o Gênero Discursivo 'Memorial de Formação

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  • 7/25/2019 o Gnero Discursivo 'Memorial de Formao'

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    ANAIS DO SETA, Nmero 1, 2007

    O GNERO DISCURSIVO MEMORIAL DE FORMAO

    Adriane Teresinha SARTORI1

    RSUM: Le mmorial de formation est um genre discursif qui exige larticulation desexpriences profissionelles et des cours de formation. Celle-ci doit tre analyse dans notre

    recherche parce que nous cryons quil y a un mouvement constant de discursivit entre temps : lepass, le prsent et le future. Une analyse plus ponctuelle de ce mouvement peut rvler laposition du sujet auteur partir de son dire et des re-significations construites pour le mmoriallui-mme.

    Enquadramento da pesquisa

    H muito a se dizer sobre memorial, mais ainda, sobre memorial de formao2.Fato indiscutvel, no entanto, a insero deste gnero no conjunto das abordagens queutilizam biografias, autobiografias, histria de vida, dirios, entre outros como recursosde investigao cientfica. A idia fundamental desse tipo de abordagem a de quecada vida humana se revela at em seus aspectos menos generalizveis como sntesevertical de uma histria social (Ferraroti, 1990:50).

    O pensamento hegemnico de que fazer cincia exige mtodos e tcnicas objetivase quantificveis, especialmente entre os anos 40 e 70, fez com que haja um recuo dessasconcepes nas cincias humanas. No entanto, no final dos anos 70, elas ressurgem norol de questionamentos que pem em xeque as certezas cientficas.3 A atenoconcedida s abordagens (auto)biogrficas no campo cientfico , portanto, a expressode um movimento mais amplo, que, faz reaparecer os sujeitos face s estruturas e aossistemas, a qualidade face quantidade, a vivncia face ao institudo. (Nvoa,1995:18).

    nesse contexto que a perspectiva (auto)biogrfica adquire significativaimportncia na rea educacional. A narrativa produzida em dirios, histrias de vida,memrias pode funcionar como uma das possibilidades que o professor concede a siprprio para melhorar a sua capacidade de ver e de pensar o que faz (Alarco,1996:126). Assim, no texto autobiogrfico, o professor faz um relato da prpria vida,procurando apresentar uma narrao repleta de acontecimentos a que confere o estatuto

    1 Doutoranda em Lingstica Aplicada no Programa de Ps-graduao do Instituto deEstudos da Linguagem-IEL/Unicamp. Email: [email protected]

    2 Carrilho et al. (1997), Passeggi (2000, 2006a, 2006b) e Prado e Soligo (2005) tmcontribuies importantes sobre a questo.

    3Santos (2004) destaca a importncia de Einstein (e sua teoria da relatividade), Heisenberge Bohr (e a constatao da interferncia dos instrumentos de pesquisa nos resultados), Gdel (e oteorema da incompletude e da inconsistncia de certos sistemas formais) e Prigogine (e sua teoriadas estruturas dissipativas) na construo dessa crtica.

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    de mais importantes, ou interessantes, no mbito de sua experincia como aluno ou jcomo profissional da educao. nesse sentido que o memorial torna-se uminstrumento pedaggico utilizado na formao de professores e se constitui numa formade registro reflexivo.

    A Universidade Estadual de Campinas, ao instituir o Proesf (Programa Especialpara Formao de Professores em Exerccio na Rede de Educao Infantil e PrimeirasSries do Ensino Fundamental da Rede Municipal dos Municpios da RegioMetropolitana de Campinas), designou, como um dos requisitos para a obteno dodiploma de graduao, a produo de um memorial de formaoao final do curso dePedagogia.4

    Atentemos para o fato de o memorial solicitado ser de formao. Conforme Prado eSoligo (2005:59-60):

    Sendo o memorial de formao,j se tem a ao mesmo tempo uma explicao e umfator limitante: o contedo, em linhas gerais, nossa formao e, mais, nossasexperincias e partes da histria de vida que se relacionam em essas duas dimenses.Mesmo que se opte por um texto mais livre, ainda assim estar referenciado no fato deque se trata de um memorial que de formao.Nessa perspectiva, pode-se trazer elementos da formao humana que entram naformao profissional: as reflexes que tiveram lugar a partir do curso do qual separticipa/participou e as mudanas decorrentes representam os pontos maissignificativos a serem abordados.

    O problema de pesquisa e a fundamentao terica

    Tomando como pressuposto as idias acima destacadas, nossa ateno recai sobre

    os memoriais de formao produzidos no Proesf. Queremos analis-los como gnerosdiscursivos. Isso significa dizer que so produto de uma determinada esfera de atividadehumana e apresentam trs dimenses essenciais e indissociveis (Bakhtin, 2003 [1952-1953]):tema contedo ideologicamente marcado; forma composicional elementos das estruturas comunicativas e semiticas

    compartilhadas pelos textos pertencentes ao gnero;estilo - marcas lingsticas especficas de linguagem, traos da posio enunciativa do

    locutor e da forma composicional do gnero.

