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POEMA NOVILATINO DE VIEIRA: 'DÍSTICOS À ABSTINÊNCIA COM QUE SUA ALTEZA VENCEU A FEBRE" JOãO BORTOLANZA Universidade Estadual de Londrina-UEL Résumé: Entre les résultats du projet de recherche, en exécution, « Le Latin du Père Antoine Vieira - Poésie Novilatine », on presente ici le poème latin Siivarum dominós, 6 distiques dévoués à la « abstinence avec quoi Son Altesse vainquit la fièvre », comme il dit dans la lettre écrite à Duarte Ribeiro Macedo le 16 Mai 1679. II s'agit du Cod. 901 de la Bibliothèque de Lisbonne, autographe contenant la lettre et les distiques. Selon les objetifs du projet, on veut démontrer 1'importance de 1'étude du Latin employé par Vieira, soit dans ses poèmes latins, soit dans ses plus de 200 Sermons. Spécifiquement on va présenter une analyse de ce carmen néolatin. On verra d'abord la qualité métrique du distique élégiaque utilisé, les licences poétiques et les figurae elocutionis, comme des aspects du Latin et des canons classiques employés. On rélève ensuite des aspects baroques et rhétoriques présents dans le poème. Mots clés: Poésie Novilatine - distique élégiaque - métrique -figurae. O Projeto em andamento "O Latim do Padre António Vieira - Poesia Novilatina" tem por objetivo a pesquisa sobre a importância do Latim empregado por Vieira em seus 15 volumes de Sermões. A equipe de cola- boradores académicos, que contou em 2005 com oito alunos do curso de Letras e um da Filosofia, dedicou-se à análise desse emprego do Latim em dois ou mais sermões selecionados por cada um. Considera-se que o Latim forma o arcabouço retórico, está na própria raiz do tema, desde a epígrafe, Humanitas 59 (2007) 283-292

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POEMA NOVILATINO DE VIEIRA: 'DÍSTICOS À ABSTINÊNCIA COM QUE SUA

ALTEZA VENCEU A FEBRE"

JOãO BORTOLANZA

Universidade Estadual de Londrina-UEL

Résumé: Entre les résultats du projet de recherche, en exécution,

« Le Latin du Père Antoine Vieira - Poésie Novilatine », on presente ici le

poème latin Siivarum dominós, 6 distiques dévoués à la « abstinence avec

quoi Son Altesse vainquit la fièvre », comme il dit dans la lettre écrite

à Duarte Ribeiro Macedo le 16 Mai 1679. II s'agit du Cod. 901 de la

Bibliothèque de Lisbonne, autographe contenant la lettre et les distiques.

Selon les objetifs du projet, on veut démontrer 1'importance de 1'étude du

Latin employé par Vieira, soit dans ses poèmes latins, soit dans ses plus de

200 Sermons. Spécifiquement on va présenter une analyse de ce carmen

néolatin. On verra d'abord la qualité métrique du distique élégiaque

utilisé, les licences poétiques et les figurae elocutionis, comme des aspects

du Latin et des canons classiques employés. On rélève ensuite des aspects

baroques et rhétoriques présents dans le poème.

Mots clés: Poésie Novilatine - distique élégiaque - métrique -figurae.

O Projeto em andamento "O Latim do Padre António Vieira - Poesia

Novilatina" tem por objetivo a pesquisa sobre a importância do Latim

empregado por Vieira em seus 15 volumes de Sermões. A equipe de cola­

boradores académicos, que contou em 2005 com oito alunos do curso de

Letras e u m da Filosofia, dedicou-se à análise desse emprego do Latim em

dois ou mais sermões selecionados por cada um. Considera-se que o Latim

forma o arcabouço retórico, está na própria raiz do tema, desde a epígrafe,

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normalmente extraída do Evangelho da liturgia, explanada e caracterizada como a matéria da inventio já no exordium. Encadeia-se com muitas outras citações da Vulgata, de Santos Padres e de autores latinos que tragam alguma possibilidade de correlação com o assunto, formando as res, a narratio e as rationes do corpo do discurso epidíctico, até concluir na peroratio.

