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Eduardo Vieira Martins 56 PROENÇA, M. Cavalcanti. “Transforma-se o amador na coisa amada”. In: ALENCAR, José de. Iracema. RJ: José Olympio, 1965. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. Vivaldi Moreira. BH: Itatiaia, SP: Edusp, 1975. [Voyage dans le provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes. 2 T. Paris: Grimbert et Dorez, 1830.] SANTIAGO, Silviano. “Liderança e hierarquia em Alencar”. In: Vale quanto pesa. RJ: Paz e Terra, 1982. SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. SP: Companhia das Letras, 1995. Eduardo Vieira Martins. Professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH/USP e autor de A fonte subterrânea. José de Alencar e a retórica oitocentista. SP: EdUSP, Lon- drina: EdUEL, 2005. PARIS SOB O OLHO SELVAGEM: QUELQUES VISAGES DE PARIS (1925), DE VICENTE DO REGO MONTEIRO Leticia Squeff (UNIFESP) Resumo Na multifacetada obra do artista Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), o livro Quelques Visages de Paris (1925) ocupa um espaço curioso. Narrativa de viagem ficcional, espa- ço para que o artista gráfico e o poeta se aliem num mesmo empreendimento, a obra chama a atenção pelas inversões que opera. Paris, um dos berços do iluminismo e da racionalidade erudita, torna-se foco de apreensões simbólicas e grafismos mágicos. Visto através dos olhos de um índio, o espaço urba- no conhecido e festejado ganha ares exóticos. E o “primitivo” é transferido para dentro da própria cultura europeia, num jogo em que os pólos de binômios como civilização-barbárie, popular-erudito, moderno-antigo se invertem. Palavras-chave Vicente do Rego Monteiro (1899-1970); Quel- ques Visages de Paris (1925); indianismo; narrativa de viagem Abstract The book Quelques Visages de Paris (1925), of Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), promotes several inversions. Paris, one of the cradles of the Iluminism and of the European rationality, becomes focus of symbolic apprehensions. Seen through the Indian’s eyes, the well-known urban space be- comes an exotic place. And the “primitive” is transferred in- side to the own European culture. The book expresses the impasses that would face some of the main representatives of the Brazilian Modernism on that moment. Key-words Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), Quelques Visages de Paris (1925), Indianism, travel writing

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Eduardo Vieira Martins56 PROENA,M.Cavalcanti.Transforma-seoamadornacoisa amada.In:ALENCAR,Josde.Iracema.RJ:JosOlympio, 1965. SAINT-HILAIRE,Augustede.ViagempelasprovnciasdoRiode JaneiroeMinasGerais.Trad.VivaldiMoreira.BH:Itatiaia,SP: Edusp, 1975. [Voyage dans le provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes. 2 T. Paris: Grimbert et Dorez, 1830.] SANTIAGO,Silviano.LideranaehierarquiaemAlencar.In: Vale quanto pesa. RJ: Paz e Terra, 1982. SSSEKIND, Flora. O Brasil no longe daqui. SP: Companhia das Letras, 1995. EduardoVieiraMartins.ProfessordoDepartamentodeTeoria Literria e Literatura Comparada da FFLCH/USP e autor de A fonte subterrnea. Jos de Alencar e a retrica oitocentista. SP: EdUSP, Lon-drina: EdUEL, 2005. PARIS SOB O OLHO SELVAGEM: QUELQUES VISAGES DE PARIS (1925), DE VICENTE DO REGO MONTEIRO Leticia Squeff (UNIFESP) ResumoNamultifacetadaobradoartistaVicentedoRego Monteiro(1899-1970),olivroQuelquesVisagesdeParis(1925) ocupa um espao curioso. Narrativa de viagem ficcional, espa-oparaqueoartistagrficoeopoetasealiemnummesmo empreendimento, a obra chamaa atenopelas inverses que opera.Paris,umdosberosdoiluminismoedaracionalidade erudita,torna-sefocodeapreensessimblicasegrafismos mgicos. Visto atravs dos olhos de um ndio, o espao urba-no conhecido e festejado ganha ares exticos. E o primitivo transferidoparadentrodaprpriaculturaeuropeia,num jogoemqueosplosdebinmioscomocivilizao-barbrie, popular-erudito, moderno-antigo se invertem. Palavras-chaveVicentedoRegoMonteiro(1899-1970);Quel-ques Visages de Paris (1925); indianismo; narrativa de viagem AbstractThebook Quelques Visages deParis (1925),ofVicente doRegoMonteiro(1899-1970),promotesseveralinversions. Paris, one of the cradles of the Iluminism and of the European rationality,becomesfocusofsymbolicapprehensions.Seen throughtheIndianseyes,thewell-knownurbanspacebe-comesanexoticplace.Andtheprimitiveistransferredin-sidetotheownEuropeanculture.Thebookexpressesthe impasses that would face some of the main representatives