COMPORTAMENTOS ALIMENTARES: O CASO DA FRANÇA | 577
Rev. Nutr., Campinas, 18(5):577-591, set./out., 2005 Revista de Nutrição
1 École Nationale d’Ingénieurs des Techniques des Industries Agricoles et Alimentaires. Rue de la Geraudiere BP 82225 CP 44322. Nantes,France. E-mail: <[email protected]>.
2 Departamento de Engenharia de Produção, Universidade Federal de São Carlos. Rod. Washington Luís, km 235, 13565-905,São Carlos, SP, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: M.O. BATALHA. E-mail: <[email protected]>,<[email protected]>.
3 Departamento de Administração, Economia e Direito, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, MS,Brasil. E-mail: <[email protected]>.
4 Doutoranda em co-tutela, Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, SP, Brasil, e École Nationale d’Ingénieurs desTechniques des Industries Agricoles et Alimentaires. Nantes, France. E-mail: <[email protected]>.
ESPECIAL | SPECIAL
As principais evoluções dos comportamentosalimentares: o caso da França
Main evolutions in human food practices:
French example
Jean Louis LAMBERT1
Mário Otávio BATALHA2
Renato Luiz SPROESSER3
Andréa Lago da SILVA2
Thelma LUCCHESE4
R E S U M O
Durante a segunda metade do século XX, o desenvolvimento econômico e as evoluções dos modos de vidaocasionaram modificações importantes nos comportamentos alimentares. Tais evoluções foram particularmenteanalisadas para o caso da França. Confrontadas a um contexto de abundância, as populações adotaram umaconduta alimentar mais energética. Tal conduta resume-se, sobretudo, em um alto consumo de produtos deorigem animal. Porém, entre grupos de indivíduos ricos e após um período de saturação, a atração peloconsumo desmedido tal produto, tornou-se menos intensiva. Novas preocupações orientadas à saúde e àsformas de mantê-la em bom estado foram despertadas. O aumento do número de mulheres salariadas e odesenvolvimento das atividades de lazer alteraram a gestão do tempo empregado à alimentação. Nabusca pelo ganho de tempo, os consumidores passaram a procurar por alimentos prontos para seremconsumidos e a realizarem suas refeições fora do domicílio. As culturas alimentares não evoluem tãorapidamente como as transformações ocorridas em todo o sistema de oferta alimentar, com isso afirma--se que a industrialização, a internacionalização e as inovações de toda a cadeia agroalimentar geramansiedades no consumidor. Todas essas transformações e tendências, que são observadas em países ricos,podem ser percebidas quando os comportamentos alimentares de populações ricas de países emdesenvolvimento são analisados.
Termos de indexação: conduta na alimentação, consumo de alimentos, disfusão de inovações, gestão dotempo, preferências alimentares, França.
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A B S T R A C T
Important modifications in consumer food habits were caused by both economic development and evolutionsin life style during the second part of the XX century. These evolutions were analyzed, in particular, in the caseof France. Easy accessibility to food (abundance context) led the populations to adopt high caloric foodintakes, such conduct resulting, above all, in an elevated consumption of products of animal origin. However,after a period of saturation, the unlimited attraction to the consumption of such products became less intenseamongst the richer, more privileged social groups. New, health oriented concerns, and ways to maintain goodhealth became important. The rise in the number of women earning salaries and the development of leisureactivities altered the management of time with respect to feeding. Aiming at gaining time, the consumersconcentrated more on ready-to-eat foods and eating out of the home. However the food cultures failed toevolve as quickly as the transformations occurring in the food marketing system, and thus it can be affirmedthat industrialization, internationalization and innovations throughout the whole agro-food chain led toconsumer anxiety. All such transformations and tendencies observed in the rich countries can also be perceivedin the food habits of rich populations in developing countries.
Indexing terms: feeding behavior, food consuption,diffusion of innovation, time organization, foodpreferences, French.
I N T R O D U Ç Ã O
A evolução do comportamento alimentarsempre esteve fortemente ligada às vicissitudesda longa história da humanidade. Os trabalhosde historiadores, como Flandrin & Montanari1,explicitam claramente estas relações. No entanto,a evolução dos hábitos alimentares é muito maislenta que a de outros hábitos correntes da vidacotidiana. É fato que as pessoas trocam maisfacilmente de carro ou de sapatos do que dereceitas culinárias ou de práticas alimentares.
Grande parte da humanidade experi-mentou, ao longo da segunda metade do séculoXX, melhorias consideráveis na sua condição devida e na sua renda. Não obstante, já ao final doséculo XIX2, alguns estatísticos observaram queas despesas com o consumo alimentar não eramproporcionais a este aumento da renda(5). Assim,
descobriu-se que, ainda na atualidade, as despesas
alimentares possuem limites definidos e que a
parte do orçamento familiar destinada à alimen-
tação diminui com o aumento de renda.
Em 1960, por exemplo, os francesesdestinavam, em média, 30% da sua renda paraa alimentação. Atualmente esta porcentagem éde aproximadamente 20%, sendo 15% para o
consumo no domicílio e 5% para o consumo forado domicílio.
Por outro lado, observou-se nos últimos
anos, não só na França, mas em várias regiões do
planeta, um crescimento de produção e
produtividade em todos os elos das principais
cadeias agroindustriais produtoras de alimentos:agricultura, pesca, indústria, food services,
distribuição etc. O progresso dos meios de
transporte, aliado às modificações geopolíticas
mundiais, têm acelerado o livre comércio de
mercadorias, entre as quais destacam-se os
alimentos.
Estas condições levaram a um crescimento
extremamente rápido da disponibilidade alimentar
nos países mais ricos. Além disso, os ganhos de
produtividade e as importações de países mais
pobres resultaram na diminuição dos preços
relativos dos alimentos naqueles países.
