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1 ARTIÈRES, Philippe. A polícia da escritura: práticas do panóptico gráfico. In: GONDA, José; KOHAN, Walter (orgs.) Foucault 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp. 37-49. A polícia da escritura: práticas do panóptico gráfico 1 Philippe Artières Hoje constatou-se, sobre o pedestal da estátua da República, em frente ao Instituto, as seguintes palavras escritas em verde: "Viva o Rei". As letras mediam cerca de 10 centímetros de altura. Elas localizam-se na parte do pedestal frente ao Sena. Os transeuntes não prestam muita atenção a essa inscrição. 2 Este registro, datado de 29 de dezembro de 1884, é de um policial; esse olhar sobre uma inscrição traçada sobre um muro, hoje parece banal, na medida em que a luta contra o grafite ("contra o vandalismo") faz parte das prerrogativas policiais 3 . Não parece nada, mas faz cento e cinqüenta anos; esse registro policial de uma escritura ilícita constitui um acontecimento tão pequeno quanto considerável: ele inaugura um olhar e sua prática; o policial é preciso não apenas quanto ao local da escritura, mas também quanto ao seu tamanho, sua cor, o suporte em que ela é feita e sua consistência. O agente indica, também, a perturbação que ela provoca, isso que hoje se denomina o destaque de uma escritura. Como se tornou possível um tal registro policial? Que interesse poderia levar um policial, ao fazer a sua ronda, a notar com tanto cuidado alguns sinais traçados em cor verde? Ontem à noite, às dez e meia, os inspetores Dulac e Mignot de meu serviço detiveram o assim chamado Paul Duleux, de 19 anos de idade, nascido em Bray sur Somme, filho de Jules e de [p.38] Louise Turquet, solteiro, dizendo-se empregado no comércio e vivendo na Rue de Charenton. Esse sujeito tomava notas sobre um livro de bolso na esquina da Rue de la Cité com o cais do mercado novo. Depois de ter sido interrogado sobre que interesse parecia ter acerca do que ali acontecia e sobre as notas que registrava, e diante do embaraço de suas respostas, ele foi conduzido ao posto policial da cidade. Por que de repente esse homem que escreve em público torna-se suspeito? E sobretudo para esses inspetores, o que faz com que o ato de escrever se transforme em ato a ser observado e a ser descrito num registro policial? 1 Tradução de Alfredo Veiga-Neto (UFRGS e ULBRA). 2 Este arquivo, assim como o conjunto dos materiais utilizados neste artigo, foram obtidos com fundos da Prefeitura de Polícia de Paris, série BA 3 A pesquisa da qual foi retirada esse artigo faz parte de um programa de pesquisa coordenado por B. Fraenkel e C. Licopp, denominado Ecologia e política da escritura, na cátedra de uma ANR. Agradeço, aqui, a esses meus colegas.

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ARTIÈRES, Philippe. A polícia da escritura: práticas do panóptico gráfico. In: GONDA, José; KOHAN, Walter (orgs.) Foucault 80 anos. Belo Horizonte: Autêntica,

2006. pp. 37-49.

A polícia da escritura: práticas do panóptico gráfico1

Philippe Artières

Hoje constatou-se, sobre o pedestal da estátua da República, em frente

ao Instituto, as seguintes palavras escritas em verde: "Viva o Rei". As

letras mediam cerca de 10 centímetros de altura. Elas localizam-se na

parte do pedestal frente ao Sena. Os transeuntes não prestam muita

atenção a essa inscrição.2

Este registro, datado de 29 de dezembro de 1884, é de um policial; esse olhar

sobre uma inscrição traçada sobre um muro, hoje parece banal, na medida em que a luta

contra o grafite ("contra o vandalismo") faz parte das prerrogativas policiais3. Não

parece nada, mas faz cento e cinqüenta anos; esse registro policial de uma escritura

ilícita constitui um acontecimento tão pequeno quanto considerável: ele inaugura um

olhar e sua prática; o policial é preciso não apenas quanto ao local da escritura, mas

também quanto ao seu tamanho, sua cor, o suporte em que ela é feita e sua consistência.

O agente indica, também, a perturbação que ela provoca, isso que hoje se denomina o

destaque de uma escritura. Como se tornou possível um tal registro policial? Que

interesse poderia levar um policial, ao fazer a sua ronda, a notar com tanto cuidado

alguns sinais traçados em cor verde?

