eugène enriquez__03__o vínculo grupal

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  • 7/29/2019 eugne enriquez__03__o vnculo grupal

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    in: Psicossociologia: Anlise social e interveno (de Andr Lvy, Andr Nicola, EugneEnriquez e Jean Dubost); belo horizonte; 2001; autntica; pgs.: 61 ~ 74

    O VNCULO GRUPAL (1)

    Eugne Enriquez

    So numerosos os estudos sobre os mecanismos ou processos de grupos j constitudos, quetm uma histria (mesmo que limitada a algumas horas, como os grupos de seminrios ditosde dinmica de grupo) e que tentam formar para si um futuro. So mais raras, no entanto, asanlises dos grupos em estado nascente. Ora, esse problema capital, pois pode-se, semdvida, fazer constataes e descries finas da vida dos grupos, mas no se est altura decompreender, enquanto no for possvel responder s questes que se seguem, a base sobre

    a qual so elaborados os princpios que presidem instaurao de todo grupo e quepermanecem decisivos ao longo de sua histria: O que favorece o vnculo grupal? Por queindivduos se renem e chegam a funcionar como uma comunidade? O que permitediferenar um simples amontoado de sujeitos de um grupo consciente de sua existncia e deseus valores?

    Eu gostaria, ento, neste texto, de levantar algumas hipteses referentes aos elementos emjogo na formao dos grupos e na perenidade de sua ao.

    O primeiro ponto que vou salientar, e que apresenta, primeira vista, um carter de

    evidncia, a necessidade de um projeto comum.

    O projeto comum

    Um grupo s se constitui em torno de uma ao a realizar, de um projeto ou de uma tarefa acumprir. Todos sabem e reconhecem isso. O que parece, no entanto, menos evidente so asimplicaes e as conseqncias de tal axioma.

    Um projeto comum significa, de incio, que o grupo possui um sistema de valoressuficientemente interiorizado pelo conjunto de seus membros, o que permite dar ao projeto

    suas caractersticas dinmicas (faz-lo passar do estgio de simples plano ao estgio darealizao).

    Vamos um pouco adiante. Tal sistema de valores, para existir, deve se apoiar em alguma (oumais de uma) representao coletiva, em um imaginrio social comum. Por imaginriosocial entendo que s podemos agir quando temos uma certa maneira de nos representaraquilo que somos, aquilo que queremos vir a ser, aquilo que queremos fazer e em que tipode sociedade ou organizao desejamos intervir. Para serem operantes, tais representaesdevem no s ser intelectualmente pensadas, mas afetivamente sentidas. No se trataunicamente de querer coletivamente; trata-se de sentir coletivamente, de experimentar a

    mesma necessidade de transformar um sonho ou uma fantasia em realidade cotidiana e de semunir dos meios adequados para conseguir isso.

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    Mas esse sentimento, motor de nossa conduta, s pode emergir e ter fora de lei quandoligado a um sistema de idealizao de ns mesmos e de nossa ao. Somente um projetotido como objeto ideal e somente ns mesmos tidos como seres idealizados (mais puros,mais belos que os outros) podem ser elementos suficientemente mobilizadores para fazer-nos sair da apatia ou da simples expresso de nossa boa vontade.

    Todo grupo funciona base da idealizao, da iluso e da crena. A idealizao estpresente na elaborao de um projeto comum, pois ela o elemento que d consistncia,vigor e "aura" excepcional, tanto ao projeto quanto a ns mesmos que, a nossos prpriosolhos, nos fortificamos (reforando simultaneamente o eu ideal e o ideal do eu), correndoesse risco intelectual e social, tentando nos situar a uma altura que nos parecia antesinatingvel. A iluso deixa igualmente sua marca. Ela um dispositivo simblico que

    permite a canalizao de nossos desejos, que nos poupa toda interrogao sobre o valordesses desejos e que fornece uma soluo pronta para os possveis conflitos entre esses (2).Se FREUD criticou tanto a iluso religiosa porque, nela, ele bvia o prottipo de umaWeltanschauung que tinha a pretenso de dizer a verdade sobre a verdade e de incluir oindivduo, com uma fora particularmente viva, em um sistema de pensamento e em umsistema social que lhe tiravam toda possibilidade de pensar por si mesmo e de "trabalhar" asCondies e as conseqncias de seus comportamentos. Ora, para que um projeto comum