Durante a segunda metade do século XX,
ao mesmo tempo em que a disponibilidade
alimentar cresceu, as necessidades nutricionais
diminuíram. Neste mesmo espaço de tempo, apopulação dos países ricos tornou-se cada vez maissedentária. As modificações na organização dotrabalho (mecanização, automatização,
5 Destacam-se, nesta direção, os trabalhos e leis de Engel citados por McIntosh2.
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robotização etc), o desenvolvimento de meiosde transporte e o aumento das facilidadesdomésticas, levaram a uma redução substancialdas atividades físicas. Assim, em algumasdécadas, o nível individual médio de gastosenergéticos reduziu-se de 25% a 30%, passandode 3000-4000kcal a 2000-3000kcal/dia. Convémlembrar que o crescente peso demográfico depessoas da chamada melhor idade vai reduzirainda mais a necessidade quantitativa de energiaa ser ingerida pela população.
Assim, considerando-se a trajetória dahistória da humanidade, estas mudanças podemser vistas como uma verdadeira revolução nascondições de oferta e demanda de alimentos àspopulações.
A abundância alimentar: um contextocompletamente novo
O contexto dominante ao longo da história
da humanidade sempre foi o de escassez
alimentar. A principal preocupação das populações
era a de possuir alimentos em quantidadesuficiente para a sua sobrevivência em condições
adequadas. Nesta situação, segurança alimentar
significava possuir um estoque de alimentos
suficiente para garantir a sobrevivência. Tal
situação ainda pode ser encontrada em várias
nações. A Food and Agriculture Organization (FAO)estima que cerca de 800 milhões de pessoas, em
todo o mundo, sofrem de problemas desubnutrição3.
No entanto, as camadas mais ricas dapopulação (classes mais abastadas de países pobrese a maior parte dos indivíduos dos países ricos)encontram-se atualmente em um contexto deconsumo alimentar completamente novo: pletoraalimentar. Se em um contexto de escassez asrestrições econômicas são os elementos deter-minantes das escolhas alimentares, em umcontexto de abundância e riqueza estas restriçõestornam-se secundárias. Neste último caso, osconsumidores podem escolher sua alimentação
em função de fatores culturais, sociais epsicológicos.
Esta camada mais rica da população doplaneta confronta-se agora com a abundânciaalimentar, uma situação jamais observada pelaespécie humana4. Como a humanidade sempreviveu em um contexto de escassez alimentar, osentimento primário de sobrevivência sempre aatraiu para o consumo de alimentos e nutrientesmais energéticos, justificando, dessa forma, umapreferência por sabores açucarados e por lipídios.Assim, quando esta mesma população depara-secom uma quantidade de alimentos que ultrapassao que normalmente suas necessidades exigem,ela tende a fazer reservas em tecido adiposo, poispoderá utilizá-las em caso de um retorno doperíodo de escassez alimentar. Dessa forma, essenovo contexto de abundância alimentar conduz auma atitude paradoxal: “ficar magro” em umlongo período de “vacas gordas” (Figura 1).
Figura 1. O paradoxo da abundância: “ficar magro” em
período de “vacas gordas”.
Fonte: Lambert5.
Um dos resultados desta situação é que afração da população dos países mais pobres queconsegue ultrapassar a linha da pobreza começa
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a enfrentar graves problemas de obesidade. Umaoutra parte da população, após a conscientizaçãodesta situação de saturação alimentar, parece tercomeçado um processo de reajuste nas suas dietasalimentares. Os mais ricos, apoiados pelo avançocientífico e pela opinião de especialistas(notadamente de nutricionistas), têm procuradodesenvolver um modelo alimentar ideal, que seresume em comer menos para viver melhor e vivermais tempo sem envelhecer. No entanto, nãoexistem dúvidas que serão necessárias váriasgerações para a difusão de um modelo adaptadoa esse novo contexto resultando, talvez, em umadiminuição das frações da população comproblemas de obesidade.
A substituição do consumo de produtosanimais e vegetais segundo o nível dedesenvolvimento econômico
Os indivíduos, enquanto consumidores dealimentos, distinguem várias categorias do que é
consumido em seus ambientes: os reinos animal
e vegetal, que eles consideram parcialmente como
comestíveis, e o reino mineral que, com algumas
exceções, como o sal e a água, é consideradocomo não comestível. Assim, o “cardápio
alimentar” é constituído de proporções variáveis
de produtos de origem animal e vegetal.
Como as carnes proporcionam sensações
de saciedade fortes e duradouras devido, entreoutros motivos, à dificuldade de assimilação de
moléculas complexas de aminoácidos, elas são,
via de regra, preferidas, quando comparadas a
produtos vegetais, por todas as populações quebuscam a saciedade alimentar (Figura 2).
Como a produção de carnes é relati-vamente mais cara (devido à transformação deproteínas vegetais em proteínas animais), anecessidade de consumo destes produtos só podeser satisfeita quando o nível de renda permite6.
Desta forma, existe uma relação muitoforte entre o desenvolvimento econômico e oconsumo de proteínas de origem animal6,7.
Há cerca de 25 anos as camadas mais ricasda população começaram a tomar consciênciaque elas comiam mais do que precisavam. Nestemomento, estes indivíduos começaram a procurartanto por alimentos que proporcionassem umasensação mais intensa de saciedade como poralimentos mais leves, de digestão mais rápida.Este fato explica, em parte, o grande aumentoda produção e de consumo de produtos light ediet no final dos anos 80. Os problemas dosexcessos no consumo de alimentos estão naorigem das mudanças nas preferências alimentaresobservadas nos países ocidentais ao longo dadécada de 808,9. Convém relembrar que estasmudanças foram mais pronunciadas nos extratos
mais ricos da população de todos estes países7,10.