    Analisar essas trs dimenses a primeira fase do nosso trabalho, na medida emque essa anlise pode nos revelar a complexidade do prprio gnero. No se trata, noentanto, de fragment-las; ao contrrio, pretendemos buscar elementos significativos

    que se apresentam na sua confluncia. Sendo o memorial de formao um textonarrativo de cunho autobiogrfico, no qual as memrias profissionais devem serapresentadas de forma articulada s experincias do curso de formao, dessa definioemergem, no mnimo, dois conceitos: narrativa e memria.

    4Os primeiros memoriais foram entregues em julho de 2005, data da concluso da primeiraturma.

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    Walter Benjamin (1994) atribui narrativa grande importncia, caracterizando-acomo a faculdade de intercambiar experincias. Como as aes da experincia estoem baixa (p.198), a arte de narrar est em vias de extino. Isso porque, segundo oautor, ela vtima de uma poca que valoriza o discurso no-narrativo como uma formaracional.

    Bruner (2001:140) tambm destaca enorme importncia ao narrar. Nas suaspalavras:

    vivemos num mar de histrias, e como os peixes que (de acordo com o provrbio) soos ltimos a enxergar a gua, temos nossas prprias dificuldades em compreender oque significa nadar em histrias. No que no tenhamos competncia em criar nossosrelatos narrativos da realidade longe disso, somos, isso sim, demasiadamente

    versados. Nosso problema, ao contrrio, tomar conscincia do que fazemosfacilmente de forma automtica.

    A memria, para ns, um processo ativo de ressignificao de um passado que sereconstri dinamicamente na sua relao com o presente. Nesse sentido, necessrio serdesmistificar algumas idias correntes sobre ela: memria como mecanismo de registroe reteno, depsito de informaes; como algo acabado no passado e que se transportapara o presente, ou ento, algo que se resgata desse passado. (Meneses, 1992).

    Concordando com Bosi (1979:17), no seu clssico trabalho sobre lembranas develhos, memria trabalho; lembrar no reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,com imagens e idias de hoje, as experincias do passado.

    Levando-se em considerao os estudos sobre narrativa e sobre memria, podemosdesvelar um importante movimento discursivo que constitui o memorial de formao.Ao articular experincias profissionais e experincias do curso de formao,observamos que o professor-aluno relaciona permanentemente experincias do passadoe do presente, tendo sempre subjacente a esses dois tempos, o futuro, se entendermosque s no futuro est o centro real da gravidade da minha determinao de mimmesmo.5 (Bakhtin, 2003 [1952-1953] :115). A anlise desse movimento pode nosrevelar as diferentes vozes que o docente articula (especialmente a dele e a da academia)e, conseqentemente, a viso de autor que sustenta esse processo. Simultaneamente, umestudo da conjuno desses elementos pode nos ajudar a construir a concepo dosujeito autor sobre o prprio gnero memorial de formao. No nosso trabalho,queremos investigar esses aspectos exatamente porque eles so a essncia desse gnero.Interessam-nos, portanto, as seguintes questes: em que momentos do fio discursivonarrativo emerge o presente? Com o que do presente o professor-aluno (re)significa opassado? De que recursos lingsticos se vale ele para concretizar essa articulao? Apartir da presena de vozes diferentes, que sujeito autor possvel depreender do que se

    5A concepo de memria de futuro, em Bakhtin, tem uma dimenso bastante complexae, por isso, no se restringe simples idia de relao temporal. Trata-se, antes, de umaconcepo embasada numa viso de indivduo como ser heterogneo e inacabado. Geraldi (2005:21) assim resume esse pensamento: do ponto de vista bakhtiniano, no mundo da vidacalculamos, a todo o instante, com base na memria do futuro desejado, as possibilidades deao no presente.

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    apresenta? Da tessitura do texto, que (re)significaes do memorial o sujeito autorconstri?

    Nosso intuito ao realizar essa investigao, como j frisamos, melhorcompreender o memorial de formao enquanto gnero discursivo. O fim ltimo denossa pesquisa analisar o potencial desse gnero na formao de professores,contribuindo para a rea que necessita de novas possibilidades de intervenopedaggica, visando a reflexos significativos na qualidade de ensino do nosso pas.

    Apresentao de alguns dados

    Para concretizar nosso trabalho, estamos analisando, especialmente conformereferencial bakhtiniano, quarenta memoriais produzidos no Proesf, vinte deles entregue

    no ano de 2005, primeira turma6, e outros vinte da turma de 2006. Selecionamosmemoriais de cidades diferentes, visando ter uma amostra da produo dos trs plos deatuao do Proesf: Vinhedo, Americana e Campinas.

    A fim de compreender o processo de produo dos memoriais, acompanhamos asaulas das disciplinas oferecidas pelo Programa aos professores-alunos, bem como fomosleitores7durante a escrita dos mesmos.

    Da anlise at agora realizada ressalta-se que ela ainda incipiente podemosapresentar alguns dados preliminares. Eles referem-se s diferentes formas dearticulao dos tempos pelos professores-alunos.