    possa verdadeiramente nos mobilizar, consciente e inconscientemente, necessrio que,num grau maior ou menor, ele se apresente sob um aspecto religioso, sagrado, inatacvel:assim, ele pode nos atrair, nos inspirar, nos fazer sair de nossa cotidianidade e nos unir aosoutros que partilham da mesma iluso. Da iluso crena, a passagem rpida. Umdispositivo simblico que funciona encobrindo toda dvida, todo trabalho de interrogaosobre si, transforma-se logo em um sistema de crena. Pois o ato de crer permite a certeza eelimina a questo da verdade. Um grupo que queira fazer alguma coisa deve acreditar nela(deve, pois, eliminar toda inquietao relativa aos fundamentos do que quer realizar), a fimde poder arregimentar toda a sua energia para o sucesso de seu projeto.

    verdade que algumas distines finas se impem aqui. Assim, idealizao, iluso e crenano funcionam de maneira macia. A crena de um militante poltico revolucionrio no assimilvel crena de um pesquisador no objeto de sua cincia, pois esse no podeescamotear a questo da verdade. Mas isso no impede que esses trs elementos estejam

    presentes, de maneira mais ou menos forte, na formao de todo grupo. Embora um grupo,existente h muito tempo, possa perder parte de suas iluses, deixando de considerar o que

    faz como visando ao ideal mais elevado ao qual pode aspirar e deve se referir, o mesmo nose passa com um grupo no momento de se instituir, pois esse no pode se estruturar sealgum desses trs elementos vier a faltar. Idealizao, iluso e crena levam-nos noo decausa a defender. FREUD j pensava que a Psicanlise, para se desenvolver, deveria serdefendida como uma causa, qual se agarraria com todas as fibras de seu ser (certos

    psicanalistas atuais no hesitaram em chamar sua escola de Escola da Causa Freudiana,assimilando, abusivamente sem dvida, suas prticas da Psicanlise como um todo). Todomilitante poltico pensa do mesmo jeito. Cr que deve ser capaz de se sacrificar pela causaque o motiva (a nao, a revoluo etc.). Todo membro de um grupo , em certa medida, o

    porta-voz e o guardio de "alguma coisa" que o ultrapassa e que legitima sua ao e sua vida

    (os primeiros psicossocilogos na Frana diziam, bem vontade, que eles exerciam omilitantismo psicossociolgico). Todo membro de um grupo sente-se investido de umamisso (mesmo se ele mesmo se designou essa misso) qual deve consagrar seu tempo e

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    sua vitalidade. Causa a defender, misso a cumprir, sacrifcio da prpria vida (s vezes nosentido preciso do termo: em certos pases, o militante poltico arrisca, verdadeiramente, suavida), todos esses termos tm uma ressonncia religiosa. E isso no acontece gratuitamente.Eles assinalam que o projeto pertence a um mundo transcendental e sagrado que assegura aseu portador a certeza de estar com a verdade e de ser tanto mais admirvel quanto mais

    brilhante for o projeto. Para que um grupo se cristalize e crie seus meios de ao, precisoque se refira a um grande propsito que lhe garanta sua onipotncia e que encubra,consequentemente, toda a dvida sobre os limites de seu poder, sobre a possibilidade de suaimpotncia. A causa pode ser sublime ou irrisria, grandiosa ou pueril, esse no o

    problema. Sua presena indispensvel e as modalidades de seu aparecimento socontingentes e arbitrrias.

    Um grupo minoritrio

    Se o grupo tem uma causa a defender e a promover, isso significa que ele se pensa, serepresenta e quer se definir como uma minoria atuante. A maioria no tem jamais uma causaa defender; a causa que ela representa j triunfou anteriormente, faz parte do bem comum ouse tornou mesmo um lugar comum. (Pensemos na afirmao da liberdade de todo cidadono momento do sobressalto revolucionrio de 1789 e no empobrecimento desse termo,utilizado nos dias de hoje por todos os partidos polticos, sem exceo, mesmo pelos maissedentos de combat-la). A maioria tem por objetivo o de bem gerir o patrimnio coletivo emanter uma ideologia favorvel ordem social que ela instituiu. A maioria no tem jamaisum grande propsito; ela s tem interesses a conservar e uma organizao a consolidar.

