro lugar a compreensatildeo de

que a espacialidade do ldquocorpo proacutepriordquo uma vez consagrada ao mundo

exige sobretudo uma ldquoespacialidade de situaccedilatildeordquo Eacute por esta razatildeo que uma

concepccedilatildeo cartesiana do corpo torna-se contraditaria uma vez que a uniatildeo

de corpo e alma era antes uma uniatildeo por justaposiccedilatildeo logo uma

216

espacialidade posicional Daiacute que uma compreensatildeo do ldquocorpo proacutepriordquo de

inspiraccedilatildeo cartesiana dava-se tatildeo-somente mediada por uma inspeccedilatildeo

ldquoespiritualrdquo desligada e separada da consciecircncia Eacute um ldquoobjetordquo para ela o

que faz consequentemente que exista uma posiccedilatildeo do corpo ante a

consciecircncia Em contrapartida para Merleau-Ponty pelo que pudemos notar

em sua leitura de Goldstein a espacialidade do ldquocorpo proacutepriordquo natildeo eacute

objetiva mas vivida eacute existencial Sem a orientaccedilatildeo do ldquocorpo proacutepriordquo

inclusive natildeo seria possiacutevel a espacialidade corporal uma vez que ldquoa

espacialidade do corpo eacute o desdobramento de seu ser de corpo a maneira

pela qual se realiza como corpordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 174) O que

isto significa A ligaccedilatildeo ao mesmo tempo entre espacialidade e motricidade

pois embora a espacialidade do ldquocorpo proacutepriordquo seja de situaccedilatildeo ela natildeo

seria possiacutevel sem a accedilatildeo e isto porque ldquoeacute na accedilatildeo que a espacialidade do

corpo se realizardquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 119) Ora compreendido

assim como se daria a relaccedilatildeo que o ldquocorpo proacutepriordquo estabelece com as

coisas que lhe satildeo exteriores

Desde o momento em que a espacialidade corporal aponta a um

horizonte na medida em que o ldquocorpo proacutepriordquo eacute no dizer de Merleau-Ponty

ldquo[] o terceiro termo sempre subentendido da estrutura figura-fundordquo

(MERLEAU-PONTY 1945 p 119) a realidade do espaccedilo estaacute no fato de que

a espacialidade externa das coisas unicamente se faz manifesta a noacutes na

relaccedilatildeo que elas mantecircm com o corpo com a espacialidade corporal Por sua

vez de acordo com o filoacutesofo sabe-se que a representaccedilatildeo exterior natildeo eacute

uma mera representaccedilatildeo dado que natildeo eacute para um ldquoeu pensordquo que se

evidencia a existecircncia real do espaccedilo exterior Haacute uma espacialidade das

coisas mas esta espacialidade estaacute em relaccedilatildeo direta com minha situaccedilatildeo

porquanto

O que eacute dado natildeo eacute somente a coisa mas a experiecircncia da coisa uma transcendecircncia em um rastro de subjetividade uma natureza que transparece atraveacutes de uma histoacuteria [] Para que percebamos as coisas eacute preciso que as vivamos [] Se o sujeito que percebe faz a siacutentese do percebido eacute preciso que ele domine e pense uma mateacuteria da percepccedilatildeo que organize e ligue ele mesmo do interior todos os aspectos da coisa quer dizer que a percepccedilatildeo perca sua inerecircncia a um sujeito individual e a um ponto de vista que a coisa perca sua transcendecircncia e sua opacidade Viver uma coisa natildeo eacute

217

nem coincidir com ela nem pensaacute-la de uma parte agrave outra Vecirc-se entatildeo nosso problema Eacute preciso que o sujeito perceptivo sem abandonar seu lugar e seu ponto de vista na opacidade do sentir dirija-se para coisas das quais antecipadamente ele natildeo tem a chave e das quais todavia ele traz em si mesmo o projeto abra-se a um Outro absoluto que ele prepara no mais profundo de si mesmo (MERLEAU-PONTY 1999 p 436)

Daiacute a conclusatildeo de que o corpo eacute o terceiro termo sempre

subentendido na estrutura figura-fundo pois a espacialidade das coisas

aparece sempre nesta estrutura captada pelo corpo A espacialidade corporal

e o espaccedilo exterior formam um ldquosistema praacuteticordquo Nele a espacialidade do

corpo serve de fundo no qual se destaca a espacialidade externa o que abre

espaccedilo a um outro elemento fundamental de nossa corporeidade que

tambeacutem apenas nos tornamos conscientes por meio do ldquoesquema corporalrdquo

trata-se aqui da motricidade Sem a motricidade corporal a espacialidade

externa permaneceria algo abstrato sem sentido e o corpo natildeo passaria de

um puro fragmento do espaccedilo Aqui estaacute pois em breves linhas uma

revisatildeo filosoacutefica tanto do conceito de ldquosubjetividaderdquo como do conceito de

ldquoobjetividaderdquo Em La Structure du comportement Merleau-Ponty jaacute havia nos

advertido que a alma e o corpo ldquonatildeo podem nunca distinguir-se sem deixar

de ser sua conexatildeo empiacuterica estaacute fundada sobre a operaccedilatildeo originaacuteria que

instala um sentido em um fragmento da mateacuteria e a faz habitar aparecer

serrdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 236) Por sua vez na Pheacutenomeacutenologie de la

perception nos diraacute algo semelhante ldquoO exterior e o interior satildeo

inseparaacuteveis O mundo estaacute inteiramente dentro e inteiramente fora de mim

Quando percebo esta mesa eacute mister que a percepccedilatildeo da superfiacutecie natildeo

ignore a dos peacutes sem o qual o objeto se deslocaria os movimentos de uma

melodia se unem sua sucessatildeo lhes eacute essencialrdquo (MERLEAU-PONTY 1945

p 466-7) O que estes textos nos revelam Antes de tudo a unidade

humana

218

SEGUNDA PARTE CRISE E FILOSOFIA O SENTIDO DA FEcircNIX

219

Capiacutetulo IV A CRISE DO ENTENDIMENTO E O SENTIDO DA HISTOacuteRIA

A HISTORIOGRAFIA FILOSOacuteFICA

Il y a un etat de lrsquohumaniteacute ougrave nous sommes et qui est 1) destructeur de la philosophie au sens ordinaire et classique 2) appelle cependant au plus haut point prise de conscience philosophique ndash Le ldquoPheacutenixrdquo dit Husserl (MERLEAU-PONTY 1996 p 39) Holz lautet ein alter Name fuumlr Wald Im Holz sind Wege die meist verwachsen jaumlh im Unbegangen aufhoumlren Sie heiβen Holzwege Jeder verlaumluft gesondert aber im selben Wald Oft scheint es als gleiche einer dem anderen Doch es scheint nur so Holzmacher und Waldhuumlter kennen die Wege Sie wissen was es heiβt auf einem Holzweg zu sein (HEIDEGGER 1952 Epiacutegrafe)

ldquo[hellip] But as when the bird of wonder dies the maiden phoenix her ashes new create another heir as great in admiration as herselfrdquo (SHAKESPEARE)117

41 A experiecircncia filosoacutefica da Verdade

O que faltaria pois a um modo de filosofar fundado em alicerces

intelectualistas Ora se a histoacuteria adquire um papel fundamental no Mundo

Moderno ndash contrariando os conselhos cartesianos ndash natildeo eacute de se admirar que

as suspeitas ou constataccedilotildees de uma ldquoconsciecircncia histoacutericardquo afetem tambeacutem

frontalmente a validade apodiacutetica neste momento de uma ldquoverdade

filosoacuteficardquo O que isto significa Quando se coloca em questatildeo a

autenticidade do labor filosoacutefico o que se atinge visceralmente satildeo antes de

tudo as relaccedilotildees com o passado natildeo de ldquosimples eventosrdquo mas do proacuteprio

pensamento Como se pode notar natildeo eacute sem motivo que o historicismo seja

qual for a sua versatildeo incomode tanto a filosofia No entanto nem por isso

deixa de lhe ser suscetiacutevel tornar-se viacutetima de seus afrontamentos e

repercussotildees O que resta agrave filosofia se aleacutem do naturalismo erguem-se

contra ela ao mesmo tempo a denuacutencia de ser uma mera reproduccedilatildeo do

117 Traduccedilatildeo ldquoQuando o paacutessaro fantaacutestico morre a fecircnix-fecircmea suas cinzas se reproduzem criando seu novo herdeiro tatildeo admiraacutevel quanto ela mesma forardquo (King Henry VIII Ato V cena 2)

220

passado ou produto do presente Como fica a ldquoverdade filosoacuteficardquo mediante a

arquitetocircnica de uma ldquoverdade histoacutericardquo

Para Merleau-Ponty pensar a experiecircncia filosoacutefica da verdade

ou a verdade de uma experiecircncia filosoacutefica significa pensar tanto o nosso

modo de acesso aos filoacutesofos ndash a nossa ldquopercepccedilatildeo das filosofiasrdquo ndash como o

proacuteprio exerciacutecio do entendimento118 Nesta perspectiva qual seria o sentido

de uma historiografia filosoacutefica Em suma caso se parta do pressuposto de

que na lida com os problemas filosoacuteficos encontra-se um diaacutelogo com

passado cujos desdobramentos uma simples philosophia perennis natildeo daria

mais conta que caminho melhor conduziria agrave compreensatildeo de uma historia

philosophica Com certeza se partirmos de Merleau-Ponty natildeo seraacute

seguindo a ldquoordre des raisonsrdquo nem muito menos sem as devidas

consideraccedilotildees apesar de seu inquestionaacutevel meacuterito os procedimentos das

Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie (Hegel)119 Quais seriam os

argumentos para esta recusa Em vaacuterios momentos o filoacutesofo nos deixa

claro o seu afastamento de uma compreensatildeo da Histoacuteria da Filosofia como

uma simples rememoraccedilatildeo do passado a tentaccedilatildeo em pensaacute-lo apenas por

ele mesmo Eacute preciso tambeacutem nas fibras de uma leitura do passado

compreender nossa eacutepoca o que noacutes pensamos e o que nos faz pensar

assim A partir do horizonte presente o passado eacute antes de qualquer coisa

(e)-vocado [eacutevoqueacute] chamado para fora de si chamado para o ldquosi mesmordquo do

hoje120 pensar o passado no horizonte do presente pelo simples fato de que

natildeo sabemos o que pensamos121 Em outros termos natildeo bastaria uma

118 Por conseguinte trata-se de verticalizar por exemplo com radicalidade uma revisatildeo do Cogito e da Ontologia presente na fundaccedilatildeo desse mesmo Cogito 119 O desconforto de Merleau-Ponty com a concepccedilatildeo hegeliana de Histoacuteria se daraacute especialmente a partir de suas leituras de Marx e de Weber Por sua vez seraacute a partir de sua concepccedilatildeo de Histoacuteria e de Filosofia conforme veremos nas seccedilotildees seguintes que se daraacute a sua recusa ao meacutetodo historiograacutefico de Gueacuteroult 120 Natildeo seria essa a preocupaccedilatildeo mesma de Descartes (DESCARTES 1996a) 121 Se uma das caracteriacutesticas da Crise eacute a presenccedila de ldquoruiacutenas de pensamentordquo parece-nos que podemos entender melhor o pensamento de Merleau-Ponty remontando-nos ao periacuteodo que denominara conforme jaacute vimos de Grande Racionalismo Trata-se antes aqui do que entendemos como os movimentos de uma histoacuteria da filosofia constantemente presente em Merleau-Ponty embora confessadamente expliacutecito e direto como em Martial Gueacuteroult Eacute certo que a intenccedilatildeo do filoacutesofo eacute em primeiro lugar compreender a sua eacutepoca tal como tivera a oportunidade de salientar em seus cursos no Collegravege de France O que visa natildeo eacute o

221

recusa do intelectualismo filosoacutefico em sua lida com as ciecircncias ou com o

que excedia os limites de seu territoacuterio seria preciso caso se quisesse ser

radical uma recusa das marcas que o intelectualismo havia deixado no que

a proacutepria Filosofia compreendia como seu modo de ldquooperarrdquo como seu

proacuteprio meacutetodo Caberia agrave Filosofia pois tornar-se um problema para si

mesma e em consequecircncia ao filoacutesofo repensar o seu proacuteprio modo de

interrogar e de se fazer ldquointerrogaccedilatildeordquo

Nesta perspectiva quando Merleau-Ponty nos acentua em seus

cursos no Collegravege de France que o que estaacute em jogo em seus trabalhos natildeo

se situa no acircmbito de uma Historia da Filosofia compreendemos que haja

muito mais do que uma simples confissatildeo frente agrave possiacutevel incompreensatildeo

dos tiacutetulos de um curso sobre Lrsquoontologie carteacutesienne et lrsquoontologie

drsquoaujourdrsquohui haja muito mais do que um modo de desculpar suas

digressotildees frente agrave tradiccedilatildeo e as constantes incursotildees aos problemas de sua

eacutepoca Para Lefort em contrapartida natildeo se encontraria senatildeo nestes

cursos e na proacutepria justificativa do filoacutesofo o esforccedilo em ler o presente em

encontrar uma ldquonova ontologiardquo o que distanciaria Merleau-Ponty de um

embate historiograacutefico Ora concordamos com Lefort no que se refere aos

desdobramentos da investigaccedilatildeo merleau-pontiana mas acreditamos

tambeacutem que ali uma reflexatildeo sobre a Histoacuteria da Filosofia esteja

passado compreendido por si mesmo (MERLEAU-PONTY 1996 p 163) mas a sua eacutepoca a ontologia e a filosofia de seu tempo Mas esta deacutemarche natildeo eacute uma marca dos uacuteltimos trabalhos podemos encontraacute-la jaacute em seus primeiros livros Assim eacute comum encontrarmos ao longo de toda a sua obra desvios cesuras direcionamentos ao passado especialmente no diaacutelogo com os cartesianos com o pensamento claacutessico Qual seria as razotildees Responde-nos o filoacutesofo ldquoPorque natildeo sabemos o que pensamos Mais faacutecil dizer em que natildeo somos cartesianosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 163) Parece-nos pois que haacute aqui uma deacutemarche filosoacutefica que emerge de uma constataccedilatildeo Logo poderiacuteamos reformular porquanto natildeo sabemos o que pensamos porquanto vivemos em uma crise das ciecircncias e do sentido na qual deparamo-nos constantemente com ldquoruiacutenas de pensamentosrdquo o retorno arqueoloacutegico ao passado ndash semelhante ao Ruumlck-gang heideggeriano (HEIDEGGER 1978 p 390) ndash pode nos ajudar a melhor nos situar em relaccedilatildeo ao presente Por conseguinte a proposta de Merleau-Ponty se encaminha na lateralidade de um movimento negativo ndash busca daquilo em que natildeo somos claacutessicos ndash que se daacute em um movimento positivo ndash compreensatildeo do passado em vistas do presente O retorno agrave histoacuteria da filosofia ao passado justifica-se pois dada a constataccedilatildeo de que ali estaria a gecircnese do presente no entanto natildeo enquanto resultado de uma cadeia de causalidade mas como a repercussatildeo ou o fruto de uma seacuterie de mudanccedilas que perderam o sentido de sua origem logo como o resultado dialeacutetico inerente a todo acontecimento histoacuterico

222

marcadamente implicada embora por uma via negativa Por conseguinte

natildeo entendemos a afirmaccedilatildeo de que ldquoisto natildeo eacute histoacuteria da filosofia passado

por si mesmo ndash mas passado evocado para compreender o que noacutes

pensamos ndash no horizonte do presenterdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p163)

como a negaccedilatildeo de uma discussatildeo historiograacutefica mas como a negaccedilatildeo de

um determinado modo de se fazer Histoacuteria da Filosofia e portanto a

indicaccedilatildeo da radicalidade que o pensador pretendia dar a seu projeto

filosoacutefico Pensar a histoacuteria a partir do presente tornar o presente um ldquojuiacutezo

de valorrdquo para entender o ldquopassadordquo natildeo seria a versatildeo moderna da

deacutemarche claacutessica No final natildeo ressuscitaria uma versatildeo intelectualista da

histoacuteria Se esta afirmaccedilatildeo natildeo tem sentido o que distanciaria o filoacutesofo do

modo claacutessico ou mesmo intelectualista de tratar a histoacuteria

42 A crise do entendimento e os entraves da historiografia claacutessica o problema da histoacuteria A Crise da Filosofia proveniente de certos ldquomodos de filosofarrdquo

nasce tambeacutem a nosso ver nos horizontes de uma compreensatildeo equivocada

de ldquohistoacuteriardquo Em outros termos partir do pressuposto de que haacute um

problema no ldquomodo de filosofarrdquo implica assinalar os limites de um

determinado modelo ldquohistoriograacuteficordquo Antes poreacutem precisamos entender

como a histoacuteria se torna problema Para Merleau-Ponty encontramos uma

indicaccedilatildeo no que considera a ldquocrise do entendimentordquo a qual por sua vez

encontra sua origem na cisatildeo criticista estabelecida a partir do problema do

conhecimento entre Entendimento e Razatildeo Enquanto a Razatildeo poderia se

dirigir ao conhecimento das coisas tais como satildeo em si mesmas o

Entendimento se contentaria com a finitude dos fenocircmenos Como ficaria

nesta perspectiva a histoacuteria Natildeo caberia pois agrave Razatildeo a compreensatildeo da

histoacuteria dado natildeo ser possiacutevel um conhecimento em si dos acontecimentos

histoacutericos A objetividade presente nos procedimentos do Entendimento

exigiria do conhecimento histoacuterico a sua subserviecircncia aos meacutetodos

utilizados na lida com os fenocircmenos fiacutesicos fazendo do passado um objeto

223

submetido a regras determinadas a um meacutetodo e sua certificada eficaacutecia

Qual seria a consequecircncia disto Como diraacute Merleau-Ponty

Frequentemente noacutes raciocinamos como se houvesse face-a-face uma filosofia que potildee no homem valores determinaacuteveis fora do tempo uma consciecircncia desligada de todo interesse pelo acontecimento ndash e ldquofilosofias da histoacuteriardquo que pelo contraacuterio situam no curso das coisas uma loacutegica oculta da qual teriacuteamos tatildeo-somente que receber o veredito A escolha neste caso seria entre uma sabedoria do entendimento que natildeo se preocupa em encontrar um sentido agrave histoacuteria e tenta unicamente flexionaacute-la continuamente segundo seus valores e um fanatismo que em nome de um segredo da histoacuteria inverteria nossas avaliaccedilotildees mais evidentes (MERLEAU-PONTY 1996 p 42)

A transposiccedilatildeo da histoacuteria ao territoacuterio da teoria claacutessica do

conhecimento acaba nos revelando no projeto moderno de dar cientificidade

agraves ldquoCiecircncias do Espiacuteritordquo por exemplo um procedimento de mesmo cunho

daqueles utilizados nas ldquoCiecircncias da Naturezardquo Aqui nos deparamos dentre

outros com um dos grandes equiacutevocos do pensamento que se sedimentou e

teve sua gecircnese no seacuteculo XVII122 O maior limite desta concepccedilatildeo

certamente seraacute o reducionismo no qual se considera apenas como histoacuterico

o que se encontra preso a um campo circunscrito de objetos123 Nisto

122 Neste sentido seguindo as trilhas heideggerianas proacuteximas das percorridas por Merleau-Ponty encontrariacuteamos paralela a um ldquoprocedimento de verificaccedilatildeo da leirdquo na investigaccedilatildeo experimental da Natureza segundo Heidegger nas ldquociecircncias do espiacuterito historiograacuteficasrdquo a ldquocriacutetica das fontesrdquo Ora o que podemos entender por essa expressatildeo Como Heidegger mesmo nos salienta ldquoeste nome assinala aqui a totalidade da pesquisa de fontes do inventaacuterio da garantia da avaliaccedilatildeo da conservaccedilatildeo e da interpretaccedilatildeo Eacute certo que a explicaccedilatildeo historiograacutefica fundada na criacutetica das fontes natildeo reconduz os factos a leis e regras Mas tambeacutem natildeo se limita a um simples relatar dos factos Nas ciecircncias historiograacuteficas assim como nas ciecircncias da natureza o procedimento tende a representar o permanente e a tornar a histoacuteria objecto A histoacuteria soacute pode tornar-se objectiva quando se tornou passado O que eacute consistente no passado aquilo com base no qual a explicaccedilatildeo historiograacutefica calcula o que eacute uacutenico e o que eacute muacuteltiplo na histoacuteria eacute o sempre-jaacute-sido-alguma-vez o comparaacutevel No permanente comparar de tudo com tudo o compreensiacutevel eacute calculado verificado e fixado como o plano da histoacuteriardquo (M Heidegger 1998 p 104-5) Por conseguinte ldquoeacute porque a historiografia enquanto investigaccedilatildeo projecta e objectiva o passado no sentido de um conjunto de efeitos limitados e explicaacuteveisrdquo ndash lembra-nos Heidegger ndash ldquoque exige como instrumento de objectivaccedilatildeo a criacutetica das fontesrdquo (HEIDEGGER 1998 p 105) 123 Consequentemente pensando em Heidegger seraacute histoacuterico tudo aquilo que se encontra em exata ldquocorrespondecircnciardquo e ldquoverificabilidaderdquo com um preacutevio e determinante conjunto de ldquofontesrdquo No entendimento histoacuterico portanto encontramos a constataccedilatildeo de uma eacutepoca do representar [(Vor)-stellen] de um mundo feito imagem de uma objetivaccedilatildeo do real lanccedilada

224

encontramos a impossibilidade de diaacutelogos por exemplo entre histoacuteria e

literatura histoacuteria e arte etc124 Nesta perspectiva sob os auspiacutecios do

criticismo o problema da histoacuteria torna-se em suma tatildeo-somente uma

indagaccedilatildeo acerca da possibilidade de uma ldquociecircncia da histoacuteriardquo

permanecendo ainda preso em um horizonte epistemoloacutegico que tem por

referecircncia e fundamento nada menos do que a Kritik der reinen Vernunft As

Ciecircncias da Natureza ainda serviam pois de referecircncia e modelo o que natildeo

deixaria de constituir tambeacutem uma simples Kritik der historischen Vernunft

Como nos adverte Merleau-Ponty

Quando se trata de conhecimento nossas relaccedilotildees com a histoacuteria satildeo do mesmo gecircnero que a de nossas relaccedilotildees com a natureza segundo Kant o entendimento historiador como o entendimento fiacutesico forma uma verdade ldquoobjetivardquo na medida em que constroacutei e o objeto eacute apenas um elemento de uma representaccedilatildeo coerente que pode ser retificada e precisada indefinidamente sem nunca confundir-se com a proacutepria coisa (MERLEAU-PONTY 1975b p 29)

De acordo com o filoacutesofo primeiramente em meio a este cenaacuterio

criticista presente na histoacuteria instaura-se conforme jaacute salientamos uma

crise no justo momento em que natildeo se tendo a devida ldquodistacircnciardquo caindo

por terra a exigida exterioridade o presente tambeacutem se torna um objeto de

investigaccedilatildeo Neste sentido como pensar a neutralidade exigida pelo

entendimento posto que ldquoa invasatildeo da histoacuteria pelo historiador natildeo poderaacute

ser evitadardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 29) Como ficariam as

ldquomatemaacuteticas relaccedilotildeesrdquo estabelecidas pelo rigor do meacutetodo entre sujeito e

objeto no caso o sujeito e o seu presente A consequecircncia deste impasse

acabara se tornando segundo o filoacutesofo a entrada no entendimento de

antinomias antes reservadas apenas ao exerciacutecio da Razatildeo Torna-se

incontornaacutevel a emergecircncia de um dualismo reinante entre um saber e uma

praacutetica que se tornam antagocircnicos visto que de um lado ldquoo saber

frente a um sujeito no caso o pesquisador123 Aquele que investiga a histoacuteria agora se torna um verdadeiro (sub)-iectum frente a um (ob)-iectum calculaacutevel determinaacutevel o passado 124 Pensando assim o que foge a esse campo natildeo tem outra alcunha senatildeo a de ldquoexceccedilatildeordquo o desvio indesejado e transgressor agraves ldquofontesrdquo entendidas aqui no sentido heideggeriano e por isso merecedor do descaso da ldquoRazatildeo Histoacutericardquo

225

multiplica os pontos de vista por meio de conclusotildees provisoacuterias abertas

motivadas isto eacute condicionaisrdquo e de outro a praacutetica faria o mesmo

ldquomediante decisotildees absolutas parciais injustificaacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY

1975b p 30) Quais a razotildees deste infortuacutenio Segundo Merleau-Ponty

estaria no esquecimento de que ldquotodas as instacircncias que se queriam opor agrave

histoacuteria tecircm tambeacutem sua histoacuteria e graccedilas a ela se comunicam com a

Histoacuteria embora tenham sua proacutepria maneira de usar o tempordquo (MERLEAU-

PONTY 1968 p 45) Por conseguinte o erro encontra-se na tentativa de se

legitimar uma cisatildeo entre o entendimento e a histoacuteria tal como se tentou

fazer entre espiacuterito e mateacuteria quando na verdade a verdadeira separaccedilatildeo

estaria entre ldquo[] a histoacuteria como deus desconhecido ndash gecircnio bom ou mau ndash e

a histoacuteria como meio de vidardquo (MERLEAU-PONTY 1968 p 45) pois

A histoacuteria eacute um meio de vida se entre a teoria e a praacutetica entre a cultura e o trabalho do homem entre as eacutepocas entre as vidas entre as accedilotildees deliberadas e o tempo em que estas accedilotildees aparecem haacute uma afinidade que natildeo seja fortuita nem se fundamente em uma loacutegica onipotente O ato histoacuterico eacute inventado e no entanto responde tatildeo bem aos problemas do tempo que eacute compreendido e seguido como que se incorpora ndash dizia Peacuteguy ndash agrave ldquoduraccedilatildeo puacuteblicardquo Haveria ilusatildeo retrospectiva ao projetaacute-lo no passado que ele transforma mas haveria ilusatildeo prospectiva ao fazer cessar o presente no umbral de um porvir vazio como se cada presente natildeo se prolongasse em direccedilatildeo a um horizonte futuro e como se o sentido de um tempo do qual decide a iniciativa humana natildeo fosse nada diante dela (MERLEAU-PONTY 1968 p 45)

Neste sentido no esquecimento destes movimentos

encontrariacuteamos os limites da historiografia claacutessica O fato eacute que nolens

volens tanto a histoacuteria eacute uma accedilatildeo como tambeacutem a accedilatildeo eacute tambeacutem histoacuteria

logo ldquoa condiccedilatildeo do historiador natildeo eacute tatildeo diferente daquela do homem de

accedilatildeo Ele transporta para aqueles cuja accedilatildeo foi decisiva reconstitui as suas

decisotildees refaz o que fizeram (com a diferenccedila de que conhece o contexto

melhor do que eles e jaacute sabe quais seratildeo as consequecircncias)rdquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 31) O problema da histoacuteria por conseguinte natildeo pode

ser apenas um problema epistemoloacutegico mas ldquoum problema inerente agrave

nossa vidardquo natildeo podendo pois furtar-se agrave ldquobusca pelo sentido do nosso

serrdquo Ora o que incomoda portanto a Filosofia em uma problematizaccedilatildeo da

226

historicidade A emergecircncia de sentido ou de sua necessidade no acircmago da

finitude humana Eacute neste sentido que nos diraacute o filoacutesofo

[] natildeo se pode conceber um conhecimento histoacuterico que seja rigorosamente objetivo porque a interpretaccedilatildeo e a perspectivaccedilatildeo do passado dependem das escolhas morais e poliacuteticas que o historiador fez por sua conta como aliaacutes estes daquela e que neste ciacuterculo em que se encerrou a existecircncia humana nunca pode abstrair de si para aceder a uma verdade nua e soacute comporta um progresso na objetivaccedilatildeo nunca uma objetivaccedilatildeo plena (MERLEAU-PONTY 1975b p 65)

Faz-se mister no entender de Merleau-Ponty compreender uma

historicidade aqueacutem da proacutepria subjetividade e que natildeo sendo simplesmente

uma coisa nasccedila no interior e na vivecircncia da proacutepria histoacuteria Disto

concluiraacute o pensador precisamos reconhecer que ldquonossa relaccedilatildeo com a

histoacuteria natildeo eacute pois somente a relaccedilatildeo do entendimento a do espectador

com o espetaacuteculordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 31) pois ldquonatildeo seriacuteamos

espectadores se natildeo estiveacutessemos comprometidos com o passado e a accedilatildeo

natildeo seria grave se natildeo concluiacutesse a empresa do passado e natildeo desse ao

drama seu uacuteltimo atordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 31) Ora natildeo seria

assim que Merleau-Ponty iria entender a ldquofilosofia da histoacuteriardquo de Marx Natildeo

haveria em Marx em sua criacutetica ao sistema hegeliano a ruptura com uma

tradiccedilatildeo idealista que se acreditava distante do criticismo e de suas

antinomias A nosso ver natildeo podemos entender a compreensatildeo merleau-

pontiana de histoacuteria nos afastando de suas leituras de Marx e tambeacutem

mutatis mutandis de Weber No que diz respeito a Marx para o filoacutesofo vale

lembrar que o marxismo natildeo eacute pois ldquo() uma filosofia do sujeito mas

tambeacutem natildeo eacute uma filosofia do objeto Eacute uma filosofia da histoacuteriardquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 76) Eacute assim que em seu Eacuteloge de la

Philosophie afirmava com veemecircncia ldquoA novidade de Marx como criacutetico de

Hegel natildeo estaacute pois em ter feito da produtividade humana o motor da

histoacuteria e em considerar a filosofia um reflexo de seu movimento ()rdquo

(MERLEAU-PONTY 1986 p 64) Pelo contraacuterio estaacute ldquo() em haver

denunciado o artifiacutecio pelo qual a filosofia introduzia o sistema na histoacuteria

para depois o encontrar laacute e reafirmar a sua onipotecircncia quando parecia

227

renunciar a elardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 64) Em Marx Merleau-Ponty

visualiza a criacutetica de uma histoacuteria universal uma vez que ldquoem Hegel o

filoacutesofo tanto aparece como o simples leitor de uma histoacuteria jaacute concluiacuteda o

paacutessaro de Minerva que soacute levanta vocirco ao entardecer como parece ser a

uacutenica personagem da histoacuteria pois eacute o uacutenico ser que natildeo a experimenta e a

compreende elevando-a a conceitordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 64) O

leitor de Hegel no entanto poderia logo levantar objeccedilotildees a estas palavras

pois o autor das Vorlesungen uumlber die Geschichte der Philosophie natildeo teria

feito da filosofia uma intelecccedilatildeo da experiecircncia histoacuterica no mesmo instante

em que fazia da histoacuteria o devir da filosofia

Para Merleau-Ponty esta mesma objeccedilatildeo na verdade oculta um

conflito Diraacute o filoacutesofo que ldquosendo a filosofia para Hegel saber absoluto

sistema totalidade a histoacuteria de que fala o filoacutesofo natildeo eacute verdadeiramente

histoacuteria isto eacute algo que se construa mas a histoacuteria universal

compreendida feita mortardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 63) Esta certeza

adquire sentido para Merleau-Ponty uma vez que ldquoinversamente uma

histoacuteria sendo puro fato ou acontecer introduz no sistema em que se

incorpora um movimento interior que o destroacuteirdquo (MERLEAU-PONTY 1986 p

64) Ao deduzir isto Hegel pode ser compreendido no dizer de Alain como

um sutil vendedor de sonhos ldquo() aqueles que lsquooferecem um sono cujos

sonhos satildeo precisamente o mundorsquordquo (ALAIN apud MERLEAU-PONTY 1986

p 64) pois

A histoacuteria universal de Hegel eacute o sonho da histoacuteria Como nos sonhos tudo o que eacute pensado eacute real tudo o que eacute real eacute pensado Os homens nada podem fazer que natildeo esteja jaacute compreendido no reverso das coisas no sistema E o filoacutesofo faz-lhes a concessatildeo de admitir que nada pode pensar que natildeo tenha sido feito por eles concedendo-lhes tambeacutem o monopoacutelio da eficaacutecia Mas como reserva para si o do sentido eacute na filosofia e soacute nela que a histoacuteria adquire sentido Poreacutem eacute o filoacutesofo que pensa e decreta a identidade da histoacuteria e da filosofia o que equivale a dizer que natildeo haacute identidade (MERLEAU-PONTY 1986 p 65)

Em Marx pensa Merleau-Ponty estas ideias adquirem um outro

colorido No jovem Marx o proacuteprio exerciacutecio da filosofia o seu privileacutegio e a

sua pretensatildeo de esgotar o real natildeo podem ser entendidos como um ato

228

gerador da histoacuteria mas como um fato histoacuterico em si mesmo Assim

imanente agrave vida humana encontramos uma racionalidade histoacuterica dado

que para o pensamento marxista ldquoa histoacuteria natildeo eacute jaacute apenas a ordem do

fato ou do real a que com a racionalidade a filosofia viria conferir direito de

existecircncia eacute o meio onde se forma todo o sentido e em particular o sentido

conceitual ou filosoacutefico no que tem de legiacutetimordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p

65) Assim ldquoaquilo a que Marx chama praacutexis eacute este sentido que se desenha

espontaneamente no entrecruzar das accedilotildees com que o homem organiza as

suas relaccedilotildees com a natureza e com os outros Natildeo eacute dirigida por uma ideia

de histoacuteria universal ou totalrdquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 66) Em Marx

Merleau-Ponty natildeo enxerga aquele poder exaustivo da filosofia que estava

presente em Hegel natildeo havendo tambeacutem a compreensatildeo do ato filosoacutefico

como o simples reflexo de uma histoacuteria que jaacute fora dada Pensando ainda no

jovem Marx ldquoa filosofia como conhecimento separado lsquodestroacutei-sersquo apenas

para se lsquorealizarrsquo A racionalidade passa do conceito para o centro da praacutexis

inter-humana e certos fatos histoacutericos assumem um significado filosoacutefico

neles vive a filosofiardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 67)

A partir do que jaacute assinalamos natildeo se pode concluir que exista a

possibilidade de se ldquo() transformar a dialeacutetica da consciecircncia em dialeacutetica

da mateacuteria ou das coisas quando se diz que haacute uma dialeacutetica nas coisas natildeo

pode ser senatildeo nas coisas enquanto pensadas de modo que ao fim e ao

cabo esta objetividade eacute o cuacutemulo do subjetivismordquo (MERLEAU-PONTY

1986 p 67) Pensando nisso ldquoMarx natildeo desloca a dialeacutetica para as coisas

mas sim para os homens considerados bem entendido com todo o seu

ingrediente humano e enquanto empenhados pelo trabalho e pela cultura

numa empresa que transforma a natureza e as relaccedilotildees sociaisrdquo (MERLEAU-

PONTY 1986 p 67) De modo reciacuteproco ldquoa contingecircncia do acontecer

humano deixa de ser jaacute uma falha na loacutegica da histoacuteria para ser a sua

condiccedilatildeo Sem ela a histoacuteria natildeo seraacute mais do que um fantasmardquo Em sua

leitura de Marx o filoacutesofo chega agrave conclusatildeo de que ldquoa histoacuteria natildeo tem

sentido se o seu sentido for concebido como o de um rio que sob a accedilatildeo de

causas todo-poderosas corre para um oceano no qual desaparecerdquo

(MERLEAU-PONTY 1986 p 68) pois ldquoqualquer recurso agrave histoacuteria universal

229

corta o sentido do acontecer torna insignificante a histoacuteria efetiva e eacute uma

maacutescara do niilismordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 68) Deste modo ldquo()

como o Deus exterior eacute um Deus falso tambeacutem a histoacuteria exterior jaacute natildeo eacute

histoacuteria Os dois absolutos rivais vivem apenas se no seio do ser se instalar

um projeto humano que os recuse e eacute na histoacuteria que o filoacutesofo aprende a

conhecer esta negatividade filosoacutefica a que se opotildee em vatildeo a plenitude da

histoacuteriardquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 68)

Ao ser compreendido a partir de si mesmo o pensamento

marxista no entender de Merleau-Ponty inova em sua compreensatildeo de

histoacuteria e no seu modo de se aproximar do fenocircmeno humano a partir de

suas relaccedilotildees Isto todavia natildeo ocorre na leitura de certos marxistas Pelo

contraacuterio afirma Merleau-Ponty ldquoteriacuteamos uma ideia bem estranha do

marxismo e de suas relaccedilotildees com a filosofia se focircssemos julgaacute-lo pelos

escritos de certos marxistas contemporacircneos Para estes visivelmente a

filosofia eacute inteiramente verbal desprovida de qualquer conteuacutedo e

significaccedilatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 71) Aqui de modo especial o

filoacutesofo pensa em autores como Naville Garaudy Herveacute Mounin entre

outros Merleau-Ponty natildeo poderia deixar de achar estranha a proposta de

Naville em pensar a economia poliacutetica a partir das ciecircncias da natureza

como tambeacutem a criacutetica de Cogniot aos ldquofiloacutesofos de cafeacuterdquo por definirem o

homem como natildeo-ser125 Assim levando-se em conta tais pensadores que se

diziam marxistas Merleau-Ponty conclui que apesar do fato de que ldquocada

um tem pleno direito de adotar a filosofia que lhe agrade como por exemplo

o cientificismo e o mecanicismo ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 71) por

outro lado ldquoeacute preciso saber e dizer que esse tipo de ideologia nada tem a ver

com o marxismordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 71) Diraacute o filoacutesofo que

125 Ao elogiar Descartes por natildeo cometer esse erro Cogniot se esquecia das notaacuteveis palavras cartesianas da segunda Meditaccedilatildeo ldquoeu natildeo sou esse conjunto de membros que se denomina corpo humano natildeo sou um ar tecircnue e penetrante disseminado por todos esses membros natildeo sou um vento um sopro um vapor nem algo que posso fingir e imaginar ()rdquo (DESCARTES 1973 p 261) No seio do pensamento cartesiano para decepccedilatildeo de Cogniot jaacute se podia visualizar conforme Merleau-Ponty como fissura uma certa ldquonadificaccedilatildeordquo

230

Uma concepccedilatildeo marxista da sociedade humana e em particular da sociedade econocircmica vendo-a em movimento rumo a um novo arranjo em cujo interior as leis da economia claacutessica natildeo mais se aplicaratildeo natildeo pode submetecirc-la a leis permanentes como as da fiacutesica claacutessica Em O Capital o esforccedilo de Marx tende justamente a mostrar que as famosas leis da economia claacutessica frequentemente apresentadas como traccedilos permanentes de uma ldquonatureza socialrdquo na realidade satildeo atributos (e maacutescaras) de uma certa ldquoestrutura socialrdquo ndash o capitalismo que evolui agrave sua proacutepria destruiccedilatildeo A noccedilatildeo de estrutura ou totalidade que parece merecer a desconfianccedila de Naville eacute uma categoria fundamental do marxismo Uma economia poliacutetica marxista soacute pode falar em leis no interior de estruturas qualitativamente distintas que devem ser descritas em termos de histoacuteria A priori o cientificismo surge como uma concepccedilatildeo conservadora pois nos leva a tomar aquilo que eacute momentacircneo como se fora eterno De fato na histoacuteria do marxismo o fetichismo da ciecircncia apareceu sempre do lado em que a consciecircncia revolucionaacuteria estava prostrada (MERLEAU-PONTY 1975b p 71-2)

Natildeo eacute mais vaacutelido procurar pensar a sociedade humana a partir

de leis naturais permanentes uma vez que ateacute mesmo na fiacutesica caso

pensemos aqui na fiacutesica moderna esta concepccedilatildeo da Natureza e de suas leis

eacute questionaacutevel ldquoLonge de eliminar a estrutura a fiacutesica moderna soacute concebe

suas leis no quadro de um certo estado histoacuterico do universo fornecido por

coeficientes empiacutericos dados como tais e que natildeo podem ser deduzidos de

sorte que natildeo nos oferece qualquer criteacuterio que nos permita consideraacute-lo

como definitivordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 72) Conforme indicaccedilatildeo de

Chauiacute (CHAUIacute 1975) caso prestemos atenccedilatildeo natildeo podemos deixar de notar

que no fundo Merleau-Ponty deseja desvencilhar o materialismo marxista

do materialismo cientificista Para isto o filoacutesofo precisa investigar como a

noccedilatildeo de mateacuteria se apresenta em Marx e como ela se difere de uma

concepccedilatildeo cientificista (CHAUIacute 1975) O que Marx entende por mateacuteria

Merleau-Ponty procura responder a esta indagaccedilatildeo lembrando-nos de que

ldquo() Marx falava de uma lsquomateacuteria humanarsquo isto eacute assumida no movimento

da praacutexisrdquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 69) Mateacuteria natildeo seria portanto no

pensamento marxista uma coisa natural que se manifesta em relaccedilotildees

partes extra partes Pelo contraacuterio as relaccedilotildees sociais eacute que constituem a

mateacuteria a qual o filoacutesofo se refere Assim tanto materialismo histoacuterico

quanto materialismo dialeacutetico natildeo eacute outra coisa senatildeo um certo

231

desdobramento de uma dialeacutetica do trabalho que por sua vez eacute o motor do

mundo histoacuterico e social126 ldquoA dialeacutetica ()rdquo como assinala Chauiacute ldquo() natildeo

eacute materialista porque passou do sujeito espiritual para a coisa material mas

porque passou para o mundo sensiacutevel Este eacute o mundo natural tal como eacute

visto trabalhado e conhecido pela praacutetica social e poliacutetica dos homensrdquo

(CHAUIacute 1975 p 73) Como enfatizaraacute ainda Chauiacute

No ensaio Em torno do Marxismo Merleau-Ponty dissera que a cultura era natural para o homem Com isto natildeo queria dizer que a cultura eacute um fato natural a ser explicado pelas ciecircncias da natureza mas que o conceito de natureza se transforma dialeticamente quando se estabelece sua relaccedilatildeo com a cultura isto eacute com as formas historicamente determinadas das relaccedilotildees sociais mediatizadas pelas relaccedilotildees dos homens com as coisas atraveacutes do trabalho (CHAUIacute 1975 p 73)

A compreensatildeo merleau-pontiana de Marx afasta-se das

possibilidades de uma leitura mecanicista do marxismo Na Pheacutenomeacutenologie

de la perception o filoacutesofo jaacute havia chegado agrave conclusatildeo de que ldquonatildeo

podemos livrar-nos do materialismo histoacuterico assim como da psicanaacutelise

condenando as concepccedilotildees lsquoredutorasrsquo e o pensamento causal em nome de

um meacutetodo descritivo e fenomenoloacutegico ()rdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p

633) Isso porque ldquo() assim como a psicanaacutelise o materialismo histoacuterico

natildeo estaacute ligado agraves formulaccedilotildees lsquocausaisrsquo que dele se puderam oferecer e

assim como ela ele poderia ser exposto em uma outra linguagemrdquo

(MERLEAU-PONTY 1999 p 633) Para Merleau-Ponty ldquoo materialismo

histoacuterico consiste tanto em tornar a economia histoacuterica quanto em tornar a

histoacuteria econocircmicardquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 633) pois

A economia na qual ele assenta a histoacuteria natildeo eacute como na ciecircncia claacutessica um ciclo fechado de fenocircmenos objetivos mas uma confrontaccedilatildeo entre forccedilas produtivas e formas de produccedilatildeo que soacute chega ao seu fim quando as primeiras saem do anonimato tomam consciecircncia de si mesmas e tornam-se assim capazes de pocircr em forma o futuro Ora a tomada de consciecircncia eacute evidentemente um fenocircmeno cultural e por aiacute podem introduzir-se na trama da histoacuteria todas as motivaccedilotildees psicoloacutegicas () A economia acha-se integrada agrave histoacuteria antes que a histoacuteria reduzida agrave economia O ldquomaterialismo

126 Aqui seguimos de perto a leitura que Chauiacute faz do pensamento merleau-pontiano em Marxismo e Filosofia assim como ela deixa expliacutecito em suas notas de traduccedilatildeo

232

histoacutericordquo nos trabalhos que inspirou frequentemente eacute apenas uma concepccedilatildeo concreta da histoacuteria que leva em consideraccedilatildeo aleacutem de seu conteuacutedo manifesto ndash por exemplo as relaccedilotildees oficiais entre os ldquocidadatildeosrdquo em uma democracia ndash o seu conteuacutedo latente quer dizer as relaccedilotildees inter-humanas tais como elas efetivamente se estabelecem na vida concreta Quando a histoacuteria ldquomaterialistardquo caracteriza a democracia como um regime ldquoformalrdquo e descreve os conflitos que atormentam esse regime o sujeito real da histoacuteria que ela procura recuperar sob a abstraccedilatildeo juriacutedica do cidadatildeo natildeo eacute apenas o sujeito econocircmico o homem enquanto fator da produccedilatildeo mas mais geralmente o sujeito vivo o homem enquanto produtividade enquanto ele quer dar forma agrave sua vida enquanto ama odeia cria ou natildeo obras de arte tem filhos ou natildeo os tem O materialismo histoacuterico natildeo eacute uma causalidade exclusiva da economia Seriacuteamos tentados a dizer que ele natildeo faz a histoacuteria e as maneiras de pensar repousarem na produccedilatildeo e na maneira de trabalhar mas geralmente na maneira de existir e de coexistir nas relaccedilotildees inter-humanas Ele natildeo reduz a histoacuteria das ideias agrave histoacuteria econocircmica mas as recoloca na histoacuteria uacutenica que ambas exprimem a histoacuteria da existecircncia social O solipsismo enquanto doutrina filosoacutefica natildeo eacute um efeito da propriedade privada mas na instituiccedilatildeo econocircmica e na concepccedilatildeo do mundo projeta-se uma mesma preferecircncia existencial de isolamento e desconfianccedila

(MERLEAU-PONTY 1999 p 633)

Pelo que notamos Merleau-Ponty procura fugir de um dualismo

que logo pode se erguer ao se estudar o ldquomaterialismo histoacutericordquo marxista no

qual se deveria optar pela certeza de que o drama da coexistecircncia tem uma

significaccedilatildeo puramente econocircmica ou pela certeza de que o drama

econocircmico se dissolve em um drama mais geral fazendo com que

acabaacutessemos nos defrontando com o espiritualismo A partir da noccedilatildeo de

existecircncia pensa o filoacutesofo esta alternativa acaba por ser superada Neste

sentido ldquouma teoria existencial da histoacuteria eacute ambiacutegua mas natildeo se pode

censurar essa ambiguidade pois ela estaacute nas coisasrdquo (MERLEAU-PONTY

1999 p 633) Para Merleau-Ponty inclusive ldquoeacute apenas com a aproximaccedilatildeo

de uma revoluccedilatildeo que a histoacuteria segue mais de perto a economia ()rdquo

(MERLEAU-PONTY 1999 p 633) Assim sendo ldquo() como na vida

individual a doenccedila sujeita o homem ao ritmo vital de seu corpo em uma

situaccedilatildeo revolucionaacuteria por exemplo em um movimento de greve geral as

relaccedilotildees de produccedilatildeo transparecem elas satildeo expressamente percebidas

como decisivasrdquo (MERLEAU-PONTY 1999 p 633) Ora ldquonem o conservador

nem o proletaacuterio tecircm consciecircncia de estar envolvidos em uma luta apenas

233

econocircmica e eles sempre datildeo agrave sua accedilatildeo uma significaccedilatildeo humanardquo

(MERLEAU-PONTY 1999 p 634) Por outro lado

() Uma concepccedilatildeo existencial da histoacuteria natildeo retira agraves situaccedilotildees econocircmicas seu poder de motivaccedilatildeo Se a existecircncia eacute o movimento permanente pelo qual o homem retoma por sua conta e assume uma certa situaccedilatildeo de fato nenhum de seus pensamentos poderaacute ser inteiramente desprendido do contexto histoacuterico em que vive e em particular de sua situaccedilatildeo econocircmica Justamente porque a economia natildeo eacute um mundo fechado e porque todas as motivaccedilotildees se ligam no interior da histoacuteria o exterior torna-se interior assim como o interior tornar-se exterior e nenhum componente de nossa existecircncia jamais pode ser ultrapassado Seria absurdo considerar a poesia de P Valeacutery como um simples episoacutedio da alienaccedilatildeo econocircmica a poesia pura pode ter um sentido eterno Mas natildeo eacute absurdo procurar no drama social e econocircmico no modo de nosso Mitsein o motivo dessa tomada de consciecircncia (MERLEAU-PONTY 1999 p 635)

Conforme Merleau-Ponty ao se colocar contra um materialismo

positivista e um idealismo dialeacutetico a contribuiccedilatildeo de Marx estaacute em inserir

tanto ldquomateacuteriardquo quanto ldquoconsciecircnciardquo em uma nova dimensatildeo aquela do

materialismo histoacuterico e do materialismo dialeacutetico pois como jaacute afirmamos

anteriormente mateacuteria seraacute conforme a compreensatildeo merleau-pontiana do

pensamento marxista

() as relaccedilotildees sociais entendidas como relaccedilotildees determinadas entre os homens mediadas por suas relaccedilotildees determinadas com as coisas Em uacuteltima instacircncia a dialeacutetica materialista eacute uma dialeacutetica do trabalho Natildeo o trabalho paciente do conceito como em Hegel mas o trabalho concreto dos homens sofrendo e fazendo a histoacuteria em condiccedilotildees determinadas isto eacute o trabalho inserido num modo de produccedilatildeo determinado (CHAUIacute 1975 p 75)

Ora a partir destas consideraccedilotildees podemos concluir com o

filoacutesofo que ldquoa histoacuteria eacute um objeto estranho um objeto que somos noacutes

proacuteprios mas onde nossa vida insubstituiacutevel nossa liberdade selvagem jaacute se

encontra prefigurada comprometida jaacute arriscada por outras liberdades hoje

passadasrdquo (CHAUIacute 1975 p 31) A histoacuteria torna-se apenas possiacutevel

consequentemente se houver uma ldquoloacutegica na contingecircnciardquo ldquouma razatildeo na

desrazatildeordquo uma ldquopercepccedilatildeo histoacutericardquo que ldquo[] como outra deixa em

segundo plano o que natildeo passar ao primeiro apreende as linhas de forccedila em

seu nascimento e conduz ao acabamento ativamente o traccedilado destas

234

mesmas linhasrdquo (MERLEAU-PONTY 1968 p 46)127 Por conseguinte tendo-se

em conta uma ldquofilosofia da histoacuteriardquo tal como se pode vislumbrar no

pensamento marxista ao retomarmos a nossa questatildeo inicial

compreendemos a conclusatildeo merleau-pontiana de que o dualismo criticista

presente na concepccedilatildeo claacutessica de histoacuteria funda-se sob um contra-senso O

entendimento tal como fora postulado em conformidade com a

epistemologia claacutessica desconsidera a relaccedilatildeo de sentido sem a qual natildeo

haveria histoacuteria mas uma mera representaccedilatildeo uma pura ficccedilatildeo Deste

modo

A compreensatildeo histoacuterica natildeo introduz portanto um sistema de categoria escolhido arbitrariamente apenas presume nossa possibilidade de termos um passado nosso de retomarmos em nossa liberdade a obra de tantas outras liberdades esclarecendo suas escolhas pelas nossas e as nossas pelas delas retificando umas pelas outras enfim nossa possibilidade de estar na verdade Natildeo haacute respeito maior objetividade mais profunda do que esta pretensatildeo de buscar seu conteuacutedo na proacutepria fonte onde a histoacuteria nasce A histoacuteria natildeo eacute um deus exterior uma razatildeo escondida de que soacute poderiacuteamos registrar as conclusotildees eacute o fato metafiacutesico pelo que a mesma vida a nossa corre em noacutes e fora de noacutes em nosso presente e em nosso passado de sorte que o mundo eacute um sistema com vaacuterias entradas ou caso se queira a afirmaccedilatildeo de que temos semelhantes (MERLEAU-PONTY 1975b p 40)

Para Merleau-Ponty a histoacuteria eacute antes de tudo uma ldquoinvenccedilatildeordquo

e natildeo uma simples descoberta Logo uma ldquotomada de consciecircnciardquo acerca da

histoacuteria significa na verdade a sua colocaccedilatildeo em forma a sua enformaccedilatildeo

[mise en forme] A ldquovivecircncia da histoacuteriardquo acompanha uma ldquoconsciecircncia da

histoacuteriardquo nasce em um determinado contexto dado natildeo estar previamente

pronta a histoacuteria surge quando ldquocomeccedilamos a falar delardquo No entanto natildeo

se trata de uma compreensatildeo idealista mas da ideia de uma histoacuteria

entendida antes em um movimento circular e isto porque seria ela a

proacutepria histoacuteria causa e efeito de seu conhecimento o que nos leva a

127 ldquoA histoacuteria tem sentido mas natildeo eacute um puro desenvolvimento da ideia constroacutei seu sentido no contato com a contingecircncia no momento em que a iniciativa humana funda um sistema de vida retomando os dados dispersos E a compreensatildeo histoacuterica que revela uma interioridade histoacuterica deixa-nos entretanto na presenccedila da histoacuteria empiacuterica com sua espessura e seus casos natildeo a subordina a nenhuma razatildeo escondidardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 35)

235

encontraacute-la apoacutes sua ldquoinvenccedilatildeordquo em um contexto onde ainda natildeo existia

poreacutem o paradoxo estaacute no fato de que tal ldquomovimento retroacutegradordquo soacute se

tornou possiacutevel apoacutes termos feito a experiecircncia de seu conhecimento Deste

modo natildeo haveria uma ruptura entre a ldquoconsciecircncia da histoacuteriardquo e a

ldquohistoacuteria-realidaderdquo ou mesmo entre a histoacuteria como ldquonomerdquo e como ldquocoisardquo

pelo contraacuterio o que se postularia antes seria um entrelaccedilamento de

conhecimento e experiecircncia de essecircncia e de fato Mas pensando na

circularidade da histoacuteria ndash aquela que nos situaria no intervalo entre o

sensiacutevel e o conceitual ndash o que acontece quando em determinado momento

passamos a ldquoviver e a pensar historicamenterdquo Para Merleau-Ponty neste

momento ao contraacuterio da constituiccedilatildeo de um ldquonovo objetordquo o que se efetiva

eacute sobretudo um novo modo de compreender o ldquotempordquo pois

Em todas as sociedades os homens sabem que haacute homens diante deles e vagamente ou precisamente sabem tambeacutem o que eles fazem Quando se colocam a viver e a pensar historicamente natildeo eacute um novo objeto que seu conhecimento se anexa eacute uma nova estrutura do tempo (uma nova relaccedilatildeo com os outros uma nova ideia do sentido e da verdade) que se estabelece (MERLEAU-PONTY 2000b p 205)

Eacute neste sentido que de acordo com Merleau-Ponty entre os

gregos natildeo encontramos a experiecircncia da histoacuteria Pelo contraacuterio ali natildeo se

tem uma compreensatildeo do tempo como ldquoponto de partidardquo mas um ldquoeterno

retornordquo o ldquoeterno retornordquo do mesmo a busca apenas pelo ldquoque eacuterdquo uma

visatildeo turva da ldquoespessura das geraccedilotildeesrdquo e dos mundos diferentes que

poderiam nascer Como diraacute o filoacutesofo ldquotudo se passa como se tivessem

recalcado em seus mitos as suas vertigens e o seu pessimismo Kronos

devora seus filhos haacute no centro do mundo uma potecircncia que natildeo daacute o ser

senatildeo para tiraacute-lordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 206) haja vista que ldquoo

tempo dos filoacutesofos eacute antes uma potecircncia que natildeo destroacutei o ser senatildeo para

recriaacute-lo uma cintilaccedilatildeo do ser um impulso ininterrupto que acrescenta o

ser ao ser e imita de seu meio o imutaacutevelrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p

206) Deste modo a compreensatildeo do tempo segue antes os ldquociclos da

naturezardquo o que faz com que seu ldquoarranquerdquo ou ldquoimpulsordquo seja na verdade

apenas um ldquoretornordquo uma vez que a ordem humana deveria ser apenas um

reflexo da ordem da Natureza que por sua vez ancorava sua perfeiccedilatildeo nos

236

fundamentos de uma total ausecircncia de movimento O que acontece poreacutem

quando se muda este modo de entender o tempo O que mudaria com os

ldquohomens da histoacuteriardquo

Para o filoacutesofo o surgimento de uma espeacutecie de ldquoatmosfera da

histoacuteriardquo na qual tudo o que eacute feito pelo homem traz consigo a ldquoabertura de

um campordquo faz com que algo seja sempre fundado instituiacutedo retomado e

antecipado Natildeo se tem mais a compreensatildeo do tempo como um ldquoimpulso

naturalrdquo que nos seria anterior mas sempre o ldquosentimento de algo por fazerrdquo

Neste momento Merleau-Ponty compara a experiecircncia do tempo agrave mesma

que fazemos ao acordar pois do mesmo modo que nos concentramos em

um objeto para ldquovoltarmos a ser uma condutardquo um comportamento uma

relaccedilatildeo viva com o meio ldquo[] o tempo mais antigo eacute convocado para assistir

ao que vai voltar a ser em noacutesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207) o que faz

de nosso presente no entender do filoacutesofo um ldquoempreendimentordquo pois ldquopor

mais que pensemos nossas instituiccedilotildees nossos planos invadem o porvir

descontam dele o seu aumento natildeo funcionam senatildeo no meio histoacuterico natildeo

satildeo como se diz lsquocondicionadosrsquo agrave histoacuteria ndash e instalam os homens sem se

dar conta disso na atmosfera da histoacuteriardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p

207)

No entanto esta dinacircmica da histoacuteria natildeo pode nos levar a crer

que seja ela apenas uma ldquosegunda naturezardquo que ainda mantenha a

causalidade e a finalidade da natureza e a sua ldquoastuacuteciardquo estaria justamente

ao se ldquoinsinuar nelasrdquo em fazer com que elas falem a ldquosua linguagemrdquo que

sejam ldquodesviadas de si mesmasrdquo e nos leve a uma histoacuteria que natildeo seja

absoluta que natildeo seja um ldquouniverso de imanecircnciardquo tal como podemos

vislumbrar na ideia de ldquoprogressordquo ou mesmo na insinuaccedilatildeo de uma ldquoloacutegica

da histoacuteriardquo que no fundo trazem consigo a crenccedila em ldquo[] uma potecircncia

que vela as mudanccedilas da histoacuteria como a natureza vela a nossa

permanecircnciardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207) Neste aspecto Merleau-