Ontem à noite, às dez e meia, os inspetores Dulac e Mignot de meu

serviço detiveram o assim chamado Paul Duleux, de 19 anos de idade,

nascido em Bray sur Somme, filho de Jules e de [p.38] Louise

Turquet, solteiro, dizendo-se empregado no comércio e vivendo na

Rue de Charenton. Esse sujeito tomava notas sobre um livro de bolso

na esquina da Rue de la Cité com o cais do mercado novo. Depois de

ter sido interrogado sobre que interesse parecia ter acerca do que ali

acontecia e sobre as notas que registrava, e diante do embaraço de

suas respostas, ele foi conduzido ao posto policial da cidade.

Por que de repente esse homem que escreve em público torna-se suspeito? E

sobretudo para esses inspetores, o que faz com que o ato de escrever se transforme em

ato a ser observado e a ser descrito num registro policial?

1 Tradução de Alfredo Veiga-Neto (UFRGS e ULBRA). 2 Este arquivo, assim como o conjunto dos materiais utilizados neste artigo, foram obtidos com fundos da Prefeitura de Polícia de Paris, série BA 3 A pesquisa da qual foi retirada esse artigo faz parte de um programa de pesquisa coordenado por B. Fraenkel e C. Licopp, denominado Ecologia e política da escritura, na cátedra de uma ANR. Agradeço, aqui, a esses meus colegas.

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O olhar policial se inscreve na continuação do olhar dos médicos. A partir dos

anos 1850, de fato desenvolveu-se na Europa um saber inteiramente novo em torno da

escritura. Não somente são descritos e nomeados pela primeira vez as patologias da

escritura (daí a célebre cãimbra do escritor), como também é a própria grafologia que é

submetida ao olhar do médico. As curvas e os vazios revelam a verdade dos sujeitos:

suas patologias e também sua periculosidade. Acreditava-se que a partir de uma amostra

da assinatura se poderia conhecer um indivíduo.4

Em outras palavras, a entrada em cena daquilo que nós denominamos um

panóptico de segundo tipo, a saber, o panóptico gráfico cujos contornos Foucault

delineia em Vigiar e punir5, se dá a partir dessa clínica. Esse novo dispositivo apóia-se

sobre os leitores que constituem uma polícia da escritura que vigia o espaço público, que

procura os escritos ilícitos, que espreita os escritos clandestinos e luta contra os escritos

anônimos.

É dessa polícia da escritura que nós procuraremos fazer aqui a história, a fim de

mostrar como ela desempenha um papel central na passagem da sociedade disciplinar

para a sociedade de controle.

Gênese de um olhar

Foucault distingue, digamos, três técnicas políticas do corpo: o suplício, a

punição e a disciplina. Assim, cada uma dessas técnicas descritas por Foucault revela

não apenas uma história das modalidades segundo as quais se exerce o poder de punir,

mas também a história da função política do escrever, [p.39] essa prática mítica

moderna, segundo a fórmula de Michel de Certau. De fato, escreve Foucault, a essas três

técnicas não corresponde somente a cerimônia, a representação e o exercício, ou o

corpo supliciado, a alma em que se manipulam as representações, o corpo que se ajusta,

mas também a marca, o sinal e o rastro6. Esses três termos remetem explicitamente à

questão da escritura e assim se pode ler Vigiar e punir não mais apenas como a narrativa

do nascimento da prisão, mas também - pelo menos essa é hoje a minha ambição - como

a narrativa da emergência da prática moderna da escritura nas nossas sociedades.

4 Vide meu livro Clinique de l'écriture: une histoire du regard médical sur l'écriture ordinaire. Paris: Synthelabo, 1998. 5 Vide meu artigo que propõe uma leitura de Vigiar epunir como uma história política da escrita, do qual a primeira parte deste texto toma alguns elementos: "Le panoptique graphique". In: E. da Silva, J.-Cl. Zancarini. Michel Foucault, Lecture II. Lyon : ENS, 2004. 6 FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975, p. 134.