    S um grupo minoritrio (como os psicanalistas, e FREUD em primeiro lugar, os primeirospsicossocilogos e numerosos outros exemplos), isto , um grupo que tem a comunicar umamensagem nova, a proclamar uma viso nova do mundo (ou, mais modestamente, de uma

    profisso ou de uma disciplina), a manifestar uma conduta desviante em relao s normasda instituio ou da sociedade, pode ser capaz de se arriscar para fazer triunfar o que

    presidiu sua fundao. As ideias novas, ns o sabemos, so o feito de um nmero muitopequeno de pessoas, algumas vezes de uma s (3), lutando contra o que IBSEN jdenominara "a maioria compacta", encarnao da ordem estabelecida e das ideiasesclerosadas e enrijecidas. Essas pessoas sabem que, geralmente, tm poucas chances deserem bem sucedidas e as mais conscientes pressentem que, no caso de sucesso, sosobretudo os seus discpulos e seguidores que ganharo com esse avano. Pouco importa.

    "A dissidncia de um s" (retomando a bela expresso de MOSCOVICI (4) sobreSOLZHENITSYN) pode, progressivamente, se tornar a dissidncia de muitos, propagar-secomo uma mancha de leo e, talvez mesmo, triunfar. IBSEN acreditava nos que diziam que" a minoria que tem sempre razo". Eu serei menos afirmativo, mas direi que, caso umaminoria, um dia, queira triunfar, ela deve, imperativamente, acreditar que est com a razo.Do contrrio, sua luta no ter alma nem razo de ser.

    Toda minoria tem, pois, vocao majoritria: mas, antes de chegar a seus fins, ela deveprimeiro, para se reforar, atingir o grau de adeso que permite aos indivduos se sentirem,antes de tudo e contra tudo, membros do grupo. Para isso, s existe um caminho: o do

    compl contra os valores institudos, o da conjurao tramada no segredo e assegurada pelaf jurada (juramento que faz de todos os membros do grupo ao mesmo tempo cmplices eirmos), visando no contestao da ordem existente, mas sua transgresso. A

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    contestao, com efeito, tem por objetivo questionar o sistema vigente, desmistificando-o edesmitificando-o, explicitando o implcito dos comportamentos, tornando claro o "no-dito"e o "no-pensado" da ordem social. Ela no visa a propor outra coisa, novas maneiras de serou de se conduzir. A transgresso, ao contrrio, no somente interroga de maneira virulentaas instituies e as condutas estabelecidas, mas prope novas ideias, maneiras inovadoras deser. A Psicanlise, por exemplo, no tentou apenas desarticular a antiga ordem psiquitrica ea viso organicista da doena mental, mas enunciou uma nova teoria da psique e umaconcepo da cura que coloca os fenmenos transferenciais e contra transferenciais entre o

    psicanalista e seu paciente no prprio centro da cura. Assim fazendo, a transgresso diz noapenas que o saber antigo obsoleto, mas que um novo saber apareceu, que as prticassociais e as representaes coletivas no apenas no tm mais eficcia, mas tambm que

    prticas sociais novas so possveis e que representaes coletivas renovadas devem guiar aao.

    Tal transgresso s pode ocorrer pela expresso de uma certa violncia. No se ataca aantiga ordem com um debate corts, mas pela luta. Luta empreendida em nome da verdade eda pureza, contra um exterior percebido como to obscuro, tirnico e conservador que sequer derrub-lo. Pouco importa que o ambiente seja menos repressivo do que se pensa, queas ideias tradicionais tenham um fundo de verdade. Para que a vitria seja possvel,

    preciso se definir pela intransigncia e pela intolerncia, ser claro como a neve e se sentirirmo dos outros transgressores.

    Todo o dispositivo contra o qual se luta percebido como fortemente hierarquizado. E namaior parte das vezes ele o , pois se funda em instituies slidas, na cristalizao dedesejos passados e de poderes estabelecidos. Toda instituio, enquanto elemento daregulao social, visando repetio, ao idntico e reproduo das relaes sociais , sobcertos aspectos, sintoma do trabalho da pulso de morte (compulso repetio, vista como

    pulso agressiva). Ela o que impede a tomada de conscincia das relaes sociais reais edas relaes humanas autnticas; ela , enfim, a sedimentao das relaes de poder e dasestratgias que, no passado, deram certo.