of the Brazilian Modernism on that moment. Key-wordsVicentedoRegoMonteiro(1899-1970),Quelques Visages de Paris (1925), Indianism, travel writing Leticia Squeff58 VicentedoRegoMonteiroumdosmaiscomplexosartis-tasbrasileiros.Suaproduoestende-sepelaescultura,a pintura e a poesia, a ilustrao de livros, entre muitas outras. Apesardesermaisconhecidocomopintor,suaatuaona vidaculturalbrasileiradosculoXXaindaestparasera-profundada. Foi para Paris ainda criana, com a famlia, on-de comeou a estudar artes. Aps uma breve estadia no Bra-sil, em que aproveitou para copiar as padronagens indgenas, retornou para a Europa, ficando em Paris entre 1921 e 1930. Nesseperodotravoucontatocomalgunsdosmaisimpor-tantes membros das vanguardas francesas na poca. Foi um doscontratadosdaGaleriaLEffortModerne,deLonceRo-senberg,querepresentavaartistascomoPicasso,Braque, Lger,Herbin,Severini,Beaudin,Ozenfant,entreoutros. AlgumasdesuastelasforamreproduzidasnoBulletinde LEffort Moderne, rgo da galeria e uma das principais revis-tasdeartemodernadapoca.1Certamentegraasaesses contatos, foi um dos organizadores da primeira exposio de artistasdaEscoladeParisqueaconteceunoBrasil.2Tendo passado boa parte da vida na Frana, sua atuao artstica e cultural se projeta sobre dois pases.3 O artista no estava no Brasil por ocasio da Semana de 1922, mas participou dela com dez obras, sendo o nico 1 Apud ZANINI, Vicente do Rego Monteiro. Artista e poeta (1899-1970). So Paulo, Empresa das Artes/Marigo Editora, 1997, p. 128. 2 Sobre o assunto, cf. ANJOS JR, Moacir dos & MORAIS, Jorge Ventu-ra. Picasso visita o Recife: a exposio da Escola de Paris em maro de 1930. Estudos Avanados, vol. 12, n. 34, So Paulo, Set./Dez. 1998. 3Maisdoquequalquerartistabrasileiro,eleviveuintensamenteduas culturas:abrasileiraeafrancesa.Nocomoumsimplesregionalista extico,noprimeirocaso,nemcomoumcosmopolitaprovinciano,no segundo. Mas como um integrado, um participante ativo e atpico. Toda a sua vida oscilou em longas temporadas entre o Recife e Paris e, assim, terminouporserumdivulgadordosmaisapaixonadosdasduascultu-ras.Vicente:poeta,tipgrafo,pintor.Organizadores:PauloBrusckyetal. Recife: CEPE [Companhia Editora de Pernambuco], 2004, p. 18. Quelques Visages, Rego Monteiro59pernambucanodoevento.4AproduopictricadeRego Monteirodialogouinicialmentecomoartdcoeocubismo, sendo sempre fundada no desenho e na busca da simplifica-oformal.Incorporandoorigorestruturaldocubismo classicizantedeLgereoutros,suascriaesestiveramali-nhadas, por um lado, quilo que j foi chamado de moder-nidade conservadora, que caracterizou a arte do ps-guerra, particularmentedosanos1920.Poroutro,estudoulonga-menteaarteindgena,aestampariaclssicajaponesa,aarte assria e egpcia, aliando esses estudos plsticos a uma inves-tigaosobremitoselendasdosndiosbrasileiros.5Senos anos20dedicou-sebasicamentepintura,seusinteresses foram mltiplos: grande danarino, tambm tomou parte, na Frana, de corridas automobilsticas. Em 1932 arrendou um engenhoevirouprodutordepinga,aCaninhaCristal, cujortulotambmeracriaosua.FoiprofessordeBelas ArtesnaUniversidadeFederaldePernambucoediretorda Imprensa Oficial no mesmo estado. Sua participao na vida literria do perodo no foi menosimportante.Alis,muitopelocontrrio.Estudos recentes vm demonstrando o enorme peso que a literatura e as atividades ligadas imprensa tiveram na vida do artista, principalmente aps seu retorno ao Brasil, em 1930.6 Publi-cou 17 livros de poesia, sendo autor de 19 obras literrias ao todo.Escreveuquasetodososseuspoemasemfrancs, 4AsobrasforamlevadasporRonalddeCarvalhoparaoeventoTrs retratos,sendoumdeRonalddeCarvalho,Cabeasdenegras,Cabeaverde, BailenoAssrio,duasLendabrasileira,doisquadrosintituladosCubismo. AMARAL, Aracy. Artes plsticas na semana de 22.5 edio revista e ampli-ada, So Paulo: Ed. 34, 1998, p. 180. 5A modernidade do artista apegava-se ao ngulo conservador dominan-te depois da 1. Guerra: ajustava dados dessa atualidade ps-vanguardista aos exotismos telricos recuperados na Amaznia. ZANINI, op. cit., p. 127. 