Ponty estaria a nosso ver proacuteximo de Gadamer ao identificar em Wahrheit

und Methode dentre os conflitos da historiografia claacutessica a ideia de uma

ldquohistoacuteria da decadecircnciardquo que exigiria do imaginaacuterio moderno a necessidade

de ainda copiar as receitas metodoloacutegicas das Ciecircncias da Natureza e isto

237

quando o que se estaacute em jogo eacute a sua elevaccedilatildeo ao patamar de ldquociecircnciardquo de

ldquoinvestigaccedilatildeo cientiacuteficardquo Daiacute no fundo ainda a busca pelo ldquoimpereciacutevelrdquo

pelo ldquoimutaacutevelrdquo (GADAMER 2004 p 37-38) Eacute o que nos parece confirmar

Merleau-Ponty

Desde que se pensa por exemplo que o mundo antigo trazia em si mesmo o capitalismo como a planta traz a semente desde que se

trata o passado como o simples esboccedilo do presente a preacute-histoacuteria

como chegada de uma histoacuteria inelutaacutevel e esta enfim como o

anuacutencio de um fim e de uma consumaccedilatildeo da histoacuteria restabelecemos o tempo histoacuterico sob a categoria do tempo natural

[] A Greacutecia era o que ela era e podia nada sair dela por completo

ou [mesmo sair] algo diferente do que dela saiu A loacutegica do desenvolvimento que conduz dela a noacutes foi apenas pensada e apenas foi porque o Ocidente criou o tipo de sociedade as condiccedilotildees

materiais e intelectuais que tornavam possiacutevel a ideia de um

universo econocircmico e portanto a da Greacutecia como sociedade ldquopreacute-

capitalistardquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207)

Para o filoacutesofo haacute na histoacuteria pelo que se pode notar uma

recusa em assumir a condiccedilatildeo de uma ldquosegunda naturezardquo um ldquouniverso de

imanecircnciardquo no qual as ldquodimensotildees do tempordquo seriam complementares O que

isto significa O que levaria o filoacutesofo a negar por exemplo a ideia de que

haveria uma ldquoenteleacutequiardquo pela qual o capitalismo seria fruto de um preacute-

capitalismo A suspeita de que ldquoa introspecccedilatildeo natildeo segue os traccedilos de uma

causalidade e de uma finalidade preacutevias []rdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p

207) E o que dizer entatildeo da gecircnese de um novo tempo histoacuterico ou mesmo

de um novo sistema Para o filoacutesofo ldquoeacute preciso dizer unicamente que se

arruinou a si mesmo que deixou o campo livre para outra coisa e que o

novo sistema natildeo era necessaacuterio entatildeo mesmo se o precedente natildeo fosse

mais possiacutevelrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 207) pois um tempo ldquo[] natildeo

traz em si seu futuro possiacutevel a natildeo ser na medida em que ele exclui certas

restauraccedilotildees impossiacuteveisrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 208)128 Daiacute no que

diz respeito agrave histoacuteria a conclusatildeo de Merleau-Ponty

128 A este respeito continua Merleau-Ponty ldquoTalvez um dia apareccedila na histoacuteria sob o nome de ldquopreacute-socialismordquo Se isto acontecer aconteceraacute porque o socialismo teraacute se instituiacutedo e natildeo porque ele aguardava oculto no coraccedilatildeo do capitalismo E isto aconteceraacute por caminhos e desenvolvimentos que natildeo satildeo necessariamente os que deixam prever a anaacutelise do

238

O conceito de histoacuteria representa uma aquisiccedilatildeo capital da filosofia com a condiccedilatildeo de que natildeo a empreguemos como uma anti-metafiacutesica Por muito que substitua a metafiacutesica ao contraacuterio ela traz uma luz incomparaacutevel agrave mais profunda das questotildees metafiacutesicas o que eacute esta verdade que nasceu e que morreraacute o que eacute este sentido que retoma seus antecedentes sem poder se encerrar neles nem em seu futuro o que eacute esta afinidade que faz com que no simultacircneo e no sucessivo o homem interesse ao homem Natildeo como o animal interessa o animal porque se assemelham ou se completam mas na diferenccedila e na rivalidade natildeo na monotonia da natureza mas na desordem da histoacuteria Haacute uma descoberta da histoacuteria mas natildeo eacute a de uma coisa de uma forccedila ou de um destino eacute a de uma interrogaccedilatildeo e caso se queira de uma anguacutestia (MERLEAU-PONTY 2000b p 208)

Ora pensando na historiografia filosoacutefica como iriam ecoar

estas questotildees Seria esta tambeacutem a concepccedilatildeo de histoacuteria que

encontrariacuteamos ou antes haveria ali uma tendecircncia em marchar tambeacutem

segundo as antinomias impostas pelo criticismo A este respeito natildeo

podemos deixar de salientar que tendo em vista as contradiccedilotildees de uma

historiografia marcada pelo modelo das Ciecircncias da Natureza paralela a ela

surgiria tambeacutem toda uma tradiccedilatildeo fundamentada na claacutessica distinccedilatildeo

entre ldquoexplicaccedilatildeordquo (Erklaumlren) e ldquocompreensatildeordquo (Verstehen)129 Diferentemente

das ldquoCiecircncias da Naturezardquo marcada pela ldquoexplicaccedilatildeordquo precisa de uma

relaccedilatildeo causal as ldquoCiecircncias do Espiacuterito Historiograacuteficasrdquo conforme esta

tradiccedilatildeo iriam se guiar pelo meacutetodo compreensivo a saber pelo

empreendimento de retirada do que haacute de sentido nos fatos humanos O que

natildeo se podia mais legitimar era o esforccedilo positivista em natildeo levar em conta

os procedimentos proacuteprios de apreensatildeo de nossas ldquovivecircnciasrdquo130 No

capitalismo no seacuteculo XIX Talvez este futuro comece em pontos de nosso sistema aos quais natildeo prestamos atenccedilatildeo e que poderiacuteamos jaacute localizar se olhaacutessemos mais livremente o presente para adivinhar o que faraacute sua figura definitiva diante do futurordquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 208) 129 Trata-se aqui especialmente de Droysen e Dilthey 130 Ao contraacuterio de ser o sujeito epistemoloacutegico especialmente em Dilthey considerava-se a vida o cerne da existecircncia humana O pensamento eacute formado pelo ldquotrabalho da vidardquo o que natildeo daacute voz a uma relatividade histoacuterica A soluccedilatildeo natildeo estaacute simplesmente em somar como que por mera adiccedilatildeo um horizonte temporal agravequilo que pode ser considerado como incondicional Pelo contraacuterio a vida eacute o fundamento da relatividade ou seja ldquoa temporalidade do incondicionalrdquo o ldquoincondicional no tempordquo Todavia a este respeito vale lembrar que de acordo com Gadamer (2004) Dilthey parecia ainda natildeo trazer consigo in thesi a pergunta pela histoacuteria e se manter no horizonte kantiano de uma indagaccedilatildeo das

239

entanto esta cisatildeo seria suficiente Teria a separaccedilatildeo entre ldquoexplicaccedilatildeordquo e

ldquointerpretaccedilatildeordquo resolvido de vez os impasses criados por esta espeacutecie de

ldquonaturalismordquo do discurso histoacuterico Da sua parte seria por esta distinccedilatildeo

de territoacuterios que marcharia tambeacutem a historiografia filosoacutefica

Antes poreacutem de refletirmos sobre a legitimidade desta

separaccedilatildeo torna-se necessaacuterio por sua vez verificarmos a suspeita de que

em um primeiro momento antes da descoberta da ldquocompreensatildeordquo ou

mesmo na tentativa de negaacute-la o historicismo acabara deixando no proacuteprio

discurso histoacuterico algumas consequecircncias e a principal delas no afatilde de

salvar o que teria de legiacutetimo em sua objetividade foi justamente a projeccedilatildeo

de uma historiografia tida como ldquoimparcialrdquo na qual o passado poderia ser

contemplado sem as interferecircncias desvirtuantes do proacuteprio historiador e de

sua eacutepoca Em outros termos seria o caso pois antes de pensarmos a sua

possibilidade verificarmos como essa cisatildeo se encarna no proacuteprio discurso

filosoacutefico uma vez que paralelamente aos movimentos da histoacuteria e de sua

metodologia precavida a filosofia jaacute tinha tomado uma direccedilatildeo que lhe

podia tambeacutem servir de defesa a saber a ideia de que diferentemente de

uma histoacuteria dos fatos a histoacuteria das ideias na condiccedilatildeo de doutrina natildeo se

encontraria associada a um ldquoacontecimento histoacutericordquo131 o que lhe afastaria

de qualquer possibilidade de determinaccedilatildeo (MONDOLFO 1963 p 41)132

Frente a tal medida preventiva acreditou-se que a histoacuteria do

pensamento teria se livrado daquele paradoxo que assombrava o historiador

dos ldquoacontecimentosrdquo a saber o conflito entre um ideal de objetividade e os

ataques do historicismo e o que permitia isto era justamente o fato de que

possibilidades epistemoloacutegicas da proacutepria histoacuteria embora proponha uma metodologia agraves Ciecircncias do Espiacuterito 131 Cabe-nos pesquisar futuramente em outra oportunidade como ficaria essa problemaacutetica relacionada agrave noccedilatildeo heideggeriana de Ereignis e qual seria a posiccedilatildeo de Merleau-Ponty 132 Eacute por isso que conforme Mondolfo nos adverte na historiografia filosoacutefica podemos vislumbrar a realizaccedilatildeo do famoso dictum de Ranke ldquoAcostumou-se atribuir agrave histoacuteria a tarefa de julgar o passado instruindo assim o presente em benefiacutecio dos tempos futuros Mas nosso trabalho natildeo aspira a uma tal funccedilatildeo eminente e soacute pretende mostrar como sucederam realmente as coisas (will bloβ zeigen wie es eigentlich gewesen)rdquo (MONDOLFO 1963 p 40) Logo ldquoacima de tudo o que importa eacute natildeo lsquojulgar o passado [filosoacutefico neste caso] em benefiacutecio do presenterdquo jaacute que a histoacuteria da filosofia pretende mostrar primeiramente lsquocomo se pensou realmentersquordquo (MONDOLFO 1963 p 42-3)

240

natildeo tendo por interesse conhecer o passado a tarefa radicava-se em verificar

se a arquitetocircnica argumentativa que formava uma obra do pensamento

poderia ser considerada vaacutelida em conformidade com paracircmetros loacutegicos da

proacutepria razatildeo o que era possiacutevel por se tratar de ldquoideias abstratasrdquo Teria

sido tal incursatildeo suficiente para lhe salvar dos paradoxos que viriam sofrer

em geral uma ldquohistoacuteria dos acontecimentosrdquo e sua historiografia Natildeo teria

sofrido a filosofia do mesmo infortuacutenio de Eacutedipo ao tentar fugir de seu

ldquodestinordquo O fato eacute que esta ldquohistoriografia filosoacuteficardquo densamente

intelectualista trazia ainda consigo o ideaacuterio de uma imparcialidade

esboccedilada em uma tarefa de ldquoexplicaccedilatildeordquo (Erklaumlren) tal como no manuseio da

ldquoobjetidade cientiacuteficardquo Assim ela natildeo teria outro destino senatildeo as medidas

de um ldquosujeito imparcialrdquo No final das contas ao privilegiar a ldquoexplicaccedilatildeordquo a

historiografia filosoacutefica ainda permaneceria cativa da concepccedilatildeo claacutessica de

ldquohistoacuteriardquo que no fundo aqueacutem do criticismo apontava antes um fundo

claacutessico Eacute neste sentido que para Merleau-Ponty esta tradiccedilatildeo se

encontrava em meio a um impasse o mesmo impasse que a condenava ao

fracasso Em especial qual seria o ldquoalvordquo de sua criacutetica Quem melhor

expressaria essa tradiccedilatildeo Nos movimentos de qual historiografia filosoacutefica

encontrariacuteamos ainda as sombras e os fantasmas deste modo barroco de

tratar a histoacuteria

A nosso ver trata-se aqui do meacutetodo estrutural-geneacutetico de

Martial Gueacuteroult No que lhe diz respeito apesar da sua inquestionaacutevel

importacircncia para uma reflexatildeo acerca da filosofia e sua histoacuteria vale-nos

dizer que segundo Merleau-Ponty ainda faltaria ao meacutetodo gueroultiano

uma ldquoradicalidaderdquo A ressalva de Merleau-Ponty emerge justamente na

leitura que Gueacuteroult faz da obra de Descartes Como assinala o proacuteprio

Merleau-Ponty agraves margens de uma de suas notas ineacuteditas ldquoBem entendido

natildeo haacute nada a dizer contra uma leitura completa e que segue a ordem das

razotildees Resta saber se ela eacute suficiente noacutes dizemos [se eacute suficiente] agrave

proacutepria histoacuteria da filosofiardquo (MERLEAU-PONTY NBNF Vol VI (67 verso)) O

que o filoacutesofo pretendia dizer com estas palavras A seguir tentaremos

encontrar uma possiacutevel resposta a esta questatildeo Vejamos

241

43 O horizonte intelectualista de fundo cartesiano presente na histoacuteria da filosofia ldquoa ordem das razotildeesrdquo ndash Da leitura de Descartes agrave historiografia filosoacutefica No cerne da recusa de Merleau-Ponty agrave historiografia filosoacutefica

tradicional certamente encontramos as criacuteticas feitas muitas vezes

discretas ao meacutetodo estrutural-geneacutetico de Gueacuteroult A criacutetica a Gueacuteroult

natildeo se daacute seguindo o modo tal como ela se apresenta em Merleau-Ponty no

sentido de desmerecer seus trabalhos de historiografia filosoacutefica mas

apontar alguns de seus limites Neste sentido partimos do pressuposto de

que a leitura de Descartes retratada em seu ceacutelebre livro Descartes seacutelon

lrsquoordre des raisons acabara por se instituir como um dos fundamentos de

sua historiografia tornando-a pois em alguns aspectos cartesiana133 Por

conseguinte iremos nos centrar especialmente no prefaacutecio desta obra ndash logo

em um texto sobre Descartes e natildeo propriamente sobre historiografia

filosoacutefica134 ndash por perceber ali uma espeacutecie de esboccedilo programaacutetico de seu

meacutetodo o que Deleuze parece nos corroborar como veremos mais adiante

aleacutem de tantos outros filoacutesofos que confirmam a importacircncia deste livro

importacircncia que transcende o acircmbito de uma simples monografia filosoacutefica

sobre um autor claacutessico do seacuteculo XVII

Nossa pretensatildeo seraacute pois assinalar como problemaacutetica a

instauraccedilatildeo ou a insinuaccedilatildeo de que a leitura proacutepria a um determinado

filoacutesofo possa instituir-se como modelo na leitura de outras filosofias

vislumbrando nisto alguns pressupostos proacuteprios ao ideaacuterio iluminista no

tratamento da histoacuteria Nossa incursatildeo a Descartes nas linhas a seguir natildeo

se daraacute no sentido de estudaacute-lo mas de ver como haveria uma relaccedilatildeo entre

a leitura de seus textos e o meacutetodo historiograacutefico em questatildeo Pensando

nisso nossa principal questatildeo seraacute a de compreender por que a partir de

133 ldquoOr il semble qursquoune fois satisfaites les exigences de la critique historique la meilleure meacutethode ce soit bien en lrsquoespegravece drsquoanalyser les structures de lrsquooeuvre Reommandable pour toutes les philosophies cette analyse paraicirct ici particuliegraverement neacutecessairerdquo (GUEacuteROULT 1968 vol 1 p 12) 134 Centramo-nos especialmente neste texto talvez em prejuiacutezo de tantos outros textos ceacutelebres de Gueacuteroult sobre historiografia filosoacutefica por considerar ali tambeacutem estarem mais bem expressas as questotildees que procuraremos elucidar

242

uma compreensatildeo da Filosofia e da proacutepria Razatildeo como experiecircncia do

pensamento haveria em Merleau-Ponty uma constante insatisfaccedilatildeo em

relaccedilatildeo ao meacutetodo estrutural-geneacutetico e isso apesar de suas inquestionaacuteveis

contribuiccedilotildees

Conforme Gueacuteroult uma leitura seacuteria de qualquer filosofia deve

abandonar antes de tudo os ldquojogos de reflexatildeordquo que se esquecem de

subordinar a compreensatildeo agrave explicaccedilatildeo Tendo por referecircncia Victor Delbos

o filoacutesofo procura fugir das ilusotildees que invadem todo aquele que pretende

compreender uma filosofia prescindindo da (ex)-plicaccedilatildeo de um exerciacutecio

racional de ldquodesdobramentosrdquo de ideias Compreendendo apenas a si mesmo

o leitor natildeo tem outro destino senatildeo o de se tornar uma viacutetima da ldquofantasiardquo

deixando o entendimento exilado em algum caacutercere distante Pelo contraacuterio

longe do vocirco de Iacutecaro o leitor deve se prender ou melhor se deixar prender

pelas ldquoredes estreitas de um textordquo135 Ora tenhamos pelo pensamento o

devido respeito natildeo eacute ele um ldquomonumentordquo semelhante ao pensador de

Rodin a uma fortaleza agrave la Vauban Frente ao monumento pouco importam

as luzes que na histoacuteria jaacute o iluminaram Pouco importa a histoacuteria a

recomendaccedilatildeo de Descartes eacute justamente que fechemos o livro de histoacuteria

caso ela nos ldquodesencorajerdquo136 Eacute preciso abandonar toda ldquoteoria romanceadardquo

que tenha por vista a ldquocompreensatildeordquo como procedimento de leitura filosoacutefica

Como deixar de ser uma mariposa que apenas nas noites de veratildeo encontra

a verdade por acaso137 A resposta de Gueacuteroult eacute direta centremo-nos nas

estruturas arquitetocircnicas que constituem um texto O que isto significa

135 Movimento que se expressa tatildeo bem pelo verbo francecircs srsquoempieacuteger na ideia de um ldquoenvolvimento reciacuteprocordquo 136 ldquoLa veacuteriteacute historique est ce qursquoelle est Il faut fermer les livres drsquohistoire si elle vous rebute On se gardera en tout cas de la travestir pour la rendre plaisante Crsquoest le conseil que Descartes nous donne pour toutes les espegraveces de veacuteriteacute y compris celles qui nous concernent nous-mecircmes lsquoJe nrsquoapprouve point qursquoon tacircche agrave se tromper en se repaissant de fausse imaginations Crsquoest pourquoi voyant que crsquoest une plus grande perfection de connaicirctre la veacuteriteacute encore mecircme qursquoelle soit agrave notre deacutesavantage que de lrsquoignorer jrsquoavoue qursquoil vaut mieux ecirctre moins gai et avoir plus de connaissance Aussi nrsquoest-ce pas toujours lorsqursquoon a le plus de gaicircteacute qursquoon a lrsquoesprit plus satisfait au contraire les grandes joies sont ordinairement mornes et seacuterieuses et il nrsquoy a que les meacutediocres et passagegraveres qui soient accompagneacutees du risrsquordquo (GUEacuteROULT 1968 p 13) 137 ldquoIl est possible en effet de srsquoimaginer comprendre sans expliquer lorsque croyant comprendre autrui on ne fait que se comprendre soi-mecircme Cette illusion ne manque pas

243

O texto eacute sobretudo constituiacutedo por uma rede precisa de um

rigoroso encadeamento de ideias Nada mais distante da filosofia pensa

Gueacuteroult que o esquecimento do texto que a certeza de que o ldquodemocircnio da

filosofia natildeo faz caso do textordquo Ora como isto eacute possiacutevel Neste momento o

filoacutesofo natildeo deixa de lanccedilar uma linha do Fausto Ich Bin der Geist der stets

verneint138 O que eacute um espiacuterito O que eacute o ldquodemocircniordquo da Filosofia Na fala

de Mefistoacutefeles Gueacuteroult vislumbra a ilusatildeo e o deliacuterio do modo como os

filoacutesofos satildeo geralmente lidos Se a Filosofia tem algum democircnio com

certeza ele natildeo nega o texto ele natildeo eacute um fantasma enganador como o de

Goethe A Filosofia natildeo se ilude com fumaccedilas natildeo gosta de ldquojogosrdquo natildeo se

afirma por aquilo que ela natildeo eacute quer dizer pelo seu contraacuterio ou por sua

negaccedilatildeo O filoacutesofo natildeo frequenta o Oraacuteculo de Delfos Se Gueacuteroult

descrevesse o ldquodemocircniordquo da Filosofia certamente ele deixaria de lado as

sacerdotisas do Templo de Apolo Talvez diria que ousemos afirmar ldquoo

democircnio da filosofia natildeo faz caso da sibilardquo O texto natildeo exige para ser

decifrado nada menos do que uma teacutecnica que o filoacutesofo gentilmente nos

oferece a) a criacutetica propriamente dita b) a anaacutelise das estruturas

(GUEacuteROULT 1968 p 10)

Longe dos ldquoardisrdquo da interpretaccedilatildeo natildeo nos espanta que

Gueacuteroult se vanglorie do abandono do ldquotemperamento do inteacuterpreterdquo da

ldquosituaccedilatildeo existencialrdquo No entanto haacute um caso em que a ldquointerpretaccedilatildeo eacute

vaacutelidardquo quando desejamos conhecer ldquoreaccedilotildees pessoaisrdquo de um grande

pensador Nos outros casos qualquer incompatibilidade de interpretaccedilatildeo

deve ser entendida como um erro pois como nos ensina a Regula X ldquotodas

as vezes que dois homens versam um julgamento contraacuterio sobre a mesma

de naicirctre lorsque la fantasie lrsquoemporte sur lrsquoentendement On satisfait alors agrave une imagination vive et impatiente qui plutocirct que de srsquoempieacuteger dans les mailles eacutetroites drsquoun texte trouve en celui-ci lrsquooccasion de prendre librement son vol quitte agrave revenir de temps en temps se percher sur des reacutefeacuterences piqueacutees au bas de pages Ces geacuteneacutereuses effusions qui procegravedent par illuminations plutocirct que par stricte analyse peuvent sans doute rencontrer ccedilagrave et lagrave quelque veacuteriteacute mais comme par une heureuse fortune tel le papillon de nuit qui vient herteur par harsard le globe lumineux autour duquel il tourne Si elles peuvent procurer le sentiment du lsquocomprendrersquo crsquoest au profit drsquoune doctrine romanceacutee ougrave le roman impose agrave la doctrine des perspectives et un climat eacutetrangersrdquo (GUEacuteROULT 1968 p 9) 138 ldquoEu sou o espiacuterito que negardquo

244

coisa eacute certo que um dos dois se engana Aleacutem disso nenhum dos dois

possui a verdade pois se houvesse uma visatildeo clara e niacutetida poderia expocirc-la

a seu adversaacuterio de tal modo que acabaria por forccedilar sua convicccedilatildeordquo

(GUEacuteROULT 1968 p 10) O proacuteprio Gueacuteroult nota a pouca probabilidade

desta regra pois sabe das artimanhas da imaginaccedilatildeo frente o entendimento

Como resolver este problema Abandonando a preocupaccedilatildeo pela

ldquoexclusividade da verdaderdquo para pensar na ldquoaplicaccedilatildeo do meacutetodordquo Neste

movimento todavia Gueacuteroult esquece-se de pensar algo significativo a

incursatildeo para o meacutetodo resolve o problema da verdade A essa indagaccedilatildeo

talvez Gueacuteroult nos lembre do significado na cadeia das razotildees do Malin

Geacutenie Essa pergunta nesse momento pouco importa agrave arquitetocircnica do

texto O importante eacute que destas observaccedilotildees foi possiacutevel encontrar uma

ldquoanaacutelise particularmente necessaacuteriardquo para se ler Descartes e ldquorecomendaacutevelrdquo

a toda e qualquer obra filosoacutefica

Seguindo as recomendaccedilotildees de Descartes natildeo deixaremos de

entendecirc-lo de entendecirc-lo como ele gostaria de ser entendido honrosamente

por meio de um rationum nexus de um encadeamento racional totalmente

distante do non-sens da sucessatildeo biograacutefica da simples sequecircncia das

mateacuterias de temas e problemaacuteticas parciais Seguindo a ordem das razotildees eacute

possiacutevel explicar com exatidatildeo o pensamento cartesiano o pensamento

que como um monumento oferece ao entendimento a capacidade de

vislumbrar sua eternidade A cadeia das razotildees sabe muito bem acorrentar

as ideias que constituem a arquitetocircnica de um pensamento Com a

dignidade de quem deixa de ser como a Obra de Arte ldquosimples possibilidade

material de agir sobre a sensibilidade esteacutetica do sujeitordquo (GUEacuteROULT 1968

p 11) o pensamento resiste agraves injuacuterias assim como o pensador de Rodin a

toda leitura ldquoneuroacuteticardquo que possa acusaacute-lo de ansiedade depressatildeo ou

qualquer outra psicastenia A psicologia de Janet como toda psicologia natildeo

tem espaccedilo no gabinete de um filoacutesofo seacuterio que natildeo se deixa levar por

esvoaccedilantes deliacuterios Uma explicaccedilatildeo filosoacutefica portanto deve estar fechada

hermeticamente a toda leitura que se espraie pelo psicoloacutegico do mesmo

modo que natildeo se deve deixar iludir pela Histoacuteria mesmo ela no intuito de se

fazer ldquoapraziacutevelrdquo tenha sido travestida

245

Para o autor de Descartes selon lrdquoordre des raisons a criacutetica

propriamente dita se faz presente nas obras de Gilson Gouhier Laporte

dentre outros Poreacutem a anaacutelise das estruturas segundo ele apesar dos

esforccedilos de Brunschvicg eacute algo ainda por fazer algo que o seu livro procura

inaugurar apesar do despretensioso desejo de natildeo se prender agrave hybris da

ldquoinovaccedilatildeordquo Ler uma filosofia insiste Gueacuteroult natildeo eacute separar o ldquojoio do trigordquo

buscar o que haacute de verdadeiro em uma doutrina pensada per si frente agrave sua

recepccedilatildeo nas ciecircncias O segredo estaacute na anaacutelise objetiva das estruturas

Este procedimento no entanto natildeo seria vaacutelido apenas para Descartes O

filoacutesofo eacute enfaacutetico ao afirmar que ldquoa descoberta de tais estruturas eacute capital

para o estudo de toda filosofia pois eacute por elas que se constitui seu

monumento a tiacutetulo de filosofia eacute por oposiccedilatildeo agrave faacutebula ao poema agrave

elevaccedilatildeo espiritual ou miacutestica agrave teoria cientiacutefica geral ou agraves opiniotildees

metafiacutesicasrdquo (GUEacuteROULT 1968 p 10) Eacute certo que haacute na aplicaccedilatildeo desta

teacutecnica especificidades proacuteprias agrave leitura do pensamento cartesiano no

entanto eacute inegaacutevel que o historiador do pensamento vecirc neste procedimento

um modelo de se fazer Histoacuteria da Filosofia Ler um filoacutesofo eacute antes de tudo

descobrir as estruturas demonstrativas que satildeo dadas atraveacutes de uma

combinaccedilatildeo de meios loacutegicos e arquitetocircnicos Aqui longe de pensar que

haveria entre Filosofia e Obra de Arte uma arquitetocircnica comum Ao

contraacuterio da arquitetocircnica da Obra de Arte a da Filosofia natildeo afeta a nossa

sensibilidade natildeo afeta o sujeito mas apenas exige um consentimento do

Juiacutezo O leitor de filosofia natildeo tem outro papel senatildeo o de ser uma instacircncia

ratificadora Eacute neste espiacuterito que conforme Gueacuteroult devemos ler Descartes

Como todavia alcanccedilar estas estruturas Seguindo as recomendaccedilotildees

diretas ou indiretas do proacuteprio autor lendo-o como ele gostaria de ser lido

Neste caso seguindo um preceito cartesiano

Na aproximaccedilatildeo das estruturas arquitetocircnicas de Descartes

Gueacuteroult se inspira em algumas indicaccedilotildees que o filoacutesofo do seacuteculo XVII dera

sobre como melhor extrair o que haacute de grandioso nas obras dos ldquogecircnios

superioresrdquo Trata-se de cartas endereccediladas a Voeumlt a Mersenne e a

Eacutelisabeth em trechos das Meditationes das Regulaelig dos Principes e do

Discours de la Meacutethode Embora a Histoacuteria da Filosofia tenha sido

246

excomungada pelo Tribunal da Razatildeo Cartesiana Descartes daacute algumas

diretrizes nestas obras de como ler sua filosofia Natildeo se explica uma

filosofia por fragmentos seguindo a ldquoordem das mateacuteriasrdquo139 mas a partir do

seu todo Nada de ldquorecortesrdquo ou como diraacute o Prefaacutecio das Meditationes nada

de ldquoepilogar sobre o textordquo nada de se descuidar da seacuterie e do nexo das

razotildees prendendo-se em partes soltas ldquoin singulas tantum clausulasrdquo Agindo

por ldquorecortesrdquo nega-se a exatidatildeo exigida por uma explicaccedilatildeo seacuteria ofende-

se a proacutepria loacutegica do pensamento fazendo com que possam ser extraiacutedas

afirmaccedilotildees contraacuterias do seio de uma mesma filosofia comete-se o mesmo

crime pelo qual os sofistas foram mal-vistos pela tradiccedilatildeo e a razatildeo medieval

se tornara uma pedra salgada a insidiosa maacutequina da dialeacutetica

Haacute pensa Gueacuteroult uma dupla exigecircncia ou um duplo princiacutepio

em Descartes que emerge de uma ldquoideia seminalrdquo ldquo[] o saber tem limites

intransponiacuteveis fundados naqueles de nossa inteligecircncia mas que no

interior desses limites a certeza eacute inteirardquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 15) A

partir desta maacutexima emerge um princiacutepio que se faz notar nas Regulaelig e

outro que se articula melhor nas Meditationes Enquanto o primeiro eacute

filosoacutefico o segundo eacute metodoloacutegico O princiacutepio filosoacutefico se refere a um

ldquoprimado da reflexatildeo sobre sirdquo a um exame dos limites e do alcance do

entendimento O princiacutepio metodoloacutegico refere-se agrave duacutevida hiperboacutelica de

Descartes que podendo duvidar de tudo natildeo lhe eacute permitido duvidar da

razatildeo humana No uso da duacutevida como meacutetodo Descartes alcanccedila o Cogito

o espiacuterito visto que como professa a ldquoSegunda Meditaccedilatildeordquo ldquoo Cogito eacute o

primeiro de nossos conhecimentos o espiacuterito eacute mais faacutecil de conhecer que o

corpo pois o espiacuterito se conhece sem o corpo mas o corpo natildeo se conhece

sem o espiacuterito []rdquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 16) Nesta articulaccedilatildeo do

139 Aqui poreacutem faz-se necessaacuterio distinguir entre uma ldquoordem das razotildeesrdquo a qual Descartes se refere e uma ldquoordem das mateacuteriasrdquo que ele nega radicalmente A ldquoordem das mateacuteriasrdquo eacute caracterizada por ser convencional e por tratar cada mateacuteria como um todo por se prender a aspectos e temas de um determinado pensamento Pelo contraacuterio a ldquoordem das razotildeesrdquo eacute marcada pela necessidade cada mateacuteria ou tema tem sentido apenas se relacionados com outros se ligados entre si a ponto de constituiacuterem uma cadeia uma corrente na qual cada componente tem um lugar especiacutefico e um papel reservado Assim raciocinando por essa ordem Descartes pode organizar a cadeia de modo a seguir sempre no que se refere agraves ideias a faciolioribus ad difficiliora

247

pensamento cartesiano Gueacuteroult vecirc a abertura da ldquoera do idealismo

modernordquo e a inversatildeo do ldquoponto de vista escolaacutesticordquo (GUEacuteROULT 1968 v

1 p 16)

Todavia o importante no que foi dito como parece assinalar

Gueacuteroult eacute a preocupaccedilatildeo cartesiana em demonstrar a unidade da sapientia

humana o Cogito os limites do entendimento e o papel da duacutevida O

reconhecimento de uma ligaccedilatildeo entre ideias fundamentais do pensamento

cartesiano significa o reconhecimento da ldquounidade da continuidade e do

rigor racionaisrdquo que constituem o que eacute proacuteprio da filosofia de Descartes O

importante eacute perceber que

O esforccedilo do cartesianismo se engaja portanto desde o comeccedilo para a constituiccedilatildeo de um sistema total de saber certo ao mesmo tempo metafiacutesico e cientiacutefico sistema fundamentalmente diferente do sistema aristoteacutelico visto que inteiramente imanente agrave certeza matemaacutetica envolvida no intelecto claro e distinto mas ao menos total e mais estrito ainda em sua exigecircncia de rigor absoluto [] Nada mais sistemaacutetico para Descartes que sua doutrina Eacute para ele um uacutenico bloco de certeza sem fissura onde tudo estaacute ligado a tal ponto que nenhuma verdade pode ser ausentada sem que o conjunto desabe ldquoEu vejo que se engana facilmente em relaccedilatildeo agraves coisas que eu escrevi pois a verdade sendo indivisiacutevel a menor coisa que se retire dela ou que se acrescenta a ela a falsificardquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 18-9)

Ora qual eacute o cerne entatildeo do pensamento cartesiano A verdade

eacute um saber indiviso assemelha-se agrave luz que apesar de iluminar objetos

diferentes permanece a mesma Como fazer com que a filosofia se adeacuteque a

esta compreensatildeo de verdade Seguindo os passos da Matemaacutetica

tornando-se um ldquouacutenico e mesmo bloco de certezardquo ligando-se estritamente a

cadeias de ideias que natildeo deixem de seguir uma ordem a ordem das razotildees

A indivisibilidade da verdade exige uma reforma do modo de se fazer

filosofia agora voltada para o cumprimento de uma ordem140 O que isto

quer dizer O proacuteprio Descartes nos responde ldquoa ordem consiste nisto

140 Neste sentido conclui Gueacuteroult ldquola preacutecise restitution de lrsquoordre permettra de fixer non moins preacuteciseacutement la signification profonde de la doctrine et en deacuteceacutelera des aspects souvent ignoreacutes Notre intention toutefois nrsquoa pas de faire agrave tout prix du nouveau mais de faire de lrsquoexact Le banal pour nous vaut mieux que lrsquoineacutedit si lrsquoun est vrai et autre fauxrdquo (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 13)

248

somente que as coisas que satildeo propostas primeiras devem ser conhecidas

sem a ajuda das seguintes e que as seguintes devem estar dispostas de tal

modo que elas sejam demonstradas pelas uacutenicas coisas que as precedemrdquo

(DESCARTES 1996 l p 121 ndash IIa Obj) A doutrina cartesiana segundo

Gueacuteroult natildeo eacute outra coisa senatildeo um bloco de certeza que se constitui por

um encadeamento de verdades segundo a ordem (GUEacuteROULT 1968 v 1 p

20) A partir desta descriccedilatildeo como devemos ldquoexplicarrdquo a filosofia cartesiana

e fazendo dela um ldquomodelordquo de leitura outras filosofias tambeacutem O que isto

implica Uma leitura geograacutefica ndash situar onde uma ideia se encontra na

cadeia das razotildees ndash e estatiacutestica ndash apresentar a quantidade de ocorrecircncias de

cada ideia ndash da ldquoexplicaccedilatildeordquo filosoacutefica Eacute preciso seguir a ordem entender

porque uma ideia se encontra nesta ou naquela ldquoposiccedilatildeordquo do encadeamento

antes ou depois Cada mateacuteria se encontra posicionada na cadeia das

razotildees de modo ldquonecessaacuteriordquo Sendo assim natildeo haacute como criticar uma ideia

que natildeo fora anteriormente explicitada Ligados matematicamente os termos

natildeo podem ser inquiridos por algo que lhes seja ldquoestranhordquo Se A foi dito

antes de B A eacute condiccedilatildeo de B e pelo jeito condiccedilatildeo suficiente e necessaacuteria

Tarefa da Histoacuteria da Filosofia procurar saber o porquecirc do posicionamento

de uma ideia dentre outras no conjunto de um pensamento filosoacutefico A

verdade do pensamento encontra-se apenas nele mesmo no interior da

corrente das razotildees fazendo com que a referecircncia a questotildees exteriores

como a experiecircncia natildeo passe de non-sens A experiecircncia serve apenas para

verificar hipoacuteteses e princiacutepios previamente postulados pela razatildeo e natildeo

para sugeri-los

Para Descartes a ordem pode por sua vez subdividir-se em

duas a saber a ldquoordem sinteacuteticardquo e a ldquoordem analiacuteticardquo Assim o Discours de

la Meacutethode e as Meditationes seguem a ldquoordem analiacuteticardquo ao passo que os

Principes seguem a ldquoordem sinteacuteticardquo Qual a diferenccedila das duas ordens Na

ldquoordem analiacuteticardquo natildeo apenas haacute a ldquoapresentaccedilatildeordquo de um determinado

raciociacutenio mas a ldquodemonstraccedilatildeordquo de seu meacutetodo do modo pelo qual ele foi

elaborado Jaacute na ldquoordem sinteacuteticardquo haacute uma apresentaccedilatildeo simultacircnea do

raciociacutenio sem referecircncias a justificativas ou explicitaccedilotildees que conduziram

ateacute a conclusatildeo do argumento Sem duacutevida como ele mesmo confirmaraacute

249

Descartes prefere a via analiacutetica dado que em Metafiacutesica haacute sempre uma

ldquodiscordacircnciardquo com os sentidos que precisa ser elucidada Para Descartes a

ldquoordem analiacuteticardquo eacute a ordem da invenccedilatildeo da anaacutelise da ratio cognoscendi ao

passo que a ldquoordem sinteacuteticardquo eacute o que eacute instituiacutedo pelos resultados da

ciecircncia pela verdade da coisa pela ratio essendi (GUEacuteROULT 1968 v 1 p

26) Na ldquoordem analiacuteticardquo o Cogito eacute o ponto de partida ele se constitui como

a ldquoprimeira verdaderdquo do sujeito Soacute a partir deste princiacutepio eacute possiacutevel

conhecer uma ideia tatildeo perfeita como a de Deus e soacute depois as outras

ideias Haacute sempre um movimento na cadeia das razotildees dos elementos mais

simples para os mais complexos Na ldquoordem sinteacuteticardquo todavia Deus seria

apenas o componente de uma cadeia a argola de uma corrente O Cogito

estaria submetido agrave existecircncia real das coisas dos seres nesse caso de

Deus Como precisaraacute Gueacuteroult

Com efeito a demonstraccedilatildeo analiacutetica que se coloca no ponto de vista da ratio cognoscendi e que consiste em inventar conhecimentos verdadeiros de tal modo que eles nos apareccedilam como necessaacuterios e certos chega a pocircr fora de mim realidades que tendem a se dispor no ponto de vista de sua ratio essendi segundo a ordem sinteacutetica de sua dependecircncia em si Sendo dado que a ordem de condiccedilotildees de minha certeza que natildeo eacute de nenhum modo o da dependecircncia real das coisas remete a esse uacuteltimo como o conhecimento remete a seu objeto nada eacute mais faacutecil que fazecirc-los interferir e interromper assim a corrente demonstrativa Disso resultam confusotildees mestras fontes de graves erros de interpretaccedilatildeo e de censuras injustificadas concernentes agrave validade das provas (GUEacuteROULT 1968 v 1 p 27-8)

No trecho acima temos um esboccedilo da distinccedilatildeo entre as ordens

O conhecimento desta diferenciaccedilatildeo se faz necessaacuteria sobretudo para que

natildeo caiacuteamos no erro de confundi-las embora isto seja um ldquoperigo

permanenterdquo Gueacuteroult apresenta estas diferenciaccedilotildees na tentativa de

compreender o pensamento cartesiano Eacute curioso a nosso ver que Deleuze

as entenda procurando talvez ser fiel agrave proposta gueroultiana como

componente de uma proposta geral vaacutelida para outros ldquosistemasrdquo uma vez

que tal uso do meacutetodo possa de certo modo contribuir para a leitura de um

250

texto filosoacutefico141 Deleuze natildeo vecirc nestas duas ordens apenas uma

ldquooposiccedilatildeordquo mas uma diferenccedila estruturalmente mais profunda Natildeo haacute uma

oposiccedilatildeo sumaacuteria mas um ldquoreviramento particularrdquo Haacute um meacutetodo de

invenccedilatildeo nas duas ordens pois o que diferencia natildeo eacute a ldquodisposiccedilatildeo do

argumentordquo mas a constataccedilatildeo de que ou a estrutura se constitui mais por

razotildees de conhecer (ratio cognoscendi) ou mais por razotildees de ser (ratio

essendi) Isto eacute o que permite a Gueacuteroult conforme a leitura deleuziana

considerar o meacutetodo de Kant (analiacutetico) em contraponto ao de Fichte

(sinteacutetico) Para Deleuze no entanto parece que o mais importante desta

compreensatildeo eacute que ldquoem nenhum caso a ordem das razotildees eacute uma ordem

oculta Ela natildeo remete a um conteuacutedo latente a algo que natildeo seria dito

mas ao contraacuterio estaacute sempre agrave flor da pele do sistema [] Eacute mesmo por

isso que o historiador da filosofia segundo Gueacuteroult nunca eacute um interpreterdquo

(DELEUZE 2006 p 190) E acrescenta

A estrutura nunca eacute um dito que devesse ser descoberto sob o que eacute dito soacute se pode descobri-la seguindo a ordem expliacutecita do autor E embora sempre expliacutecita e manifesta a estrutura todavia eacute o mais difiacutecil de se ver sendo negligenciada desapercebida pelo historiador das mateacuterias ou das ideias eacute que ela eacute idecircntica ao fato de dizer puro dado filosoacutefico (factum) mas constantemente desviado pelo que se diz pelas mateacuterias tratadas pela ideias decompostas Ver a estrutura ou a ordem das razotildees portanto eacute seguir o caminho ao longo do qual as mateacuterias satildeo dissociadas segundo as exigecircncias dessa ordem ao longo do qual as ideias satildeo decompostas segundo seus elementos diferenciais geradores ao longo do qual esses elementos ou essas razotildees se organizam em ldquoseacuteriesrdquo havendo tambeacutem cruzamento pelos quais as seacuteries independentes formam um ldquonexusrdquo e entrecruzamentos de problemas ou de soluccedilotildees (DELEUZE 2006 p 190-1)

141 A nosso ver eacute interessante o modo como Deleuze servindo-se de orientaccedilotildees aparentemente proacuteprias agrave leitura de Descartes tais como ldquorazotildees de conhecerrdquo e ldquorazotildees de serrdquo ndash expressotildees introduzidas em Descartes selon lrdquoordre des raisons respectivamente como ratio cognoscendi e ratio essendi ndash faz delas questotildees intriacutensecas a um meacutetodo geral de ldquoexplicarrdquo filosofias Deleuze afirma isso no momento em que comenta a publicaccedilatildeo do livro de Gueacuteroult sobre Espinosa O filoacutesofo para falar do meacutetodo geral que alcanccedila sua forma acabada na publicaccedilatildeo desse novo livro de Gueacuteroult parece-nos claramente centrar-se ao menos nas primeiras linhas de seu comentaacuterio no livro sobre Descartes especialmente no capiacutetulo do primeiro volume intitulado ldquoMeacutetaphysique carteacutesienne et ordre des raisonsrdquo Seguindo os movimentos da argumentaccedilatildeo deleuziana somos confirmados na impressatildeo de que o ponto central desse capiacutetulo estaacute na distinccedilatildeo cartesiana entre uma ordem sinteacutetica (ratio essendi) e uma ordem analiacutetica (ratio cognoscendi)

251

Encontramo-nos pois no delineamento da leitura gueacuteroultiana

de Descartes diante de importantes aspectos do meacutetodo estrutural-geneacutetico

que na opiniatildeo de Deleuze renovou a histoacuteria da filosofia e tratara com

profundidade avant la lettre questotildees proacuteprias ao estruturalismo

(DELEUZE 2006 p 189) A felicidade de Gueacuteroult assim parece salientar

Deleuze estaacute em seguir em cada autor a ordem que determina o seu

empreendimento filosoacutefico O meacutetodo estrutural-geneacutetico no prisma

deleuziano alcanccedilava seu auge na ldquoexplicaccedilatildeordquo de Espinosa feita por

Gueacuteroult O meacutetodo alcanccedila sua plenitude apoacutes uma serie de aplicaccedilatildeo em

autores como Descartes Malebranche Leibniz e Espinosa Seraacute este um

caminho coerente para a Histoacuteria da Filosofia Teraacute Gueacuteroult lanccedilado

mesmo as bases para uma compreensatildeo autenticamente vaacutelida das

filosofias da ldquocriaccedilatildeo filosoacuteficardquo Teraacute ele conseguido expurgar o vil

inteacuterprete que ardilosamente sente prazer em ser viacutetima da ldquofantasiardquo

Agora podemos nos voltar para Merleau-Ponty Em um curso dado no

Collegravege de France intitulado Lrsquoontologie carteacutesienne et lrsquoontologie

drsquoaujourdrsquohui como em vaacuterios outros momentos e inclusive desde os

primeiros trabalhos ele parece nos conduzir a uma outra direccedilatildeo Merleau-

Ponty seria neste caso um grande oponente ao meacutetodo estrutural-geneacutetico

Em oposiccedilatildeo a este meacutetodo qual seria a sua proposta Que trilhas iriam ser

percorridas pelo pensamento merleau-pontiano e que consequecircncias uma

ldquohistoriagrafia filosoacuteficardquo radical poderia auferir de sua deacutemarche

44 Merleau-Ponty e a Histoacuteria do Pensamento a filosofia interrogativa o ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] o sentido da Fecircnix 441 Um ponto de partida Da ldquoordem das razotildeesrdquo agraves ldquorazotildees da ordemrdquo ndash a busca pelo sentido da ldquoordem cartesianardquo Para Merleau-Ponty precisamos pensar uma historiografia que

natildeo seja simplesmente jaacute viacutetima de um arqueacutetipo de um modelo universal

previamente estabelecido mas que consiga aproximar-se sem romper com

as tramas da ldquoexplicaccedilatildeordquo de uma compreensatildeo da histoacuteria da filosofia em

sua multiplicidade de horizontes Eacute neste sentido que procuraremos

252

verificar em Merleau-Ponty o modo como se esboccedila esta historiografia

primeiramente voltando-nos agraves tentativas do filoacutesofo em suas notas

ineacuteditas de superaccedilatildeo da arquitetocircnica gueroultiana ao pensar no conceito

cartesiano de ldquoordemrdquo Em algumas delas podemos encontrar o modo como

Merleau-Ponty pretende ler a filosofia de Descartes o que nos daacute tambeacutem

algumas pistas de como poderiacuteamos compreender a sua posiccedilatildeo frente a

uma historiografia filosoacutefica (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN

9587)) O filoacutesofo comeccedila de imediato fazendo referecircncia a um trecho das

Meacuteditations e da Lettre de Descartes a Voeumlt trechos citados igualmente por

Gueacuteroult em Descartes selon lrsquoordre des raisons

O que haacute de importante e de uacutetil nos livros dos gecircnios anteriores natildeo consiste neste ou naquele pensamento que deles se possa extrair o fruto precioso que eles contecircm deve sair do corpo inteiro da obra (DESCARTES 1996d p 41 GUEacuteROULT 1968 v 1 p 11) [] Para os que sem se preocuparem muito com a ordem e a ligaccedilatildeo de minhas razotildees iratildeo se divertir em epilogar sobre cada uma das partes como fazem vaacuterios estes eu digo natildeo tiraratildeo grande proveito da leitura deste tratado (DESCARTES 1996f GUEacuteROULT 1968 v 1 p 12)

A dificuldade que se instala seria a de poder falar de Descartes

sem um conhecimento completo de sua obra partindo-se apenas de poucas

leituras meditando-se sobre textos isolados pondo-se a escrever de modo

contraacuterio agrave recomendaccedilatildeo cartesiana apenas comentaacuterios parciais Falar

sobre o pensamento cartesiano certamente exigiria mais do que a leitura

que se poderia fazer dele ldquoalgumas horas por mecircsrdquo Haveria pois a

necessidade para se ler e compreender uma linha de seus textos de se

poder localizar no todo de sua obra todos os locais em que cada tema e

cada mateacuteria se dispotildeem Acima de tudo natildeo poderiacuteamos nos esquecer do

fato de estarmos diante de um pensamento que ldquonatildeo se exprime por

proposiccedilotildees disjuntas mas por composiccedilatildeo progressivardquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587)) Qual a razatildeo Se seguirmos a ldquoordem

das razotildeesrdquo vale sempre a convicccedilatildeo de que no pensamento de Descartes

cada problema filosoacutefico natildeo eacute apresentado ldquofrequentemente e

deliberadamenterdquo em termos diferentes mas tem em vista uma ldquorelaccedilatildeordquo

tem o seu lugar assentado e situado em uma ldquoordemrdquo e soacute a partir dela

253

cada mateacuteria se torna compreensiacutevel Mas qual seria o problema deste

procedimento de leitura Natildeo eacute exatamente assim que o proacuteprio Descartes

gostaria de ser lido Para Merleau-Ponty o problema natildeo estaacute em se ler

Descartes tal como ele gostaria de ser lido nem muito menos em seguir a

ldquoordem de suas razotildeesrdquo pois

o que preocupa eacute que se opotildee este gecircnero de leitura agrave meditaccedilatildeo dos pensamentos ou das intuiccedilotildees uma a uma como se fosse necessaacuterio escolher como se houvesse uma verdade formal da ordem superior agrave verdade das intuiccedilotildees Porquanto eacute uma sequecircncia de pensamentos em nenhuma parte interrompidas a maneira pela qual nossas intuiccedilotildees acompanham a sequecircncia uma da outra e [] a ordem intriacutenseca deve-se poder recapitular o que Descartes diz aqui e ali de Deus do homem ou da Natureza sob diferentes relaccedilotildees ndash De outro modo a ordem iria se tornar respeito iria se tornar uma maneira de compartimentar de posicionar de ter agrave distacircncia pensamentos dos quais se quer evitar a confrontaccedilatildeo [] (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))142

A este respeito Merleau-Ponty nota o modo como este meacutetodo

acabaria por limitar a compreensatildeo existente em Descartes na relaccedilatildeo

entre a ldquoprova ontoloacutegicardquo e as ldquoprovas regressivasrdquo problema que nos

remete agrave difiacutecil dualidade radicalizada pelos claacutessicos entre o plano do prov

h9ma~v [prograves hemacircs] e o do kaqrsquoauto [kathrsquoautoacute] o plano do ldquopara noacutesrdquo e o do

ldquoem si mesmordquo143 Por conseguinte natildeo seria suficiente a constataccedilatildeo de que

a ldquoprova ontoloacutegicardquo eacute primeiro ldquoem sirdquo e as ldquoprovas regressivasrdquo satildeo primeiro

ldquopara noacutesrdquo Mais do que isto para Merleau-Ponty seria preciso estabelecer

um confronto entre estes dois planos investigar e verificar de que modo

ocorre e isto caso ocorra a passagem de um a outro Nas palavras do

filoacutesofo seria esta a ldquotarefa mesmardquo que Descartes assumira com sua

142 ldquoCe qui inquiegravete crsquoest qursquoon oppose ce genre de lecture agrave la meacuteditation des penseacutees ou des intuitions une agrave une comme srsquoil y avait agrave choisir comme rdquo srsquoil y avait une veacuteriteacute formelle de lrsquoordre supeacuterieure agrave la veacuteriteacute des intuitions Puisqursquoil est une suite de penseacutees nulle part interrompues la maniegravere dont nos intuitions srsquoentresuivent et [hellip] ordre intrinsegraveque on doit pouvoir reacutecapituler ce que Descartes dit ici et lagrave de Dieu de lrsquohomme ou de la Nature sous diffeacuterents rapports ndash Autrement lrsquoordre deviendrait respect il deviendrait une maniegravere de cloisonner de mettre en place de tenir agrave distance des penseacutees dont on veut eacuteviter la confrontation []rdquo 143 Para os antigos a diferenccedila entre o que uma coisa eacute ldquoem sirdquo e o que eacute ldquopara noacutesrdquo adquire uma outra feiccedilatildeo Basta pensar por exemplo na concepccedilatildeo aristoteacutelica para o qual na Eacutetica o que eacute bom ldquoem sirdquo deve ser tambeacutem bom ldquopara noacutesrdquo Geralmente quando se trata dos claacutessicos eacute notaria a distinccedilatildeo entre o que a coisa eacute ldquoem sirdquo e como eacute tal como ldquoaparecerdquo ldquopara noacutesrdquo

254

filosofia Natildeo podemos desconsiderar o fato de que o pensamento cartesiano

promova a junccedilatildeo destas duas provas talvez nos indicando a inexistecircncia de

ldquodois planosrdquo mostrando-nos que ldquo[] o ser eacute apenas acessiacutevel pela

meditaccedilatildeo quer dizer por um pensamento que prova menos por premissas

do que desenrola implicaccedilotildeesrdquo144 Logo natildeo precisariacuteamos escolher entre

ldquouma verdade formal da ordemrdquo e a ldquoverdade das intuiccedilotildeesrdquo dado que o

pensamento se instala no interior desta cisatildeo antes em uma postura de

ldquoconfrontordquo Se houve da parte de Descartes e certamente houvera o ensejo

de impor agrave filosofia a ldquoordem das matemaacuteticasrdquo natildeo eacute o que estaacute em

questatildeo pois o problema radica-se segundo Merleau-Ponty no fato de saber

se poderiacuteamos pensar as Meacuteditations a partir deste crivo situaacute-la no

horizonte das ldquomatemaacuteticasrdquo sem a tentativa em primeiro lugar de

descobrir se ldquo[] elas natildeo descobrem entre as coisas e a histoacuteria de nossos

pensamentos uma relaccedilatildeo que natildeo eacute simples e natildeo poderia vir a secirc-lordquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587)) visto ser verdade

que

[] quando Descartes busca pelas provas de Deus [ultrapassar] nossos pensamentos para atingir as coisas se [repartiacutessemos] as [provas] sobre os dois planos que elas tecircm por funccedilatildeo religar se [instalaacutessemos] umas sobre o plano do pros heacutemas [em relaccedilatildeo a noacutes para noacutes] a outra sobre o plano do kathrsquoauto [por si em si] esqueceriacuteamos o problema cartesiano [] O que se torna problemaacutetico o que eacute primeiro para noacutes eacute em si derivado e segundo Descartes natildeo eacute o que mostrou mais do que ningueacutem o que eacute problemaacutetico nesta correspondecircncia Certamente a filosofia de Descartes natildeo vive por intuiccedilotildees separadas [] mas muito menos ainda por uma seacuterie de proposiccedilotildees eu sou eu sou em pensamento Deus eacute [] quer as consideremos como os momentos da histoacuteria de um espiacuterito ou como enunciados objetivos das quais cada um poderia segui-lo more geometrico Ele vive pelo [] movimento de pensamento que narrou nas Meacuteditations e que descobre Deus implicado em nossa experiecircncia (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))

144 ldquoCe qursquoil nous dit quand il ajoute aux preuves reacutegressives la preuve ontologique crsquoest peut-ecirctre qursquoil nrsquoy a pas deux plans que lrsquoecirctre nrsquoest jamais en soi seulement lrsquoordre des penseacutees pour nous seulement facultatif avant la rencontre de lrsquoecirctre qui y mettrait fin que lrsquoecirctre nrsquoest accessible que par la meacuteditation cad agrave une penseacutee qui prouve moins par des preacutemisses qursquoelle ne deacutegage des implicationsrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))

255

Conforme podemos notar Merleau-Ponty nega uma leitura de

Descartes que compreenda sua filosofia como momentos da ldquohistoacuteria de um

espiacuteritordquo e como ldquoenunciados objetivosrdquo nas quais cada proposiccedilatildeo se

articularia seguindo um more geometrico Trata-se aqui da criacutetica a Gueacuteroult

mas tambeacutem de uma criacutetica a Alquieacute Natildeo eacute por acaso que Lrsquohistoire drsquoun

esprit seja justamente o tiacutetulo de um dos capiacutetulos de sua obra La

deacutecouverte meacutetaphysique de lrsquohomme chez Descartes Mas qual a razatildeo de

sua recusa Para Alquieacute a descoberta do Cogito antecede a descoberta do

Ser Somente apoacutes refletir sobre o Ser a partir da constataccedilatildeo de uma

insuficiecircncia do mundo Descartes seria capaz de perceber que ldquonossa

proacutepria consciecircncia eacute ultrapassamento do objetordquo vendo ldquo[] este

ultrapassamento mesmo como o signo que o Ser primeiramente encontrado

em Deus eacute tambeacutem de algum modo o proacuteprio da consciecircncia humana

imagem de Deusrdquo (ALQUIEacute 1966 p 132-133) Assim seria capaz de vencer a

confusatildeo das Regulaelig ldquo[] onde a evidecircncia do lsquoeu soursquo e a das propriedades

do triacircngulo eram postas no mesmo planordquo (ALQUIEacute 1966 p133) Ateacute

entatildeo inclusive no Discours de la Meacutethode o esforccedilo cartesiano natildeo tinha

senatildeo o meacuterito de ter apenas posto as verdades em conjunto mas ainda lhe

faltava o Cogito O movimento estava na dificuldade em saber distinguir

ldquodiversas ordens de verdaderdquo e mais do que isto em reconhecer que esta

separaccedilatildeo eacute constitutiva de uma ldquoautecircntica situaccedilatildeo do homemrdquo Entendido

como uma fonte de todo conhecimento que segue uma ldquoordem legiacutetimardquo

antes de ser atingido reflexivamente o Cogito ldquo[] eacute precedido

cronologicamente pela atenccedilatildeo agraves coisas e ontologicamente pelo Infinito

primeira relaccedilatildeo comigo mesmordquo (ALQUIEacute 1966 p 134) Nas coisas quando

natildeo cedemos ao monismo jaacute somos capazes de notar a distinccedilatildeo existente

entre Mundo e Infinito principalmente se levamos em conta a ldquopluralidade

de atitudesrdquo da consciecircncia quando confrontada com a realidade Neste

sentido na verdade o Cogito seria apenas um ldquoestatuto definitivordquo desta

distinccedilatildeo Precedendo a legitimaccedilatildeo deste estatuto o Discours acaba se

tornando um prolongamento do ldquo[] sonho cartesiano de um sistema total

do mundordquo que traduz tambeacutem ldquo[] os fracassos que este sonho encontrou

e manifesta a apariccedilatildeo da dimensatildeo metafiacutesica impossiacutevel de compreender