    Assim, o grupo vai tentar destruir as instituies. Como essas representam a ordem paterna,o falo triunfante ou a me arcaica devoradora, o grupo s pode lhes opor a ordem fraterna eigualitria.

    FREUD compreendeu isso bem. No h compl verdadeiro, a no ser entre irmos.FREUD, alis, viu mais longe: ele se deu conta de que o compl que torna os indivduos, apriori estranhos ou rivais entre si, irmos uns dos outros.

    Se nem todo grupo tem que matar o pai da horda, todo grupo, no obstante, deve criar umacontecimento irreversvel, mediado por uma violncia que substituir a violncia institudae insuportvel aos novos irmos, violncia fundadora de um novo mundo, permitindo-lhesformar entre si uma verdadeira comunidade.

    o dio ao exterior que vai favorecer o amor fraterno e fazer circular o fluxo libidinal que

    permite a passagem dos sentimentos egostas aos sentimentos altrustas. Sem essa vontadede destruio, sem esses sentimentos de serem perseguidos pelos detentores da ordemantiga, seria impossvel aos indivduos reunidos trabalharem juntos ou se amarem, isto ,

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    manterem essa confiana recproca que no apenas os transforma em membros de umgrupo, identificados uns aos outros (tendo trocado sua diferena e sua provvel rivalidade

    por um amor mtuo e maior semelhana), mas tambm favorece a emergncia de umnarcisismo grupal e evita todo conflito interno. dio ao exterior, amor mtuo, amor aogrupo enquanto grupo, sentimento de serem irmos e de formarem uma comunidade deiguais, sentimento de serem minoritrios e portadores da verdade, so essas as condies deconstituio do vnculo grupal.

    O desejo e a identificao

    O grupo assim formado vai se encontrar diante de um problema estrutural que tentar tratarcontinuamente, porm sem sucesso. Esse problema o do conflito entre o desejo e aidentificao ou, em outras palavras, entre o reconhecimento do desejo e o desejo dereconhecimento.

    O reconhecimento do desejo

    Em um grupo, cada sujeito procura exprimir seus desejos e fazer com que os outros osconsiderem. Ele quer se fazer amado pelo que ou, ao menos, no ser rejeitado, conquistar

    prestgio ou uma certa posio social e quer realizar o que sente como se fosse a prpriaessncia de seu ser. Se ele faz parte do grupo, no s porque quer realizar um projetocoletivo, mas sobretudo porque pensa que com essas pessoas e no com outras, graas aesse imaginrio comum e no a outro, que pode chegar a tornar seu desejo reconhecido emsua originalidade e em sua especificidade, tornar seus sonhos reais, fazer-se aceito em suadiferena irredutvel, em seu ser insubstituvel. Cada sujeito tentar ento amealhar osoutros nas redes de seus prprios desejos, manifestar no real suas fantasias de onipotncia edenegar a castrao que vivida, nesse caso, como ameaa real e no como elemento daordem simblica.

    O desejo de reconhecimento ou a identificao

    Mas, em um grupo, o sujeito no quer apenas expressar seu prprio desejo; quer,igualmente, ser reconhecido como um de seus membros. Alis, se no o desejasse, no

    poderia ter sido aceito por seus semelhantes, no teria podido fazer parte da conjurao,estar a par do "segredo" (um grupo em estado nascente sempre, em maior ou menor grau,

    uma sociedade secreta com seu ritual e seu cdigo). Para que os diversos membros do grupose reconheam entre si, para que possam se amar, no devem ser muito diferentes uns dosoutros. Mais ainda, e aqui tambm FREUD nos abre o caminho, eles devem se identificaruns aos outros, colocando um mesmo objeto de amor (a causa) no lugar de seu ideal do eu.Assim, eles se tornaro semelhantes, formaro um verdadeiro corpo social e no umaglomerado de indivduos. Essa semelhana buscada, essa igualdade insensata (mesmoquando um sujeito se destaca, ele apenas o irmo mais velho e mais experiente) poderesultar na formao de indivduos uniformes, homogneos, inventores de normas rgidas e

    profundamente interiorizadas, s quais cada um dever se submeter. Para se dar conta de atque ponto uma ideologia vivida conjuntamente pode dar lugar a uma linguagem hermtica e

    a condutas normalizadas, basta pensar no aspecto estereotipado das atitudes de certospsicossocilogos no diretivos ou de psicanalistas "lacanianos".