6 Refiro-me a ATIK, Maria Luiza G. Vicente do Rego Monteiro, um brasileiro deFrana.SoPaulo:EditoraMackenzie,2003eVicente:poeta,tipgrafo, pintor, op. cit. Leticia Squeff60 traduzindo-os depois para o portugus. Como poeta, con-sideradoautordoprimeiropoemaconcretofeitonoBrasil. NaFrana,ganhouosprmiosMandatdesPots(1955)eo Prix Apollinaire (1960), alm de ser includo no Livro dOr da poesiafrancesaem1969.Comoeditoreilustrador,promo-veu a publicao de autores brasileiros e franceses. Escreveu peas para o rdio, foi editor atuante foi ele que publicou osprimeirostextosdeJooCabraldeMeloNeto.Editou revistasnaFranaeemPernambuco,organizouencontros de poesia no Recife, publicou discos com poetas declaman-dosuascriaes,fezprogramasderdionaMaisonRadio-France, entre outras atividades.7 De toda essa extensa e curiosssima atividade de Re-go Monteiro como editor e ilustrador, minha inteno aqui discutir a obra Quelques Visages de Paris. O original foi publi-cadoemParis,em1925.8Olivromostravistasdosprinci-paismonumentosdeParisacompanhadosporpequenos poemas. O autor dos textos e dos desenhos um ndio fic-cional que, deixando sua aldeia no meio da floresta Amaz-nica, teria passado alguns dias na capital francesa. Tendo em vista o tema desse Seminrio, gostaria de discutir aqui as seguintes questes: o que o selvagem de Re-go Monteiro enxerga na cidade de Paris, e como ele descreve oqueviu?Qualaintenodoautor/artistacomessaobra: responder demanda pelo extico, to em voga na cole de Paris,ouridicularizaressainteno?Ouseriajustamenteo contrrio,valorizaroolharnaf,resgatandofaturaspr-colombianaseumalgicanocivilizada,noracionalista? Ser que os europeus queriam ver o seu espao segundo um olhar extico? 7 Dados tirados de Vicente: poeta, tipgrafo, pintor, op. cit. 8Utilizoaediofac-similarorganizadaporSCHWARTZ,Jorge.Do Amazonas a Paris: as lendas indgenas de Vicente do Rego Monteiro. So Paulo: Edusp, 2005. Quelques Visages, Rego Monteiro61Geralmente foram os poemas que chamaram a aten-o dos que discutiram Quelques Visages de Paris.9 Meu objeti-voaquiumpoucodiferente.Ofocoprincipaldeminhas reflexes so os desenhos. Mas a discusso no pode se re-sumir a eles. Nessaobra,RegoMonteiroaliaduasformaspoti-cas, a plstica e a textual, numa descrio lrica da cidade de Paris.Unindoilustraesecurtospoemas,escritosemca-racteres gticos, a obra pode ser vista como adeso de Rego Monteirovogadospoemasilustradosqueatraramdiver-sospersonagensdavanguardafrancesa.OchamadoLivre dArtiste surge na Frana, no comeo do sculo, associado a umanovaconcepodearte.Umdosprimeirosempreen-dimentosdessetipoparecetersidoParalllement(1900),de Verlaine,cujasilustraesforamfeitasporBonnardpor encomendadeVollard.Omesmomarchandencomendaa Picasso as ilustraes para a Histria Natural (1942), de Buf-fon, a Chagall as pinturas das Fbulas de La Fontaine (1952) e das Almas Mortas (1948), entre muitas outras realizaes do tipo.Concebidocomoobjetoartstico,olivrodartiste devia configurar uma obra de arte total, concretizada em um livrodeluxo,quasesemprefeitoempequenatiragem,de ummodoartesanal.10AobradeMonteiroadequa-se,sob mais de um ponto de vista, a esse modelo. Quelques Visages se constrisobreascorrespondnciasentretextoeimagem, 9Cf.,porexemplo,oscomentriosdeJorgeSchwartznoprlogoda ediofac-similar,op.cit,ouosfeitosporMariaLusaAtik,op.cit.As duas anlises, se no deixam de comentar tambm as imagens, privilegi-am os poemas da obra. 10 Entre 1909 e 1959, outro marchand importante na poca, Kahnweiler, publicaria36livrosdeartistacontandocomaparticipaodealguns dos mais importantes artistas do tempo. Sobre a questo, cf. Connaissance delapeinture,Paris:Larousse,1997,eADAMOWICZ,Elza.TheLivre dartiste in Twentieth-century France. French Studies, v.63, n.2, 2009, pp. 189-198.Inhttp://fs.oxfordjournals.org/cgi/content/full/63/2/189 (acessado em 10/julho/2009). Leticia Squeff62 entrepinturaepoesia.Tambmoresultadomaisdoque umsimpleslivro,configurandomesmoumobjetodearte: foi impresso em luxuosa tiragem de apenas 300 exemplares, com pginas soltas, ilustradas e amarradas no meio por uma fita dourada. A obra composta por dez vistas da cidade de Paris, cada uma acompanhada por um poema. Os desenhos, feitos emnanquimsobrefundocremedopapelverg,descrevem osseguintesmonumentos:NotreDame,TourEiffel,Trocadro, Viaduc dAusterlitz, Pont de Passy, SacreCoeur, Concorde, Louvre, JardindesPlantes,ArcdeTriomphe.Oprlogo,assinadopelo prprio artista, prepara o leitor para o que ele vai ler: Um dia, um chefe indgena deixou a mata virgem e veio incgnito a Paris. Depois de alguns dias, cansado de tantas grande-zas, retornou a sua oca. Numa de minhas ltimas viagens ao inte-rior do Amazonas, tive a felicidade de conhec-lo. Confiou-me suas impresses sobre Paris, e ao mesmo tem-podeu-mealgunsesboosfeitosinloco,quereunicomottulode Algumas vistas de Paris.11 Essasvistastrazem,assim,noapenasimagensno cannicaseinesperadasdelugaresmuitoconhecidosde Paris pois so realizaes de um ndio, dono de um olhar pretensamenteingnuo,aindanotreinado,sobreapaisa-gem urbana. Elas tambm exprimem, nos textos poticos, o estranhamento,oconfrontoentreculturasevaloresque aparentementesotodiferentesosdaculturaeuropia, os do ndio. Algumas vezes os textos corroboram as ima-gens,algumasascompletam,ealgumasvezestambmtra-zemoutroselementosparaodiscurso.Vejamosalgunse-xemplos. 