256

no sistema e que Descartes se esforccedila ainda no entanto em fazecirc-lo entrar

nele []rdquo (ALQUIEacute 1966 p 135) Para Alquieacute natildeo encontramos no Discours

os ares de uma ldquoconquistardquo mas de uma ldquonecessidaderdquo visto que ali e nos

textos teacutecnicos que lhe seguem

Descartes natildeo apresenta seu projeto de unidade como o de um homem que se sente muito forte para fundaacute-lo ele sozinho toda ciecircncia mas como a consequecircncia de dificuldades nas quais se encontra e das quais deve efetivamente sair mediante isto o texto exprime o drama intelectual que sem duacutevida Descartes estaacute vivendo [] No entanto eacute apenas nas Meacuteditations que o homem que eacute em Le Monde o espectador da luz seraacute apreendido como aquele pelo qual haacute luz a fiacutesica entatildeo seraacute sustentada pela metafiacutesica e o Mundo pelo Espiacuterito (ALQUIEacute 1966 p 135-136 143)

Ora Merleau-Ponty faria uma leitura diferenciada de Descartes

principalmente dado que para ele ldquonatildeo se vecirc de que modo se poderia opor a

leitura segundo a ordem agrave meditaccedilatildeo de pensamentos um a umrdquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [68])145 Para ele no que diz respeito agrave ordem que conduz os

movimentos do espiacuterito cartesiano que conduziria a esta passagem natildeo

seria ela a ordem o uacutenico nem o principal modo pelo qual Descartes iria

ldquoposicionarrdquo seus pensamentos compartimentar suas ideias seria preciso

pois centrarmo-nos na passagem entendida como paradoxal que se

estabelece entre estes mesmos pensamentos entendecirc-los natildeo como a

ldquomedida das coisasrdquo mas a ldquomedida de nossas afirmaccedilotildees no tocante agraves

coisasrdquo O paradoxo se instaura no momento em que a partir disto o

pensamento reivindica um poder de determinaccedilatildeo do ser e ao mesmo

tempo potildee-se a negaacute-lo (MERLEAU-PONTY NBNF [68])146 Logo ldquo[]

nossas lsquoafirmaccedilotildeesrsquo no tocante agraves coisas seriam irrisoacuterias se elas natildeo lhe

atingissem se a ordem em que noacutes as dispomos fosse apenas a receita

pessoal de um arranjo cocircmodo sem [intuiccedilatildeo] alguma quanto agraves coisasrdquo

145 ldquoOn ne voit pas comment on pourrait opposer la lecture selon lrsquoordre [suite du texte marginal p [68] note 31] agrave la meacuteditation des penseacutees une agrave une raquo 146 ldquoCrsquoeacutetait dans une mecircme phrase deacutenier agrave la penseacutee le pouvoir de deacuteterminer lrsquoecirctre et le revendiquer pour ellerdquo

257

(MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))147 Onde estaria a

novidade do pensamento cartesiano Para Merleau-Ponty na ldquoideia de um

pensamento que natildeo eacute adequado ao ser natildeo consegue esgotaacute-lo e que em

sua separaccedilatildeo afirma e nega de modo vaacutelido e portanto tem a pretensatildeo de

secirc-lordquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))148 Mais do que

pensar Descartes como o ldquofiloacutesofo da certezardquo Merleau-Ponty procura nos

salientar a importacircncia corroborada por sua filosofia de se ater tambeacutem agraves

ldquocondiccedilotildees da certezardquo ou da ldquoordem de nossos pensamentosrdquo mesmo

considerando-os como sendo apenas ldquopara noacutesrdquo logo de se ater ao

reconhecimento presente no pensamento cartesiano de que ldquo[] nossos

pensamentos satildeo nosso uacutenico acesso agraves coisasrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[31] (12) vol VI (BN 9587))149 Daiacute a releitura que o filoacutesofo faz dos planos

de distinccedilatildeo entre o prov h0ma~v e o kaqrsquoauto entre os planos de separaccedilatildeo do

que eacute ldquopara noacutesrdquo e do que eacute ldquoem sirdquo

A compreensatildeo que igualmente se tem no mundo claacutessico

especialmente em Descartes eacute que se daacute uma separaccedilatildeo radical e definitiva

entre um mundo tido como objetivo e um mundo da experiecircncia comum

entre a coisa em si e sua aparecircncia entre a essecircncia e o acidente Merleau-

Ponty natildeo nega isto mas procurando nos apontar a ambiguidade do

pensamento cartesiano natildeo reconhece em sua noccedilatildeo de ordem a ldquoarte da

distinguordquo a arte escolaacutestica da ldquodistinccedilatildeordquo a manutenccedilatildeo de pensamentos

distanciados uns dos outros e desvinculados das ldquocontradiccedilotildeesrdquo mas a

unidade que se estabelece com nossas intuiccedilotildees A ambiguidade situa-se no

fato de que paralelo a isto daacute-se tambeacutem o reconhecimento da

independecircncia das coisas em relaccedilatildeo a noacutes o reconhecimento de que as

coisas talvez ldquo[] se distingam de nossos pensamentos sendo por isto que

147 ldquoCar enfin nos ldquoaffirmations rdquo touchant les choses seraient deacuterisoires si elles nrsquoy atteignaient pas si lrsquoordre ougrave nous les disposons nrsquoeacutetait que la recette personnelle drsquoun arrangement commode sans [intuition] aucune quant aux chosesrdquo 148 ldquoLe plus neuf de Descartes est p-ecirc lagrave dans cette ideacutee drsquoune penseacutee qui [passage rayeacute nrsquoest pas adeacutequate agrave lrsquoecirctre] nrsquo[eacutepuise] pas lrsquoecirctre et qui pourtant dans sa seacuteparation affirme et nie valablement et donc preacutetend agrave lrsquoecirctrerdquo 149 ldquoDescartes est le PH de la certitude mais les conditions de la certitude ou lrsquoordre de nos penseacutees agrave moins de nrsquoecirctre que pour nous ont du rapport avec ce qui est puisque nos penseacutees sont notre seul accegraves aux chosesrdquo

258

natildeo haacute ordem nelas que as coisas elas satildeo todas juntasrdquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))150 Disto o filoacutesofo conclui que ldquoeacute

portanto um dever para com a ordem cartesiana confrontar o que

distinguiu romper a ordem como ordem de exposiccedilatildeo para reencontraacute-la

como movimento e gecircnese de pensamentos e enfim refazer o caminho que

traccedila e que natildeo eacute unicamente o seu mas o nossordquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))151 Daiacute o reconhecimento de que

contrariamente a leitura de Alquieacute tal como a seu modo de Gueacuteroult

Merleau-Ponty venha nos dizer que perderiacuteamos o problema cartesiano caso

ldquo[] [repartiacutessemos] as [provas] [no caso a ontoloacutegica e as regressivas] sobre

os dois planos que elas tecircm por funccedilatildeo religar152rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[31] (12) vol VI (BN 9587)) haja vista a consideraccedilatildeo de que ldquoDescartes natildeo

vive por intuiccedilotildees separadas153rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI

(BN 9587)) Daiacute o reconhecimento tambeacutem de que

para medir todo o seu sentido eacute necessaacuterio ver no preceito da ordem uma exigecircncia e uma audaacutecia natildeo eacute uma [] das matemaacuteticas o vago projeto de copiar o seu rigor eacute o enunciado de uma regra que eacute as matemaacuteticas o exigem imanente ao pensamento mas com a consciecircncia do que talvez lhe resista nas coisas e que a filosofia deve formular assim (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))154

Contudo voltando-nos a Gueacuteroult pergunta Merleau-Ponty ldquode

onde se sabe que todos os pensamentos devem poder se arranjar em uma

150 ldquoEt pourtant nous devons toujours [observer] lrsquoindeacutependance des choses agrave notre regard elles se distinguent peut-ecirctre de nos penseacutees par ceci qursquoil nrsquoy a pas drsquoordre en elles que les choses elles sont toutes ensemblerdquo 151 ldquoCrsquoest donc un devoir envers lrsquoordre carteacutesien de confronter ce qursquoil a distingueacute de rompre lrsquoordre comme ordre drsquoexposition pour le retrouver comme mouvement et genegravese des penseacutees et enfin de refaire le chemin qursquoil trace et qui nrsquoest pas seulement le sien mais le nocirctrerdquo 152 ldquoToujours est-il que quand Descartes cherche par les preuves de Dieu agrave [deacutepasser] nos penseacutees pour atteindre les choses on oublierait le problegraveme carteacutesien si lrsquoon [reacutepartissait] les [preuves] sur les deux plans qursquoelles ont pour fonction de relier si lrsquoon [installait] les unes sur le plan du pros hegravemas lrsquoautre sur le plan du kath auto [hellip]rdquo 153 ldquoCertes la PH de Descartes ne vit pas par des intuitions seacutepareacutees [hellip]rdquo 154 ldquoJustement pour en mesurer tout le sens il faut voir dans le preacutecepte drsquoordre une exigence et une audace ce nrsquoest pas une [hellip] des matheacutematiques le vague projet drsquoen copier la rigueur crsquoest lrsquoeacutenonceacute drsquoune regravegle qui est les matheacutematiques lrsquoexigent immanente agrave la penseacutee mais avec la conscience de ce qui peut-ecirctre y reacutesiste dans les choses et que la philosophie devra formuler ainsirdquo

259

seacuterie em que o que vem depois natildeo depende senatildeo do que vem antes e eacute

inteiramente justificado por elerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI

(BN 9587))155 Ao formular esta pergunta notamos em Merleau-Ponty antes

um levantamento de questotildees do que simplesmente uma resposta O que

seria preciso pensar com mais profundidade O fato de que natildeo lhe seria

suficiente a afirmaccedilatildeo cartesiana de que haacute um ldquonexordquo em suas razotildees de

que haveria uma ldquoordem serialrdquo do mesmo modo que seria preciso verificar

se a discordacircncia entre o pensamento filosoacutefico e nossa intuiccedilatildeo seria

simplesmente uma contradiccedilatildeo o tropeccedilo em ldquodificuldades teacutecnicasrdquo como

nos salientou Alquieacute ou antes uma exigecircncia nascida da proacutepria ordem tal

como se poderia pensar no ldquoprinciacutepio de uma produccedilatildeo ilimitada do

entendimentordquo Natildeo poderiacuteamos pois falar em ldquolegiacutetimos ciacuterculos

cartesianosrdquo De qualquer forma o que o filoacutesofo natildeo poderia concordar

seria com a concessatildeo apressada que poderiacuteamos fazer agraves recomendaccedilotildees

cartesianas com o ensejo de simplesmente lecirc-lo tal como ele gostaria de ser

lido Seria necessaacuterio pois entender a ldquoordemrdquo e principalmente uma

ldquoordem serialrdquo como um problema ao inveacutes de simplesmente e sem

ressalvas consideraacute-la como adquirida Como nos assevera o filoacutesofo

caso se entenda de antematildeo que a ordem linear eacute muito potente que por exemplo a luz natural tem o poder de justificar no seu lugar os dados dos sentidos [o que nos faz lembrar da citaccedilatildeo que fizemos de Alquieacute] e permanece ao fazer isto o uacutenico criteacuterio de verdade no momento em que Descartes for declarar que pensar a uniatildeo da alma e do corpo eacute pensaacute-los como uma uacutenica coisa natildeo se veraacute nesta contradiccedilatildeo [proclamada] senatildeo um uacuteltimo resiacuteduo [] para o pensamento cartesiano quando eacute talvez o enunciado dos frutos da filosofia dos [objetos] destacados e da filosofia serial (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))156

155 ldquoDrsquoougrave savons-nous que toutes les penseacutees vraies doivent pouvoir se ranger dans une seacuterie ougrave ce qui vient apregraves ne deacutepend que de ce qui vient avant et est entiegraverement justifieacute par lui rdquo 156 ldquoSrsquoil est entendu drsquoavance que lrsquoordre lineacuteaire est tout puissant que par exemple la lumiegravere naturelle a le pouvoir de justifier agrave leur place les donneacutees des sens et reste en le faisant le seul critegravere de veacuteriteacute au moment ougrave Descartes deacuteclarera que penser lrsquounion de lrsquoacircme et du corps crsquoest les penser comme une seule chose on ne verra dans cette contradiction [proclameacutee] qursquoun dernier reacutesidu [hellip] pour la penseacutee carteacutesienne quand crsquoest peut-ecirctre lrsquoeacutenonceacute des fruits de la philosophie des [objets] deacutetacheacutes et de la philosophie seacuteriellerdquo

260

Neste sentido podemos entender porque em nosso primeiro

capiacutetulo encontramos jaacute as criacuteticas de Merleau-Ponty ao modo como

Gueacuteroult nos apresentara as mudanccedilas que se efetivam na concepccedilatildeo

cartesiana de Natureza Por conseguinte a questatildeo que colocamos mais

acima se aprofunda ldquoUm autor ainda que seja Descartes estaacute no centro de

si mesmo [eacute] o uacutenico juiz do que escreve e do que pensardquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))157 Para Merleau-Ponty o risco de

uma resposta afirmativa seria ldquo[] quase arruinar a histoacuteria da filosofia

[]rdquo(MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587) )158 ldquo[] reduzir a

filosofia ao relato do que o filoacutesofo disse []rdquo(MERLEAU-PONTY NBNF [31]

(12) vol VI (BN 9587))159 dado natildeo haver historiador que sobreviveria a

isto que permanece neste limite Logo ldquonatildeo eacute preciso pois nos contentar

com o que Descartes nos diz [] alternadamente eacute preciso recapitular

buscar a junccedilatildeo aleacutem das [obscuridades] e das diferenccedilas em suma

abordar como se natildeo soubeacutessemos nada []rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31]

(12) vol VI (BN 9587))160 do problema sobre o qual se reflete Afinal como

nos assinala Merleau-Ponty natildeo nos esqueccedilamos de que ldquoo proacuteprio deste

espiacuterito [do espiacuterito cartesiano] sua forccedila e sua fraqueza natildeo aparece caso

se esteja muito imbuiacutedo delerdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI

(BN 9587))161 Neste sentido ldquocaso se fizesse da ordem uma concepccedilatildeo []

que dilui as contradiccedilotildees e reparte os diferentes atributos contraditoacuterios

entre diferentes momentos do pensamento162rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[31] (12) vol VI (BN 9587)) pensando por exemplo na prova ontoloacutegica

157 ldquoUn auteur fucirct-il Descartes est-il au centre de lui-mecircme seul juge du sens de ce qursquoil eacutecrit et de ce qursquoil penserdquo 158 ldquoReacutepondre oui crsquoest agrave peu pregraves ruiner lrsquohistoire de la philosophie qui se reacuteduit alors agrave redire ce que la philosophe a ditrdquo 159 ldquoReacutepondre oui crsquoest reacuteduire la philosophie au compte-rendu de ce que le philosophe a dit et aucun historien ne srsquoen tient lagrave pour cette raison drsquoabord qursquoil y a sur presque tous les points des textes discordantsrdquo 160 ldquoIl ne faut donc pas nous contenter de ce que Descartes nous en dit tour agrave tour il faut reacutecapituler chercher le joint par dessus les [obscuriteacutes] et les diffeacuterences bref aborder comme si nous ne savions rien [35] (18) de Dieu et comme lrsquo[hellip] aborde les donneacutees drsquoune religion inconnuerdquo 161 ldquoMais le propre de cet esprit son fort et son faible nrsquoapparaicirct pas si lrsquoon en est trop imburdquo 162 ldquoSi lrsquoon se faisait de lrsquoordre une conception [hellip] qui dilue les contradictions et reacutepartit les diffeacuterents attributs contradictoires entre diffeacuterents moments de la penseacutee []

261

acabariacuteamos por ldquo[] negligenciar os diferentes atributos contraditoacuterios

entre diferentes momentos do pensamento iriacuteamos negligenciar talvez o

[fundo] de Descartes sua concepccedilatildeo original das provas tanto quanto do []

ser163rdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587)) Daiacute a recusa de

Merleau-Ponty

Noacutes natildeo o encontraremos seguindo a ordem de Descartes (verdade no conhecimento ordem de seus pensamentos) bem entendido natildeo eacute preciso lhe preferir a ordem das mateacuterias (natureza homem Deus) que quebraria os viacutenculos e seria aceitaacutevel apenas se houvesse razotildees separadas Noacutes buscamos pelo contraacuterio a natildeo separaacute-los a encontrar uma relaccedilatildeo central operando por toda parte (em todas as mateacuterias) uma certa maneira de identificar e de diferenciar que seja o princiacutepio de coesatildeo a fibra do ser cartesiano Isto [eacute] diferente da ordem das razotildees nisto que eacute sempre feito de uma seacuterie de enunciados de provas [] Encontrar talvez sim uma fibra do Ser um nexus natildeo de razotildees ou pensamentos mas na experiecircncia no contato com o Ser Wahl por exemplo a ideia do instante e a ideia da luz (fiacutesica ndash accedilatildeo do pensamento auto-criaccedilatildeo de Deus) [a] ideia de instante que Descartes disse alternadamente sobre o instante como tempo menor como negaccedilatildeo do tempo e este como ficccedilatildeo) estas diversas significaccedilotildees sendo natildeo relacionadas uma a uma a um certo momento da ordem das razotildees mas religadas juntas em uma textura do Ser cartesiano (MERLEAU-PONTY 1996 p 222-3)

Por conseguinte se Descartes teve a pretensatildeo de construir

todos os seus pensamentos segundo o crivo da ldquoordemrdquo de acordo com

Merleau-Ponty certamente natildeo teriacuteamos o direito de examinaacute-lo a partir da

ldquodesordemrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587)) todavia

ldquomais precisamente caso se queira apreender tudo o que significa o nome

Descartes na Histoacuteria da Filosofia natildeo se pode concedecirc-lo de antematildeo que

todos os pensamentos verdadeiros sejam compossiacuteveis e formem

verdadeiramente uma seacuterie bem ligadardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12)

vol VI (BN 9587))164 Eacute preciso verificar o que de fato a noccedilatildeo de ordem

dissimula acaso haveria uma ordem da realidade Natildeo seria a ordem um

modo de ldquocobrir do melhor modo possiacutevel as fissuras da realidaderdquo

163 ldquo[] on neacutegligerait peut-ecirctre le [fond] de Descartes sa conception originale des preuves aussi bien que de [hellip] de lrsquoecirctrerdquo 164 ldquoMais preacuteciseacutement si lrsquoon veut saisir tout ce que signifie le nom de Descartes dans lrsquoH de la Ph on ne peut lui accorder par avance que toutes les penseacutees vraies soient compossibles et forment vraiment une seacuterie bien lieacuteerdquo

262

(MERLEAU-PONTY NBNF [31] (12) vol VI (BN 9587))165 Para Merleau-

Ponty a ordem cartesiana seria muito mais do que como nos assinalaria

Gueacuteroult ldquouma sequecircncia de pensamentos na qual tudo o que vem depois

natildeo depende senatildeo do que vem antes e eacute inteiramente justificado por elerdquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [67 frente e verso])166 Fazer isto de acordo com

o filoacutesofo conforme jaacute salientamos seria natildeo problematizar a questatildeo mas

pelo contraacuterio muito facilmente e de antematildeo ldquolhe render as armasrdquo [lui

rendre drsquoavance les armes] Render-se muito rapidamente aos desejos de

Descartes significaria deixar escapar aquilo que poderia ser mais do que

uma ldquoreceita pessoal de arranjar pensamentosrdquo o que mais de importante se

encontra em sua noccedilatildeo de ordem a saber o seu reconhecimento como

sendo ldquo[] a maneira pela qual nossas intuiccedilotildees seguem e dependem umas

das outrasrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [67 frente e verso]) Encontra-se ali

antes a questatildeo sobre a possibilidade de uma ldquoordem existente nas coisasrdquo

do que precisamente uma ldquoreceita filosoacutefica pessoalrdquo Caso se trate tatildeo-

somente de um pedido para que natildeo tomemos o seu pensamento de modo

isolado certamente natildeo poderiacuteamos desapontaacute-lo Todavia se o que

encontramos eacute a afirmaccedilatildeo de que a ordem se torna mais fundamental do

que a soma de seus pensamentos do que as ideias que ela reuacutene por

conseguinte precisariacuteamos pensar o que ele tivera em vista ao negar uma

ldquoordem formalrdquo A ordem cartesiana natildeo eacute um simples artifiacutecio construiacutedo no

intuito de tornar coerente o que escapara ao rigor filosoacutefico o que resultara

de ldquodificuldades teacutecnicasrdquo pois

A ordem natildeo tem a virtude de tornar coerentes pensamentos que natildeo o seriam Que seja necessaacuterio dizer vaacuterias vezes o que haacute por dizer da natureza de Deus da liberdade tudo bem Mas enfim se eacute da Natureza de Deus ou da liberdade que se trata e natildeo mais de pensamentos de um homem sobre estes assuntos eacute preciso

165 ldquoDescartes aurait de bonnes raisons de recommander cette maniegravere de le lire crsquoest celle qui voile le mieux les fissures de la reacutealiteacute Mais elle nous dissimule une question de principe que nous ne pouvons pas nous abstenir de poser ne serait-ce que pour avoir Descartes avec tout son relief y a-t-il un ordre de la reacutealiteacute rdquo 166 ldquoReste agrave savoir cependant si agrave toujours suivre lrsquoordre qursquoil a chercheacute nous ne lui rendons pas drsquoavance les armes si lrsquoon peut postuler avec lui qursquoil y a un ordre une suite des penseacutees ougrave tout ce qui vient apregraves ne deacutepend que de ce qui vient avant et est entiegraverement justifieacute par luirdquo

263

efetivamente que haja passagem regulada de uma etapa a outra da meditaccedilatildeo e esta passagem deve se ler em nossa ideia da Natureza de Deus ou da liberdade ela mesma Descartes vive por suas intuiccedilotildees ou [68] pela ordem que ele pocircs entre elas Vive pela evidecircncia pelo Cogito pela criaccedilatildeo de verdades eternas a reflexatildeo sobre a ideia do perfeito em noacutes a causa sui o mecanismo a preacute-ordenaccedilatildeo divina por estas intuiccedilotildees descobridoras e secretamente aparentadas por sua separaccedilatildeo e o esforccedilo que ele faz que noacutes fazemos para juntaacute-los e ligaacute-los ndash ou para o [sonho] de uma ordem homogecircnea inspirada em uma certa eacutepoca das matemaacuteticas e cujas matemaacuteticas depois dele se libertaram (MERLEAU-PONTY NBNF [67 verso] [68])167

Conforme Merleau-Ponty um autor mesmo sendo Descartes

natildeo estaacute de jure no centro de seu proacuteprio pensamento Natildeo eacute o uacutenico juiz de

ldquosuas implicaccedilotildeesrdquo e de seu ldquosentido totalrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF

[68])168 Assim sendo o historiador natildeo assume apenas a tarefa de repetir o

que fora de dito mas de buscar o que de essencial fora dito logo aquilo que

fora pensado ou seja partindo de textos variados ou ldquoexcecircntricosrdquo de um

autor buscar o que viria a constituir o seu ldquopensamento principalrdquo Um

pensador natildeo eacute a simples soma das ideias que silenciosamente ou natildeo ele

formulou crer nisto seria arquitetar uma ldquoconcepccedilatildeo estranhardquo do que

efetivamente significa pensar Por conseguinte a tarefa do historiador natildeo

pode ser aquela de buscar simplesmente decifrar os segredos expliacutecitos em

um recenseamento de ideias em um inventaacuterio de pensamentos pois o

pensamento de um autor natildeo seria o fim de sua obra mas antes o seu

comeccedilo No entanto partindo deste pressuposto o que seria ldquopensarrdquo O que

uma reflexatildeo acerca da historiografia filosoacutefica pode retirar da leitura que

167 ldquoLrsquoordre nrsquoa pas la vertu de rendre coheacuterentes des penseacutees qui ne le seraient pas Qursquoil soit neacutecessaire de dire en plusieurs fois ce qursquoil y a agrave dire de la nature de Dieu de la liberteacute crsquoest bien Mais enfin si crsquoest de la Nature de Dieu ou de la liberteacute qursquoon traite et non plus des penseacutees drsquoun homme sur ces sujets il faut bien qursquoil y ait passage reacutegleacute drsquoune eacutetape agrave lrsquoautre de la meacuteditation et ce passage doit se lire dans notre ideacutee de la Nature de Dieu ou de la liberteacute elle-mecircme Descartes vit-il par ses intuitions ou [68] par167 lrsquoordre qursquoil a mis entre elles Vit-il par lrsquoeacutevidence le cogito la creacuteation des veacuteriteacutes eacuteternelles la reacuteflexion sur lrsquoideacutee du parfait en nous la causa sui le meacutecanisme la preacuteordination divine par ces intuitions deacutecouvrantes et secregravetement apparenteacutees par leur eacutecart et lrsquoeffort qursquoil fait que nous faisons pour les joindre et les lier ndash ou pour le [recircve] drsquoun ordre homogegravene inspireacute drsquoun certain acircge des matheacutematiques et dont les matheacutematiques apregraves lui se sont affranchies rdquo 168 ldquoUn auteur ndash et mecircme Descartes - est-il de droit au centre de sa propre penseacutee Est-il seul juge de ses implications et de son sens total rdquo

264

nos faz Merleau-Ponty da noccedilatildeo cartesiana de ordem O que estaacute em

questatildeo Vejamos

442 O entrecruzamento de objetividade e subjetividade o impensado [das Ungedachte]

ldquoJe groumlsser das Denkwerk eines Denkers ist das sich keineswegs mit dem Umfang und der Anzahl seiner Schriften deckt um so reicher ist das in diesem Denkwerk Ungedachte dh jenes was erst und allein durch dieses Denkwerk als das Noch-nicht-Gedachte heraufkommtrdquo (HEIDEGGER 1957 p 123-4) ldquoLe philosophe se reconnaicirct agrave ce qursquoil a inseacuteparablement le goucirct de lrsquoeacutevidence et le sens de lrsquoambiguiumlteacute Quand Il se borne agrave subir lrsquoambiguiumlteacute elle srsquoappelle equivoque Chez lecircs plus grands elle devient thegraveme elle contribue agrave fonder les certitudes au lieu de les menacer Il faudrait donc distinguer une mauvaise et une bonne ambiguiumlteacute () Ce qui fait le philosophe crsquoest le mouvement qui reconduit sans cesse du savoir agrave lrsquoignorance de lrsquoignorance au savoir et une sorte de repos dans ce mouvementrdquo (MERLEAU-PONTY 1960 p 14)

A historiografia filosoacutefica recusada por Merleau-Ponty ndash que

chamamos de ldquointelectualistardquo ou ldquotradicionalrdquo ndash ecoa os mesmos

movimentos que o problema da Histoacuteria traz consigo desde os

desdobramentos de uma determinada concepccedilatildeo de Meacutetodo o mesmo cujo

centro encontra-se incrustado em um projeto claacutessico de Razatildeo o qual por

sua vez repercute os resquiacutecios de um ideaacuterio cartesiano tal como fora

recebido pela tradiccedilatildeo Se natildeo fosse assim o que alimentaria a ilusatildeo de que

um ldquoacontecimento histoacutericordquo ndash uma vez registrado em fontes e resquiacutecios do

passado ndash exigiria um ldquoprocedimento matemaacuteticordquo para ser entendido e

corretamente ldquoexplicadordquo Por conseguinte se haacute um lugar-comum nas

investigaccedilotildees epistemoloacutegicas e filosoacuteficas de nossa era eacute sem duacutevida o

reconhecimento de uma tensatildeo nada agradaacutevel na gecircnese das Ciecircncias

Humanas que nos remete a uma visatildeo cartesiana de mundo Apesar das

especificidades do seacuteculo XVIII (CASSIRER 1970) o pensamento cartesiano

acabara por configurar o modo pelo qual o ocidente edificou e assumira uma

ldquovisatildeo de mundordquo capaz de determinaacute-lo ontologicamente ou seja de fundar

uma metafiacutesica inusitada ateacute entatildeo na histoacuteria do pensamento

Eacute talvez tendo por referecircncia estas questotildees que em uma de

suas notas ineacuteditas de modo mais direto conforme citaremos a seguir a

265

censura ao meacutetodo historiograacutefico gueroultiano acentua-se A nosso ver a

recusa se centra conforme indicamos anteriormente no que seriam os

equiacutevocos do meacutetodo a autonomia dada muito rapidamente ao autor que

se lecirc frente agrave sua proacutepria obra e a noccedilatildeo de ldquoordemrdquo seja no proacuteprio

cartesianismo seja no meacutetodo historiograacutefico filosoacutefico que ele inspira Por

conseguinte partindo do proacuteprio Gueacuteroult Merleau-Ponty percebe tambeacutem

que a objetividade exigida na leitura de Descartes natildeo valeria para a leitura

daqueles filoacutesofos nos quais ldquoestruturasrdquo satildeo bem diferentes de ldquoideiasrdquo

Merleau-Ponty considera mais significativa e instigante a orientaccedilatildeo

gueroultiana em entender a ldquoexplicaccedilatildeordquo como um procedimento no qual

deve haver um processo de validaccedilatildeo relativo agrave ldquoverdade do ensinamento

doutrinalrdquo Poreacutem nas explicaccedilotildees sobre Descartes e Malebranche o filoacutesofo

nota que o proacuteprio Gueacuteroult fora aleacutem de uma simples ldquoexplicaccedilatildeordquo

salientando talvez sem se dar conta ldquolacunasrdquo em ambos os sistemas Como

diraacute Merleau-Ponty curiosamente ldquoa ordem das razotildees eacute tambeacutem a acepccedilatildeo

dessas lacunas acepccedilatildeo taacutecita maacutescara visatildeo do ser que se desvia dessas

lacunas intuiccedilatildeo Tanto melhor pois eacute por aqui que resta algo de filosofia

na histoacuteria da filosofiardquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 166) Ora o que

significa este ldquoalgo de filosofia que permanece na histoacuteria da filosofiardquo Ainda

sobre o meacutetodo de Gueacuteroult o filoacutesofo diz o seguinte em uma de suas Notes

de Travail datada de Junho de 1959

A histoacuteria da filosofia que seria preciso realizar (paralelamente agrave de Gueacuteroult) eacute a do subentendido Por ex as teses de Descartes sobre a distinccedilatildeo do corpo e da alma e sua uniatildeo natildeo podem ser expostas no plano do entendimento e justificadas em conjunto por um movimento contiacutenuo do pensamento Natildeo podem ser afirmadas juntas a natildeo ser que as aceitemos com o seu subentendido ndash Na ordem do subentendido a pesquisa da essecircncia e a da existecircncia natildeo satildeo opostas satildeo a mesma coisa ndash Considerar a linguagem mesmo filosoacutefica natildeo como uma soma de enunciados ou de ldquosoluccedilotildeesrdquo mas como um veacuteu esticado a trama de uma cadeia verbal (MERLEAU-PONTY 1964a p 249)

O meacutetodo de Gueacuteroult parte de um olhar em conformidade com

a compreensatildeo claacutessica de Razatildeo Neste sentido natildeo nos parece equivocada

tendo-se em conta o que jaacute foi mostrado a conclusatildeo de que o seu meacutetodo

estrutural-geneacutetico seja tambeacutem apesar de todo o seu meacuterito um itineraacuterio

266

de cunho claacutessico Assim sendo parece-nos que o que incomoda Merleau-

Ponty eacute antes de tudo o modo como a histoacuteria eacute tratada seguindo o

cuidado da mera ldquoexplicaccedilatildeordquo seja da filosofia seja da Franccedila iluminista

seja de qualquer eacutepoca ou lugar Neste tratamento da histoacuteria encontramos

os foacutesseis de uma eacutepoca do pensamento que ganha sua expressatildeo em seu

modo de lidar com os seres em geral no pensamento claacutessico especialmente

no imaginaacuterio iluminista Trata-se de ldquoexplicarrdquo e natildeo de ldquocompreenderrdquo

Talvez aqui encontremos um dos pontos que tenha intrigado o filoacutesofo aqui

nos voltamos a uma questatildeo que haviacuteamos acenado anteriormente natildeo

haveria nesta abordagem da Histoacuteria da Filosofia ainda uma pretensatildeo

claacutessica O convite agrave ldquoexplicaccedilatildeordquo natildeo seria inclusive a repercussatildeo de um

ideal de matematizaccedilatildeo no seio da proacutepria praacutexis filosoacutefica A ldquoexplicaccedilatildeordquo

supotildee leis ordenamentos e comportamentos inerentes a um ldquosistemardquo cujo

ldquofuncionamentordquo precisa ser esclarecido Natildeo eacute esse o imperativo de uma

ldquohistoriografia intelectualistardquo Quando nos aproximamos de um texto na

sede de esgotaacute-lo de espremer todas as suas ldquoinformaccedilotildeesrdquo e ldquoconteuacutedordquo

nada haacute de misterioso quando se tem um ldquomeacutetodo eficazrdquo capaz de fazecirc-lo e

isto tenha sido ele cedido bondosamente pelo Discours de la Meacutethode

(Descartes) ou pelas Regulaelig Philosophandi (Newton) ou por qualquer outro

ldquoprocedimento eficazrdquo neles inspirado Ler natildeo seria entatildeo apenas um

exerciacutecio de dissecaccedilatildeo em ldquopartes simplesrdquo que por tamanha ser a

simplicidade delas tecircm o poder de tornaacute-las ldquoprinciacutepios geraisrdquo Natildeo seria

este o meacutetodo assumido pelas ldquoCiecircncias da Naturezardquo Pensando nestas

consideraccedilotildees o meacutetodo cartesiano natildeo poderia ser portanto um modelo

coerente quando o que estaacute em jogo eacute uma experiecircncia do pensamento Do

mesmo modo natildeo podemos entender como gratuito o ensejo gueacuteroultiano

em abandonar a ldquoimaginaccedilatildeordquo do inteacuterprete em buscar a ldquoexatidatildeordquo das

estruturas que ldquovisiacuteveisrdquo no texto se renderiam ao trabalho da anaacutelise e da

explicaccedilatildeo A nosso ver haveria em Gueacuteroult ainda os ecos das desventuras

do pensamento claacutessico em sua recepccedilatildeo de um ideaacuterio matemaacutetico nas

ldquoCiecircncias do Espiacuteritordquo Em outros termos estaria o meacutetodo estrutural-

geneacutetico na complicada confluecircncia e confusatildeo entre o meacutetodo articulado

nas ldquoCiecircncias da Naturezardquo e o postulado nas ldquoCiecircncias do Espiacuteritordquo

267

presente no projeto de encontrar fundamentos que assegurem a cienficidade

do saber histoacuterico Como superar este impasse Seria suficiente o resgate da

figura do ldquointeacuterpreterdquo Seria o caso de assumir tatildeo-somente de modo

radical a via da ldquocompreensatildeordquo

No que diz respeito agrave claacutessica distinccedilatildeo entre ldquoexplicaccedilatildeordquo

(Erklaumlren) e ldquocompreensatildeordquo (Verstehen) pensando em Merleau-Ponty parece-

nos que caminho de resgate e exaltaccedilatildeo de uma via ldquomeramente

interessadardquo poreacutem conteria tambeacutem equiacutevocos semelhantes e isto porque

privilegiando um dos poacutelos ainda se legitima uma draacutestica separaccedilatildeo entre

ldquoverdaderdquo e ldquomeacutetodordquo que natildeo poderia desembocar senatildeo em contra-

sensos169 Por conseguinte mediante os limites de uma ldquohistoriografia

intelectualistardquo aquela pautada pela concepccedilatildeo claacutessica tanto de

subjetividade como de objetidade natildeo basta fazer uma siacutentese apressada

entre o que se entende por verdade a objetividade filosoacutefica e o meacutetodo

auferido das ldquoCiecircncias da Naturezardquo E a razatildeo disto jaacute encontraacutevamos

indicada por Merleau-Ponty na Pheacutenomeacutenologie de la perception por ocasiatildeo

de um fenocircmeno patoloacutegico ldquoNatildeo podemos escolher entre uma descriccedilatildeo da

doenccedila que nos daria seu sentido e uma explicaccedilatildeo que nos daria sua causa

e natildeo haacute explicaccedilatildeo sem compreensatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1945 p 146)

Poderiacuteamos dizer o que natildeo nos parece equivocado que uma historiografia

filosoacutefica do mesmo modo natildeo pode radicar-se em uma mera ldquodescriccedilatildeordquo

nem muito menos em uma mera ldquoexplicaccedilatildeordquo O que isto significa

Primeiramente lembremo-nos de que em sua obra de 1945 a

ldquodescriccedilatildeordquo se apresentava como componente da ordem husserliana no

ldquoretorno agraves coisas mesmasrdquo em uma clara ldquodesaprovaccedilatildeo da ciecircnciardquo em

seus procedimentos de ldquoanaacuteliserdquo ou ldquoexplicaccedilatildeordquo Mas quando se trata da

ldquohistoacuteria do pensamentordquo explicaccedilatildeo passa a indicar mais do que um

169 Esta parece ser a insatisfaccedilatildeo hermenecircutica ndash expressa por autores como Ricœur ndash assim como a proposta de uma dialeacutetica entre explicaccedilatildeo e compreensatildeo em oposiccedilatildeo agrave proposta separatista de uma hermenecircutica romacircntica (RICŒUR 1976) Como indicaria o filoacutesofo o problema dessa cisatildeo estaacute em partir da existecircncia de duas metodologias correspondentes a duas regiotildees ontologicamente diferentes a saber a natureza e o espiacuterito Contudo para Ricœur natildeo se tratava de um terceiro termo mas de um ldquocaso particular de compreensatildeordquo

268

evento empiacuterico o resultado de uma historiografia que em sua oposiccedilatildeo e

negaccedilatildeo rigorosa agraves invenccedilotildees e distorccedilotildees do inteacuterprete identifica os limites

de uma ldquopostura desinteressadardquo Eacute assim que como nos lembra Merleau-

Ponty ldquoo historiador da filosofia oscila entre dois perigos ()rdquo (MERLEAU-

PONTY 2002c p 10) O primeiro seria ldquo[] o de ser cego comentando

literalmente os textos (ele se dispensa entatildeo de repensaacute-los)rdquo (MERLEAU-

PONTY 2002c p 10) O segundo seria ldquo[] o de julgar mais como filoacutesofo do

que como historiador e o de apreciar uma obra atraveacutes de nossas

interpretaccedilotildeesrdquo (MERLEAU-PONTY 2002c p 10) Em contrapartida no

caminho de enfrentamento e superaccedilatildeo destes perigos contra uma

compreensatildeo meramente objetiva da histoacuteria do pensamento percebemos

que natildeo eacute possiacutevel aproximar-se de um fato conforme procuramos mostrar

anteriormente sem interpretaacute-lo

Muitas vezes as objeccedilotildees que encontramos na leitura de alguns

autores natildeo se tratam de um veredicto da histoacuteria mas de um veredicto

nosso ao compreendermos a histoacuteria a partir do nosso ponto de vista Poreacutem

destas afirmaccedilotildees natildeo podemos concluir que a objetividade natildeo passa de

um contra-senso Pelo contraacuterio para Merleau-Ponty em nossa experiecircncia

da histoacuteria da filosofia sempre nos deparamos com uma ldquodialeacutetica vividardquo

entre a nossa subjetividade e a subjetividade do filoacutesofo que investigamos

Assim sendo haacute uma comunicaccedilatildeo que leva aquele que lecirc a retomar os

problemas que fomentaram a emergecircncia de uma clivagem do olhar o

nascimento de uma filosofia Deste modo haacute um estudo empiacuterico e preciso

da leitura um estudo dos textos e de suas relaccedilotildees internas e externas mas

que natildeo pode desmerecer o movimento de um pensar que busque retomar o

que ficou agrave margem do texto Eacute pensando assim que podemos compreender

a afirmaccedilatildeo merleau-pontiana de que ldquoa objetividade da histoacuteria da filosofia

natildeo se encontra senatildeo no exerciacutecio da subjetividaderdquo (MERLEAU-PONTY

2002c p 11) Deste modo torna-se possiacutevel identificar as diferenccedilas que

envolvem um discurso filosoacutefico confrontar nossas questotildees com as

questotildees que alimentam o mesmo discurso questotildees que os proacuteprios

filoacutesofos se colocavam uma vez que ldquoningueacutem entra para o Panteon dos

filoacutesofos por se dedicar somente a ter apenas pensamentos eternos pois o

269

tom da verdade soacute vibra longamente quando o autor interpela sua vidardquo

(MERLEAU-PONTY 1975b p 210)

Neste sentido podemos entender tambeacutem as razotildees pelas quais

encontramos nas Notes du Travail a preocupaccedilatildeo em repensar a Histoacuteria da

Filosofia sempre acompanhada com reflexotildees em torno de uma revisatildeo da

metafiacutesica claacutessica no mesmo horizonte de uma indagaccedilatildeo dos ldquolabirintos

da ontologiardquo Merleau-Ponty pensa em uma Histoacuteria da Filosofia que seja

histoacuteria do ldquosubentendidordquo o que a nosso ver tem suas diacutevidas com a

compreensatildeo heideggeriana de ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] Natildeo haveria

neste ensejo o erro que Deleuze vecirc superado no meacutetodo estrutural-geneacutetico

de Gueacuteroult (DELLEUZE 2006) a superaccedilatildeo em natildeo se buscar mais uma

ldquoordem ocultardquo um ldquoconteuacutedo latenterdquo a ldquoconversatildeordquo de quem natildeo comete

mais o sacrileacutegio de ler buscando as lacunares ldquoentrelinhasrdquo Ateacute poderia

haver se natildeo soubeacutessemos que em Merleau-Ponty tal como em Heidegger

o subentendido natildeo se assenta em uma positividade pura o ldquolatenterdquo o

ldquoinvisiacutevelrdquo o ldquointervalordquo o ldquoentre-deuxrdquo e o ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] satildeo

mais do que meras substacircncias escondidas ou vistas de muito longe Nada

mais distante do pensamento merleau-pontiano Ao falar em ldquosubentendidordquo

o filoacutesofo quer propor um modo diferente de se fazer filosofia de se fazer

experiecircncia do Ser Natildeo haacute a apresentaccedilatildeo de uma nova ldquoteacutecnicardquo de leitura

e de ldquoexplicaccedilatildeordquo mas pelo contraacuterio a proposta de uma nova filosofia de

uma ldquofilosofia do subentendidordquo ou mutatis mutandis conforme Heidegger

de ldquouma filosofia do impensadordquo [das Ungedachte] O enamoramento do

filoacutesofo pela compreensatildeo heideggeriana de ldquoimpensadordquo [das Ungedachte]

natildeo se daacute apenas mediante sua preocupaccedilatildeo com os cuidados que todo

pensador deve tomar no diaacutelogo com a tradiccedilatildeo com a historiografia que lhe

serve de fundamento Para Merleau-Ponty a importacircncia de natildeo se omitir

estas questotildees eacute que no final das contas eacute o proacuteprio pensar que estaacute em

questatildeo uma vez que haveria um viacutenculo entre a tarefa do historiador da

filosofia e a proacutepria experiecircncia do pensamento Neste sentido retomando

nossa questatildeo anterior o que seria pensar O que seria uma ldquohistoacuteria

filosoacutefica do subentendidordquo

270

Se pensamos nas notas ineacuteditas de acordo com Merleau-Ponty

pensar seria antes ldquo[] delimitar progressivamente um sentido aberto que se

descobre ele mesmo nas coisas que vecirc o filoacutesofo ou nas palavras que lhe

vecircm como em um todo de siacutembolos voltados em direccedilatildeo a uma ideia futurardquo

e isto ldquoantes de chegar se esta palavra quer dizer alguma coisa agrave expressatildeo

lsquodiretarsquordquo (MERLEAU-PONTY NBNF [68])170 Ora estas linhas nos lembra um

outro texto de Merleau-Ponty Le Philosophe et son Ombre quando ele se

punha a pensar na obra de Husserl e em seu ldquoimpensadordquo [das Ungedachte]

Neste sentido com as devidas consideraccedilotildees eacute inegaacutevel nesta referecircncia ao

pensar assim como tambeacutem no que diz respeito agrave historiografia filosoacutefica a

sua diacutevida com o pensamento heideggeriano Do mesmo modo citando

Husserl Merleau-Ponty jaacute nos mostrava encontrar-se em um estilo de

pensar bem diferente de Gueacuteroult ldquoa tradiccedilatildeo eacute esquecimento das origens

[]rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 241) Certamente para o filoacutesofo natildeo

poderia se tratar no direcionamento agrave tradiccedilatildeo de um trabalho meramente

ldquoobjetivordquo estando nisto talvez uma das razotildees do esquecimento Por

conseguinte natildeo seria possiacutevel como jaacute indicamos uma neutralidade

absoluta tal como se poderia imaginar ocorrer no trabalho do fiacutesico visto

que

Entre uma histoacuteria ldquoobjetivardquo da filosofia que mutilaria os grandes filoacutesofos naquilo que deram aos outros para pensar e uma meditaccedilatildeo disfarccedilada de diaacutelogo onde colocariacuteamos questotildees e dariacuteamos as respostas deve haver um espaccedilo onde o filoacutesofo de que se fala e aquele que fala estejam presentes juntos embora de direito seja impossiacutevel repartir a cada momento o que eacute de cada um Aquele que acredita que a interpretaccedilatildeo estaacute restringida ou a deformar ou a retomar literalmente a significaccedilatildeo de um obra na verdade deseja que tal significaccedilatildeo seja completamente positiva e suscetiacutevel de direito de um inventaacuterio capaz de delimitar o que estaacute

170 ldquoPenser nrsquoest pas former un certain nombre drsquoideacutees crsquoest cerner progressivement un sens ouvert qui se deacutecouvre lui-mecircme dans les choses que voit la philosophe ou dans les mots qui lui viennent comme dans un tout de symboles tourneacutes vers une ideacutee future avant de parvenir si ce mot veut dire quelque chose agrave lrsquoexpression lsquodirectersquordquo Em outro trecho semelhante mais sinteacutetico poreacutem que nos compreender melhor a referecircncia a uma ldquoexpressatildeo diretardquo constantemente criticada pelo filoacutesofo ele nos diz o seguinte ldquoPenser nrsquoest pas former un certain nombre drsquoideacutees crsquoest cerner progressivement un sens ouvert qui se deacutecouvre lui-mecircme dans les mots et dans les choses comme dans autant de symboles avant de parvenir srsquoil y parvient agrave lrsquoexpression directerdquo

271

e o que natildeo estaacute nela Quem acreditar nisto engana-se sobre a obra e sobre o pensar (MERLEAU-PONTY 1975b p 241)

Merleau-Ponty se inspira especialmente em algumas linhas do

livro Der Satz vom Grund [O Princiacutepio de Razatildeo] de Heidegger Se prestarmos

bem atenccedilatildeo aos uacuteltimos trabalhos de Merleau-Ponty o filoacutesofo daacute mostras

de conhecer bem este livro basta pensar em seus comentaacuterios nas Notes de

cours acerca do poema de Angelus Silesius analisado por Heidegger

justamente nesta obra ldquoDie Rose ist ohne Warum sie bluumlhet weil sie

bluumlhet sie achtet nicht ihrer selbst fragt nicht ob man sie siehetrdquo ldquoa rosa eacute

sem porquecirc floresce porque floresce natildeo cuida de si mesma natildeo pergunta

se a vemosrdquo (MERLEAU-PONTY 1996 p 107 HEIDEGGER 1962 p 97-98)

Poreacutem a referecircncia ao impensado [das Ungedachte] surge no momento em

que Heidegger discute a passagem ldquoDa physis agrave Razatildeo Purardquo O que seria

este impensado Seria um outro nome ao ldquoindiziacutevelrdquo [das Unsagbare]

Estaria nisto a referecircncia de Merleau-Ponty Sabemos que natildeo haja vista

que no proacuteprio Heidegger o impensado natildeo pode ser compreendido fora dos

limites do diziacutevel [das Sagbare] Como se manifesta o ldquoimpensadordquo

Poderiacuteamos dizer ele nasce do proacuteprio pensado [das Gedachte] eacute dele e em

seu modo que ele adveacutem Neste sentido o ldquoimpensadordquo natildeo se daacute desligado

do passado afastado da tradiccedilatildeo na verdade ele se encontra jaacute naquilo que

efetivamente se pensou uma vez que ldquoo jaacute pensado prepara o ainda natildeo

pensado que sempre retorna novamente em sua superabundacircncia

[Uumlberfluszlig]rdquo (HEIDEGGER 1978 p 44) O impensado natildeo eacute uma mera

carecircncia um vazio absoluto Conforme nos diz Heidegger citado por

Merleau-Ponty ldquotratando-se do pensar quanto maior for o trabalho feito ndash

que natildeo coincide de modo algum com a extensatildeo e o nuacutemero dos escritos ndash

mais ricos eacute o impensado nele isto eacute aquilo que atraveacutes dele e somente por

ele volta-se para noacutes como o jamais-pensado-aindardquo (HEIDEGGER 1978 p

44)

Confirmando estas palavras lembremo-nos de que em Identitaumlt

und Differenz a pergunta pelo que seria o ldquoimpensadordquo de uma obra se daacute

no momento em que Heidegger buscava compreender as implicaccedilotildees e as

272

medidas de um ldquodiaacutelogo com a histoacuteria do pensamentordquo Heidegger se

colocava em uma posiccedilatildeo contraacuteria a de Hegel natildeo lhe interessaria apenas

no diaacutelogo com a tradiccedilatildeo historial o que haacute de positivo em cada pensador a

sua identidade ldquoa forccedila e o acircmbitordquo do que foi pensado por cada um deles

Mas pelo contraacuterio o ldquoimpensadordquo pelo qual ldquo[] o que foi pensado recebe

seu espaccedilo essencialrdquo Isto natildeo significa a recusa do que foi pensado pois eacute

certo que se haacute um impensado ele constitui-se apenas a partir deste

primeiro Contrariamente agrave concepccedilatildeo hegeliana de um sobressumir

[Aufhebung] Heidegger natildeo vislumbrava a possibilidade de uma escala

evolutiva na qual os momentos anteriores seriam tirados [tollere] elevados

[elevare] e conservados [conservare] pelos posteriores o que nos leva a

concluir da parte do filoacutesofo tanto a negaccedilatildeo de um esprit de systegraveme (seacutec

XVII) quanto de um esprit systeacutematique (seacutec XVIII) O passado natildeo eacute um

objeto que eacute visto ao longe por um sujeito universal no alto de uma colina

ou quiccedilaacute em uma torre de marfim Em Sens et non-sens jaacute encontraacutevamos

tambeacutem em Merleau-Ponty proacuteximo de Heidegger uma recusa a esta

compreensatildeo do passado uma vez que ao contraacuterio da legitimaccedilatildeo de uma

neutralidade diante do passado o que se passa antes entre o presente e o

passado eacute o mesmo que se daacute na experiecircncia da comunicaccedilatildeo

Se noacutes podemos progredir em direccedilatildeo a um conhecimento adequado do passado natildeo seraacute nos elevando ao ponto de vista de um observador absoluto que crecirc dominar todos os tempos e nisto mesmo os ignora mas ao contraacuterio experienciando cada vez mais que esta convicccedilatildeo mesma tem sua data que a ideia mesma de um universo de verdade eacute enganosa e percebendo por contraste o que o passado foi para si mesmo Noacutes natildeo atingimos o universal deixando nossa particularidade mas fazendo dela um meio de atingir os outros em virtude desta misteriosa afinidade que faz com que as situaccedilotildees se compreendam entre si (MERLEAU-PONTY 1966 p 162)

Do mesmo modo parece-nos que para Heidegger na volta para

o passado natildeo haacute um mecanismo de fundaccedilatildeo absoluta mas um diaacutelogo

pois o que estaria em questatildeo seria um solo originaacuterio que em muito

distancia-se de ser originante O que haacute para o filoacutesofo eacute um ldquopassado-

presenterdquo que ao colocar-se em marcha rumo agrave tradiccedilatildeo torna-se capaz ao

mesmo tempo de precedecirc-la sem contudo constituir-se como uma

273

positividade como o que vem paralelo ou em substituiccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo Em

contrapartida o procedimento hegeliano conduzia conforme nos diz

Heidegger para ldquodentro do acircmbitordquo no qual ao ser elevada e unificada em

uma verdade absoluta depara-se com uma ldquocerteza plenamente

desenvolvida do saber que se sabe a si mesmordquo (HEIDEGGER 1978) Pensar

o ldquoimpensadordquo significa dar um ldquopasso de voltardquo que ldquo[] aponta para o

acircmbito ateacute aqui saltado a partir do qual a essecircncia da verdade se torna

antes de tudo digna de ser pensadardquo (HEIDEGGER 1978) Heidegger

propotildee ao contraacuterio do progresso [Fort-gang] hegeliano um regresso um

passo de volta [Ruumlck-gang]171 Do mesmo modo a partir destas

consideraccedilotildees Heidegger e poderiacuteamos dizer o mesmo de Merleau-Ponty

distancia-se tambeacutem de uma ldquohistoacuteria dos conceitosrdquo pondo-se ldquona

experienciaccedilatildeo da proximidade de um porvir de abertura e de decisatildeordquo172

Todavia natildeo podemos nos esquecer de que em Merleau-Ponty o impensado

[das Ungedachte] se encontra em um determinado horizonte a experiecircncia

da percepccedilatildeo e da linguagem Logo mais do que um direcionamento

reflexivo agrave tradiccedilatildeo em busca do que ficou esquecido e soterrado o que

171 Nessa perspectiva poderiacuteamos concluir que para Merleau-Ponty embora ele mesmo natildeo tenha afirmado isto o que foi pensado pode ser entendido tambeacutem usando a linguagem dos gestaltistas como a figura o positivo diria Heidegger o mais questionaacutevel [Fragwurdigste] Em contrapartida quando o fundo se torna figura eis-nos na lida com o negativo que se positiva isso justamente no momento em que a figura aquilo que eacute pensado movimenta-se por alguns instantes para os limites da sombra Em outros termos tanto o que foi pensado quanto o ldquoimpensadordquo satildeo ao mesmo tempo e reciprocamente figura e fundo Por um lado o ldquoimpensadordquo eacute um fundo no qual se encontra aquilo que foi pensado Assim cabe-nos a tarefa em um exerciacutecio positivo de reconhecer suas relaccedilotildees com o que fora pensado Nessa perspectiva o que foi pensado eacute a figura o positivo o mais questionaacutevel [Fragwuumlrdigste] 172 Cf ldquoQuand nous sommes en quecircte de ce qursquoest la fusiv et de la maniegravere dont elle se conccediloit agrave premiegravere vue on dirait qursquoil srsquoagit drsquoune pure et simple recherche meneacutee par curiositeacute de savoir la provenance de lrsquointerpreacutetation tradicionelle et contemporaine de la lsquoNaturersquo Mais si nous portons attention au fait que cette parole fondamentale de la meacutetaphysique heacuteberge en elle des ouvertures qui enagent deacutecisivement le sens de la veacuteriteacute de lrsquoeacutetant si nous nous avisons qursquoaujourdrsquohui la veacuteriteacute qui porte sur lrsquoeacutetant dans son ensemble est devenue de fond en comble probleacutematique si enfin nous pouvons entrevoir que de ce fait le deacuteploiement de la veacuteriteacute demeure absolument indeacutecis indeacutefini et donc clos si en plus nous savons que tout cela a mecircme commune origine dans lrsquoHistoire de lrsquointerpreacutetation de ce qursquoest la fusiv ndash alors drsquoembleacutee nous nous situons hors de lrsquointeacuterecirct des historiens de la philosophie pour une lsquohistoire des conceptsrsquo alors nous faisons lrsquoeacutepreuve ndash ne serait-ce que de loin ndash de la proximiteacute drsquoun avenir drsquoouverture et de deacutecisionrdquo (HEIDEGGER 1968 p 182)

274

encontramos tambeacutem eacute a percepccedilatildeo de um ldquoimpensadordquo e mediante isto a

razatildeo de sua gecircnese Eacute o que nos diraacute o filoacutesofo

Assim como o mundo percebido soacute se manteacutem pelos reflexos sombras e niacuteveis por horizontes entre as coisas natildeo sendo eles coisas mas nem por isso sendo nada e que pelo contraacuterio sozinhos delimitam os campos de variaccedilatildeo possiacutevel na mesma coisa e no mesmo mundo assim tambeacutem a obra e o pensamento de um filoacutesofo satildeo feitos de certas articulaccedilotildees entre as coisas ditas frente agraves quais natildeo haacute dilema entre a interpretaccedilatildeo objetiva e a arbitraacuteria visto que ali natildeo estatildeo objetos de pensamento pois como a sombra e o reflexo tambeacutem eles seriam destruiacutedos se submetidos agrave observaccedilatildeo analiacutetica ou ao pensamento isolante Se quisermos reencontrar o pensamento e a obra e se quisermos ser fieacuteis a eles soacute nos resta um caminho pensar de novo (MERLEAU-PONTY 1975b p 242)

