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PAZ VIOLENTA NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DO CONFLITO ENTRE CHILE E BOLÍVIA. Rafael Eduardo da Paixão Lima 1 RESUMO Os estudos de segurança da América Latina são abordados, em sua maioria, pela teoria do Complexo Regional de Segurança e da Comunidade de Segurança. Essas perspectivas analisam a segurança da região através das instituições, da identidade e de valores comuns que geram uma confiança mútua entre os Estados. No entanto, a teoria da paz violenta argumenta que, apesar de não haver guerras recorrentes na região, há o uso frequente da força em barganhas militarizadas. O objetivo desse trabalho é verificar as variáveis da teoria da paz violenta na militarização da disputa das águas do Silala, fronteira entre o Chile e a Bolívia. Os dois países têm relações fronteiriças conflituosas desde a Guerra do Pacífico (1879-1883). Para isso foram utilizados o método histórico-comparativo (MHC) e a ferramenta do process tracing. Conclui-se que todas as variáveis analisadas contribuíram para o uso da força por parte do Chile e através do uso do MHC realizou-se uma hierarquização das principais variáveis. Palavras-chave: Paz Violenta; Segurança Internacional; América Latina; Método histórico-comparativo. ABSTRACT Latin American security studies are predominantly addressed by the theory of Regional Security Complex and of Security Communities. These perspectives analyze the regional security through the institutions, the identity and the common values that generate mutual trust between the States. However, the theory of violent peace argues that although there are no recurrent wars in the region, there is frequent use of force in militarized bargains. The objective of this study is to verify the violent peace theory variables in the militarization of the dispute of Silala's water, frontier between Chile and Bolivia. Both countries have conflicting frontier relations since the War of the Pacific (1879-1883). To achieve this aim, the historical comparative method (HCM) and the process tracing tool were used. It was concluded that all the variables contributed to use of force by Chile and through the use of HCM a hierarchization of the main variables was conducted. Key words: Violent Peace; International Security; Latin America; Historical- comparative method. 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEEI-UFRGS). O autor agradece as contribuições do prof. Dr. Júlio César Cossio Rodrigues na construção do trabalho. Contato: [email protected]

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PAZ VIOLENTA NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE DO CONFLITO

ENTRE CHILE E BOLÍVIA.

Rafael Eduardo da Paixão Lima1

RESUMO

Os estudos de segurança da América Latina são abordados, em sua maioria, pela teoria

do Complexo Regional de Segurança e da Comunidade de Segurança. Essas perspectivas

analisam a segurança da região através das instituições, da identidade e de valores comuns

que geram uma confiança mútua entre os Estados. No entanto, a teoria da paz violenta

argumenta que, apesar de não haver guerras recorrentes na região, há o uso frequente da

força em barganhas militarizadas. O objetivo desse trabalho é verificar as variáveis da

teoria da paz violenta na militarização da disputa das águas do Silala, fronteira entre o

Chile e a Bolívia. Os dois países têm relações fronteiriças conflituosas desde a Guerra do

Pacífico (1879-1883). Para isso foram utilizados o método histórico-comparativo (MHC)

e a ferramenta do process tracing. Conclui-se que todas as variáveis analisadas

contribuíram para o uso da força por parte do Chile e através do uso do MHC realizou-se

uma hierarquização das principais variáveis.

Palavras-chave: Paz Violenta; Segurança Internacional; América Latina; Método

histórico-comparativo.

ABSTRACT

Latin American security studies are predominantly addressed by the theory of Regional

Security Complex and of Security Communities. These perspectives analyze the regional

security through the institutions, the identity and the common values that generate mutual

trust between the States. However, the theory of violent peace argues that although there

are no recurrent wars in the region, there is frequent use of force in militarized bargains.

The objective of this study is to verify the violent peace theory variables in the

militarization of the dispute of Silala's water, frontier between Chile and Bolivia. Both

countries have conflicting frontier relations since the War of the Pacific (1879-1883). To

achieve this aim, the historical comparative method (HCM) and the process tracing tool

were used. It was concluded that all the variables contributed to use of force by Chile and

through the use of HCM a hierarchization of the main variables was conducted.

Key words: Violent Peace; International Security; Latin America; Historical-

comparative method.

1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (PPGEEI-UFRGS). O autor agradece as contribuições do prof. Dr. Júlio

César Cossio Rodrigues na construção do trabalho. Contato: [email protected]

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INTRODUÇÃO

Os estudos de segurança da América Latina têm sido dominados pela dinâmica da

comunidade de segurança, que tem como pressuposto básico que os países da região

caminham cada vez mais para o avanço da integração econômica, cooperação entre os

países e uma maior institucionalização. Nessa perspectiva, os problemas de segurança

entre os países da região estão interligados de tal forma que não é possível a sua resolução

individual (FUCCILLE; REZENDE, 2013, p.79). Além disso, há uma estabilidade

duradoura gerada pela aparente ausência de ameaças. Por outro lado, a teoria da paz

violenta argumenta que viver em paz com seus vizinhos significa que um Estado não

espera ser confrontado por outro através de mobilizações militares, ameaças físicas e

ameaças verbais. No entanto, na América Latina, embora não tenha grandes ocorrências

de guerras recentemente, há com bastante frequência incidentes militarizados. Portanto,

a região ainda não é, e pode nunca se tornar, uma comunidade de segurança pacífica

(MARES, 2012).

