Naomi Klein Doutrina Choque

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    A ASCENSO DOCAPITALISMO DE DESASTRE

    A DOUTRINA DO

    CH QUEENSO D CAPI LISMO D

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    Ttulo originale Shock Doctrine: e Rise of Disaster Capitalism

    ISBN (original)978-0-312-42799-3

    Copyright @ 2007 by Naomi KleinEdio original por Picador, Henry Holt and Company

    Todos os direitos para a publicaoem Portugal reservados por:

    SmartBookAv. Fontes Pereira de Melo, 25, 2. Esq.

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    E-mail: [email protected]

    Site: www.smartbook.pt

    Coordenao Editorial: Ricardo BritoTraduo: Marco de So Joo

    Paginao: ZPOTmedia

    Capa: Lisa FyfeAdaptao da Capa: ZPOTmedia

    Impresso e acabamentos: Tipograa Guerra Lda.

    Naomi Klein

    A Doutrina do Choque. A Ascenso do Capitalismo de Desastre

    ISBN: 978-989-95970-6-8

    Depsito Legal n. 294173/09

    1. Edio: Junho 2009

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    Para Avi, novamente

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    Qualquer mudana uma mudana no tpico. Csar Aira, novelista argentino, Cumpleaos, 2001

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    D:?9;

    >CIGD9JvDEm Branco Belo: Trs Dcadas a Apagar e a Refazer o Mundo

    E6GI:>Dois Doutores do Choque: Pesquisa e Desenvolvimento

    1.

    2.

    E6GI:>>O Primeiro Teste: As Dores de Parto

    3.4.5.

    E6GI:>>>A Democracia Sobrevivente: Bombas Feitas de Leis

    6.7.

    8.

    E6GI:>KPerdidos na Transio: Enquanto Chorvamos, Enquanto Trema-mos, Enquanto Danvamos

    9.

    10.

    13

    O Laboratrio da Tortura: Ewen Cameron, a CIA e a DemandaManaca para Apagar e Refazer a Mente Humana

    O Outro Doutor do Choque: Milton Friedman e a Busca por umLaboratrio Laissez-Faire

    35

    37

    63

    87

    Estados de Choque: O Nascimento Sangrento da Contra-RevoluoLimpar a Tbua: o Terror Faz o Seu TrabalhoCompletamente Desconectados: Como uma Ideologia Foi Puri-cada dos Seus Crimes

    89

    115

    133

    Salvos por uma Guerra: O atcherismo e os Seus Inimigos teisO Novo Doutor do Choque: o Estado de Guerra Econmico Substituia DitaduraA Crise Funciona: O Empacotamento da Terapia de Choque

    149

    161175

    147

    Fechando Estrondosamente a Porta Histria: Uma Crise na Polnia,um Massacre na ChinaA Democracia Nascida Acorrentada: A Liberdade Constringida dafrica do Sul

    191

    193

    217

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    11.

    12.13.

    E6GI:KA Emergncia do Complexo do Capitalismo de Desastre

    14.

    15.

    E6GI:K>Iraque, Crculo Fechado, Sobrechoque

    16.17.18.

    E6GI:K>>A Zona Verde Mvel: Zonas de Amortecimento e Paredes de Con-

    teo

    19.20.

    21.

    8DC8AJHDO Choque Dissipa-se: A Emergncia da Reconstruo Popular

    CDI6H

    6B:CIDH

    A Fogueira de Uma Democracia Jovem: A Rssia Escolhe A OpoPinochetO Id Capitalista: A Rssia e a Nova Era do Mercado RsticoDeixem Arder: A Pilhagem da sia e a Queda do Segundo Muro deBerlim

    243

    273

    291

    A Terapia de Choque nos EUA: A Bolha da Segurana Interna

    Um Estado Corporativista: Removendo a Porta Giratria, Colocandouma Arcada

    313

    341

    311

    Apagando o Iraque: Em Busca de um Modelo para o Mdio OrienteUm Tiro Pela Culatra Ideolgico: Um Desastre Muito CapitalistaCrculo Completo: Da Tbua Rasa Terra Devastada

    359

    357

    377399

    Arrasando a Praia: O Segundo TsunamiO Apartheid do Desastre: Um Mundo de Zonas Verdes e ZonasVermelhasA Perda do Incentivo para a Paz: Israel Enquanto Aviso