O que estava em jogo seria a transposiccedilatildeo do ofiacutecio do

historiador para o campo da percepccedilatildeo A experiecircncia do historiador do

pensamento eacute pois uma experiecircncia perceptiva logo conforme nos diraacute o

filoacutesofo pensando nas Ideen I de Husserl ldquonatildeo eacute portanto o irrefletido que

contesta a reflexatildeo mas proacutepria reflexatildeo que se contesta a si mesma porque

seu esforccedilo de retomada posse interiorizaccedilatildeo ou imanecircncia soacute tem sentido

frente a um termo jaacute dado que se abriga em sua transcendecircncia sob o olhar

que vai buscaacute-lo alirdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 243) Neste sentido

tambeacutem podemos entender o que levara Merleau-Ponty a crer que a relaccedilatildeo

da palavra com sua significaccedilatildeo seja a mesma daquela existente entre o

gesto e o alvo visado por este mesmo gesto Quando visamos algo de nosso

ambiente natildeo pressupomos qualquer tematizaccedilatildeo pois nossa intenccedilatildeo

significativa no momento eacute apenas um vazio determinado a ser preenchido

pelas palavras Embora apenas as perspectivas da significaccedilatildeo sejam

tematicamente dadas o fato eacute que passado um certo ponto do discurso as

perspectivas tomadas em seu movimento subitamente se contraem em uma

uacutenica significaccedilatildeo Neste sentido de acordo com o filoacutesofo uma nova

significaccedilatildeo a fala autecircntica eacute adquirida quando usando as palavras

disponiacuteveis da liacutengua e sua gramaacutetica ocorre ldquoum ultrapassamento do

significado pelo significanterdquo (MERLEAU-PONTY 2006 p 134) Esta

ldquodeformaccedilatildeo coerenterdquo das significaccedilotildees disponiacuteveis eacute precisamente o que as

ordena num sentido novo levando os ouvintes e tambeacutem o sujeito falante a

275

dar um passo decisivo O sentido das expressotildees eacute um sentido lateral que se

manifesta entre as palavras nos irrefletidos

Por conseguinte nesta ldquodeformaccedilatildeo coerenterdquo neste

ldquoultrapassamentordquo talvez possamos encontrar pistas de como fora recebida

na compreensatildeo de histoacuteria da filosofia esboccedilada em Merleau-Ponty a

concepccedilatildeo heideggeriana de ldquoimpensadordquo [das Ungedachte] Contudo ao

inveacutes de manifestar um equiacutevoco a nosso ver esta releitura de Heidegger

apenas serve para nos confirmar a importacircncia que este pensador tivera na

filosofia de Merleau-Ponty especialmente nos uacuteltimos trabalhos Longe das

sendas abertas por esta noccedilatildeo certamente natildeo podemos compreender o que

tenciona Merleau-Ponty ao falar de uma ldquohistoacuteria filosoacutefica do subentendidordquo

em oposiccedilatildeo ao ldquomeacutetodo estrutural-geneacuteticordquo de Gueacuteroult Aliaacutes se

pensarmos bem a partir do que refletimos poderiacuteamos ateacute concordar com

Gueacuteroult apesar dos limites que encontramos em seu meacutetodo ao dizer que

ndash talvez com intenccedilotildees diferentes das nossas ndash quando nos pomos a pensar

sobre Descartes quando ldquoreviramosrdquo o seu pensamento permutamos a

ordem de suas ideias o que fazemos eacute ldquo[] alterar as estruturas de seu

pensamento ndash a configuraccedilatildeo de uma linguagem ontoloacutegica que certamente

daacute-se forma e se transforma agrave medida que a obra avanccedila mas cujo

equivalente visiacutevel da obra natildeo eacute senatildeo uma expressatildeo parcialrdquo (MERLEAU-

PONTY NBNF [68])173 Afinal natildeo seria isto mais do que um equiacutevoco a

consequecircncia mesma de todo pensar Seria de fato suficiente repetir

apenas aquilo que o filoacutesofo dissera De acordo com Merleau-Ponty

Mesmo se nos bastasse dizer o que o filoacutesofo quis ser natildeo nos diria o que ele eacute na [memoacuteria] das filosofias que precederam ou seguiram a sua que natildeo instauraram a mesma ordem e que caso nos limitemos agrave ordem quista satildeo (19) incomensuraacuteveis com a sua Se em filosofia como em outro lugar natildeo nos contentamos com o que o pensador pensou ou quis ser se a histoacuteria eacute tambeacutem histoacuteria do que veio a ser agrave medida que uma posteridade fiel ou infiel o situa de outro modo que natildeo podia se situar eacute preciso efetivamente finalmente que a

173 ldquoRetourner sa penseacutee crsquoest donc comme le dit tregraves bien M Gueacuteroult par delagrave ses ideacutees remanier les structures de sa penseacutee ndash la configuration drsquoun langage ontologique qui certes se faccedilonne et se transforme agrave mesure que lrsquoœuvre avance mais dont lrsquoeacutequivalent visible de lrsquoœuvre nrsquoest qursquoune expression partiellerdquo

276

histoacuteria [forneccedila] o denominador comum que permita a compreensatildeo e este denominador eacute sua proacutepria filosofia Caso natildeo se permita pocircr questotildees e discutir senatildeo questotildees cartesianas se implicaria que realmente ele morreu e que natildeo haacute mais nada de comum entre ele e noacutes Coloquemos entatildeo que noacutes natildeo falamos de Descartes que noacutes sonhamos ao redor de seus textos Eacute com esta condiccedilatildeo que se pode saber natildeo o que disse mas o que nos diz (MERLEAU-PONTY NBNF [68])174

Ora o que podemos concluir destas consideraccedilotildees Em certas

medidas eacute preciso saber distinguir um determinado filoacutesofo da ldquoescolardquo ou

ldquocorrenterdquo que o reclama como ldquofundadorrdquo uma vez que o filoacutesofo natildeo pode

deixar de ser visto como algueacutem que em sua eacutepoca ldquorodeado de

circunstacircncias hoje abolidas atormentado com preocupaccedilotildees e com algumas

ilusotildees de seu tempo []rdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 211) soube

responder ldquoa esses acasos de tal maneira que nos ensina a responder aos

nossos embora diferentes e diferente de nossa respostardquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 211) Eacute sempre da ldquovida pensanterdquo que denominamos

Descartes e de tantos outros de que nos aproximamos A verdade encontra-

se em toda filosofia sempre como uma tarefa inesgotaacutevel um labor

constante A relaccedilatildeo da leitura filosoacutefica com outros referenciais (elementos

psicoloacutegicos socioloacutegicos etc) daacute-se sempre como uma espeacutecie de

ldquodescentramentordquo que conduz o proacuteprio fato em questatildeo agrave ordem simboacutelica

que conduz como indicamos acima uma ldquofala faladardquo a uma ldquofala falanterdquo e

sedimentada em uma historicidade ldquoverticalizanterdquo Seria o caso de

compreender a obra a partir da vida ou de tornar a vida uma consequecircncia

da obra (MERLEAU-PONTY 1975b) Para Merleau-Ponty mais do que um

direcionamento agrave vida vale salientar tambeacutem que julgar apenas a obra pela

174 ldquoMecircme srsquoil suffisait agrave nous dire ce que le philosophe a voulu ecirctre il ne nous dirait pas ce qursquoil est dans la [meacutemoire] des philosophies qui ont preacuteceacutedeacute ou suivi la sienne qui nrsquoinstauraient pas le mecircme ordre et qui si lrsquoon srsquoen tient agrave lrsquoordre voulu sont (19) incommensurables avec la sienne Si en philosophie comme ailleurs nous ne nous contentons pas de ce que le penseur a penseacute ou voulu ecirctre si lrsquohistoire est aussi histoire de ce qursquoil est devenu agrave mesure qursquoune posteacuteriteacute fidegravele ou infidegravele le situe autrement qursquoil ne pouvait se situer il faut bien finalement que lrsquohistoire [fournisse] le deacutenominateur commun qui permettra la compreacutehension et ce deacutenominateur crsquoest sa propre philosophie Si lrsquoon ne se permet de poser et discuter que des questions carteacutesiennes on impliquerait qursquoil est bien mort et qursquoil nrsquoy a plus rien de commun entre lui et nous Mettons donc que nous ne parlons pas de Descartes que nous recircvons autour de ses textes Crsquoest agrave cette condition qursquoon peut savoir non ce qursquoil dit mais ce qursquoil nous ditrdquo

277

vida torna-se tatildeo contraditoacuterio quanto analisar apenas a vida pela obra

aliaacutes

Natildeo somos obrigados a escolher entre aqueles que pensam que a histoacuteria do indiviacuteduo e da sociedade deteacutem a verdade das construccedilotildees simboacutelicas do filoacutesofo e aqueles que pensam ao contraacuterio que a consciecircncia filosoacutefica tem por princiacutepio as chaves da histoacuteria social e pessoal A alternativa eacute imaginaacuteria tanto assim que os defensores de uma destas teses sempre recorrem sub-repticiamente agrave outra (MERLEAU-PONTY 1975b p 211)

Assim devemos saber que ldquonunca se opotildee ao estudo interno das

filosofias uma explicaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica mas sempre uma outra filosofia

escondida sob elardquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 211) Haacute pelo contraacuterio

nos alicerces de uma discussatildeo de toda ldquohistoacuteria da filosofiardquo uma ldquohistoacuteria

intencionalrdquo que precisa ser elucidada Ao se falar em uma ldquohistoacuteria

intencionalrdquo precisamos abandonar todo posicionamento que parte apenas

de uma elucidaccedilatildeo de textos visto que toda seleccedilatildeo jaacute conteacutem

indiretamente tomadas de posiccedilatildeo decisotildees Haacute sempre uma interpretaccedilatildeo

ao se escolher e classificar textos filosoacuteficos Diante dos textos a principal

tarefa seraacute a de indicar aleacutem de ideias as intenccedilotildees que cada filoacutesofo

apresenta espontaneamente no desenvolvimento e expressatildeo de sua obra

Toda interpretaccedilatildeo apresenta-se como a verticalizaccedilatildeo de um sentido

presente na proacutepria trama que constitui o texto filosoacutefico que ao contraacuterio

de ser uma mera explicitaccedilatildeo de um saber originaacuterio e taciturno eacute um

discurso a produccedilatildeo de um pensamento que eacute sobretudo linguagem A

histoacuteria da filosofia eacute antes de tudo natildeo soacute uma mera constataccedilatildeo do que

fora dito mas a busca do que foi sugerido do que ficou de um ldquoimpensadordquo

[das Ungedachte] que se manifesta na lateralidade do proacuteprio discurso e do

que ele apresenta em uma significaccedilatildeo frontal Todo historiador da filosofia

estaacute em um constante confronto com os filoacutesofos que procura investigar

Todavia natildeo se trata de um mero confronto abstrato narciacuteseo apenas mas

de um confronto semelhante ao que tem com os seus contemporacircneos Natildeo

podemos nos esquecer de que toda histoacuteria eacute sempre norteada por escolhas

escolhas que ldquo(con)-figuramrdquo um todo que ao destacar-se de um ldquofundordquo

remete-nos a relaccedilotildees a diferenccedilas Como nos lembra Merleau-Ponty

278

() os partidaacuterios da filosofia ldquopurardquo e os da explicaccedilatildeo soacutecio-econocircmica trocam seus papeacuteis natildeo somos obrigados a participar do seu eterno debate natildeo temos que tomar partido entre uma falsa concepccedilatildeo do ldquointeriorrdquo e uma falsa concepccedilatildeo do ldquoexteriorrdquo A filosofia estaacute em toda parte ateacute mesmo nos ldquofatosrdquo e em parte alguma e em domiacutenio algum se acha preservada do contaacutegio da vida (MERLEAU-PONTY 1975b p 212)

Por conseguinte natildeo eacute apenas aquilo que eacute aquilo que foi

escolhido como discussatildeo por certa filosofia que nos chama a atenccedilatildeo mas

tambeacutem o sentido do que natildeo foi escolhido e o porquecirc de natildeo ter sido

escolhido O que sustenta nosso diaacutelogo seja com um texto seja com os

nossos contemporacircneos eacute o fundo diferencial que manteacutem nossas decisotildees

nossas relaccedilotildees eacute a diferenccedila que emerge silenciosamente das

positividades de nossas escolhas e percepccedilotildees A histoacuteria da filosofia natildeo se

desenvolve a partir de uma atividade desenvolta de ldquoingestatildeordquo de diversas

filosofias em uma escala evolutiva de momentos confusos que se dirigem agrave

perfeiccedilatildeo As tentativas de organizaccedilatildeo do saber em um sistema uacutenico em

uma histoacuteria fechada natildeo conseguem sufocar a agitaccedilatildeo das filosofias que

foram por ele englobadas Encarar a histoacuteria da filosofia como um ldquomuseurdquo eacute

promulgar a morte do proacuteprio pensamento pois ldquonatildeo haacute uma filosofia que

contenha todas as filosofias em certos momentos a filosofia estaacute inteira em

cada uma delasrdquo (MERLEAU-PONTY 1975b p 211)

O mito tanto de uma ldquofilosofia purardquo quanto de uma ldquohistoacuteria

purardquo deve ser desconstruiacutedo Seria possiacutevel um equiliacutebrio entre a

importacircncia histoacuterica de um acontecimento e a significaccedilatildeo filosoacutefica que ele

possui Eacute portanto o excesso das significaccedilotildees de um acontecimento que

uma abordagem histoacuterica deve explicitar ao inveacutes de tentar apenas explicar

uma determinada filosofia Por sua vez o trabalho filosoacutefico apresenta-se na

explicitaccedilatildeo de um universal que ldquo[] reside no momento e no ponto em que

as limitaccedilotildees de um filoacutesofo investem numa outra histoacuteria []rdquo (MERLEAU-

PONTY 1975b p 212) Esta outra histoacuteria natildeo sendo ldquo[] paralela agrave dos

fatos psicoloacutegicos ou sociais () ora se cruza com ela ora se afasta dela ou

melhor natildeo pertence agrave mesma dimensatildeordquo (MERLEAU-PONTY 1975b p

212) Entre filosofia e histoacuteria eacute a ldquoambiguidaderdquo que as une natildeo como

279

conceito mas como um ponto de partida comum A histoacuteria da filosofia se

apresenta como uma paisagem que apesar de sua unidade apresenta

campos lagos ondulaccedilotildees Diante deste quadro

a pluralidade das perspectivas e dos comentadores por sua vez natildeo romperia a unidade da histoacuteria da filosofia a menos que fosse uma unidade de justaposiccedilatildeo ou de acumulaccedilatildeo Mas como as filosofias satildeo linguagens que natildeo podem ser traduzidas imediatamente uma na outra nem superpostas termo a termo uma vez que eacute por sua maneira singular que uma eacute necessaacuteria agrave outra a diversidade dos comentaacuterios aumenta muito pouco a da filosofia Aliaacutes se pedirmos a cada um como temos feito muito mais do que um balanccedilo ldquoobjetivordquo sua reaccedilatildeo diante de um filoacutesofo talvez nesse cuacutemulo de subjetividade reencontremos uma espeacutecie de convergecircncia e um parentesco entre as questotildees que num coloacutequio iacutentimo cada um dos contemporacircneos coloca para seu filoacutesofo ceacutelebre (MERLEAU-PONTY 1975b p 214)

Conforme podemos notar o que encontramos eacute antes de tudo

uma histoacuteria da filosofia que natildeo se olvida que seu ofiacutecio se daacute em primeiro

lugar a partir de uma experiecircncia da linguagem que por sua vez encontra-

se permeada pela vivecircncia da ldquoambiguidaderdquo O que seria esta ambiguidade

A este respeito vale lembrar as palavras de Merleau-Ponty ao proferir o seu

Eacuteloge de la Philosophie ldquoo filoacutesofo reconhece-se pela posse inseparaacutevel do

gosto da evidecircncia e do sentido da ambiguidaderdquo poreacutem ldquoquando se limita a

suportar a ambiguidade esta se chama equiacutevocordquo (MERLEAU-PONTY 1986

p 10) A ambiguidade eacute pois no entender do filoacutesofo inerente ao

pensamento em todo e qualquer movimento que o impulsione estando

inscrita inclusive ldquo() na proacutepria textura de nossa vida coletiva e natildeo

apenas nas obras dos intelectuais ()rdquo (MERLEAU-PONTY 2002d p 66)

Nesta perspectiva o equiacutevoco surgiria quando ldquolimitando-se a suportar a

ambiguidaderdquo o pensamento perde ldquo() o movimento que leva

incessantemente do saber agrave ignoracircncia da ignoracircncia ao saber e um certo

repouso neste movimentordquo (MERLEAU-PONTY 1986 p 11) O equiacutevoco

nasce quando o ldquocerto repousordquo se cristaliza e de uma vez por todas a

dialeacutetica presente nesta praacutexis se engessa torna-se uma ldquomaacute dialeacuteticardquo175

175 ldquoNos contradictions sont bien lagrave passage de la dialectique dans lrsquoantidialectique ndash Mais il ne srsquoagit pas non plus de rester dans la mauvaise dialectique qui est eacutequivoque qui est

280

aquela que natildeo mais em movimento faz de seu modo de negar tatildeo-somente

um modo de afirmar e na qual o negativo acaba por celebrar uma

reconciliaccedilatildeo com o positivo em nome de ldquouma verdade para mais tarderdquo que

natildeo cessa de firmar uma ldquoidentidade sem movimento dos contraacuteriosrdquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [226] (7) Vol VIII) Logo

a maacute dialeacutetica eacute aquela que natildeo quer perder sua alma para salvaacute-la que quer ser dialeacutetica imediatamente torna-se autocircnoma e termina no cinismo no formalismo por ter evitado seu proacuteprio duplo sentido O que chamamos hiperdialeacutetica eacute um pensamento que ao contraacuterio eacute capaz de verdade pois encara sem restriccedilatildeo a pluralidade das relaccedilotildees e o que chamamos ambiguidade A maacute dialeacutetica eacute a que acredita recompor o ser usando um pensamento teacutetico com um conjunto de enunciados com tese antiacutetese e siacutentese a boa dialeacutetica eacute a que tem consciecircncia de que toda tese eacute idealizaccedilatildeo de que o Ser natildeo eacute feito de idealizaccedilatildeo ou coisas ditas como acreditava a velha loacutegica mas de conjuntos ligados onde a significaccedilatildeo aparece apenas como tendecircncia onde a ineacutercia do conteuacutedo nunca permite definir um termo como positivo outro termo como negativo e ainda menos um terceiro termo como supressatildeo absoluta dele por ele mesmo (MERLEAU-PONTY 1992 p 127 grifo nosso)

A nosso ver e eacute o que justifica nossa digressatildeo ao que o filoacutesofo

denomina ldquomaacute dialeacuteticardquo a histoacuteria da filosofia abriga este mesmo

movimento aquele movimento que pode animar cada filosofia em seu

itineraacuterio de expressatildeo que pode animar uma eacutepoca Falar da ambiguidade

que alimenta a filosofia e sua histoacuteria eacute falar de uma hiperdialeacutetica capaz de

encarar sem impor limites ldquoa pluralidade de relaccedilotildeesrdquo natildeo havendo pois

uma superaccedilatildeo absoluta uma superaccedilatildeo que consiga conservar ldquotudo o que

as fases precedentes tenham adquiridordquo As verdades de uma eacutepoca e a

proacutepria filosofia ainda incertas e concretas para quem as vivia tornam-se

equiacutevocas no justo momento em que partem do pressuposto de terem

chegado a uma certeza definitiva No que diz respeito agrave filosofia podemos

dizer por conseguinte que o equiacutevoco ocorre no momento em que o

movimento circular que lhe eacute inerente se perdeu No trabalho do historiador

haacute pois um movimento constante sem repouso O que isto significa O que

pseudochoix car on ne choisit vraiment rien si les contradictoires sont identiques ndash Il faut donc deacutepassement sans doute mais dont on convient qursquoil nrsquoest ni refoulement ni veacuteritable conservationrdquo (MERLEAU-PONTY NBNF [13] C Vol VI)

281

seria este modo de encarar a proacutepria experiecircncia da filosofia nos horizontes

de uma experiecircncia da linguagem O que seria esta espeacutecie de

ldquohiperdialeacuteticardquo constante assediada pelo equiacutevoco cujo equiacutevoco estaria

justamente na tentativa de se abrigar em ldquocertezas absolutasrdquo em um

ldquomeacutetodo eficazrdquo Em suma a que concepccedilatildeo de filosofia nos remete este

modo de lidar com sua Histoacuteria A seguir pensemos nestas questotildees

45 A ldquoexperiecircncia do Pensamentordquo nas trilhas de uma ldquoExperiecircncia da Linguagemrdquo a filosofia interrogativa o sentido da Fecircnix

Pelo que refletimos ateacute aqui parece-nos que ao se pensar na

Histoacuteria da Filosofia um dos interesses tambeacutem de Merleau-Ponty seria o de

demonstrar os impasses tanto de uma historiografia como de uma

compreensatildeo da filosofia que almejam fundar a seguranccedila de seu ofiacutecio

tendo como referecircncia em seu alicerce o rigor da linguagem cientiacutefica

Contudo pensando na temaacutetica de nosso trabalho se os impasses

instaurados pelo Mundo Claacutessico os mesmos que nos conduziram a uma

eacutepoca na qual em meio agraves dificuldades em compreender o Mundo Moderno

natildeo soacute quando a ideia de um fundamento jaacute natildeo faz sentido naturalismo

humanismo e teiacutesmo perderem sua razatildeo de ser mas tambeacutem tais

derrocadas acabaram por deixar as suas marcas em uma metodologia

filosoacutefica seria o abismo [Buqov] ou o silecircncio [Sigh] aquilo que nos resta A

partir deste cenaacuterio como ficaria a proacutepria filosofia Conforme vimos no

primeiro capiacutetulo se pensamos em Husserl o que encontramos nestas

paisagens sobretudo satildeo ruiacutenas que trazem in profundis nada mais e nada

menos do que uma crise da proacutepria Razatildeo Haveria pois um projeto de

racionalidade cujas raiacutezes natildeo satildeo em nada superficiais e que precisariam

ser reavaliados os seus pressupostos e fundamentos Nisto estariam os

embaraccedilos da filosofia consigo mesma talvez o sentido da indicaccedilatildeo

merleau-pontiana de uma situaccedilatildeo na qual natildeo se sabe o que se pensa logo

mediante a Crise da Razatildeo o engendramento tambeacutem de uma crise da

proacutepria filosofia Como a filosofia poderia sair deste labirinto No caso de

Husserl o caminho da filosofia encontrava-se em sua capacidade de dar um

282

ldquosentido filosoacuteficordquo ao mundo-da-vida ao inveacutes de simplesmente soterraacute-lo

ou cobri-lo com uma ldquovestimenta de ideiasrdquo (Idennkleid) (HUSSERL La crise

des sciences europeacuteennes et la Pheacutenomeacutenologie transcendantale sect 9 p 60)

procedimento este presente nas ciecircncias como nos salienta o proacuteprio

filoacutesofo

A vestimenta de ideias ldquoMatemaacutetica e ciecircncia matemaacutetica da naturezardquo ou ainda vestimenta de siacutembolos de teorias matemaacutetico-simboacutelicas compreende tudo aquilo que para os cientistas e para os homens cultivados substitui-se (enquanto natureza ldquoobjetivamente real e verdadeirardquo) ao mundo-da-vida e o traveste Eacute a vestimenta de ideias que faz com que tomemos pelo Ser verdadeiro aquilo que eacute Meacutetodo ndash um meacutetodo que estaacute ali para corrigir em uma progressatildeo ao infinito por antecipaccedilotildees ldquocientiacuteficasrdquo as antecipaccedilotildees grosseiras que satildeo originalmente as uacutenicas possiacuteveis no interior do efetivamente-experimentado (real e possiacutevel) do mundo-da-vida Eacute a vestimenta de ideias que faz com que o sentido autecircntico do meacutetodo das foacutermulas das teorias tenha permanecido incompreensiacutevel e que na ingenuidade do meacutetodo em seu nascimento nunca fora compreendido (HUSSERL 1976 sect 9 p 60)

Pelo que podemos ver conforme o filoacutesofo o que diferiria a

ldquovestimentardquo da filosofia e a da ciecircncia no que cabe agrave filosofia estaria em ser

uma experiecircncia de sentido logo uma experiecircncia da linguagem daiacute a

importacircncia de legitimar uma experiecircncia filosoacutefica da linguagem ou melhor

enquanto linguagem ndash dado que a filosofia passa a ser entendida justamente

como uma instituiccedilatildeo linguageira a se dar em um processo historial ndash que

diferentemente da linguagem cientiacutefica assumiria o projeto de natildeo deixar

escapar a experiecircncia que fazemos da Lebenswelt de uma Ur-doxa de uma

Ur-glaube ou para usar uma expressatildeo de Merleau-Ponty de nossa ldquofeacute

perceptivardquo (foi perceptive) Para isso conforme a Krisis a filosofia deveria

assumir sua tarefa de a partir de um ideal de razatildeo graccedilas a um heroiacutesmo

da razatildeo (Heroismus der Vernunft) superar o naturalismo de modo definitivo

Eacute a assim que a filosofia adquire em Husserl as faces de uma Fecircnix

ressuscitada ndash sendo ela mesma a inauguraccedilatildeo de uma ldquonova vida interiorrdquo ndash

a sair das ldquocinzas do niilismordquo (HUSSERL Ibidem p 382-3) Pelo que

notamos contudo nas fibras da Krisis ainda se sonhava com um ldquosaber

rigorosordquo a se dar como Prima Philosophia ou lembrando-nos de suas raiacutezes

gregas como Prwth Filosofia [Proteacute Philosophia] Ora como Merleau-Ponty

283

entenderia a Fecircnix husserliana Certamente a Fecircnix merleau-pontiana

longe de ser aquela de um ldquobom europeurdquo nasceria de uma filosofia que

estaacute conforme procuramos mostrar anteriormente muito longe de ser um

pensamento puro e isto se evidencia no papel que a fenomenologia

desempenha nas pesquisas de Merleau-Ponty Contudo se a Fecircnix adquire

em Merleau-Ponty um outro estatuto poderiacuteamos encontrar nele tambeacutem no

que diz respeito ao modo pelo qual se procurava compreender uma

ldquoexperiecircncia do sentidordquo tal como parece percorrer seus trabalhos aquele

mesmo movimento presente em Husserl entre uma fenomenologia

ldquoestaacuteticardquo fundamentada em uma anaacutelise dos objetos da consciecircncia e uma

fenomenologia ldquogeneacuteticardquo176 centrada nos processos de constituiccedilatildeo de

sentido

De acordo com Slatman se pensamos em La Structure du

comportement e Pheacutenomeacutenologie de la perception como a explicitaccedilatildeo de duas

perspectivas frente a um uacutenico e mesmo fenocircmeno poderiacuteamos pensar que

haacute no pensamento merleau-pontiano um duplo movimento rumo agraves coisas

mesmas de um lado um movimento arqueoloacutegico entendido aqui como a

descoberta em meio aos sedimentos do mundo-da-vida unicamente de

outro como nomearaacute Slatman um movimento genealoacutegico mas que em

Merleau-Ponty iria se concentrar em uma experiecircncia filosoacutefica do sentido e

da expressatildeo presentes naquilo que fora descoberto como fundamento no

exerciacutecio arqueoloacutegico177 Por conseguinte o direcionamento merleau-

176 ldquoDeacutejagrave chez Husserl on peut faire une distinction entre la phenomenologie statique et la phenomenology geacuteneacutetique perspective statique concerne une analyse des objets de la conscience la perspective geacuteneacutetique se concentre plutocirct sur le processus de la constitution du sens Dans la penseacutee de Merleau-Ponty on peut eacutegalement reconnaicirctre une distinction semblable Pourtant chez lui il ne srsquoagit pas drsquoune distinction entre la vue statique et la vue geacuteneacutetique mais plutocirct drsquoune distinction entre la vue archeacuteologique et la vue geacuteneacutetique (ou geacuteneacuteologique) Selon la premiegravere la pheacutenomeacutenologie cherche agrave deacuteterminer les fondements de notre connaissance et selon la deuxiegraveme elle cherche agrave expliquer la genegravese du sens agrave partir de ces fondements archeacuteologiques rdquo (SLATMAN 2001 p 38) 177 Como acentua Slatman ldquoDans la penseacutee de Merleau-Ponty on peut eacutegalement reconnaicirctre une distinction semblable [agrave la de Husserl] Pourtant chez lui il ne srsquoagit pas drsquoune distinction entre la vue statique et la vue geacuteneacutetiquemais plutocirct drsquoune distinction entre la vue archeacuteologique et la vue geacuteneacutetique (ou geacuteneacutealogique) Selon la premiegravere la pheacutenomeacutenologie cherche agrave deacuteterminer les fondements de nostre connaissance et selon la deuxiegraveme elle cherche agrave expliquer la gecircnese du sens a partir de ces fondements archeologiquesrdquo (SLATMAN 2001 p 38)

284

pontiano agraves ciecircncias humanas pode ser entendido como esta procura

arqueoloacutegica e neste sentido parece-nos que a sua relaccedilatildeo com as ciecircncias

e o seu modo de encontrar uma saiacuteda para a Crise eacute diferente daquela

proferida por Husserl Merleau-Ponty ao voltar-se para as ciecircncias procura

desconstruir em primeiro lugar uma tradiccedilatildeo neo-kantiana sem contudo

fazer uso de um programa meramente empirista Daiacute o enveredamento pelos

caminhos da percepccedilatildeo como tentativa de uma dupla superaccedilatildeo ao mesmo

tempo do empirismo e do intelectualismo Assim a percepccedilatildeo mais do que

uma archeacute tenciona revelar a gecircnese de uma experiecircncia de sentido longe

de qualquer teleologia o qual tem seu berccedilo em uma vivecircncia perceptiva do

mundo no entrelaccedilamento que se articula entre o logoj [loacutegos] ndash entendido

como ldquologoj [loacutegos] do mundo esteacuteticordquo (MERLEAU-PONTY 1960 p 218) o

ldquologoj [loacutegos] perceptivordquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 233) o ldquologov

endiaqetov [loacutegos endiaacutethetos]rdquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 222 224 266)

o ldquologov proforikov [loacutegos prophorikoacutes]rdquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 222) o

ldquoespiacuterito selvagemrdquo a ldquopalavra silenciosardquo (Parole silencieuse) (MERLEAU-

PONTY 1964a p 322) a ldquopalavra verticalrdquo (Parole verticale) ndash por fim entre

physis e histoacuteria178 Na tensatildeo existente neste entrelaccedilamento por natildeo se

privilegiar um dos poacutelos inclusive o que estaacute em jogo eacute em primeiro lugar

a experiecircncia da expressatildeo e parece-nos aqui que haacute verdadeiramente um

caminho de enfrentamento da Crise no acircmbito filosoacutefico mas a partir de

uma indagaccedilatildeo crucial aquela que nos leva a querer entender o movimento

pelo qual seja possiacutevel agrave filosofia considerada como uma ldquoordem de

significaccedilotildeesrdquo ndash sem cair no operacionalismo da ciecircncia ndash desvelar a

178 ldquoLa recherche geacuteneacutealogique de la constitution du sens implique ainsi une recherche de lrsquoorigine lsquodissimuleacuteersquo en tant qursquoune forme du logos qui se lsquocachersquo dans le monde de la vie preacutepreacutedicative preacutescientifique comme une verborgene Vernunft (NC 77) Pour lrsquoindiquer Merleau-Ponty emploie des termes qui indiquent une transformation de la notion traditionelle de logos (ou de rationaliteacute) lsquologos endiathetosrsquo (VI 222 224 266) lsquologos perceptifrsquo (VI 233) lsquologos du monde estheacutetiquersquo (S 218) et lsquolrsquoesprit sauvagersquo Et au niveau du langage ce logos est appeleacute lsquoParole silencieusersquo (VI 322) ou lsquoParole verticalersquo Le premier but de la pheacutenomeacutenologie geacuteneacutealogique est donc deacutegager une forme de logos eacutetant impliqueacutee dans la vie percpetive De cette maniegravere le retour aux choses mecircmes exige qursquoon remonte agrave un logos ou langage qui se manifeste deacutejagrave dans la vie perceptive avant qursquoil soit langage explicite prononceacute La lsquochose mecircmersquo est justement la chose dans la perspective ouacute elle nrsquoa pas encore une signification seacutedimenteacutee ou une chose dite La pheacutenomeacutenologie lsquogeacuteneacutealogiquersquo doit retornour agrave ce niveau du langagerdquo (SLATMAN 2001 p 41)

285

experiecircncia deste logoj [loacutegos] tornar patente uma linguagem silenciosa

ainda muda Como indaga o filoacutesofo em uma nota datada de Abril de 1960

ldquocomo restituir pela filosofia (isto eacute na ordem das significaccedilotildees) a palavra

vertical (parole verticale) (que eacute anterior agraves significaccedilotildees) Mas as

significaccedilotildees que propotildee a filosofia satildeo enigmas a serem decifrados pela

proacutepria experiecircnciardquo (MERLEAU-PONTY NBNF [342] (12)) Natildeo nos lembra

esta advertecircncia as primeiras paacuteginas de Le Visible et LrsquoInvisible

[] A filosofia natildeo eacute um leacutexico natildeo se interessa pelas ldquosignificaccedilotildees das palavrasrdquo natildeo procura substituto verbal para o mundo que vemos natildeo o transforma em coisa dita natildeo se instala na ordem do dito ou do escrito como o loacutegico no enunciado o poeta na palavra ou o muacutesico na muacutesica Satildeo as proacuteprias coisas do fundo de seu silecircncio que deseja conduzir agrave expressatildeo (MERLEAU-PONTY 1964a p 18)

Aqui se entende a filosofia como este movimento pelo qual as

ldquocoisas mesmasrdquo satildeo conduzidas agrave expressatildeo e natildeo satildeo simplesmente

substituiacutedas tarefa esta nada faacutecil de ser compreendida quiccedilaacute realizada

Mas esta dificuldade natildeo eacute desconhecida pelo filoacutesofo e nem por isso

considera impossiacutevel tal empreendimento A questatildeo eacute a necessidade

sentida por Merleau-Ponty em entender aquela ldquovestimenta de ideiasrdquo

(Idennkleid) da filosofia que desde Husserl tenciona separar-se da

ldquovestimenta de ideiasrdquo (Idennkleid) do discurso cientiacutefico Em outros termos

se a filosofia natildeo tem outro destino senatildeo a atividade meramente conceitual

eacute possiacutevel conceituar sem ao mesmo tempo um ldquoocultamento das origensrdquo

sem uma ldquosedimentaccedilatildeordquo ou velamento daquele mundo-da-vida que se

esperava justamente desvelar e liberar da cadeia das simbolizaccedilotildees Eacute

preciso pois romper com a concepccedilatildeo de uma filosofia que seja meramente

um tratamento do tipo lexical o que exige do olhar filosoacutefico uma mudanccedila

radical de seu modo de encarar a proacutepria experiecircncia do mundo e

poderiacuteamos acrescentar a sua Skeyij [skeacutepsis] 179

179 Skeacutepsis (Σκέψις) eacute uma palavra grega que pode ser traduzida como exame anaacutelise observaccedilatildeo consideraccedilatildeo olhar atento duacutevida sistemaacutetica reflexatildeo meditaccedilatildeo Vem do verbo grego skeptomai Liga-se a um ldquoolhar atentamenterdquo a realidade a uma verificaccedilatildeo rigorosa de toda doxa de toda opiniatildeo ou percepccedilatildeo Ceticismo origina-se dessa palavra grega embora como podemos notar em seu sentido originaacuterio significa antes uma

286

Neste sentido vale lembrar que um dos alvos de Merleau-Ponty

centra-se como nos eacute manifesto em seus trabalhos na legitimidade que toda

ἐπιστήmicroη [episteacuteme] ou antes que toda ciecircncia deve adquirir graccedilas a uma

Skeyij180 que eacute antes de tudo negativa Eacute assim que a skeacutepsis cartesiana

natildeo deixa de ser negativa ela rompe com o mundo afasta-se dele indaga

sobre sua existecircncia A proposta merleau-pontiana por sua vez funda-se

em uma inversatildeo no modo de entender a skeacutepsis entendendo-a antes

positivamente e como tal ao contraacuterio de procurar ldquoprovarrdquo (prouver) a

certeza da existecircncia do mundo procura explicitar o seu sentido

experimentaacute-lo (eacuteprouver) expressaacute-lo pois vecirc como impossiacutevel a proacutepria

negaccedilatildeo do mundo Ao contraacuterio da pretensa ingenuidade objetiva da

ciecircncia devemos encontrar a ingecircnua subjetividade do pensador que

formula uma experiecircncia do mundo estando primeiramente em contato

com este mesmo mundo Assim falar do mundo eacute referir-se ao ldquohorizonterdquo

maior donde todos os outros satildeo possiacuteveis e do ponto originaacuterio de toda

percepccedilatildeo Neste sentido se haacute algo que Merleau-Ponty natildeo se esquecera em

suas leituras de Husserl eacute que a percepccedilatildeo encontra um lugar privilegiado

quando se trata de nossa experiecircncia do mundo a ponto de a ldquovida

perceptivardquo se tornar inclusive um modelo de nossa relaccedilatildeo com o

verdadeiro181

Ora se a percepccedilatildeo eacute um dos leitmotiven da obra de Merleau-

Ponty natildeo seria situando-nos no interior do diaacutelogo entre os saberes que se

poderia compreendecirc-la melhor Afinal o que seria uma ldquofenomenologia da

ldquoduacutevidardquo sistemaacutetica e uma investigaccedilatildeo que natildeo tem por fim negar um conhecimento tido como absolutamente certo (DERRIDA 1992) 180 Sobre a skepsis na Krisis Husserl nos diz o seguinte ldquoToujours davantage lrsquohistoire de la philosophie regardeacutee de lrsquointeacuterieur prend le caractere drsquoun combat pour son existence agrave savoir le combat entre une philosophie dont la vie se passe agrave accomplir directement sa tacircche ndash la philosophie dans la foi naiumlve agrave la raison ndash et une skepsis qui en est la neacutegation ou la deacutevaluation empiriste Inlassablement cette skepsis remet en vigueur le monde veacutecu-en-fait celui de lrsquoeacutexperience reacuteelle comme ce dans quoi il nrsquoy a nulle raison ni aucune ideacutee rationelle agrave trouver Toujours davantage la raison elle-mecircme et son lsquoeacutetantrsquo deviennent eacutenigmatiques ou encore la raison comme ce qui donne sens par soi-mecircme au monde et le monde comme ce qui est par la raison tant qursquoagrave la fin le problegraveme du monde devenu problegraveme conscient celui de la plus profonde liaison essentielle de la raison et de lrsquoeacutetant en geacuteneacuteral lrsquoeacutenigme des eacutenigmes devait devenir proprement le thegraveme de la philosophierdquo (HUSSERL 1976 p 19) 181 (MOURA 2001 p 197 e seguintes)

287

percepccedilatildeordquo Aonde ela nos leva A que ela nos introduz A uma experiecircncia

preacutevia do mundo preacute-reflexiva anterior aos juiacutezos da ciecircncia e da filosofia a

um universo ainda mudo de opiniotildees latente e inesgotaacutevel Todavia natildeo se

trata de um aquecimento preacutevio agrave contemplaccedilatildeo de juiacutezos verdadeiros que

seriam elucidados melhor pelo entendimento O contraacuterio tambeacutem natildeo eacute

verdadeiro natildeo se trata de negar a reflexatildeo em vista de uma verdade uacuteltima

dos sentidos em uma ingecircnua retomada do realismo pois ldquonatildeo basta

constatar que haacute uma certa archeacute na percepccedilatildeo eacute preciso igualmente

explicar como esta percepccedilatildeo serve jaacute como raiz de toda forma de expressatildeo

quer dizer como a raiz natural de todas as instituiccedilotildees culturais como a

linguagem e a arterdquo (SLATMAN 2001 p 40) Logo a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo

seraacute bem diferente O seu projeto passa por uma revisatildeo da coerecircncia

existente entre quaeligstiones facti e quaeligstiones iuris que natildeo poderia deixar de

exigir uma revisatildeo da proacutepria experiecircncia da Filosofia e do logoj [loacutegos]

Pensando assim o olhar filosoacutefico ao menos como ldquoreflexatildeo radicalrdquo volta-se

para o mundo pode distanciar-se dele ndash a experiecircncia da percepccedilatildeo

inclusive eacute uma experiecircncia vivida na distacircncia vivida na dinacircmica do

desejo do que natildeo estaacute imediatamente presente ndash mas jamais abandonaacute-lo

O olhar se volta sobre o mundo natildeo para dissecaacute-lo mas para interrogaacute-lo

simplesmente porque o reconhece como inesgotaacutevel como misterioso Daiacute

natildeo ter sentido o ldquosecular argumento do sonho do deliacuterio ou da ilusatildeordquo

(MERLEAU-PONTY 1964a p 18) Pelo contraacuterio eacute a reabilitaccedilatildeo do

percebido enquanto este logoj [loacutegos] silencioso e como jaacute indicado como

experiecircncia do verdadeiro e isto porque contrariando os ensinamentos de

Lavelle especialmente De lrsquoecirctre e La presence totale na ontologia merleau-

pontiana o mundo perceptivo torna-se o Ser propriamente dito Daiacute o

sentido da confissatildeo do filoacutesofo em uma nota datada de janeiro de 1959

[Iteraccedilatildeo da Lebenswelt fazemos uma filosofia da Lebenswelt nossa construccedilatildeo (no modo da ldquoloacutegicardquo) faz-nos reencontrar esse mundo do silecircncio Reencontrar em que sentido Eu jaacute estava laacute Como dizer que laacute estava jaacute que ningueacutem sabia dele antes de o filoacutesofo falar a seu respeito No entanto implicava e o implica Ele estava precisamente como Lebenswelt natildeo tematizado Em um sentido ainda estaacute implicado como natildeo tematizado pelos proacuteprios enunciados que o descrevem pois os enunciados como tais vatildeo por sua vez sedimentar-se vatildeo ser ldquoretomadosrdquo pela Lebenswelt seratildeo incluiacutedos

288

nela na medida em que subentendem toda uma Selbstverstaumlndlichkeit ndash esta natildeo impede entretanto a filosofia de ter valor de ser outra coisa e mais do que simples produto parcial da Lebenswelt encerrado numa linguagem que nos conduz Entre a Lebenswelt como Ser universal e a filosofia como produto extremo do mundo natildeo haacute rivalidade ou antinomia eacute ela que o desvela] (MERLEAU-PONTY 1964a p 222)

Para Merleau-Ponty mesmo uma Selbstverstaumlndlichkeit a

evidecircncia diaacutefana e aparente ndash que por ser transluacutecida tornaria dispensaacutevel

todo e qualquer esforccedilo da razatildeo em tentar entendecirc-la ndash poderia impedir a

experiecircncia de um ser opaco misterioso e enigmaacutetico o ser mesmo da

Lebenswelt Nessa concepccedilatildeo parece-nos que estaacute em jogo aquilo que em

uma nota possivelmente de marccedilo de 1959 o filoacutesofo chama de ldquoa filosofia

como interrogaccedilatildeo pura desvelamento do universo do Ineinanderrdquo

(MERLEAU-PONTY NBNF [161]) mas vale salientar interrogaccedilatildeo que natildeo eacute

simplesmente superada pela resposta que ainda permanece em seu tecido

porque natildeo se trata de outro modo senatildeo daquele pelo qual se pode

apreender o ldquoSer verticalrdquo transcendente distante dado que interrogar

significa apenas ldquofazer falar a experiecircncia mudardquo Se entendermos Gebilde

como criaccedilatildeo cultural182 formaccedilatildeo ou estrutura partilhada e como tal

carregada de um caraacuteter objetivo a filosofia seria justamente essa Gebilde

humana a efetuar-se em uma comunidade linguiacutestica logo tanto uma

ldquoarquitetura de signosrdquo como uma interaccedilatildeo social e histoacuterica tanto a

sedimentaccedilatildeo de um logov proforikov [loacutegos prophorikoacutes] de um logoj

[loacutegos] proferido como a gecircnese expressiva de um logov endiaqetov [loacutegos

endiaacutethetos] de um logoj [loacutegos] ao mesmo tempo silencioso e indireto183

182 ldquoLa philosophie comme creacuteation (Gebilde) reposant sur elle-mecircme ndash cela ne peut ecirctre la veacuteriteacute derniegravere Car ce serait une creacuteation qui se donne pour le but drsquoexprimer en Gebilde ce qui est von selbst (le Lebenswelt comme Nature) sont tous deux abstraits et insuffisants On ne peut srsquoinstaller agrave aucun de ces 2 niveaux Il srsquoagit drsquoune creacuteation qui est appeleacutee et engendreacutee par le Lebenswelt comme historiciteacute opeacuterante latente qui la prolonge et en teacutemoigne ndash rdquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 225) 183 ldquoOn ne peut en quelques mots esquisser une philosophie Disons seulement qursquoil faudrait une philosophie de lrsquoecirctre brut qursquoil y a une maniegravere de rendre le monde explicable ndash et une eacutetude attentive du sens un autre sens que le sens des ideacutees un sens fuyant et allusif auquel manque toute puissance directe sur les choses quoi qursquoil y paraisse et srsquoy deacuteveloppe pour peu que certains obstacles aient eacuteteacute levesrdquo (MERLEAU-PONTY 2000b p 299)

289

Em outros termos para o pensador natildeo haacute uma filosofia

exercida como um simples jogo de palavras entregues a si mesmas Pelo

contraacuterio a filosofia encontra-se justamente no ldquoseio da histoacuteriardquo

(MERLEAU-PONTY 1964a p 58) cumprindo a tarefa inesgotaacutevel de

substituir o ldquosimbolismo taacutecito da vidardquo por um ldquosimbolismo conscienterdquo do

mesmo modo que um ldquosentido latenterdquo por um ldquosentido patenterdquo184 Assim

conforme as palavras de Merleau-Ponty ldquoa filosofia volta-se para a atividade

simboacutelica anocircnima da qual emergimos e para o discurso pessoal que em noacutes

mesmos se constroacutei que somos noacutes mesmos perscruta aquele poder de

expressatildeo que os outros simbolismos se limitam a exercerrdquo (MERLEAU-

PONTY 1964a p 58) O que lhe compete fazer no momento em que tem

ldquocontatordquo com os fatos e com a experiecircncia Continua o filoacutesofo cabe-lhe

ldquocaptar rigorosamente os momentos fecundos em que um sentido toma

posse de si mesmo recupera e impele para aleacutem de qualquer limite o devir

da verdade que pressupotildee e faz com que haja uma uacutenica e mesma histoacuteria e

um uacutenico mundordquo (MERLEAU-PONTY 1964a p 58) Mas como se daacute este

exerciacutecio de expressatildeo Como ocorre a passagem de um logov proforikov

[loacutegos prophorikoacutes] a um logov endiaqetov [loacutegos endiaacutethetos] na experiecircncia

filosoacutefica Como Merleau-Ponty a discute

No pensamento merleau-pontiano diretamente natildeo

encontramos uma tematizaccedilatildeo dessa passagem no que concerne agrave

filosofia185 Poreacutem isto natildeo significa que o filoacutesofo natildeo o faccedila atitude esta

184 Deste modo Merleau-Ponty estaria proacuteximo da fenomenologia husserliana no sentido em que ela portanto rejeita ldquo[] a teoria dos dois mundos segundo a qual haveria um mundo da percepccedilatildeo e um mundo do pensamento O que nos ensina [Husserl] eacute que haacute perspectivas diferentes sobre o mesmo mundo a perspectiva da atitude natural e a perspectiva da atitude transcendentalrdquo (SLATMAN 2001 p 36) 185 Eacute o que nos confirmaraacute Slatman ao dizer que ldquoil faut savoir que dans lrsquooeuvre de Merleau-Ponty on ne trouve pas une investigation de la philosophie concernant la relation entre ces deux moments du langage La relation entre le langage prononceacute prophorikos ou direct drsquoun cote et le langage silencieux endiathetos ou indirect de lrsquoautre est surtout examine par rapport agrave lrsquoexpression artistique et non pas par rapport agrave lrsquoexpression philosophique Crsquoest speacutecialement dans les eacutecrits qui portent sur la peinture comme Le Langage indirect et les voix du silence et Lrsquoœil et lrsquoesprit que Merleau-Ponty expose le voix du silence ou le logos endiathetos dans lrsquoexpression Son analyse conduit agrave la conclusion que crsquoest surout lrsquoart qui incarne les voix du silence et qui nous offre en premier lieu une image complete du pheacutenomegravene de lrsquoexpression Cette observation nous fait deviner que srsquoil est vrai que la philosophie est encore possible si elle peut faire justice au retour aux choses mecircmes

290

que por si soacute parece-nos jaacute querer dizer alguma coisa A passagem caso se

queira acompanhaacute-la eacute buscada no que se considerava ateacute entatildeo o fora da

filosofia a saber na experiecircncia artiacutestica nomeadamente na experiecircncia da

pintura186 O que isto significa Sem duacutevida grosso modo a negaccedilatildeo de uma

ldquofilosofia purardquo e natildeo como nos parece ser o erro de leitura de Robinet uma

ldquocezanizaccedilatildeordquo do texto na qual ldquose equivoca de objeto de linguagem de

meacutetodo e de lsquoestilorsquordquo (ROBINET 1993 p 335-6) dado que o que estaacute em jogo

eacute muito mais do que uma ldquopicturalizaccedilatildeo inspirada em Ceacutezannerdquo (ROBINET

1993 p 335-6)

Por conseguinte diante do que se considerava o

enfraquecimento e a perdiccedilatildeo da filosofia eacute que a Fecircnix merleau-pontiana

adquire sentido ldquoa filosofia encontraraacute ajuda na poesia na arte etc em

uma relaccedilatildeo muito mais estreita com elas assim ela renasceraacute e

reinterpretaraacute seu proacuteprio passado de metafiacutesica ndash que natildeo eacute passadordquo

(MERLEAU-PONTY 1996 p 39) A ek-stasis do discurso filosoacutefico natildeo eacute o

seu proacuteprio fim muito pelo contraacuterio eacute aquilo que o torna propriamente

possiacutevel187 Por conseguinte se haacute uma Crise aqui ela eacute vista como uma

oportunidade de conciliaccedilatildeo do que se desenrolara na tensatildeo de dois reinos

a filosofia e a natildeo-filosofia a saber a ciecircncia a literatura a psicanaacutelise etc

O solo comum a estas duas instacircncias eacute o que interessa a Merleau-Ponty e eacute

por esta razatildeo que ele entenderaacute que neste conflito estaacute velada uma Crise

das ldquofilosofias do enterdquo ou das ldquoontologias regionaisrdquo que por sua vez vela

et donc agrave ce moment qui precede le langage direct il faut qursquoil y ait une certaine affiniteacute entre la philosophie et lrsquoart ou plus preacuteciseacutement entre lrsquoexpression philosophique et lrsquoexpression artistiquerdquo (SLATMAN 2001 p 36) 186 ldquoDans quelques notes de travail Merleau-Ponty preacutesente lrsquoideacutee drsquoune histoire verticale de la philosophie [] Elle se limite ni agrave poser des questions agrave une oeuvre historique qui y sont deacutejagrave poseacutees ni agrave poser des questions qui nrsquoy sont pas em jeu [] Une telle histoire est possible em approchant une oeuvre historique non pas comme une chose toute faite mais comme quelque chose qui invite agrave penser lrsquoimpenseacute une oeuvre qui est comparable agrave une oeuvre drsquoart lsquoMon point de vue une philosophie comme une oeuvre drsquoart crsquoest un objet qui peut susciter um sens hors de son contexte historique qui nrsquoa meme sens que hors de ce contexte (VI253)rdquo (SLATMAN 2001 p 56) 187 ldquoPour Merleau-Ponty [] le Pheacutenix de la penseacutee occidentale pourrait renaicirctre mais seulement agrave condition qursquoil ne soit plus purement philosophique Contrairement agrave lrsquoaspiration rationaliste de Husserl Merleau-Ponty cherche agrave deacutevelopper um chemin entre une philosophie transcendentale et la foi percpetive primordiale um chemin alors qui pourrait rendre justice agrave lrsquoattitude ambigueuml du retour aux choses mecircmesrdquo (SLATMAN 2001 p 44)

291

tambeacutem o que permearaacute o que consideramos como proto-ruiacutena188 Eacute preciso

revisar os conceitos metafiacutesicos que servem de carro-chefe de cada regiatildeo

ontoloacutegica sabendo que ao inveacutes de antagocircnicas as diacuteades que instalam

satildeo aleacutem de parentes fundamentalmente cuacutemplices189 uma vez que

[] a filosofia ainda eacute possiacutevel se deixar de ser uma filosofia pura E eacute neste contexto que se compreende o uso do termo ldquonatildeo-filosofiardquo na obra tardia de Merleau-Ponty o pensamento filosoacutefico se desenvolve notadamente por uma ldquoconversardquo com o que estaacute fora da filosofia seja as ciecircncias do homem seja a arte Mesmo se este termo natildeo apareccedila senatildeo nos uacuteltimos cursos pode-se afirmar que todo pensamento de Merleau-Ponty acontece na intersecccedilatildeo da filosofia com a natildeo-filosofia (SLATMAN 2001 p 43)

Eacute procurando entender a Fecircnix merleau-pontiana a partir de um

diaacutelogo constante entre filosofia e ldquonatildeo-filosofiardquo que no proacuteximo capiacutetulo

nos centramos no que seria uma ldquocriserdquo presente na ldquocompreensatildeo do

homemrdquo procurando mostrar como a partir de um diaacutelogo com a ciecircncia o

filoacutesofo apresenta uma via de compreensatildeo do humano que natildeo esteja

impregnado seja pelo racionalismo seja pelo cientificismo

188 Nas margens de uma nota datada de 23 de setembro assinalaraacute o filoacutesofo ldquoCette crise des PH de lrsquoeacutetant ou des ontologies reacutegionales recouvre une crise des concepts meacutetaphysiques agrave lrsquoaide desquels nous deacutefinissons chacune des reacutegions des eacutetants crise du possible et de lrsquoactuel de lrsquoessence et de lrsquoexistence de la causaliteacute et de la finaliteacute crise de lrsquoesprit et du corps du sujet et de lrsquoobjet crise de lrsquoinfini et du fini Ces notions (et non seulement les 3 eacutetants) passes lrsquoune dans lrsquoautrerdquo [MERLEAU-PONTY NBNF [2] (1)) 189 Eacute por essa razatildeo que se compreende a referecircncia constante de Merleau-Ponty por exemplo aos trabalhos da psicologia moderna Eacute superando o cordatildeo sanitaacuterio fincado entre filosofia e ciecircncia que eacute suscetiacutevel ao filoacutesofo encontrar um territoacuterio comum no qual seja possiacutevel compreender a relaccedilatildeo entre homem e mundo sem se tornar viacutetima de um discurso absoluto seja em primeira pessoa ndash no trabalho da filosofia ndash seja em terceira pessoa ndash no trabalho da ciecircncia (MERLEAU-PONTY 2000b p 11)

292

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

ldquoUna est quae reparet seque ipsa reseminet ales Assyrii phoenica uocant non fruge neque herbis sed turis lacrimis et suco uiuit amomi [] haec ubi quinque suae conpleuit saecula uitae ilicet in ramis tremulaeque cacumine palmae unguibus et puro nidum sibi construit ore quo simul ac casias et nardi lenis aristas quassaque cum fulua substrauit cinnama murra [] se super inponit finitque in odoribus aeuum inde ferunt totidem qui uiuere debeat annos corpore de patrio paruum phoenica renasci cum dedit huic aetas uires onerique ferendo est ponderibus nidi ramos leuat arboris altae [] fertque pius cunasque suas patriumque sepulcrum perque leues auras Hyperionis urbe potitus ante fores sacras Hyperionis aede reponitrdquo (OVIacuteDIO) 190 Nichts ist drinnen nichts ist drauszligen denn was innen ist ist auszligen (GOETHE)

Ao comeccedilar o nosso trabalho seguindo os objetivos de nosso

projeto a nossa intenccedilatildeo foi a de mostrar alguns delineamentos da ideia de

ldquocriserdquo Sendo assim partimos de Valeacutery e de Husserl procurando elucidar

frente agrave ideia de ldquocriserdquo presente nestes pensadores o posicionamento de

Merleau-Ponty seja diretamente como no caso de Husserl seja

indiretamente no caso de Valeacutery Mesmo que Merleau-Ponty natildeo tenha

diretamente feito referecircncia agrave ldquocriserdquo apresentada por Valeacutery consideramos

importante lhe fazer referecircncia por nos ajudar a melhor compreender as

questotildees filosoacuteficas que serviram de fundo ao pensamento merleau-pontiano

aleacutem do fato de que a apresentaccedilatildeo de uma ldquocrise do espiacuteritordquo pode tambeacutem

nos situar melhor frente ao sentido de uma ldquocrise da Razatildeordquo tal como foi

entendida por Husserl Daiacute a importacircncia que demos agrave noccedilatildeo husserliana de

190 Traduccedilatildeo ldquoHaacute sobre a terra um paacutessaro uacutenico que engendra a si mesmo e renova a si mesmo os Assiacuterios o chamam de Fecircnix Ele natildeo se alimenta nem de ervas nem de frutos ele vive das gotas de incenso e dos sucos de gengibre Quando viu cinco seacuteculos marcar o teacutermino de sua vida ele constroacutei com suas garras e com seu bico um ninho sobre os altos ramos de um carvalho ou sobre o cimo trecircmulo de uma palmeira ele preenche com leves varetas de canela de nardo de mirra e de cinamomo se deita sobre uma fogueira odoriacutefera e morre nos perfumes Relata-se que uma jovem fecircnix renasce entatildeo das cinzas de seu pai e que um mesmo nuacutemero de seacuteculos deve marcar sua existecircncia Quando a idade lhe deu forccedilas e quando pode carregar suas asas ela retira do peso do ninho os ramos da aacutervore levante este piedoso fardo o carrega nos ares chega agrave cidade do Sol e diante das portas sagradas do templo deste deus deposita o tuacutemulo de seu pai e seu proacuteprio berccedilordquo (As Metamorfoses [15 391-407])