Neste momento, a atração pelos efeitos de
saciedade alimentar produzido pelas carnescomeça a diminuir sensivelmente (Figura 3).
Comparando-se as Figuras 4 e 5, pode-se
perceber o início da inversão e tendência de
substituições entre os alimentos. Os produtos de
origem vegetal têm um novo atrativo, o qual éreforçado pela mudança no discurso dos nutri-cionistas. No caso da França, as referênciasrecorrentes à denominada dieta mediterrânea eo lançamento do Plano Nacional de Nutrição--Saúde têm preconizado a necessidade de
Figura 2. Contribuição, em porcentagem, aos ganhos energé-
ticos quanto ao consumo de produtos de origem
vegetal e animal e a porcentagens de desnutridos nos
continentes mencionados.
Fonte: Food and Agriculture Organization11.
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aumentar o consumo de frutas, verduras elegumes13. As Figuras 4 e 5 apresentam umaanálise do consumo francês de produtosalimentares, demonstrando a involução quantoaos produtos de origem animal e a evolução doconsumo francês de produtos de origem vegetal.
Assim, o consumo do conjunto de vegetais(cereais, legumes, verduras e frutas), que diminuía
em favor dos produtos de origem animal (carnese embutidos), aumentou após vinte anos. Este tipo
de aumento de consumo aconteceu, sobretudo,
nas frações mais ricas das populações francesa emundial.
Neo-vegetarianismo e novos comporta-mentos relacionados ao consumo deprodutos de origem animal
Em um contexto de abundância alimentar,as carnes vermelhas, cuja imagem simbolizava avivacidade e a força física (o cavalo, por exemplo),perdem seu caráter atrativo em favor dos produtoslácteos e das carnes brancas, principalmente dospescados. Estes alimentos, até pouco tempo atrás,eram considerados como menos interessantes, poisproporcionavam um sentimento de saciedademenor do que aquele das carnes vermelhas. Talfato ainda pode ser constatado pela observação
Figura 4. Consumo francês, segundo renda do domicílio, de
produtos de origem animal.
Fonte: INSEE14, citado por Lambert15.
Figura 5. Consumo francês, segundo renda do domicílio, de
produtos de origem vegetal.
Fonte: INSEE14, citado por Lambert15.
Figura 3. Consumo de carne das nações e sua relação com a renda.
Fonte: Rabobank International12.
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da evolução da repartição do consumo dosprodutos de origem animal e produtos lácteos nosdomicílios franceses (Figura 6).
consumo de carnes vermelhas, pois sãoestigmatizadas pela sua cor, que lembra o sanguee o próprio animal.
Fischler17 explica que existe a necessidadede uma certa descontinuidade e distância entre ohomem e o animal, para que o consumo de carnesseja aceito. A zoofagia é praticada porconsumidores que têm uma concepção clara dasuperioridade humana e percebem, ainda, umadescontinuidade, ou seja, uma ruptura precisa eidentificada entre o homem e o animal. Por outrolado, a sarcofagia é, de fato, a negação daimagem do animal no alimento que seráconsumido. Os caçadores e criadores de animaissão, de modo geral, mais zoofágicos que osagricultores. Entretanto, esses últimos têm aconsciência de sua superioridade vis-à-vis dosanimais de tração, dos quais eles aceitam comera carne. Em contrapartida, em todos os casos, osanimais domésticos, muito próximos e conside-rados como amigos do homem, não sãoclassificados como comestíveis. Assim, logo queum animal muda de status, como é caso do cavalona França, já há algumas décadas, e recentementeo do coelho, ele é progressivamente excluído dasopções alimentares.
A urbanização crescente pode ser apontadacomo um dos principais fatores que distancia osindivíduos do universo animal. Com isso, quandoo homem introduz em seu habitat animais decompanhia, a condição de alimento potencial doúltimo é completamente abandonada, uma vezque o animal é visto como um amigo9,17.
Cabe, então, lembrar que, em países queatravessam períodos iniciais de desenvolvimentoeconômico, a substituição de produtos de origemvegetal por produtos de origem animal é uma açãotípica realizada pelos indivíduos dessas nações.Porém, quando os alimentos tornam-se abun-dantes e ocorre uma saturação alimentar, umasubstituição inversa passa a ser percebida(produtos animais são substituídos por vegetais),conforme ilustrado na Figura 7. A Figura 8apresenta tal evolução considerando o caso daFrança quando expõe a evolução do consumo,
Figura 6. Evolução, em porcentagem, do consumo de produ-
tos de origem animal nos domicílios franceses.
Fonte: INSEE14, citado por Lambert15.
Não caracterizando um puro vegeta-rianismo (regime alimentar baseado unicamentena utilização de vegetais), o consumo de produtosde origem vegetal e de produtos de origemanimal, sobretudo o de carnes brancas, pode serconsiderado como uma combinação alimentar quecaracteriza um tipo de néo-vegetarianismo. Essenovo comportamento de consumo é explicado peloatual contexto de superabundância alimentar, ouseja, os indivíduos deixam de se preocupar tantocom a falta de alimentos quanto com a condiçãode saciedade promovida pelos mesmos.
Vialles16 verificou duas atitudes principaisdos indivíduos em relação ao consumo de carneanimal. A primeira atitude descrita pelo autor é ados indivíduos chamados de zoofágicos.Consumidores que assumem tal atitudealimentam-se de carnes animais sem seremincomodados pelo reconhecimento do animal noalimento consumido. Por outro lado, a atitude deindivíduos chamados pelo autor de sarcofágicosrevela um extremo incômodo desses quanto aoreconhecimento do animal nos produtos consumi-dos. Um exemplo do comportamento de consu-midores sarcofágicos seria a rejeição quanto ao
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indivíduos. Mas, paradoxalmente e, sem dúvida,em associação ao peso demográfico da populaçãoidosa, as preocupações relacionadas à saúdetornaram-se mais evidentes e a própria noção desaúde modificou-se.