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3

No terceiro dispositivo descrito por Foucault, a disciplina, a escritura tem um

estatuto ainda mais importante. Ela se constitui, de fato, numa técnica de coerção dos

indivíduos. O controle e a utilização dos homens precisa de uma observação minuciosa

do detalhe e, ao mesmo tempo de uma observância política dessas pequenas coisas. Com

elas, todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de procedimentos e de saberes, de

descrições, de receitas e de dados vêm à tona. No centro desse dispositivo está o corpo;

mas não mais somente o corpo do condenado, como também o corpo do homem

comum.

Aqui, nem o soberano que se inscreve sobre o corpo do condenado, nem o jurista

que dita a punição ao homem comum para que essa seja afixada à sua porta, mas uma

aprendizagem e um longo exercício da escritura. Seja como for, uma generalização do

privilégio gráfico ao conjunto da população, privilegiando principalmente as populações

socialmente mais baixas e, nessas, as mais perigosas. Tal generalização do ato gráfico

tem várias dimensões no dispositivo disciplinar. De um lado, ela é entendida como uma

prática; de outro, como um instrumento; e, enfim, como uma produção.

Dessa maneira, emerge em Vigiar epunir a figura do escolar. A disciplina

pretende, de fato, um controle da atividade. Ela vai além de controlar o emprego do

tempo, da elaboração temporal da ação, da articulação do corpo-objeto ou mesmo da

utilização exaustiva, de ajustar correlativamente o corpo e o gesto. Foucault escreveu:

O controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou em

impor uma série de gestos definidos; ele impõe a melhor relação entre

um gesto e a atitude global do corpo, que é a sua condição de eficácia

e rapidez. No bom emprego do corpo que permite o bom emprego do

tempo, nada deve ficar desocupado ou inútil: tudo deve ser chamado a

formar o suporte do [p.40] ato requerido. Um corpo bem disciplinado

constitui o contexto operatório do menor gesto. Uma boa escritura, por

exemplo, supõe uma ginástica - toda uma rotina em que um código

rigoroso investe o corpo em sua totalidade, da cabeça aos pés.7

Assim, a escritura é elevada ao mesmo nível do caminhar; faz-se, dessa prática,

um modo de controle do corpo. Pelo seu exercício, atua-se sobre todo o corpo.

Mas tal controle sobre a escritura não se opera senão no momento da

aprendizagem. O sistema disciplinar dá um grande destaque às punições que, visando

reduzir as diferenças e sendo essencialmente corretivas, são da ordem do exercício.

Citando J. B. de la Salle, Foucault escreveu:

7 Ibidem, p. 154.

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4

àqueles, por exemplo, "que não escreverem tudo o que deveriam escrever, que não se aplicarem para fazê-lo bem, se poderá dar algum

dever para escrever ou para decorar". Segue daí que a punição

disciplinar é, pelo menos em boa parte, isomorfa à própria obrigação;

ela é menos a vingança da lei ultrajada que a sua repetição, sua

insistente reiteração. De modo que o efeito corretivo é obtido

diretamente pela mecânica de um castigo. Castigar é exercitar"8

Ferramenta para docilizar os corpos e instrumento para o bom ajustamento, a

escritura é, assim, um objeto particularmente útil no procedimento de classificação e

hierarquização individual que é o exame.

Lembremos que o exame é, para Foucault, "a técnica pela qual o poder, em vez

de impor sua marca a seus súditos, capta-os num mecanismo de objetivação"9. Assim, o

exame faz, por sua parte, o homem comum entrar no campo gráfico. Foucault diz que "o

exame que coloca os indivíduos no campo da vigilância da mesma forma os situa numa

rede de anotações escritas"10. Desse modo, opera-se todo um jogo de escritura do

indivíduo comum: assim, é formada toda uma série de códigos de individualidade

disciplinar. O corpo é certamente o objeto, assim como o é a escritura. Por outro lado, se

coleciona, acumulam-se documentos, organizam-se os documentos em série, de modo a

permitir não apenas a classificação mas, também, a comparação. E Foucault diz que os

hospitais do [p.41] século XVIII foram especialmente grandes laboratórios para os

métodos escriturários e documentários.11

Mas a função da escritura disciplinar no âmbito do exame é mais importante

ainda: querendo fazer de cada indivíduo um caso, entendido enquanto um objeto de

conhecimento ao mesmo tempo que uma presa do poder, o exame descreverá o

indivíduo nos menores detalhes da sua existência e, logo que isso se torne mais obscuro,

se pedirá que ele se descreva a si mesmo.