293

crise mediante a proposta de um retorno agrave Lebenswelt ao mundo-da-vida

explicitando-a como uma criacutetica ao cientificismo e consequentemente ao

naturalismo Como se tratava de um ldquodiaacutelogordquo da tentantiva de situar o

projeto de Merleau-Ponty no campo dos horizontes abertos pela Krisis

husserliana natildeo poderiacuteamos deixar de dedicar algumas paacuteginas ao

pensamento husserliano tal como ele procurara se apresentar a si mesmo

Por conseguinte procuramos mostrar as faces ou consequecircncias de um

retorno agrave Lebenswelt ou seja o direcionamento a um mundo originaacuterio

preacutevio mostrando em linhas gerais o movimento arqueoloacutegico presente nos

uacuteltimos trabalhos de Husserl assim como a sua repercussatildeo em Merleau-

Ponty Aleacutem disso foi interessante notar as metamorfoses que a ideia de

ldquocriserdquo presente em outras eacutepocas sofrera e como ela se inseriu nos

cenaacuterios da filosofia contemporacircnea deixando de ser como em Descartes a

denuacutencia de uma ldquocrise das ciecircnciasrdquo para se tornar a constataccedilatildeo de uma

Crise do ldquoespiacuteritordquo de uma Krisis da Razatildeo e por fim de uma crise dos

ldquopontos de vistardquo acerca do homem Deste modo a partir deste horizonte o

que esperaacutevamos era apresentar alguns aspectos argumentativos que nos

auxiliassem a compreender o modo como Merleau-Ponty encarara estas

percepccedilotildees e desdobramentos filosoacuteficos de sua eacutepoca fazendo com que

embora compartilhasse tambeacutem deste sentimento tivesse uma compreensatildeo

proacutepria conforme se harmonizasse com os projetos de sua filosofia Eacute neste

sentido que sentimos a necessidade de apresentar a criacutetica feita pelo filoacutesofo

na gecircnese da crise tanto agrave transformaccedilatildeo cartesiana do mundo em um mero

ldquoespetaacuteculordquo para a consciecircncia enfocando o problema da representaccedilatildeo e

da similitude ndash o mesmo que fora um dos motores dos impasses presentes

na ciecircncia claacutessica ndash como tambeacutem aos embaraccedilos do conceito cartesiano de

Natureza Por conseguinte natildeo nos olvidando do modo como isso iria

modificar a compreensatildeo que se tinha do proacuteprio exerciacutecio filosoacutefico

Deste modo a partir deste fundo ao se pensar na ideia de uma

Crise da Razatildeo certamente tambeacutem natildeo poderiacuteamos ter fugido da ideia de

uma possiacutevel Crise da Filosofia Se a crise conforme procuramos discutir no

entender de Merleau-Ponty encontra-se na tensatildeo existente entre o saber

cientiacutefico e o saber filosoacutefico diante dos avanccedilos da ciecircncia raros natildeo seratildeo

294

dentre as letras de seus contemporacircneos os diversos diagnoacutesticos de uma

decadecircncia do proacuteprio labor filosoacutefico ou mesmo as indagaccedilotildees de sua

possibilidade A filosofia nesta perspectiva ainda presa no imaginaacuterio de um

sujeito absoluto natildeo teria acompanhado os desdobramentos e avanccedilos da

experiecircncia Estaria pois o filoacutesofo ainda preso na seguranccedila de seu

gabinete condenado agraves divagaccedilotildees de seu pensamento natildeo sendo capaz de

confrontar as suas ideias com o que o laboratoacuterio tatildeo-somente era capaz de

legitimar A filosofia estaria perdida portanto nos labirintos do non-sense

teria ela proacutepria se tornado cinzas Eacute neste sentido que segundo Revel

ldquoquando se eacute francecircs certamente haacute um bom tempo que se deixou de sentir

orgulho de ser filoacutesofo neste jardim da preguiccedila que eacute a filosofia a Franccedila

dorme uma sesta particularmente longa Nunca foi o pensamento filosoacutefico

tatildeo deacutebil como desde o iniacutecio do seacuteculo XIXrdquo (REVEL 1957 p 51) A criacutetica eacute

dirigida diretamente agrave cultura universitaacuteria pois a seu ver ldquonatildeo eacute por

causalidade que tal pobreza filosoacutefica impere na Franccedila desde o iniacutecio do

seacuteculo XIX isto eacute a partir da criaccedilatildeo da Universidaderdquo (REVEL 1957 p 51)

Eacute interessante o modo como Revel se aproxima das questotildees filosoacuteficas e do

modo como articula a histoacuteria da filosofia especialmente o seu meacutetodo

demonstrando as ilusotildees para parafrasear outra obra sua de um

ldquoconhecimento inuacutetilrdquo (REVEL 1988) Qual o sentido de um cacoete tatildeo

marcante nos historiadores da filosofia como por exemplo ldquoAristoacuteteles

deverdquo ldquoeacute preciso admitir querdquo ldquoDescartes insisterdquo ldquoo pensador

operardquo assim como as descriccedilotildees que mais lembram as de um espectador

de uma ldquocordilheirardquo191

191 ldquoNatildeo se sabe jaacute muito bem desde que ponto de vista escreve o historiador Desde o ponto de vista dos contemporaacuteneos do autor Mas os contemporaacuteneos natildeo levam nunca a seacuterio um autor como faz o historiador Desde o ponto de vista do leitor atual Mas o historiador natildeo tenta dizer o que significariam para noacutes os problemas do autor nem se significariam algo O historiador descreve como se descrevesse uma cordilheira ldquoEm linhas gerais (escreve outro historiador da filosofiacutea ainda mais eminente ao falar de Malebranche e de Berkeley) o problema do fundamento do objeto parece se abordar em termos anaacutelogos tanto em um como em outro Operam ambos com um universo de representaccedilotildees no eu e ambos devem explicar a afirmaccedilatildeo de um mundo de objetos sem recurso algum a uma mateacuteria exteriorrdquo Esta eacute uma admiraacutevel maneira de se expresar Aquiacute ainda mais que anteriormente em Mondolfo a confusatildeo entre a linguagem utilizada para expor os fatos e o que serve para analizar teoriacuteas eacute algo que preenche a medida ldquoOperamhelliprdquo ldquoambos devemhelliprdquo Mas porque

295

A filosofia no dizer do panfleto reveliano apresentava uma

linguagem embaraccedilada criava problemas que natildeo existiam tais como a

ldquopiedaderdquo de Merleau-Ponty em acreditar na novidade da criacutetica aos

dualismos ou a explicaccedilatildeo sartreana de que a partir da noccedilatildeo de

intencionalidade natildeo se pode mais crer que uma aacutervore encontra-se ldquodentro

dardquo consciecircncia quando ningueacutem pensa um tal absurdo Sendo assim natildeo

seria o dito ldquopensamento ingecircnuordquo uma invenccedilatildeo gratuita para se legitimar a

abstraccedilatildeo filosoacutefica Natildeo passam os filoacutesofos todo o seu tempo em tentar

refutar aquilo cuja falsidade ningueacutem ignora Enquanto os filoacutesofos se

empenham em impor construccedilotildees teoacutericas ditas cruciais e necessaacuterias a

vida continuava como se nada fosse dito assim como a fiacutesica seria a mesma

independentemente da existecircncia ou natildeo quer seja de Hume quer seja de

Kant Na mesma perspectiva conforme Revel a opiniatildeo heideggeriana acerca

da teacutecnica natildeo seria mais densa do que a de uma ldquosenhora de proviacutenciardquo

Para este autor natildeo caberia agrave filosofia frente a tantos problemas com

efeito um territoacuterio proacuteprio Ela natildeo possuiacutea nem mesmo um papel fundador

como almejava pois natildeo deveriam os filoacutesofos ldquo[] se inquietarem com o

fato de que todas as grandes inovaccedilotildees filosoacuteficas acontecidas sobretudo

desde haacute um seacuteculo devem-se a economistas naturalistas matemaacuteticos

fiacutesicos bioacutelogos ou meacutedicos mas em nenhum caso a um filoacutesofo de

profissatildeordquo (REVEL 1957 p 51) Neste caso teria a filosofia outro destino

que o do museu Natildeo seriam estas umas das provas mais do que

irrecusaacuteveis de uma ldquodecadecircncia da filosofiardquo Assim sendo como Merleau-

Ponty se posicionara frente a estas questotildees

Acompanhando os resumos de cursos dados pelo filoacutesofo no

Collegravege de France especialmente entre 1959 e 1961 ndash aleacutem de uma

entrevista dada a Madeleine Chapsal em 17 de fevereiro de 1958 (MERLEAU-

PONTY 2000b p 292) ndash vemos a sua posiccedilatildeo frente agraves controversas ideias

Quem os obriga Isto eacute o que teria que explicar seja desde um ponto de vista aceitaacutevel e compreensiacutevel para noacutes seja no marco de uma histoacuteria das ideias contemporaacuteneas dos autores e natildeo dando por admitido como algo natural em uma espeacutecie de meio intemporal da histoacuteria da filosofiacutea ndash e ainda isto quando se trata de discutir muito severamente um sistema ndash os pontos de partida que datildeo origen ou natildeo a uma teoriacutea que permitem que esta possua ou natildeo um sentidordquo (REVEL 1957 p 9)

296

e criacuteticas de Revel em seu conhecido livro Pourquoi des philosophes No

coraccedilatildeo da criacutetica encontrava-se certamente a denuacutencia tambeacutem vivida por

Merleau-Ponty de uma Crise do saber filosoacutefico poreacutem encarada de um

modo diferente O interessante eacute que para noacutes a posiccedilatildeo de Merleau-Ponty

em contraposiccedilatildeo agrave de Revel configurava tambeacutem a sua compreensatildeo

daquilo que seria uma possiacutevel Crise da filosofia Embora nos cursos jaacute

mencionados aleacutem do registro do tiacutetulo do livro indicado acima em uma

breve lista nas notas ineacuteditas Merleau-Ponty natildeo faccedila senatildeo uma breve

referecircncia a este panfleto em uma entrevista dada a Madeleine Chapsal

todavia o filoacutesofo era mais direto e sua criacutetica a Revel encontrava-se mais

acentuada

Acredito pelo contraacuterio que eacute um caso particular [a opiniatildeo de Revel] Sente-se ao ler o livro que o autor natildeo gosta de nada Haacute saudaccedilotildees respeitosas agraves ciecircncias ditas humanas (mas agraves quais visto que fere com palavras seus melhores representantes) haacute saudaccedilotildees respeitosas agrave grande filosofia (mas agrave qual visto que natildeo a reconhece nas investigaccedilotildees nas quais ela revive Quer se goste ou natildeo de Husserl e Heidegger eacute preciso confessar que com todos os defeitos dos modernos que satildeo o preccedilo de seu radicalismo eles meditam sobre os mesmos assuntos que Descartes e a grande filosofia a saber o ser o tempo o objeto o corpo) Esse livro eacute de um consumidor indiferente Ora o livro ridicularizou rapidamente com anedotas aqueles que tiveram a fraqueza de tentar fazer algo aliaacutes nada propondo no lugar daquilo que se pretendia substituir (MERLEAU-PONTY 2000b p 292)

Ao falar do sentido do panfleto de Revel Merleau-Ponty nos

indicava ao mesmo tempo a existecircncia de uma filosofia ldquono sentido

claacutessicordquo e de uma filosofia que rapidamente identificava-se com a

investigaccedilatildeo cientiacutefica Aleacutem do fato de que se houvesse uma crise da

filosofia ela deveria ser encarada sobretudo como uma oportunidade

assim como os desenvolvimentos dos saberes que natildeo pertencessem ao

domiacutenio da filosofia acadecircmica uma natildeo-filosofia era antes a oportunidade

para se revitalizar o que ateacute entatildeo entendia-se por filosofia pois uma

ldquodecadecircncia da filosofiardquo por si soacute caso existisse natildeo seria essencial O que

estaacute em causa natildeo era propriamente a filosofia mas um certo ldquomodo de

filosofarrdquo pautado por categorias por exemplo tais como a substacircncia a

causalidade e as relaccedilotildees bilaterais entre sujeito e objeto (MERLEAU-PONTY

297

1996 p 39) Neste sentido natildeo notamos uma neutralidade em Merleau-

Ponty frente a esstas questotildees poreacutem uma mudanccedila de foco Como nos

chamara a atenccedilatildeo em suas notas ineacuteditas no que diz respeito agrave filosofia eacute

verdadeira a certeza de que natildeo eacute suficiente encontrar o comeccedilo seria

preciso assumir radicalmente as suas consequecircncias e mais do que isso

tomar o cuidado de natildeo se perder em preacute-noccedilotildees capazes de desvirtuar de

modo principial o que propriamente se propotildee Natildeo seria este o caso dos

percalccedilos das concepccedilotildees de consciecircncia e de uma ldquoconsciecircncia constituinterdquo

em Husserl Natildeo seria a razatildeo das desventuras do arcaiacutesmo da procura de

um ldquotesouro perdidordquo de uma ldquoontologia diretardquo ou de uma liacutengua e de uma

histoacuteria esmerada no logoj [loacutegos] parmenidiano em Heidegger Natildeo seria o

sentido da controversa concepccedilatildeo sartreana de Nada e seus infortuacutenios

Claro estaacute que natildeo se trata aqui de uma mera criacutetica gratuita a estes

pensadores192 Pelo contraacuterio era a repercussatildeo dos impasses autecircnticos ou

natildeo que tiveram suas filosofias no cenaacuterio do pensamento contemporacircneo

Se o que estava drsquoentreacutee de jeu em questatildeo eram as relaccedilotildees entre o

homem Deus e a Natureza seria preciso pensaacute-los de modo mais radical o

que significava para o filoacutesofo o exerciacutecio de ldquo[] pensar a contradiccedilatildeo sem

mentira (Filosofia dialeacutetica) e sem niilismo ou caosrdquo (MERLEAU-PONTY

NBNF [13] (C)) Quando o que estaacute em questatildeo eacute compreender e se

posicionar frente a uma dita ldquodecadecircncia da filosofiardquo ndash em uma Crise da

Razatildeo ndash mesmo que seja aquela de um certo ldquomodo de filosofarrdquo as relaccedilotildees

outorgadas pela tradiccedilatildeo do saber filosoacutefico consigo mesmo tambeacutem natildeo

poderiam ser mais as mesmas Se isto eacute certo que ldquomodo de filosofarrdquo

estaria no entender de Merleau-Ponty na gecircnese dos descompassos entre o

saber filosoacutefico e sua eacutepoca da filosofia consigo mesma Que tradiccedilatildeo

precisaria ser revisitada por um ldquosaber interrogativordquo Aquela que no

entender do filoacutesofo partia do pressuposto radical de uma separaccedilatildeo entre

192 Aqui fazemos referecircncia aos questionamentos levantados por Merleau-Ponty a estes filoacutesofos especialmente nas Notas ainda ineacuteditas da Biblioteca Nacional da Franccedila acentuando a releitura que nos uacuteltimos trabalhos o filoacutesofo iraacute fazer destes pensadores

298

filosofia e ciecircncia uma separaccedilatildeo que no final das contas comprometia

ldquotanto o saber como a reflexatildeordquo

Enquanto todas as grandes filosofias satildeo reconhecidas pelo seu esforccedilo para pensar o espiacuterito e a sua dependecircncia ndash as ideias e seu movimento o entendimento e a sensibilidade ndash haacute um mito da filosofia que a apresenta como a afirmaccedilatildeo autoritaacuteria de uma autonomia absoluta do espiacuterito A filosofia deixa de ser interrogaccedilatildeo Torna-se um certo corpo de doutrinas feito para assegurar a um espiacuterito absolutamente penetrante a fruiccedilatildeo de si mesmo e de suas ideias Por outro lado haacute um mito do saber cientifiacuteco que espera da mera notaccedilatildeo dos fatos natildeo soacute a ciecircncia das coisas do mundo mas tambeacutem a ciecircncia dessa ciecircncia [] que deveraacute fechar em si mesma o universo o universo dos fatos inserindo-lhe ateacute as ideias que inventamos para interpretaacute-lo e por assim dizer para nos desembaraccedilar de noacutes mesmos [] Esses dois mitos satildeo antagocircnicos e cuacutemplices [] A separaccedilatildeo eacute a guerra fria (MERLEAU-PONTY 1991 p 106)

Merleau-Ponty nos fala de um clima de ldquoguerra friardquo no qual se

levanta entre o saber filosoacutefico e o saber cientiacutefico um verdadeiro cordatildeo

sanitaacuterio Nada de pesquisas hiacutebridas nada de um pensamento anfiacutebio Pelo

contraacuterio ao se partir de uma pesquisa centrada em ideias a

desconsideraccedilatildeo dos fatos deveria ser seu ponto de partida uma vez que

estes deveriam ser entendidos antes como uma ldquograccedila peremptoacuteriardquo um

devir merecedor de desconfianccedila ao passo que os proacuteprios pensamentos

teriam a autonomia suficiente para se inserirem em um autecircntico confronto

consigo mesmos Daiacute que a ideia de um pensamento que buscasse nos fatos

ldquoos estiacutemulos e a garantia de um esforccedilo construtivo que vai ao encontro da

dinacircmica interna delesrdquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 106) fosse antes um

pensamento bastardo negado tanto pela ciecircncia como pela filosofia Para

Merleau-Ponty no entanto o que encontramos nestes procedimentos eacute um

rigorismo cujas consequecircncias trazem consigo um obscurantismo Para o

filoacutesofo entre as pesperctivas filosoacuteficas e cientiacutetificas em primeiro lugar o

que temos eacute uma relaccedilatildeo de co-possibilidade Eacute o que nos parece dizer

Husserl por exemplo ao falar que uma ldquoeideacutetica da coisa fiacutesicardquo natildeo teria

tido o seu comeccedilo na fenomenologia ela estaria antes em Galileu daiacute que

como acentuava Merleau-Ponty o cientista tal como ao interpretar suas

proacuteprias pesquisas cientiacuteficas tem a possibilidade de se colocar na condiccedilatildeo

de filoacutesofo tambeacutem o filoacutesofo reciprocamente ldquotem o direito de ler e

299

interpretarrdquo os trabalhos do cientista A filosofia merleau-pontiana tal como

procuramos mostrar seria justamente neste caso a tentativa de combater

uma separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncia que no fundo seria prejudicial para

ambas Como se indagaraacute Merleau-Ponty

Como um filoacutesofo consciente poderia propor seriamente que a filosofia fosse impedida de conviver com a ciecircncia Pois afinal o filoacutesofo pensa sempre baseado em alguma coisa no quadrado traccedilado na areia no burro no cavalo na mula no peacute cuacutebico da extensatildeo no cinabre no Estado romano na matildeo que se introduz na limalha de ferro O filoacutesofo pensa a sua experiecircncia e o seu mundo Como a natildeo ser por uma decisatildeo arbitraacuteria dar-lhe-iam o direito de esquecer o que a ciecircncia diz dessa mesma experiecircncia e desse mesmo mundo Sob o nome coletivo de ciecircncia natildeo haacute senatildeo uma ordenaccedilatildeo sistemaacutetica um exerciacutecio metoacutedico ndash mais estrito e mais amplo mais e menos clarividente ndash dessa mesma experiecircncia que comeccedila com a nossa primeira percepccedilatildeo Eacute um conjunto de meios de perceber de imaginar e enfim de viver orientados para a mesma verdade cuja exigecircncia eacute estabelecida em noacutes por nossas primeiras experiecircncias Pode ocorrer que a ciecircncia adquira sua exatidatildeo ao preccedilo de uma esquematizaccedilatildeo Mas o remeacutedio eacute entatildeo confrontaacute-la com uma experiecircncia integral e natildeo lhe opor um saber filosoacutefico vindo sabe-se laacute de onde (MERLEAU-PONTY 1991 p 109)

Ora para Merleau-Ponty o filoacutesofo e o cientista

compartilhariam no fundo de uma mesma experiecircncia ao menos em sua

origem Daiacute a impossibilidade de se recusar um diaacutelogo com a ciecircncia

mesmo quando ela parece distanciar-se desta mesma origem parece dirigir-

se a labirinto de esquematizaccedilotildees e contradiccedilatildeo Frente a isto ao contraacuterio

de tambeacutem refugiar-se em labirinto antagocircnico de conceitos a tarefa do

filoacutesofo deve ser o de abrir-se a um diaacutelogo o de convidar a ciecircncia a rever

seus princiacutepios o filoacutesofo estando do mesmo modo disposto a reavaliar os

seus tambeacutem Para Merleau-Ponty o grande meacuterito da fenomenologia

husserliana estava justamente em ter possibilitado o espaccedilo deste diaacutelogo

Mesmo que Husserl tenha mantido entre os campos da ciecircncia e da filosofia

uma devida diferenccedila ao tratar de um ldquoparalelismo psicofenomenoloacutegicordquo

aquele que no entender de Merleau-Ponty fazia com que cada afirmaccedilatildeo do

saber positivo correspondesse a uma afirmaccedilatildeo da filosofia teria conduzido

ldquona verdade agrave ideia de um envolvimento reciacuteprocordquo (MERLEAU-PONTY 1991

p 109) Desde as Ideen I para Merleau-Ponty haveria em Husserl a

ldquodesaprovaccedilatildeo de um saber formalrdquo e isto ao notar que jaacute nesta obra ldquo[] a

300

intuiccedilatildeo eideacutetica sempre foi uma lsquoconstataccedilatildeorsquo a fenomenologia uma

lsquoexperiecircnciarsquordquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 1113) uma vez que por exemplo

ldquouma fenomenologia da visatildeo dizia Husserl deve ser construiacuteda com base

em uma Sichligkeit [visibilidade] de que primeiro fazemos a prova efetiva e

ele rejeitava em geral a possibilidade de uma lsquomatemaacutetica dos fenocircmenosrsquo de

uma lsquogeometria da vivecircnciarsquordquo (MERLEAU-PONTY 1991 p 113) Em

contrapartida nos uacuteltimos trabalhos de Husserl no reconhecimento da

Lebenswelt a possibilidade de diaacutelogo entre os saberes de acordo com

Merleau-Ponty torna-se inegaacutevel pois

Quando o reconhecimento do mundo vivido e portanto tambeacutem da linguagem vivida torna-se como nos uacuteltimos escritos caracteriacutestica da fenomenologia isso eacute apenas uma maneira mais resoluta de expressar que a filosofia natildeo estaacute imediatamente de posse da verdade da linguagem e do mundo que eacute antes a recuperaccedilatildeo e a primeira formulaccedilatildeo de um Logos esparso em nosso mundo e em nossa vida ligado a suas estruturas concretas ndash esse ldquoLogos do mundo esteacuteticordquo de que jaacute falava a Loacutegica formal e transcendental (MERLEAU-PONTY 1991 p 113)

Eacute neste horizonte que por sua vez a histoacuteria torna-se um

problema manifesto para a proacutepria filosofia Haacute um processo de

transformaccedilatildeo no qual frente agrave tentativa de libertar a filosofia da histoacuteria

no final das contas ao perceber a impossibilidade disto a filosofia passa a

perceber o viacutenculo pelo qual se encontram unidas as ldquoverdades eternasrdquo e as

ldquoverdades de fatordquo Eacute assim que Husserl ateacute mesmo antes da Krisis jaacute em

seu artigo Die Philosophie als strenge Wissenschaft admitia a preciosidade

da histoacuteria no entender de Merleau-Ponty no fato de lhe revelar o ldquoespiacuterito

puacuteblicordquo o Gemeingeist Para Merleau-Ponty nisto estaria tambeacutem o

reconhecimento de que a histoacuteria na verdade daria ao filoacutesofo a

oportunidade de se pensar ldquoa comunicaccedilatildeo dos sujeitosrdquo O que isto

significa Na verdade

Ela o obriga a compreender de que maneira natildeo haacute somente espiacuteritos cada um deles titular de uma pespectiva sobre o mundo que o filoacutesofo poderia investigar um por um sem que lhe fosse permitido e muito menos prescrito pensaacute-los conjuntamente mas uma comunidade de espiacuteritos coexistindo uns para os outros e por isso revestidos todos de um exterior pelo qual se tornam visiacuteveis De forma que o filoacutesofo jaacute natildeo pode falar do espiacuterito em geral tratar todos e cada um por um uacutenico nome nem se vangloriar de constituiacute-los e sim deve ver-se a si proacuteprio no diaacutelogo dos espiacuteritos situado

301

como todos o satildeo e reconhecer-lhes a dignidade de constituintes no mesmo momento em que a reivindica para si (MERLEAU-PONTY 1991 p 114-5)

A histoacuteria assim como a Krisis iraacute aprofundar natildeo estaria na

cisatildeo de interioridade e exterioridade existente entre os sujeitos mas pelo

contraacuterio partindo-se de um ldquotranscendentalrdquo que ldquodesce agrave histoacuteriardquo natildeo haacute

mais tatildeo-somente o ldquopara sirdquo mas o ldquoum pelo outrordquo mediante o qual cada

um pode se aperceber como sujeito No reconhecimento do relativismo

histoacuterico o que encontramos antes eacute a necessidade de uma abertura da

filosofia aos trabalhos da ciecircncia Se houvesse pois uma autonomia do

saber filosoacutefico ela deveria vir depois do saber positivo ldquoe natildeo antesrdquo

(MERLEAU-PONTY 1991 p 116) Aleacutem disso o que nos diz a ldquoconsciecircncia

histoacutericardquo Para Merleau-Ponty fundamentalmente o fato de nos revelar

que ldquona verdade eacute a proacutepria concepccedilatildeo das relaccedilotildees entre o espiacuterito e seu

objeto que a consciecircncia histoacuterica nos convida a remanejarrdquo (MERLEAU-

PONTY 1991 p 117) pois

Se a histoacuteria nos envolve a todos cabe a noacutes compreender que o que podemos ter de verdade natildeo se obteacutem contra a inerecircncia histoacuterica e sim por seu intermeacutedio Superficialmente pensada a histoacuteira destroacutei qualquer verdade pensada radicalmente funda uma nova ideia de verdade [] [Eacute assim que a partir de uma verdade alicerccedilada na situaccedilatildeo] o saber seraacute fundamentado no fato irrecusaacutevel de que natildeo estamos na situaccedilatildeo como um objeto no espaccedilo objetivo e que ela eacute para noacutes princiacutepio de curiosidade de investigaccedilatildeo de interesse pelas outras situaccedilotildees enquanto variantes da nossa depois por nossa proacutepria vida esclarecida pelas outras e desta vez considerada como variante das outras enfim o que nos liga agrave totalidade da experiecircncia humana assim como o que nos separa dela (MERLEAU-PONTY 1991 p 117-8)

Estas satildeo no entanto as conclusotildees que Merleau-Ponty aufere

de sua leitura de Husserl as conclusotildees que iraacute retirar das consequecircncias

de um direcionamento ao mundo-da-vida agrave Lebenswelt Elas dizem respeito

por conseguinte ao pensamento merleau-pontiano e seu modo de encontrar

as relaccedilotildees entre o saber filosoacutefico e o saber cientiacutefico e isto tendo por

fundo o horizonte da histoacuteria Conforme procuramos mostrar eacute assim que

se estabelece em Merleau-Ponty a possibilidade da filosofia e

302

consequentemente os caminhos de superaccedilatildeo do impasse no qual a tradiccedilatildeo

a relegou pois natildeo teria sentido em falar de um fim da filosofia mas de sua

mudanccedila da mudanccedila de seu modo de lidar consigo mesma e com o

mundo solo originaacuterio de onde emerge a proacutepria reflexatildeo pois se haacute sentido

em vislumbrar no horizonte de uma crise da Razatildeo o exerciacutecio filosoacutefico

equiparado a uma Fecircnix isto natildeo poderia se dar sem o reconhecimento de

que em primeiro lugar

A filosofia eacute realmente eacute sempre ruptura com o objetivismo retorno dos constructa agrave vivecircncia do mundo a noacutes mesmos Entretanto esse procedimento indispensaacutevel e que a caracteriza jaacute natildeo a transporta para a atmosfera rarefeita da instrospecccedilatildeo ou para um campo numericamente distinto daquele da ciecircncia jaacute natildeo a coloca em rivalidade com o saber desde que reconhecemos que o ldquointeriorrdquo ao qual ela nos leva natildeo eacute uma ldquovida privadardquo e sim uma intersubjetividade que pouco a pouco nos une agrave histoacuteria inteira [] A renuacutencia ao aparelho explicativo do sistema natildeo rebaixa a filosofia agrave categoria de um auxiliar ou de um propagandista do saber objetivo porquanto ela dispotildee de uma dimensatildeo proacutepria que eacute a da coexistecircncia natildeo como fato consumado e objeto de contemplaccedilatildeo mas como acontecimento perpeacutetuo e meio da praacutexis universal A filosofia eacute insubstituiacutevel porque nos revela o movimento pelo qual vidas tornam-se verdades e a circularidade desse ser singular que num certo sentido jaacute eacute tudo quanto vier a pensar (MERLEAU-PONTY 1991 p 121)

303

ANEXOS

A Arqueoriginaacuteria Terra natildeo se move ndash Edmund Husserl193

Traduccedilatildeo de Rodrigo V Marques

As paacuteginas seguintes apesar das muacuteltiplas repeticcedilotildees e

retomadas satildeo em todo caso fundamentais para uma doutrina

fenomenoloacutegica da origem da espacialidade da corporeidade da natureza no

sentido das ciecircncias da natureza e por conseguinte para uma teoria

transcendental do conhecimento das ciecircncias da natureza Contudo

permanece a questatildeo aberta de saber se complementos natildeo seriam ainda

necessaacuterios

Diferenccedila o mundo na abertura do mundo ambiente ndash na

infinidade intelectualmente posta Sentido desta infinitude ndash ldquomundo

existente na idealidade da infinituderdquo Qual eacute o sentido desta existecircncia

(Existenz) do mundo infinito existente (seienden) A abertura enquanto

horizontalidade incompletamente imaginada representada mas jaacute

implicitamente formada Abertura da paisagem ndash saber que eu atinjo

finalmente as fronteiras da Alemanha ndash que vecircm em seguida as paisagens

francesas dinamarquesas etc Eu natildeo percorri nem aprendi a conhecer o

que se encontra no horizonte mas eu jaacute sei que outros aprenderam a

conhecer dele um fragmento outros novamente um fragmento tambeacutem ndash

representaccedilatildeo de uma siacutentese dos campos de experiecircncia atual que daacute

produziacutevel de modo mediato a representaccedilatildeo da Alemanha da Alemanha no

quadro da Europa e desta uacuteltima ela mesma etc ndash finalmente a Terra

Representaccedilatildeo da Terra enquanto unidade sinteacutetica vindo agrave estacircncia

analogicamente agrave maneira pela qual na experiecircncia vinculada e contiacutenua os

193 HUSSERL E Renversement de la doctrine copernicienne la Terre comme archeacute-originaire ne se meut pas Trad D Franck D Pradelle e JF Lavigne Paris Minuit 1989 ldquoUmstursz der kopernikanischen Lehrerdquo in Philosophical Essays in Memory of Edmund Husserl ed M Farber Cambridge Harvard University Press 1940 [die Erde als Ur-Arche bewegt sich nicht]

304

campos de experiecircncia dos indiviacuteduos humanos se unificam em um uacutenico

campo de experiecircncia Excetuando que eu me aproprio analogicamente os

relatos dos outros suas descriccedilotildees e asserccedilotildees e forma de representaccedilotildees

universais Eacute preciso expressamente diferenciar

1 o restituir-intuitivo dos horizontes da ldquorepresentaccedilatildeo do mundordquo a

partir de uma representaccedilatildeo do mundo toda inteira tal que ela tenha

sido formada nas transferecircncias aperceptivas antecipaccedilotildees

intelectuais projetos

2 o caminho da constituiccedilatildeo progressiva da representaccedilatildeo do mundo jaacute

pronta por exemplo mundo ambiente do Negro ou do Grego em

relaccedilatildeo ao mundo copernicano cientiacutefico dos tempos modernos

Noacutes copernicanos noacutes homens dos tempos modernos noacutes dizemos

A Terra natildeo eacute ldquonatureza inteirardquo ela eacute uma das estrelas do

espaccedilo infinito do mundo A Terra eacute um corpo de forma esfeacuterica que

certamente natildeo eacute integralmente perceptiacutevel de uma soacute vez e por um soacute mas

em uma siacutentese primordial enquanto unidade de experiecircncias individuais

unidas umas agraves outras Mas nem por isso deixa de ser um corpo Ainda que

seja para noacutes o solo de experiecircncia de todos os corpos na gecircnese empiacuterica de

nossa representaccedilatildeo do mundo Este ldquosolordquo natildeo eacute primeiramente

experimentado como corpo ele torna-se corpo-solo em um niacutevel superior da

constituiccedilatildeo do mundo a partir da experiecircncia e isto anula sua forma

originaacuteria de solo Ele se torna o corpo total o suporte de todos os corpos ateacute

o presente plenamente (normalmente) experimentaacuteveis por toda parte de

maneira empiacuterica suficiente no modo pelo qual eles satildeo experimentados

como estrelas natildeo ainda contados entre os corpos Mas agora a Terra eacute o

grande bloco sobre o qual eles estatildeo e a partir do qual para noacutes podem

sempre ou teratildeo podido sempre se tornar corpos menores e isto por

fragmentaccedilatildeo ou destruiccedilatildeo

Se a Terra como corpo adquiriu uma validade constitutiva ndash que

aliaacutes as estrelas satildeo apreendidas como corpos que aparecem nas aparecircncias

distantes sem ser integralmente acessiacuteveis entatildeo isto concerne agraves

representaccedilotildees do movimento e do repouso que devem lhe ser atribuiacutedas Eacute

sobre a Terra diretamente da Terra a partir dela e distanciando-se dela que

305

o movimento ocorre A proacutepria Terra na forma originaacuteria da representaccedilatildeo

natildeo se move nem estaacute em repouso eacute em primeiro lugar em relaccedilatildeo a ela

que movimento e repouso adquirem sentido Eacute apenas em seguida que a

Terra se ldquomoverdquo ou repousa e o mesmo se passa com os astros e a terra

como uma dentre eles De que modo na ldquointuiccedilatildeo do mundordquo alargada ou

fechada movimento e repouso adquirem um sentido de ser legiacutetimo ndash e sua

concebiacutevel intuiccedilatildeo verificadora evidecircncia Natildeo eacute uma transferecircncia

aperceptiva quista mas como sempre a evidecircncia deve poder se legitimar

Em geral a elaboraccedilatildeo da intuiccedilatildeo do mundo da intuiccedilatildeo dos

corpos singulares da intuiccedilatildeo do espaccedilo do tempo da causalidade da

natureza tudo isto eacute solidaacuterio e se manteacutem

O corpo que se move na funccedilatildeo intuitiva originaacuteria da Terra

como ldquosolordquo ou corpo compreendido na originariedade efetivamente em uma

mobilidade e em uma variabilidade possiacuteveis Ser projetado no ar ou se

mover de qualquer modo eu natildeo sei onde ndash em relaccedilatildeo agrave Terra como Terra

solo No espaccedilo terrestre os corpos satildeo moveis ndash tecircm um horizonte de

movimento possiacutevel e quando o movimento se acaba a experiecircncia

prescreve ainda a possibilidade de um movimento ulterior eventualmente

unido agrave possibilidade de uma nova causalidade do movimento graccedilas a um

choque possiacutevel etc Os corpos existem efetivamente nas possibilidades

abertas que se efetuam no que lhes pertencem efetivamente seus

movimentos e variaccedilotildees (invariaccedilatildeo como forma particular de possibilidade

das variaccedilotildees) Os corpos estatildeo em um movimento efetivo e possiacutevel e haacute a

possibilidade de possibilidades sempre abertas na efetividade na

continuaccedilatildeo na mudanccedila de direccedilatildeo etc Os corpos estatildeo tambeacutem ldquoentrerdquo os

corpos possiacuteveis e efetivos correlativamente os corpos satildeo experimentados

efetivamente ou no modo de possibilidade em seus movimentos e variaccedilotildees

efetivas etc em suas ldquocircunstacircnciasrdquo efetivas Possibilidades que de

antematildeo satildeo a priori abertas e enquanto tais enquanto possibilidades

existentes elas podem ser intuitivamente representadas intuitivamente

legitimadas Tais satildeo seus modos que pertencem ao ser dos corpos e ao ser

da multiplicidade dos corpos

306

Em toda formaccedilatildeo progressiva da apercepccedilatildeo do mundo a

unidade da ldquointuiccedilatildeo do mundordquo deve confirmar a possibilidade do mundo ndash

como a possibilidade e o universo de possibilidades abertas que constitui um

fundo uacuteltimo da efetividade do mundo O nuacutecleo da experiecircncia atual

(onticamente o que eacute experimentado do mundo sob tal ou tal lado e que

eventualmente vale jaacute a partir da siacutentese da experiecircncia concordante como

efetividade bem conhecida) torna-se como nuacutecleo da experiecircncia do mundo

o nuacutecleo do que eacute prescrito por ele e eacute prescrito como espaccedilo de jogo das

possibilidades e isto significa um espaccedilo de jogo de possibilidades

concordantes a prosseguir de maneira iterativa O mundo se constitui

progressivamente e eacute finalmente ndash no que concerne agrave natureza como seu

fundo suscetiacutevel de ser abstrato ndash constituiacutedo em uma horizontalidade no

seio da qual o ente eacute constituiacutedo como efetivo em possibilidades de ser

sempre prescritos a forma do mundo eacute prescrita ulteriormente submetida

aos conceitos e juiacutezos da ontologia ldquotomada em consideraccedilatildeordquo com eles e no

interior desta forma se move toda prescriccedilatildeo indutiva relativamente

determinada que a cada vez eacute determinada em conformidade com a

expectativa e no curso da experiecircncia efetiva quer ela seja proacutepria ou

comunicativa como efetividade se mostrando agora para ser confirmada ou

infirmada

A experiecircncia efetiva no quadro de possibilidades efetivas

indutivamente prescritas que penetram no horizonte de maneira sinteacutetica e

concordante e apreendendo efetivamente intuitivamente um fragmento do

campo mundano que se oferece como ser verificado ndash me daacute e

eventualmente nos daacute em uma comunidade atual corpos em movimento ou

em repouso variaacuteveis ou invariaacuteveis Mas o que se daacute aqui eacute um aspecto no

qual tudo natildeo eacute ainda decidido do que do lado das possibilidades ainda

horizontais eacute determinante do sentido para o mundo integralmente

constituiacutedo Disto o repouso se daacute como algo de decidido e de absoluto tudo

como o movimento e isto no niacutevel do estrato primeiro em si da constituiccedilatildeo

da Terra como solo

Mas movimento e repouso perdem sua absolutidade desde que a

Terra torna-se corpo mudano na multiplicidade aberta dos corpos

307

circundantes Movimento e repouso tornam-se necessariamente relativos E

se pudesse haver conflito a este respeito natildeo seria unicamente porque a

apercepccedilatildeo do mundo dos tempos modernos como mundo do horizonte

copernicano infinito natildeo se tornou para noacutes uma apercepccedilatildeo do mundo

confirmada por uma intuiccedilatildeo do mundo efetivamente completa

(ldquoApercepccedilatildeordquo do mundo apercepccedilatildeo em geral eacute a consciecircncia da validade

com o sentido de ser mundo e todos os estratos da constituiccedilatildeo) A

transferecircncia aperceptiva ocorreu de maneira tal que permaneceu apenas

uma referecircncia para uma intuiccedilatildeo verificadora ao inveacutes de ser efetivamente

e finalmente construiacuteda como uma legitimaccedilatildeo

De que modo eacute preciso pensar propriamente um corpo seu

lugar sua posiccedilatildeo temporal sua duraccedilatildeo e sua forma como satildeo ali

qualificados identificaacuteveis re-conheciacuteveis em si determinados e como tais

determinaacuteveis Toda legitimaccedilatildeo toda verificaccedilatildeo das apercepccedilotildees do mundo

que se forma e que se formaram progressivamente ndash como transferecircncias

aperceptivas progressivas nas quais a partir da objetividade e do mundo jaacute

constituiacutedos ldquoordquo mesmo mundo eacute dotado de um sentido de grau superior e

isto ateacute o uacuteltimo grau (e mundo integralmente constituiacutedo se constituindo

continuamente em seu proacuteprio estilo imutaacutevel) ndash toda legitimaccedilatildeo tem seu

ponto de partida subjetivo e sua uacuteltima ancoragem no ego que legitima A

verificaccedilatildeo da nova ldquorepresentaccedilatildeo do mundordquo a do sentido modificado

encontra sua primeira marca194 e nuacutecleo no campo de percepccedilatildeo e na

apresentaccedilatildeo orientada do setor mundano ao redor de minha carne como

corpo-central entre os outros todos dados com seu proacuteprio teor eideacutetico

intuitivo no movimento e no repouso na variaccedilatildeo e na invariaccedilatildeo Uma

certa relatividade do movimento e do repouso eacute aqui jaacute formada Eacute

necessariamente relativo um movimento experimentado em relaccedilatildeo a um

ldquocorpo-solordquo ele mesmo experimentado como repousante e se torna uno

com minha carne corporal Esta uacuteltima pode ser um movimento enquanto se

movendo mas pode a todo instante pocircr-se em repouso e experimentar-se

194 Marca pode ser entendida aqui tambeacutem como ldquoponto de referecircnciardquo (Nota do Tradutor doravante N do T)

308

entatildeo como repousante Mas naturalmente o corpo-solo relativo estaacute

relativamente em repouso e em movimento em relaccedilatildeo a uma Terra-solo que

natildeo experimentada como corpo ndash efetivamente e originariamente

experimentada ldquoCorpos-solosrdquo relativos eu posso estar em um automoacutevel

em movimento que eacute entatildeo meu corpo-solo eu posso tambeacutem ser levado por

um vagatildeo de trem195 entatildeo meu corpo-solo eacute primeiramente o corpo que

me leva em meus movimentos e a este corpo novamente o vagatildeo etc O

automoacutevel eacute experimentado como em repouso Mas se eu olho atentamente

para fora eu digo que ele se move ao passo que no lado de fora eu vejo que

eacute a paisagem que estaacute em movimento Eu sei que subi no automoacutevel eu jaacute vi

tais automoacuteveis em movimento com pessoas dentro eu sei que do mesmo

modo que eu quando estou no interior eles vecircem o mundo ambiente em

movimento Eu conheccedilo a inversatildeo do mundo da experiecircncia do movimento e

do repouso a partir do automoacutevel-joguete no qual eu frequentemente subi e

desci Mas tudo isto todavia estaacute referido em primeiro lugar ao solo de

todos os corpos-solos relativos agrave Terra-solo eu encontro implicadas na

apercepccedilatildeo todas as mediaccedilotildees e posso para confirmaccedilatildeo recorrecirc-las na

concordacircncia

Se agora eu ldquopensordquo a Terra como corpo movido entatildeo me eacute

preciso para poder pensaacute-la como tal saber como um corpo em geral no

sentido mais originaacuterio quer dizer a fim de poder atingir para ela uma

intuiccedilatildeo possiacutevel na qual sua possibilidade de ser como corpo possa tornar-

se diretamente evidecircncia me seria preciso um solo ao qual se refere toda

experiecircncia do corpo e portanto toda experiecircncia do ser perseverante no

movimento e no repouso Eacute preciso aqui sublinhar eu posso constantemente

prosseguir meu caminho sobre minha Terra-solo e seu ser ldquocorporalrdquo pode

ser sempre de uma certa maneira plenamente experimentado ele tem seu

horizonte nisto que eu posso precisamente caminhar sobre ele e partindo

dele e de tudo o que se encontra nele fazer dele sempre mais a experiecircncia

Do mesmo modo com os outros homens que corporalmente marcham

195 No caso um vagatildeo de trem no sentido de uma ldquocarruagem de comboiordquo (N do T)

309

sobre ela em comum comigo fazem a experiecircncia dela assim que de tudo

que estaacute sobre e acima dela pode lhe ter concordacircncia Eu aprendo a

conhecer de maneira fragmentada a Terra e experimento tambeacutem a

separabilidade das partes que satildeo os verdadeiros corpos tendo assim

fragmentados seu ser-em-movimento e repouso em relaccedilatildeo agrave Terra-solo em

repouso que agora funciona novamente Eu digo Terra em repouso ndash mas a

ldquoTerrardquo como Terra-solo uacutenico natildeo pode ser experimentada com os sentidos

do repouso por conseguinte o sentido do corpo se ldquoumrdquo corpo possui natildeo

somente extensatildeo e qualificaccedilatildeo mas tambeacutem seu ldquolugarrdquo no espaccedilo como

lugar suscetiacutevel de mudar de se mover ou repousar Sempre que eu natildeo

possua a representaccedilatildeo de um novo solo como tal a partir de onde a Terra

em seu curso encadeado e circular possa ter um sentido como corpo

compacto em movimento e em repouso sempre que ainda eu natildeo adquira

uma representaccedilatildeo de uma troca de solos e assim uma representaccedilatildeo do

devir corpo de dois solos sempre que a proacutepria Terra seja bem um solo e natildeo

corpo A Terra natildeo se move ndash talvez eu pudesse entretanto dizer que ela

repousa mas isso pode unicamente querer dizer que cada fragmento da

Terra quer esteja separado por mim por outros ou quer esteja separado de

si mesmo quer se mova ou se repouse eacute um corpo A Terra eacute um todo cujas

partes ndash se elas satildeo pensadas por si mesmas assim como elas o podem ser

como fragmentadas e fragmentaacuteveis ndash satildeo corpos mas que como ldquotodordquo natildeo

eacute um corpo Aqui um todo ldquoconstituinterdquo de partes corporais todavia nem

por isso eacute um corpo

O que resta agora da possibilidade de novos ldquocorposrdquo-solos ou

antes de novas ldquoTerrasrdquo como fundamento de referecircncia para a experiecircncia

destes corpos e da possibilidade alcanccedilada que de certa maneira a Terra

possa tanto quanto os outros corpos-solos tornar-se um corpo normal Em

primeiro lugar teria sido preciso dizer que eacute desprovido de sentido falar de

antematildeo de um espaccedilo mundial vazio como noacutes o fazemos unicamente no

mundo ldquoastronocircmicordquo infinito como espaccedilo no qual a Terra eacute do mesmo

modo que os corpos lhe satildeo espaccedilo que envolve a Terra Noacutes temos um

espaccedilo circundante como sistema de lugares ndash quer dizer como sistema de

fins possiacuteveis de movimentos dos corpos Neste sistema todos os corpos

310

terrestres tecircm bem um ldquolugarrdquo particular salvo a proacutepria Terra Isso

aconteceria talvez de um modo diferente se adquiriacutessemos uma

ldquopossibilidade de pensarrdquo a mudanccedila dos solos

Objeccedilatildeo A dificuldade da constituiccedilatildeo da Terra como corpo natildeo

eacute muito exagerada A Terra eacute todavia um todo de partes impliacutecitas cada

uma podendo ser realmente dividida e ser um corpo cada uma tem seu

lugar ndash e a Terra possui assim um espaccedilo interior como sistema de lugares

ou (quando mesmo pensado de maneira natildeo matemaacutetica) um continuum

local tendo em consideraccedilatildeo uma divisibilidade total Eacute por conseguinte

pela mesma razatildeo que cada corpo qualquer como divisiacutevel possui seu lugar

no ponto de vista das partes Mas o espaccedilo interior e o espaccedilo exterior da

Terra natildeo formam senatildeo um soacute e uacutenico espaccedilo Ou haacute ainda um resto Cada

parte da Terra poderia se mover A Terra tem movimentos internos Do

mesmo modo todo corpo ordinaacuterio natildeo eacute somente divisiacutevel mas possui suas

deformaccedilotildees e seus movimentos internos contiacutenuos ao passo que como

todo pode a sua maneira conservar ou modificar seu lugar no espaccedilo

Tambeacutem a Terra possui deformaccedilatildeo e movimento interno contiacutenuo etc Mas

como ela pode se mover como ldquotodordquo Como isto eacute pensaacutevel Natildeo como se ela

estivesse firmemente fixa ndash para isto o ldquosolordquo falta O movimento e portanto

a corporeidade tecircm um sentido para ela Seu lugar no espaccedilo universal eacute

efetivamente um ldquolugarrdquo para ela Por outro lado o espaccedilo universal natildeo eacute

precisamente o sistema de lugares de todos os corpos que por conseguinte

se dividem em partes implicadas da Terra (como fragmentadas e moacuteveis) e

em corpos exteriores livres Quais curiosidades de ldquointuiccedilatildeo do espaccedilordquo a

saber do espaccedilo deste niacutevel temos aqui

Mas agora noacutes temos ainda de considerar os corpos exteriores ndash

os corpos livres que natildeo satildeo fragmentos implicados da Terra ndash e as carnes

ldquominha carnerdquo e ldquoas outras carnesrdquo Estas uacuteltimas satildeo percebidas como

corpos no espaccedilo a cada vez em seu lugar e natildeo percebidas mas todavia

perceptiacuteveis (ou experimentaacuteveis de maneira modificada) como o que dura

continuamente em um movimento-repouso que se estende sobre esta

duraccedilatildeo (movimento e repouso internos tambeacutem)

311

Minha carne na experiecircncia primordial ela natildeo estaacute nem em

deslocamento nem em repouso somente movimento e repouso internos

diferentemente dos corpos exteriores Todos os corpos natildeo ldquose movemrdquo em

um ldquoeu vourdquo em geral em um ldquoeu me movordquo cinestesicamente e a Terra-solo

em seu conjunto natildeo se move sob mim Com efeito pertence a um repouso

corporal que os aspectos do corpo se escoam cinestesicamente em mim ldquode

maneira moacutevelrdquo ou natildeo se escoem sempre segundo eu me mantenha

tranquilo etc Eu natildeo estou em deslocamento que eu me mantenha

tranquilo ou que eu ande minha carne eacute o centro e os corpos em repouso e

moacuteveis estatildeo todos ao meu redor e eu tenho um solo sem mobilidade Minha

carne possui extensatildeo etc mas natildeo tem mudanccedila ou natildeo-mudanccedila local no

sentido em que um corpo exterior se daacute como em movimento se

aproximando se distanciando ou como imoacutevel proacuteximo distante Todavia

o solo sobre o qual minha carne vai ou natildeo natildeo eacute experimentado como um

corpo a deslocar ou natildeo integralmente As carnes dos outros satildeo corpos em

movimento e repouso (sempre des-locamento no sentido de se aproximar ou

de se distanciar de mim) mas satildeo carnes na forma do ldquoeu movordquo no qual o

eu eacute um ldquooutro eurdquo para o qual minha carne eacute um corpo e para o qual todos

os corpos exteriores que natildeo satildeo carnes satildeo os mesmos que os meus Mas

tambeacutem toda carne que para mim eacute uma carne alheia eacute para todos os

outros ego com exceccedilatildeo da proacutepria carne deles identicamente o mesmo

corpo e a mesma carne do mesmo ego e minha carne eacute para todo ego o

mesmo corpo e simultaneamente a mesma carne deste mesmo ego diferente

para eles do que eu proacuteprio sou para mim mesmo

A Terra eacute para todos a mesma Terra sobre ela nela acima dela

reinam os mesmos corpos ldquosobre elardquo etc os mesmos sujeitos encarnados

sujeitos de carnes que para todos e em um sentido modificado satildeo corpos

Mas para noacutes todos a Terra eacute solo e natildeo corpo no sentido pleno Admitamos

agora que eu seja um paacutessaro e que eu possa voar ndash ou melhor eu olho

atentamente os paacutessaros que co-pertencem agrave Terra Compreendecirc-los eacute se

substituir a eles enquanto eles voam O paacutessaro estaacute sobre o galho ou

pousado sobre o solo salta ao redor e em seguida levanta vocirco ele eacute como

eu em sua experiecircncia e seu agir quando estaacute sobre a Terra ele faz a

312

experiecircncia do solo dos diversos corpos dos outros paacutessaros tambeacutem as

carnes dos outros e os ego-carnes etc tudo como eu Mas ele alccedila vocirco ndash eacute

como caminhar de cabeccedila baixa uma cinestesia atraveacutes da qual todos os

escoamentos de aparecircncias que de outro modo seriam percebidas como

movimento e repouso dos corpos transformam-se e do mesmo modo que na

caminhada Com a pequena diferenccedila de que para o paacutessaro o manter-se

tranquilo e ldquoser-levado-pelo-ventordquo (o que natildeo deve todavia significar uma

apreensatildeo corporal) forma uma combinaccedilatildeo de experiecircncia com o ldquoeu movordquo

e fornece sempre tambeacutem por uma ldquomudanccedila de posiccedilatildeo de vocircordquo e um novo

manter-se-tranquilo um ldquomovimento aparenterdquo e isto de uma outra

maneira O manter-se-tranquilo se finaliza como ldquoquedardquo nisto que o paacutessaro

natildeo voa mais poreacutem pousa sobre a aacutervore ou sobre a Terra e entatildeo

eventualmente salta etc O paacutessaro deixa a Terra sobre a qual ele tem como

noacutes experiecircncias natildeo voadoras e alccedila vocirco e retorna novamente de volta ele

tem mais uma vez os modos de aparecircncias do movimento e do repouso

como eu que me fixei agrave Terra Voando e retornando o paacutessaro tem modos de

aparecircncias motivados por outras cinestesias (atraveacutes de suas cinestesias

especiacuteficas de voador) modos de aparecircncias analogicamente modificadas

todavia e que na modificaccedilatildeo possuem a significaccedilatildeo do movimento e do

repouso posto que as cinestesias do vocirco e as cinestesias da caminhada

formam para o paacutessaro um uacutenico sistema cinesteacutesico compreendendo o

paacutessaro noacutes compreendemos precisamente este alargamento de suas

cinestesias etc O que estaacute em repouso possui seu sistema de aparecircncias que

eacute preciso sempre novamente pro-duzir como natildeo-caminhada natildeo-vocirco etc

Se consideramos o salto e o ressalto de um corpo em movimento

a inversatildeo dos escoamentos de aparecircncias me fornece assim como ao

mundo inteiro movimento e repouso sobre o modo antigo ndash portanto eu

compreendo necessariamente o mundo inteiro Eu compreendo bem seu

salto como tal Os corpos sobrevindo em meu campo visual por exemplo

como caindo ldquodo espaccedilo vaziordquo eu os compreendo precisamente como tais

ldquoDe que modordquo isto Em movimento sobre a Terra eles o satildeo para mim do

fato que eu posso modificar e eventualmente acompanhar cinestesias e do

fato de que a mundana de aparecircncia manteacutem o repouso ndash este uacuteltimo mesmo

313

que significa para mim o repouso se eu me mantivesse cinestesicamente

tranquilo Eu posso fazer isto para corpos que natildeo se movem no espaccedilo

supraterrestre eu o poderia se quisesse Mas eu posso lanccedilar pedras no ar e

vecirc-las cair como as mesmas O arremesso pode ser mais ou menos no niacutevel

da terra as aparecircncias satildeo manifestamente tatildeo anaacutelogas aos movimentos

sobre o solo da Terra que elas satildeo expericienciadas como movimentos

Corpos tais como uma bola rolante etc satildeo assim postos em movimento por

choque satildeo assim lanccedilados etc Seria preciso tambeacutem mencionar a

experiecircncia de um movimento de queda no caso da queda a partir de um

corpo terrestre elevado um teto uma torre

Corpo moacutevel (automoacutevel) sobre ele minha carne-navio voador

ldquoEu poderia voar tatildeo alto que a Terra apareceria como uma esferardquo A Terra

poderia ser tatildeo pequena que eu poderia percorrecirc-la de todos os lados e vindo

dela indiretamente agrave representaccedilatildeo de esfera Eu descubro por

conseguinte que ela eacute um grande corpo esfeacuterico Mas trata-se precisamente

de saber se e de que modo eu posso chegar agrave corporeidade no sentido em

que ldquoastronomicamenterdquo a Terra eacute efetivamente um corpo entre os outros

entre os corpos celestes Poderiacuteamos tatildeo pouco dizer de que modo se eu me

imagino e viso agora o paacutessaro a qualquer altitude ele pode experienciar a

Terra como um corpo entre os outros Por que natildeo Para noacutes homens sobre

a Terra o paacutessaro e o aviatildeo se movem e isto vale para o proacuteprio paacutessaro e os

homens no aviatildeo porquanto eles experienciam a Terra como ldquocorpordquo-camada

ldquocorpordquo-solo Mas o aviatildeo natildeo pode todavia funcionar como ldquosolordquo Eu

posso permutar ou pensar permutar solo e corpo com o solo em movimento

como arquilugar de meus movimentos O que restaria de uma alteraccedilatildeo da

apercepccedilatildeo e o que restaria de sua legitimaccedilatildeo Natildeo deveria pensar

transferir para o aviatildeo toda a validez constitutiva (conforme a forma) que em

geral daacute sentido agrave Terra como meu solo como solo de minha carne

Eacute da mesma maneira que eu pressuponho ao compreender uma

carne alheia minha carne primordial e tudo o que lhe pertence Mas aqui eu

disponho necessariamente e de maneira inteligiacutevel do valor de existecircncia do

outro A dificuldade se repete para as estrelas Para poder fazer a

ldquoexperiecircnciardquo delas apreendecirc-las indiretamente como corpo eu devo jaacute ser

314

para mim homem sobre a Terra como meu solo-camada Talvez digamos natildeo

haveria dificuldade se eu e noacutes pudeacutessemos voar e tiveacutessemos duas Terras

como corpo-solo e se de uma pudeacutessemos sempre voar ateacute a outra Assim

uma se tornaria justamente corpo para a outra que seria solo Mas o que

significa duas Terras Dois fragmentos de uma Terra com uma humanidade

Estes dois fragmentos se reuniriam em um solo e cada um seria

simultaneamente corpo para o outro Eles teriam ao redor deles o espaccedilo

comum no qual cada um como corpo teria eventualmente um lugar moacutevel

mas o movimento seria sempre relativo ao outro corpo e irrelativo ao solo

sinteacutetico de seu conjunto Os lugares de todos os corpos teriam esta

relatividade de onde resultaria para o movimento e o repouso a questatildeo em

relaccedilatildeo a qual dos dois corpos-solos

Originariamente soacute ldquoardquo Terra-solo pode ser constituiacuteda com o

espaccedilo circundante dos corpos mas isto pressupotildee jaacute que minha carne os

outros conhecidos e os horizontes abertos dos outros sejam constituiacutedos

distribuiacutedos em espaccedilo no espaccedilo que como campo aberto do proacuteximo e do

distante dos corpos ao redor da Terra e daacute aos corpos o sentido de corpo

terrestre e ao espaccedilo o do espaccedilo terrestre A totalidade do noacutes dos homens

dos ldquoanimaisrdquo eacute neste sentido terrestre ndash e natildeo se opotildee em primeiro lugar

ao natildeo-terrestre Este sentido estaacute enraizado e encontra seu centro de

orientaccedilatildeo em mim e em um noacutes limitado aos que vivem uns com os outros