A teoria da paz violenta de Mares (2001) desenvolve um modelo teórico para

tentar responder à pergunta: por qual motivo os Estados da região usam a força militar

uns contra os outros? A partir da análise das cinco variáveis desenvolvidas pelo autor –

estratégia político-militar, a estratégia de balança com o país rival, as características da

força militar usada, custos aceitáveis pelo eleitorado do líder e accountability – ele propõe

analisar o comportamento do líder, que só vai tomar a decisão de usar a força militar se

perceber que o eleitorado está disposto a arcar com os custos. O uso dessa força não

necessariamente implica em guerra, mas por vezes pode ocorrer por falha do cálculo do

tomador de decisão.

O objetivo desse artigo é analisar as variáveis da paz violenta no caso da disputa

das águas do Silala entre o Chile e Bolívia. O rio, que nasce em território boliviano e se

estende até o território chileno, é reivindicado pelo Chile como águas internacionais e,

portanto, deve ser utilizado de acordo com o direito internacional através do Tratado de

Paz assinado pelos dois países em 1904, que pôs fim a Guerra do Pacífico. Já a Bolívia

alega que o Chile deve pagar pelo uso das águas porque essas não são um rio

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internacional, mas sim um manancial boliviano. Em 2016 o presidente da Bolívia, Evo

Morales, acusou o Chile de colocar uma base militar a 15 quilômetros da fronteira como

uma tentativa de intimidar o país. O Chile alega em sua defesa que a base não foi colocada

tão próxima e que sua função é auxiliar uma pequena comunidade chilena que sofre por

carência de estrutura e da violência de contrabandistas. As relações fronteiriças entre os

dois países é um tema de tensão desde que a Bolívia perdeu o território de Antofagasta

na Guerra do Pacífico no final do século XIX, tornando-se um país mediterrâneo, ou seja,

sem acesso ao mar.

Para auxiliar na análise das variáveis desenvolvidas na teoria da paz violenta foi

usado o Método Histórico-Comparativo (MHC) que se caracteriza por sua grande

preocupação com as relações causais, com ênfase no processo e o uso de comparações

sistemáticas. Junto a esse método, foi utilizada também a ferramenta do process tracing

que serve para fazer inferências descritivas e causais a partir de evidências empíricas. A

partir do uso dessa ferramenta pode-se confirmar ou contestar as relações entre as

variáveis encontradas ao longo dos processos históricos.

Dessa forma, o presente trabalho divide-se em três sessões, além dessa introdução

e da conclusão. Inicialmente, se discute os principais pressupostos teóricos da paz

violenta e como essa discussão se insere no debate das teorias predominantes nos estudos

de segurança da região. Na sessão seguinte é apresentada a disputa entre Chile e Bolívia,

mostrando a Guerra do Pacífico como um antecedente histórico e o impacto nas relações

bilaterais entre os dois países. Aqui, foi realizada a análise das cinco variáveis da teoria

da paz violenta aplicadas ao caso. A terceira sessão trata de uma análise das variáveis da

paz violenta sob a perspectiva do Método Histórico-Comparativo, que permitiu a

hierarquização das variáveis a partir da observação do seu comportamento no caso.

Portanto, foram discutidas as principais condicionantes que resultaram na militarização

do conflito entre Chile e Bolívia.

1. A SUPERESTIMAÇÃO DA PAZ NA AMÉRICA LATINA

Na produção acadêmica de Relações Internacionais há uma percepção equivocada

que a América Latina é uma região pacífica e que há poucos problemas de segurança

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relevantes que poderiam desencadear em uma guerra na região. No entanto, dados do

Correlates of War 2 mostram que entre os anos de 1946 a 2007 ocorreram 38 guerras no

mundo. Três dessas guerras aconteceram na América Latina: – 1969 (El Salvador e

Honduras), 1982 (Argentina e Reino Unido), e em 1995 (Equador e Peru) – quatro

ocorreram na Ásia e na Europa, cinco no subcontinente indiano e a maioria das outras

guerras aconteceram no continente africano e no Oriente Médio, provando que a média

de guerras que ocorreram na América Latina não é estatisticamente muito diferente dos

outros continentes. Porém, considerando o padrão de definição de guerra (1.000 mortos

em batalha) ela é, estatisticamente, insignificante porque é rara levando em conta o

universo das relações entre os Estados (MARES, 2016).

No entanto o uso da força militar nas relações interestatais é recorrente e as

disputas militarizadas interestatais estão presentes com muita frequência não só na

América Latina, mas também em todo o mundo. De acordo com o Correlates of War,

entre 1993 a 2001 aconteceram 300 disputas militarizadas interestatais no mundo, desse

total, 39 na América Latina. Entre os anos de 2002 a 2010 houveram 262 disputas

militarizadas interestatais, 15 na América Latina3. Um exemplo dessa disputa ocorreu

entre Nicarágua e Colômbia, que estiveram envolvidos em um desentendimento sobre

águas territoriais e direito de pesca no Mar do Caribe. A disputa aconteceu no arquipélago

San Andres e Providencia que pertence a Colômbia de acordo com o tratado em 1928.

Em 1994, a Nicarágua deteve dois barcos de pesca colombianos alegando que eles

estavam em suas águas territoriais. Esse episódio causou um “conflito diplomático” e,

apesar da Nicarágua ter se mostrado disposta a resolver pacificamente esses incidentes

eles continuaram ocorrendo.

Ainda de acordo com o Correlates of War, além da Colômbia, a Nicarágua

também tem conflitos em relação às águas territoriais com Honduras. No início dos anos

2000, o vice-ministro das Relações Exteriores da Nicarágua pediu a Honduras que

cumprisse com a promessa de acabar com o acampamento militar na ilha de Cayo Sur,

no Caribe. Acrescentou também que suas forças sabiam “como lutar” e que tinha

2 Projeto desenvolvido na Universidade de Michigan, Estados Unidos. O banco de dados pode ser acessado

em: http://www.correlatesofwar.org/data-sets 3 Disponível em: <http://www.correlatesofwar.org/data-sets/MIDs> Acesso em 10 de agosto de 2018.