    423

    425

    447467

    489

    515

    585

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    INTRODUO

    ;C8H7D9Ex8;BE

    IGH9w8696H66E6

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    Eu conheci Jamar Perry em Setembro de 2005, no grande abrigo da Cruz Vermelhaem Baton Rouge, Louisiana. O jantar estava a ser repartido por jovens Cientologistascom largos sorrisos cheios de dentes, e ele estava na la. Eu tinha acabado de ser

    apanhada a falar com evacuados sem uma escolta dos meios de comunicao social eestava agora a dar o meu melhor por passar despercebida, uma canadiana branca num

    mar de sulistas afro-americanos. Esquivei-me para a la da comida, atrs de Perry, e

    pedi-lhe para falar para mim como se fossemos velhos amigos, coisa que ele gentil-

    mente fez.

    Nascido e criado em Nova Orlees, ele tinha estado ausente da cidade inundada

    havia uma semana. Ele parecia ter 17 anos, mas disse-me ter 23. Ele e a sua famlia

    tinham esperado imenso tempo pelos autocarros de evacuao; quando estes no che-

    garam eles tinham caminhado sob o Sol abrasador. Por m, vieram parar aqui, a um

    enorme centro de convenes, normalmente ocupado com congressos farmacuticos

    e o torneio Capital City Carnage: e Ultimate Steel Cage Fightingagora completamenteobstrudo por duas mil camas e uma confuso de pessoas zangadas e exaustas, patru-

    lhadas por soldados da Guarda Nacional facilmente irritveis, acabados de regres-

    sar do Iraque.

    As notcias que corriam pelo abrigo naquele dia eram sobre Richard Baker, um

    proeminente congressista Republicano desta mesma cidade, que tinha dito o seguinte

    a um grupo de lobbyistas: Finalmente limpmos o alojamento social em Nova Orlees.

    Ns no o conseguamos fazer, mas Deus f-lo.2 Joseph Canizaro, um dos mais ricos

    investidores no desenvolvimento de Nova Orlees, tinha acabado de exprimir um

    sentimento semelhante: Creio que temos uma folha em branco de onde podemos

    recomear. E com esta folha em branco temos algumas oportunidades muito grandes.3Durante toda essa semana a Legislatura Estadual do Louisiana em Baton Rouge tinha

    estado repleta de lobbyistas corporativos a ajudar a rmar essas grandes oportuni-

    dades: impostos mais baixos, menos regulamentos, trabalhadores mais baratos e uma

    cidade mais pequena e mais segura o que, na prtica, signicava planos para arrasar

    com os projectos de habitao social e substitu-los por condomnios. Ao ouvir toda

    esta conversa sobre novos comeos e folhas em branco, quase nos esquecemos

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    16 A DOUTRINA DO CHOQUE

    da sopa txica de entulho, escoamentos qumicos e restos humanos a apenas algunsquilmetros de distncia pela auto-estrada.

    L no abrigo, Jamal no conseguia pensar em mais nada. Eu no vejo mesmoisto como uma limpeza da cidade. O que eu vejo que muita gente morreu na partealta da cidade. Pessoas que no deviam ter morrido.

    Ele estava a falar baixo, mas um homem mais velho que estava na la nossafrente ouviu-o e virou-se de rompante: O que se passa com esta gente em BatonRouge? Isto no uma oportunidade. uma tragdia, caramba! Ser que eles socegos?

    Uma me com dois lhos intrometeu-se. No, eles no so cegos. So prdos.

    Eles vem muito bem.