Mas eacute tambeacutem possiacutevel que a Terra-solo se amplia talvez agrave maneira pela

qual eu aprenda a compreender que no espaccedilo da primeira Terra-solo haacute

grandes navios aeacutereos que ali navegam haacute muito tempo eu nasci em um dos

dois minha famiacutelia vive ali era meu solo de ser ateacute eu aprender que noacutes natildeo

somos senatildeo navegantes na maior Terra etc Assim pode se unificar em um

uacutenico lugar-solo uma multiplicidade de lugares-solos de lugares-nuacutecleos

Mais tarde os complementos necessaacuterios sobre este ponto

Antes de tudo se a Terra eacute constituiacuteda de carne e de

corporeidade entatildeo o ldquoceacuteurdquo eacute tambeacutem necessaacuterio como campo de coisas que

no extremo satildeo para mim e noacutes todos ainda experimentaacuteveis

espacialmente ndash e isto a partir da Terra-solo Ou antes um horizonte aberto

de distacircncias acessiacuteveis eacute constituiacutedo a partir de todo ponto do espaccedilo que

315

me eacute acessiacutevel haacute um horizonte extremo um limite (esfera de horizonte) em

que este que eacute ainda experimentaacutevel como coisa distante desaparece

finalmente com o distanciamento Inversamente eu posso naturalmente me

representar que ldquopontosrdquo que se tornam visiacuteveis satildeo corpos distantes que se

aproximaram e podem agora se fazer mais proacuteximos ateacute atingir a Terra-solo

Mas agora tambeacutem eu posso me representar que satildeo lugares-nuacutecleos

Eacute preciso todavia observar cada um retira a sua ldquohistoricidaderdquo

do ego respectivo que eacute domiciliado nele Se eu nasci filho de marinheiro

uma parte de meu desenvolvimento ocorreu sobre o navio e este uacuteltimo natildeo

se caracterizaraacute pra mim como navio em relaccedilatildeo agrave Terra ndash como unidade

alguma teraacute sido produzida ndash ele seraacute mesmo minha ldquoTerrardquo minha paacutetria

originaacuteria Mas neste caso meus pais natildeo satildeo entatildeo originariamente

domiciliados no navio eles possuiacuteam ainda uma velha morada uma outra

arquipaacutetria Na mudanccedila dos nuacutecleos isto permanece universalmente

expresso (se nuacutecleo tem o sentido habitual de meu territoacuterio atual individual

ou familiar) todo ego tem um arquinuacutecleo ndash e um arquinuacutecleo pertence a

todo arquipovo com seu arquiterritoacuterio Mas cada povo e sua historicidade

cada sobrepovo (supranaccedilatildeo) eacute finalmente ele mesmo naturalmente

domiciliado sobre a ldquoTerrardquo e todos os desenvolvimentos todas as histoacuterias

relativas tecircm nesta medida uma uacutenica arqui-histoacuteria da qual eles satildeo os

episoacutedios Certamente eacute bem possiacutevel que esta arqui-histoacuteria seja um

conjunto de povos que vivem e que se desenvolvem de maneira inteiramente

separada excetuando que eles se mantecircm todos uns pelos outros no

horizonte aberto e indeterminado do espaccedilo terrestre

Uma vez clarificada a possibilidade de arqueacutes-voadores (o que

poderia ser tambeacutem um nome para o arquinuacutecleo) consideremos agora as

estrelas que se manifestam na ldquoexperiecircnciardquo (quer dizer na historicidade no

seio da qual se constitui o mundo e nele a natureza corporal o espaccedilo

natural e o espaccedilo-tempo a humanidade e o universo animal) como

simples ldquonavios aeacutereosrdquo ldquonaves espaciaisrdquo da Terra partindo e lhe

retomando sempre habitados e dirigidos por homens que conforme sua

uacuteltima origem generativa e para si mesma histoacuterica satildeo domiciliados sobre a

Terra-solo sua arqueacute Para isso noacutes consideramos portanto agora

316

ldquoestrelasrdquo ndash em primeiriacutessimo lugar manchas e pontos luminosos No curso

da experiecircncia em via de formaccedilatildeo elas satildeo apercebidas como corpo

distante mas sem que advenha nunca a possibilidade de uma verificaccedilatildeo

empiacuterica normal no sentido primeiro estreito de uma legitimabilidade

direta ldquoCorpos celestesrdquo noacutes os tratamos da mesma maneira que os corpos

que natildeo satildeo para noacutes (e eventualmente para outros) senatildeo acidentalmente e

factualmente presentes temporariamente inacessiacuteveis e noacutes retiramos deles

conclusotildees empiacutericas fazemos empiricamente nossas observaccedilotildees de lugar

observaccedilotildees de seus movimentos induzidos etc como se eles fossem corpos

como os outros Tudo isto eacute relativo agrave arqueacute Terra-solo agrave ldquoesfera-Terrardquo a

noacutes homens terrestres e a objetividade se relaciona agrave humanidade

universal Como a proacutepria Arquiterra Ela proacutepria jaacute natildeo eacute um corpo nem

um estrela entre as estrelas Eacute somente quando noacutes nos representamos

nossas estrelas como arqueacutes secundaacuterias com sua eventual humanidade

etc quando noacutes nos imaginamos transportados ali entre estas humanidades

e que voam ali talvez que se passa de outro modo Isto se passa entatildeo com

algumas modificaccedilotildees como com as crianccedilas nascidas em navios As

estrelas satildeo muitos corpos hipoteacuteticos em um sentido determinado de como-

se e tal eacute tambeacutem a hipoacutetese que elas satildeo nuacutecleos em um sentido acessiacutevel

de uma espeacutecie singular

A homogeneizaccedilatildeo das distacircncias celestes mesmo por iteraccedilatildeo

traz consigo suas questotildees fenomenoloacutegicas Qual eacute ali a possibilidade

eideacutetica e a possibilidade preacute-dada com o mundo terrestre como co-

constituinte de seu ser por seu modo de ser conforme agrave essecircncia Com a

interpretaccedilatildeo hipoteacutetica das estrelas visiacuteveis como corpos distantes e pela

forma eideacutetica do limite do que pode ser experimentado ao longe a infinitude

aberta do mundo terrestre eacute jaacute dada como dotada de uma infinitude de

corpos distantes que podem existir Noacutes compreendemos assim sem mais a

homogeneizaccedilatildeo de modo que a proacutepria Terra seja um corpo sobre o qual

acidentalmente rastejamos Com os problemas agora considerados noacutes

chegamos propriamente ao grande problema do sentido legiacutetimo de uma

ciecircncia universal e puramente fiacutesica da ldquonaturezardquo ndash de uma ciecircncia

astronocircmico-fiacutesica se mantendo na infinitude ldquoastronocircmicardquo no sentido de

317

nossa fiacutesica dos tempos modernos (no sentido mais amplo astrofiacutesica) e no

problema de uma ciecircncia de infinitude interna da infinitude do contiacutenuo e

da maneira de se atomizar ou quantificar na indefinitude aberta ou infinita ndash

a fiacutesica atocircmica Nestas ciecircncias da infinitude da totalidade da natureza

consideramos ordinariamente que as carnes natildeo satildeo senatildeo corpos

acidentalmente singularizados que poderiam entatildeo de maneira concebiacutevel

ser inteiramente suprimidos e que por conseguinte uma natureza eacute possiacutevel

sem organismos sem animais sem homens Falta pouco para que

acreditemos nisto e sem duacutevida tambeacutem de modo perioacutedico largamente

acreditamos que era uma pura e simples facticidade leis da natureza que

valem no mundo se a carne animal a vida psiacutequica fosse (causalmente)

vinculada a certos corpos ou tipos de corpos com estrutura fiacutesica seria

entatildeo concebiacutevel que estas mesmas carnes precisamente corpos assim

feitos natildeo sejam precisamente senatildeo puros e simples corpos Qualquer que

seja a maneira pela qual acreditamos poder provar que natildeo haja todavia

ldquovidardquo sobre a Terra foi preciso longos espaccedilos de tempo para que

substacircncias orgacircnicas altamente complexas viessem agrave formaccedilatildeo e assim a

vida animal aparecesse sobre a Terra E eacute considerado tambeacutem evidente que

a Terra seja apenas um dos corpos contingentes do mundo dentre outros e

seria quase ridiacuteculo querer acreditar depois de Copeacuternico que a Terra

ldquosimplesmente porque por acaso vivemos em cimardquo seja o centro do mundo

aleacutem disso privilegiado por seu ldquorepousordquo em relaccedilatildeo do qual tudo o que se

move eacute moacutevel Parece que noacutes temos com o que precede aberto uma larga

brecha na ingenuidade da ciecircncia da natureza (natildeo na medida em que ela

teoriza mas na medida em que ela crecirc atingir por suas teorias a verdade

absoluta do mundo ainda que fosse por graus de perfeiccedilatildeo relativos) A

fenomenologia ancorou talvez tanto a astrofiacutesica copernicana como a anti-

copernicana segundo a qual Deus teria fixado a terra em um lugar do

espaccedilo Eacute possiacutevel que no niacutevel da fenomenologia os caacutelculos e teorias

matemaacuteticas da astrofiacutesica consecutiva a Copeacuternico e por conseguinte a

fiacutesica inteira conservem igualmente em seus limites um direito ndash diferente

jaacute eacute a questatildeo de saber se uma biologia puramente fiacutesica ndash que deve ser

todavia biologia ndash pode conservar sentido e direito

318

Reflitamos entatildeo De que modo devemos alcanccedilar o direito de

deixar valer a Terra como um corpo como uma estrela entre as estrelas

Ainda que isto fosse em primeiro lugar e somente a tiacutetulo de possibilidade

Comecemos com uma outra possibilidade O naturalista admitiraacute como um

puro e simples fato que noacutes vemos em geral estrelas Ele diraacute as estrelas e

mesmo o Sol natildeo poderiam estar tatildeo distantes que natildeo nos fossem

presentes Eles poderiam bem estar invisiacuteveis pelo efeito de uma camada de

nevoeiro Teria sido portanto assim em todas as eacutepocas histoacutericas ndash noacutes

viveriacuteamos entatildeo em uma historicidade generativa e teriacuteamos tido nosso

mundo terrestre nossa Terra e nossos espaccedilos terrestres onde voam e

planam corpos etc assim como ateacute o presente mas somente sem estrelas

visiacuteveis e experimentaacuteveis para noacutes Talvez teriacuteamos uma fiacutesica atocircmica uma

microfiacutesica mas nem astrofiacutesica nem macrofiacutesica Seria preciso todavia

meditar o quanto as primeiras seriam modificadas Noacutes teriacuteamos nossos

telescoacutepios nossos microscoacutepios nossos instrumentos de medida cada vez

mais apurados teriacuteamos nosso Newton e a lei da gravitaccedilatildeo teriacuteamos podido

descobrir que os corpos exercem a gravitaccedilatildeo uns sobre os outros e

simultaneamente que podem ser considerados como divisiacuteveis como um

conjunto de partes corporais que exercem entatildeo sua gravitaccedilatildeo exatamente

como corpos autocircnomos e agindo segundo leis mecacircnicas produzindo

resultantes etc Noacutes teriacuteamos descoberto que a Terra eacute uma ldquoesferardquo divisiacutevel

em corpos que ela exerce como unidade total de partes corporais uma

gravitaccedilatildeo como totalidade sobre todos os corpos se dissociando dela corpos

que satildeo visiacuteveis ou natildeo no espaccedilo terrestre Que corpos estejam no espaccedilo

cada vez mais longe do que eacute nosso visiacutevel ordinaacuterio e suscetiacuteveis de ser

percebidos unicamente por meio de telescoacutepios e de telescoacutepios sempre mais

potentes ndash tudo isso noacutes o sabemos Noacutes poderiacuteamos em seguida nos dizer

seria bem possiacutevel finalmente que corpos de grandeza qualquer se

encontrem a distacircncias ainda e para sempre inacessiacuteveis a nossos sentidos

Sem os ver sem ter diretamente conhecimento deles mesmo se os copos

distantes sejam assimilaacuteveis por hipoacutetese aos corpos ordinaacuterios poderiacuteamos

fazer induccedilotildees e a partir dos efeitos da gravitaccedilatildeo etc calcular a existecircncia

de tais ldquoestrelasrdquo A Terra finalmente seria em todo o domiacutenio fiacutesico um

319

corpo como os outros e aleacutem disso envolvido de estrelas De fato noacutes jaacute

temos estrelas agrave vista e as descobrimos cientificamente nas relaccedilotildees fiacutesicas

calculaacuteveis com a Terra e descobrimos esta uacuteltima fisicamente assimilada agraves

estas estrelas como um corpo entre os corpos Nos natildeo abordamos entatildeo a

fiacutesica

Mas isto pois do qual tudo depende eacute natildeo esquecer o preacute-dado

e a constituiccedilatildeo pertencente ao ego apodiacutetico a mim a noacutes como fonte de

todo sentido de ser efetivo e possiacutevel de todas as ampliaccedilotildees possiacuteveis que

podem se desenvolver em seguida na historicidade em andamento de um

mundo jaacute constituiacutedo Natildeo podemos cometer o absurdo sim o absurdo de

pressupor de antematildeo e sem que pareccedila nisto com a concepccedilatildeo naturalista

e dominante do mundo para considerar em seguida de maneira

antropoloacutegica e psicologista a formaccedilatildeo da ciecircncia e da interpretaccedilatildeo do

mundo na histoacuteria dos homens histoacuteria das espeacutecies no interior do

desenvolvimento dos indiviacuteduos e dos povos como um acontecimento

terrestre evidentemente contingente que teria tatildeo bem podido ocorrer em

Marte ou Vecircnus Isto vale para a Terra e noacutes homens eu com minha carne e

eu em minha geraccedilatildeo meu povo etc Esta historicidade total tambeacutem

pertence portanto de maneira inseparaacutevel ao ego e natildeo eacute por princiacutepio

repetiacutevel mas tudo o que eacute estaacute referido a esta historicidade da constituiccedilatildeo

transcendental como nuacutecleo pertinente e nuacutecleo crescente ndash ou tudo o que eacute

recentemente descoberto como possibilidade do mundo estaacute vinculado ao

sentido de ser jaacute pronto Poderiacuteamos entatildeo pensar que eacute preciso disto

concluir o seguinte a Terra pode tatildeo pouco perder seu sentido de

ldquoarquinuacutecleordquo de arqueacute do mundo como minha carne o seu sentido de ser

inteiramente uacutenico de carne originaacuteria da qual toda carne deriva uma parte

de seu sentido de ser e que noacutes homens segundo nosso sentido de ser

precedemos os animais etc Por conseguinte todas as assimilaccedilotildees

(homogeneizaccedilotildees) que se co-constituem necessariamente da carne e do

corpo ou da carne corporal como corpo semelhante a outros da

humanidade como espeacutecie animal entre outras e portanto finalmente da

Terra como corpo mundano entre os corpos mundanos natildeo podem nada

mudar a esta dignidade constitutiva ou hierarquia de valor Eu posso muito

320

bem me imaginar transportado sobre o corpo lunar Por que eu natildeo deveria

me imaginar a Lua como uma espeacutecie de Terra como uma espeacutecie de

habitaccedilatildeo animal Sim eu posso muito bem me imaginar como um paacutessaro

que alccedila vocirco da Terra em direccedilatildeo a um corpo distante ou como um piloto de

aviatildeo decolando e pousando ali Sim eu posso mesmo me imaginar que haacute

jaacute ali animais e homens Mas se por acaso eu pergunto ldquoDe que modo

chegaram ali em cimardquo entatildeo eu interrogo da mesma maneira que sobre

uma ilha nova em que descobrindo inscriccedilotildees cuneiformes eu pergunto

ldquoDe que modo os povos em questatildeo chegaram alirdquo Todos os animais todos

os seres vivos todos os entes em geral natildeo tecircm sentido de ser senatildeo a partir

de minha gecircnese constitutiva e esta uacuteltima tem uma precedecircncia ldquoterrestrerdquo

Sim talvez um fragmento de Terra (como uma banquisa) pode ser

desprendido e isto tornou possiacutevel uma historicidade particular Mas isto

natildeo significa que a Lua assim como Vecircnus sejam pensaacuteveis como

arquinuacutecleos em uma separaccedilatildeo originaacuteria e isto natildeo significa que o ser da

Terra para mim e nossa humanidade terrestre natildeo seja justamente senatildeo

um fato Haacute apenas uma humanidade e apenas uma Terra ndash a ela pertencem

todos os fragmentos que satildeo ou foram sempre separados Mas se isto natildeo eacute

assim podemos dizer com Galileu eppur si muove [mas se move] E natildeo

pelo contraacuterio que ela natildeo se move Seguramente ela natildeo estaacute em repouso

no espaccedilo tendo a possibilidade de se mover mas como noacutes tentamos

mostrar mais acima ela eacute a arqueacute que torna primeiramente possiacutevel o

sentido de todo movimento e de todo repouso como modo de um movimento

Seu repouso natildeo eacute portanto um modo de movimento

Mas agora consideraremos isto um pouco forte simplesmente

louco contradizendo todo conhecimento cientiacutefico da efetividade e da

possibilidade real Eacute possiacutevel que um dia a morte teacutermica ponha fim a toda a

vida na Terra ou que corpos celestes caiam sobre a Terra etc Mesmo se noacutes

pudeacutessemos encontrar em nossa tentativa a mais inacreditaacutevel hybris

filosoacutefica noacutes natildeo recuaremos diante das consequecircncias de nossa

elucidaccedilatildeo de necessidades de toda doaccedilatildeo de sentido para o ente e para o

mundo Nem diante dos problemas da morte tais como em sua nova maneira

a fenomenologia os concebe Presente eu sou enquanto presente estando a

321

morrer os outros morrem para mim quando eu natildeo encontro a conexatildeo

presente com eles Mas aqui a unidade por re-lembrar atravessa minha

vida ndash eu vivo ainda embora no ser-outro e continuo a viver a vida que estaacute

atraacutes de mim e portanto o sentido de atraacutes-de-mim jaz na repeticcedilatildeo e na

possibilidade de repetir Assim o noacutes vive na repetibilidade e continua

mesmo a viver na forma de repetibilidade da histoacuteria no mesmo tempo em

que o indiviacuteduo ldquomorrerdquo quer dizer natildeo pode mais ser ldquorememoradordquo pelos

outros de maneira intropaacutetica mas somente pela lembranccedila histoacuterica na

qual os sujeitos do lembrar podem se representar

O que pertence agrave constituiccedilatildeo isto eacute e eacute unicamente a absoluta e

uacuteltima necessidade e eacute em primeiro lugar a partir daiacute que todas as

possibilidades imaginaacuteveis de um mundo constituiacutedo estatildeo finalmente por

determinar Que sentido podem ter as massas se desmoronando no espaccedilo

em um espaccedilo preacutevio como absoluto homogecircneo e a priori se a vida

constituinte eacute suprimida Com efeito uma tal supressatildeo ela mesma natildeo tem

o simples sentido se eacute que haacute disso de uma supressatildeo de e na subjetividade

constituinte O ego vive e precede sendo efetivo e possiacutevel quer cada ente

tenha um sentido real ou irreal O tempo do mundo constituiacutedo guarda bem

em si o tempo psicoloacutegico mas natildeo de tal maneira que se possa inverter a

esfera psicoloacutegica na esfera transcendental e antes de tudo inverter ali

todas as maneiras pelas quais se pressupotildee harmoniosamente de um ponto

de vista abstrato qualquer e relativamente justificado um mundo

homogecircneo e mais estreitamente uma natureza com a esfera psiacutequica que

lhe eacute psicofisicamente vinculada ndash todas pressuposiccedilotildees com as quais

operamos muito bem na praacutetica (a praacutexis natural humana que forma e

utiliza a ciecircncia) ndash para enfim graccedilas a esta inversatildeo opor como vaacutelidas agrave

fenomenologia os paradoxos que nascem

322

Notas sobre o desenvolvimento de meus conceitos196

Kurt Goldstein

Trad Rodrigo Vieira Marques

No claacutessico ginaacutesio alematildeo no qual fui educado nosso interesse

e aprendizagem eram essencialmente dirigidos para as humanidades e era

assim a minha leitura fora da escola Natildeo obstante no ginaacutesio os jovens

tendiam geralmente agrave escolha das ciecircncias naturais como profissatildeo Quando

tive que escolher entre as ciecircncias naturais e a filosofia antes de entrar na

Universidade eu natildeo soube qual escolher Ao decidir pela ciecircncia natural eu

estava certo de que a usaria somente como uma base para me tornar um

meacutedico Apenas a medicina pareceu ser adequada para a minha inclinaccedilatildeo ndash

cuidar dos seres humanos

O vago conhecimento que eu tinha de medicina dizia respeito

principalmente agraves pessoas com doenccedilas mentais que me pareciam

particularmente precisar de ajuda Naquela eacutepoca estas doenccedilas eram

consideradas a expressatildeo de condiccedilotildees anormais do ceacuterebro Assim o estudo

do sistema nervoso era tido como certo e eu me senti atraiacutedo pelos

professores que se ocupavam com os estudos neste campo o anatomista

Professor Schaper que estava interessado no desenvolvimento embrionaacuterio

do sistema nervoso o famoso psiquiatra professor Karl Wernicke que

tentou compreender os sintomas psicoloacutegicos dos pacientes e combinar esta

compreensatildeo com os resultados sobre os seus ceacuterebros e o professor Ludwig

Edinger que postulou os fundamentos da anatomia comparativa do sistema

nervoso e para o qual o estudo da anatomia era principalmente os meios de

compreender o comportamento de diferentes animais e do homem No meio

de minha vida universitaacuteria eu tinha comeccedilado o trabalho no laboratoacuterio e

jaacute tinha publicado dois artigos de anatomia negligenciando um pouco as

196 GOLDSTEIN K Selected Papers Ausgewaumlhlte Schriften [Editores Aron Gurwitsch Else M Goldstein Haudek William E Haudek] The Hague Netherlands Martinus Nijhoff 1971 Pp 1-12 Reproduzido de Journal of Individual Psychology Vol 15 1959 (pp 5014)

323

leituras exigidas em particular aquelas requeridas na cirurgia e na

ginecologia

O Sintoma em relaccedilatildeo ao Organismo Inteiro

Preparado com um certo conhecimento em meu campo favorito

eu fui trabalhar com pacientes neuroloacutegicos usando o maravilhoso meacutetodo

detalhado sobre o exame de Wernicke como meu modelo Em 1907 eu

obtinha uma posiccedilatildeo na cliacutenica psiquiaacutetrica universitaacuteria em Koenigsberg

Ali fiquei extremamente desapontado porque o cuidado psiquiaacutetrico naquele

tempo era principalmente carceraacuterio e a abordagem cliacutenica de Kraepelin

mediante a qual ele tentou trazer ordem agravequele campo um pouco confuso

natildeo me pareceu muita promissora para a terapia

Enquanto me concentrava sobre a investigaccedilatildeo de casos

neuroloacutegicos orgacircnicos e psiquiaacutetricos dei-me conta de que o procedimento

usual conforme o meacutetodo das ciecircncias naturais ao estudar com cuidado

os sintomas proeminentes e ao tentar basear a terapia nestes resultados

revelou muitos fenocircmenos interessantes poreacutem eram bastante

insatisfatoacuterios para finalidades terapecircuticas Quando eu comecei a examinar

igualmente as outras manifestaccedilotildees do comportamento patoloacutegico dos

mesmos pacientes que foram considerados geralmente simples

concomitantes e foram mais ou menos negligenciados na interpretaccedilatildeo os

resultados me pareceram mais promissores Na verdade eu natildeo estava certo

de que modo se deveria avanccedilar a este respeito e por qual meacutetodo se poderia

avaliar esta crescente quantidade de material Eu senti que eacuteramos

confrontados com um problema baacutesico em nossa abordagem cientiacutefica ao

compreender o comportamento natildeo soacute dos pacientes mas tambeacutem dos seres

vivos em geral Eu natildeo tinha previsto ainda que a tentativa de atacar este

problema fosse determinar permanentemente os meus esforccedilos cientiacuteficos197

197 K Goldstein The Organism a Holistic Approach to Biology Derived from Pathological Data in Man New York American Book Co 1939

324

O problema tornou-se particularmente urgente durante e apoacutes a

Primeira Guerra Mundial quando eu fui confrontado com a tarefa de cuidar

de um grande nuacutemero de jovens soldados com lesotildees cerebrais e defeitos em

diferentes capacidades mentais particularmente na linguagem Apoacutes o

tratamento ciruacutergico foram considerados geralmente objetos da caridade e

do cuidado porque pareceu que uma melhoria real nunca poderia ser

esperada Somente alguns neurologistas eu mesmo estava entre eles

protestaram que mediante um tratamento adequado estes pacientes

poderiam ser trazidos a uma condiccedilatildeo na qual a vida novamente valeria a

pena vivendo apesar de alguns defeitos remanescentes Com esta finalidade

alguns hospitais especiais foram instituiacutedos em oposiccedilatildeo agrave opiniatildeo da

maioria dos principais neurologistas do paiacutes198199

Minha ideia era construir uma instituiccedilatildeo que oferecesse a

oportunidade de observar o comportamento diaacuterio dos pacientes e estudaacute-los

em todos os aspectos Por conseguinte eu organizei em Frankfurt am Main

sob a administraccedilatildeo do governo um hospital que consistia em uma ala para

o tratamento meacutedico e ortopeacutedico um laboratoacuterio de fisiologia e de psicologia

para o exame especial de pacientes e interpretaccedilatildeo teoacuterica dos fenocircmenos

observados uma escola para readaptaccedilatildeo com base nos resultados desta

pesquisa e finalmente oficinas nas quais a aptidatildeo do paciente para

ocupaccedilotildees especiais seria testada e ele aprenderia um ofiacutecio de acordo com

sua habilidade Neste trabalho eu tinha a assistecircncia dos mais jovens

neurologistas professores e psicoacutelogos Ali a cooperaccedilatildeo de meu falecido

amigo o psicoacutelogo A Gelb provou ser por mais de dez anos de grande

importacircncia Este hospital um Instituto chamado mais tarde de Research on

the After-Effects of Brain Injuries [Instituto de Pesquisa sobre os Poacutes-efeitos de

Lesotildees Cerebrais] existiu ateacute Hitler chegar ao poder Para nossas

198 K Goldstein Die Behandlung Fuumlrsorge und Begutachtung des hirnverletzten Soldaten Leipzig Vogel 1919 199 K Goldstein Aftereffects of brain injuries in war their evaluation and treatment New York Grune amp Stratton 1942

325

finalidades era particularmente afortunado que pudeacutessemos manter e

observar pacientes durante muito tempo regularmente por anos200

Este intensivo trabalho cooperativo rendeu muitos resultados de

valor praacutetico e teoacuterico para a medicina e a psicologia como evidenciado por

uma seacuterie de publicaccedilotildees realizadas por meus colegas de trabalho e por mim

mesmo particularmente a Psychologische Analysen hirnpathologischer Faumllle

[Anaacutelise psicoloacutegica de casos patoloacutegicos do ceacuterebro]201 A enorme experiecircncia

obtida transformou-se em base para o desenvolvimento de meus conceitos

teoacutericos

Comportamento abstrato versus comportamento concreto

Noacutes logo descobrimos que uma razatildeo para a falha no tratamento

se deu porque negligenciamos o fato de que sintomas de aparecircncia similar

poderiam ser de origens essencialmente diferentes e que apenas ao

conhecer estas origens se poderia evitar um tratamento inadequado e

conseguir melhores resultados202

Descobrimos tambeacutem que estaacutevamos tratando com dois

diferentes grupos de sintomas No primeiro grupo os sintomas se devem aos

danos de uma capacidade mental especial que noacutes poderiacuteamos caracterizar

com base nos defeitos do comportamento destes pacientes e que chamamos

mais tarde de atitude abstrata ao passo que no segundo grupo os sintomas

representavam um dano de uma outra forma de comportamento humano o

comportamento concreto ao qual as atividades aprendidas pertencem de

modo particular203204

200 Supra n 2 201 K Goldstein and A Gelb Psychologische Analysen hirnpathologischer Faumllle Leipzig Barth 1920 202 K Goldstein ldquoDas Wesen der amnestischen Aphasierdquo Schweiz Arch Neurol Psychiat 1924 15 163-175 203 K Goldstein ldquoDas Symptom seine Entstehung und Bedeutung fuumlr unsere Auffassung vom Bau und von der Funktion des Nervensystemsrdquo Arch Psychiat Neurol 1925 76 84-108 204 K Goldstein and M Scheerer ldquoAbstract and concrete behavior an experimental study with special testsrdquo Psychol Monogr 1941 53 No 2

326

Como a observaccedilatildeo revelou que a modificaccedilatildeo caracteriacutestica do

comportamento no primeiro grupo dizia respeito mais ou menos a todos os

campos de atuaccedilatildeo era possiacutevel explicar atraveacutes de uma diferenciaccedilatildeo de

uma uacutenica e mesma funccedilatildeo muitos sintomas diferentes que antes foram

considerados o resultado do dano mais acidental de diferentes campos de

atuaccedilatildeo Isto deu uma maior perspicaacutecia ao nosso conceito do ceacuterebro

funcional em geral205206

Dentre os sintomas que consistem em modificaccedilotildees do

comportamento concreto poderiacuteamos distinguir207 aqueles que eram o efeito

direto da lesatildeo em um campo e208 aqueles que se tornaram compreensiacuteveis

a partir da mudanccedila do funcionamento do campo em questatildeo devido ao

isolamento209 deles a partir da influecircncia da capacidade abstrata Quando

vimos entatildeo que a modificaccedilatildeo da funccedilatildeo mediante o isolamento segue leis

definitivas noacutes ponderamos se o isolamento natildeo teria podido desempenhar

um papel decisivo no desenvolvimento de muitos fenocircmenos patoloacutegicos em

geral A verificaccedilatildeo crescente desta ideia transformou-se na base para uma

nova abordagem para estudar o funcionamento do ceacuterebro a assim

chamada abordagem holiacutestica que suporia que cada fenocircmeno ndash normal

assim como patoloacutegico ndash eacute uma atividade do organismo inteiro em uma

organizaccedilatildeo particular do organismo210

Pela aplicaccedilatildeo deste procedimento metoacutedico uma seacuterie bastante

discutida de fenocircmenos veio a ser explicada mais facilmente A respeito do

problema da localizaccedilatildeo cerebral a suposiccedilatildeo usual de funccedilotildees isoladas em

regiotildees isoladas do coacutertex provou ser insustentaacutevel211 A chamada relaccedilatildeo212

psicossomaacutetica encontrou uma nova interpretaccedilatildeo que pocircde resolver as

205 K Goldstein ldquoUumlber induzierte Veraumlnderungten des Tonusrdquo Klin Wschr 1925 4 294-299 206 K Goldstein ldquoDie Lokalisation in der Grosshirnrinderdquo In A Bethe et al (Eds) Handbuch der normalen und pathologischen Physiologie Vol 10 Berlin Springer 1927 600-842 207 Supra n 2 208 Supra n 5 209 Supra n 1 p 133 210 Supra n 1 211 Supra n 1 p 249 212 Supra n 1 p 335

327

dificuldades anteriores neste campo As experiecircncias com pacientes afaacutesicos

conduziram ao repuacutedio do conceito naquele tempo predominante que os

tipos diferentes de afasia relacionados agraves lesotildees em diferentes centros do

ceacuterebro podem ser distintos213 As vaacuterias formas de afasia poderiam ser

explicadas de uma maneira unitaacuteria a qual deu origem a um novo conceito

de linguagem com consequecircncias para a teoria da linguagem em

geral214215 De modo similar as novas explanaccedilotildees foram sugeridas para os

problemas dos reflexos216 da ansiedade217 do assim chamado

inconsciente218 e dos fenocircmenos do tocircnus219220221

Sauacutede Doenccedila e Terapia

O resultado mais geral de nossos estudos no campo da medicina

era um conceito conciso da sauacutede da doenccedila e da terapia que originou da

observaccedilatildeo de pacientes com lesotildees cerebrais mas obteve um significado

geral depois que provou ser uacutetil em aplicaccedilatildeo a todas as doenccedilas que natildeo

podem ser curadas totalmente

O paciente com lesatildeo cerebral apresenta natildeo somente falhas de

maior ou pouco grau mas uma ocorrecircncia frequente do que eu chamei de

condiccedilatildeo catastroacutefica isto eacute222 sintomas de desordem do funcionamento do

organismo inteiro que mostra todas as caracteriacutesticas da ansiedade grave

Considerando a condiccedilatildeo mental do paciente em sua totalidade noacutes

concluiacutemos que esta ansiedade natildeo pode ser uma reaccedilatildeo agrave experiecircncia da

213 K Goldstein ldquoDie zwei Formen der Stoumlrungsmoumlglichkeit der Spracherdquo Zbl ges Neurol Psychiat 1931 61 267-288 214 K Goldstein Uumlber Aphasie Zurich Orel Fuumlssli 1927 215 K Goldstein Language and language disturbances New York Grune amp Stratton 1948 216 Supra n 1 p 159 217 Supra n 1 p 291 218 Supra n 1 307 219 K Goldstein and W Riese ldquoUumlber induzierte Veraumlnderungen des Tonusrdquo Klin Wschr 1923 2 1201-1206 2339-2340 1924 3 187-188 220 Supra n 9 221 K Goldstein ldquoUumlber induzierte Veraumlnderungen des Tonusrdquo Schweiz Arch Neurol Psychiat 1926 17 203-288 222 Supra n 1 p 35

328

falha223 A condiccedilatildeo catastroacutefica e a ansiedade podem ser compreendidas

somente como uma reaccedilatildeo da personalidade ao perigo a que eacute exposta pela

impossibilidade de realizar suas capacidades essenciais devido agrave falha As

observaccedilotildees levaram-nos a caracterizar a ansiedade em geral como a

experiecircncia subjetiva de estar no perigo de perder a ldquoexistecircnciardquo224

Eacute este perigo agrave existecircncia que as experiecircncias individuais em

todas as condiccedilotildees noacutes chamamos de doenccedila225226 Em contraste com ela a

sauacutede parece ser a condiccedilatildeo da ordem pela qual a realizaccedilatildeo da natureza do

organismo sua ldquoexistecircnciardquo eacute garantida Mas a sauacutede estaacute nos casos em

que a restitutio ad integrum natildeo pode ocorrer caracterizada por um outro

fenocircmeno que noacutes igualmente estudamos primeiramente nestes pacientes

com lesatildeo cerebral

Se o paciente conseguiu um estado de ordem depois que noacutes

organizamos um ambiente no qual natildeo se faz a ele nenhuma exigecircncia que

natildeo pudesse cumprir e que o conduziria agrave cataacutestrofe entatildeo ele se sente

saudaacutevel e se poderia dizer que estaacute em um estado de sauacutede Mas a

observaccedilatildeo mostra que mesmo assim quando pode em princiacutepio usar

capacidades natildeo danificadas ele parece natildeo usar aquelas que podem levaacute-lo

ndash sob certas condiccedilotildees ndash apesar da proteccedilatildeo agrave cataacutestrofe Em outras

palavras para a manutenccedilatildeo da ordem assim como a existecircncia em uma

condiccedilatildeo objetiva natildeo totalmente restituiacuteda algumas restriccedilotildees satildeo

necessaacuterias para garantir a ordem e assim a existecircncia que corresponde agrave

sua natureza227

O que noacutes observamos no paciente com lesatildeo cerebral provou

igualmente se ajustar a pacientes com doenccedilas de diferentes tipos contanto

que a doenccedila natildeo possa completamente ser eliminada Nestes casos a

ordem ou a sauacutede podem ser obtidas somente se algumas restriccedilotildees satildeo

mantidas Mas mesmo assim a sauacutede pode ser mantida somente se o

223 Supra n 1 p 295 224 K Goldstein ldquoThe structure of anxietyrdquo In J H Masserman amp J L Moreno (Eds) Progress in psychotherapy Vol 2 New York Grune amp Stratton 1957 61-70 225 Supra n1 p 247 226 K Goldstein ldquoThe idea of disease and therapyrdquo Rev Relig 1942 13 229-240 227 Supra n 30

329

paciente natildeo encontra a cataacutestrofe devido a estas restriccedilotildees Tal cataacutestrofe eacute

evitada no ceacuterebro lesionado quando noacutes organizamos seu ambiente de

modo que comeccedilassem tanto quanto pudessem a apreciar da satisfaccedilatildeo

pessoal de que tanto precisam Devido ao comprometimento de sua

capacidade abstrata natildeo percebem nestas condiccedilotildees a contraccedilatildeo de seu

mundo e de suas personalidades pelas restriccedilotildees Quando indiviacuteduos

mentalmente normais com graves doenccedilas corporais neuroacuteticos e psicoacuteticos

se tornam cientes das restriccedilotildees dos desempenhos que se sentem capazes de

executar satildeo confrontados com um dilema A soluccedilatildeo deste dilema eacute

necessaacuteria para se tornarem ldquosaudaacuteveisrdquo de outro modo podem entrar em

cataacutestrofe e sua sauacutede seraacute prejudicada Eles devem ter restriccedilotildees e com

elas certo sofrimento e ansiedade Somente entatildeo tais pacientes

estaratildeo em um estado ordenado no qual possam ldquoexistirrdquo Assim noacutes

viemos de nossa ldquoabordagem organiacutesmicardquo ndash que leva em conta a natureza

inteira do indiviacuteduo (seu Wesen sua existecircncia) ndash a um conceito da doenccedila e

da sauacutede que deva considerar o fenocircmeno de aceitar algumas restriccedilotildees

como um preacute-requisito da sauacutede228

Nosso resultado refere-se agrave condiccedilatildeo de sauacutede natildeo somente nos

pacientes sem a restitutio ad integrum mas igualmente nos indiviacuteduos

normais desde que a vida exija sempre algumas restriccedilotildees Cada

desempenho patoloacutegico ou normal pode corretamente ser avaliado somente

se levarmos a sua relaccedilatildeo com a ldquoexistecircnciardquo do indiviacuteduo em consideraccedilatildeo

A relaccedilatildeo com a existecircncia eacute um fator tatildeo importante para a interpretaccedilatildeo de

cada desempenho de um indiviacuteduo que eacute essencial a toda e qualquer

tentativa de compreender em geral o comportamento humano

Eu quero mencionar aqui brevemente algumas consequecircncias

deste ponto de vista para a terapia Tornar-se saudaacutevel exige uma

transformaccedilatildeo da personalidade do indiviacuteduo que o permita suportar

restriccedilotildees Este eacute o pressuposto para adquirir uma adequaccedilatildeo entre suas

capacidades remanescentes e o mundo isto eacute um estado ordenado ndash e

228 Supra n 30

330

deste modo a possibilidade de usar as capacidades natildeo danificadas a tal

ponto que a vida continue a ter valor apesar da restriccedilatildeo Eacute nossa tarefa na

terapia ajudar o paciente a compreender a necessidade das restriccedilotildees para

tornar-se saudaacutevel Eu gostaria de salientar outra vez que isto se refere a

todos os tipos da doenccedila

Noacutes seremos bem sucedidos na terapia somente quando

tivermos sempre em mente o objetivo acima mencionado Deste ponto de

vista noacutes temos que decidir por exemplo quais sintomas podem ser

eliminados e quais devem permanecer intactos e teremos que avaliar muitos

procedimentos que foram recomendados nas diferentes escolas da

psicoterapia

Uma parte particular da terapia consiste em fazer o paciente

compreender o problema tanto quanto possiacutevel em todos os seus detalhes

Ajudaacute-lo-aacute a ter restriccedilotildees particularmente caso se torne ciente que sua

situaccedilatildeo natildeo eacute em princiacutepio tatildeo muito diferente daquela em que os seres

humanos normais ldquoexistemrdquo

Em todos os aspectos mencionados a organizaccedilatildeo adequada da

relaccedilatildeo entre o meacutedico e o paciente seraacute da maior importacircncia Seu

desenvolvimento eacute de acordo com nossa experiecircncia um preacute-requisito para

o sucesso natildeo somente nas assim chamadas doenccedilas funcionais mas em

pacientes ldquoorgacircnicosrdquo tambeacutem Naturalmente seraacute organizado de um modo

um pouco diferente nas vaacuterias condiccedilotildees Nossa organizaccedilatildeo eacute baseada na

abordagem organiacutesmica e difere um pouco da transferecircncia de outras

escolas da psicoterapia em particular da psicanaacutelise229

Epistemologia e a Natureza do Homem

Ao salientar que a interpretaccedilatildeo de qualquer sintoma e da

organizaccedilatildeo da terapia deve ser baseada no conhecimento do organismo

total que noacutes sempre temos que considerar a personalidade individual no

229 K Goldstein ldquoThe concept of transference in treatment of organic and functional nervous diseasesrdquo Acta pscychother 1954 2 334-353

331

seu funcionamento e a maneira pela qual sua existecircncia eacute garantida noacutes

fomos confrontados com um seacuterio problema230 epistemoloacutegico que se referia

certamente do mesmo modo a qualquer conhecimento bioloacutegico Este

problema tornava-se evidente na consideraccedilatildeo mais aprofundada de nosso

conceito de ldquoaceitar algumas restriccedilotildees como um preacute-requisito da sauacutederdquo em

que tornar-se ldquosaudaacutevelrdquo exige uma escolha do indiviacuteduo A sauacutede adquire

assim o caraacuteter de um valor ndash o valor da existecircncia231 ndash no qual a existecircncia

natildeo significa simplesmente a sobrevivecircncia do indiviacuteduo em sua organizaccedilatildeo

psicofiacutesica mas a preservaccedilatildeo da natureza de seu ser O conhecimento desta

ldquonaturezardquo do indiviacuteduo natildeo pode ser obtido pelo meacutetodo das ciecircncias

naturais apenas Os dados obtidos com o meacutetodo das ciecircncias naturais que

ateacute agora estiveram quase completamente no primeiro plano na teoria

meacutedica e bioloacutegica natildeo satildeo considerados de modo nenhum inuacuteteis Apenas

possuem um outro lugar na totalidade de nosso conhecimento a respeito da

existecircncia organiacutesmica ndash um lugar no qual muitas interpretaccedilotildees erradas

podem ser evitadas e a teoria torna-se assente em uma base mais realista O

conhecimento que noacutes necessitamos pode ser compreendido somente por um

procedimento mental especial que eu tenho caracterizado como uma

atividade criativa baseada em dados empiacutericos atraveacutes da qual a ldquonaturezardquo

passa a estar como uma Gestalt cada vez mais ao alcance de nossa

experiecircncia232 Este procedimento jaacute natildeo pareceraacute tatildeo estranho quando se

percebe que eacute essencialmente semelhante agrave atividade do proacuteprio organismo

pelo qual ao conseguir a adequaccedilatildeo com seu ambiente a existecircncia do

organismo eacute garantida233 A aplicaccedilatildeo deste procedimento cognitivo estaacute

sujeita agraves dificuldades semelhantes agravequelas do procedimento do proacuteprio

organismo em encontrar a condiccedilatildeo em que pode existir Deste ponto de

vista resulta um conceito conciso da natureza humana que eu tentei

230 Supra n 1 p 399 231 K Goldstein ldquoHealth as Valuerdquo In A H Maslow (Ed) New Knowledge in Human Values New York Harper 1959 178-188 232 Supra n 1 p 402 233 Supra n 1 p 403

332

desenvolver com base nas experiecircncias conseguidas com os casos

patoloacutegicos234

Tornou-se compreensiacutevel que a nossa cogniccedilatildeo nunca pode ser

completa e definitiva Todo o nosso conhecimento na biologia humana eacute

baseado em alguma liberdade de escolha e portanto sempre corre algum

risco Consequentemente toda e qualquer accedilatildeo nesta base exige a

responsabilidade e a coragem Isto eacute verdadeiro igualmente para cada tipo de

terapia particularmente a psicoterapia A terapia natildeo eacute simplesmente um

procedimento objetivo O meacutedico natildeo deve somente estar ciente da natureza

da personalidade total do paciente que estaacute tratando mas deve igualmente

estar ciente de sua proacutepria responsabilidade para o efeito de qualquer accedilatildeo

que empreende A terapia eacute uma empresa conjunta do meacutedico e do paciente

baseada em um tipo de comunhatildeo entre eles235 em que o meacutedico conduz

porque aprendeu a lidar com problemas difiacuteceis A terapia seraacute bem

sucedida somente se o paciente participa nesta empresa adequadamente e

estaacute mais ou menos ciente de sua complexidade

Relaccedilatildeo com outras teorias

Eu gostaria de dizer algumas palavras a respeito da relaccedilatildeo de

meus conceitos com a opiniatildeo de outros na aacuterea Eacute desnecessaacuterio dizer que

eu fui influenciado de vaacuterios lados Na verdade eu fui influenciado mais por

visotildees contemporacircneas em geral do que pelas explanaccedilotildees teoacutericas de

homens ou de escolas especiacuteficas Eu sempre pensei que natildeo eacute possiacutevel

simplesmente tomar posse dos fatos ou dos conceitos de um campo de

conhecimento e transpocirc-los para outro Isto eacute frequentemente ateacute mesmo

prejudicial ao progresso Ainda que se deva nunca negligenciar os fatos

descritos por outros eacute preciso tornaacute-los compreensiacuteveis agrave luz de sua proacutepria

teoria

234 K Goldstein Human Nature in the light of Psychopathology Cambridge Mass Harvard Univ Press 1940 235 Supra n33

333

De acordo com o espiacuterito dos tempos na medicina eu fui atraiacutedo

pela ideia de que a doenccedila natildeo deve ser considerada algo que se abate sobre

o indiviacuteduo a partir do exterior mas que se deve tratar um pouco da

personalidade doente um conceito que ganhou larga consideraccedilatildeo na

Alemanha jaacute no iniacutecio do seacuteculo236

Eu fiquei impressionado pelas demonstraccedilotildees de Wertheimer e

dos psicoacutelogos da Gestalt que mostraram que muitos desempenhos podem

ser compreendidos somente sob o aspecto da Gestalt Eu tentei aplicar este

princiacutepio ao estudo do comportamento de meus pacientes porque eu senti

que era semelhante agrave minha abordagem a qual foi baseada na anaacutelise do

comportamento normal e anormal Eacute desnecessaacuterio dizer que isto nos

ajudou a compreender uma seacuterie de fenocircmenos Mas depois eu me tornei

cada vez mais ciente da diferenccedila entre a teoria da Gestalt e o meu proacuteprio

conceito organiacutesmico Assim eu penso que natildeo se justifica que muitas vezes

eu seja considerado um ldquoGestaltistardquo237

A maioria dos principais psiquiatras e dos neurologistas natildeo

concordaram com minhas ideias teoacutericas quando eu as apresentei pela

primeira vez Havia somente uns poucos que estavam pensando em moldes

similares O uacutenico com quem eu tive muito em comum o falecido Hughlings

Jackson foi muito pouco conhecido na Alemanha ou na Inglaterra na eacutepoca

Assim ele dificilmente poderia ter influenciado o desenvolvimento de minhas

ideias por mais que eu tenha aprendido mais tarde com seus escritos No

entanto houve sempre algumas diferenccedilas que natildeo permaneceram sem

importacircncia entre as suas opiniotildees e a minha

As ideias de Freud e de seus seguidores foram natildeo soacute natildeo

reconhecidas na Alemanha daquela eacutepoca a natildeo ser por ciacuterculos esoteacutericos

pequenos mas foram muito pouco conhecidas por um consideraacutevel tempo

apoacutes a publicaccedilatildeo de seus livros mais famosos que ndash por mais incriacutevel que

possa ser ndash eu aprendi sobre sua teoria somente um pouco antes de 1920

236 K Goldstein ldquoDie ganzheitliche Betrachtung in der Medizinrdquo In T Brugsch (Ed) Einheitsbestrebungen in der Medizin Dresden Steinkopff 1933 144-158 237 Supra n 1 p 369

334

eu fiquei impressionado mas natildeo atraiacutedo particularmente por causa da

aplicaccedilatildeo exclusiva do meacutetodo das ciecircncias naturais na tentativa de

compreender o comportamento e a interpretaccedilatildeo mecanicista resultante

dele Eu reconheci a similaridade entre os mecanismos psicanaliacuteticos e os

meus mecanismos bioloacutegicos mas apoacutes uma avaliaccedilatildeo cuidadosa eu percebi

a diferenccedila entre eles no que diz respeito a seu significado para o

comportamento normal e patoloacutegico Eu gostaria de salientar que eu fui

incentivado em minha interpretaccedilatildeo dos ldquosintomasrdquo pela suposiccedilatildeo de

Freud de que natildeo devem ser considerados fatos simples mas eles se tornam

compreensiacuteveis somente com relaccedilatildeo ao seu significado para o indiviacuteduo238

Eu fui mais influenciado no que diz respeito ao meu interesse em muitos

problemas que Freud tinha colocado em primeiro plano Eu sempre admirei

o gecircnio de Freud e tentei lhe fazer justiccedila mas nunca escondi a minha

oposiccedilatildeo fundamentada em uma anaacutelise cuidadosa de sua proacutepria descriccedilatildeo

dos fenocircmenos

Em minha atitude geral mais otimista eu me senti mais perto

de Adler Eu encontrei uma seacuterie de semelhanccedilas entre meus conceitos e os

seus os quais eu infelizmente conheci somente mais tarde Mas eu vejo o

problema das relaccedilotildees interpessoais de um modo um pouco diferente da

maneira como ele faz Eu percebo algumas semelhanccedilas igualmente com as

ideias de Fromm de Karen Horney e de Sullivan

Eu devo dizer que a principal diferenccedila entre estes escritores e

eu mesmo eacute que por mais que tenham posto a personalidade no primeiro

plano eles natildeo deram suficiente importacircncia ao fenocircmeno da existecircncia

Uma explicaccedilatildeo para isto deve ser que minha abordagem se originou na

anatomia na fisiologia e na observaccedilatildeo cliacutenica natildeo soacute dos neuroacuteticos e dos

psicoacuteticos mas particularmente de pacientes orgacircnicos Em tais pacientes

muitos fenocircmenos que satildeo essenciais para a terapia podem ser vistos mais

claramente do que naqueles com doenccedilas nervosas funcionais

238 K Goldstein ldquoDie Beziehungen der Psychoanalyse zur Biologierdquo In Sitzungshet II allg Aumlrzl Konge Psychother Leipig Hierzel 1927 15-52

335

Por uacuteltimo eu gostaria de mencionar a influecircncia das ideias

filosoacuteficas especialmente aquelas de Kant Ernst Cassirer e Edmund

Husserl Minha introduccedilatildeo do conceito de ldquoexistecircnciardquo na interpretaccedilatildeo do

comportamento humano ndash tal como ela se desenvolveu a partir das

observaccedilotildees ndash em uacuteltima anaacutelise remonta agrave teoria transcendental do

conhecimento de Kant

Como meu conceito parece ter semelhanccedila com aquele com base

na ldquopsiquiatria existencialrdquo eu gostaria de sublinhar que natildeo se desenvolveu

com relaccedilatildeo a este uacuteltimo e que haacute diferenccedilas essenciais entre os dois Eu

concordo com o conceito existencialista na medida em que tambeacutem eu nego

que os fenocircmenos bioloacutegicos particularmente a existecircncia humana possam

ser compreendidos pela aplicaccedilatildeo do meacutetodo das ciecircncias naturais Mas eu

difiro no significado do termo existecircncia Significa para mim um conceito

epistemoloacutegico baseado em observaccedilotildees fenomenoloacutegicas que nos permitem

descrever o comportamento normal e patoloacutegico e dar uma orientaccedilatildeo clara

para a terapia Eacute uma espeacutecie de antropologia filosoacutefica A anaacutelise existencial

e a psiquiatria por sua vez pretendem principalmente uma interpretaccedilatildeo

ontoloacutegica do ldquohomem como um serrdquo em situaccedilotildees normais e patoloacutegicas

Desta diferenccedila resulta uma atitude diferente para com a

psicanaacutelise Tomando a inaplicabilidade do meacutetodo das ciecircncias naturais

com seriedade eu natildeo vejo nenhuma possibilidade de chegar a um acordo

com a psicanaacutelise que eacute baseada neste meacutetodo Sem negar que alguns

resultados da psicanaacutelise possam vir a ser uacuteteis para o novo conceito ndash eacute

claro apenas se lhes for dada uma nova interpretaccedilatildeo do ponto de vista239

existencial ndash eu natildeo posso aceitar a opiniatildeo de que ambas as disciplinas

possam ser coordenadas e harmonizadas Eu penso que tal tentativa natildeo faz

senatildeo complicar as questotildees e tornaacute-las confusas

239 Supra No 42

336

Textos de candidatura ao Collegravege de France240

Maurice Merleau-Ponty Traduccedilatildeo de Rodrigo V Marques

Tiacutetulos e trabalhos ndash Projeto de Ensino241

Curriculum vitaelig - Nascido em 14 de marccedilo de 1908 em Rochefort-sur-mer (Charente maritime) - Aluno da Eacutecole Normale Supeacuterieure (1926-30) - Agreacutegeacute242 de filosofia (1930) - Serviccedilo militar legal (1930-31) - Professor no liceu de Beauvais (1931-33) - Bolsista do Centro Nacional da Pesquisa Cientiacutefica (1933-34) - Professor no liceu de Chartres (1934-35) - Agreacutegeacute reacutepeacutetiteur243 de filosofia na Eacutecole Normale Supeacuterieure (1935-39) - Mobilizado para o 5ordm Regimento de Infantaria depois no Eacutetat-Major da 59a Division

leacutegegravere de infantaria (outubro de 1939 ndash setembro de 1940) - Professor no liceu Carnot (1940-44) - Professor do Primeiro Superior no liceu Condorcet (1944-45) - Docteur egraves lettres244 (julho de 1945) - Mestre de Conferecircncias depois professor na Faculdade de Letras de Lyon (1945-48) - Licenccedila (Congeacute drsquoinactiviteacute) (missatildeo na Universidade do Meacutexico) (1948-1949) - Mestre de Conferecircncias depois professor sem cadeira na Faculdade de Letras de

Paris (1949-51) - Encarregado de conferecircncias na Eacutecole Normale Supeacuterieure (1946-49) - Membro do juacuteri do concurso de entrada na Eacutecole Normale Supeacuterieure (1947-50)

Publicaccedilotildees

- A Estrutura do Comportamento (1941) - Fenomenologia da Percepccedilatildeo (1945) - Humanismo e Terror (1947) - Sentido e natildeo-sentido (coletacircnea de estudos e ensaios 1948)245

240 Os dois textos de Merleau-Ponty cujas traduccedilotildees apresentamos aqui sob o tiacutetulo de ldquoTextos de canditatura ao Colleacutege de Francerdquo encontram-se tambeacutem em Merleau-Ponty Parcours deux Paris Verdier 1951 poreacutem editados separadamente (Nota do Tradutor doravante NT) 241 Tiacutetulos e trabalhos Projeto de Ensino Centro de Documentaccedilatildeo Universitaacuteria1951 18 paacuteginas datilografadas1951 XX Texto de 1951 Titres et Travaux Projet drsquoenseignement In Parcours Deux 1951-1961 Paris Verdier 2000 Conforme nota do editor francecircs [Noacutes publicamos o conjunto do dossiecirc concernente agrave candidatura de Maurice Merleau-Ponty ao Collegravege de France (a eleiccedilatildeo ocorreu em fevereiro de 1952) ldquoTiacutetulos e trabalhos ndash Projeto de ensinordquo texto impresso pelo Centro de documentaccedilatildeo universitaacuteria em 1951 (ensino torna-se ensino no tiacutetulo)] (Nota do Editor francecircs doravante N E) 242 Agreacutegeacute Professor auxiliar (N T) 243 Agreacutegeacute reacutepeacutetiteur Professor auxiliar concursado (N T) 244 Doutor em Letras (N T) 245 [La Structure du Comportement PUF novembro de 1942 2ordfed 1949 e seguintes precedido de ldquoUne philosophie de lrsquoambiguumliteacuterdquo por Alphonse de Waelhens col ldquo Quadrigerdquo 123 1990 Pheacutenomeacutenologie de la perception Gallimard 1945 col ldquoTelrdquo 4 1976

337

- Artigos natildeo reunidos em volume

- ldquoO primado da percepccedilatildeo e suas consequumlecircncias filosoacuteficasrdquo (comunicaccedilatildeo agrave Sociedade Francesa de Filosofia em marccedilo de 1947)

- ldquoLeitura de Montaignerdquo (1947) - ldquoNota sobre Maquiavelrdquo (1949) - ldquoSobre a fenomenologia da linguagemrdquo (comunicaccedilatildeo no Primeiro Coloacutequio

internacional de fenomenologia Bruxelas 1951) - ldquoO filoacutesofo e a sociologiardquo (1951) - ldquoO homem e a adversidaderdquo (conferecircncia nos Encontros Internacionais de

Genegraveve 1951)246

Trabalhos e projeto de ensino

I Primeiros trabalhos

Nossos primeiros trabalhos publicados se dedicam a um

problema que eacute constante na tradiccedilatildeo filosoacutefica mas que eacute posto de uma

maneira mais aguda desde o desenvolvimento das ciecircncias do homem a

ponto de conduzir a uma crise de nosso saber simultacircnea agrave de nossa

filosofia Trata-se da discordacircncia entre a visatildeo que o homem pode ter de si

mesmo pela reflexatildeo ou pela consciecircncia e a que obteacutem religando suas

condutas a condiccedilotildees exteriores das quais dependem manifestamente

O homem se apresenta sob o primeiro aspecto como

absolutamente livre Ele natildeo pode reconhecer por verdade senatildeo aquilo de

que tenha consciecircncia Eacute ele quem daacute por conseguinte um sentido a todos

os fatos que se lhe apresentam Ele constitui em uma autonomia absoluta

todo ser e todo valor e nada pode vir de fora no sujeito pensante Esta

perspectiva do homem sobre si mesmo ou este contato consigo aparece em

grande parte dos filoacutesofos como absolutamente irrecusaacuteveis e vaacutelidas contra

