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1 8.541 toques Sotaques: ecos do tempo e do espaço O paulistano tem sotaque? Tem, e esse sotaque tem a ver com a pronúncia das palavras e das frases, que seguem determinados ritmos e melodias. Se a maneira de falar do paulistano já é um dialeto próprio, com seu sotaque anasalado característico, ela tem ainda subsotaques. Fomos conferir de onde vem o sotaque paulistano e como ele é modificado por ecos de outras regiões, povos e países. Paulistano falava a língua dos índios O sotaque paulistano propriamente dito, caracterizado por uma entonação e por uma pronúncia que o diferenciam do gaúcho, do nordestino e do carioca, tem uma história muito antiga, e remonta ao encontro das populações portuguesas com os índios. Segundo Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), durante mais de 200 anos as vilas de São Vicente e São Paulo foram irradiadoras de ondas de migração para o Sudeste e o Sul do País e falavam em grande medida uma língua indígena baseada no tupi, o nhengatu,

Sotaques

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8.541 toquesSotaques: ecos do tempo e do espaoO paulistano tem sotaque? Tem, e esse sotaque tem a ver com a pronncia das palavras e das frases, que seguem determinados ritmos e melodias. Se a maneira de falar do paulistano j um dialeto prprio, com seu sotaque anasalado caracterstico, ela tem ainda subsotaques. Fomos conferir de onde vem o sotaque paulistano e como ele modificado por ecos de outras regies, povos e pases.

Paulistano falava a lngua dos ndiosO sotaque paulistano propriamente dito, caracterizado por uma entonao e por uma pronncia que o diferenciam do gacho, do nordestino e do carioca, tem uma histria muito antiga, e remonta ao encontro das populaes portuguesas com os ndios.

Segundo Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, professor e pesquisador da Universidade de So Paulo (USP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), durante mais de 200 anos as vilas de So Vicente e So Paulo foram irradiadoras de ondas de migrao para o Sudeste e o Sul do Pas e falavam em grande medida uma lngua indgena baseada no tupi, o nhengatu, a lngua-geral simplificada pelos jesutas e utilizada pelos bandeirantes para comunicao com os ndios. Essa lngua-geral de tronco tupi era uma das lnguas francas faladas na Capital, onde tambm coabitavam tribos de outros troncos lingusticos. O nhengatu foi sistematizado por jesutas como Anchieta, que fez a primeira gramtica de tupi, a Arte de gramtica da lngua mais usada na costa do Brasil, escrita em 1595. Essa lngua foi predominantemente falada pela populao da vila de So Paulo at quase meados do sculo 18, quando seu uso foi oficialmente proibido pelo marqus de Pombal. So Paulo voltou a falar a lngua portuguesa, mas carregada de sotaques indgenas.

Essa lngua se aproximaria muito do que hoje o caipira do interior. Teria sido por influncia principalmente indgena que ocorreram acrscimos de vogais para fazer com que as consoantes fossem pronunciadas como no caso de mele em vez de mel, nis em vez de ns. As consoantes finais dos infinitivos tambm foram suprimidas no falar popular como em fal em vez de falar.

Os bandeirantes e tropeiros que ali primeiro se estabeleceram, por influncia indgena, tambm teriam adotado o hbito de pular consoantes no meio das palavras (mui por mulher, por exemplo) e usariam o R retroflexo (porrta). Tambm ocorreram mudanas nas formas de tratamento: os mamelucos diziam mec em vez de vossa merc (depois a prpria lngua culta adotaria voc, que veio de formas intermedirias populares, como vosenc).

Palavras indgenas tambm fazem parte do vocabulrio e das expresses comuns do paulistano, como capim, abacaxi, mandioca, jabuticaba, sabi, curi, piranha, estar na pindaba, estar de tocaia.

A cidade de So Paulo cresceu, instituiu faculdades como a de Direito, teve mais observncia pelas normas cultas da lngua e a pronncia do paulistano foi perdendo parte do sotaque e da pronncia caipira das palavras que ela tinha antes, mas conservando um pouco de sua msica.

O Rio de Janeiro teria sotaque semelhante, antes da chegada da leva de migraes de Portugal que veio com a Famlia Real em 1808. Isso fez predominar naquela cidade a pronncia mais europia do S (em cosstas, por exemplo), que tambm caracterstica de diferentes regies litorneas nas quais predominou a imigrao portuguesa, como litoral de Santa Catarina, Santos, Par.

A pronncia de So Paulo j era caracterstica, marcada por contribuies do nhengatu e de outras lnguas indgenas ao portugus falado em Portugal, pelo linguajar popular e pela posterior predominncia do linguajar mais erudito. Tambm houve as contribuies dos escravos negros na entonao e no vocabulrio (caula, moleque), por exemplo. O toque final foi dado pela chegada de levas de imigrantes estrangeiros, que trouxeram novas lnguas e diferentes sotaques que hoje se ouvem na Capital.