11Prlogo.AlgumasvistasdeParis.UtilizoaquiastraduesdeRegina Salgado Campos na edio organizada por Schwartz, opcit. Quelques Visages, Rego Monteiro63Do espao da razo ao espao simblico SeolivrodeartistafeitoporRegoMonteiroapresenta imagens de pontos tursticos e lugares conhecidos da cidade deParis,emalgunsmomentosoefeitoqueprovocanolei-torjustamenteocontrrio:deestranhamentonoapenas comoqueestsendorepresentado,comocomoqueest sendo dito. Na Tour Eiffel, texto e imagem se complementam. O poema afirma: Umagrandechamin/outorredecombate:/Pareceque ela/Nomuitoslida/Oubemaprumada:/Demedoquee-la/Caia,fixaram-na/terraportodosos/Ladoscomvrias/ cordas bem esticadas./ So os escombros da /Torre de Babel! Fig.1. Tour Eiffel, Quelques Visages de Paris. Leticia Squeff64 ArefernciaTorredeBabelnodeixadeevocar uma das particularidades da cidade de Paris, que h dcadas abrigava estrangeiros de vrias partes do mundo. Mas apesar darefernciaaoAntigoTestamento,ondiodemonstraen-tender o que v de modo desconcertante: compara a Torre a umagrandechaminouaumatorredecombate.Conclui que ela frgil. Odesenho(Fig.1),fazendopendantaopoema,au-mentaaindamaisasensaodeestranhamento.Traada comformassimplificadas,atorreEiffelperfeitamente reconhecvel aos olhos do observador que conhece a cidade, ouquejviuumdosinmeroscartes-postaisdomonu-mento que circulam pelo mundo desde fins do sculo XIX. Mas aqui, a torre aparece num contexto completamente no-vo.OselvagemdeRegoMonteiroconstri,comomonu-mento,umaimagemqueremeteacosmogoniasantigas,a umavisoreligiosadoespaoqueseutilizadoselementos naturais,comoocu,aterraeasguas,paraaconstituir. Colocada entre o sol e a Lua, em cima, e as guas do rio, dos doislados,embaixo,atorreperdeaaparnciamoderna. To alta quanto os astros celestes, ladeada por eles, e com as cordas formando uma espcie de cone ao seu redor, ela pa-rece uma oca indgena. E a torreEiffel, vedete da exposio industrial de 1889 e grande feito da tcnica e da esttica mo-dernas, se transforma numa estrutura delicada, com sua tra-ma evocando no o ao, mas talvez a palha ou a corda.12 O monumento ao progresso se transforma em totem. Numefeitosemelhanteaoutrasimagensdolivro, em sua Place de la Concorde (Fig. 2) o ilustrador alia a represen- 12 Leonardo Benvolo um dos autores que mostra o quanto a constru-o de Eiffel chocou os contemporneos. Em carta aberta assinada por homens de letras e artistas, entre eles mile Zola, a torre era comparada, emsuafeira,justamenteaumachamindefbrica,talcomofariao ndiodeMonteiro.CF.BENEVOLO,Leonardo.Histriadaarquitetura moderna. So Paulo: Perspectiva, 2001, pp. 144-146. Quelques Visages, Rego Monteiro65tao figurativa estilizao, a geometria sinttica inteno descritiva. O obelisco, no centro do desenho, perfeitamen-te reconhecvel. Em seu entorno, signos evocam as rvores, moradias e as margens do Sena. Fig.2. Place de la Concorde, Quelques Visages de Paris. Parachegarmaispertodaintenooudavisodo ilustrador,precisocompreenderopoemaqueacompanha aimagem.13Nessapraaemformadequadrantesolar,os antigos parisienses vinham consultar as horas. Naaproximaoentretextoeimagem,asinverses de sentido se concretizam. O Obelisco resqucio do pode-rioblicofrancsnosreinosdeultramardescritopelo 13 praa em forma de quadrante solar,/ se levarmos em conta essa agu-lha/apontadaparaocu./eraaliqueosantigos/parisiensesvinham/ consultar as horas Place de la Concorde. Algumas vistas de Paris. Leticia Squeff66 ndio como uma simples agulha apontada para o cu, que marca as horas do dia ao projetar sua sombra no solo. J na imagem,avistaurbanasedescaracterizacompletamente.A praa da Concrdia foi cenrio de alguns dos mais importan-tesacontecimentosdahistriafrancesa,particularmenteos ligados Revoluo de 1789. J no tempo de Rego Monteiro abrigavaalgumasinstituiescentraisdavidapolticada Frana moderna, como a Assembleia (Palais Bourbon, sede da AssembleiaNacionalfrancesadesde1879).Maspelapena dondio,todoessecenrioganhaaresprimitivos.Estrutu-randoossmbolosnumtodogeomtrico,quemarcamrit-mos pela variao dos arabescos em torno do eixo vertical o obelisco a paisagem transforma-se em padronagem, um desenho primitivo. A praa espao da negociao poltica, olugaremqueaohumanamudouahistria,transfor-ma-se