Os procedimentos disciplinares [... ] abaixam o limite da individualidade descritível e fazem dessa descrição um meio de

controle e um método de dominação. [... ] Essa nova descritibilidade é

ainda mais marcada, porquanto é estrito o enquadramento disciplinar:

a criança, o doente, o louco, o condenado se tornarão, cada vez mais

facilmente a partir do século XVIII, e segundo uma via que é a dos

mecanismos de disciplina, objeto de descrições individuais e de

relatos biográficos.12

8Ibidem, p. 182. 9 Ibidem, p. 189. 10 Ibidem, p. 191. 11 Ibidem, p. 192. 12 Ibidem, p. 193.

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5

Para Foucault, essa entrada das existências reais na escritura funciona como

procedimento de objetivação e de assujeitamento. Mais ainda, essa vida ordenadamente

escrutinada dos doentes mentais ou dos delinqüentes corresponde a uma certa função

política da escritura.13 No âmbito disso que Foucault chama de instituições disciplinares,

esse poder de escritura será ainda mais denso: elas concentrarão os processos de

aprendizagem, de ajustamento e de exame.

Vê-se, assim, como no dispositivo disciplinar a escritura não é apenas uma

marca, nem um sinal legível, mas verdadeiramente um rastro, um rastro que se liga ao

indivíduo, individual e comparável. Escrever torna-se, de alguma maneira, a assinatura

da sua doença, de seu crime, de suas faltas.

Em suma, esses três dispositivos descritos por Foucault revelam três funções

políticas da escritura. Assim, a escritura é finalmente requerida, dando ao universo

carcerário as formas que Foucault descreveu com tanta precisão.

Emergência do panóptico gráfico

Dos três modelos, dessas três técnicas punitivas, foi a última que dominou e deu

forma à prisão. A função política da escritura que Foucault des creve nas sociedades

disciplinares aqui se encontra muito reforçada.

[p.42] Não se trata mais, então, da escritura do homem comum, do condenado ou

do soberano, mas a prisão criará inteiramente um escritor e, com ele, todo um corpo.

Esse escritor será o delinqüente; seu corpo, a literatura das prisões. Foucaut explica que

o delinqüente torna-se indivíduo a conhecer. Essa exigência de saber

não se insere, em primeira instância, no próprio ato jurídico, para

melhor fundamentar a sentença e determinar, na verdade, a medida da

culpa. É como condenado e a título de ponto de aplicação de

mecanismos punitivos que o infrator se constitui como objeto de saber

possível. [... ] Esse outro personagem, que o aparelho penitenciário

substitui no lugar do infrator condenado, é o delinqüente.14

No âmago do espaço penitenciário, empreende-se então uma zoologia de sub-

espécies sociais, uma etnologia das civilizações de malfeitores, com seus rituais e sua

língua, explica Foucault. Assim, da prisão nasce não apenas um jargão, mas também

novas formas de alfabetos gráficos. Foucault explicita duas delas: a tatuagem e o grafite.

13

Ibidem, p. 194. 14Ibidem, p. 255.

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6

Respondendo à semiologia do crime, os detentos se põem a promover seus

crimes escrevendo-os sobre a pele de seus corpos. Segundo Foucault,

a esse jogo respondem os próprios condenados, arvorando seus crimes

e dando a representação de sua falta: é uma das funções da tatuagem,

vinheta de sua proeza e de seu destino: "eles levam as insígnias, seja

uma guilhotina tatuada no braço esquerdo, seja no peito um punhal

enterrado num coração que sangra".15

Enfim, a prisão criou o grafite. Sobre a parede das celas, na cela da colônia penal

de Mettray, o indivíduo encarcerado escreveu - como refere Foucault, entre outras

coisas escritas em tinta preta -: "Deus vê você"16.

Se Foucault cita esses dois exemplos, é também para mostrar que eles são,

decididamente, o oposto das duas funções da escritura já descritas. De fato, pela

tatuagem, o condenado inverte totalmente a cerimônia do suplício. Seu corpo não é o

objeto de umamarca que a soberania tivesse aí inscrito, mas ele é o suporte do registro

da sua condição de detento. Pela tatuagem, [p.43] o condenado transforma seu corpo em

elemento do panóptico. Igualmente, escrevendo sobre as paredes da prisão a narrativa de

seus crimes, o condenado reverte o princípio da sociedade punitiva, reduzindo os

milhares de registros que a lei evocava em todo o espaço social. Ele torna visível aquilo

que não era visível.