    Exemplo 1:A avaliao em educao infantil precisa resgatar urgentemente o sentido essencial deacompanhamento do desenvolvimento e de reflexo permanente sobre as crianas em

    seu cotidiano, como elo na continuidade da ao pedaggica.(Hoffmann, 1996:48). Adisciplina de Avaliao do Proesf fez-me compreender que a citao acima no faziaparte de minha prtica, pois quando avaliava as crianas [...] A avaliao, para mim,tinha sentido classificatrio e excludente [...]. Hoffmann (2000) nos diz que a avaliaotendo sentido classificatrio rompe com o processo onde a avaliao complemento daeducao, no se pode separ-los.Hoje no vejo a avaliao da mesma forma que antes, mas sim como uma maneira decontribuir para a melhoria da aprendizagem [...] (MF 12, turma de 2006).

    Alm de marcar-se no texto especialmente atravs do uso da primeira pessoa caracterstica estilstica do gnero, se pensarmos tratar-se de um texto autobiogrfico -,a autora articula experincias da formao e experincias do curso numa relaotemporal explcita: as experincias profissionais esto no passado, enquanto o curso de

    formao foi o responsvel por fazer o professor-aluno mudar de opinio, agoraexpressa no presente. O movimento que caracteriza esse discurso o de quem diz queantes do curso pensava e agia de determinada forma, agora pensa e age de forma

    6O Proesf formar quatro turmas at dezembro de 2007, cerca de 1.600 professores.7Leitor o aluno de ps-graduao da Unicamp que faz a correo da primeira verso do

    texto para o professor-aluno reescrev-lo em seguida.

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    diferente. O autor sinaliza essa relao temporal pelo uso de tempos verbaisdiferenciados (fez, avaliava, tinha / vejo) e o uso do advrbio hoje no incio do ltimopargrafo aqui descrito.

    Exemplo 2:Foi muito discutido no grande grupo que a reflexo sobre os acontecimentos do presentequanto os do passado favorecem a formao de um aluno crtico, reflexivo e conscientedo seu papel enquanto cidado.Na Educao Infantil inicio o trabalho com meus alunos pela histria deles, para quereflitam sobre os acontecimentos passados e presentes.(MF 8, turma 2006).

    O uso do presente (inicio) sugere que a prtica de iniciar o trabalho com os

    discentes a partir de suas histrias j estava incorporada ao fazer pedaggico doprofessor-aluno. Nesse sentido, as reflexes do curso o estimulam a continuar. Arelao presente e passado configura-se num movimento diferente do primeiro exemplo,no qual houve ruptura com uma prtica. Aqui, o passado tem uma concepo decontinuidade, e o presente se coaduna a ele.

    Exemplo 3:Dentro da disciplina Teoria Pedaggica e Produo em Histria, vi de forma maisprofunda o que Histria. [o professor-aluno traz autores que definem Histria]. Istome faz recordar a poca em que estudava no primeiro grau e me foram apresentadosfatos sobre a Independncia do Brasil. (MF 6, turma de 2006).

    H aqui um passado recente, o curso de formao, e um passado distante, o perodo

    em que o professor-aluno era estudante. O passado recente o responsvel por fazer osujeito, no presente observemos o verbo fazer (faz) -, ressignificar a poca em queestudava.. Nesse sentido, no um aspecto da atividade profissional que est sendoreavaliado, mas uma experincia de vida estudantil, fato tambm significativo seconsiderarmos que, no processo de relatar experincias, ser professor tem relao diretacom ser aluno8.

    Exemplo 4:O professor deve se preocupar em criar condies para que a autonomia seja construdae respeitada, intervindo o mnimo possvel agindo mais como mediador e no comodetentor do conhecimento. (MF 2, turma 2006).

    H uma perspectiva de presente/futuro neste exemplo, apesar da utilizao do

    tempo presente no verbo dever (deve). Com essa modalidade dentica (dever), oprofessor-aluno acredita que as proposies que defende so obrigatrias, e a reside aperspectiva de futuro. O relato narrativo praticamente abandonado, em prol de umdiscurso mais argumentativo; conseqentemente, o passado tambm desaparece. Hgeneralizaes (observe-se o uso de o professor), implicando um autor que atualiza a

    8Essa questo est sendo desenvolvida na tese.

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    voz da academia - a palavra autoritria, segundo Bakhtin (1998 [1934-1935]:143) erevela pouco de suas prprias experincias.

    Algumas consideraes

    Esses poucos exemplos nos fazem perceber que h articulaes diferenciadas entrepassado/presente/futuro nos memoriais de formao. O futuro, alm de participar dodiscurso explcito do professor-aluno, est subjacente a tudo o que se diz e constitui oque, na perspectiva bakhtiniana, denomina-se memria de futuro. O passado pode serrelato de prtica profissional ou de experincias do tempo de estudante, da mesmaforma que diferentes aspectos do curso de formao so referenciados pelosprofessores-alunos, utilizando tempos tambm variados. Esse movimento entre

    presente/passado/futuro pode revelar posicionamentos antagnicos assumidos pelosujeito autor sobre o seu dizer, bem como ressignificaes tambm diferenciadas sobreo prprio memorial de formao.

    _______________________Referncias Bibliogrficas:

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