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tecnologia moderna para isso. Quatro dias depois, barcos dos dois países se enfrentaram

no Golfo de Fonseca. Um segundo incidente aconteceu dias depois, quando a Nicarágua

alegou que um navio da marinha de Honduras entrou em suas águas territoriais e abriu

fogo contra dois barcos de patrulha nicaraguense que estavam estacionados em uma área

contra a pesca ilegal. As tensões entre os dois países começaram a diminuir com um

acordo feito na Organização dos Estados Americanos (OEA) no qual os países

concordaram em realizar patrulhas juntos até que o caso fosse resolvido pelo Corte

Internacional de Justiça (CIJ). No entanto, a Nicarágua continuou a confiscar os barcos

de pescas da Honduras, alegando que estavam pescando em suas águas territoriais, até

que em maio de 2000 os dois países concordaram em marcar suas fronteiras marítimas.

Considerando todos esses episódios de barganhas militarizadas, a teoria da paz

violenta, desenvolvida por Mares (2001), busca entender o motivo pelo qual os Estados

da região usam a força militar uns contra os outros e mantêm, ao mesmo tempo, uma

retórica da paz. A hipótese da teoria da paz violenta é que os líderes usam a política

externa para conseguir metas pessoais e coletivas para seus eleitores nacionais. Nesse

caso, o líder só vai optar pelo uso da força militar se a partir de um cálculo ele identificar

que os eleitores estão dispostos a arcar com os custos do uso da força e se ele pode

sobreviver no poder com o descontentamento se os custos forem muito altos.

Os líderes responsáveis pelo processo de tomada de decisão normalmente

negociam sem que haja a necessidade do uso da força militar. No entanto, quando há um

desentendimento entre dois ou mais Estados e um deles tem capacidades militares, esse

pode usar sua força para influenciar nas negociações, tornando assim uma barganha

militarizada. O uso dessas capacidades militares pode variar entre uma ameaça verbal até

a aplicação da força militar em larga escala de violência. Na barganha militarizada, a

guerra não é o resultado buscado, porém, ela pode acontecer pela dinâmica da escalada

da violência ou por erro de cálculo do uso da força (MARES, 2001).

Mares (2001) afirma que o uso da força militar é influenciado pela combinação

dos seguintes fatores: a estratégia político-militar para o uso da força (S), o balanço

estratégico com o país rival (SB), as características da força militar usada (CF). Dessa

forma, o líder só vai, talvez, optar pelo uso da força quando a soma da combinação desses

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fatores seja igual ou menor que os custos aceitáveis pelo eleitorado do líder (CC), menos

o accountability produzidos por meio das instituições domésticas (A).

S + SB + CF ≤ CC – A. Talvez o líder decida usar a força

S + SB + CF > CC – A. A força não será usada

Na primeira variável, estratégia político-militar, o autor aponta cinco diferentes

estratégias: (a) manter a questão viva. No caso o líder percebe que o custo da resolução

da disputa é maior do que o custo que sua base eleitoral está disposta a aceitar ele não vai

buscar uma resolução, pelo contrário, vai manter a disputa viva internacionalmente; (b)

afetar as negociações bilaterais; (c) defender o status quo; (d) atrair o apoio de uma

terceira parte e; (e) impor uma solução – nesse caso o baixo nível do uso da força não é

capaz de produzir esse resultado, geralmente essa estratégia é acompanhada por o uso da

violência em larga escala. O balanço estratégico, segunda variável, se refere aos recursos

que são relevantes para influenciar o custo produzido pela estratégia que cada Estado

pode usar. Mares (2001) elenca três recursos úteis para essa estratégia: recursos

diplomáticos, recursos econômicos e recursos militares. As características da força, o

terceiro fator discutido por Mares (2001), se divide em duas: mobilização doméstica (o

tempo no qual a oposição doméstica e internacional tem para se organizar) e as forças

alternativas (o nível do custo político para o líder, na qual eles devem levar em

consideração o custo do uso do exército, marinha e força aérea). Na aceitabilidade dos

custos pelo eleitorado, quarta variável, Mares (2001) argumenta que o eleitorado, em um

sistema democrático, não é composto por todas as pessoas que votam, mas apenas por

aquelas que votam na permanência do líder no poder e aquelas pessoas cujo apoio é

fundamental para sua reeleição. Em um regime ditatorial o eleitorado vai ser formado

pelos oficiais militares e as elites econômicas que têm grande influência sobre o país.

Portanto, é necessário olhar cada caso em especifico para determinar quem é o eleitorado.

O grau de accountability, a última variável da teoria da paz violenta, envolve a

sensibilidade do líder de avaliar os custos do eleitorado que é determinada pela estrutura

institucional do accountability do líder. Mares (2001) argumenta que existem três fatores

cruciais que determinam o grau de accountability do líder: (a) o intervalo eleitoral, que

afeta a velocidade na qual o uso da força pode ser sancionado internamente; (b) a

possibilidade de reeleição que pode constranger o comportamento do líder e por fim; (c)

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a possibilidade de legado que é fundamental para determinar a força do grupo político

que o líder pertence.