no lugar do encontro do homem com as estrelas, com ofirmamento.Ocentrodavidapolticafrancesasetrans-forma num espao de contemplao dos poderes do univer-so. Noentanto,outrasescolhasdeRegoMonteiropara fazersuasVistasdeParisresistemmaisaoobservadorcon-temporneo.CasodesuaimagemdoTrocadro.Paracom-preend-la,foiprecisocompararodesenhocomumafoto do antigo edifcio. Numaconstruofortementegeometrizada,azona escura no fundo estrutura o perfil do monumento (Fig. 3). comoseaintenofossecriarumefeitodeprofundidade por algum que no domina o desenho. Mas o contraponto entrezonasescuraseclarasindica,tambm,opartidoado-tado pelo ilustrador. No o edifcio (Fig. 4) em estilo mou-risco, construdo para sediar a Exposio Universal de 1878, que interessa. Ao contrrio, os arabescos enfatizam os espe-lhosdgua,osrecantoscomrvoreseguasquefazemo entorno ao monumento. Aqui, pelo deslocamento de ponto Quelques Visages, Rego Monteiro67devista,dopalcioconstrudopormoshumanasparaa gua e as plantas, o narrador demarca o olhar do indgena. Fig.3. Trocadro, Quelques Visages de Paris. Fig.4. Trocadro - Exposition Universal de 1900 carto postal. Leticia Squeff68 Tambm o poema que acompanha a imagem refora esseolharno-europeu.14Emsuasconsideraes,oselva-gem-poeta acha que o Trocadro a casa de um grande guer-reiro,eque,ajulgarporseustrofus,algumcompetente naartedeembalsamareempalharoscorposdeseusinimi-gos.Paraentenderocomentriodopersonagem,preciso investigar as funes que o edifcio desempenhava no pero-do. Em 1925 o Trocadro sediava algumas instituies de cul-tura e cincia tais como: um museu de escultura comparada, um museu indo-chins e um museu de etnografia no primei-ro andar.15 Pode-se aventar, assim, que o poema se refere ao MuseudeEtnografia.Essahiptesereforadapeloque afirma o ndio no final do poema: Foicomomaiorapertonocoraoquevimeusances-trais em posturas to estranhas. Aqui,pelaprimeiravez,otextoopedemodoex-plcitoeuropeusendios,evocandonoapenasoprocesso da colonizao, como invertendo um dos grandes discursos que o embasou o do processo civilizador. Ele comea tra-andoumcuriosoparaleloentreeles:ambosvmocorpo como sinal da vitria sobre os inimigos. isso que justifi-ca,aosolhosdondio,ofatodequetambmemParisele encontracorposembalsamados.Masessestrofustrazi-dos pelo europeu de suas incurses pelo territrio americano soumindciodadestruioaqueforamsubmetidosos ndios.16Setambmoseuropeusseapropriamdoscorpos deseusinimigos,expondo-os,porm,aosolhosdequem 14 Casa de um grande guerreiro/ a julgar por seus trofus,/ ele muito competentenaarte/deembalsamareempalhar/cabeasecorposde seus inimigos/ foi com o maior/ aperto no corao que/ vi meus ances-trais em posturas to estranhas. Trocadro. Algumas vistas de Paris. 15EssasduasltimascoleesforamacrescentadasaoMuseudoHo-memquandooedifciofoidestrudo,eemseulugarfoiconstrudoo Palais Chaillot, em 1937. 16 Cf. ATIK, op. cit., p.105. Quelques Visages, Rego Monteiro69quiser ver, onde est a civilizao? A imagem, ao enfatizar o que resta de natural desse cenrio todo construdo pelo ho-mem civilizado, refora a negao da cultura europeia mani-festadapelopoema.Eaqui,asombradoedifcioganha tambmumsentidometafrico:comoameaaaorestode naturezaqueaindaresisteforadasparedesdoMuseude Histria Natural. ComrepresentaescomoasdaTourEiffel,doTro-cadroedaPlacedelaConcorde,ondiodeRegoMonteiro promoveumainversodevaloresepontosdevistaverda-deiramenteinsidiosa.Seuolharprimitivoextraidoespao urbano, aparentemente conhecido, verdades inesperadas. No confronto entre texto escrito e imagem, os monumentos da razo seja do progresso tcnico a torre; seja da cincia o Trocadro, seja da vida poltica no Estado moderno a Place delaConcordetransformam-seemespaosregidospelo sensorial, por uma religiosidade estranha cultura crist, ou aindapelodesnudamentodoteorviolentodasociedade europeia.Nessa inverso Rego Monteiro tambm seguia a tri-lhademaisdeumcontemporneo.Desdeocomeodo sculo,certasaturaocomaculturaeuropeiamotivavaal-gunsartistasabuscareminspiraoemtudoaquiloqueera exticoentendidoaquicomooqueestavaforadospar-metros de civilizao e alta cultura, segundo uma perspectiva eurocntrica.Asmanifestaesexticaspareciamabrirum novoeixocriativoparaartistaseintelectuais.nessecon-texto que as atenes se voltam para a chamada arte africa-na,paraassociedadestribaisdaOceania,siaefrica,e tambm para a Amrica Latina. essa crena o que motiva a viagem de tantos contemporneos para fora do continente europeu.17 17 Antonio Candido observa que as ousadias de