Mais ainda, não se vai apenas tirar vantagem da presença dos condenados para

juntar um material necessário ao conhecimento sobre os indivíduos, mas também exigir

deles uma participação e até mesmo uma colaboração. Foucault explica assim que

"cabia originalmente às disciplinas neutralizar os perigos, fixar as populações inúteis ou

agitadas, evitar os inconvenientes de reuniões muito numerosas; agora, se lhes atribui -

pois se tornaram capazes disso - o papel positivo de aumentar a utilidade possível dos

indivíduos"17

Para conhecer a prisão, vai-se pedir que os detentos escrevam. Foucault evoca

essa dimensão da escritura penitenciária sublinhando que "seria preciso estudar como a

prática da biografia difundiu-se a partir da constituição do indivíduo delinqüente, nos

mecanismos punitivos"18.

15Ibidem, p. 264. 16Ibidem, p. 30i. 7 Ibidem, p. 211. 8 Ibidem, p. 256.

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7

Assim, o espaço penitenciário irá se tornar não apenas um local de coleta dos

vestígios, mas também um vasto ateliê da escritura. Dito de outra maneira, a escritura

pessoal, enquanto técnica de vigilância, progressivamente substitui o panóptico. De

agora em diante, não se precisará mais da torre central e das mil janelas; será a escritura

que, no interior de cada cela, junto a cada detento, desempenhará essa função. Pedir-se-

á, então, a cada detento que ele faça, minuto após minuto de sua detenção, um (digamos)

jornal íntimo acerca de si mesmo; se avaliará o impacto do aprisionamento celular a

partir das narrativas de detenção que cada prisioneiro redigirá. Não faltam exemplos

disso; pensemos nos palimpsestos dos prisioneiros obtidos pelo psiquiatra turinês Cesare

Lobroso 19 ou, ainda, principalmente o nome do professor de Medicina Legal, o lionês

Lacassagne, que coletou numerosas autobiografias de criminosos20, dicionários de gírias

redigidos por detentos, dezenas de cadernos com canções, notas, cálculos etc.

Nesse dispositivo, se irá até mesmo propor a alguns detentos que façam o retrato

de seus colegas presos. Cito, aqui, o exemplo da publicação de um texto anônimo, na

revista francesa dos Archives d'anthropologie criminelle, [p.44] no final do século XIX,

intitulado "Lembranças e impressões de um condenado" 21. Nesse documento, o autor

descreveu, num quadro muito preciso, os diferentes tipos de detentos que encontrou pela

frente; mais ainda, ele descreveu suas atitudes nos ateliês, nos passeios etc.

Desse modo, cada vez mais o panóptico funciona sem sua pesada arquitetura; se

poderia dizer que esse "novo tipo" de panóptico é, em grande parte, gráfico: o papel

substituindo aqui, eu ouso dizer, a pedra; o leitor impondo-se frente àquele que vigia.

Nesse sentido, Foucault cita o uso que Benjamin Appert22 fez das autobiografias de

condenados, em sua obra de 1836 sobre os banhos e as prisões. Ao organizar o quadro

sobre o estado das prisões na França, no início do século XIX, acerca da prisão

alsaciana, Appert concede a palavra a um detento que descreve muito minuciosamente a

situação do estabelecimento.

Nesse sentido, pode-se dizer que com a prisão emerge uma nova maneira de

governar e uma nova função política da escritura. Vem à luz, assim, um

entrecruzamento inédito, mais sutil, mais secreto e provavelmente mais rentável que o

19 LOMBROSO, Cesare. Les Palimpsestes des prisons. Paris: Alcan, 1896. 20 "Sobre essa questão, vide o meu livro Le livre des vies coupables. Paris: Albin-Michel, 2000 21 Vide o site da internet Criminocorpus, onde se pode consultar uma versão eletrônica da revista, bem como uma longa bibliografia. 22 Note-se que se trata do pseudônimo que Foucault adota para assinar um artigo sobre essa questão, no Dictionnaire de philosophie.