A teoria da paz violenta nos permite o diálogo com a teoria do realismo

neoclássico das Relações Internacionais. O modelo de decisão do uso da força

internacionalmente, desenvolvido por Mares (2001), é baseado em seis pressupostos

teóricos que definem o contexto no qual a política externa é desenvolvida: a anarquia

internacional; a racionalidade e a busca por interesses próprios do Estado; a existência da

hierarquia e das metas nacionais; eleitores heterogêneos na política doméstica; tomadores

de decisão que tentam usar a política externa para permanecer no poder e; informações

incompletas, tanto domesticamente como internacionalmente. Como argumentam

Ripsman, Taliaferro e Lobell (2016), o realismo neoclássico nos permite uma análise de

política externa considerando os fatores sistêmicos e os fatores domésticos. Portanto, se

mostra mais adequada para uma aproximação com a teoria da paz violenta, uma vez que

a paz violenta também leva em consideração a observação dos fatores internos que

influencia os tomadores de decisão na hora do uso da força militar.

1.1 Segurança na América Latina

Os estudos de segurança regional têm sido dominados pela teoria do complexo

regional de segurança (CRS). Buzan e Wæver (2003) desenvolveram essa teoria levando

em consideração alguns elementos como: as regiões são apropriadas enquanto níveis de

análise dos estudos de segurança; as regiões constituem organizações úteis e estrutura

para realização de estudos empíricos; as regiões fornecem cenários analíticos para testar

possíveis desenvolvimentos no futuro. Um CRS, como argumentam Fuccille e Rezende

(2013), é quando os problemas de segurança de um grupo de Estados, seus processos de

securitização e dessecuritização, estão interligados não permitindo uma resolução

individual desses problemas. Ainda de acordo com os autores, a teoria do complexo

regional de segurança reconhece que, apesar dos problemas serem regionais, não deixam

de sofrer influências globais, permitindo uma aproximação da análise construtivista com

a teoria realista. Alguns pontos que permitem essa proximidade com o realismo são: os

CRS se organizam em um ambiente onde predomina a anarquia do sistema internacional;

o Estado continua sendo o principal ator das relações internacionais ainda que haja outros

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atores; e se considera a importância da balança de poder regional para a análise dos

cenários de segurança e a percepção de ameaças.

Sebben (2011), por sua vez, realiza uma análise dos estudos de segurança

internacional mostrando a dicotomia entre a perspectiva da paz violenta e a comunidade

de segurança. Essa última vem ganhando cada vez mais visibilidade nos estudos de

segurança da América do Sul. De acordo com o autor, em uma comunidade de segurança

existe a presença de valores, identidades e significados comuns entre os Estados, assim

também como relações diretas e múltiplas, o desenvolvimento dos canais de comunicação

e a reciprocidade e altruísmo entre os Estados. Tudo isso colabora, segundo essa

perspectiva analítica, para que exista na região uma relação que mantêm expectativas

confiáveis de mudanças pacíficas. Sebben (2011) argumenta que esses processos de

integração regional, que mostram a expectativa de mudanças pacíficas, não podem ser

ignorados. Porém, a abordagem da comunidade de segurança não explica os conflitos que

existem na região, a competição militar, assim também como as dificuldades de

aprofundar o processo de integração. Por outro lado, a teoria da paz violenta, apesar de

não captar as iniciativas de integração regional tem, na visão do autor, um poder

explicativo maior que a comunidade de segurança para entender as dinâmicas da América

do Sul.

2. DISPUTAS MILITARIZADAS: O CASO DO CHILE E BOLÍVIA

A Guerra do Pacífico foi a grande responsável pelo abalo das relações bilaterais

entre Chile e Bolívia até os dias atuais. Canaveze (2010) argumenta que as definições de

fronteiras na região, logo após a independência, foram um tema de bastante controvérsia.

No que se refere à Guerra do Pacífico, o deserto do Atacama era uma fronteira natural

entre o Chile e Bolívia. A Bolívia concentrou muitos investimentos no porto de Cobija,

litoral do Atacama, na tentativa de impulsionar o comércio exterior do país. Todavia, o

Peru – que iniciou um processo de integração com a região de Antofagasta, província

boliviana, devido à confederação entre os dois países – dominava as atividades

econômicas no porto de Arica. O Chile, que detinha o predomínio do capital no ramo

comercial e do minério na região, reivindicava para si a posse da parte sul da província

boliviana de Antofagasta. Desse modo, a Bolívia se juntou com o Peru, que também temia

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os interesses expansionistas chilenos, e assinaram um tradado secreto sobre assistência

mútua em caso de agressões externas em 1873. Em 1874, um novo tradado de delimitação

de fronteiras foi estabelecido entre o Chile, que renunciava as ambições sobre os demais

territórios, e a Bolívia, que se comprometeu a não criar novos impostos e não realizar

nenhum reajuste tributário aos capitais industriais chilenos pelos próximos 25 anos. O

descumprimento do tratado por parte da Bolívia, em 1878, quando o congresso boliviano

aprovou um reajuste tributário nas exportações de salitre devido à crise interna que o país

estava passando foi o estopim da guerra.

A Bolívia se manteve firme em sua posição de cobrar o reajuste e a empresa

chilena, La Compañía de Salitres y Ferrocarril de Antofagasta, negou-se a pagar, o que

gerou tensões com o governo boliviano. A partir disso, a Armada Chilena, com 500

homens, bloqueou o porto e ocupou a cidade de Antofagasta. O governo chileno lançou

um ultimato à Bolívia com a finalidade de abrir mão das pretensões fiscais. No entanto,

o governo de La Paz seguiu firme, cortou relações com Santiago e começou a preparar

seu exército (CANAVEZE, 2010). Em abril de 1884 foi assinado, na cidade portuária de

Valparaíso no Chile, o pacto de trégua entre Chile e Bolívia no qual se estabeleciam as

diretrizes do relacionamento entre as partes. No tratado, que foi composto de oito artigos,

estava presente a questão dos novos territórios em posse do Chile. Já o Tratado de Paz

entre os dois países só foi assinado em 20 de outubro de 1904, no qual a Bolívia se

converteu, definitivamente, em um país sem acesso ao mar (BARRIVIERA, 2015).