Humanisme et Terreur Gallimard 1947 col ldquoIdeacuteesrdquo 432 1980 Sens et Non-sens Nagel 1948 nova ediccedilatildeo Gallimard 1995 col ldquoBibliothegraveque de Philosophierdquo] (N E) 246 [Todos os artigos foram publicados desde entatildeo em volume Le Primat de la perception et ses consequences philosophiques (comunicaccedilatildeo agrave Sociedade Francesa de Filosofia sessatildeo de 23 de novembro de 1946 publicado no Boletim da Sociedade Francesa de Filosofia tomo XLI 4 outubro-dezembro de 1947 p 119-135 e 135-153) precedido de ldquoProjeto de trabalho sobre a natureza da Percepccedilatildeordquo 1933 e de ldquoA Natureza da Percepccedilatildeordquo 1934 ediccedilotildees Cynara-Verdier 1989 2ordf ed 1996 Os outros em Signes Gallimard 1960 retomado no Eacuteloge de la philosophie et autres essais col ldquoFolio essaisrdquo 118 1994 com exceccedilatildeo de ldquoO homem e a adversidaderdquo] (N E)

338

todo argumento que se possa lhe opor Sunt quaeligdam quaelig quilibet debeat

potius quam rationibus persuaderi (Descartes)247

E todavia desenvolveu-se todo um saber histoacuterico e psicoloacutegico

do homem que o considera do ponto de vista do espectador estrangeiro e

esclarece sua dependecircncia em relaccedilatildeo ao meio fiacutesico orgacircnico social e

histoacuterico a ponto de fazecirc-lo aparecer como um objeto condicionado

Parece impossiacutevel renunciar a alguma das duas perspectivas Se

recusaacutessemos o testemunho da consciecircncia arrancariacuteamos o sujeito de toda

certeza ateacute mesmo daquelas que se poderia buscar no conhecimento

exterior do homem Mesmo para construir um saber positivo eacute preciso que

eu me assegure de ter acesso aos meus proacuteprios pensamentos e de poder

apreciar a validade intriacutenseca deles Se eu sou apenas um produto do meio e

da histoacuteria eu assisto ao desenrolar de meus acontecimentos sem ser capaz

de discernir o seu sentido nem de distinguir em mim o verdadeiro do falso

Todo saber supotildee a primeira verdade do cogito E todavia eacute manifesto que

pelas vias curtas da reflexatildeo obtemos de noacutes mesmos na maioria das vezes

soacute um conhecimento truncado Nosso conhecimento de noacutes mesmos deve

muito mais ao conhecimento exterior do passado histoacuterico agrave etnografia agrave

patologia mental por exemplo do que agrave elucidaccedilatildeo direta de nossa proacutepria

vida

Eacute preciso portanto compreender como o homem eacute

simultaneamente sujeito e objeto primeira pessoa e terceira pessoa

absoluto de iniciativa e dependente ou antes eacute preciso revisar categorias

que se as mantiveacutessemos fariacuteamos renascer o conflito perpeacutetuo do saber

positivo e da filosofia e deixariacuteamos face a face um saber empiacuterico rico mas

cego e uma consciecircncia filosoacutefica que vecirc bem o proacuteprio do homem mas que

natildeo sabe que eacute nascida e diante da qual os acontecimentos exteriores que a

concernem mais diretamente permanecem desprovidos de sentido

Esta revisatildeo supotildee uma dupla abordagem de nossa condiccedilatildeo Eacute

preciso por um lado seguir o desenvolvimento espontacircneo do saber

247 ldquoExistem certas coisas das quais cada um deveria experimentar por si mesmo mais do que ser persuadido por razotildeesrdquo (N T)

339

positivo perguntando-nos se ele reduz verdadeiramente o homem agrave condiccedilatildeo

de objeto e por outro lado reexaminar a atitude reflexiva e filosoacutefica

procurando se ela nos autoriza verdadeiramente a nos definir como sujeito

incondicionado e intemporal Talvez estas pesquisas convergentes acabem

por colocar em evidecircncia um meio comum da filosofia e do saber positivo e

por nos revelar aqueacutem do sujeito e do objeto puro como que uma terceira

dimensatildeo onde nossa atividade e nossa passividade nossa autonomia e

nossa dependecircncia deixariam de ser contraditoacuterias

Noacutes tentamos a princiacutepio um esforccedilo deste gecircnero no que

concerne agraves relaccedilotildees entre o sujeito e as condiccedilotildees orgacircnicas de sua vida

tocando em outros termos o problema tradicional das relaccedilotildees entre alma e

corpo A percepccedilatildeo uma vez que estaacute na junccedilatildeo das duas ordens devia

tornar-se nosso tema e eacute sobre ela que versam nossos dois primeiros

trabalhos publicados um A Estrutura do Comportamento considerando do

exterior o homem que percebe e buscando liberar o sentido vaacutelido das

pesquisas experimentais que o abordam do ponto de vista do espectador

estrangeiro outro Fenomenologia da Percepccedilatildeo situando-se no interior do

sujeito para mostrar primeiramente como o saber adquirido nos convida a

conceber suas relaccedilotildees com seu corpo e seu mundo e enfim por esboccedilar

uma teoria da consciecircncia e da reflexatildeo que torne possiacuteveis estas relaccedilotildees

1 A Estrutura do Comportamento

A insuficiecircncia das alternativas claacutessicas do objeto e do sujeito

do mecanicismo e do vitalismo pareceu-nos evidente ao considerar a

histoacuteria das noccedilotildees de reflexo e de comportamento

Concordou-se durante muito tempo em reconhecer no homem

um primeiro niacutevel de atividade maquinal automaacutetica ou reflexa definida

pela correspondecircncia de um estiacutemulo de um trajeto nervoso preestabelecido

e de uma resposta constante caracteriacutestica deste estiacutemulo e deste arco

reflexo Esta concepccedilatildeo mecanicista da atividade nervosa elementar era

algumas vezes estendida aos comportamentos superiores tratados entatildeo

como simples complicaccedilotildees da conduta reflexa por exemplo no

340

behaviorismo americano Em outros autores agraves condutas elementares eram

sobrepostas instacircncias superiores e muitos psicoacutelogos admitiam que na

percepccedilatildeo por exemplo a atividade do juiacutezo vinha cobrir os dados sensiacuteveis

que dependem da organizaccedilatildeo nervosa Mas se foi ou natildeo colocado acima de

uma outra instacircncia o mecanicismo era admitido sem dificuldade em sua

base

Ora o desenvolvimento das pesquisas mostra que esta convicccedilatildeo

eacute fundada muito mais sobre prejulgamentos filosoacuteficos do que sobre as

indicaccedilotildees dos fatos A resposta reflexa definida como o fizemos mais acima

aparece como um fato excepcional Ela corresponde antes a dissociaccedilotildees

patoloacutegicas ou outras vezes a condutas altamente diferenciadas do que agrave

lei do funcionamento nervoso elementar O que eacute primordial no organismo

satildeo respostas que se dirigem a uma situaccedilatildeo ao menos rudimentar a uma

constelaccedilatildeo de estiacutemulos e que variam com as formas desta constelaccedilatildeo

tanto quanto a sua natureza ou ao seu sentido quanto aos instrumentos

anatocircmicos que utilizam Tudo se passa como se entre os estiacutemulos e as

reaccedilotildees se interpusesse um fenocircmeno transversal de estruturaccedilatildeo que pode

ser mais ou menos rico e confere agraves respostas um sentido mais ou menos

complexo mas que natildeo estaacute jamais inteiramente ausente e que atesta que

mesmo neste niacutevel o organismo natildeo funciona como uma maacutequina

Quanto ao comportamento aprendido ele natildeo se explica de uma

maneira suficiente pela simples associaccedilatildeo ao reflexo propriamente dito de

estiacutemulos novos e cada vez menos naturais como queria a ceacutelebre concepccedilatildeo

de Pavlov Para que uma conduta se instale no organismo eacute preciso

primeiramente que seja ou torne-se sensiacutevel a uma certa configuraccedilatildeo do

objeto visado que guie a resposta motriz e em regra o desenvolvimento

meloacutedico Os autores mesmos que se obrigam a mais estrita objetividade satildeo

levados para darem conta da aquisiccedilatildeo dos haacutebitos a introduzir

consideraccedilotildees de niacutevel de estruturaccedilatildeo de insight que fazem a diferenccedila

entre um espasmo e uma accedilatildeo adaptada um sucesso fortuito e uma boa

soluccedilatildeo e que anunciam uma relaccedilatildeo interna entre o sentido da situaccedilatildeo e o

da resposta

341

A evoluccedilatildeo da fisiologia do sistema nervoso central a da teoria

das localizaccedilotildees cerebrais em particular oferece indicaccedilotildees convergentes As

localizaccedilotildees hoje reconhecidas natildeo significam mais que em uma parte do

ceacuterebro localizam-se as funccedilotildees consideradas Admite-se de um modo

geral que o menor fenocircmeno visual supotildee processos nervosos em todo o

coacutertex Elas significam apenas que a funccedilatildeo encontra no territoacuterio

considerado um instrumento ou como que um ponto de apoio

indispensaacutevel O centro natildeo eacute mais um depoacutesito onde se encontrariam

conservados os aparelhos preestabelecidos de tal percepccedilatildeo cromaacutetica ou de

tal movimento de articulaccedilatildeo Eacute uma regiatildeo especializada na preparaccedilatildeo

destas respostas mas que natildeo as provoca senatildeo com a ajuda da atividade

total do sistema nervoso e improvisando-as ativamente nos modos de

funcionamento que de um caso a outro satildeo qualitativamente diferentes

Resulta disto que o espaccedilo nervoso natildeo eacute feito de partes exteriores nem

definiacutevel por determinaccedilotildees simplesmente numeacutericas que o ceacuterebro

funcional natildeo eacute uma massa de mateacuteria que existe em si ao modo das coisas

e que natildeo se deixa descrever sem se servir do universo da qualidade do

valor e da significaccedilatildeo

Mas se nos limitarmos a esta conclusatildeo arriscariacuteamos nos

enganar sobre o sentido das pesquisas contemporacircneas Poder-se-ia

acreditar que descobrindo no coraccedilatildeo do reflexo como que uma visatildeo da

situaccedilatildeo agrave qual responde no coraccedilatildeo do sistema nervoso central uma

regulaccedilatildeo das partes pelo todo e um processo de distribuiccedilatildeo ordenada a

fisiologia moderna restaura as concepccedilotildees vitalistas ou idealistas que satildeo a

antiacutetese tradicional do mecanicismo e faz-nos voltar da mateacuteria agrave vida ou ao

espiacuterito Ora ao contraacuterio o que parece notaacutevel nas pesquisas destes

cinquenta uacuteltimos anos eacute que natildeo se opotildeem menos agrave antiacutetese vitalista ou

idealista do que agrave tese mecanicista que nos conduz precisamente a

reexaminar a antinomia que fazem de si mesmas um apelo agrave iniciativa

filosoacutefica para fazer pensaacutevel um fenocircmeno que natildeo eacute mais mateacuteria mas que

natildeo eacute consciecircncia ou espiacuterito O corpo funcional tem uma significaccedilatildeo

ambiacutegua ele natildeo eacute partes extra partes temos visto mas natildeo eacute mais ideia Se

o sentido das localizaccedilotildees cerebrais mudou a sua existecircncia natildeo eacute posta em

342

duacutevida por nenhum autor seacuterio Isto significa que se o funcionamento do

organismo natildeo eacute compreensiacutevel senatildeo por consideraccedilotildees de qualidade ou de

valor ele se estende entretanto no espaccedilo sujeita-se a condiccedilotildees locais

instala-se no corpo e permanece sensiacutevel a toda perturbaccedilatildeo somaacutetica Caso

se possa dizer que nossa atividade reflexa instintiva ou habitual tem um

interior visto que leva em conta a relaccedilatildeo entre os estiacutemulos e a significaccedilatildeo

deles em uma situaccedilatildeo de conjunto ainda eacute porque se adapta apenas a

fracas variaccedilotildees desta situaccedilatildeo porque natildeo possui entatildeo o seu sentido

como a inteligecircncia pode fazecirc-lo e porque enfim o sujeito do reflexo do

instinto ou do haacutebito natildeo eacute um espiacuterito Ele oferece o paradoxo de uma

apreensatildeo que permanece simples afinidade e natildeo vai ateacute o conhecimento O

organismo natildeo eacute cego mas a atividade prospectiva pela qual eacute atravessado

se apoacuteia sobre todo o edifiacutecio das organizaccedilotildees locais e parciais Ela as

transfigura mas precisa delas A intencionalidade que se encontra no

organismo natildeo eacute a agilidade pura do espiacuterito Trata-se menos de uma

atividade de significaccedilatildeo ideal que destes fenocircmenos de estrutura

configuraccedilatildeo ou forma (Gestalt) dos quais os psicoacutelogos falaram e nos quais

a referecircncia das partes ao todo permanece impliacutecita e vivida mais do que

pensada

Eacute sabido por conseguinte que a anaacutelise do corpo humano natildeo

pode se fechar sobre si mesma como se o corpo fosse uma coisa Ela nos

potildee em presenccedila de uma relaccedilatildeo com o meio cujo quadro geral eacute como um a

priori do organismo considerado mas esta relaccedilatildeo com o meio natildeo eacute

imputaacutevel a um espiacuterito evoca antes uma consciecircncia do tipo perceptivo

que tem sua loacutegica mas ainda engajada nas configuraccedilotildees concretas das

quais o sujeito natildeo conquistou a significaccedilatildeo ideal O comportamento revela

bem uma diversidade de estruturas qualitativamente distintas onde se

pronuncia sempre mais agrave medida que se eleva nas seacuteries animais a

preponderacircncia das condiccedilotildees endoacutegenas e por assim dizer a iniciativa do

organismo poreacutem para nos limitarmos ao ponto de vista do espectador

estrangeiro ainda natildeo vimos algueacutem aparecer Isto soacute seraacute possiacutevel no

momento em que a conduta da linguagem obrigar o espectador estrangeiro a

estabelecer com o espetaacuteculo (o ouvinte com o que fala) relaccedilotildees de

343

verdadeira reciprocidade e a se identificar verdadeiramente com o que

percebe

Se natildeo pode fazer mais esta primeira anaacutelise nos reconduz ao

menos de uma concepccedilatildeo objetivista do corpo a uma estrutura do

comportamento que o destaca jaacute da ordem das coisas o reintegra como

totalidade a compreender-se na percepccedilatildeo do espectador Ela nos autorizava

destarte a empreender uma anaacutelise da percepccedilatildeo em noacutes uacutenica capaz de

esclarecer inteiramente a natureza do sujeito que percebe e de operar a

junccedilatildeo procurada entre o ponto de vista objetivo e o ponto de vista reflexivo

Eacute o que tentamos fazer em nossa obra principal

2 Fenomenologia da percepccedilatildeo

No comeccedilo o filoacutesofo que reflete sobre a percepccedilatildeo se retira do

corpo que habita e ateacute mesmo das coisas agraves quais o corpo se direciona no

exerciacutecio da vida ele se faz sujeito contemplativo Correlativamente as

coisas percebidas se afastam de noacutes tornam-se indiferentes para noacutes e

doravante satildeo apenas definiacuteveis por um certo nuacutemero de caracteriacutesticas e

pelas leis da sucessatildeo e da coexistecircncia que podemos descobrir entre elas O

corpo proacuteprio por sua vez natildeo eacute mais que um destes objetos elevado mais

tardiamente agrave dignidade do saber cientiacutefico mas como eles destinado a

uma explicaccedilatildeo por relaccedilotildees de funccedilatildeo agrave variaacutevel Em face de uma

consciecircncia filosoacutefica em primeira pessoa do sujeito cognoscente ou

transcendental que eacute apenas sujeito desdobra-se um universo de objetos

em terceira pessoa que satildeo apenas objetos

Esta atitude e esta filosofia necessaacuterias primeiramente para dar

ao conhecimento do mundo e agrave reflexatildeo do espiacuterito a postura e a audaacutecia

deles natildeo satildeo finalmente compatiacuteveis com um conhecimento mais maduro e

uma reflexatildeo mais radical Agrave medida que nosso conhecimento do homem se

desenvolve parece-nos entrever uma relaccedilatildeo completamente diferente entre

o homem que percebe e seu corpo e assistir a uma redescoberta do mundo

percebido que finalmente exigiria um novo exame da nossa noccedilatildeo de sujeito

e de espiacuterito

344

Torna-se por exemplo muito mais difiacutecil nas pesquisas

psiquiaacutetricas delimitar uma contribuiccedilatildeo psiacutequica e uma contribuiccedilatildeo

somaacutetica na doenccedila A alucinaccedilatildeo e em particular a famosa ilusatildeo dos

amputados que uma fisiologia cartesiana relacionaria a qualquer excitaccedilatildeo

das regiotildees nervosas de onde depende nossa percepccedilatildeo eacute hoje ligada a uma

imagem total ou a um esquema global do corpo no seu ambiente que teria

por funccedilatildeo ajustar o corpo aos objetos aqueacutem de toda percepccedilatildeo expressa

do corpo ou dos objetos Eacute somente por intermeacutedio desta funccedilatildeo precognitiva

que as lesotildees do corpo repercutem na consciecircncia que temos dele ou em

nossa percepccedilatildeo das coisas exteriores

De um modo geral meu corpo como esquema corporal torna-se

meu ponto de vista sobre o mundo Este natildeo eacute mais um mecanismo nem

muito menos um grupo de ldquosensaccedilotildees cinesteacutesicasrdquo eacute um centro de

perspectiva Mais eacute como minha tomada sobre o mundo sustenta a este

tiacutetulo toda minha vida pessoal como inversamente eacute sensiacutevel agraves suas

variaccedilotildees ele pode portanto apresentar sintomas cujas motivaccedilotildees satildeo

psicoloacutegicas como reciprocamente seus insucessos repercutem em todo o

equiliacutebrio pessoal

Uma funccedilatildeo como a motricidade durante muito tempo

decomposta em ldquorepresentaccedilotildees de movimentosrdquo por um lado e por outro

lado em fenocircmenos nervosos aparece hoje como indissoluvelmente

perceptiva e nervosa Todo movimento do corpo proacuteprio situa-se no fundo de

um certo ldquoprojeto motorrdquo e quando este projeto varia quando por exemplo

passamos do movimento de tomada (Greifen) ao movimento de designaccedilatildeo

(Zeigen) as leis do desenvolvimento motor satildeo diferentes mesmo se os

muacutesculos interessados satildeo os mesmos Projeto motor e movimento natildeo satildeo

dois fenocircmenos ligados mas como um uacutenico fenocircmeno com duas faces e

meus movimentos satildeo para mim bem menos deslocamentos objetivos aos

quais assistiria do que modalidades diversas de relaccedilatildeo global com o mundo

do qual meu corpo eacute o veiacuteculo

Uma funccedilatildeo como a sexualidade que parece estar e estaacute

estreitamente ligada a um certo aparelho orgacircnico desprende-se todavia

pouco a pouco na crianccedila de uma relaccedilatildeo mais vaga com o outro e com o

345

mundo que todas as circunstacircncias psicoloacutegicas da infacircncia contribuem

para definir e inversamente daacute agrave nossa histoacuteria pessoal como um tema que

deveraacute decifrar um certo modo de relaccedilatildeo carnal com as coisas e com os

outros Como por uma espeacutecie de osmose o corpo e o sujeito se difundem

um no outro Meu corpo torna-se meu na medida em que eu me encarne

nele

Ora esta redescoberta do corpo implica uma redescoberta do

mundo percebido O mundo ao qual estou ligado por relaccedilotildees preacute-loacutegicas do

esquema postural da motricidade e mesmo da sexualidade natildeo pode ser uma

soma de objetos dispostos diante de um sujeito contemplativo Uma teoria

cartesiana da percepccedilatildeo que faz dela uma ldquoinspeccedilatildeo do espiacuteritordquo para a

qual dados sensiacuteveis esparsos satildeo constituiacutedos em objetos representa-nos

antes certas deacutemarches cientiacuteficas ulteriores reunindo os elementos de um

mundo dissociado pela anaacutelise do que o ato originaacuterio que primeiramente

nos potildee em presenccedila de um mundo Na realidade a unidade dos diferentes

domiacutenios sensoriais a unidade das diversas propriedades de uma mesma

coisa natildeo satildeo o resultado de uma siacutentese preacutevia Ela eacute de direito Nossos

sentidos que funcionam no contexto de uma atividade uacutenica a do corpo

explorador retiram do exterior qualidades das quais sabemos de imediato

que satildeo tantas perspectivas sobre uma coisa uacutenica Mesmo se nosso

conhecimento da coisa permanece no comeccedilo global e confuso cada

sensaccedilatildeo aparece a si mesma como manifestaccedilatildeo de uma maneira de ser

uacutenica que define a coisa Noacutes lemos a substacircncia do vidro em sua

transparecircncia em sua rigidez no som que produz A unidade da coisa a do

mundo eacute portanto menos uma unidade de ordem loacutegica do que uma

unidade de ordem fisionocircmica fundada sobre nossa familiaridade com os

horizontes de um mundo que natildeo tivemos de construir peccedila por peccedila A

percepccedilatildeo mesma do espaccedilo terreno privilegiado das teorias claacutessicas da

percepccedilatildeo porque parece implicar bem como dizia Malebranche um juiacutezo

natural e como que uma geometria espontacircnea natildeo poderia estabelecer

entre as partes do percebido uma rede de relaccedilotildees que nos fazem ver este

objeto proacuteximo e pequeno aquele outro grande e afastado se primeiramente

natildeo tivesse realizado o que Wertheimer chama nossa ldquoancoragemrdquo em um

346

mundo visiacutevel se natildeo tivesse estabelecido ldquoniacuteveisrdquo em relaccedilatildeo aos quais em

seguida o proacuteximo e o longiacutenquo o grande e o pequeno o vertical e o

obliacutequo possam ter um sentido A concepccedilatildeo claacutessica da percepccedilatildeo como a

de uma operaccedilatildeo de juiacutezo nos aparece natildeo exatamente como falsa mas

antes como uma descriccedilatildeo sobre a superfiacutecie do mundo percebido sobre a

qual eacute preciso reencontrar funccedilotildees precognitivas de organizaccedilatildeo e de

estruturaccedilatildeo A distinccedilatildeo famosa da forma e da mateacuteria no mundo percebido

parece segunda e ulterior No percebido a mateacuteria jaacute eacute pregnante de uma

forma A forma natildeo eacute senatildeo a maneira pela qual o sensiacutevel se dispotildee sob

nossos olhos e se oferece agraves nossas visadas

Caso se admita esta dupla anaacutelise do corpo que percebe e do

mundo percebido ela natildeo poderia deixar intacta nossa concepccedilatildeo do sujeito

ou do espiacuterito Precisamos nos perguntar qual deve ser a natureza do sujeito

para que os fenocircmenos assim descritos sejam possiacuteveis Uma vez que cada

percepccedilatildeo parcial se daacute como retirada da unidade primordial da coisa e do

mundo eacute preciso que o sujeito esteja presente agrave totalidade do mundo mas

apreendida de um certo ponto de vista atraveacutes de uma certa perspectiva e

sobre um de seus ldquoperfisrdquo Eacute preciso em outros termos que nossa situaccedilatildeo

corporal seja ao mesmo tempo o que daacute agrave nossa visatildeo sua finitude e o que

nos inicia agrave verdade e ao mundo Descartes dizia que quando eu sinto o

vermelho estou bem seguro de senti-lo mas que eu posso anular mediante

a duacutevida a existecircncia do proacuteprio vermelho Todavia esta dissociaccedilatildeo natildeo eacute

possiacutevel Se eu entendo por vermelho aquilo mesmo que se oferece agrave minha

percepccedilatildeo a evidecircncia do sentir eacute tambeacutem a evidecircncia do que eacute sentido Eu

natildeo posso sentir o vermelho sem sentir que ele estaacute ali O proacuteprio do sujeito

(e o que o enraiacuteza na certeza e na verdade) eacute justamente de natildeo se assegurar

jamais de sua existecircncia proacutepria sem nela implicar a de seu objeto

intencional exatamente tal como lhe aparece neste instante O proacuteprio do

sujeito natildeo eacute a princiacutepio de ser uma ldquocoisa que pensardquo simplesmente mas

de se descobrir jaacute pensando alguma coisa engajado por seu corpo no mundo

com o qual estaacute em simpatia em razatildeo de um viacutenculo mais velho que sua

histoacuteria pessoal enfim de estar no mundo como por sua tarefa e por sua

vocaccedilatildeo A reflexatildeo filosoacutefica que potildee em suspenso nossas certezas

347

espontacircneas justamente se quer ser radical natildeo poderia ela mesma tomar-

se nem esquecer-se desta primeira iniciaccedilatildeo ao ser que a precede e que ela

tem de explicitar Ela consiste em desnudar em constatar como fato

primordial o que Husserl chamava Urdoxa para a qual antes de toda

reflexatildeo haacute para noacutes um mundo do ser e uma verdade O sujeito natildeo eacute

deste modo uma cera na qual as coisas viriam imprimir a marca delas mas

tampouco eacute uma consciecircncia fechada sobre seus proacuteprios acontecimentos

nem um pensamento fechado sobre suas proacuteprias ideias Eacute o que atraveacutes de

uma certa perspectiva sobre o mundo apercebe os caminhos que conduzem

a outras perspectivas mas ocupa sempre e unicamente uma

II Trabalhos em curso

Este retorno ao mundo percebido como ao nosso primeiro

contato com o ser por mais indispensaacutevel que seja ndash caso natildeo se queira

perder de vista a percepccedilatildeo ao assimilaacute-la a modalidades de conhecimento

ulterior ndash coloca por sua vez problemas aos quais o nosso trabalho estaacute

todavia consagrado haacute seis anos

Se o que dizemos eacute verdade a luz natural natildeo eacute a presenccedila

absoluta a si mesmo de um espiacuterito que por definiccedilatildeo seria saber de si O

sujeito que percebe natildeo tem jamais a experiecircncia de suas proacuteprias

percepccedilotildees senatildeo manuseando seu corpo o qual natildeo eacute para ele

transparente e cuja operaccedilatildeo lhe deixa escapar em uma larga medida o

resultado uacutenico a coisa o mundo ao lhe aparecer em plena claridade O

cogito eacute pois ao mesmo tempo indubitaacutevel e opaco Eacute do mundo da coisa

que nos vem primeiramente a luz que reflete em nossa percepccedilatildeo do

mundo Eacute na experiecircncia que faccedilo de um corpo explorador consagrado agraves

coisas e ao mundo de um sensiacutevel que me investe ateacute no mais individual de

mim mesmo e me atrai imediatamente da qualidade ao espaccedilo do espaccedilo agrave

coisa e da coisa ao horizonte das coisas quer dizer a um mundo jaacute aiacute que

estabelece minha relaccedilatildeo com o ser Eu estou antes situado nele do que

detenho o seu princiacutepio gerador ou a sua lei de desenvolvimento Deste ser

que transpareceria atraveacutes de uma percepccedilatildeo sempre parcial eacute preciso que

348

eu compreenda melhor como me eacute indicado e porque eu natildeo me contento

como os animais a julgar pelo seu comportamento com a frequentaccedilatildeo de

um meio porque tenho a ideia do mundo ou do ser precisamos ter exatidatildeo

do que em noacutes realiza este movimento espontacircneo da consciecircncia O homem

que percebe natildeo se limita a exercer os modos naturais que seu corpo lhe daacute

para ter acesso agraves coisas ele eacute tambeacutem e toda a sua percepccedilatildeo eacute

modificada o que busca apropriar-se da natureza das coisas recuperar as

verdades que a percepccedilatildeo em virtude de sua ambiguidade caracteriacutestica

oculta-lhe enquanto as desvela para ele

Eacute por uma abstraccedilatildeo metoacutedica que fingimos ao comeccedilar

encontrarmo-nos em um mundo mudo da percepccedilatildeo De fato o sujeito que

percebe verdadeiramente natildeo se imobiliza no espetaacuteculo Ele retoma as

relaccedilotildees agraves quais a percepccedilatildeo o iniciou esforccedila-se em fixaacute-las em totalizaacute-

las em tornaacute-las para ele disponiacuteveis ele pensa fala acrescenta aos gestos

naturais por supor que algum deles seja verdadeiramente pura natureza

uma gesticulaccedilatildeo e instituiccedilotildees linguiacutesticas agrave natureza uma cultura Eacute

entatildeo que lhe parece de uma maneira mais decisiva que pelo funcionamento

do aparelho perceptivo sair de sua inerecircncia individual Quando pensa

claramente e distintamente ele acredita tocar significaccedilotildees que natildeo lhe

valem somente que se imporiam com a mesma evidecircncia natildeo somente a

todo ser feito como ele mas ainda a todo ser seja ele qual for Ele tem a

experiecircncia da verdade Como isto eacute possiacutevel Noacutes que como dizia

Montaigne escapamos de noacutes mesmos na experiecircncia do sentir como

podemos nos reconquistar nesta dispersatildeo De resto uma vez que seremos

retirados do percebido e teremos apreendido nossa singularidade como

poderemos descobrir outros pensamentos ordenados assim como o nosso

em uma uacutenica verdade Noacutes que estamos inseridos por nosso nascimento

em um fluxo de pensamento ao qual ningueacutem mais nunca teraacute o mesmo

acesso imediato como podemos todavia estabelecer com o outro relaccedilotildees

de reciprocidade que o supotildeem nosso igual Todas estas dificuldades satildeo de

fato sobrepostas visto que percebemos o outro mas que esta percepccedilatildeo

aqui natildeo eacute mais simplesmente natural e precisamos examinar as suas

349

infraestruturas desfazer e refazer o tecido de operaccedilotildees criadoras do qual

nossa percepccedilatildeo do outro eacute o resultado

Para dizer a verdade estas questotildees apareciam jaacute em nosso

trabalho de 1945248 e se pudeacutessemos falar dele apenas brevemente

deveriacuteamos indicar desde entatildeo como o estudo da percepccedilatildeo natural nos

colocava em posse de um meacutetodo aplicaacutevel a estes problemas pois ela nos

habituava a um procedimento de reflexatildeo que nos eacute recomendado pela

situaccedilatildeo mesma daquele que reflete Toda reflexatildeo sendo um retorno sobre

os dados preacutevios tentativa de reconstituiccedilatildeo esforccedilo para retomar e

despertar o que jaacute estaacute instituiacutedo o mais alto ponto da reflexatildeo natildeo pode nos

dar a ilusatildeo de engendrar o que reencontramos ele consiste antes em

compreender em explicitar em retomar em seu sentido exato e originaacuterio

as teses da consciecircncia irrefletida do que em discuti-las em nome de outros

princiacutepios (Natildeo se vecirc onde poderiacuteamos buscaacute-las) Do mesmo modo que a

reflexatildeo sobre a experiecircncia perceptiva fez com que apercebecircssemos a tese

fundamental de nossa vida preacute-reflexiva que eacute a de que temos um mundo e

levados a descrever esta apariccedilatildeo do mundo sem nada lhe acrescentar

daquilo que pertence ao pensamento discursivo ou loacutegico sem nada

suprimir daquilo que nela anuncia jaacute um sujeito consagrado agrave verdade do

mesmo modo precisamos abordar em seguida o estudo do pensamento e

da cultura sem ceder agrave tentaccedilatildeo de alguma reduccedilatildeo sem buscar explicaacute-los

pela parte superior ou inferior

Eacute-nos proibido ndash ao estudar o pensamento a linguagem e a

comunicaccedilatildeo com o outro ndash sobrevoar os fatos que o saber positivo reuniu e

buscar neles apenas um ponto de apoio para passar a construccedilotildees

especulativas Natildeo se trata para noacutes de sobrepor ao fluxo da experiecircncia

perceptiva um Pensamento Universal suposto dado em cada um de noacutes

Isto seria nomear as dificuldades ao inveacutes de resolvecirc-las Precisamos

pesquisar como este fluxo se deposita no sujeito falante em direccedilatildeo a

significaccedilotildees interindividuais examinando os materiais concretos desta

248 Primeira parte cap 6 e Terceira parte cap 1 [Nota do autor]

350

operaccedilatildeo os instrumentos linguiacutesticos que ela se constroacutei Noacutes precisamos

ver como nossa encarnaccedilatildeo mesma pelo uso linguiacutestico que fazemos de nosso

corpo eacute o que nos permite de uma certa maneira natildeo permanecer confinados

nos limites de nosso ponto de vista assim como eacute definido pelo corpo ldquonaturalrdquo

Mas a nossa pesquisa ao mesmo tempo permanece filosoacutefica

Nosso tratamento dos fatos permanece distinto do tratamento indutivo e

cientiacutefico Natildeo se trata para noacutes de considerar a palavra ou o pensamento

como a simples soma de fatos da liacutengua ou de fatos do pensamento tais

como satildeo produzidos aqui ou ali nesta ou naquela data Em cada um deles

tentamos apreender o que retoma e sublima o precedente antecipa o

seguinte a emergecircncia de uma estrutura de um campo de experiecircncia que

fazem deles mais do que um acontecimento uma instituiccedilatildeo Aqui o fato ndash

tal estruturaccedilatildeo do tempo no verbo tal reorganizaccedilatildeo do sistema da

declinaccedilatildeo ndash natildeo eacute a expressatildeo de uma lei anterior a ele mesmo e para

conhececirc-lo em todo o seu sentido natildeo basta como queriam as concepccedilotildees

claacutessicas da induccedilatildeo buscar ali a encarnaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo invariaacutevel de

sucessatildeo ou de coexistecircncia Ele vira do avesso os dados mesmos do

problema linguiacutestico realiza um estado de equiliacutebrio do qual ele mesmo

colocou certas condiccedilotildees e eacute apenas por uma ilusatildeo retrospectiva que

poderiacuteamos encontraacute-lo jaacute preacute-formado no passado que o reinterpreta Satildeo

estes fatos que trazem uma nova estrutura que chamamos fenocircmenos A

partir deles natildeo se pode tratar de um simples inventaacuterio Eles apenas

aparecem a um pensamento que se arrisca a decifraacute-los a compreendecirc-los

e na sequecircncia elevaacute-los acima da condiccedilatildeo de acontecimentos efecircmeros ou

de acidentes Este deciframento das estruturas que permite unicamente

encontrar alguma racionalidade na histoacuteria de uma liacutengua e na histoacuteria em

geral sem fazer da histoacuteria um novo deus e reconhecer um interior nos

fatos humanos sem abandonaacute-los ao arbiacutetrio de construccedilotildees a priori eacute para

noacutes caracteriacutestica de uma filosofia concreta Acrescentemos que o seu uso

estaacute bem longe de estar reservado unicamente aos filoacutesofos sobretudo na

ciecircncia de hoje mais afastada do que nunca de se limitar agrave induccedilatildeo

empiacuterica mais inclinada do que nunca a fazer com que suas revisotildees versem

natildeo somente sobre alguns detalhes do saber mas ateacute mesmo sobre suas

351

categorias mais gerais Eacute frequentemente nos trabalhos dos cientistas que

encontramos mais filosofia latente do que gostariacuteamos de explicitar

Essa concepccedilatildeo do meacutetodo filosoacutefico natildeo estaacute sem analogia com

o que Bergson indicou algumas vezes quando por exemplo falou249 de uma

filosofia moldada sobre a figura mesma de nosso mundo e que deveria ser

outra em um mundo feito de outro modo ou quando pedia aos filoacutesofos

para seguir as ldquolinhas dos fatosrdquo e para buscar a intuiccedilatildeo no

entrecruzamento destas linhas ou enfim quando falava de uma filosofia

quase experimental a se realizar em colaboraccedilatildeo e natildeo pelo esforccedilo de uma

uacutenica pessoa Noacutes duvidamos somente que o proacuteprio Bergson tenha aplicado

sempre o meacutetodo que tinha definido e que por exemplo sua intuiccedilatildeo da

vida seja tatildeo precisa tatildeo articulada tatildeo diferenciada que seria necessaacuteria

para fazer justiccedila aos fenocircmenos muito diferentes a partir dos quais a

obteve A uacutenica intuiccedilatildeo de uma vida ora dilatada ora contraiacuteda apaga

talvez os cortes as transformaccedilotildees que o meacutetodo fizera para marcar iguala

talvez todas as diferenccedilas qualitativas na monotonia da mudanccedila pura Eacute

antes em Husserl que encontrariacuteamos verdadeiramente reconciliadas a

inspiraccedilatildeo concreta e a filosofia em sua noccedilatildeo de ldquofenocircmenordquo que

encontrariacuteamos a junccedilatildeo de um saber efetivo e da reflexatildeo em seu meacutetodo

de leitura das significaccedilotildees o de uma filosofia aberta que natildeo eacute a serva do

saber indutivo mas que natildeo se desinteressa dos fatos

III Projeto de ensino

Nos nossos trabalhos em preparaccedilatildeo e no ensino que dariacuteamos

consequentemente proporiacuteamo-nos a fazer com que aparecessem atraveacutes

dos fatos da cultura as transformaccedilotildees de estrutura as iniciativas de

princiacutepio que recobrem e que dependem do exame filosoacutefico e isto sem nos

dar de antematildeo uma racionalidade absoluta pois se noacutes o fizeacutessemos o

problema estaria resolvido antes de ser posto e a comunicaccedilatildeo seria muito

faacutecil sem isolar e justapor as consciecircncias em nome de qualquer definiccedilatildeo

249 La Penseacutee et le Mouvant [Nota do autor] [PUF 1938 Col ldquoQuadrigerdquo 78 1993]

352

do sujeito como contato cego consigo visto que a comunicaccedilatildeo sendo

ilusoacuteria o problema entatildeo ainda estaria ignorado Precisaria tomar o ponto

de partida em nossa situaccedilatildeo efetiva de homens que falam uns com os

outros aspiram a verdades e as vecircem transparecer e que todavia

elaboram-nas em contato do que haacute de mais individual neles e natildeo as

encontrando jamais em uma evidecircncia absoluta Como o gesto nos leva em

direccedilatildeo ao objeto percebido sem que tenhamos de calcular a distacircncia eacute na

obscuridade da linguagem que de repente oferece-se a noacutes um pensamento

verdadeiro Precisamos portanto ver aparecer o pensamento na linguagem

e talvez ateacute mesmo a linguagem nos modos de expressatildeo preacute-linguiacutesticas que

ela transforma mas que ela continua

1 A expressatildeo e a verdade

Jaacute as condutas e os gestos do outro satildeo compreendidos segundo

uma loacutegica taacutecita que eacute preciso aprender a conhecer o que seria apenas para

ver no que tem de original a loacutegica expressa da linguagem Haacute muita

confusatildeo em certas tentativas da grafologia e da fisionomia moderna A

escrita e a estrutura do corpo natildeo bastam para assegurar uma percepccedilatildeo

precisa do outro pela simples razatildeo de que o ato de escrever responde a

uma atitude muito especial na qual o homem inteiro estaacute bem longe de se

exprimir de que as proporccedilotildees inatas do corpo natildeo podem nos dizer nada

sobre a histoacuteria individual de um sujeito Se persistirmos em buscar em

testemunhos tatildeo incompletos e abstratos a essecircncia de uma personalidade

isto soacute pode ser por uma espeacutecie de preguiccedila que nos faz negligenciar as

manifestaccedilotildees complexas do discurso e da conduta em benefiacutecio de algumas

notaccedilotildees numeacutericas simples e faz com que prefiramos o segredo de um

ldquodestinordquo agrave foacutermula de uma ldquocondutardquo Pode-se mostrar que mesmo as

expressotildees emocionais da dor e da alegria satildeo evidentemente ambiacuteguas

desde o momento em que se apresenta uma parte do rosto somente ou o

353

rosto sem o corpo ou o corpo sem a situaccedilatildeo250 Natildeo eacute preciso entatildeo supor

uma percepccedilatildeo do outro que nos daria dele inteiramente uma imagem total e

exata mas natildeo eacute menos verdade que haacute uma leitura das expressotildees em

funccedilatildeo da situaccedilatildeo que mesmo a voz a silhueta o modo de andar tecircm um

valor expressivo a confirmar pelo exame das condutas do sujeito diante das

situaccedilotildees caracteriacutesticas e que este deciframento da expressatildeo pode ser de

uma seguranccedila espantosa Como natildeo repousa sobre um conhecimento

rigoroso sobre um sistema de correspondecircncia precisa entre signos e

significaccedilotildees eacute preciso admitir realmente que as expressotildees do outro nos

falam que elas datildeo lugar de nossa parte a uma retomada tatildeo pouco

calculada quanto os gestos de nosso corpo em face dos objetos Eacute o que faz

com que sejamos capazes de adivinhar em outrem emoccedilotildees das quais noacutes

mesmos natildeo temos a experiecircncia que sob certos aspectos o conhecimento

do outro estaacute de antematildeo no conhecimento de si e que os tipos de emoccedilotildees

inscritos em nossa cultura orientam nossa experiecircncia efetiva como o

mostra por exemplo o que haacute de prematuro nos conflitos da vida infantil

Nosso corpo em nossa experiecircncia do outro funciona como um aparelho de

compreender e por esta espeacutecie de afinidade que tem com algumas

condutas que ainda natildeo praticou eacute algumas vezes capaz de inferecircncias de

identificaccedilotildees de conclusotildees cegas mas seguras

O estudo desta loacutegica perceptiva (da qual definimos o princiacutepio a

propoacutesito da percepccedilatildeo das coisas naturais) receberia um aumento de

precisatildeo de uma anaacutelise da expressatildeo pictural O proacuteprio pintor para olhar

o objeto e para pintaacute-lo toma conselho de suas matildeos de seus olhos de seu

corpo muito mais do que de seu juiacutezo O espectador do quadro por sua vez

percebe surdamente entre as cores e as formas o espaccedilo pictural os

objetos ou os personagens tais como se apresentam no quadro um sistema

exato de equivalecircncias que faz o sentido de cada pintura251 Um grande

250 Jaacute esboccedilamos um estudo das relaccedilotildees entre a parte e o todo no interior de um conjunto expressivo (ldquoLe Cineacutema et la nouvelle psychologierdquo in Sens et Non-sens) [Nagel 1948 p 85-106 Gallimard 1995 p 61-75] 251 Procuramos colocar em evidecircncia em Ceacutezanne essa significaccedilatildeo aderente aos signos (ldquoLe doute de Ceacutezannerdquo (op cit p 15-44 nova ediccedilatildeo p 13-33)

354

pintor traz na expressatildeo do mundo uma variante que natildeo aparece

primeiramente a ele mesmo e ao espectador senatildeo por oposiccedilatildeo agraves outras

pinturas mas que se manifesta entretanto em cada elemento e no

conjunto de modo que se trata como foi dito de uma ldquodeformaccedilatildeo

coerenterdquo de uma distorccedilatildeo sistemaacutetica governada pela nova relaccedilatildeo com o

mundo Ele proacuteprio precisa pouco a pouco aprender o sentido desta

modulaccedilatildeo justamente ao fazer sua obra Mas mesmo taacutecito e inexprimiacutevel

a princiacutepio por outros meios que os da pintura o novo modo de organizaccedilatildeo

tem realmente valor de princiacutepio Pode-se ver nisto como que uma categoria

nova da pintura uma vez que tem algumas vezes por efeito provocar uma

reclassificaccedilatildeo de obras do passado ou em todo caso de desenhar entre

elas novas relaccedilotildees de parentesco e uma nova histoacuteria Aqui ainda

apreendemos na obra um loacutegos anterior agrave linguagem que nos ajudaraacute talvez

a melhor compreender o loacutegos proferido

Esta passagem da expressatildeo preacute-linguiacutestica agrave linguagem natildeo a

entendemos como uma reduccedilatildeo da segunda agrave primeira A comparaccedilatildeo

frequentemente feita hoje entre a expressatildeo pictural e a linguagem

(incontestaacutevel aliaacutes quando se trata do uso literaacuterio e poeacutetico da linguagem)

deixa inteira a questatildeo da originalidade da linguagem em suas formas

exatas ela pode justamente nos permitir pocircr em evidecircncia o que as distingue

absolutamente e natildeo supotildee portanto nem um pouco o problema resolvido

O pintor executa uma operaccedilatildeo expressiva que estaacute sempre por recomeccedilar

visto que nenhum pintor resume os outros e natildeo acaba por assim dizer a

pintura Quando falo e quando penso parece-me ao contraacuterio que possuo

verdadeiramente o que digo que o tenho na matildeo A significaccedilatildeo natildeo eacute mais

fugidia dispersada nos signos inseparaacutevel deles Parece-me que a vejo face

a face Por ela retomo e totalizo todo um desenvolvimento de conhecimento

Daiacute vem que cada pintor deve recriar por assim dizer uma liacutengua pictural

ao passo que o proacuteprio do pensador eacute de usar de uma liacutengua jaacute instituiacuteda

para lhe fazer dizer o que ela natildeo disse jamais Daiacute tanto o nosso espanto

diante da liacutengua que nos oferece esta maravilha de um instrumento a

qualquer fim capaz por destinaccedilatildeo de dizer tudo o que haacute por dizer Disto

enfim os mitos proacuteprios agrave linguagem e por exemplo o sonho de uma liacutengua

355

verdadeiramente fundada ldquona natureza das coisasrdquo e cujos termos e relaccedilotildees

elementares permitiram por simples combinaccedilatildeo compor toda a verdade

Estas caracteriacutesticas proacuteprias agrave linguagem natildeo a impedem

todavia de conhecer os mesmos acasos e a mesma cegueira que a pintura

Quando Ferdinand Saussure mostra que natildeo haacute em uma liacutengua

significaccedilotildees que haacute apenas ldquodiferenccedilas de significaccedilatildeordquo lembra-nos de que

as palavras e as formas de uma liacutengua natildeo satildeo tanto signos uniacutevocos aos

quais se poderia fazer corresponder ideias claras e distintas satildeo

instrumentos linguiacutesticos que mais discriminam do que designam

positivamente que satildeo claros apenas no interior absoluto da liacutengua e no

contexto de um certo discurso e que portanto mais deslizam sobre a

significaccedilatildeo do que a aprisionam comparaacuteveis nisto agrave expressatildeo pictural da

qual diziacuteamos que antes de mais nada mais discrimina uma pintura de

uma outra do que nos daacute positivamente o seu sentido Uma vez instituiacuteda

eacute bem verdade que a linguagem nos daacute o sentimento de uma posse absoluta

de seu sentido mas no momento em que se institui na crianccedila que aprende

a falar no escritor que faz sua obra vecirc-se bem que eacute apenas uma maneira

mais flexiacutevel e mais aacutegil de circunscrever a significaccedilatildeo que ele natildeo a deteacutem

que lhe pede que a escute como ao que emprega uma verdadeira superaccedilatildeo

de suas ideias adquiridas e que tanto em um como no outro natildeo se limita a

designar pensamentos jaacute pensados Haveraacute logo motivos para escrutar as

particularidades do instrumento linguiacutestico que o tornam capaz finalmente

de exprimir verdades e tornam possiacutevel o que denominamos sua

transparecircncia Mas a verdade eacute feita de significaccedilotildees abertas e devemos

recusar a alternativa dos loacutegicos modernos que encontram apenas fora do

domiacutenio das significaccedilotildees exatas fechadas umas receitas para operaccedilotildees

cegas

De outro modo que o da pintura com signos mais capazes que

os seus de vir a se tornar instituiccedilatildeo de constituir um depoacutesito de verdade

progressivo e de recuperar a existecircncia bruta do mundo (e mesmo sua

proacutepria existecircncia histoacuterica) a linguagem realiza de uma maneira mais

peremptoacuteria um trabalho anaacutelogo de retomada que natildeo nos daacute em nenhum

lugar as coisas mesmas tais como seriam antes da expressatildeo ou fora dela

356

2 A histoacuteria e a intersubjetividade

Seria necessaacuterio comeccedilar o estudo das relaccedilotildees inter-humanas

na cultura pelo da linguagem porque a linguagem sendo ao mesmo tempo

o que haacute de mais interior e permanecendo em contato estreito com as

condiccedilotildees exteriores e histoacutericas daacute-nos melhor do que nenhum outro

fenocircmeno uma chance de compreender a articulaccedilatildeo do individual sobre o

social e as relaccedilotildees de permuta entre a natureza e a cultura

As questotildees debatidas entre os que fazem o indiviacuteduo sujeito da

histoacuteria e os que o fazem objeto da histoacuteria ou entre os que vecircem na

histoacuteria uma razatildeo que se manifesta e os que vecircem nela apenas uma

sequecircncia de acasos seriam suscetiacuteveis de uma soluccedilatildeo positiva se ao inveacutes

de colocaacute-las a propoacutesito da histoacuteria econocircmica ou da histoacuteria poliacutetica noacutes

as colocaacutessemos a propoacutesito da histoacuteria da linguagem na qual o sujeito

falante e a comunidade linguiacutestica os acasos e a ordem sistemaacutetica do

idioma estatildeo inseparavelmente em obra A instituiccedilatildeo linguiacutestica poderia

servir de modelo para compreender as outras instituiccedilotildees as condiccedilotildees de

equiliacutebrio e de transformaccedilatildeo delas e o estudo da linguagem como se

propocircs de diversos modos vir a ser o fio condutor para o exame de outros

modos de permuta e de reciprocidade a linguiacutestica o fio condutor da

sociedade

Mas isto se deve ao fato de que a proacutepria linguagem articulada

natildeo eacute senatildeo o mais alto ponto de concentraccedilatildeo de uma linguagem mais

secreta que os homens falam uns com os outros pelo siacutembolo que cria a sua

coexistecircncia econocircmica poliacutetica religiosa e moral Desta linguagem

generalizada a linguagem dos escritos e a das conversas estaacute bem longe de

fornecer um relato suficiente e estamos apenas no fim de um inventaacuterio

psicoloacutegico e socioloacutegico de nossa vida coletiva que fixa e faz com que passe

agrave existecircncia oficial e reconhecida o que todavia constitui a substacircncia de

nossa histoacuteria Ora enquanto as relaccedilotildees praacuteticas e efetivas dos homens natildeo

forem submetidas a este inqueacuterito que comeccedila e enquanto nos

permanecerem opacas fica difiacutecil apreciar o sentido uacuteltimo o conteuacutedo de

verdade do que dizem lecircem ou escrevem e que eacute sempre ao mesmo tempo

357

uma antecipaccedilatildeo do que pensariam se estivessem livres de parcialidades de

prejulgamentos ou de neuroses de seu tempo mas tambeacutem a simples

contrapartida imaginaacuteria de seus problemas e de suas dificuldades

Uma teoria da verdade seria entatildeo superficial se natildeo levasse em

consideraccedilatildeo aleacutem do sujeito falante e da comunidade linguiacutestica o sujeito

que vive deseja avalia cria e trabalha em uma comunidade histoacuterica e as

relaccedilotildees de verdade que pode e poderaacute estabelecer com ela Eacute preciso por

conseguinte pesquisar ateacute na histoacuteria global da qual as histoacuterias

econocircmica poliacutetica linguiacutestica e social satildeo apenas aspectos abstratos o

motor de desenvolvimento o fenocircmeno central que faz a diferenccedila da preacute-

histoacuteria animal e da histoacuteria humana e onde se preparam se natildeo as

condiccedilotildees proacuteximas que satildeo da ordem linguiacutestica e teacutecnica pelo menos as

condiccedilotildees longiacutenquas de uma verdade

Eacute surpreendente constatar que a ideia de uma histoacuteria integral

ao mesmo tempo histoacuteria de relaccedilotildees do homem com a natureza e das

relaccedilotildees do homem com o homem desde que foi formulada por Hegel e por

Marx particularmente em seus escritos de juventude foi muito largamente

aceita por outros historiadores sem que se buscasse nem por isso precisar

o seu sentido filosoacutefico reexaminar por exemplo o famoso dilema do

idealismo hegeliano e do materialismo marxista Constata-se em muitos

autores que haacute uma permuta entre as categorias da histoacuteria das teacutecnicas e

as da histoacuteria das ideias que por exemplo permitiu falar de utensiacutelios e de

equipamento intelectual de um tempo como reciprocamente da filosofia

implicada no uso de tal instrumento Mas seria necessaacuterio explicitar a

concepccedilatildeo das relaccedilotildees do espiacuterito e do corpo na histoacuteria que eacute suposta por

esta linguagem Haacute pois espaccedilo para retomar esta intuiccedilatildeo concreta da

histoacuteria integral e defendecirc-la contra as deformaccedilotildees que tendem sempre a

atraiacute-la em direccedilatildeo a uma filosofia do objeto e uma concepccedilatildeo da histoacuteria em

si ou ao contraacuterio a reconduzi-la em direccedilatildeo a uma filosofia do sujeito que

faz da histoacuteria um natildeo-senso ao passo que com toda evidecircncia todas estas

pesquisas tendem a nos revelar tatildeo longe do puro objeto quanto do puro

sujeito um interior da histoacuteria humana e uma encarnaccedilatildeo das

consciecircncias As concepccedilotildees do culturalismo americano que colocam em

358

evidecircncia as correlaccedilotildees das significaccedilotildees econocircmicas poliacuteticas morais

juriacutedicas e ideoloacutegicas no interior de uma cultura considerada como um

todo poderiam ajudar a recolocar o problema da histoacuteria integral

O esforccedilo deveria em particular versar sobre as relaccedilotildees dos

modos de vida e dos modos de pensamento Uma relaccedilatildeo simples de

paralelismo (ao qual Marx mesmo jamais pensou visto que recusou

acrescentar ponto por ponto a curva das ideologias agrave da histoacuteria social) estaacute

certamente fora de questatildeo A sucessatildeo das doutrinas ou dos pensamentos

natildeo eacute o reflexo simples da sucessatildeo das sociedades As doutrinas

estabelecem entre elas atraveacutes do tempo relaccedilotildees longitudinais relaccedilotildees

intriacutensecas que fazem com que Platatildeo permaneccedila sob certos aspectos nosso

contemporacircneo e ainda dono da verdade ao passo que a sociedade onde

vivia natildeo se continua na nossa e eacute precisamente esta relaccedilatildeo interior de um

tempo ao outro na ordem dos pensamentos que nos permite encontrar um

sentido no devir e de falar de verdade Na histoacuteria como na percepccedilatildeo haacute

uma semente de verdade Ela natildeo estaacute fechada em nenhuma proposiccedilatildeo

invariaacutevel ela faz todavia com que mesmo as proposiccedilotildees do passado

guardem ainda um sentido no interior de um saber mais maduro e com que

nossa experiecircncia seja um devir em direccedilatildeo agrave verdade

Mas ao mesmo tempo eacute verdade dizer que o pensamento

mesmo quando se eleva acima do momento encontra o universal apenas

quando natildeo o procura Eacute aprofundando sua proacutepria situaccedilatildeo que o escritor

encontra acentos que faratildeo com que leia cem anos mais tarde e as obras

que datam mais satildeo frequentemente as que o autor quis demasiadamente

tornar eternas A comunicaccedilatildeo entre os sujeitos sucessivos como entre os

sujeitos contemporacircneos natildeo eacute o encontro de pensamentos desencarnados

em um ceacuteu de ideias invariaacuteveis eacute ao contraacuterio a profunda afinidade de

situaccedilotildees que se compreendem umas agraves outras em suas diferenccedilas Se haacute

uma uacutenica tentativa onde se encadeiam todos os tempos todos os modos de

pensamento e todos os modos de vida natildeo eacute que a histoacuteria seja como um

deus que regeria tudo por cima de nossas cabeccedilas eacute porque haacute apenas uma

humanidade

359

3 Os problemas uacuteltimos da racionalidade

Estas pesquisas atraveacutes das diferentes ordens do fenocircmeno da

verdade reencontram os problemas claacutessicos da metafiacutesica mas de certo

modo generalizados reconduzidos agrave sua essecircncia que eacute a meditaccedilatildeo de

fato da racionalidade Os sistemas satildeo diferentes tentativas da imaginaccedilatildeo

filosoacutefica para se dar iacutedolos representaccedilotildees manejaacuteveis do fenocircmeno da

verdade Sendo dado um mundo estranho onde o sujeito e o objeto a

despeito das definiccedilotildees passam um no outro como o mostra a uniatildeo da

alma e do corpo e onde em particular o sujeito indeclinaacutevel ndash eu sou ndash

acaba por reconhecer atraacutes de certos objetos de seu ambiente outros

espiacuteritos em relaccedilatildeo aos quais ele proacuteprio eacute um paradoxo assim como eles o

satildeo a seus olhos os sistemas propotildeem cedo ou tarde reabsorver o que haacute

de espantoso nesta metamorfose e o procedimento comum deles pode ser

apenas apagar um dos poacutelos do conjunto para fazer com que cesse a tensatildeo

que o atravessa Harmonia preestabelecida passagem agrave totalidade absoluta

materialismo idealismo lanccedilam igualmente sobre os paradoxos da

encarnaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo o veacuteu de uma explicitaccedilatildeo mas ao mesmo

tempo em que aplanam as suas dificuldades ocultam-nos a sua atualidade

a eficaacutecia sempre nova funcionamento continuado em noacutes mesmos Se a

filosofia eacute vida e consciecircncia eacute preciso que o espanto seja natildeo somente uma

introduccedilatildeo ao conhecimento mas o signo de seu mais alto ponto A

percepccedilatildeo nos mostra uma coisa irrecusaacutevel embora em princiacutepio o seu

inventaacuterio seja infinito Uma filosofia faz valer a racionalidade em todo o seu

valor apenas se a faz aparecer no meio do irracional por uma espeacutecie de

milagre no sentido em que se fala de ldquomilagre gregordquo

360

Carta agrave Martial Gueacuteroult252

O texto publicado abaixo eacute aquele de uma exposiccedilatildeo que me entregou o seu autor no momento em que eu estabelecia para sua candidatura ao Collegravege de France o relatoacuterio destinado a apresentar seus tiacutetulos diante da Assembleia dos professores Merleau-Ponty reuacutene aqui com um soacute traccedilo contiacutenuo seu passado e seu dever de filoacutesofo e esboccedila as perspectivas de suas pesquisas futuras desde A Origem da Verdade ateacute o Homem transcendental Lendo estas linhas de um tatildeo alto interesse o pesar se aviva de uma morte que brutalmente interrompeu o impulso de um pensamento profundo em plena posse de si mesmo e a ponto de se realizar em uma seacuterie de obras originais que teriam marcado eacutepoca na filosofia francesa contemporacircnea