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anterior. Como o anterior, tal panóptico gráfico não se limita a algumas instituições; ele

se estende ao conjunto do espaço social, apoiando-se sobre novos leitores/escritores e

sobre novas técnicas de leitura e de escritura.

Microdispositivos

Esse panóptico gráfico funciona de fato mais discretamente, dado que ele não se

apóia mais sobre as edificações; nesse sentido, ele anuncia a sociedade de controle

analisada por Gilles Deleuze, em Conversações. Um resumo do jornal Le Gaulois,

datado de 27 de outubro de 1882, testemunha de modo exemplar essa prática:

Ontem de manhã, ao clarear o dia, os guardas do 18° distrito

arrancaram os cartazes que tinham sido afixados na noite anterior nas

vizinhanças da igreja do Sagrado Coração, em Montmartre. Os

cartazes em papel branco circundado em vermelho, em número de

cinco, tinham as seguintes palavras escritas à mão: "A igreja do

Sagrado Coração dos fanáticos, que é um insulto aos republicanos da

Comuna, está condenada pelo povo que julga. Ela explodirá no dia

fixado pelos justiceiros [p.45] da Revolução". Uma investigação foi

aberta pela Chefatura de Polícia, mas é provável que, como todas as

investigações, essa não levará à descoberta de nenhum culpado.

De um lado, há os agentes de polícia que não têm mais um ponto fixo, mas que

cruzam pela cidade; por outro lado, há também uma técnica de captura e de descrição da

escritura descoberta; e há, enfim, a colocação em cena da relação entre tal escritura e

outras que um inquérito deve determinar.

O leitor móvel

A polícia da escritura, a fim de atingir os seus fins - capturar o conjunto dos

escritos produzidos no espaço público -, se exerce em movimento; o agente não espera

que os cidadãos venham relatar aquilo que leram, mas é durante as rondas que ele faz

com um dos seus colegas, a pé - e, em seguida, será de bicicleta -, que, equipado de uma

caderneta e de um lápis, ele caminha pelas ruas em busca de coisas escritas. O mais

impressionante dessa transformação do policial leitor móvel é a competência que

adquire muito rapidamente para notar no espaço, sobre os muros, no recôndito de uma

porta, na base do suporte de uma estátua, escrituras que não são monumentais e que, na

sua maioria, não medem mais do que alguns centímetros de altura.

Relatório de 5 de agosto de 1882. O manuscrito aqui anexado estava

afixado numa árvore da Praça do Louvre. Cerca de 25 a 30 pessoas

estavam paradas para ler essa peça e não faziam nenhum comentário.

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28 de abril de 1882. Nessa noite, foram afixados sobre diversas casas do quarteirão de Père Lachaise uma vintena de cartazes, todos escritos

pela mesma mão, em que constava: "Para os arrendatários, morte aos

proprietários". Eu relato um desses cartazes que foi recolhido sob um

muro de onde ele havia caído.

5 de setembro de 1885, 9o Distrito. Às 5h 45min da manhã, os guardas Wicart e Accoyer registraram essas palavras escritas a carvão, em

cinco pontos diferentes, sobre o muro do Collège Rollin, Boulevard

Rochechouard n° 49 e sobre a casa n° 47 do mesmo Boulevard:

"Morte à República Francesa". Os agentes lavaram e fizeram

desaparecer completamente essas palavras rebeldes.

O que os agentes observam não são somente o que está escrito. De fato, o olhar

que eles lançam aos grafites levam em conta o nível de periculosidade [p.46] que o

escrito produz: quantas pessoas param quando passam em frente a ele? Quem o lê? Dito

de outra maneira, para esses policiais não se trata de lutar contra o vandalismo nem se

trata de uma poluição visual que poderia ser causada por tais escrituras - isso que hoje

se constitui no motivo principal das campanhas contra os grafites -, mas de cuidar para

que as paredes do distrito de que eles são encarregados não sejam recobertas de escritos

que perturbem o curso das coisas. Assim, se atribui aos grafites uma considerável força

de desordem, uma capacidade subversiva que, por conseqüência, exige uma repressão

também importante.

6 de fevereiro de 1884, 3h 55min da tarde. O sub-brigadeiro Penot, ao

passar na rua Saint-Claude, notou sobre o muro da casa n° 6 as

palavras "pão ou chumbo", escritas com giz. Ele as apagou

imediatamente.