Já no período mais recente, a Bolívia e o Chile também protagonizam uma disputa

em torno do rio Silala. O rio, que fica no território da Bolívia perto da fronteira com o

Chile e entra no território chileno, é considerado pelas autoridades chilenas como um rio

internacional com base no Tratado de Paz de 1904. O mesmo não acontece entre as

autoridades bolivianas, que o consideram um manancial nacional boliviano e que foi

desviado para o Chile através de canais artificiais. Em março de 2016, no Dia do Mar, o

presidente boliviano, Evo Morales, fez um discurso no qual abordou temas relacionados

à reivindicação marítima – já que nessa data estava completando um ano que a Bolívia

anunciou a sua demanda na CIJ contra o Chile por uma saída soberana ao mar – e, além

disso, se pronunciou em defesa das águas do rio Silala. Na ocasião o presidente boliviano

afirmou que “a cada dia o Chile se aproveita ilegalmente e astuciosamente desse recurso

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natural sem compensar nem um centavo. Esse ato abusivo e arbitrário, que viola nosso

patrimônio, não pode continuar”4. O ministro das relações exteriores do Chile, Heraldo

Muñoz, logo se manifestou em relação ao posicionamento do presidente boliviano

dizendo que “O Chile não aceita ameaças e nem diálogos com condições” e acrescentou

em relação a como o país pode defender seus interesses em Silala que “O Chile também

pode iniciar ações judiciais contra Bolívia nas instancias internacionais5”. Em 6 de junho

de 2016 a presidenta chilena, Michele Bachelet, em entrevista à rádio Zero declarou a

decisão de demandar a Bolívia diante da Corte Internacional de Justiça o caso do rio

Silala6.

Antes do Chile realizar a demanda contra a Bolívia na CIJ o país apresentou um

comportamento coercitivo em um episódio de militarização. O Exército do Chile instalou

uma base militar chamada “Patrulha Cariquima” a 15 quilômetros da fronteira com a

Bolívia com o objetivo, de acordo com o Governo do Chile, de aumentar sua presença

militar nas regiões mais remotas do território chileno e para controlar a região fronteiriça

contra bolivianos que tentam realizar tráfico de drogas. A base militar faz parte do Plano

Estratégico de Desenvolvimento das Forças para o Ano de 2026. Além dessa base militar,

está previsto a recuperação e remodelação dos quartéis de Camiña, na região de Tarapacá,

e de Ascotán, na região de Antofagasta, para serem utilizados como centro de

treinamento. A Patrulha Cariquima dispõe de tecnologia de satélite, internet para manter

os militares conectados com o restante do país, água, combustível e de acomodação

necessária para que o pessoal militar possa realizar patrulhas de longa duração7.

A presença militar chilena próxima à fronteira não foi interpretada da mesma forma

pelos bolivianos. O presidente Evo Morales se pronunciou sobre o caso em um ato público

no município de Pailón afirmando que instalação da base militar próxima a fronteira era

4 Disponível em: <http://www.comunicacion.gob.bo/sites/default/files/media/publicaciones/REDES.pdf>

Acesso em: 10 de agosto de 2018. 5 Disponível em:

<http://internacional.elpais.com/internacional/2016/03/23/america/1458773402_996538.html> Acesso

em: 10 de agosto de 2018. 6 Disponível em: <http://www.radiozero.cl/podcasts/michelle-bachelet-sobre-querella-vere-que-hago-si-

continuo-adelante-o-no-lo-que-quiero-es-que-se-reconozca-que-hubo-un-error/ > Acesso em10 de agosto

de 2018. 7 Disponível em: <http://www.infodefensa.com/latam/2016/04/28/noticia-ejercito-chile-establece-militar-

pocos-kilometros-frontera-bolivia.html> Acesso em 10 de agosto de 2018.

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ilegal e uma agressão à vida, à pátria e à Bolívia. Para o presidente está claro que a base

militar é uma resposta de ameaça diante as demandas bolivianas em relação à saída para

o mar e às águas do rio Silala8. O posicionamento de Morales sobre o caso reflete a atitude

da Bolívia em relação as percepções sobre o Chile.

2.1 Análise das variáveis da Paz Violenta

Das cinco estratégias político-militar apresentadas por Mares (2001) a defesa do

status quo é a mais adequada para entender o comportamento chileno. Nessa estratégia,

o Estado do status quo não está interessado na negociação do tema em questão, ao invés

disso quer demostrar seu comprometimento com o status quo. Apesar de o Chile tomar a

iniciativa na demanda contra a Bolívia para resolver o conflito diante a justiça

internacional, o país tem o seu posicionamento claro de que o rio é internacional e segue

em defesa de seu argumento. Da mesma forma ocorre com o tema do acesso ao mar, que,

apesar de ser outra demanda, faz parte dos problemas fronteiriços entre os dois países e,

portanto, a disputa sobre o rio/manancial Silala não deve ser entendida como um

problema isolado. A estratégia de negociação bilateral em busca de uma saída para o mar

e das questões da disputa do rio Silala é vantajosa para a Bolívia porque tem um grande

apoio por parte dos eleitores e da opinião pública interna. O mesmo não acontece no

Chile, no qual uma pesquisa realizada pela Pontifícia Universidade Católica do Chile, em

conjunto com a GfK Adimark e publicada em El Mercurio9, com 2.018 entrevistados, nos

mostra que 86% dos chilenos entrevistados rejeitam qualquer possibilidade de conceder

a Bolívia uma saída soberana ao mar. Desse modo, a Bolívia não consegue sustentar a

estratégia de negociação bilateral. Então, como Mares (2001) argumenta, quando os

eleitores querem uma resolução favorável aos seus interesses, o líder pode adotar a

estratégia de manter a questão viva internacionalmente. Para atingir tal estratégia, o país

pode fazer uma combinação de protestos diplomáticos, obstruções econômicas ou sinais

militares de baixo nível.