A boa saúde que era associada à noçãoda ausência de doenças está, cada vez mais,relacionada ao bem-estar, ao aumento daexpectativa de vida e à redução das consequênciasdo processo de envelhecimento. A gestão docorpo e da saúde, que assumia um caráteressencialmente curativo, tornou-se igualmentepreventiva a médio e longo prazos. Nesse sentido,inquietações habituais quanto à qualidadedigestiva dos alimentos são complementadas porpreocupações quanto ao efeito, em longo prazo,de substâncias nocivas dos mesmos para a saúdehumana. A diminuição do consumo de certosalimentos - que poderiam estar ligados aoaparecimento de determinados tipos de câncer - ea ocorrência de uma queda brusca do consumode carne bovina - devido aos casos da doença davaca louca - são exemplos da evolução dessaspreocupações. Além disso, poder-se-ia destacarque, devido a essas novas preocupações, umaatenuação da fronteira entre alimentos emedicamentos vem sendo percebida.
Porém, cabe destacar que, quanto maisfortes forem as restrições econômicas para um
determinado grupo populacional, mais a gordura
será interpretada como símbolo de festa,
sobrevivência, riqueza e de distinção. Assim, emsociedades ocidentais ricas, quando o nível de vida
permite às classes médias maior facilidade de
acesso a alimentos ricos em gordura, a corpulência
pode passar a ser interpretada como obesidade.
Como consequência, a gordura torna-se símbolo
de pobreza e as classes ricas desenvolvem ummodelo de corpo magro, o qual passa a ser um
objetivo e símbolo de sucesso social.
Considerando a abordagem dos pro-fissionais da saúde que trabalham com nutrição,
Figura 7. Tendência mundial, segundo evolução dos níveis de
vida, do consumo de produtos de origem animal e
vegetal.
Fonte: Lambert5.
Figura 8. Evolução das despesas dos domicílios franceses, em
porcentagem de gastos, relacionadas ao consumo de
produtos de origem animal e vegetal.
Fonte: INSEE14, citado por Lambert15.
realizado em domicílio, de produtos de origemanimal e vegetal ao longo de quarenta anos. Aanálise dessa figura permite a constatação doretorno à preferência por produtos de origemvegetal por parte dos franceses.
Alimentação e gestão do corpo(6)
A evolução da medicina permitiu umimportante aumento da expectativa de vida dos
6 A expressão alimentção e gestão do corpo é empregada neste texto para explicar os cuidados e preocupações dos indivíduosquanto à relação causa-efeito da alimentação em seu corpo.
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a relação entre a alimentação e a saúde é bastanteenfatizada. Face à constatação de comportamen-tos alimentares excessivos, praticadosprincipalmente por populações ricas (com destaquepara indivíduos norte-americanos), preocupaçõesdietéticas, noções de higiene de vida e equilíbrioalimentar foram desenvolvidas. Entretanto, osdiscursos dos nutricionistas revelaram-se poucoeficazes na difusão das práticas de comporta-mentos alimentares equilibrados. Tal afirmaçãopôde ser comprovada por estudos que constataramque grande parte dos indivíduos associavacomportamento alimentar equilibrado ao aumentodo consumo de produtos com composiçãonutricional alterada (menor quantidade de lipídeosou glicídios, por exemplo) e à redução do consumode alimentos com composição nutricionalreforçada (alimentos enriquecidos em cálcio ouferro, por exemplo). O modismo do consumo deprodutos light e diet e, posteriormente, oaparecimento e a popularidade de produtosconsiderados como substitutos de refeiçõesimpulsionaram o desenvolvimento de um número
crescente de indústrias alimentares dedicadas à
produção de complementos alimentares e
alimentos nutracêuticos (alimentos funcionais).
Esse conjunto abrange, atualmente, um universode produtos que flutua entre os alimentos e osmedicamentos. Vale ressaltar que até a décadade 80, sobretudo em países latinos, essascategorias de produtos possuíam característicasabsolutamente distintas.
Preocupações estéticas e dietéticas, asquais são chamadas por este trabalho depreocupações diestéticas, caracterizam o modelode corpo magro referido anteriormente e que sepropaga, particularmente, entre mulheres de
países latinos. Regimes de emagrecimento sedesenvolvem e alimentos com funções cosméticasaparecem. Tais regimes podem ser associados,pelos mais abastados, com cirurgias estéticas (casoparticularmente importante no Brasil).
A saúde e o prazer são importantesdeterminantes das escolhas e práticas alimentaresdos povos. De modo geral, em culturas puritanas
anglo-saxônicas o conceito de saúde é um fortedeterminante de tais práticas. A expressão comerpara viver é empregada para descrever os hábitosdessas culturas. Já em culturas latinas epicuristas(aquelas que buscam, entre outros, os prazeresgastronômicos) o prazer determina as escolhasalimentares. Dessa forma, a expressão viver paracomer caracteriza melhor os hábitos dessasculturas. Porém, constata-se que esses doisdeterminantes vêm se misturando em confronta-ções culturais mundiais, principalmente, devidoàs preocupações sanitárias voltadas à alimentaçãodos indivíduos. Na França, por exemplo, taispreocupações deram origem à formulação depolíticas alimentares que vêm mudando ao longodo tempo. As políticas da década de cinqüenta,priorizavam, sobretudo, a segurança alimentar,tendo como principal objetivo a garantia doabastecimento alimentar da população. No finaldo século XX, preocupações quanto à segurançasanitária dos alimentos passaram a ser tema centraldessas políticas. A preocupação relacionada aoaumento dos casos de obesidade, entre outros
temas que provocam inquietude dos profissionais
ligados à saúde humana, promoveu, na França, a
criação da Agência Francesa de Segurança
Sanitária dos Alimentos (AFSSA), em 1999, e doPrograma Nacional de Nutrição e Saúde (PNNS),
em 2002.