Como hipótese levantada, cabe perguntar-se que entendimento se pode ter dessa extensa obra, sem uma análise profunda do papel desem­penhado pelo sistemático emprego de frases, expressões e palavras latinas, facilmente identificadas em quase todas as 7000 páginas de seus sermões, sendo frequentes as páginas que contêm várias. A própria inventio apre-senta uma série de amplificações, via paradoxos, metáforas, antíteses, oximoros, epímones e todo elenco de tropos e figuras da Retórica Clássica - de que Vieira era Mestre, tendo sido inclusive professor de Retórica - de sólito calcadas na teia de excertos seletos do Latim. Resulta uma obra de arte, modelo da prosa de nossa Língua Portuguesa, produto do engenho de nosso "Imperador da Língua Portuguesa", no dizer de Fernando Pessoa. Por outro lado, pode-se apreendê-la em sua genuína dispositio e elocutio, sem considerar sua ostensiva latinidade?

Pode parecer extemporânea essa investigação, uma vez que o Latim foi praticamente excluído dos currículos brasileiros, reduzindo-se a um mínimo de horas-aula nas licenciaturas em Letras. Entendo, porém, que esse viés de análise vem bem a propósito, ad usum scholarum Brasiliensium, para que se volte a tomar consciência da falta que faz o conhecimento do Latim, não só para entender a Língua Portuguesa - "Latim, ainda que em outro tempo e lugar", como costumo entendê-la - mas também para parti­cipar de todo o movimento cultural do Ocidente.

Especificamente, pretendo apresentar o Padre Vieira como poeta novilatino, autor de vários poemas na língua de Horácio e Virgílio. Venho pesquisando já há alguns anos1, procurando fazer uma edição crítica dessa sua produção.

Em destaque para essa comunicação, os "Dísticos à abstinência com Sua Alteza venceu a Febre". Encontraram-se no Códice 901 da Biblioteca Nacional de Lisboa (fl. 251-252), como apêndice a algumas

1 Sobretudo durante meu projeto de Pós-Doutoramento, "Poesia Novilatina Luso-Brasileira", desenvolvido na Universidade de Coimbra em 1998/1999, sob a orientação científica do Prof. Dr. Sebastião Tavares de Pinho, em parte apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

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cartas originais de Vieira constantes nesse códice2 . Trata-se da carta

dir igida a Duar te Ribeiro de Macedo a 16 de maio de 1679, que a s s i m se

encerra:

"Isto he tudo o q' ha, e pã acabar descrever este quarto de papel,

quero por aqui huns dísticos q' fiz a abstinência com q' S. A. venceo a febre,

assumpto em q' se empregarão as musas deste Collegio, pa q' VS- se ria

de quam L[ou]ca he a minha velhice; mas melhor ira na volta. D[eu]s

g[uar]de a VSa m[ui]tos anos como desejo e havemos mister. Lisboa 16 de

mayo de [1]679.

Capellão e criado de VSâ

António Vieyra."

Os Dísticos vêm consignados no verso do mesmo autógrafo de Vieira,

como se pode ver nesse texto estabelecido:

I. Siluarum dominós, iuuenis, qui despíeis apros

Seu sublimis equo, seu pedes ire paras;

3. Et tibi taurorum sunt obuia cornua lusus,

Quos ferit, aut sternit durior ense manus;

5. Nunc age, pugnandum mecum est, ait inuida Febris,

Nunc tempus, vires experiare meãs.

7. Dixit: et extremos langor prius oceupat artus,

Mox corde effusus uiscera tota calor.

9. At Petrus ardentes morsus ubi sentit, et istam

Maius quam reliqiias robur habere feras;

I I . Risit, et abstinuit dapibus: Febrique minanti

Has ego, ait, ferro; te superabo fame.

Tradução:

"Ó jovem, que desprezas os javalis senhores das selvas, seja te

disponhas ir altivo a cavalo, seja a pé . São br inquedo para ti os chifres dos

touros a te afrontarem: tua m ã o mais dura que a espada os fere ou prostra.