8 Disponível em:

<http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/44085/base+militar+chilena+a+15+quilometros+da+fro

nteira+e+agressao+a+bolivia+diz+evo+morales.shtml> Acesso em 10 de agosto de 2018. 9 Disponível em: <http://impresa.elmercurio.com/Pages/NewsDetail.aspx?dt=2015-09-24&dtB=24-09-

2015%200:00:00&PaginaId=2&bodyid=3> Acesso em: 10 de agosto de 2018.

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Na variável do balanço estratégico, na qual o Estado pode usar três recursos

(diplomáticos, econômicos e militares) o Chile, que adota uma estratégia político militar

em defesa ao status quo, investe cada vez mais na modernização de suas forças e

equipamentos militares para intimidar seus vizinhos. A economia chilena está fortemente

baseada na indústria de mineração e seus recursos econômicos são fortemente

direcionados para setor militar devido a Ley Reservada del Cobre (LRC), contribuindo

dessa forma com os recursos militares. A LRC foi criada na década de 1940 e foi

desenvolvida para o processo de financiamento, distribuição de recursos, aprovação e

aquisição de materiais bélicos para as Forças Armadas. Inicialmente, a lei previa que as

mineradoras privadas destinassem 7,5% da sua receita para as forças armadas do país.

Durante o governo militar, uma nova lei estabelecia que a empresa estatal Codelco

deveria repassar 10% do valor do cobre exportado para aquisição de equipamentos das

Forças Armadas, fazendo com que o Chile se tornasse o país latino americano que possui

o maior programa de modernização e reequipamento das três forças armadas (DULLIUS,

2008). Enquanto isso, a Bolívia, por ter suas forças armadas debilitadas, faz o uso de seus

recursos diplomáticos tentando agregar apoiadores para a sua causa e buscando sustentar

a estratégia político militar de manter a questão viva.

As características da força militar, terceira variável, diz respeito a mobilização

doméstica e forças alternativas. A primeira se refere à capacidade do Estado, em caso de

conflagração, em termos de recursos humanos, que impacto o uso de forças pode trazer

para a economia nacional. A segunda se refere a que tipo de arma será empregada –

Marinha, Exército ou Aeronáutica – e quanto custará (SEBBEN, 2011). Embora conhecer

os custos do uso da força militar seja importante para compreendermos o processo de

decisão de usá-la, os tomadores de decisão também devem avaliar como os eleitores

avaliam esses custos e o que eles estão dispostos a pagar (MARES, 2001). Além disso,

Mares (2001) argumenta que o uso da força militar que envolve a convocação da reserva

militar geralmente tem custos muito altos, pois os trabalhadores terão que deixar seus

empregos para se dedicar a tal atividade, enquanto os empregadores terão que substituir

temporariamente esses trabalhadores, gerando um grande custo econômico. A Base

Patrulha Cariquima foi estabelecida pela 2º Brigada Acorazada Cazadores del Desierto,

do Exército do Chile, e conta com combustível, água e acomodação suficientes para

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patrulhas de longa duração, além de alta capacidade de mobilidade10. Devido a esses

fatores, de rápida locomoção e de longa duração, os custos econômicos não são altos,

além da base não necessitar usar soldados da reserva militar.

O uso da força militar requer a aceitabilidade dos custos por parte dos eleitores,

quarta variável. Nesse caso, como Mares (2001) argumenta, na democracia os eleitores

não são todas as pessoas que votam em sua totalidade, mas só aquelas que votam no líder.

Em 2013 Michelle Bachelet foi eleita pela segunda vez como presidenta do Chile com

62,2% dos votos contra 37,8% de sua adversária Evelyn Matthei. As eleições tiveram

uma alta taxa de abstenção, menos de 50% das pessoas aptas a votar foram às urnas já

que o voto no Chile é voluntário11. O eleitorado, ainda de acordo com o autor, não pode

ser visto como homogêneo, a sua demanda está relacionada com suas características

político-sociais e econômicas. Da mesma forma, os custos que os eleitores têm que pagar

também são heterogêneos. Esses custos podem proporcionar bens coletivos ou

individuais para os eleitores. Mares (2001) aponta que os bens coletivos devem ser

expressos em uma retórica nacionalista para que grande parte da sociedade contribua para

sua provisão e aceite arcar com os custos. A disputa das águas do Silala é encarada pelo

Chile de forma legalista e um pouco nacionalista, assim como as outras questões

fronteiriças com a Bolívia. Os conflitos fronteiriços são muito delicados porque envolvem

questões da defesa da soberania nacional e, portanto, qualquer tentativa de reaver os

limites da fronteira é passível de grande impopularidade e rejeição internamente,

principalmente se houver um sentimento nacionalista em defesa da manutenção do status

quo, embora o nacionalismo na Bolívia de Evo Morales é mais intenso que no Chile.