Entretanto, considerando o vocabulário
empregado para definir o termo - segurança
sanitária dos produtos alimentares - torna-senecessário notar que os consumidores reivindicamque os alimentos possam garantir-lhes saúdesegundo diferentes representações. Dessa forma,para os mais preocupados quanto a doençasrelacionadas a uma má conduta alimentar, os
produtos consumidos devem garantir a ausência
de substâncias patogênicas e tóxicas em sua
composição. Quando preocupações estéticas são
consideradas, a quantidade energética e o
equilíbrio nutricional do que é consumido, apresen-tam-se como pensamentos dominantes nessevocabulário. Por fim, levando em conta aspreocupações de populações ricas e envelhecidas
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- aquelas buscam viver mais tempo e conservandoao máximo sua juventude - os alimentos deman-dados deverão contribuir para tal objetivo, porexemplo, oferecendo em sua composiçãosubstâncias antioxidantes.
Gestão do tempo e preferência porprodutos prontos para seremconsumidos
A evolução dos modos de vida e aimportância dada às atividades de lazer fazemsurgir novas demandas de consumo, sendo essastendências melhor percebidas no caso depopulações ricas. Além disso, o melhoramento donível de vida e a importância do papel social dasmulheres despertaram o interesse dessaspopulações por uma nova gestão do seu tempo.
Para se alimentar é preciso dispor derecursos financeiros e de tempo, uma vez quegrande parte dos produtos alimentares vendidosnão pode ser consumida imediatamente.Consumidores se encarregam da finalização daprodução dos alimentos semiprontos, da mesma
forma como confeccionavam suas vestimentas
antes do desenvolvimento do prêt à porter (pronto
para utilizar). Considerando uma produçãoalimentar doméstica, faz-se necessária a aquisição
de alguns equipamentos, o domínio de certos
conceitos culinários e a disposição de tempo que
será consagrada durante o preparo dos alimentos
ou refeições.
São, ainda, as mulheres que se responsa-
bilizam por 80% das atividades alimentaresdomésticas. Porém, sobretudo nas sociedadesocidentais, elas procuram progressivamente seliberar desses tipos de atividades. Essas mesmasmulheres investem em formação e informação,
procurando desempenhar atividades profissionais
que as valorizem socialmente e assegurem sua
autonomia financeira. A necessidade por talautonomia cresce na medida em que o númerode divórcios e o número de mulheres celibatáriasaumentam. A transmissão de conhecimentos
culinários entre gerações acontece em menorintensidade, enquanto aumenta a ocorrência derelatos de jovens quanto à falta de conhecimentosculinários. O modelo cultural da dona de casa ouda administradora do lar passa a ser menosevidente nas classes média e rica. Um modelo deigualdade dos sexos começa a ser mais imperativo.Considerando que a realização de atividadesdomésticas é uma ação pouco reconhecida, odescontentamento de mulheres dessas classes, queaté agora desempenham essas atividades, podeser percebido em seus discursos.
Ainda é preciso considerar que, principal-mente em sociedades ricas, as atividades de lazerse desenvolvem e acabam concorrendo comoutras atividades, principalmente as domésticas.Com o aumento do nível de vida, a restrição detempo torna-se um fator determinante nas opçõesdos consumidores. Independentemente da classesocial, todos os indivíduos dispõem de vinte equatro horas por dia. Entretanto, consumidoresde classes menos favorecidas afirmam compensaros baixos salários realizando atividades domésticas(jardinagem, pequenos consertos, atividadesculinárias, entre outras), o que aumenta seu tempode trabalho e diminui seu tempo de lazer. Por
outro lado, consumidores de classes mais
abastadas contratam terceiros para a realização
das tarefas domésticas. No Brasil, os baixos saláriospagos aos empregados domésticos permitem queindivíduos da classe rica e muitos indivíduos dasclasses médias contem com esses serviços. Emoutros países ocidentais, cuja mão-de-obraterceirizada é melhor remunerada, a compra deprodutos com serviços associados é muitopraticada por classes sociais mais ricas. Quando onível de vida permite a uma camada crescente
da população satisfazer suas necessidades
elementares como alimentação, será o tempo
consagrado às atividades de lazer que se tornaráum símbolo de diferenciação social.
Considerando tal evolução no nível de vida,a conseqüência é uma redução progressiva dotempo destinado às atividades alimentaresdomésticas, ou seja, o tempo dedicado ao
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abastecimento alimentar doméstico torna-se
limitado. Cultivo de hortas, criações de animais
de pequeno porte para consumo doméstico e
outras atividades de subsistência são abando-
nadas. A otimização do tempo gasto durante as
compras alimentares é obtida pela possibilidade
destas serem realizadas em um mesmo local
(desenvolvimento de grandes supermercados). A
redução da freqüência de compras de alimentos
é conseguida pelo surgimento e desenvolvimento
de novas tecnologias de conservação de alimentos
e, principalmente, pelo desenvolvimento da cadeia
do frio (estoque de alimentos em congeladores e
refrigeradores, permitindo o prolongamento da
vida útil dos produtos). Preparações alimentares
a partir de produtos brutos são progressivamente
abandonadas. Consumidores declaram preferir
produtos prontos para o consumo ou produtos que
exijam pouca dedicação durante o seu preparo
(produtos já cozidos ou pré-cozidos e produtos com
embalagens que permitam serem colocados
diretamente no forno ou microondas). Pizzas,
tortas prontas, saladas com molhos, sanduíches
e algumas sobremesas elaboradas podem ser
citados como exemplos desses produtos
(Figura 9).