Picasso, Brancusi, Tzara, narecuperaodeimagensprimitivaseramaiscoerentecomnossahe- Leticia Squeff70 A pardia dos livros de viagem J na representao do Louvre (Fig. 5), texto e imagem pare-cemcriardissonncias.Opoema,bastantecurto,afirma: LojadomaisricomarchanddaFrana.penaqueelenoponha preonosquadros.Senodeixadeevocaraingenuidadedo ndio,aoacharqueoMuseuumaloja,opequenotexto desconcerta,tambm,oleitor.Paraqueumndioselvagem quereria comprar quadros? Fig.5. Louvre, Quelques Visages de Paris. ranaculturaldoquecomadeles.Ohbitoemqueestvamosdo fetichismonegro,dascalungas,dosex-votos,dapoesiafolclrica,nos predispunhaaaceitareassimilarprocessosartsticosquenaEuropa representavam ruptura profunda com o meio social e as tradies espiri-tuais.InCANDIDO,Antonio.Literaturaeculturade1900a1945. InLiteraturaeSociedade.8ed.,SoPaulo:T.A.Queiroz/Publifolha, 2000. Quelques Visages, Rego Monteiro71 Fig.6. O Louvre e seu entorno. Google Maps. J a imagem traz uma complexidade inesperada, que podesermelhorcompreendidaaocompar-lacomuma vista panormica do edifcio e seu entorno. (Fig. 6) O dese-nhocongregadiferentespontosdevistanumamesmaima-gem. O edifcio do museu est delineado em planta-baixa. O Arco do Carrossel (Arc du Triomphe du Carroussel) delineado emperfil,masdeponta-cabea,nocantoinferiordodese-nho. Ao redor deles, construes estilizadas, signos de rvo-resedagua.Novamenteaqui,estilizaoerepresentao figurativa se aliam. Dessa miscelnea de linguagens plsticas, emerge algo novo. fcil esquecer o que a imagem referen-cia um edifcio, o Louvre e enxergar apenas um padro decorativoparecidocomaquelesdacestariaoudascermi-casindgenas.(Fig.7).Esseselementos,aoladodaslendas indgenas,parecemtersidolongamenteestudadosporVi-centeentreosanosde1915e1921,perodoqueestavano RiodeJaneiro.18JoaquimdoRegoMonteiro,retratandoo ateli do irmo em Paris, mostra os desenhos com cpias de padronagens indgenas feitas por Vicente.19 O que indica um interesse profundo do artista por essas linguagens, que seri- 18 Apud ZANINI, op. cit., p. 119. 19 AMARAL, Artes plsticas na semana de 22, pp. 181-182. Leticia Squeff72 am, alis, desenvolvidas em pinturas de cavalete e em outras ilustraesqueoartistaproduziu.20Motivosdecorativos indgenastambmatraramasatenesdeoutrosartistas brasileiros na poca, como Regina Graz, Manoel Santiago ou mesmo Vitor Brecheret, entre outros. Fig.7.Cestocargueiro,ndiosPukobye, Maranho, Museu Goeldi, Par. Deve-seacrescentar,porm,queenquantootexto fala em loja de quadros uma referncia civilizada , a mo dondiodesenhaarabescos.Pelasmosdeseun-dio/artista/ilustrador, o Louvre grande centro da arte oci-dental,destinodeperegrinaodeartistaseuropeuseno europeushdcadastransformadonumgrafismo,um arabescoprimitivo,misturadoaoutros.Haveriaaquiuma brincadeira com a demanda por arte primitiva de setores das vanguardaseuropeias?Ousimplesmenteumainverso,ma-liciosa, dos valores associados arte? 20ElzaAjzembergeZaniniapontamasrelaesdaspinturasdetemas indgenasdeRegoMonteirocomacermicamarajoaraecomobjetos feitos pelos ndios carajs. Cf. AJZEMBERG, Elza. Vicente do Rego Mon-teiro: um mergulho no passado. FFLCH: doutorado, 1984, 2 v; ZANINI, op. cit. Quelques Visages, Rego Monteiro73JailustraodoJardindesPlantes(Fig.8)anica, emtodaaobra,emqueestorepresentadaspessoas.Essa instituio,quefuncionaathoje,possuijardimbotnico, um museu de histria natural e um minizoolgico. A ilustra-ocentra-seespecificamentenessezoolgico,representan-do mes e filhos, crianas brincando, em torno de um gran-deeixocircular.Grossaslinhasquadriculadasseparamos espaosocupadospeloshumanos,daquelesemqueesto confinadososanimais.Emdesenhossemprofundidade, semvolume,estodesenhadasgirafas,tartarugas,macacos, aveseoutros.Arepresentaodosanimaislembra,emsua simplicidade, pinturas rupestres, ou ainda decoraes encon-tradasemobjetoscermicoscriadosporndiosnoBrasil (Fig. 9). Fig.8. Jardin des Plantes, Quelques Visages de Paris. Leticia Squeff74 Fig.9.Vasilhames-ndiosTukuna-RioSolimes, Amazonas 2, Museu Goeldi, Par. Opoemacorroboraarepresentao,levantando uma srie de questes. O ndio pergunta, por exemplo, se j houveplantasnaquelelugarestranho,eseospobresani-mais as devoraram. A seguir, o narrador se pergunta como elesvierampararl.Paraterminar,questiona:umacoisame intriga: por que colocaram grades separando-os? Eaqui,asgrossaslinhasqueseparamhomensea-nimaisganhamsentido:soascorrentesqueseparamho-menseanimais.Comoenfatizaopoema,essaseparao parece, na viso do ndio, uma violncia contra a natureza. E aqui,poesiaeimagemconfluemnumadiscussosobrea artificialidade