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    De todo jeito, cada sujeito (e cada grupo) ser enredado nesse conflito estrutural entre oreconhecimento do desejo e o desejo de reconhecimento. Assim sendo, cada grupo ter atendncia a resolver o problema escolhendo uma dessas duas direes.

    O grupo, querendo formar uma comunidade, um corpo social completo, pode caminhar ouna direo de se tornar massa ou na direo da diferenciao.

    A MASSA

    Num tal caso, o desejo de reconhecimento que predomina.

    O grupo no tolera a diversidade de condutas e de pensamentos. O nico problema a maisestrita identificao. Tal perspectiva comporta cinco sries de conseqncias:

    1- A falta de diferenas provoca, progressivamente, a degradao da reflexo e dainventividade, a falta de inovao e, sem que se perceba, o emprego de uma linguagem declichs e de uma "ideologia de granito" (Cl. LEFORT) (5).

    2- O grupo completo vai progressivamente se autonomizarear seus membros. Assim como, apartir de MARX, sabemos que as mercadorias criadas pelo homem acabam por revestir oaspecto de "seres independentes em comunicao com os homens e entre si" e por tomar a"forma fantstica de uma relao de coisas entre si", sabemos agora que toda criaohumana acaba por se desligar de seus criadores, tomando as caractersticas de um corpotodo-poderoso, capaz de nos devorar ou de nos englobar totalmente e ao qual devemosnecessariamente obedincia e submisso. Estamos, ento, face a um grupo "sorvedouro,abismo, sem-fundo" (6), de um grupo onde dominaro as imagens arcaicas e no qual oscomportamentos sero de tipo pr-edipiano.

    3- A compacidade do corpo formado vai, com efeito, despertar as fantasias mais arcaicas,medos de fragmentao, angstias de exploso, de devorao e de destruio, que soapangio de todo grupo, mas que, em tal caso (como no do indivduo perfeitamentecouraado que vive uma angstia insuportvel de brechas), tomam um vigor particular.Ocorrero comportamentos regressivos, de tipo defensivo: suspeita mtua, delao,sentimento de um meio hostil, tentativa de destruio do outro ou de autodestruio dogrupo, crdito a rumores e s palavras mais aberrantes, influncia, no grupo, de indivduos

    os mais emocionais, se no os mais perturbados, predomnio de fenmenos afetivos nastomadas de deciso.

    4- A semelhana pode, igualmente, desenvolver condutas que, primeira vista, no parecemdefensivas. Ao contrrio, o grupo tem o sentimento de euforia por se constituir como massa,

    por ser o mais forte e o mais belo. Alis, foi antecipando a emergncia desse sentimento quea comunidade se dirigiu para essa via. Cada qual se perde na construo do eu ideal dogrupo, pensando dar satisfao ao seu prprio eu ideal. O grupo se torna objeto de todos osinvestimentos, narcisismo individual e narcisismo de grupo coincidem. Nenhum conflitointra-individual ou inter-individual parece possvel. O grupo, portador da "verdade" (!),

    avana cego, coberto de certezas. Que ele se guarde da desiluso, que ser particularmentedura de suportar.

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    5- Se, por acaso, alguns membros do grupo suportam mal essa situao de massa, chegandoao abandono de toda identidade pessoal, sero excludos do grupo, como frouxos outraidores. Se aceitaram durante longo tempo o processo de uniformizao, encontraro asmaiores dificuldades para se reinventar uma nova identidade e para no reagiremsimplesmente como "homens de ressentimento".

    A DIFERENCIAO

    Certos grupos admitem, em seu interior, uma diferenciao dos indivduos e uma variedadedos desejos expressos. Se no se trata de questionar o projeto comum, a concepo que taisgrupos tm desse projeto no apresenta nenhum aspecto monoltico. Todo mundo, aocontrrio, acreditar que um projeto tem tanto mais chance de ser pertinente, eficaz e desuscitar adeso ou mesmo entusiasmos, quanto mais ele se apresentar como o resultado dediscusses finas, de negociaes rigorosas, de argumentaes contraditrias. Os membrosdo grupo so, ento, irmos em sua capacidade prpria de pensar e de agir, cada qualreconhece a competncia do outro (ou de um outro subgrupo) em domnios especficos queutilizam abordagens e tcnicas adequadas (assim, em um centro de jovens inadaptados, aadministrao, os educadores, o psiclogo e o psiquiatra podero trabalhar em conjunto eno um contra o outro). A tolerncia existe, mesmo se as posies de cada um sodefendidas com clareza e determinao.