Dessa forma, conclui-se que o desenvolvi-
mento econômico e evoluções associadas aosmodos de vida proporcionam uma transferência
da produção doméstica alimentar para a aquisição
dos alimentos via mercado. Tal afirmação é
verificada pela diminuição do consumo de
subsistência, aumento da demanda por produtos
prontos para o consumo e crescimento do númerode consumidores que afirmam realizar suas
refeições em restaurantes8.
As evoluções das formas e números decontatos alimentares ocorridos duranteum dia
Quando os indivíduos são questionadossobre os alimentos que foram consumidos no diaanterior, obtém-se uma resposta que, geralmente,corresponde aos alimentos consumidos nas últimasrefeições. Assim, cabe ressaltar que, principal-
mente em países latinos, a análise das respostas
obtidas por tais questionamentos contribui para o
entendimento de normas sociais dominantes
nessas sociedades e que impõem regras sobre oconsumo alimentar de um povo18.
Entretanto, deve-se destacar que, durante
um dia inteiro, as pessoas realizam, além das
refeições habituais (café da manhã, almoço e
jantar), outros contatos com alimentos que acabam
sendo desconsiderados pelos mesmos por nãorepresentarem verdadeiras refeições. Esses
contatos - alimentares realizados além das
refeições oficiais - podem ser efetuados segundo
influência de alguns fatores que merecem ser
investigados e destacados. Com isso, deve-se
considerar:
- sua organização no tempo: duração,
freqüência, regularidade e valor (refeições festivas
ou ordinárias);
- sua organização no espaço: local (nodomicílio ou fora do domicílio) e utensíliosdomésticos utilizados (utilização de garfo e faca,
palitos, mãos);
Figura 9. Escolha alimentar francesa, segundo renda do domi-
cílio, quanto ao nível de transformação dos produtos
consumidos e o local de consumo.
Fonte: INSEE15, citado por LAMBERT15.
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- seu grau de comensalidade: refeiçãoconvivial (número de convidados, grau de
parentesco), tipo de serviço adotado (self serviceou serviço realizado por terceiros), tipo de
ambiente e grau de intimidade durante a
realização da refeição (jantar formal ou churrasco
informal de final de semana, por exemplo);
- seu conteúdo: repertório de pratos
(alimentos sólidos e líquidos), quantidades de
pratos e tipo de culinária;
- grau de normalização: estrutura da
refeição (prato único ou entrada, prato principale sobremesa), nomes das refeições (café da
manhã, almoço e jantar), rituais praticados e regras
de comportamento durante as práticas
alimentares.
Desta forma, pode-se afirmar que os tiposde contatos alimentares variarão segundo seus
contextos (local, momento, grau de conviviali-
dade). A Figura 10 mostra uma esquematização
dos tipos de contatos alimentares praticados
atualmente na França. A organização no tempo
e conteúdos das refeições (líquidos e sólidos,salgados e doces, bem como quantidades
ingeridas), encontram-se no eixo vertical. A
organização, o espaço e o grau de comensalidade
são representados no eixo horizontal. O aumento
do grau de normalização dos contados alimen-
tares é verificado da esquerda para a direita.
A maior parte dos contatos alimentares,apresentados na Figura 10, são chamados derefeições. Entretanto, conforme afirmado anterior-mente, existem outros tipos contatos alimentaresmenos institucionalizados ou normalizados.Fischler17 considera que a característicaindividualista dos indivíduos e a evolução dosmodos de vida contribuem para a diminuição daritualização dos contatos alimentares. Essatendência à redução da influência de normasalimentares atuando sobre os comportamentos échamada pelo autor de gastro-anomia. O declíniode influências religiosas e morais sobre ações depovos de sociedades ricas ocidentais tambémcontribui para uma maior liberdade dos mesmosna realização de práticas alimentares menosritualizadas.
Considerando o novo contexto desuperabundância alimentar, a convivialidadeassociada às refeições (consumo dos mesmosalimentos em uma refeição, como por exemplo,um prato principal para a família), vem perdendoimportância. A falta de tempo e o consumo depratos diferentes pelos membros da família é umasituação cada vez mais comum em grandescidades. De modo geral, na França, foi constatadoque 80% das pessoas realizam as refeições almoçoe jantar com familiares ou entre amigos, porémessa afirmação não implica em consumo do
mesmo prato. Quanto ao café da manhã e outros
contatos alimentares menos ritualizados, esses são
praticados de forma solitária.
Ainda considerando o caso francês, mesmoque o modelo de três ou quatro refeições diáriasainda seja citado como norma, numerosos fatorescontribuem para o desenvolvimento e popula-
rização de novas formas de contatos alimentaresmais simples e individualizados. Mudançasdemográficas (como o envelhecimento da
população e a redução do tamanho das famílias),bem como a modificação dos sistemas de valoresdos indivíduos (como o aumento do individualismoe redução da importância de contatos sociais) sãoexemplos desses fatores que reforçam a tendênciada realização de refeições mais individualizadas.
Figura 10.Os tipos de contatos alimentares atuais dos
franceses.
Fonte: Lambert15.
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A falta de regularidade das refeições e seu caráter
individual são, também, decorrência da mudança
no ritmo de vida dos indivíduos. Entre outros
fatores, tal mudança pode ser justificada pela
organização do trabalho em horário flexível
(manhã, tarde ou noite), realização de grandes
deslocamentos e distância entre local de trabalho
e a residência. Cabe, ainda, destacar que a grande
oferta de alimentos e o desenvolvimento de
produtos prontos para serem consumidos, ou que
não exijam muita dedicação no preparo, além de
sistemas de entrega em domicilio e restaurantes
rápidos, também favorecem a realização de
refeições individualizadas e rápidas (Figura 11).
conservação (como secagem, defumação, salga,esterilização e congelamento) e a transformaçãodos mesmos (a partir de estudos da engenhariagenética, por exemplo, os produtos geneticamentemodificados) vêm permitindo a essas indústrias ooferecimento de novos produtos no mercado.