da vida civilizada. A cultura europeia separa o que da natureza do que humano. As correntes separam uns e outros. Mas apenas os animais esto acorrentados? O confinamentotambmnopoderiasereferirspessoas, constrangidasacaminharporcaminhosestreitos,delimita-dos por essas correntes? AotransformaratopografiaquecercaoLouvreem padronagemindgena,aoexplorarasestruturascoercitivas da cultura europeia, explicitando a separao entre o homem europeu e os espaos naturais o dos homens primitivos Quelques Visages, Rego Monteiro75empalhadosnoTrocadro,oudosanimaisnozoolgicodo Jardin das Plantes , o livro de Rego Monteiro opera no regis-tro da pardia. Se,comojfoiapontado,QuelquesVisagesdeParis um livro de artista, a obra traz para o leitor brasileiro, con-tudo, uma veia interpretativa muito mais interessante. Pode-se apontar, por exemplo, a relao da obra com as narrativas de viagem sobre o Brasil, comuns na cultura francesa desde o sculo XVI, com relatos como os de Jean de Lry e Andr Thevet. Esto no livro de Rego Monteiro alguns dos atribu-tos tpicos daquele gnero literrio: um narrador que comen-tasuasimpressessobreumaterraestranha,umaobraque alia texto e imagens, feitas de memria, dos lugares e perso-nagens observados. Contudo, aqui, os eixos se invertem.Onarradornoeuropeu,masumndio.Eaterra estranha no a Amrica selvagem, mas a capital mais civili-zadadaEuropa.EssainversoaproximaolivrodeRego MonteirodeobrascomoAsCartasPersas/LettresPersanes (1721),deMontesquieu.Dessepontodevista,pode-seen-tender Quelques Visages de Paris como uma espcie de pardia dos livros de viagem. Ao inverter os eixos do discurso, Rego Monteirocriticaacolonizaoeadestruiodanatureza selvagem. Lamenta que ndios estejam embalsamados, e que plantas e animais fiquem presos em jaulas ou estufas artifici-ais.Eleinvertealgicadasociedadeeuropeia,mostrando sua brutalidade. EaobradeMonteirooperaaindaoutraspardias. Monumentoshistricoseedifciosurbanosconhecidosso parodiados ao ganhar de Rego Monteiro uma aparncia dife-rente, entre supermoderna e/ou arcaizante. E aqui as refe-rnciascruzadaseapardiasesobrepememultiplicam:o ilustradororatransformaotraogeometrizanteemsntese formalrefinada,alinhadasvanguardasdosculoXX,ora Leticia Squeff76 faz com que linhas estilizadas lembrem a fatura artesanal da cermica indgena pr-histrica. Geralmentesedizqueessaobra,comoaanterior, Lgendes,soformasdeRegoMonteiroseadequaraointe-resse da cole de Paris pelas culturas exticas.21 Mas no seria o contrrio? Ao mostrar a cidade europeia como foco de um olhar indgena, o artista est subvertendo a lgica do extico da cole. Sob o olhar do ndio fictcio de Rego Monteiro, a cidade de Paris que se torna extica. a lgica europeia, que empalha pessoas e animais, que se torna estranha. O selvagem e o civilizado por Vicente do Rego Monteiro Em1930OswalddeAndradeconvidouRegoMonteiroa tomarpartedomovimentoantropofgico.Esteserecusou, indignado por no reconhecerem nele o papel de precursor: No fao questo de ser considerado um dos antropofgi-cos. Se me chamam indianista, aceito plenamente. Pois antropofagia s pode ter vindo do indianismo. Quem fez questo de me incluir no Movimento Antropofgico foi Oswald de Andrade, quando (...) me convidou a participar do movimento do qual eu era na verdade um precursor (...)22 De fato, na obra de Rego Monteiro os ndios foram tema recorrente desde a exposio que apresentou no Recife 21 Se no o fazia em obedincia a uma atitude ortodoxamente antropo-fgica,pelomenosobedeciatendnciaconhecidadaEscoladeParis, quecomeara,desdeocubismo,aincorporarascontribuies,ento consideradasexticas,dasartesdafrica,sia,Oceaniaedaprpria Amricapr-colombiana. Dequalquerforma em face do critrioanal-gico,VicentedoRegoMonteirodeveserapontadocomoprecursordo antropofagismo nas artes visuais do Brasil em nosso sculo. ATIK, op. cit., pp.117-118. 22 Rego Monteiro, apud ATIK, op. cit., p.117. Quelques Visages, Rego Monteiro77e em So Paulo j em 1920. Ou na conhecida obra Croyances ettalismansdesindiensdelAmazone(LendasIndo-brasileiras) (1923),entreoutrasiniciativas.consideradopormaisde um estudioso um dos precursores do tema do ndio na arte modernabrasileira.23Aquestodivide,contudo,ahistorio-grafia. Para alguns, Rego Monteiro foi realmente um precur-sordomovimentomaistardecapitaneadoporOswaldde Andrade.Paraoutros,elepodeservistosobretudocomo um indianista.24 QualseriaolugarocupadoporQuelquesVisagesde Parisnessedebate?Senoseviacomoumantropfago,a caracterizaodeRegoMonteirocomoindianistatambm