    Um dos que viu uma oportunidade nas guas diluviais foi Milton Friedman, grandeguru do movimento pelo capitalismo liberal e o homem creditado por escrever o livrode regras da economia global contempornea hipermvel. Apesar dos seus 95 anos deidade e uma sade frgil, o Tio Miltie, como conhecido entre os seus seguidores,encontrou foras para escrever um artigo de opinio para o Wall Street Journal trsmeses depois de os diques terem cedido. A maioria das escolas de Nova Orlees estem runas, observou Friedman, assim como os lares das crianas que as frequen-tavam. As crianas esto agora espalhadas por todo o pas. Isto uma tragdia.

    tambm uma oportunidade de reformar de forma radical o sistema educativo.4A ideia radical de Friedman era que, em vez de se gastar uma poro dos milhares

    de milhes de dlares do dinheiro de reconstruo em reconstruir e melhorar o sistemade ensino pblico de Nova Orlees, o governo devia providenciar vouchers s fam-lias, os quais poderiam ser gastos em instituies privadas, muitas delas com vista nolucro, que seriam subsidiadas pelo Estado. Era crucial, escreveu Friedman, que estamudana fundamental no fosse um remendo mas sim uma reforma permanente.5

    Uma rede de peritos da ala direita agarraram na proposta de Friedman e caramsobre a cidade depois da tempestade. A administrao de George W. Bush apoiou osplanos deles com 10 milhes de dlares para converter as escolas de Nova Orlees em

    escolas por alvar, instituies nanciadas com dinheiros pblicos e geridas por enti-dades privadas de acordo com as suas prprias regras. As escolas por alvar so umaquesto profundamente polarizante nos EUA, em particular em Nova Orlees, ondeso vistas por muitos pais afro-americanos como uma forma de inverter os ganhosdo movimento dos direitos civis, o qual garante a todas as crianas o mesmo padrode educao. No entanto, para Milton Friedman, todo o conceito de um sistema deensino dirigido pelo Estado tresandava a socialismo.** Na sua perspectiva, as nicas

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    17INTRODUO

    funes do Estado so proteger a nossa liberdade tanto dos inimigos do lado de forados nossos portes, como dos nossos co-cidados: preservar a lei e a ordem, fazer

    cumprir os contratos privados, fomentar mercados competitivos.6 Por outras pala-

    vras, fornecer polcias e soldados tudo o resto, incluindo providenciar educao

    gratuita, seria uma interferncia desleal no mercado.

    Em acentuado contraste com o passo glacial a que os diques eram reparados e

    a rede elctrica era restaurada, o leilo do sistema de ensino de Nova Orlees estava

    a acontecer com velocidade e preciso militares. Em menos de dezanove meses, com

    a maioria dos residentes mais pobres ainda no exlio, o sistema de ensino de Nova

    Orlees tinha sido quase totalmente substitudo por escolas por alvar geridas por

    privados. Antes do furaco Katrina, o conselho escolar dirigia 123 escolas pblicas;agora dirigia apenas 4. Antes da tempestade, existiam 7 escolas por alvar na cidade;

    agora existiam 31.7 Dantes, os professores de Nova Orlees eram representados por

    um sindicato forte; agora, o contrato do sindicato tinha sido feito em farrapos, e os

    seus 4700 membros tinham sido todos despedidos.8 Alguns dos professores mais

    novos foram reintegrados nas escolas, com salrios reduzidos; a maioria no foi.

    Nova Orlees era agora, de acordo com o New York Times, o mais preeminente

    laboratrio da nao para o teste do uso generalizado de escolas por alvar, enquanto

    o Instituto Americano do Empreendimento, um grupo de peritosfriedmanita, entu-

    siasmava-se ao dizer que o Katrina conseguiu num dia (...) o que os reformadores

    escolares do Louisiana no conseguiram fazer ao m de anos a tentar.9 Entretanto,os professores das escolas pblicas, ao verem o dinheiro atribudo s vtimas das

    cheias a ser desviado para apagar um sistema pblico e substitu-lo com um sistema

    privado, apelidaram o plano de Friedman de uma especulao imobiliria aplicada

    educao.10

    Eu chamo a estas incurses orquestradas esfera pblica no rescaldo destes acon-

    tecimentos catastrcos, combinadas com o tratamento dos desastres como excitantes

    oportunidades de mercado, de capitalismo de desastre.