2 Encontram-se também em VIEIRA, Pe. António. Cartas do Padre António Vieira. Pelo Pe. Francisco António Monteiro. (Lisboa: Regia Officina Sylviana, M.DCC.XLVI (1746), Tomo III, p. 387. Reimpressa pela Imprensa Nacional, 1997, Vol. III, p.398-400).

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"Vamos, agora deves lutar comigo", diz a invejosa Febre. "Agora é a tua hora, experimenta minhas forças". Disse e já unta debilidade domina-lhe as extremidades dos membros, já um calor do coração difunde-se pelas entranhas todas. Mas Pedro, tão logo sente as ardentes mordidas desta fera de força maior que as outras, riu e absteve-se de comida, assim falando à ameaçadora Febre: "A estas, com o ferro; a ti com a fome hei de vencer."

Como se pode notar, fica claro que Vieira participou do "assumpto em que se empregarão as Musas deste Collegio", lembrando-se das ativi-dades típicas dos estudos humanísticos dos colégios jesuíticos, especifi­camente compondo versos latinos, assim como era costume dissertar e arengar nos exercícios retóricos. Há vários poemas latinos de Vieira, em especial uma série de epigramas dirigidos em carta a Frei Luís de Sá, escritos em agosto de 1664, quando

se achava o Pe. António Vieira na quinta de Vila Franca, do Colégio de Coimbra, em companhia de muitos padres do recolhi-mento e do padre Manuel de Magalhães, seu prefeito; o qual lhes tinha ordenado por assunto dos versos, que haviam de fazer, uma cruz de forma rústica que se achava em certa paragem da dita quinta, à qual o Mondego em uma enchente tinha levado o braço direito3.

Atente-se para a leveza da atividade, com as marcas da jovialidade fraterna do recolhimento dos irmãos, e que Vieira apresenta como loucura de sua velhice, assunto para provocar o riso de seu interlocutor. De um simples gesto do príncipe, voa aos quatro ventos esta "gesta", mote para muitos grémios e academias da época: afinal, a valentia nesse caso bem que poderia ser temerária. Se surtiu efeito, deveu-se mais à fraqueza da febre que à valentia do príncipe.

Vazado em dísticos elegíacos, como de praxe se compunham os epigramas, esse pode servir-nos de exemplo do domínio que Vieira possuía da língua de Horácio.

Primeiramente, observemos a métrica empregada. Sabe-se que o dístico elegíaco se compõe de um hexâmetro seguido

de um pentâmetro. Embora mais agitado e menos solene que o hexâmetro,

3 VIEIRA, Pe. António. Obras Escolhidas. Vol. VII Obras Varias (V) - Vária. Lisboa: Sá da Costa, [1954], p. 94 (nota transcrita do "Ms. que contém os versos").

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o dístico elegíaco foi muito comum nos grandes mestres da elegia romana, os poetas Ovídio, Propércio e Tibulo.

Em hexâmetros datílicos foram escritas as grandes obras da literatura latina, como a Eneida, as Bucólicas e as Geórgicas de Virgílio e as Metamorfoses de Ovídio. Tornou-se o verso épico e solene por excelência entre os Romanos, que, nisso também, imitaram os Gregos. Constitui-se de 6 pés métricos datílicos (uma sílaba longa, seguida de duas breves: _ ' _ ) , em alternância com espondeus (duas longas: _"_), o que o torna maleável, ganhando mais leveza com a predominância dos dáctilos ou maior gravidade com as substituições espondaicas. Essa variedade expressa-se pelo número de sílabas, indo de 13 a 17. O esquema básico do hexâmetro, com a cesura pentemímere (//) a dividi-lo em dois hemistíquios, podendo-se, ainda, imaginar a substituição de cada dáctilo __' „ _ por um espondeu _'_, sendo, porém, rara no quinto pé, é o que segue:

_'../_'.. /J/L. IJ.JJ^IJ,

O pentâmetro raramente se emprega de forma pura, aparecendo normalmente no dístico junto com o hexâmetro. Compõe-se de 5 pés métricos, sendo dividido, de modo fixo, pela cesura em dois hemistíquios de 2 pés e meio cada. O segundo verso do dístico, por conseguinte, terá duas partes: a primeira parte, dita variável, constituída de dois dáctilos ou espondeus, mais uma sílaba em ársis, longa por natureza, coincidente, salvo em casos excepcionais, com final de palavra; e uma segunda parte, fixa, com dois dáctilos, seguidos de uma sílaba que pode ser longa ou breve. A destacar-se que a última palavra do pentâmetro é de norma um dissílabo. Seu esquema, portanto, pode oferecer alterações antes da cesura:

Como exemplo de dístico elegíaco, este proverbial de Ovídio (Tristia, IX, 9, 5-6)

Dõnêc ê/ris fê/lTx,// mul/tõs nume /rãbís ã/mlcõs; Têmpora / si file /rmt // nflbilã,/ sõlus è/ris.

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Tentando adaptar a quantidade latina à sequência de tónicas e átonas do português, teríamos esta tradução livre:

Tu se_ esti/veres fe/liz,// sem / conta se/rão teus a/migos Túrbidos / dias vi/rão,// tu soli/tário, esta/rãs

Após esse breve preâmbulo, apresento a escansão do poema vieiriano:

I. Slluã/rum dõmí/nõs,// iuue/nls, quT / despíeis/ ãprõs Seu sflb/lTmls ê/quõ, // seu pedes/ Ire pã/rãs;

3. Et tíbl / tãurõ/rflm // sQnt / õbuíã/ cõrnuã / ltísus, Quõs ferft,/ ãut stêr/nit // durlõr / ênsê mã/nfís;

5. Nflnc ãge,/pQgnãn/dum mê/c(um) êst,// ãít /Inuídã/ Febris, Nflnc têm/pus, ul/res // êxpéri/ãrS mé/ãs.

7. Dlxft: et/ êxtrê/mõs // lãn/gõr prms/ õccQpãt/ arras, Mõx cõr/d(e) effu/sus // ulscerã / tõtã cã/lõr.

9, Ãt Pètrus/ ãrdên/tês // mõr/sfls ubi/ sêntit, êt //Tstãm MãiQs / quãm réll/quãs// rõbur hã/bêre fê/rãs;

I I . RTsIt, et / ãbstlnu/It dãpí/bus:// Fê/brlquê mí/nãntT Hãs êg(o), ã/It, fêr/rõ; //te supé/rãbõ fã/mê.

Feita a escansão, pode-se verificar como Vieira seguiu os cânones da métrica clássica. Há uma alternância de dáctilos e espondeus nos hexâ-metros, com uma média de 2 substituições, como é o mais usual nos clássicos4. O mesmo acontece na parte variável dos pentâmetros, a destaca-rem-se os versos 6 e 8, em que o duplo espondeu dá maior gravidade à ameaça (NUnc têm/pus, ιιϊ/rês) e à ação da Febre (Mõx cõr/de^ êffu/sús).

A cesura mais comum dos hexâmetros é a pentemímere (após o 5o meio-pé), "que divide o verso de modo mais harmonioso em uma dipodia mais enérgica e viva, começando e terminando em ársis, e uma dipodia cujo começo e cujo final em tese lhe dão uma expressão mais pacata e mole"5; nos versos 5 e 11, a melhor opção é a heptemímere (após o 7° meio-pé), que "torna o verso mais lento e travado", podendo ser lida com uma leve pausa de pentemímere, para dar mais expressão à agressi­vidade das duas falas.

4 Cf paralelo estabelecido na minha tese de doutorado Corpus da poesia latina de António de Castro Lopes. Assis-SP: UNESP, 1994, Vol. II, p. 13.