noseaplicaaQuelquesVisagesdeParis.Oartistavaialm. Suaobramantmumagrandedistnciadoprpriondio enquanto figura literria, personagem to comum na literatu-rabrasileiradesdeoromantismo.Afinal,seuchefeselva-gemescreveemfrancs.Maisdoqueisso,comoseviu, seus comentrios so perpassados de referncias eruditas ao universo literrio europeu e s crenas judaico-crists. J foi notadoqueosdesenhosdessendiosoespirituais,de umgrafismoquelembraasclebrescermicasdaIlhade Maraj e as legendas so mais destinadas aos habitantes da cidadedoquequelesdasflorestasdaAmaznia.25Seria possvel dizer, nesse ponto, que o ndio ficcional de Montei-rorealizamesmoumatodecanibalismovisualecultural. Afinal, ele transforma os monumentos franceses em arabes-co tribal, usa a lngua civilizada o francs para explorar o que h de brbaro, violento, na cultura europeia. 23 Cf. AJZENBERG, Elza M. Vicente do Rego Monteiro: anos 20. In AnaisdoCursoAsemanadeArteModernade1922,sessentaanosdepois.So Paulo: Secretaria do Estado da Cultura, 1984, pp. 67-70. 24 Zanini e Antonio Bento esto entre os primeiros. J Frederico Morais, AracyAmaraleoutrosachamqueelefoisobretudoumindianista.A questo foi discutida em ATIK, op. cit., pp. 117-119. 25 Apud ATIK, op. cit, p. 103. Leticia Squeff78 Talvezumaoutraimagemtiradadaobraforneae-lementos para se pensar sobre a questo. A Justificativa da Tiragem, escrita por Fernand Divoire, no comeo da obra, traz um pequeno smbolo (Fig. 10 e 11). O Arco do Triunfo sustentaoglobocomomapadaAmrica.Essaassociao entreelementostodsparesnodeixadeserengraada: pode-se interpretar que o globo est saindo do Arco, ou que estentrandonele.Metforaparaoslatino-americanosque voparaParisdesdeosculoXIX?Ouparaaintenoda obra,queoferecerumavisoamericana,oulatino-americana, da cidade? Ou seria ainda uma tentativa de sn-tese, por parte de Rego Monteiro, do que Divoire afirma em seu texto: Algumas vistas de Paris? Sim, e que trazem consigo um novo mundo. Que assim seja! Talvez a inteno de Rego Monteiro seja ainda outra. Oartistaunedoissmbolosopostos:odacivilizaoo ArcodoTriunfoconstrudopelohomem;eodomundo primitivoquepornocontarcomgrandesconstrues humanas mostra-se como mapa, definido por um desenho e uma inscrio a Amrica. No desenho, o monumento feito pelohomemeoterritrioselvagemseunem.Eaquitalvez se possa encontrar uma interpretao para as pardias que se sobrepemnolivro.Comelas,oartistaqueria,justamente, fugir de vetores radicais e posicionamentos rigidamente po-larizados. Ao fazer um ndio afrancesado, ao construir dese-nhos que congregam um trao de tendncia art dco a faturas indgenas,aotransformarografismoprimitivoemsigno para a velocidade da vida urbana, o artista busca, justamente, amistura.Noqueroporondiocivilizaofrancesaou europeia, mas uni-los, buscando pontos de contato e de tro-cas. Construindoumdelicadojogoformalentremoder-no e arcaico, civilizado e primitivo, entre o que do europeu (a escrita, o idioma refinado) e o que do selvagem (a inscri-o mais primitiva o desenho) o artista parece ter usado o Quelques Visages, Rego Monteiro79recursodolivrodeartistaparafazerumareflexono apenas sobre a cultura europeia e seus impasses, ou sobre a culturabrasileira,maspropriamentesobreasrelaesentre uma e outra. NessasQuelquesVisagesdeParisaracionalidademo-dernaeosimblico,omticoeoracional,oselvagemeo civilizadoconvivem,econstroemuniversospoticossingu-lares, apontando, talvez, a possibilidade de um mundo outro. Fig.10. Justificativa da Tiragem, Quelques Visages de Paris. Leticia Squeff80 Fig.11. A Amrica e o Arco do Triunfo, Quelques Visages de Paris Nessa utopia plstico-potica Vicente do Rego Mon-teironoestavasozinho.Osonhodeunirmodernidadee pureza primitiva foi, afinal, um sonho tpico de sua gerao, ao qual tambm prestaria um tributo, nas artes plsticas bra-sileiras,TarsiladoAmaral,emoutrachave,emsuaspaisa-gens da fase Pau-brasil.26 Seja na Europa, ou no Brasil, como se sabe, o sonho daconvivnciaharmnicaentrecivilizaoepureza,pro-gresso e natureza naufragou. Fato que testemunhamos infe-lizmente, cada dia mais. 26 Cf., por exemplo, MICELI, Srgio. Nacinal Estrangeiro. Histria social e culturaldomodernismoartsticoemSoPaulo.SoPaulo:Companhia das Letras, 2003. Quelques Visages, Rego Monteiro81Leticia Squeff professora de Histria da Arte Ocidental nos scu-los XVIII e XIX na UNIFESP e pesquisadora-colaboradora do Ins-titutodeArtesdaUNICAMP(IA/UNICAMP).autoradeUma galeria para o Imprio (Edusp, no prelo) e O Brasil nas Letras de um Pintor (Editora da Unicamp, 2004), e de diversos artigos sobre cultura e arte no Brasil.