Até a metade do século XX o universoalimentar dos indivíduos (quanto a variedades dealimentos) era relativamente estável ao longo desuas vidas. Considerando-se tal universo, para ocaso de populações atuais (século XXI), percebe--se uma grande evolução em relação às opçõesde alimentos oferecidas em períodos diferentesde suas vidas. Entretanto Lambert9,19 afirma que,embora os indivíduos estejam habituados comocorrências de evoluções constantes, considerandodiferentes domínios, nota-se que as representaçõesalimentares dos mesmos evoluem mais lenta-mente do que os sistemas de produção-distribuiçãoligados à alimentação.
Em um sistema internacional e complexode produção e distribuição alimentar, os indivíduos,enquanto consumidores finais, têm informaçõesgenéricas sobre os locais de venda dos alimentose sobre os próprios produtos. Assim, todo oprocesso de produção por que passam os alimentosaté chegarem nos pontos de venda écompletamente desconhecido por aqueles que osconsomem. Além disso, os profissionais da cadeiaagroalimentar não têm se preocupado em informaros consumidores finais acerca das evoluções dessesistema. Tal desconhecimento gerou, nos últimosdez anos, sobretudo em consumidores de paísesindustrializados, uma grande ansiedade emrelação aos alimentos consumidos.
A distância entre os diferentes agentes queparticipam da cadeia produtiva em questão e osconsumidores aumentou significativamente, aolongo da segunda metade do século 20. Entre osprincipais motivos que provocaram tal distânciaestão a urbanização, a divisão mais complexa detarefas entre os agentes da cadeia e a globalizaçãocrescente do sistema de produção e distribuiçãoalimentar. Tal afastamento e falta de informaçãocontribuíram para que os consumidores manti-
Figura 11.Evolução das práticas alimentares e do tempo
consagrado à alimentação.
Fonte: Lambert15.
Modificações na oferta de alimentos
Em mercados que chegaram em umestágio de maturidade, as indústrias alimentaresque desejam ampliar o conjunto dos negóciosrealizados vêm investindo em estratégias dediferenciação com foco em inovação. A fase dematuridade e declínio desses mercados deve-se,sobretudo, à falta de investimento na composiçãodos produtos, pouca inovação dos mesmos e faltade modificação nas embalagens. O desenvolvi-mento dos estudos sobre os componentesnutricionais dos alimentos aplicados nas áreas de
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vessem a mesma imagem agrícola e artesanalque a produção rural tinha até os anos sessentado século XX. Assim, quando eventos como osurgimento da encefalopatia espongiforme bovina(doença da vaca louca) são anunciados aosconsumidores, esses passam a se questionar sobreo desconhecimento do sistema de produção dosalimentos e uma maior ansiedade emerge. Abusca por informações, muitas vezes, acabaaumentando a insegurança e provocando medonos indivíduos. Descobertas recentes de condutasde criação animal desaprovadas pelos consumi-dores, podem ser um exemplo desse novoprocesso de desconfiança e medo vividos pelosindivíduos.
O sistema de alta produtividade desen-volvido após os anos de penúria alimentar, quevisou assegurar uma autonomia nacional deabastecimento alimentar, não parece correspondera uma situação de abundância alimentar vividapor países ricos na organização mundial docomércio.
O paradoxo da segurança sanitária dosalimentos
O aumento da esperança de vida daspopulações e vários outros fatores, tais como adiminuição de ação de influências religiosas sobreos mesmos, podem estar fazendo com que osindivíduos não aceitem a morte de forma tácita.Além disso, evoluções dos conhecimentoscientíficos levam os indivíduos a acreditarem que,para a ciência, tudo pode ser possível. Em relaçãoaos alimentos, entre outras constatações, taisconhecimentos permitiram a detecção de novoselementos patogênicos e o desenvolvimento denovas técnicas de controle que limitam casos deinfecções e riscos alimentares. Entretanto, observa--se que são os riscos raros, ou eventuais problemasligados à alimentação, que despertam noconsumidor a ansiedade já mencionada por estetrabalho.
Nesse contexto de ansiedade alimentar,quando os consumidores desconhecem os efeitos
que poderiam ser causados pelo consumo de novosprodutos, esses tendem a sobressaltar possíveisefeitos negativos. Riscos do surgimento de doençasprovocadas por excessos de hormônio contidos nosalimentos, casos de doenças como a encefaloptiaespongiforme bovina e incertezas quanto aoconsumo de produtos geneticamente modificados(OGM), são exemplos de efeitos negativos dosalimentos que causam ansiedade nos consumi-dores. Nesses casos, o sistema límbico dosindivíduos os faz priorizar a rejeição de produtosque lhes pareçam nocivos, evitando, dessa forma,possíveis avaliações mais racionais sobre efeitospositivos e negativos desses alimentos. Nesse caso,a atitude dos indivíduos é considerada comobinária, pois implicará no consumo ou rejeição deum produto. Existem casos de consumidores maisousados e dispostos a experimentar alimentosdesconhecidos, porém face a novos produtos comcomposição nutricional considerada ameaçadora,segundo definição dos próprios consumidores, amaior parte dos indivíduos adota umcomportamento cauteloso.
Em sociedades que vivem situações deabundância alimentar, o campo das possibilidadesde escolhas alimentares é maior. Porém, quandoos consumidores acreditam que essa liberdadeestá ameaçada, por exemplo, quando indústriasdeclaram utilizar OGM para produzir seus produtosfinais, é comum que ocorram fortes reações porparte dos consumidores. Nesse caso, os discursosde cientistas têm pouco efeito junto aos mesmos.