    No entanto, como a cooperao idlica no existe mas, ao contrrio, todo mundo concordacom a ideia de que a cooperao nasce da expresso e do tratamento de conflitos, possvele mesmo provvel que o grupo viva momentos de desacordos e tenses que podem mesmoatingir, em certos momentos, "nveis insuportveis" (FREUD). Teme-se mesmo que o grupose desagregue em subgrupos ou em partidos, cada qual acreditando deter a verdade,orgulhoso de suas prerrogativas e seguro de estar no bom caminho. A aceitao do conflitoinstitucional como modo normal de regulao do grupo pode acarretar, ento, umamaximizao das contradies e pode orientar a maior parte da energia do grupo para aresoluo desses conflitos. Em tal caso, o grupo acabar por esquecer o seu projeto e passara maior parte de seu tempo tentando analisar e compreender o que se passa. A vontadeoperatria desaparecer para dar lugar a uma expresso afetiva superabundante. O grupo secentrar em si mesmo. No limite, ele esquecer os objetivos que deve perseguir. (Assim, emum seminrio para diretores jovens inadaptados, tive de um centro de a surpresa de constatarque esses diretores tratavam apenas de problemas da organizao de seus centros, de suas

    relaes com o conselho de administrao e da amplitude de seus poderes. Nesse caso, asgrandes ausentes de seus discursos eram as crianas de quem se encarregavam. Entretanto,enquanto professor, eu deveria ter ficado menos surpreso. raro ouvir professores falaremde estudantes; freqente, ao contrrio, v-los reclamar da perda de tempo ocasionada poreles). Quando o grupo no consegue resolver seus problemas, ser tentado a achar um bodeexpiatrio. Essa vtima pode ser algum que no de modo algum responsvel pela situaoatual ou a pessoa que se revela mais frgil e, por isso, a nica que o grupo pode sacrificarlevianamente no altar de seus problemas, pois ningum tem medo de faz-lo e cada qual

    pode exteriorizar sua agressividade, com toda impunidade e sem temer medidas deretaliao.

    Para no chegar a esse ponto, os grupos que admitem a diferenciao e que querem se gerirde maneira democrtica, acabam por reconhecer em um de seus membros um poder que

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    vem de sua experincia, uma influncia que vem do domnio das ideias, investindo-o entocomo chefe capaz de encarnar a vontade e os desejos do grupo. Esse, assim transformado, setorna um grupo edipiano, no qual a referncia ao novo pai e a seus ideais se tornar oelemento essencial que permite a identificao mtua e a coeso do conjunto. Um super-eucoletivo surgir e o chefe ser seu portavoz e seu guardio. O que em poltica se chamou"culto da personalidade" ou, nos pases ocidentais, "personalizao do poder", e no domnioda Psicossociologia conhecemos como liderana, encontra aqui sua razo de ser e seucampo de aplicao. Em qualquer caso, os processos de grupo giraro em torno da pessoacentral, aquela que considerada como tendo e sendo o falo.

    Fenmenos regressivos do tipo submisso, repetio da palavra do mestre, crena cega nocarter de verdade daquilo que ele disse, rivalidade entre os discpulos para serem o eleitodo mestre, tentativas escusas de faz-lo cair de seu pedestal, novos compls para tentartomar o seu lugar ou para ridicularizar seus atos, tudo isso corre o risco de aflorar e demonopolizar uma grande parte das capacidades do grupo.

    A parania nos grupos

    De acordo com cada caso, os grupos sero ento do tipo pr-edipiano ou do tipo edipiano,insistiro na uniformidade ou na diferenciao (o momento final dessa consistindo narestaurao de um lder, mestre do pensamento e da ao).

    Mas, de todo modo, sendo bem sucedidos ou no, os grupos no podem se esquivar, como jconstatamos, dos processos paranicos que os atravessam constantemente.

    Com efeito, o grupo minoritrio que, para existir, imps a seus membros que investissemlibidinalmente nele e tambm uns nos outros, tende a desenvolver relaes fortementeerotizadas entre seus membros e a fazer emergir um discurso passional. A situaominoritria obriga os indivduos a se sentirem solidrios e a se amarem, mas tambm a sedefenderem contra o exterior e a se entre-devorarem.