Por fim, o accountability corresponde à sensibilidade do líder de avaliar os custos

do eleitorado que é determinada pela estrutura institucional. Um fator que contribui com

o grau de accountability do líder, de acordo com Mares (2001), é a possibilidade de

reeleição que pode constranger o comportamento do líder de várias formas. Como no

Chile a presidenta Michelle Bachelet não estava apta a se reeleger nas eleições do final

10 Disponível em: <http://www.infodefensa.com/latam/2016/04/28/noticia-ejercito-chile-establece-militar-

pocos-kilometros-frontera-bolivia.html> - Acesso em 12 de agosto de 2018. 11 Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/1648008-michelle-bachelet-arraso-y-fue-electa-

presidenta-de-chile-por-segunda-vez> Acesso em 12 de agosto de 2018.

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de 2017, ela foi constrangida com a possibilidade de ser impedida de concluir o mandato

antes do período de conclusão. Outro constrangimento decorrente da impossibilidade de

reeleição que a mandatária chilena estava exposta foi o legado, fundamental para

determinar a força do grupo político que o líder pertence. Pesquisas realizadas

mensalmente pela Adimark mostraram que a aprovação ao governo de Bachelet foi

reduzindo ao longo do tempo, apresentando 23% de aprovação em fevereiro de 201712.

O baixo índice de popularidade do governo de Michelle Bachelet não tem relação com as

disputas com a Bolívia, mas sim com o modo de gestão da presidenta diante dos incêndios

florestais que aconteceram em grande parte do país no final de janeiro de 2017. A

pesquisa também avaliou a aprovação das áreas do governo: o setor de Relações

Internacionais teve o maior índice entre os avaliados (57%), enquanto que o ministro das

Relações Exteriores do Chile, Heraldo Muñoz, teve 78% de aprovação, o melhor avaliado

entre os 16 ministros. Portanto, a pesquisa nos deixa claro que existe uma satisfação com

o setor de política externa do país. Dessa forma, podemos ver a atuação da mandatária

nas questões de política externa e das disputadas com a Bolívia como algo que fortalece

o legado político.

3. MÉTODO HISTÓRICO COMPARATIVO E HIERARQUIZAÇÃO DAS

VARIÁVEIS

O MHC é um método qualitativo – que, no entanto, não exclui o uso de dados

quantitativos – que tem como objetivo descrever os processos causais. Entre as

preocupações centrais desse método estão inclusos o delineamento de processos

históricos específicos, como revoluções e democratização, a conceituação dos principais

tributos desses processos e a identificação das condições explicativas. Ou seja, encontrar

as causas do resultado de um fenômeno político a partir da observação de processos

históricos é o objetivo final que tem a aplicação do MHC (AMORIM NETO;

RODRIGUEZ, 2016).

Uma ferramenta que auxilia o MHC é o process tracing, que serve para fazer

inferências descritivas e causais a partir de evidências como parte de sequência temporal.

12 Disponível em: <http://www.adimark.cl/es/estudios/index.asp?id=397> Acesso em 12 de agosto de

2018.

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O uso dessa ferramenta pode contribuir com a pesquisa identificando o fenômeno político

e descrevendo-o; avaliando as hipóteses anteriores e descobrindo novas; ganhando

insights sobre os mecanismos causais e fornece um meio alternativo de enfrentar

problemas como a causalidade recíproca e o viés de seleção. A inferência descritiva que

essa ferramenta proporciona consiste em uma descrição cuidadosa dos fenômenos

analisados, o process tracing foca no decorrer dos acontecimentos ao longo do tempo,

essa descrição deve ser bem feita, caso contrário, pode apresentar falha de causalidade. O

uso dessa ferramenta, junto com o MHC, pode confirmar ou contestar as relações entre

as variáveis (COLLIER, 2011).

O uso dessa metodologia nos permite classificar as condicionantes dos casos

propostos a serem analisados como: (a) a necessária, mas não suficiente, (b) a suficiente,

mas não necessária, (c) a necessária e suficiente, (d) SUIN, e (e) INUS. Uma condição

necessária está relacionada com a ausência ou presença de um resultado. O resultado não

teria acontecido na ausência dessa condição e a sua presença não garante que o resultado

ocorra. Isto é, em uma relação causal entre X e Y, Y depende de X, embora a presença de

X não signifique necessariamente que o resultado Y vai ocorrer. Já a condição suficiente

é o oposto, a sua presença garante o resultado, se há X, então, há Y. INUS é uma parte

insuficiente de uma condição necessária, ela não é nem necessária e nem suficiente, mas

é uma contribuição de um fator a vários fatores que juntos formam uma causa suficiente.

E, por fim, a condição SUIN que se for considerado individualmente não é nem necessário

nem suficiente para a causa do resultado, no entanto, em conjunto é um dos fatores de

uma causa necessária para o resultado (AMORIM NETO; RODRIGUEZ, 2016).

Como podemos conferir na figura abaixo, as cinco variáveis da teoria da paz

violenta são, individualmente, condições INUS. Se analisadas separadamente elas não

garantem o uso da força militar, pois elas não são nem suficientes nem necessárias. No

entanto, essas variáveis juntas são condições suficientes para que haja o uso da força

militar e a ausência de alguma delas nesse conjunto implica no não o uso da força. Ou

seja, somente quando há confluência de todos os fatores INUS, em um determinado

contexto histórico, é que teremos o uso da força, porém quando esses fatores não atuam

em conjunto implica na não suficiência. É importante deixar claro que quando o líder

decide pelo uso da força militar ele não pretende provocar a guerra. A guerra talvez

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ocorra, mas como resultado imprevisto e mal calculado de quem tomou a decisão inicial.