    O artigo de opinio de Friedman sobre Nova Orlees acabou por ser a sua ltima reco-

    mendao poltica pblica; ele faleceu menos de um ano depois, a 16 de Novembrode 2006, com 94 anos. A privatizao do sistema de ensino de uma cidade americana

    de tamanho mdio pode parecer uma preocupao pouco importante para o homem

    aclamado o economista mais inuente dos ltimos 50 anos, o qual tinha entre os

    ** NT: Nos EUA o termo socialismo tem um valor depreciativo, diferente ao valor atribudo na Europa.

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    18 A DOUTRINA DO CHOQUE

    seus discpulos vrios presidentes norte-americanos, primeiros-ministros britnicos,oligarcas russos, ministros das nanas polacos, ditadores do Terceiro Mundo, secre-

    trios do Partido Comunista Chins, directores do Fundo Monetrio Internacional e

    os trs ltimos chefes da Reserva Federal dos EUA. No entanto, a sua determinao

    em explorar a crise em Nova Orlees para fazer avanar uma verso fundamentalista

    do capitalismo era, igualmente, uma despedida estranhamente adequada deste expan-

    sivamente energtico catedrtico de 1,58 centmetros de altura que, no seu auge, se

    descreveu como um pregador moda antiga a celebrar um sermo de domingo.11

    Durante mais de trs dcadas, Friedman e os seus poderosos seguidores tinham

    aperfeioado esta exacta estratgia: esperar por uma crise de grandes dimenses para

    vender ao desbarato partes do Estado a interesses privados enquanto os cidadosainda estavam atordoados do choque, e depois tornar rapidamente as reformas

    permanentes.

    Num dos seus ensaios mais inuentes, Friedman articulava o ncleo tctico

    nostrum do capitalismo contemporneo, aquilo que tenho vindo a compreender

    como a doutrina do choque. Ele notava que apenas uma crise real ou apreendida

    produz mudanas reais. Quando essa crise ocorre, as aces que so levadas a cabo

    dependem das ideias que esto mais mo. Essa acredito ser a nossa funo bsica:

    desenvolver alternativas s polticas existentes, mant-las vivas e disponveis at que

    o politicamente impossvel se torne no politicamente inevitvel.12 Algumas pessoas

    armazenam conservas enlatadas e gua como preparao para os grandes desastres;osfriedmanitas armazenam ideias de mercado livre. E assim que uma crise se abateu,

    o professor da Universidade de Chicago estava convencido que era crucial agir rapi-

    damente, impor mudanas rpidas e irreversveis antes que a sociedade, abalada pela

    crise, deslizasse de novo para a tirania do status quo. Ele estimava que uma nova

    administrao tem entre seis a nove meses para efectuar grandes mudanas; se no

    agarrar a oportunidade de agir decisivamente durante esse perodo, no voltar a ter

    uma oportunidade igual.13 Sendo isto uma variante do conselho de Maquiavel de que

    as feridas devem ser inigidas todas de uma vez, provou ser um dos legados estra-

    tgicos mais duradouros de Friedman.

    Friedman aprendeu a explorar um choque ou crise em larga escala em meados dadcada de 1970, quando era conselheiro do ditador chileno General Augusto Pinochet.

    No s os chilenos estavam em estado de choque no seguimento do violento Golpe de

    Estado de Pinochet, como tambm o pas estava traumatizado por uma grave hiper-

    inaco. Friedman aconselhou Pinochet a impor uma transformao de rajada na

    economia cortes nos impostos, livre comrcio, servios privatizados, cortes nas

    despesas sociais e abolio de algumas regulamentaes. Com o tempo, os chilenos

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    19INTRODUO

    chegaram mesmo a ver as suas escolas pblicas serem substitudas por escolas privadasnanciadas por dinheiros pblicos. Foi a mais extrema transformao capitalista

    alguma vez tentada e cou conhecida como a revoluo da Escola de Chicago, visto

    que muitos dos economistas de Pinochet tinham sido alunos de Friedman na Univer-

    sidade de Chicago. Friedman previu que a velocidade, brusquido e alcance das deslo-

    caes econmicas iriam provocar reaces psicolgicas no pblico que iriam faci-

    litar o ajustamento.14 Ele criou uma expresso para designar esta tctica dolorosa:

    tratamento de choque econmico. Desde ento, sempre que algum governo imps

    extensos programas de mercado livre, o mtodo escolhido tem sido o tratamento de

    choque tudo-de-uma-vez, ou terapia de choque.