5 Ibid., p. 32.

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Quanto ao acento, costuma haver uma preocupação em não fazê-lo coincidir com o ictus ou acento rítmico nos primeiros quatro pés do hexâmetro, enquanto na parte final, constituída pelos dois últimos pés, há dois esquemas básicos: têgminêfãgí (A) e rúrã mãnêbãnt (B), isto é, um trissílabo datílico _ ' _ „, em que coincidem acento e ictus, seguido de um dissílabo espondaico _' _ ou trocaico _' _ ou um dissílabo trocaico _' seguido de trissílabo báquico '_ ou anfibráquico _ _' „ . Observe-se o predomínio do esquema (A) em Vieira: despias ãprõs; cõrnúã lúsus; Tnutdã Febris; õccúpat ãrtãs. O verso 9 apresenta variante do primeiro tipo sêntít, et ístãm, em que a presença da vírgula e do monossílabo para completar o pé preparam o enjambement com o verso que segue; já o verso 11 apresenta uma variante do segundo tipo, em que temos um trissílabo, com acento coincidente com o ictus Fe/briqué mmãnfí.

Como vimos acima, a última palavra do pentâmetro é de norma um dissílabo: um jambo (breve + longa) ou um pirríquio (2 breves), o que pode ser facilmente observado nos dísticos de Vieira.

Outra característica dos poemas latinos são as licenças ou liberdades poéticas, sendo a sinalefa e a ectlipse as mais comuns, marcando a elisão da vogal final ou da vogal seguida de M. Em Vieira ocorre a sinalefa em corde^ êffusus (v. 8) e em ego^ ait (v. 12); e a ectlipse em mecum^ est (v. 5). Recurso poético é também alongar sílabas breves (diástole) ou abreviar longas, como no verso 2, em que o plural -ÉS de pedes passa a -ES, como exigência métrica do dáctilo: seu pedes, aliás, houve também uma alteração da regência, pois se exigiria o ablativo pede, exigindo-se no caso a licença dita hiato, posto que se segue vogal, ou pedibus, que teria uma sílaba a mais.

Dentro dos preceitos clássicos, a linguagem poética deve valer-se de ornatus, ou seja, figuras de pensamento ou tropi, e defigurae elocutionis, as figuras de palavras.

Os ornatus fazem parte do acutum dicendi genus, que prende as subtilezas do pensamento com as subtilezas da linguagem6, ao mesmo tempo provocando o estranhamento do ouvinte e tornando-o cúmplice do paradoxo lançado pelo autor. O poema articula-se em três partes, apresentando o Príncipe em três situações: a desprezar os "senhores das selvas" - antonomásia em hipérbole -, a considerar um lusus (brinquedo) os afrontosos chifres dos touros, para tanto valendo-se não da espada mas

6 Cf LAUSBERG, H. Elementos de Retórica Literária. 5a. ed. Lisboa: Gulbenkian, 2004, p. 140.

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da mão - sinédoque também hiperbólica - e finalmente, coagido a um duelo sobre-humano, a enfrentar a Febre, a ameaçá-lo por dentro. Dedica um dístico paralelamente a cada façanha física, enfrentando mesmo a pé os perigosos javalis e com a mão fere e prostra os valentes touros. Dois dísticos destinam-se ao ataque da Febre personificada - sendo a personi­ficação uma "variante de realização da alegoria", no dizer de Lausberg7 -que se infiltra em todos os seus membros e o enlanguesce e feito fogo queima-lhe as entranhas. Dois dísticos se contrapõem com a pronta resposta do Príncipe, que desprezara os senhores das selvas e derribara com seu braço os obuia comua dos temíveis touros: sente as "mordidas ardentes" dessa fera de forças desiguais e reage com o inesperado paradoxo, cortando a entrada de energia e de calor, suprimindo a fonte do calor orgânico.

Das muitas figurae elocutionis vel sententiae que poderiam ser levan­tadas nessa dispositio ou elocutio, destaque-se primeiramente a anáfora de hemistíquios em polissíndeto no verso 2 e a anáfora de versos (v.5 e 6):

Seu sublimis equo, seu pedes ire paras (v. 2) Nunc age, pugnandum mecum est, ait inuida Febris, (v. 5-6)

Nunc tempus, uires experiare meãs.

Nos versos 5 e 6, também ocorre a figura etimológica mecum est / meãs, estrategicamente em epífora, procurando destacar a forte presença do inimigo, combinando com a sinonímia do pugnare e do experiri uires.