Figura 1 – Variáveis da Teoria da Paz Violenta

Fonte: elaboração do autor

As cinco variáveis da teoria da paz violenta são fatores importantes para o uso da

força militar nas disputas entre os países da América Latina. No entanto, elas podem ter

graus de importância diferentes dependendo do caso analisado e do momento em que se

vive. O próprio Mares (2012) demostra que as variáveis podem sofrer mudanças e

estresses ao longo dos anos. O autor menciona que a estratégia político-militar continua

favorecendo o uso da força, pois essa variável não sofreu mudanças recentes. Apesar dos

países latino-americanos não terem como objetivo a conquista militar sobre seus rivais,

os Estados fracos continuam com sua política de manter a questão viva e conseguir apoio

internacional, como foi mostrado no caso da Bolívia. Para o autor, a variável do balanço

estratégico se moveu contra a efetivação do uso da força militar nos últimos anos devido

a perda de capacidades dos Estados Unidos de influenciar a região, mas verificou-se na

disputa entre Chile e Bolívia que isso não afetou significativamente o Chile, que devido

à lei do cobre consegue manter um ato padrão de equipamentos militares e sustentar sua

estratégia de defesa do status quo. A variável da característica da força também passou

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por mudanças devido à modernização e sofisticação dos armamentos, atingindo uma

capacidade ofensiva cada vez maior. O uso da força militar, agora, não envolve custos

tão altos e grandes mobilizações de recursos humanos e econômicos, contribuindo assim

para o uso da força.

Mares (2012) aponta as variáveis da aceitabilidade dos custos e do accountability

como as mais importantes. Sua explicação para isso é que nesse momento democrático

em que vive a região, as duas variáveis evolvem a vontade do eleitorado em arcar com os

custos e com a prestação de contas do líder, respectivamente. O uso da força militar foi

durante algum tempo deslegitimado e encontrou resistência por parte da população da

região devido ao histórico de violação aos direitos humanos nos regimes militares nas

décadas de 1970 e 1980. Todavia, não houve uma desmilitarização das questões que

envolvem a segurança, mas, ao invés disso, os governos democráticos recorreram aos

militares para garantir apoio na efetuação de políticas públicas, provocando a mudança

da percepção das pessoas quanto ao uso da força militar. Na figura a seguir podemos

observar as variáveis em círculos de diferentes tamanhos que representa a relevância das

condicionantes. O tamanho, por sua vez, implica na dificuldade de aproximar todas as

condicionantes de forma suficiente.

Figura 2 – Hierarquização das variáveis

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Fonte: elaboração do autor

O diagrama acima mostra como principais condicionantes a aceitabilidade dos

custos e o accountability porque dentro do modelo democrático da América Latina, como

já discutido, essas duas variáveis encontram maior força. Em seguida vem o balanço

estratégico e a característica da força como principais condicionantes. Apesar de Mares

(2012) argumentar que o balanço estratégico pode funcionar contra o uso da força, no

caso analisado se verificou o contrário. A característica da força se iguala em nível de

importância devido à grande modernização das forças militares chilenas que permitem o

uso sem demandar grandes custos econômicos e humanos. Por fim, a estratégia político-

militar, essa com menor influência devido a uma contradição da política adotada pelo

Chile. O país adota uma estratégia de defesa do status quo que, em teoria, não deveria

estar disposto à negociação, apesar disso o Chile que demandou a Bolívia diante a CIJ, e

mesmo que esteja confiante que sua demanda será atendida corre o risco de ter suas

expectativas frustradas diante de uma decisão de Haia oposta aos seus interesses.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que foi investigado ao longo desse trabalho, percebe-se que a disputa

militarizada entre o Chile e a Bolívia em torno da questão das águas do Silala contribui

com o argumento de David Mares (2001), teórico da paz violenta, de que a América

Latina não é uma região pacífica simplesmente pela ausência de grandes guerras. Os

países da região, embora adotem um discurso da paz e em defesa das instituições

regionais, continuam a utilizar a força militar como forma de barganha de seus interesses.

O projeto Correlates of War divide a hostilidade do uso da força militar em 5 níveis

– 1. Não utiliza 2. Ameaça 3. Exibição 4. Utiliza e 5 Guerra (MARES, 2012). Podemos

concluir que a disputa entre o Chile e Bolívia apresentou o nível 3 de hostilidade. A

instalação de uma base militar do Exército do Chile próximo à fronteira com a Bolívia é

claramente uma exibição da força e das capacidades militares chilenas, ainda que o

objetivo dessa base seja um tema controverso. Esse episódio do conflito entre os dois

países não pode ser visto de forma isolada e aleatória, mas como consequência da Guerra

do Pacífico (1879-1883) na qual a Bolívia perdeu o acesso ao mar e desde então há tensões

em torno da fronteira entre os dois países. Portanto, ainda que essa disputa específica

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sobre as águas do Silala seja resolvida por uma decisão jurídica da Corte Internacional de

Justiça, enquanto a Bolívia não reconquistar seu acesso soberano ao mar e houver uma

redefinição das fronteiras com o Chile, esses episódios de militarização continuarão a ser

recorrentes.

Verificou-se que as cinco variáveis analisadas nesse trabalho atuaram na direção de

permitir o uso da força militar por parte do Chile como forma de barganha militarizada,

pois esses fatores estavam presentes atuando em conjunto em um determinado momento.

No entanto, não significa dizer que a presença desses fatores em um caso específico

implica na obrigatoriedade do uso da força, mas na possibilidade.

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