    Pinochet tambm facilitou o ajustamento com os seus prprios tratamentos dechoque; estes tratamentos eram realizados nas inmeras celas de tortura do regime,

    inigidos nos corpos contorcidos daqueles vistos como mais provveis de se intro-

    meterem no caminho da transformao capitalista. Muitos na Amrica Latina viram

    uma ligao directa entre os choques econmicos que empobreceram milhes de

    pessoas e a epidemia de torturas que castigavam centenas de milhares de pessoas que

    acreditavam num tipo diferente de sociedade. O escritor uruguaio Eduardo Galeano

    perguntou Como pode esta desigualdade ser mantida se no for atravs de descargas

    de choques elctricos?15

    Exactamente 30 anos aps estas trs distintas formas de choque se abaterem sobre

    o Chile, a frmula reemergiu, com muito mais violncia, no Iraque. Primeiro surgiu aguerra, desenhada, de acordo com os autores da doutrina militar do Choque e Pavor

    para controlar a vontade, percepes e compreenso do adversrio, e, literalmente,

    deixar um adversrio impotente para agir ou reagir.16 Em seguida surgiu a radical

    terapia de choque econmica, imposta, enquanto o pas ainda estava em chamas, pelo

    enviado chefe dos EUA, L. Paul Bremer privatizaes em massa, mercado totalmente

    livre, uma taxa de imposto de 15%, um dramtico corte no nmero de membros do

    governo. O ministro do comrcio interino iraquiano, Ali Abdul-Amir Allawi, disse,

    na altura, que os seus compatriotas estavam fartos e cansados de serem objecto de

    experincias. J houve sucientes choques no sistema, por isso no precisamos desta

    terapia de choque na economia.17 Os iraquianos que resistiram foram arrebanhadose levados para prises onde os seus corpos e mentes encontraram mais choques, estes

    claramente menos metafricos.

    Eu comecei a investigar a dependncia do mercado livre no poder do choque h

    quatro anos atrs, durante os primeiros dias da ocupao do Iraque. Depois de relatar

    a partir de Bagdade as tentativas falhadas de Washington de fazer preceder o Choque

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    20 A DOUTRINA DO CHOQUE

    e Pavor com a terapia de choque, viajei para o Sri Lanka, vrios meses aps o devas-tador tsunami de 2004, e testemunhei outra verso da mesma manobra: investidores

    estrangeiros e facilitadores de emprstimos internacionais tinham-se juntado para

    aproveitar a atmosfera de pnico e entregar toda a bela linha costeira a empreende-

    dores que, rapidamente, construram grandes resorts, impedindo centenas de milhares

    de pescadores de reconstruir as suas aldeias perto da gua. Numa cruel reviravolta

    do destino, a natureza tinha presenteado o Sri Lanka com uma oportunidade nica, e

    desta tragdia nascer um destino turstico de renome mundial, anunciou o governo

    do Sri Lanka.18 Na altura em que o furaco Katrina atingiu Nova Orlees, e o nexo de

    polticos Republicanos, peritos e empreiteiros comeou a falar de folhas em branco

    e oportunidades excitantes, era patente que este era agora o mtodo preferido defazer avanar os objectivos corporativos: utilizar momentos de trauma colectivo para

    engendrarem mudanas sociais e econmicas radicais.

    A maioria das pessoas que sobrevive a um desastre devastador quer o oposto

    de uma tbua rasa: querem tentar salvar tudo o que consigam e comear a reparar

    o que no foi destrudo; querem rearmar as suas razes com o local que as formou.

    Quando estou a reconstruir a cidade sinto que me estou a reconstruir, disse Cassandra

    Andrews, uma residente do Nono Bairro Inferior, uma das zonas mais danicadas de

    Nova Orlees, enquanto limpava destroos deixados pela tempestade.19 Mas os capi-

    talistas de desastre no tm interesse nenhum em reparar o que outrora existira. No

    Iraque, Sri Lanka e Nova Orlees, o processo ao qual chamaram, enganadoramente,reconstruo comeou com a concluso do trabalho do desastre original, ao apagar

    o que tinha sobrado da esfera pblica e das comunidades enraizadas, e, depois, rapi-

    damente substitu-las com uma espcie de Nova Jerusalm corporativa tudo isso

    antes que as vtimas de guerra ou de desastres naturais fossem capazes de se organizar

    e reivindicar os seus direitos sobre aquilo que lhes pertencia.