    Uma tal paixo tem pesadas conseqncias. Os membros do grupo podem indagar se algunsdentre eles jogam bem o jogo do amor, rendemse ao discurso de amor proferido pelo chefeou ao discurso de amor comum; podem, igualmente, querer estabelecer vnculos

    privilegiados com outros membros, para afirmar a primazia de sua posio flica. Correntes

    de amor e de dio percorrem o grupo. O problema no mais saber o que devemos fazerjuntos, mas quem so os amados e os rejeitados, os discpulos eleitos e os indivduosexcludos, as pessoas conformistas e os traidores potenciais; o de saber se nos amamos

    bastante (se amamos bastante o grupo), se somos suficientemente amados, se ns nos damosmuito ou nem tanto ao grupo, se alguns se aproveitam da situao refreando seu amor.

    Essas questes no podem ser elucidadas, pois um grupo minoritrio, em sua vontade demudar a ordem na qual intervm, s pode ter sucesso em sua tarefa se estiver possudo poruma fantasia de onipotncia. Ora, se os indivduos no se entregam ao jogo ou o revertem aseu favor, o grupo corre o risco do fracasso. Assim, do mesmo modo que esto condenados

    crena, os membros do grupo esto condenados ao amor. Correlativamente, eles estotambm condenados suspeita contnua e aberta. O amor desemboca no dio, a fantasia deonipotncia desemboca no sentimento de ser perseguido por inimigos exteriores (pela

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    maioria compacta) e tambm por inimigos internos que utilizam o fluxo de amor em funode sua grande glria. A tentao paranica est pois sempre presente e acompanha o

    processo libidinal, transformado muitas vezes em processo de erotizao. Se o grupo bemsucedido, isto , se consegue impor os seus ideais ou transformar, em maior ou menor grau,o campo social, tornar-se majoritrio, inscrever seu sonho na realidade, ele no pode maisduvidar de estar com a verdade. Os raros inimigos que lhe restam sero perseguidos tantomais duramente quanto mais tiverem se recusado a se submeter nova lei, a nica digna deser respeitada. E no sero s os inimigos que sero perseguidos, mas tambm os fracos, osindiferentes, os marginais, assim como todos aqueles que do testemunho de outra possvelverdade ou de um sentido que no o sentido do grupo triunfante, mas outro que est ainda

    para ser encontrado.

    Muitos observadores se espantam, por exemplo, com o fato de uma revoluo devorar seusprprios filhos. Com efeito, o contrrio que seria de espantar, pois o triunfo revolucionriodever ser sustentado, havendo sempre os frouxos e os traidores em potencial (se esses noexistirem, sero inventados segundo as necessidades e, alm disso, qualquer um sempre ofrouxo ou o traidor para algum ou para alguma faco). Quem no se enquadra no discursode amor comum deve se submeter ou desaparecer.

    Se, de outro lado, o grupo fracassa, isto , se ele no provoca impacto social, se seu idealparece ridculo e sem interesse para os outros, ele vai procurar as causas de seu fracasso. Eelas no so difceis de encontrar: so os inimigos exteriores que fecharam as portas para avitria e so os inimigos internos que sabotaram os esforos comuns. O grupo incapaz dese interrogar sobre as verdadeiras razes de seu fracasso. Para ele s existem os

    perseguidores ativos ou potenciais. Ele os acossar internamente e agir ruidosamente noexterior, para dizer que ele ainda subsiste. De fato, esse canto de morte nada mais que umcanto de cisne e sintoma de sua decomposio lenta e inevitvel.

    preciso, no entanto, deixar claro: A parania constitutiva de todo grupo, mas ela no atuacom a mesma intensidade em todos eles. Ela representa uma tentao constante, mas no um resultado inelutvel.

    Para tratar esse elemento constitutivo e desativar sua estrutura mortfera, psicanalistas epsiclogos pregam habitualmente a necessidade de uma anlise aprofundada e de umaregulao do grupo, em sesses conduzidas por um analista interno ou externo.

    Eu no quereria desacreditar o interesse de tal trabalho, mas gostaria de sublinhar que eleno uma panacia, particularmente quando o grupo composto por pessoas (psiclogos,

    psiquiatras, educadores, trabalhadores sociais) habituadas a se interrogar sobre suasmotivaes e que acreditam ter uma certa proximidade com seu inconsciente. Com efeito,em um processo de anlise:

    1- Confia-se na linguagem (como na cura analtica) para esclarecer os problemas.