8 de fevereiro de 1884, nessa manhã, às 5h 40 min, o guarda Jacquet,

ao passar na Rue des Archives, notou sobre a parede da casa n° 5 as

palavras "pão ou chumbo", escritas a giz.

Esses agentes leitores são, também, agentes apagadores. Tal ato de apagamento

parece constituir a restauração da ordem, sendo assim, também, um ato de escritura

redobrada pela cópia que é feita no seu relato.

O relato da escritura

Devido ao fato de terem sido lidos antes de serem apagados, os grafites são o

objeto de um ato determinante: o relato23. Como ele é feito? Eu disse que o agente está

equipado com uma pequena caderneta e com um lápis, com os quais realiza seu registro,

o qual compreende: o lugar do escrito (a rua e o número), o suporte (sobre uma cerca,

23 A noção de relato da escritura surgiu do seminário sobre os atos de escritura de Beatrice Fraenkel, no EHESS, em Paris, em 2005-2006.

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uma parede de pedra, uma porta, uma calçada), a hora da sua descoberta (às vezes, uma

indicação da hora na qual pôde fazer o registro), uma transcrição do escrito (geralmente

completa), sua cor e suas dimensões (é tal a precisão de certos registros que se pode

supor que os agentes estivessem equipados com uma fita métrica).

28 de outubro de 1882, às 5h 45 min da manhã, um cartaz manuscrito foi colocado durante a noite sobre um suporte de madeira, na rua

Vivienne, esquina da rua Colbert, em continuação à Biblioteca

Nacional, começando com essas palavras: "Atenção, [p.47]

proletários! Escravos do trabalho" e terminando com essas: "Viva a

Revolução Social! Os Revoltosos da Sociedade Atual".

5 de outubro de 1884, 8h 30min da noite. Às 6h 30min da tarde, foi

registrado que havia sido escrito a lápis, sobre as pranchas que cercam

um terreno baldio situado na Rue de la Tour d'Auvergne n° 33, essas

palavras: "Quando então o governo se decidirá a doar um milhão de

seu comércio e de sua indústria, a fim de dar trabalho ao seu povo. É

preciso então um 1793 para vos sacudir, todos os agentes de polícia

são o terror. Assinado: o povo infeliz Rowdzler, Demetz. Aqui o

matadouro de homens, a opressão dos cidadãos, o assassino das

crianças da França".

Esse primeiro relato de escritura é seguido, ao ser entregue ao comissariado, de

um procedimento que consiste também em colocá-lo em relação a outros relatos. Isso é,

o relato consiste, num segundo momento, em formar uma série de vários escritos

obtidos durante a ronda: ao relato sucede, então, o relatório que não é tão somente uma

descrição, mas uma análise daquilo que foi lido na rua. Também costuma acontecer de

não ser o agente o encarregado da redação, mas seu superior, o comissário distrital.

10 de fevereiro de 1884, esta manhã às 6 h, o guarda Barret encontrou

as palavras "Viva o Rei", escritas a giz, nos lugares abaixo citados:

Rue Beaubourg n° 10;

Rue Bailly, sobre a fachada da loja de miudezas Au Moine St Martin e nos mictórios da Rue Reaumur, em frente ao n° 26 e ao n° 34. Ele

apagou imediatamente essas inscrições.

O agente não descreve apenas o que estava escrito e seus leitores; por esse relato

ele busca também dar conta do ato que o produziu: assim, ele redesenha o percurso do

escritor no espaço urbano esperando, com isso, descobrir sua identidade. Desse modo, é

dada importância à situação do escrito no espaço, como esse relatório de 13 de outubro

de 1884, redigido pelo comissário distrital:

Hoje, às 3 horas o patrulheiro Hunger observou, em frente ao n° 184 da Rue St Denis, as seguintes linhas traçadas a giz branco, sobre a

calçada: "Não passe sem 1er! Aqui a greve da miséria sem pão nem

fogo. Morte aos patrões, eles serão enforcados".