    Mike Battles foi quem o disse melhor: Para ns, o medo e a desordem ofereciam

    grandes promessas.20 O ex-operativo da CIA de 34 anos estava a referir-se a como

    o caos no Iraque aps a invaso tinha ajudado a sua desconhecida e inexperiente

    rma de segurana privada, a Custer Battles, a sacar cerca de 100 milhes de dlares

    em contratos ao governo federal.21 As suas palavras poderiam muito bem ser usadascomo o slogan para o capitalismo contemporneo o medo e a desordem so os cata-

    lisadores de cada novo salto em frente.

    Quando iniciei esta pesquisa sobre a interseco entre super-lucros e mega-

    desastres, pensei que estaria a testemunhar uma mudana de fundo na forma como o

    impulso para liberar os mercados estava a avanar por todo o mundo. Tendo feito

    parte do movimento contra a inao do poder corporativo que teve a sua estreia em

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    21INTRODUO

    Seattle em 1999, eu estava acostumada a ver polticas amigas dos negcios semelhantesa serem impostas, pela fora, em cimeiras da Organizao Mundial do Comrcio

    (OMC), ou como as condies anexadas aos emprstimos do Fundo Monetrio Inter-

    nacional (FMI). As trs exigncias que so a marca registada do processo privatizao,

    desregulamentao governamental e cortes profundos nos gastos sociais tendiam a

    ser extremamente impopulares entre os cidados, mas quando os acordos eram assi-

    nados ainda existia pelo menos o pretexto de consentimento mtuo entre os governos

    que levavam a cabo as negociaes, bem como um consenso entre os supostos espe-

    cialistas. Agora o mesmo programa ideolgico estava a ser imposto atravs dos piores

    meios coercivos possveis: sob ocupao militar estrangeira aps uma invaso, ou no

    seguimento imediato de um desastre natural cataclsmico. O 11 de Setembro pareciater fornecido a Washington uma luz verde para poder parar de perguntar aos pases

    se eles queriam a verso dos EUA de comrcio livre e democracia e poder comear a

    impor essa verso utilizando a fora militar baseada no Choque e Pavor.

    No entanto, medida que eu aprofundava sobre a histria de como este modelo

    de mercado tinha varrido o globo, descobri que a ideia de tirar partido de crises e de

    desastres tinha sido o modus operandi do movimento de Milton Friedman logo desde

    o incio esta forma fundamentalista de capitalismo desde sempre necessitara de

    desastres para avanar. Era, sem dvida, um facto que os desastres que facilitavam

    este capitalismo estavam a car cada vez maiores e mais chocantes mas o que estava

    a acontecer no Iraque e em Nova Orlees no era uma inveno nova do ps-11 deSetembro. Pelo contrrio, estas ousadas experincias com a explorao de crises eram

    o culminar de trs dcadas de rigorosa adeso doutrina do choque.

    Vistos atravs das lentes desta doutrina, os ltimos 35 anos parecem-nos muito

    diferentes. Algumas das mais infames violaes dos direitos humanos desta era, as

    quais, at agora, tendiam a ser vistas como actos sdicos perpetrados por regimes anti-

    -democratas, eram, na realidade, ou cometidos com o intuito deliberado de aterrorizar

    o pblico, ou activamente acumulados para preparar o terreno para a introduo

    de reformas radicais do mercado livre. Na Argentina nos anos 70, o desapareci-

    mento por parte da junta** de 30 mil pessoas, na sua maioria activistas de esquerda,

    foi parte integral da imposio das polticas da Escola de Chicago do pas, tal comoo terror tinha sido parceiro no mesmo tipo de metamorfose econmica no Chile. Na

    China em 1989, foi o choque do massacre na Praa de Tiananmem e a subsequente

    priso de dezenas de milhares de pessoas que libertou a mo do Partido Comunista

    ** NT: Junta militar argentina nas dcadas de 1970 e 1980.

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    22 A DOUTRINA DO CHOQUE

    para que este pudesse converter a maior parte do pas numa enorme zona de exporta-es, operada por trabalhadores demasiado aterrorizados para exigirem os seus direi-tos. Na Rssia em 1993, foi a deciso de Boris Yeltsin de enviar tanques para incen-diar o edifcio do Parlamento e de prender os lderes da oposio que abriu caminhopara as privatizaes, feitas a preos baixssimos, que criaram os conhecidos oligarcasdo pas.