Consumidores e cidadãos
Em sociedades democráticas, os cidadãosnão aceitam as imposições e buscam constan-temente o debate e discussão de possibilidades.Estes reivindicam, sobretudo, a deferência quantoà sua integridade física (a saúde) e identidade,sendo particularmente sensíveis no que diz respeitoà sua alimentação. Os cidadãos, enquantoconsumidores, reprovam atitudes passivas edefendem posições ativas buscando não seremenganados. Segundo essa nova realidade, o Centrode Pesquisas para Estudo e Observação de
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Condições de Vida Francês (CREDOC), os definecomo sendo - “consumatores”.
Essa mudança observada na atitude dosconsumidores deve-se, em parte, a uma alteraçãode poder entre os diferentes agentes da cadeiaprodutiva. Como discutido anteriormente, observa-se que as cadeias mais tradicionais eespecializadas, coordenadas pelos agricultores,transformaram-se progressivamente emfornecedores de matéria-prima e de produtos semi-elaborados para indústrias que atuam em cadeiasprodutivas alimentares complexas e cada vez maisglobalizadas. Tais cadeias têm sido, cada vez mais,coordenadas pelos agentes do elo distribuição, osquais são fortemente influenciados por opiniõesde consumidores mais conscientes e exigentes.Indivíduos vêm reivindicando o direito pelainformação sobre os produtos (suas composições),sobre os sistemas de produção (informações sobreorigem do produto e modos de preparo) e sobreas conseqüências futuras que o consumo dessesprodutos poderá lhes causar. Assim, caso ossistemas de produção e as escolhas tecnológicasadotadas para produção dos alimentos não lhespareçam convenientes, segundo seus sistemas devalores (produtos geneticamente modificados eutilização de farinhas animais como alimento paraanimais que, normalmente, não consomem carne,por exemplo), discussões são promovidas pelosconsumidores junto aos atores públicos e privados.Outra constatação é a ocorrência de reivindicaçõespelo respeito ao meio-ambiente (entre outras,poluição do ar e água, preservação da natureza,bem estar dos animais). As crescentes demandaspor produtos da agricultura orgânica correspondema tais preocupações. O desenvolvimento docomércio solidário e a luta contra o trabalho infantiltambém podem ser apontados como exemplosde comportamentos éticos que insistem sobre aquestão do respeito aos demais cidadãos.
A globalização das gastronomias
O aumento das trocas de informações sobrepráticas alimentares, passando de um nível local
para mundial, causa confrontações culturais entregrupos sociais. Tais trocas se efetuam segundo oprocesso sociológico de imitação e distinção. Osgrupos sociais dominados (pobres, rurais, paísesem desenvolvimento) imitam os grupos sociaisdominantes (ricos urbanos ocidentais). Classesabastadas ocidentais se tornam modelo para aspopulações ricas de países em desenvolvimento,como o Brasil. Com isso, observam-se represen-tações, atitudes e comportamentos alimentaresde brasileiros muito próximas àquelas dominantesna França. Grandes tendências de evoluções decomportamentos alimentares, principalmente depaíses ricos ocidentais, têm uma probabilidademuito forte de serem praticadas ao longo dospróximos anos em países em desenvolvimento,como o Brasil. Os resultados de uma amplapesquisa, que procurou investigar a ação dediferentes determinantes (sociodemográficos,socioeconômicos e socioculturais) sobre práticasalimentares de consumidores brasileiros, confir-mam tal afirmação. Tal pesquisa foi financiadapela Financiadora de Estudos e Projetos doMinistério da Ciência e Tecnologia (FINEP-MCT),realizada em 2003, e insere-se no âmbito de umacordo da Coordenação de Aperfeiçoamento dePessoal de Nível Superior e Comitê Francês deAvaliação da Cooperação Universitária com oBrasil (CAPES-COFECUB) entre a UniversidadeFederal de São Carlos, a Universidade Federal deMato Grosso do Sul e, pelo lado francês, a ÉcoleNationale d’Ingénieurs des Techniques desIndustries Agricoles et Alimentaires (ENITIAA).Maiores detalhes referentes a tais resultadospodem ser encontrados em Batalha et al.20.
Buscando uma distinção do resto dapopulação, os ricos ocidentais preferem o exotismocomo sinal de ostentação. O resultado dessa opção
é a adaptação de diferentes gastronomias aos
hábitos dos consumidores que as importam, dando
origem a criações e adaptações culinárias. A
globalização de trocas econômicas aumenta as
variedades de tipos de alimentos disponíveis.Associada à globalização das trocas culturais, tem-se uma evolução de culturas alimentares(preferências e comportamentos).
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Porém, como a alimentação é um impor-tante fator de identidade, as trocas gastronômicasimplicam na ocorrência de dúvidas sobre aidentidade dos indivíduos. Com isso, pode-seperceber a ocorrência de rejeições em relação adeterminados símbolos de outras culturas. Umexemplo seria a rejeição dos franceses ao modeloalimentar americano. Essa rejeição é reforçadapelos europeus no sentido de defender o modeloalimentar francês e promover os produtos típicosde cada região. Por fim, conclui-se que a seguran-ça alimentar dos pobres não é uma novapreocupação dos ricos. Campanhas que reforçamações de caridade, campanhas contra a fome,auxílio à alimentação, entre outras, sãoencontradas em várias sociedades.
Porém, considerando a nova situaçãogeopolítica das relações norte-sul, poder-se-iapropor a seguinte questão: a segurança alimentardos pobres não se tornará a segurança dos ricos?
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Recebido para publicação em 1 de setembro de 2005.