Observem-se as aliterações, provocando uma harmonia imitativa nesses versos:

3. eT Tibi Taurorum sunT obuia cornua lusus (além da assonância do U) 7. dixiT: eT exTremos langor prius occupaT arTus, (além do travamento deX,C,G) 9. aT peTrus ardenTes morsus ubi senTiT, eT isTam (com a assonância do I no final) 11. risiT, eT absTinuiT dapibus: Febrique minanti (aqui o assonante e significativo I)

7Ibid., p.251.

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A força do F é muito expressiva na sequência final: Febrique, iniciando o 2o. hemistíquio do verso 11 (a grande ameaça!), que não se vence Ferro (final do Io. hemistíquio do verso 12), como as Feras (final do verso 10), mas se vence Fome (final do verso 12). Esse último verso é muito bem construído: inicia os dois hemistíquios com HAS EGO e TE, em que o EGO se opõe ao conjunto das feras e a esta mais terrível, terminando-os com a força da sinédoque Ferro/espada e com a aparente fraqueza, e portanto paradoxal, da Fame.

Maius quam reliquas // robur habere FERAS; Risit, et abstinuit dapibus: // FEBRIQUE minanti

Has ego, ait, FERRO;// te superabo FAME.

A influência dos poetae noui, com sua preocupação formal, limando o verso e buscando expressivos jogos hiperbáticos, passa a ter muita influência nos poetas líricos latinos e nos poetas novilatinos, como pude comprovar nos mais de 900 versos de Castro Lopes (1827-1901)8, não sendo menor na poesia novilatina de Vieira. São muito bem estudados os hipérbatos, ligando nomes e qualificativos, ora em finais de hemistíquios (v. 1, 6 , 7 e 8), ora, separados pela cesura, em final e início de hemistíquio (v. 9), ora entrecruzando-se em início e final de hemistíquio (v. 10):

1. Siluarum DOMINÓS,// iuuenis, qui despíeis APROS 6. Nunc tempus, VIRES // experiare MEÃS. 7. Dixit: et EXTREMOS // langor prius oceupat ARTUS, 8. Mox corde EFFUSUS // uiscera tota CALOR. 9. At Petrus ARDENTES // MORSUS ubi sentit, et istam 10. MAIUS quam reliquas II ROBUR habere feras;

Muito frequente e expressivo também o homeoteleuto - que "consiste na igualdade sónica dos fins (acentuados ou não)" de versos ou de colos9 - como nos hemistíquios dos versos 1 {dominós / apros), 7, 8 e 9 (artus I effusus / morsus, ou nos colos dos versos 4 e 11 (Quos ferit, aut sternit e Risit et abstinuit).

8 Corpus... (nota 2 acima), Vol. II, p. 182-199. 9 Cf. LAUSBERG, op. cit, p. 214.

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Pelo exposto, pode-se concluir que Vieira conhecia muito bem o Latim Clássico, soube compor poemas novilatinos com perfeição, assim como soube empregar com tanta frequência frases e expressões latinas em seus Sermões, obrigando-nos a também conhecer essa sua dimensão huma­nística e latina para poder entendê-lo em sua clássica prosa portuguesa.

Referências Bibliográficas

BORTOLANZA, João. Corpus da poesia latina de António de Castro Lopes. Tese de doutoramento. (Assis-SP: UNESP), 1994, Vol. II, p. 13

LAUSBERG, H. Elementos de Retórica Literária. 5a. ed. Lisboa: Gulbenkian, 2004, p. 140.

VIEIRA, Pe. António. Cartas coordenadas e anotadas por J. Lúcio de Azevedo. (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, [1997], Tomo III).

VIEIRA, Pe. António. Cartas do Padre António Vieira. Pelo Pe. Francisco António Monteiro. (Lisboa: Regia Officina Sylviana, M.DCC.XLVI (1746), Tomo III, p. 387. Reimpressa pela Imprensa Nacional, 1997, Vol. III, p.398-400).

VIEIRA, Pe. António. Obras Escolhidas. Vol. VII Obras Várias (V) - Vária. Lisboa: Sá da Costa, [1954], p. 94.

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