    A Guerra das Falklands em 1982 serviu um objectivo semelhante a Margaretatcher no Reino Unido: a desordem e excitao nacionalista resultantes da guerrapermitiu-lhe usar uma fora tremenda para esmagar os mineiros do carvo em grevee lanar o primeiro frenesim de privatizaes de sempre numa democracia Ocidental.

    O ataque da OTAN a Belgrado em 1999 criou as condies propcias s rpidasprivatizaes na antiga Jugoslvia um objectivo que antecedia guerra. O sistemaeconmico no era, de modo algum, o nico motivador destas guerras, mas em cadaum dos casos um grande choque colectivo era aproveitado para preparar o terrenopara uma terapia de choque econmica.

    Os episdios traumticos que tm servido esta funo de amaciar no tmsido sempre abertamente violentos. Na Amrica Latina e em frica nos anos 80, foi acrise causada pelas elevadas dvidas que forou os pases a uma situao de ser priva-tizado ou morrer, expresso usada por um antigo funcionrio do FMI.22 Tendo sidodestroados pela hiperinao, e estando demasiado endividados para recusarem s

    exigncias que vinham misturadas com os emprstimos estrangeiros, estes governosaceitaram o tratamento de choque com a promessa de que seriam poupados a pioresdesastres. Na sia foi a crise nanceira de 1997/98 quase to devastadora quantoa Grande Depresso que rebaixou os pretensos Tigres Asiticos, expondo os seusmercados quilo que o New York Times descreveu como a maior liquidao total domundo.23 Muitos destes pases eram democracias, mas as radicais transformaes domercado livre no foram impostas democraticamente. Muito antes pelo contrrio:segundo o entendimento de Friedman, a atmosfera de crise em grande escala propor-cionava o pretexto necessrio para indeferir os desejos expressos dos eleitores eentregar o pas nas mos dos tecnocratas.

    Naturalmente existem casos em que a adopo de polticas de mercado livretem acontecido de forma democrtica h polticos que tm concorrido com plata-formas absolutistas e que ganham eleies, sendo a presidncia de Ronald Reaganum exemplo acabado disso, e a eleio do presidente francs Nicolas Sarkozy umexemplo mais recente. No entanto, nestes casos os cruzados do mercado livre viram-se confrontados com a presso pblica e foram, invariavelmente, forados a moderare modicar os seus planos radicais e tiveram de aceitar mudanas graduais em lugar

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    24 A DOUTRINA DO CHOQUE

    feld. A equipa de Bush agarrou o momento de vertigem colectiva com uma velocidadeestonteante no como alguns j armaram, porque a administrao tivesse maleca-

    mente conspirado a crise, mas porque as guras chave da administrao, veteranos de

    anteriores experincias com o capitalismo de desastre na Amrica Latina e na Europa

    de Leste, eram parte de um movimento que reza por uma crise com o mesmo fervor

    com que um agricultor afectado pela seca reza pela chuva, e com o mesmo fervor com

    que os Cristos-Sionistas invocadores do m dos tempos rezam pelo Arrebatamento.

    Quando o to esperado desastre se abate, eles sabem que o seu momento chegou nal-

    mente.

    Durante trs dcadas, Friedman e os seus seguidores tinham metodicamente

    explorado momentos de choque noutros pases equivalentes estrangeiros ao 11 deSetembro, a comear pelo Golpe de Estado de Pinochet a 11 de Setembro de 1973. O

    que aconteceu no 11 de Setembro de 2001 foi que uma ideologia incubada em univer-

    sidades americanas e forticada em instituies de Washington tinha nalmente a sua

    hiptese de vir para casa.