    Ora, o organizador do grupo, isto , o elemento em torno do qual o grupo se constitui, a

    ao (o projeto comum) e no a linguagem.Nessas sesses trabalha-se com a hiptese de que a linguagem e a ao so forosamente

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    complementares e que, assim, a linguagem (a anlise) pode e deve acompanhar a ao. Defato, isso seria amenizar as funes e o alcance de uma anlise. A anlise pode dar umsentido mas pode tambm desarticular. Na prpria medida em que ela interpela os processosde idealizao, de crena e de iluso, ela pode atacar o fundamento mesmo do grupo eabalar as certezas mais enraizadas. Ela pode levar dissoluo do grupo, quando esse perdeos motivos para se apegar a um projeto que no refora mais o narcisismo individual ecoletivo. Alm disso, em muitas circunstncias, sero feitas anlises superficiais, os

    problemas sero evocados sem serem tratados a fundo, as pessoas se entregaro a descargasemocionais. Ficar-se- perplexo ao constatar que, de maneira recorrente, o grupo levantaras mesmas questes durante anos, sem jamais chegar ao menor esboo de soluo.Deveramos, no entanto, ter em conta que o grupo no se suicida facilmente e que retira

    benefcios considerveis do mal que pensa sofrer. Viver na angstia e na violncia se sentirviver, tendo a possibilidade de exprimir seu poder e seus sentimentos, arriscar-se a seramado. Isso no sem importncia e os grupos freqentemente preferem viverdolorosamente, s custas do mal que nutrem com gosto, ao invs de tentarem o inferno deuma elucidao radical, que se traduziria em uma erradicao ainda mais radical.

    2-A tomada de conscincia tida como um elemento central da regulao e da capacidadede mudana do grupo.

    A tambm h muita iluso. Muitos atos e condutas s ganharo sentido muito tempodepois, quando no mais for possvel fazer o que quer que seja para evitar suasconseqncias. Outras vezes, no ser possvel tomar conscincia do todo (o sentido

    permanecer para sempre velado), pois a tomada de conscincia levaria a tamanhos perigosque tudo concorre para impedi-la. Se, em certos casos, a tomada de conscincia se produz,ela pode agir como funo de desconhecimento e obscurecer os problemas, em vez defavorecer o seu esclarecimento. FREUD disse isso, h muito tempo atrs, e o disse muito

    bem. importante no nos esquecermos.

    O grupo corre pois o risco de fazer a anlise pelo prazer da anlise, para adquirir umacompetncia interpretativa ou para se atribuir uma conscincia boa.

    Nada resta ento a fazer? H ainda algo a se fazer, mas preciso no querer ir muito longe;um grupo deve reconhecer e trabalhar suas clivagens, seus antagonismos, suas relaes de

    poder, suas angstias e, ao mesmo tempo, se dar conta de que tal tarefa limitada, pois

    aquilo que ele trabalha a prpria razo de sua existncia. A elucidao do grupo por elemesmo uma exigncia que no pode ser, em caso algum, uma soluo. Acreditar nela irem direo a novas decepes e ressuscitar a iluso, l mesmo onde se havia pensado v-ladesaparecer.notas:

    01.- Traduzido de: ENRIQUEZ, Eugne. "Le lien groupal". Bulletin de Psychologie. Tomo XXXVI,n. 360, p. 631-637, 1983, por Jos Newton Garcia de Arajo.

    02.- Cf. J. B. PONTALIS. "L'illusion mantenue". Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 4.

    03.- FREUD podia escrever com orgulho: "A Psicanlise minha criao. Por dez anos, fui onico a me ocupar dela e, por dez anos, foi sobre minha cabea que se abateram as crticas

  • 7/29/2019 eugne enriquez__03__o vnculo grupal

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    pelas quais os contemporneos expressaram seu descontentamento e seu mau humor emrelao Psicanlise." (FREUD, S. Ma vie et la psychanalyse. Gallimard).

    04.- MOSCOVICI, S. Psychologie des minorits actives. P.U.F.

    05.- LEFORT, C. Um homme em trop. Seuil.

    06.- Segundo os termos de C. CASTORIADIS.