O professor chama a ateno para o fato de a troca de R por L, chamada tecnicamente de rotacismo, no ser uma caracterstica exclusiva do caipira, pois falada pelas crianas (a exemplo do linguajar das revistas da Mnica e do Cebolinha), tipicamente pelos chineses e encontrada em todas as regies brasileiras, estando mais relacionada a variveis ou aspectos sociais, como a escolaridade do falante, do que a motivos dialetais circunscritos a uma dada regio. Esse rotacismo pode ter sido intensificado em dado perodo por influncia indgena, mas est ligado ao modo mais fcil ou mais elaborado de emitir o som das letras, sendo que j existia no latim (flagellum e fragellum, por exemplo). e no portugus dos clssicos (Cames usa frauta em vez de flauta, por exemplo). Isso denota que pode se tratar de um caso de manuteno, diz Santiago Almeida.

Sons que vieram do NorteDentre os principais subsotaques da Grande So Paulo destaca-se o nordestino. A regio tem mais de 2 milhes de moradores nascidos no Nordeste, quase 10% do total de sua populao. Os nordestinos e seus descendentes diretos chegam a mais de 8 milhes na regio metropolitana. Em alguns lugares, como o Largo da Concrdia, no Brs, e os extremos das zonas Leste e Sul, possvel ouvir o cantado nordestino nas ruas, bares e mercearias (casas do Norte). A palavra delcia, por exemplo, pronunciada dlcia com a antepenltima slaba aberta. T fazendo um frio arretado! Nem os cachorros ficam mais com os quartos pra cima no sol, t tudo encolhido..., comenta Raimundo Souza, que mora na zona leste e passa pelo largo da Concrdia para pegar trem. Hoje ele est avexado (com pressa) para voltar para casa porque o filho de oito anos faz aniversrio e a famlia preparou uma festinha. Raimundo foi buscar manteiga de garrafa e um vinhozinho de caju para servir aos adultos. xente, num que vai chover e eu armei a churrasqueira com tijolos no quintal?, Vixe, vai ter de mocozar todo mundo dentro da casa, que j pequena... Raimundo mestre de obras. Muitos nordestinos recm-chegados encontram seu emprego em So Paulo na funo de pedreiros, servios domsticos e humildes postos de vigilante, atendente, porteiros de prdios. O cantado nordestino que se ouve na regio do Brs se espalha por vrios pontos da cidade, mas se rene no Centro de Tradies Nordestinas, que fica na Rua Jacofer, 615, no bairro do Limo (atrs do prdio do Estado). Na sede do CTN so promovidas feiras de culinria e artigos tpicos e concorridos shows, que chegam a lotar a rea, com capacidade para sete mil pessoas. Funciona de segunda a quinta no horrio do almoo, de sexta e sbado das 11h s 4h e de domingo das 11h 0h, com muito forr. Entre as iguarias, um destaque para as vrias formas de servir carne-seca, inclusive desfiada. Tambm fazem sucesso a buxada de bode, os pratos com abbora (jerimum), o sarapatel (sangue e midos de porco), o baio-de-dois (feijo com arroz e carne). E l tambm no falta a tradicional cozinha baiana, com suas moquecas, o vatap e o acaraj (com vatap, camaro seco, vrias especiarias, frito no dend fresco).

Sons da ItliaQuem anda um dia pela Mooca j pega o sotaque de forte inspirao italiana: Blaaa, qui qui ti aconteceu, Blaaa? um bairro antigo, onde os imigrantes italianos criaram razes, o que sucede tambm com o Bexiga. Nesses dois bairros possvel perceber o sotaque junto com os costumes da Itlia, o que se expressa no grande nmero de cantinas e pizzarias, por exemplo. que a influncia italiana muito expressiva na Capital: dos dez milhes de habitantes da cidade de So Paulo, 60% (6,5 milhes de pessoas) possuem alguma ascendncia italiana. So Paulo tem mais descendentes de italianos que qualquer cidade italiana (Roma, por exemplo, a maior cidade da Itlia, tem 2,5 milhes de habitantes). Embora o italiano seja o mais espalhado dos sotaques de So Paulo, ele se concentrou nesses bairros de origem operria, onde os primeiros italianos que chegaram ao Brasil iam trabalhar em tecelagens e moinhos.Na Mooca, a tradio italiana bem preservada pelos muitos descendentes, conforme explica a professora Maria Lcia Armelini, que d aula de italiano no Clube Juventus. Temos orgulho do sotaque. Outro interesse, segundo a professora, o de tirar passaporte e ter cidadania italiana. No precisa nascer na Itlia para ser italiano. Qualquer descendente italiano. Alm do sotaque, Maria Lcia, que j viveu na Itlia muitos anos, aponta caractersticas gramaticais italianas que entraram para o dialeto paulistano. Um exemplo seria a expresso somos em cinco em vez de somos cinco, porque o italiano diz some in cinque.