    A administrao Bush apossou-se do medo gerado pelos ataques no apenas

    para lanar a Guerra Contra o Terror mas tambm para garantir que se torna num

    empreendimento quase completamente for-prot, uma nova indstria em franca

    expanso que deu um segundo flego vacilante economia americana. Melhor

    compreendida como um complexo do capitalismo de desastre, possui tentculos

    muito mais longos do que o complexo militar-industrial contra o qual Dwight Eisen-hower nos avisou no nal do seu mandato: isto uma guerra global travada a todos

    os nveis por companhias privadas cujo envolvimento pago com dinheiros pblicos,

    e que tm o mandato interminvel de proteger a ptria dos Estados Unidos perpe-

    tuamente ao mesmo tempo que eliminam todo o mal alm-fronteiras. Em apenas

    uma mo cheia de anos, o complexo j expandiu o seu alcance de mercado de lutar

    contra o terrorismo para a manuteno internacional da paz, o policiamento muni-

    cipal e a resposta a desastres naturais, cada vez mais frequentes. O objectivo ltimo

    das corporaes no centro do complexo trazer o modelo do governofor-prot, o qual

    avana to depressa quando as circunstncias so extraordinrias, para as corriqueiras

    funes do dia-a-dia do Estado com efeito, privatizar o governo.

    Para dar o pontap de sada para o complexo do capitalismo de desastre, a

    administrao Bush concessionou, sem qualquer debate pblico, muitas das funes

    governamentais mais essenciais e sensveis desde providenciar cuidados de sade

    aos soldados, passando por interrogar prisioneiros, at recolha e prospeco de

    dados** de informao sobre todos ns. O papel do governo nesta guerra inter-

    ** NT: Processo de extrair padres escondidos a partir de informao recolhida.

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    25INTRODUO

    minvel no o de um administrador a gerir uma rede de adjudicatrios mas o de umcapitalista de empreendimentos de risco com bolsos fundos, que tanto providenciava

    o dinheiro de arranque para a criao do complexo, como se tornava no maior cliente

    dos seus novos servios. Citando apenas trs estatsticas que mostram o alcance da

    transformao, em 2003 o governo dos Estados Unidos colocou 3512 contratos nas

    mos de companhias para estas exercerem funes de segurana. Durante o perodo

    de 22 meses que terminou em Agosto de 2006, o Departamento de Segurana Interna

    tinha celebrado mais de 115 mil contratos do gnero.26 A indstria da segurana

    interna na sua globalidade, a qual era economicamente insignicante antes de 2001,

    , agora, um sector de 200 mil milhes de dlares.27 Em 2006 os gastos do governo dos

    Estados Unidos com a segurana interna ascendiam a uma mdia de 545 dlares poragregado familiar.28

    E isso era s na frente domstica da Guerra Contra o Terror; era a lutar nas

    guerras alm-fronteiras que se fazia dinheiro a srio. Para alm dos contratos com os

    fabricantes de armas, que tm visto os seus lucros disparar graas guerra no Iraque, a

    manuteno dos exrcitos dos Estados Unidos agora uma das economias de servios

    em mais rpida expanso do mundo.29 Nenhum par de pases em que ambos tenham

    um McDonalds alguma vez travaram uma guerra um contra o outro, declarou ousa-

    damente o colunista do New York Times omas Friedman em Dezembro de 1996.30

    No apenas cou provado dois anos mais tarde que ele estava enganado, como, graas

    ao modelo de guerra for-prot, as Foras Armadas dos Estados Unidos entram emguerra com o Burger King e a Pizza Hut atrelados, contratando-os para estabelecerem

    franchises** para os soldados em bases militares desde o Iraque at mini cidade na

    Baa de Guantnamo.

    E depois temos o auxlio humanitrio e a reconstruo. Pioneiros no Iraque, o

    auxlio e reconstruofor-protj se tornou no novo paradigma global, independen-

    temente da razo da destruio original ter sido um ataque de antecipao, como o

    ataque de Israel ao Lbano em 2006, ou um furaco. Com a escassez de recursos e

    as alteraes climticas a fornecerem um uxo cada vez maior de novos desastres,

    responder a essas emergncias simplesmente um mercado em ascenso demasiado

    bom para ser deixado nas mos das organizaes sem ns lucrativos porque quetem de ser a UNICEF a reconstruir escolas, quando isso pode ser feito pela Bechtel,

    uma das maiores rmas de engenharia dos Estados Unidos? Porqu pr os deslo-

    cados do Mississippi em apartamentos subsidiados vazios quando eles podem ser

    alojados em navios de cruzeiro da empresa Carnival? Porqu colocar no terreno

    ** NT: Concesses de explorao econmica da marca.