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Essas ameaças são provavelmente uma realização de numerosos

carregadores que todas as manhãs ficam nesse ponto, em [p.48] busca

de trabalho, e aí organizaram uma greve irregular. Muito

seguidamente, os habitantes desse distrito pediram a dispersão desses

indivíduos e seria desejável que essas pessoas, em sua maioria

desocupados e desonestos, pudessem ser expulsos pelos patrulheiros.

Eu fiz desaparecer essa inscrição.

Aqui, vê-se bem o quanto essa polícia da escritura está empenhada numa luta

contra todos os desvios sociais, que são a vagabundagem, o desemprego, as atividades

ilícitas. Por enquanto, não é a escrita que permite identificá-las, mas articulam-se sua

presença e seus rastros gráficos observados. Em outras palavras, com a polícia da

escritura tende-se a querer colocar em relação os escritos, os lugares e os indivíduos.

Das paredes aos jornais.

Essa polícia da escritura não se limita às paredes das cidades. Nessa perspectiva

ela se entrega também a tentar capturar, nos lugares tradicionais da escrita -

particularmente, os jornais -, as escrituras ilícitas. Para dizer de outra maneira, os

policiais cotidianamente prestam atenção nas colunas dos jornais impressos, mais

precisamente nos pequenos anúncios, formas de escritura anônima legal, como esse

pedido de casamento que apareceu num jornal parisiense de 29 de janeiro de 1907:

Gde. bela morena, b. feita, gênero Rembrandt des. Casamento. Nollo, 46 r. Laborde. Fd fundos, 2a à dr.

O que os policiais da escritura rastreiam não é tanto a prostituição, mas o

anonimato; assim, o que se constitui numa ameaça nesse final do século XIX é o ato

anônimo, posto que não se sabe quem o produziu nem quando o fez. Os pequenos

anúncios que se alastram pelos jornais são, por excelência, o lugar dessa escritura sem

rosto.

Relatório de 6 de maio de 1909: "Manicure, Mss. Oriental por dme

dipl. Mme Moretti, 336 r. St Honoré, 1 a 7 h.", originada de uma certa

dama Mesclier que adota, circunstancialmente, o nome de sua avó

Mme. Moretti, uma renomada massagista que trabalhava antigamente

em Marselha.

Relatório de 15 de novembro de 1911:0 parágrafo a seguir ["D. d. casamento, Thylda 211 Bd Voltaire esc. Cg. 2e e P. g. 1-7, sem dim."]

foi inserido no suplemento "pela assim chamada Thylda, pseudônimo

de trabalho de Mathilde Eugénie, que mora sozinha desde fins de

outubro

último, 241 Bd Voltaire".

Page 12: ARTIÈRES, Philippe. a Polícia Da Escritura

12

[p.49] Relatório de julho de 1909: O suplemento de 3 de julho de 1909: "Modas, nouv. Install. L, demontale, 42 r. de la Roquette 10 a

8h, 2º gche (Bastille)". A presente nota refere-se a uma tal Philippet

Berthe, nascido em 17 de outubro de 1880, em Raincy. Essa mulher

veio ao serviço declarar que ela abriu, nesse endereço uma casa de

encontros.

O essencial é, dessa maneira, que todo o escrito é um escritor identificado e

identificável, mesmo quando sua atividade é ilícita. Assim, se vê como de uma

sociedade de vigilância se passa, naquele fim de século, logo antes da guerra de 1914-

1918, para uma sociedade de controle. O objetivo não é mais de vigiar os indivíduos,

mas de segui-los num espaço determinado e de capturar seus rastros.

Também - e com essa figura eu concluirei este texto - não foi senão quando,

sendo surpreendidos com a noite da Primeira Guerra Mundial, que se lançou um grande

empreendimento de recenseamento dos pombos que pertenciam aos columbófilos do

Norte da França. Os escritos que eles carregam sob suas asas podem chegar a um

correspondente distante, sem que ninguém saiba com possibilidade de ele poder escapar

da polícia da escritura, esse pássaro pode se constituir numa grave ameaça. Identificar o

pombo e adestrá-lo à sinalização, é limitar o risco de uma circulação de escrituras

clandestinas, é ampliar um pouco mais ainda a esfera de ação do panóptico gráfico e de

seus agentes leitores, mas, dessa vez, não contra uma ameaça interna mas, sim, contra

uma ameaça externa. Trata-se de controlar as escrituras sobre a pedra, sobre o papel e

até mesmo sobre o céu.