Martial Gueacuteroult

Natildeo deixamos de viver no mundo da percepccedilatildeo mas o

superamos pelo pensamento criacutetico a ponto de esquecer a contribuiccedilatildeo que

traz agrave nossa ideia de verdade Haacute pois diante do pensamento criacutetico apenas

enunciados que ele discute aceita ou rejeita ele rompeu com a evidecircncia

ingecircnua das coisas e quando afirma eacute porque natildeo encontra mais o modo de

negar Por mais necessaacuteria que seja essa atividade de controle que daacute

precisatildeo aos criteacuterios e exige da nossa experiecircncia seus tiacutetulos de validade

ela natildeo daacute conta do nosso contato com o mundo percebido que estaacute

simplesmente diante de noacutes aqueacutem do verdadeiro verificado e do falso ela

natildeo define nem mesmo as deacutemarches positivas do pensamento nem suas

aquisiccedilotildees mais vaacutelidas Nossos dois primeiros trabalhos buscavam restituir

o mundo da percepccedilatildeo Estes que noacutes preparamos gostariam de mostrar

como a comunicaccedilatildeo com outro e o pensamento retomam e ultrapassam a

percepccedilatildeo que nos iniciou agrave verdade

252 [Um ineacutedito de Maurice Merleau-Ponty] Nota introdutoacuteria de Martial Gueacuteroult Revista de Metafiacutesica e de Moral nordm 4 outubro de 1962 p 401-409 Capiacutetulo XXI do Parcours Deux ndash Um ineacutedit de Maurice Merleau-Ponty Conforme nota do editor francecircs [Texto ineacutedito em 1962 que Maurice Merleau-Ponty entregou a Martial Gueacuteroult encarregado do relatoacuterio de apresentaccedilatildeo do candidato e publicado por seus cuidados na Revista de Metafiacutesica e Moral]

361

O espiacuterito que percebe eacute um espiacuterito encarnado eacute o

enraizamento do espiacuterito em seu corpo e em seu mundo que buscamos

restabelecer primeiramente tanto contra as doutrinas que tratam a

percepccedilatildeo como o simples resultado da accedilatildeo das coisas exteriores sobre

nosso corpo quanto contra as que insistem sobre a autonomia da tomada de

consciecircncia Estas filosofias tecircm em comum o fato de que se esquecem em

benefiacutecio da pura exterioridade ou da pura interioridade da inserccedilatildeo

corporal do espiacuterito a relaccedilatildeo ambiacutegua que mantemos com o nosso corpo e

correlativamente com as coisas percebidas Quando se tenta como noacutes

fizemos em A Estrutura do Comportamento253 desenhar as relaccedilotildees do

organismo que percebe e de seu meio inspirando-se na psicologia e na

fisiologia modernas fica claro de uma soacute vez que natildeo satildeo as de um

aparelho automaacutetico com o agente exterior que vem desencadear neste

organismo mecanismos preestabelecidos e que natildeo se daacute conta melhor dos

fatos sobrepondo ao corpo concebido como uma coisa uma consciecircncia

pura e contemplativa Nas condiccedilotildees de vida exceto no laboratoacuterio o

organismo estaacute menos sensiacutevel a certos agentes fiacutesicos e quiacutemicos isolados

do que agrave ldquoconstelaccedilatildeordquo que eles formam agrave situaccedilatildeo de conjunto que eles

definem Os comportamentos revelam uma espeacutecie de atividade prospectiva

do organismo como se ele se orientasse sobre o sentido de certas situaccedilotildees

elementares como se mantivesse com elas relaccedilotildees de familiaridade como

se houvesse um ldquoa priori do organismordquo condutas privilegiadas leis de

equiliacutebrio interno que o predispotildeem a certas relaccedilotildees com o meio No niacutevel

onde nos situamos natildeo poderia entretanto tratar-se de uma verdadeira

tomada de consciecircncia nem de uma atividade intencional e aliaacutes o poder

prospectivo do organismo se exerce entre limites definidos e depende de

condiccedilotildees locais precisas O funcionamento do sistema nervoso central nos

coloca diante de paradoxos do mesmo gecircnero A teoria das localizaccedilotildees

cerebrais sob suas formas modernas modificou profundamente a relaccedilatildeo da

253 [Maurice Merleau-Ponty La Structure du Comportement PUF 1942 2ordf ed 1949 e seguintes precedido de ldquoUne philosophie de lrsquoambiguumliteacuterdquo por Alphonse de Waelhens col ldquoQuadrigerdquo 123 190] (NE)

362

funccedilatildeo com o substrato Ela natildeo atribui mais por exemplo a cada conduta

perceptiva um mecanismo preestabelecido Os ldquocentros coordenadoresrdquo dos

quais ela fala natildeo satildeo mais armazeacutens de ldquotraccedilos cerebraisrdquo e o

funcionamento deles eacute qualitativamente diferente de um caso a outro

segundo a nuance cromaacutetica a evocar a estrutura perceptiva a realizar se

bem que ele reflete enfim toda a sutileza e toda a variedade das relaccedilotildees

percebidas Tudo se passa pois no organismo que percebe como se noacutes

tiveacutessemos de fazer segundo a palavra de Descartes uma mistura da alma

com corpo As condutas superiores atribuem um sentido novo agrave vida do

organismo mas o espiacuterito entretanto natildeo dispunha aqui senatildeo de uma

liberdade controlada antes ele precisa de atividades mais simples para

estabilizar por meio delas instituiccedilotildees duraacuteveis e nelas realizar-se

verdadeiramente A conduta perceptiva emerge destas relaccedilotildees para uma

situaccedilatildeo e para um meio que natildeo satildeo o feito de um puro sujeito cognoscente

Em nosso trabalho sobre a Fenomenologia da percepccedilatildeo254 natildeo

assistimos mais ao advento de condutas perceptivas instalamo-nos nelas

para ali perseguir a anaacutelise desta singular relaccedilatildeo entre o sujeito o seu

corpo e o seu mundo Para a psicologia e a psicopatologia de hoje o corpo

proacuteprio natildeo eacute mais somente um dos objetos do mundo sob o olhar de um

espiacuterito separado desloca-se para o lado do sujeito eacute nosso ponto de vista

sobre o mundo o lugar onde o espiacuterito se investe em uma certa situaccedilatildeo

fiacutesica e histoacuterica Como Descartes ainda disse profundamente alma natildeo estaacute

soacute em seu corpo como o piloto em seu navio ela estaacute unida inteiramente ao

corpo ndash ele eacute inteiramente animado e as funccedilotildees corporais contribuem

todas por sua parte agrave percepccedilatildeo dos objetos dos quais a filosofia durante

muito tempo fez um puro saber Eacute atraveacutes da situaccedilatildeo de nosso corpo que

apreendemos o espaccedilo exterior Um ldquoesquema corporalrdquo ou ldquoposturalrdquo nos

daacute a cada instante uma noccedilatildeo global praacutetica e impliacutecita das relaccedilotildees de

nosso corpo e das coisas e como seu aumento sobre elas Um feixe de

movimentos possiacuteveis ou de ldquoprojetos motoresrdquo irradia de noacutes sobre o

254 [Maurice Merleau-Ponty Pheacutenomeacutenologie de la Perception Gallimard 1945 col ldquoTelrdquo 4 1976] (NE)

363

ambiente Nosso corpo natildeo estaacute no espaccedilo como as coisas ele o habita ou o

assedia adapta-se a ele como a matildeo a um instrumento e eacute por este motivo

que quando queremos nos locomover natildeo precisamos movecirc-lo como se

move um objeto Noacutes o transportamos sem instrumentos como por uma

espeacutecie de magia porque ele eacute nosso e porque por ele temos diretamente

acesso ao espaccedilo Ele eacute para noacutes muito mais do que um instrumento ou um

meio eacute nossa expressatildeo no mundo a figura visiacutevel de nossas intenccedilotildees

Mesmo nossos movimentos afetivos mais secretos mais profundamente

ligados agrave infra-estrutura contribuem para formar nossa percepccedilatildeo das

coisas

Ora se a percepccedilatildeo eacute assim o ato comum de todas as nossas

funccedilotildees motrizes e afetivas natildeo menos que das sensoriais precisamos

redescobrir a figura do mundo percebido por um trabalho comparaacutevel ao do

arqueoacutelogo pois ela estaacute enterrada sob os sedimentos de conhecimentos

ulteriores Veriacuteamos entatildeo que a qualidade sensiacutevel natildeo eacute este dado opaco e

indivisiacutevel oferecido como espetaacuteculo a uma consciecircncia distante da qual

falavam as concepccedilotildees claacutessicas e que as cores por exemplo das quais

cada uma se cerca de uma atmosfera afetiva que os psicoacutelogos puderam

estudar e definir satildeo na verdade diversas modalidades de nossa

coexistecircncia com um mundo Veremos que as figuras espaciais ou as

distacircncias natildeo satildeo tanto relaccedilotildees entre diversos pontos do espaccedilo objetivo

quanto relaccedilotildees entre eles e um centro de perspectiva que eacute nosso corpo ndash

em suma que elas satildeo diversas maneiras para os estiacutemulos exteriores de

pocircr agrave prova de solicitar e de fazer variar nossa apreensatildeo do mundo nossa

ancoragem no horizontal e no vertical do lugar em um aqui e um agora

Veriacuteamos ainda que as coisas percebidas natildeo satildeo como os objetos

geomeacutetricos seres acabados dos quais nossa inteligecircncia possui a priori a lei

de construccedilatildeo mas conjuntos abertos e inesgotaacuteveis que reconheceriacuteamos

com um certo estilo de desenvolvimento embora natildeo pudeacutessemos por

princiacutepio exploraacute-los inteiramente e que eles natildeo nos datildeo nunca deles

mesmos senatildeo perfis ou vistas perspectivadas Veriacuteamos enfim que o

mundo percebido por sua vez natildeo eacute um puro objeto de pensamento sem

fissura e sem lacuna mas como que o estilo universal ao qual participam

364

todos os seres perceptivos e que ele os coordena sem duacutevida mas sem que

pudeacutessemos presumi-lo acabado Nosso mundo dizia profundamente

Malebranche eacute ldquouma obra inacabadardquo

Se agora quiseacutessemos definir um sujeito que seja capaz desta

experiecircncia perceptiva eacute claro que natildeo seraacute um pensamento transparente

para si mesmo absolutamente presente a si mesmo sem corpo e sem

histoacuteria interpostas O sujeito da percepccedilatildeo natildeo eacute este pensador absoluto

ele funciona em conformidade com um pacto realizado em nosso

nascimento entre o nosso corpo e o mundo entre noacutes mesmos e o nosso

corpo ele eacute como que um nascimento continuado aquele a quem uma

situaccedilatildeo fiacutesica e histoacuterica foi dada para gerir e eacute dada a cada instante mais

uma vez Cada sujeito encarnado eacute como um registro aberto no qual natildeo se

sabe o que nele se escreveraacute ndash ou como uma nova linguagem da qual natildeo se

sabe que obras produziraacute mas que uma vez manifesta natildeo poderia deixar

de dizer pouco ou muito de ter uma histoacuteria ou um sentido A produtividade

mesma ou a liberdade da vida humana longe de negar nossa situaccedilatildeo

utilizam-na e transformam-na em modo de expressatildeo

Esta observaccedilatildeo nos conduz a novas pesquisas comeccediladas

desde 1945 que viratildeo fixar definitivamente o sentido filosoacutefico das primeiras

agraves quais em compensaccedilatildeo lhes prescrevem um itineraacuterio e um meacutetodo

Acreditamos encontrar na experiecircncia do mundo percebido uma relaccedilatildeo de

um tipo novo entre o espiacuterito e a verdade A evidecircncia da coisa percebida

estaacute unida a seu aspecto concreto agrave textura mesma de suas qualidades a

esta equivalecircncia entre todas as suas propriedades sensiacuteveis que fazia com

que Ceacutezanne dissesse que se devia poder pintar ateacute os odores Eacute diante de

nossa existecircncia indivisa que o mundo eacute verdadeiro ou existe sua unidade e

suas articulaccedilotildees se confundem e isto quer dizer que temos do mundo uma

noccedilatildeo global cujo inventaacuterio natildeo se esgota jamais e que fazemos nele a

experiecircncia de uma verdade que antes transparece ou nos engloba do que o

nosso espiacuterito a deteacutem e a circunscreve Ora se entatildeo considerarmos acima

do percebido o campo do conhecimento propriamente dito no qual o

espiacuterito quer possuir o verdadeiro definir ele mesmo os objetos e ter acesso

365

assim a um saber universal e livre das particularidades de nossa situaccedilatildeo a

ordem do percebido natildeo se apresentaraacute como simples aparecircncia e o

entendimento puro natildeo seraacute uma nova fonte de conhecimento em relaccedilatildeo agrave

qual nossa familiaridade perceptiva com o mundo eacute apenas um esboccedilo

informe ndash Noacutes somos obrigados a responder a estas questotildees primeiramente

por meio de uma teoria da verdade e em seguida por meio de uma teoria da

intersubjetividade agraves quais tocamos em diferentes ensaios tais como A

duacutevida de Ceacutezanne255 O Romance e a Metafiacutesica256 ou no que concerne agrave

filosofia da histoacuteria Humanismo e Terror257 mas cujos fundamentos

filosoacuteficos devemos elaborar com todo rigor A teoria da verdade eacute o objeto de

dois livros nos quais trabalhamos agora

Parece-nos que o conhecimento e a comunicaccedilatildeo com o outro

que ele pressupotildee satildeo em relaccedilatildeo agrave vida perceptiva formaccedilotildees originais

mas que a continuam e a conservam transformando-a que sublimam antes

nossa encarnaccedilatildeo do que a suprimem e que a operaccedilatildeo caracteriacutestica do

espiacuterito estaacute no movimento pelo qual retomamos nossa existecircncia corporal e

a empregamos para simbolizar ao inveacutes de coexistir somente Esta

metamorfose resulta numa dupla funccedilatildeo de nosso corpo Por seus ldquocampos

sensoriaisrdquo por toda sua organizaccedilatildeo ele eacute como que predestinado a se

modelar sobre os aspectos naturais do mundo Mas como corpo ativo

enquanto eacute capaz de gestos de expressatildeo e enfim de linguagem volta-se

sobre o mundo para significaacute-lo Como o mostra a observaccedilatildeo dos apraacutexicos

no espaccedilo atual onde cada ponto eacute o que eacute sobrepotildee-se no homem um

ldquoespaccedilo virtualrdquo onde satildeo inscritos tambeacutem os valores espaciais que este

ponto recebia para tal outra posiccedilatildeo de nossas coordenadas corporais Um

sistema de correspondecircncia se estabelece entre nossa situaccedilatildeo espacial e a

dos outros e cada uma acaba por simbolizar todas as outras Esta

retomada que insere nossa situaccedilatildeo de fato como um caso particular no

sistema de outras situaccedilotildees possiacuteveis comeccedila desde o momento em que

255 [in Sens et Non-sens Nagel 1948 p 15-44 Gallimard 1995 p 13-33] (NE) 256 [in Sens et Non-sens Nagel 1948 p 45-71 Gallimar 1995 p 34-52] (NE) 257 [Maurice Merleau-Ponty Humanisme et Terreur Gallimard 1947 col ldquoIdeacuteesrdquo 432 1980] (N E)

366

mostramos com o dedo um ponto do espaccedilo pois o gesto de designaccedilatildeo que

justamente os animais natildeo compreendem supotildee-nos jaacute instalados no

virtual o fim da linha que prolonga nosso dedo em um espaccedilo centriacutefugo ou

de cultura Este uso miacutemico de nosso corpo natildeo eacute ainda uma concepccedilatildeo

uma vez que natildeo nos desliga de uma situaccedilatildeo corporal pela qual pelo

contraacuterio ele assume todo sentido ele nos introduz a uma teoria concreta

do espiacuterito que nos mostraraacute em uma relaccedilatildeo de permuta com os

instrumentos que ele se daacute mas que lhe restituem e isto mais adiante o

que receberam dele

De um modo geral os gestos expressivos onde a fisionomia

buscava em vatildeo os signos suficientes de um estado emocional tecircm apenas

um sentido uniacutevoco localizados em relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo que acentuam ou que

pontuam Mas como os fonemas sem ter ainda sentido por si mesmos jaacute

tecircm valor diacriacutetico anunciam a constituiccedilatildeo de um sistema simboacutelico capaz

de redesenhar um nuacutemero infinito de situaccedilotildees Eles satildeo uma primeira

linguagem E reciprocamente a linguagem pode ser tratada como uma

gesticulaccedilatildeo de tal modo variada precisa sistemaacutetica e capaz de

intersecccedilotildees tatildeo numerosas que a estrutura interna do enunciado pode

apenas finalmente convir agrave situaccedilatildeo mental a qual responde e tornando-se o

signo sem equiacutevoco O sentido da linguagem como o dos gestos natildeo reside

entatildeo nos elementos dos quais eacute feito eacute sua intenccedilatildeo comum e a frase dita eacute

apenas compreendida se o ouvinte seguindo a ldquocadeia verbalrdquo ultrapassa

cada uma das correntes rumo agrave direccedilatildeo que desenham em conjunto Disto

presume-se ao mesmo tempo que o nosso pensamento mesmo solitaacuterio

natildeo deixa de fazer uso da linguagem que ela o sustenta arranca-o do

transitoacuterio coloca-o em marcha ndash que ela eacute dizia Cassirer o seu ldquovolanterdquo ndash

e que todavia a linguagem considerada parte por parte natildeo conteacutem seu

sentido que toda comunicaccedilatildeo supotildee naquele que escuta uma retomada

criadora do que eacute ouvido Disto presume-se tambeacutem que a linguagem nos

arrasta em direccedilatildeo a um pensamento que natildeo eacute mais simplesmente nosso

que eacute presuntivamente universal sem que esta universalidade seja jamais a

de um conceito puro idecircntico em todos os espiacuteritos eacute antes o apelo que um

pensamento situado direciona a outros pensamentos igualmente situados e

367

ao qual cada um responde com seus recursos proacuteprios O exame das

instacircncias do algoritmo mostraria nele noacutes acreditamos a mesma estranha

funccedilatildeo que estaacute em obra nas formas ditas inexatas da linguagem sobretudo

no momento em que se trata de conquistar no pensamento exato um novo

domiacutenio o pensamento mais formal refere-se sempre a alguma situaccedilatildeo

mental qualitativamente definida da qual extrai apenas o sentido apoiando-

se sobre a configuraccedilatildeo do problema A transformaccedilatildeo natildeo eacute jamais simples

anaacutelise e o pensamento natildeo eacute jamais formal senatildeo relativamente

Esperando tratar completamente este problema na obra que

preparamos sobre A Origem da Verdade258 noacutes o abordamos por seu lado

menos abrupto em um livro do qual a metade estaacute escrita e que trata da

linguagem literaacuteria Nesse domiacutenio eacute mais cocircmodo mostrar que a linguagem

jamais eacute o vestuaacuterio de um pensamento que se possuiria a si mesmo com

toda clareza O sentido de um livro eacute primeiramente dado natildeo tanto pelas

ideias quanto por uma variaccedilatildeo sistemaacutetica e insoacutelita dos modos da

linguagem e da narrativa ou das formas literaacuterias existentes Este acento

esta modulaccedilatildeo particular da palavra se a expressatildeo eacute bem sucedida eacute

assimilada pouco a pouco pelo leitor e torna-lhe acessiacutevel um pensamento ao

qual ele era algumas vezes de iniacutecio indiferente ou mesmo rebelde A

comunicaccedilatildeo em literatura natildeo eacute simples apelo do escritor a significaccedilotildees

que fariam parte de um a priori do espiacuterito humano de preferecircncia elas lhe

satildeo suscitadas por impulso ou por uma espeacutecie de accedilatildeo obliacutequa No escritor

o pensamento natildeo dirige a linguagem do exterior o escritor eacute ele mesmo

como que um novo idioma que se constroacutei que inventa modos de expressatildeo

e diversifica-se segundo seu proacuteprio sentido O que se chama poesia eacute talvez

apenas a parte da literatura onde essa autonomia se afirma com ostentaccedilatildeo

Toda grande prosa eacute tambeacutem recriaccedilatildeo do instrumento significante

258 [E que se tornaraacute Le Visible et lrsquoInvisible Noacutes remetemos agrave ediccedilatildeo dessa obra organizada por Claude Lefort Maurice Merleau-Ponty Le Visible et lrsquoInvisible seguida de notas de trabalho por Maurice Merleau-Ponty texto organizado por Claude Lefort acompanhado de um prefaacutecio e de um poacutesfaacutecio Gallimard 1964 col ldquoTelrdquo 36 1979 Textos complementares Maurice Merleau-Ponty Signes Gallimard 1960 especialmente o ldquoPrefaacuteciordquo (fevereiro e setembro de 1960) e LrsquoŒil et lrsquoEsprit Gallimard 1964 com um prefaacutecio de Claude Lefort col ldquoFolio essaisrdquo 13 1985] (NE)

368

doravante manejado segundo uma sintaxe nova O prosaico se limita a tocar

por signos convencionais significaccedilotildees jaacute instaladas na cultura A grande

prosa eacute a arte de captar um sentido que natildeo tinha jamais sido objetivado ateacute

entatildeo e de tornaacute-lo acessiacutevel a todos os que falam a mesma liacutengua Um

escritor morre em vida quando natildeo eacute mais capaz de fundar assim uma

universalidade nova e de se comunicar em meio ao risco Parece-nos que se

poderia dizer tambeacutem das outras instituiccedilotildees que deixam de viver quando

se mostram incapazes de carregar uma poesia das relaccedilotildees humanas isto eacute

o apelo de cada liberdade a todas as outras Hegel dizia que o Estado

romano era a prosa do mundo Noacutes intitularemos Introduccedilatildeo agrave prosa do

mundo259 este trabalho que deveria elaborando a categoria da prosa

conferir-lhe aleacutem da literatura uma significaccedilatildeo socioloacutegica

Essas pesquisas sobre a expressatildeo e a verdade abordam pois

por sua vertente epistemoloacutegica o problema geral das relaccedilotildees do homem

com o homem que seraacute o objeto de nossas pesquisas ulteriores A relaccedilatildeo

linguiacutestica dos homens deve nos ajudar a compreender uma ordem mais

geral das relaccedilotildees simboacutelicas e de instituiccedilotildees que asseguram natildeo mais

somente a permuta dos pensamentos mas a dos valores de toda espeacutecie a

coexistecircncia dos homens em uma cultura e aleacutem de seus limites em uma

uacutenica histoacuteria Interpretada em termos de simbolismo o conceito de histoacuteria

nos parece aqueacutem das contestaccedilotildees das quais eacute objeto porque entendemos

geralmente sob esta palavra seja isto para reconhececirc-la ou negaacute-la uma

Potecircncia exterior em nome da qual as consciecircncias seriam despojadas Natildeo

mais que a linguagem a histoacuteria natildeo nos eacute exterior Haacute uma histoacuteria do

pensamento quer dizer a sucessatildeo de obras do espiacuterito com todos os

desvios que se queira eacute como uma uacutenica experiecircncia que se persegue e no

curso da qual a verdade por assim dizer capitaliza-se Eacute em um sentido

anaacutelogo que se poderia dizer que haacute uma histoacuteria da humanidade ou mais

259 [Noacutes remetemos agrave excelente apresentaccedilatildeo (sob forma de ldquoPrefaacuteciordquo p I-XIV) de Claude Lefort ao texto organizado aos seus cuidados Maurice Merleau-Ponty La Prose du monde Gallimard 1969 col ldquoTelrdquo 218 1995 Texto complementar ldquoA linguagem e as vozes do silecircnciordquo Les Temps Modernes 890 junho de 1952 p 70-94 Retomado em Signes p 49-104] (NE)

369

simplesmente uma humanidade em outros termos que feitas todas as

restriccedilotildees sobre estas estagnaccedilotildees ou os recuos as relaccedilotildees humanas satildeo

capazes de amadurecer de mudar seus avatares em ensinamentos de

recolher em seu presente a verdade de seu passado de eliminar certos

segredos que as tornam opacas e de se fazerem mais transparentes A ideia

de uma histoacuteria uacutenica ou de uma loacutegica da histoacuteria estaacute de certo modo

implicada na menor permuta humana na menor percepccedilatildeo social a

antropologia supotildee sempre que uma civilizaccedilatildeo mesmo muito diferente da

nossa estaacute no limite compreensiacutevel por noacutes que ela pode estar situada em

relaccedilatildeo a nossa e a nossa em relaccedilatildeo a ela que elas pertencem ao mesmo

universo de pensamento ndash como o menor uso da linguagem implica uma

ideia de verdade Na accedilatildeo tambeacutem natildeo podemos fingir rejeitar como

estrangeiras as aventuras da histoacuteria uma vez que mesmo a pesquisa mais

independente da verdade mais abstrata foi e eacute um fator da histoacuteria (o uacutenico

talvez do qual se esteja seguro que natildeo eacute em nenhum caso decepcionante)

e todas as accedilotildees e as produccedilotildees dos homens se compotildeem entatildeo em um

uacutenico drama e que neste sentido salvamo-nos ou perdemo-nos juntos

nossa vida eacute por si soacute universal Mas este racionalismo metoacutedico natildeo se

confunde com um racionalismo dogmaacutetico que elimina antecipadamente a

contingecircncia histoacuterica supondo como que um ldquoEspiacuterito do mundordquo (Hegel)

atraacutes do curso das coisas Eacute preciso dizer que haacute uma histoacuteria total ndash um

uacutenico tecido que reuacutene todos os empreendimentos de civilizaccedilotildees

simultacircneas e sucessivas todos os fatos do pensamento e todos os fatos

econocircmicos ndash isto natildeo eacute em nome de um idealismo histoacuterico ou de um

materialismo histoacuterico que remetem um ao pensamento outro agrave mateacuteria o

governo da histoacuteria eacute porque as culturas satildeo tanto sistemas coerentes de

siacutembolos que podem ser comparadas e colocadas sobre um denominador

comum e eacute porque em cada um os modos de trabalho os das relaccedilotildees

humanas os da linguagem e os do pensamento mesmo se natildeo satildeo em cada

momento paralelos natildeo permanecem jamais separados com o tempo E o

que faz esta relaccedilatildeo de sentido entre cada aspecto de uma cultura e todos os

outros como entre todos os episoacutedios da histoacuteria eacute o pensamento

permanente e concordante desta pluralidade de seres que se reconhecem

370

como ldquosemelhantesrdquo mesmo que uns busquem dominar os outros e que

sejam a tal ponto levados em situaccedilotildees comuns que muitas vezes os

adversaacuterios estatildeo em uma espeacutecie de cumplicidade

Nossas pesquisas devem por conseguinte conduzir-nos

finalmente a refletir sobre este homem transcendental ou esta ldquoluz naturalrdquo

comum a todos que transparece atraveacutes do movimento da histoacuteria ndash sobre

este Loacutegos que nos atribui por tarefa conduzir agrave palavra um mundo mudo

ateacute aqui ndash como enfim sobre este Loacutegos do mundo percebido que nossas

primeiras pesquisas encontravam na evidecircncia da coisa Aqui encontramos

as questotildees claacutessicas da metafiacutesica mas por um caminho que lhe tira o

caraacuteter de problemas quer dizer de dificuldades que poderiam ser resolvidas

sem muito trabalho mediante algumas entidades metafiacutesicas construiacutedas

para este fim As noccedilotildees de Natureza e de Razatildeo por exemplo longe de

explicaacute-las tornam incompreensiacuteveis as metamorfoses agraves quais assistimos

desde a percepccedilatildeo ateacute os modos complexos da permuta humana pois

relacionando-os a princiacutepios separados elas nos mascaram o momento do

qual temos a constante experiecircncia onde uma existecircncia volta-se sobre si

mesma retoma-se e exprime seu proacuteprio sentido O estudo da percepccedilatildeo

apenas poderia nos ensinar uma ldquomaacute ambiguumlidaderdquo a mistura da finitude e

da universalidade da interioridade e da exterioridade Mas haacute no fenocircmeno

da expressatildeo uma ldquoboa ambiguidaderdquo quer dizer uma espontaneidade que

realiza o que parecia impossiacutevel a considerar os elementos separados que

reuacutene em um uacutenico tecido a pluralidade das mocircnadas o passado e o

presente a natureza e a cultura A constataccedilatildeo desta maravilha seria a

metafiacutesica mesma e ofereceria ao mesmo tempo o princiacutepio de uma moral

371

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

ALQUIEacute F La deacutecouverte meacutetaphysique de lrsquohomme chez Descartes Paris Presses Universitaires 1966

BACHELARD Gaston Eacutetudes Paris Vrin 1970

BACHELARD G Lrsquoactiviteacute rationaliste de la physique contemporaine Paris PUF 1951

BACHELARD G Le nouvel esprit scientifique Paris PUF 1973

BARBARAS R De lrsquoecirctre du pheacutenomegravene Sur lrsquoontologie de Merleau-Ponty Paris Jeacuterocircme Millon 1991

BARBARAS R Le deacutesir et la distance Introduction agrave une philosophie de la perception Paris J Vrin 1999

BARBARAS R CARBONE M LAWLOR L(Ed) Merleau-Ponty et la nature Milatildeo Vrin 2000 (Chiasmi International n 2)

BARBARAS R Notes de cours sur lrsquoorigine de la geacuteometrie de Husserl suivi de recherches sur la philosophie de M Merleau-Ponty Paris PUF 1998

BARBARAS R Vie et Intentionaliteacute recherches pheacutenomeacutenologiques Paris J Vrin 2003

BEAUFRET J Introduccedilatildeo agraves filosofias da existecircncia Satildeo Paulo Duas Cidades 1976

BEAUVOIR S de Meacutemoires drsquoune jeune fille rangeacutee Paris Gallimard 1972

BECH J La filosofia y su historia dificultades teoacutericas y perspectivas criacuteticas en los muacuteltiples caminos actuales de la historia del pensamiento Barcelona Edicions Universitat 2001

BELLO E De Sartre a Merleau-Ponty dialectica de la libertad y el sentido Salamanca Publicaciones Universidad de Murcia 1979

BERGSON H Oeuvres Complegravetes Paris PUF 1959

BERNARDINUS SENENSIS Sermones in hoc Quadragesimali de Christiana Religione De gloria substantiali corporum beatorum Sermo LVII Feria VI post Ressurectionem Domini (Articulus III Caput I) In______ Sancti Bernardini Senensis opera omnia ordinis seraphici minorum synopsibus ornata postillis illustrata necnon variis tractatibus et eximiis praecipue in Apocalypsim commentariis locupletata opera et labore R P Joannis de la Haye Parisini in quinque tomos distributa Venetiis In aedibus Andreae Poletti 1745a Tomus Primus

BERNARDINUS SENENSIS Sermones in hoc Quadragesimali de Christiana Religione De gloria substantiali corporum beatorum Sermo LVIII Feria VI post Ressurectionem Domini (Articulus I Caput I) In______ Sancti Bernardini Senensis opera omnia ordinis seraphici minorum synopsibus ornata postillis illustrata necnon variis tractatibus et eximiis praecipu e in Apocalypsim commentariis locupletata opera et labore R P Joannis de la

372

Haye Parisini in quinque tomos distributa Venetiis In aedibus Andreae Poletti 1745b Tomus Primus

BERNARDINUS SENENSIS Sermones pro Festivitatibus Sanctissimae et Immaculatae Virginis Mariae Sermo X De Purificatione B Mariae Virginis In______ Sancti Bernardini Senensis opera omnia ordinis seraphici minorum synopsibus ornata postillis illustrata necnon variis tractatibus et eximiis praecipue in Apocalypsim commentariis locupletata opera et labore R P Joannis de la Haye Parisini in quinque tomos distributa Venetiis In aedibus Andreae Poletti 1745c Tomus Quartus

BERNET R Le sujet dans la nature In RICHIR M TASSIN E Merleau-Ponty pheacutenomeacutenologie et expeacuteriences Grenoble Millon 1992

BIMBENET Eacute ldquoLrsquoordre humainrdquo In MERLEAU-PONTY La structure du comportement Paris Ellipses 2000 Chap III Philo ndash textes texte et commentaire

BIMBENET Eacute Nature et humaniteacute le problegraveme anthropologique dans lrsquooeuvre de Merleau-Ponty Paris Vrin 2004

BLONDEL M Lrsquoecirctre et les ecirctres Paris Feacutelix Alcan 1935

BOUCKAERT B L ideacutee de lautre la question de lideacutealiteacute et de lalteacuteriteacute chez Husserl des Logische Untersuchungen aux Ideen I Dordrecht [ua] Kluwer 2003 (Phaenomenologica 168)

BRIDGMAN P W The Logic of Modern Physics New York The Macmillan 1927

BRUNSCHVICG L Lideacutee critique et le systegraveme kantien Revue de Meacutetaphysique et de Morale v 31 p 133-204 1924

BRUNSCHVICG L Lrsquoexpeacuterience humaine et la causaliteacute physique Paris Alcan 1922

BURTT E A As Bases Metafiacutesicas da Ciecircncia Moderna Brasiacutelia Ed da UNB 1991

CASSIRER E A Filosofia do Iluminismo Campinas Editora da Unicamp 1994

CASSIRER E La philosophie des Lumiegraveres Paris Fayard 1970

CAVALLIER F Premiegraveres leccedilons sur lrsquoœil et lrsquoesprit de M Merleau-Ponty Paris PUF 1998

CHARDIN P T de Le pheacutenomegravene humain Paris Eacuteditions du Seuil 1956

CHAUIacute M de S Notas de Traduccedilatildeo In MERLEAU-PONTY M Textos selecionados Seleccedilatildeo e traduccedilatildeo de Marilena Chauiacute Satildeo Paulo Abril Cultural 1975 (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

CHAUIacute M de S Da Realidade sem misteacuterio ao misteacuterio do Mundo Espinosa Voltaire Merleau-Ponty Satildeo Paulo Brasiliense 1983

373

CHAUIacute M de S Experiecircncia do Pensamento ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty Satildeo Paulo Martins Fontes 2002

CHAUIacute M de S Maurice Merleau-Ponty e a criacutetica ao humanismo Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1967

DASTUR F Merleau-Ponty et la penseacutee du dedans In RICHIR M TASSIN E Merleau-Ponty pheacutenomeacutenologie et expeacuteriences Grenoble Millon 1992

DELEUZE G A ilha deserta e outros textos Organizaccedilatildeo e revisatildeo teacutecnica David Lapoujade Satildeo Paulo Iluminuras 2006

DERRIDA J Le problegraveme de la genegravese dans la philosophie de Husserl Paris PUF 1990

DERRIDA Jacques Meacutemoires dAveugle Lautoportrait et autres ruines Paris Reacuteunion des Museacutees Nationaux 1992

DESCARTES R Discours de la meacutethode suivis drsquoessais de cette meacutethode la

dioptrique les meacuteteacuteores la geacuteomeacutetrie In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996a v 6

DESCARTES R La Dioptrique In ______ Œuvres de Descartes Paris Victor Cousin 1824a

DESCARTES R Le Monde Traiteacute de la Lumiegravere In ______ Œuvres de Descartes Paris Victor Cousin 1824b v 4

DESCARTES R Lettre In ADAM C amp TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996b v 3 [Agosto de 1641]

DESCARTES R Lettre agrave Clerselier In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996c v 5 [23 de abril de 1649]

DESCARTES R Lettre agrave Voeumlt In ADAM C amp TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996d v 8

DESCARTES R Meditationes de prima philosophia In ADAM C amp

TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996e v 7

DESCARTES R Meacuteditations In ADAM C amp TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996f v 8 [Praeligfatio]

DESCARTES R Objectiones et Responsiones agraves Meditationes De Prima

Philosophia In ADAM C amp TANNERY P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996g v 7

DESCARTES R Opuscula In ______ Œuvres de Descartes Paris Victor Cousin 1824c

DESCARTES R Principes de la philosophie In ADAM C amp TANNERY P

(Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996h v 9

374

DESCARTES R Principia philosophiaelig In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996i v 8

DESCARTES R Recherche de la veacuteriteacute In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996j v 10

DESCARTES R Regravegles In ______ Œuvres de Descartes Paris Victor Cousin 1824d v 9

DESCARTES R Regulaelig ad directionem ingenii In ADAM C amp TANNERY

P (Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996k v 10

DESCARTES R Reacuteponses aux Objections In ADAM C amp TANNERY P

(Ed) Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996 l v 9

DESCARTES R Specimina philosophiae Introduction and Critical Edition In VERMEULEN C L Doctoral Thesis Utrecht University 2007

DESCARTES R Textos Selecionados Trad Guinsburg J e Prado Jr B Satildeo Paulo Abril 1973

DESCARTES R Traiteacute de lrsquoHomme In ADAM C amp TANNERY P (Ed)

Œuvres de Descartes Paris Vrin 1996m

DUPOND P Le vocabulaire de Merleau-Ponty Paris Ellipses 2001

FINK E Zur Krisenlage des modernen Menschen Erziehungswissenschaftliche Vortrage Herausgegeben von Franz-Anton Schwarz Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann 1989

FINK E De la Pheacutenomeacutenologie Traduccedilatildeo Didier Franck Paris Minuit 1974

FOUCAULT M As Palavras e as Coisas Satildeo Paulo Martins Fontes 1999

GADAMER H-G Verdade e Meacutetodo II Petroacutepolis Vozes 2004

GALILEI G Il Saggiatore In GALILEU G Opere Complete di Galileo Galilei Firenze Societagrave Editrice Fiorentina 1842 Tomo IV

GANDT F de Husserl et Galileacutee sur la crise des sciences europeacuteennes Paris Vrin 2004 (Bibliothegraveque drsquohistoire de la Philosophie)

GATTINARA E C Les Inquieacutetudes de la raison eacutepisteacutemologie et histoire en France dans lentre-deux-guerres Paris Vrin 1998

GILSON E Index scolastico-carteacutesien Paris 1913

GILSON E LEsprit de la philosophie meacutedieacutevale Paris Vrin 1932

GOLDSTEIN K Uumlber Aphasie Zurich Orel Fuumlssli 1927

GOLDSTEIN K La naturaleza humana a la luz de la psicopatologia Buenos Aires Paidos 1961

GOLDSTEIN K La Structure de lrsquoorganisme introduction agrave la biologie agrave partir de la pathologie humaine Paris Gallimard 1951

375

GOLDSTEIN K Language and language disturbances New York Grune amp Stratton 1948

GOLDSTEIN K GELB A Psychologische Analysen hirnpathologischer Faumllle Leipzig Barth 1920

GOLDSTEIN K The Organism New York Zone Books 2000

GOLDSTEIN K Transtornos del lenguaje las afasias su importancia para la medicina y la teoria del lenguaje Barcelona Ed Cientifico Medica 1950

GUEacuteROULT M Descartes selon lrsquoordre de raison Paris Aubier 1968 2v

GUILLAUME P Manuel de Psychologie Paris Presses Universitaires de France 1966

GUILLAUME P La psychologie de la forme Paris Flammarion 1979

GUILLAUME P Psicologia da Forma Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1966

HEIDEGGER M Der Satz vom Grund Pfullingen Guumlnther Neske1957

HEIDEGGER M Holzwege Frankfurt Vittorio Klostermann 1952

HEIDEGGER M Identitaumlt und Differenz Pfullingen Guumlnther Neske 1978

HEIDEGGER M Le Principe de Raison Traduccedilatildeo Andreacute Preacuteau Paris Gallimard 1962

HEIDEGGER M Caminhos de Floresta Lisboa Calouste Gulbenkian 1998

HEIDEGGER M Questions II Paris Gallimard 1968

HEIDEGGER M Seleccedilatildeo de Textos Satildeo Paulo Abril Cultural 1973 (Os Pensadores)

HEIDEGGER M Sein und Zeit Frankfurt Vittorio Klostermann 1953

HORKHEIMER M Eclipse of reason Columbia University Press 1947

HUSSERL E Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendentale Phaumlnomenologie La Haye M Nijhoff 1954

HUSSERL E Gesammelte Schriften (Husserliana) The Hague Nijhoff 1950

HUSSERL E Gesammelte Schriften Cartesianische Meditationen Die Krisis der europaumlischen Wissenschaften und die transzendale Phaumlnomenologie Hamburg Felix Meiner Verlag 1992 Band 8

HUSSERL E Ideen II The Hague Martinus Nijhoff 1952

HUSSERL E Ideas pertaining to a pure phenomenology and a phenomenological philosophy Third book Traduccedilatildeo Ted E Klein e William E Pohl Boston The Hague London Martinus Nijhoff Publishers 1980

HUSSERL E Ideacutees directrices pour una pheacutenomeacutenologie et une philosophie pheacutenomeacutenologique pures Traduccedilatildeo Paul Ricœur Paris Gallimard 1950 Tome Premier

HUSSERL E Investigaciones loacutegicas Traduccedilatildeo Manuel G Morente y Joseacute Gaos Madrid Alinza Editorial 1982a 2v

376

HUSSERL E La crise des sciences europeacuteennes et la Pheacutenomeacutenologie transcendantale Paris Gallimard 1976

HUSSERL E La philosophie comme science rigoureuse Paris PUF 1993

HUSSERL E Lecciones de fenomenologia de la consciencia interna del tiempo Traduccedilatildeo introduccedilatildeo y notas Agustiacuten Serrano de Haro Madrid Editorial Trotta 2002

HUSSERL E Loacutegica Formal y loacutegica transcendental Traduccedilatildeo Luis Villoro Cidade do Meacutexico Centro de Estudios Filosoacuteficos 1962a

HUSSERL E Logische Untersuchungen In HOLENSTEIN E (Ed) Husserliana Haag Martinus Nijhoff 1975 v 18

HUSSERL E Lrsquoorigine de la geacuteometrie Traduction et introduction par Jacques Derrida Paris PUF 1962b

HUSSERL E Recherches pheacutenomeacutenologiques pour la constitution Traduccedilatildeo Eliane Escoubas Paris PUF 2004

HUSSERL E Renversement de la doctrine copernicienne la Terre comme archeacute-originaire ne se meut pas Traduccedilatildeo D Franck D Pradelle e JF Lavigne Paris Minuit 1989

HUSSERL E Studien uumlber Mathematik und Geometrie In STROHMEYER I (Ed) Husserliana Haag Martinus Nijhoff 1982b v 21

HUSSERL E Umstursz der kopernikanischen Lehre In ______ Philosophical Essays in Memory of Edmund Husserl Editado por M Farber Cambridge Harvard University Press 1940

JACOB F A Loacutegica da vida uma histoacuteria da hereditariedade Rio de Janeiro Graal 1983

JORLAND Geacuterard La science dans la philosophie Les recherches eacutepisteacutemologiques drsquoAlexandre Koyreacute Paris Gallimard 1981

JOSGRILBERG R de S O pensamento de Husserl e o conceito de Lebenswelt Goiacircnia Universidade Federal de Goiaacutes Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia Mestrado 2001 Notas feitas no curso do professor Rui de Souza Josgrilberg

KANT I Notes and Fragments Cambridge Cambridge University Press 2005 [Reflexatildeo 5073 de 1776-78 Ak 1879]

KANT I Criacutetica da Razatildeo Pura Traduccedilatildeo Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1994

KANT I Kritik der reinen Vernunft Hamburg Felix Meiner Verlang 1990

KELKEL A L Le legs de la Pheacutenomeacutenologie reception appropriation meacutetamorphose Paris Kimeacute 2002

KOFKA K Princiacutepios de psicologia da Gestalt Belo Horizonte Itatiaia 1980

KOumlHLER W Psicologia da Gestalt Belo Horizonte Itatiaia 1968

KOYREacute A Du monde clos agrave lunivers infini Paris Gallimard 1988

377

KOYREacute Alexandre Estudos de Histoacuteria do Pensamento Cientiacutefico Traduccedilatildeo Maacutercio Ramalho 2 ed Rio de Janeiro Forense 1991

KOYREacute A Eacutetudes drsquohistoire de la penseacutee philosophique Paris Gallimard 1971

KOYREacute A Eacutetudes newtoniennes Paris Gallimard 1968

LaCAPRA D Repensar la historia intellectual y leer textos In PALTI E J ldquoGiro Linguiacutesticordquo e Historia Intelectual Buenos Aires Universidad Nacional de Quilmes 1998 p 237-293

LACHIEZE-REY P LIdeacutealisme Kantien Paris Vrin 1950

LAVELLE L De lrsquoecirctre Paris Aubier 1947

LAVELLE L La philosophie franccedilaise entre les deux guerres Paris Aubier 1942

LAVELLE L La presence totale Paris Aubier 1962

LEBRUN G A noccedilatildeo de ldquosemelhanccedilardquo de Descartes a Leibniz In ______ A filosofia e sua histoacuteria Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2006a

LEBRUN G O cego e o filoacutesofo ou o nascimento da antropologia In ______ A filosofia e sua histoacuteria Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2006b

LEVINAS E Descobrindo a existecircncia com Husserl e Heidegger Lisboa Instituto Piaget 1997

LLAVONA R Itineraacuterio de Merleau-Ponty Madrid Syntagma 1973

LE SENNE Reneacute La Filosofia dello Spirito Turim SEI 1951

MERLEAU-PONTY M A Estrutura do Comportamento Traduccedilatildeo Joseacute de Anchieta Correcirca Belo Horizonte Interlivros 1975a

MERLEAU-PONTY M A Estrutura do Comportamento Traduccedilatildeo Maacutercia Valeacuteria Martinez de Aguiar Satildeo Paulo Martins Fontes 2006

MERLEAU-PONTY M A Natureza Traduccedilatildeo Aacutelvaro Cabral Satildeo Paulo Martins Fontes 2000a

MERLEAU-PONTY M A prosa do mundo Traduccedilatildeo Paulo Neves Satildeo Paulo

Cosac amp Naify 2002a

MERLEAU-PONTY M Causeries 1948 Paris Seuil 2002b

MERLEAU-PONTY M Eacuteloge de la Philosophie et autres essais Gallimard 1960

MERLEAU-PONTY M Elogio da Filosofia Traduccedilatildeo Antoacutenio Braz Teixeira Lisboa Guimaratildees Editores 1986

MERLEAU-PONTY M Fenomenologia da Percepccedilatildeo Traduccedilatildeo Carlos Alberto de Moura Satildeo Paulo Martins Fontes 1999

MERLEAU-PONTY M Filosofiacutea y lenguaje Buenos Aires Proteo 1969

378

MERLEAU-PONTY M La Nature Paris Seuil 1994

MERLEAU-PONTY M La structure du comportement Paris PUF 1942

MERLEAU-PONTY M Le Visible et lrsquoInvisible Paris Gallimard 1964a

MERLEAU-PONTY M LrsquoInstitution La passiviteacute Paris Belin 2003 Notes de cours au Collegravege de France (1954-1955)

MERLEAU-PONTY M LrsquoŒil et lrsquoEsprit Paris Gallimard 1964b

MERLEAU-PONTY M Lrsquounion de lrsquoacircme et du corps chez Malebranche Biran et Bergson Paris Vrin 2002c

MERLEAU-PONTY M Merleau-Ponty agrave la Sorbonne reacutesumeacute de cours 1949-1952 Paris Cynara 1988

MERLEAU-PONTY M Notes des cours au Collegravege de France 1958-1959 et 1960-1961 Paris Gallimard 1996

MERLEAU-PONTY M Notes ineacutedites de la Biliotegraveque Nationale ndash NBNF Documento organizado por Pascal Dupond mas natildeo publicado

MERLEAU-PONTY M O Olho e o Espiacuterito Traduccedilatildeo Luiz Manoel Bernardo Lisboa Vega1997a (Col Passagens)

MERLEAU-PONTY M O olho e o espiacuterito Traduccedilatildeo Paulo Neves e Maria Ermantina G G Pereira Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2004

MERLEAU-PONTY M O Primado da Percepccedilatildeo e suas consequumlecircncias filosoacuteficas Traduccedilatildeo Constanccedila Marcondes Ceacutesar Campinas Papirus 1990

MERLEAU-PONTY M O Visiacutevel e o Invisiacutevel Traduccedilatildeo Joseacute Artur Gianotti e

Armando Mora dOliveira Satildeo Paulo Perspectiva 1992

MERLEAU-PONTY M Palestras Traduccedilatildeo Artur Moratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 2002d

MERLEAU-PONTY M Parcours 1935-1951 Paris Verdier 1997b

MERLEAU-PONTY M Parcours deux 1951-1961 Paris Verdier 2000b

MERLEAU-PONTY M Pheacutenomeacutenologie de la perception Paris Gallimard 1945

MERLEAU-PONTY M Reacutesumeacutes de cours Collegravege de France 1952-1960 Paris Gallimard 1968

MERLEAU-PONTY M Sens et non-sens Paris Nagel 1966

MERLEAU-PONTY M Signes Paris Gallimard 1960

MERLEAU-PONTY M Signos Traduccedilatildeo Maria Ermentina Galvatildeo G Pereira Satildeo Paulo Martins Fontes 1991

MERLEAU-PONTY M Textos selecionados Seleccedilatildeo e traduccedilatildeo de Marilena Chauiacute Satildeo Paulo Abril Cultural 1975b (Coleccedilatildeo Os Pensadores)

379

MINKOWSKI E Au-delagrave du rationalisme morbide Paris LHarmattan 1997

MINKOWSKI E La Schizophreacutenie Paris Petite Bilbiothegraveque Payot 1997

MINKOWSKI E Le Temps Veacutecu Paris Presses Universitaires de France 1995

MINKOWSKI E Traiteacute de Psychopathologie Paris Les Empecirccheurs de Penser en Rond 1999

MONDOLFO R Problemas y meacutetodos de investigacioacuten en la historia de la filosofiacutea Buenos Aires Eudeba 1963

MOURA CAR Racionalidade e Crise Satildeo Paulo Discurso Editorial Editora da UFPR 2001

MOUTINHO L D S A ontologia do mundo vivido a gecircnese do sentido em Merleau-Ponty 1998 232 f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Deptamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1998

OLESEN Soslashren Gosvig LHeritage Husserlien chez Koyreacute et Bachelard In JENSEN U J NORDENBO S-E Danish Yearbook of Philosophy Copenhagen Museum Tusculanum Press 1994 vol 29

OLIVEIRA W C Merleau-Ponty a dimensatildeo ontoloacutegica do sensiacutevel 1994 138 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Filosofia) ndash Faculdade de filosofia e ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade Federal de Minas Gerais 1994

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo Maria Helena da Rocha Pereira Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001

POTALIS J B Apregraves Freud Paris Gallimard 1993

POLITZER G A filosofia e os mitos Traduccedilatildeo Eduardo Francisco Alves Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1978

POLITZER G Criacutetica dos fundamentos da psicologia Traduccedilatildeo Conceiccedilatildeo Jardim e Eduardo Luacutecio Nogueira Lisboa Presenccedila 1980

POTALIS J B Apregraves Freud Paris Gallimard 1993

PRADO JR B Alguns ensaios filosofia literatura psicanaacutelise Satildeo Paulo Paz e Terra 2000

PRADO JR B (Org) Filosofia da Psicanaacutelise Satildeo Paulo Brasiliense 1991

QUINET A Um olhar a mais ver e ser visto na psicanaacutelise Rio de Janeiro Zahar 2002

REVEL J-F La Connaissance Inutile Paris Eacuteditions Bernard Grasset 1988

REVEL J-F Pourquoi des philosophes Paris Julliard 1957

RICŒUR P Interpretation Theory discourse and the surplus of meaning Fort Worth Texas The Texas Christian University Press 1976

380

RICŒUR P Percurso do reconhecimento Traduccedilatildeo Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Satildeo Paulo Loyola 2006

ROBINET A Discussion Merleau-Ponty et lrsquohistoire de la philosophie In HEIDSIECK F Merleau-Ponty le philosophe et son langage Paris Vrin 1993 Recherches sur la philosophie et langage 15

RYLE G La pheacutenomeacutenologie contre The concept of Mind In CAHIERS DE ROYAUMONT La philosophie analytique Paris Minuit 1962

SAINT-AUBERT E de Du lien des ecirctres aux eacuteleacutements de lrsquoecirctre Merleau-Ponty au tournant des aneacutees 1945-1951 Paris Vrin 2004

SAINT-AUBERT E de Le sceacutenario carteacutesien Recherches sur la formation et la coheacuterence de lintention philosophique de Merleau-Ponty Paris Vrin 2005

SARTRE J-P Situaccedilotildees I Lisboa Europa-Ameacuterica 1968

SARTRE J-P Merleau-Ponty vivo In ______ Situaccedilotildees IV Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica 1972

SLATMAN J LrsquoExpression au-delagrave de la Repreacutesentation sur lrsquoaisthecircsis et lrsquoEstheacutetique chez Merleau-Ponty 2001 256f Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Faculteit der Geesteswetenschappen Gramsbergen 2001

TILLIETTE X Preacutesentation et Notes au Cours Husserl et la Notion de Nature In MERLEAU-PONTY M Parcours deux 1951-1961 Paris Verdier 2000

UEXKUumlLL J V Dos animais e dos homens digressotildees pelos seus proacuteprios mundos Doutrina do Significado Lisboa Livros do Brasil 1959

VALEacuteRY P La crise de lrsquoesprit In ______ Varieacuteteacute Œuvres complegravetes Paris Gallimard 1943 v 1

VILLELA-PETIT Maria Lrsquoaffectiviteacute de la couleur In BRISART R CEacuteLIS R La voix des pheacutenomegravenes contribuitions agrave une pheacutenomeacutenologie du sens et des affects Bruxelles Publications des Faculteacutes Universitaires Saint-Louis 1995

WAELHENS A de Une philosophie de lrsquoambiguiumlteacute rsquoexistentialisme de Maurice Merleau-Ponty Lovaina Nauwelaerts 1951

WERTHEIMER M Gestalt theory New York The Humanities Press 1938

Page 3: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 4: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 5: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 6: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 7: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 8: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 9: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 10: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 11: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 12: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 13: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 14: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 15: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 16: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 17: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 18: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 19: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 20: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 21: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 22: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 23: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 24: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 25: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 26: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 27: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 28: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 29: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 30: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 31: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 32: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 33: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 34: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 35: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 36: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 37: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 38: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 39: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 40: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 41: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 42: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 43: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 44: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 45: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 46: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 47: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 48: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 49: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 50: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 51: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 52: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 53: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 54: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 55: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 56: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 57: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 58: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 59: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 60: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 61: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 62: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 63: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 64: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 65: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 66: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 67: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 68: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 69: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 70: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 71: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 72: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 73: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 74: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 75: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 76: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 77: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 78: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 79: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 80: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 81: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 82: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 83: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 84: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 85: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 86: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 87: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 88: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 89: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 90: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 91: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 92: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 93: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 94: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 95: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 96: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 97: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 98: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 99: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 100: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 101: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 102: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 103: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 104: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 105: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 106: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 107: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 108: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 109: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 110: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 111: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 112: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 113: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 114: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 115: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 116: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 117: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 118: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 119: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 120: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 121: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 122: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 123: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 124: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 125: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 126: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 127: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 128: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 129: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 130: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 131: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 132: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 133: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 134: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 135: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 136: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 137: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 138: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 139: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 140: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 141: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 142: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 143: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 144: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 145: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 146: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 147: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 148: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 149: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 150: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 151: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 152: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 153: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 154: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 155: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 156: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 157: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 158: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 159: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 160: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 161: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 162: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 163: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 164: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 165: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 166: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 167: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 168: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 169: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 170: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 171: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 172: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 173: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 174: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 175: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 176: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 177: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 178: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 179: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 180: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 181: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 182: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 183: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 184: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 185: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 186: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 187: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 188: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 189: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 190: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 191: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 192: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 193: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 194: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 195: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 196: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 197: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 198: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 199: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 200: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 201: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 202: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 203: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 204: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 205: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 206: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 207: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 208: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 209: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 210: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 211: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 212: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 213: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 214: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 215: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 216: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 217: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 218: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 219: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 220: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 221: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 222: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 223: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 224: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 225: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 226: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 227: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 228: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 229: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 230: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 231: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 232: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 233: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 234: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 235: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 236: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 237: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 238: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 239: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 240: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 241: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 242: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 243: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 244: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 245: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 246: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 247: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 248: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 249: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 250: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 251: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 252: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 253: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 254: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 255: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 256: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 257: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 258: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 259: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 260: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 261: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 262: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 263: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 264: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 265: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 266: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 267: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 268: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 269: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 270: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 271: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 272: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 273: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 274: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 275: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 276: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 277: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 278: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 279: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 280: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 281: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 282: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 283: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 284: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 285: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 286: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 287: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 288: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 289: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 290: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 291: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 292: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 293: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 294: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 295: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 296: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 297: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 298: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 299: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 300: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 301: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 302: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 303: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 304: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 305: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 306: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 307: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 308: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 309: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 310: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 311: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 312: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 313: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 314: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 315: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 316: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 317: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 318: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 319: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 320: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 321: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 322: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 323: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 324: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 325: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 326: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 327: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 328: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 329: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 330: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 331: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 332: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 333: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 334: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 335: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 336: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 337: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 338: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 339: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 340: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 341: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 342: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 343: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 344: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 345: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 346: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 347: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 348: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 349: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 350: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 351: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 352: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 353: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 354: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 355: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 356: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 357: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 358: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 359: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 360: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 361: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 362: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 363: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 364: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 365: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 366: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 367: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 368: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 369: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 370: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 371: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 372: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 373: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 374: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 375: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 376: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 377: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 378: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques
Page 379: MERLEAU-PONTY E A CRISE DA RAZÃO Rodrigo Vieira Marques